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RESENHA REFORMA AGRÁRIA, O IMPOssíVEL DIÁLOGO N este livro, José de Souza Martins apre- senta quatro ensaios, precedidos de longa in- trodução que, com o nome de A Disputa Polí- tica pela Reforma Agrá- ria, estabelece o fio condutor do livro. Essa Introdução constitui, de certa forma, um trabalho original e autônomo. Destes ensaios três foram elaborados no decor- rer do ano 2000 e um quarto, em 1997, intitulado Excurso. O que Permanece da Critica Socialista ao Capitalismo, aparentemente estaria fora do núcleo central de preocupaçôes tratado nos en- saios precedentes; mas, sua leitura atenta per- mite perceber que "a crítica socialista ao capitalismo permanece, também, como um con- junto de indagaçôes" (p, 172). E são essas inda- gaçôes, "postas pela realidade da sociedade nas últimas décadas" (p, 172), as que perpassam o conjunto dos artigos. Nestes trabalhos o autor mantém as ca- racterísticas básicas de sua vasta produção so- ciológica. São ensaios bem escritos. A prosa clara e argumentativa prende de início a aten- ção do leitor. Por sua vez, o conteúdo não deve surpreender a quem conhece sua obra. No afã de trazer à superfície do conhecimento o que está oculto sob o véu das múltiplas mistifica- çôes das relaçôes sociais, o autor se mostra polêmico e, algumas de suas teses centrais al- tamente questionáveis. São novas abordagens sobre questôes relevantes da realidade social, econômica e política dos tormentosos tempos políticos que acompanham a difícil e comple- xa construção democrática do país depois do regime militar. DE Jost DE SOUZA MARTINS Os ensaios deba- tem a questão agrária, a reforma agrária, os me- diadores políticos ea objetividade do conhe- cimento nas Ciências So- ciais. Que concordemos ou discordemos das afir- maçôes do autor é um outro problema. O que interessa salientar é que esses ensaios apresen- tam, sob nova perspectiva, a velha questão agrá- ria, uma nova forma de pensar a reforma agrária e a prática política e teórica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Co- missão Pastoral da Terra (CPT), ambos conside- rados pelo autor como os principais mediadores das reivindicações "dos pobres" na luta pela terra. Nos limites de uma resenha, assumindo propositadamente o risco de reduzir o pensa- mento do autor, consideraremos o livro como um todo, pois ele é realmente uma totalidade em que a introdução e cada um dos ensaios são partes dessa totalidade. Segundo o autor, na história brasileira há dois temas que continuam pendentes e que até hoje não foram resolvidos: "O tema da escravi- dão e o seu tema residual, o da posse da terra. São temas inter-relacionados, relativos às duas grandes questões nacionais, situados em pólos cronológicos opostos: a questão do trabalho li- vre e a questão agrária" (p. 11). Seria, sob esse prisma, inócuo discutir a questão agrária sem referi-Ia à solução que no passado deu-se à libertação dos escravos. A abo- lição da escravidão deixou pendentes os pro- blemas do trabalho livre: "abriu caminho para o trabalho livre, mas não necessariamente para a modernidade do trabalho assalariado' (p. 12-13). Reforma Agrária. O Impossível Diálogo. Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP). São Paulo: EDUSP, 2000. 173 p. POR RAUl PATRICia GASTElO ACUNA * Aluno do Mestrado em Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Bolsista do CNPq e pesquisador licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC ACUNA, RAUL PATRíclO GASTELO: REFORMA AGRÁRIA. O IMPossíVEL DIÁLOGO. P. 143 A 47 143

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RESENHA

REFORMA AGRÁRIA, O IMPOssíVEL DIÁLOGO

Neste livro, José deSouza Martins apre-senta quatro ensaios,

precedidos de longa in-trodução que, com onome de A Disputa Polí-tica pela Reforma Agrá-ria, estabelece o fiocondutor do livro. EssaIntrodução constitui, decerta forma, um trabalho original e autônomo.Destes ensaios três foram elaborados no decor-rer do ano 2000 e um quarto, em 1997, intituladoExcurso. O que Permanece da Critica Socialistaao Capitalismo, aparentemente estaria fora donúcleo central de preocupaçôes tratado nos en-saios precedentes; mas, sua leitura atenta per-mite perceber que "a crítica socialista aocapitalismo permanece, também, como um con-junto de indagaçôes" (p, 172). E são essas inda-gaçôes, "postas pela realidade da sociedade nasúltimas décadas" (p, 172), as que perpassam oconjunto dos artigos.

Nestes trabalhos o autor mantém as ca-racterísticas básicas de sua vasta produção so-ciológica. São ensaios bem escritos. A prosaclara e argumentativa prende de início a aten-ção do leitor. Por sua vez, o conteúdo não devesurpreender a quem conhece sua obra. No afãde trazer à superfície do conhecimento o queestá oculto sob o véu das múltiplas mistifica-çôes das relaçôes sociais, o autor se mostrapolêmico e, algumas de suas teses centrais al-tamente questionáveis. São novas abordagenssobre questôes relevantes da realidade social,econômica e política dos tormentosos tempospolíticos que acompanham a difícil e comple-xa construção democrática do país depois doregime militar.

DE Jost DE SOUZA MARTINS Os ensaios deba-tem a questão agrária, areforma agrária, os me-diadores políticos e aobjetividade do conhe-cimento nas Ciências So-ciais. Que concordemosou discordemos das afir-maçôes do autor é umoutro problema. O que

interessa salientar é que esses ensaios apresen-tam, sob nova perspectiva, a velha questão agrá-ria, uma nova forma de pensar a reforma agráriae a prática política e teórica do Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Co-missão Pastoral da Terra (CPT), ambos conside-rados pelo autor como os principais mediadoresdas reivindicações "dos pobres" na luta pela terra.

Nos limites de uma resenha, assumindopropositadamente o risco de reduzir o pensa-mento do autor, consideraremos o livro comoum todo, pois ele é realmente uma totalidadeem que a introdução e cada um dos ensaios sãopartes dessa totalidade.

Segundo o autor, na história brasileira hádois temas que continuam pendentes e que atéhoje não foram resolvidos: "O tema da escravi-dão e o seu tema residual, o da posse da terra.São temas inter-relacionados, relativos às duasgrandes questões nacionais, situados em póloscronológicos opostos: a questão do trabalho li-vre e a questão agrária" (p. 11).

Seria, sob esse prisma, inócuo discutir aquestão agrária sem referi-Ia à solução que nopassado deu-se à libertação dos escravos. A abo-lição da escravidão deixou pendentes os pro-blemas do trabalho livre: "abriu caminho para otrabalho livre, mas não necessariamente para amodernidade do trabalho assalariado' (p. 12-13).

Reforma Agrária. O Impossível Diálogo.Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP).

São Paulo: EDUSP, 2000. 173 p.

POR RAUl PATRICia GASTElO ACUNA

* Aluno do Mestrado em Sociologia do Programa de Pós-Graduaçãoem Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Bolsista doCNPq e pesquisador licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas

Agrárias do Ceará - CEPAC

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es termos a questão agrária é um desdobra-mento da forma como foi resolvida a escravi-dão. Essa resolução criou formas anômalas deujeição do trabalho ao capital: servis e de es-

cravidão aberta ou encoberta, especialmente noAmazonas. Essas relações intermediárias marca-ram a história social do país, ao não incorporarao mercado de trabalho aqueles que foram des-cartados pelo capital ou que este tornoudescartáveis. Com a modernização do latifún-dio, aumentou a expulsão dos trabalhadores eo mercado urbano foi incapaz de absorver essaforça de trabalho.

A expulsão dos trabalhadores, sintetizan-do a exposição de Martins, gerou a luta pelaterra. Luta que explode nos últimos cinqüentaanos e cujos momentos mais marcantes foramas Ligas Camponesas, na década de cinqüentado século XX, e a luta dos indígenas e posseirosda Amazônia Legal, na década seguinte. A de-manda por terra, dos expulsos do latifúndio, éincorporada pelo Estado através de dois gover-nos: Goulart, que conforme Martins, consideravaa questão agrária uma questão de direitos tra-balhistas e promulgou, acolhendo as teses doPartido Comunista e o Estatuto do TrabalhadorRural, em 1963, e o governo militar que tentouresolver, sem êxito, a questão da posse da terraatravés do Estatuto da Terra. A ausência de ca-nais adequados durante a ditadura levou a Igrejaa incorporar essas demandas por terra, comosuas, através da Comissão Pastoral da Terra.

O pressuposto básico do autor é o parale-lo que ele estabelece entre a forma que assu-miu a resolução da escravidão e a forma quedeve assumir a resolução da questão agrária.Martins considera que "as elites esclarecidas doséculo XIX entenderam, de algum modo, que aquestão da escravidão era uma questãosuprapartidária. Ela seria vencida unicamenteatravés de um acordo político suprapartidárioque removesse o temor da pátria em perigo" (p.13). O problema da escravidão ameaçava o paíscomo nação e "era um problema de toda a pá-tria, de todo o povo" (p. 13).

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A questão agrana, pela forma como foiresolvida a questão da escravidão, é também umaquestão suprapartidária que está além do go-verno e dos partidos da oposição. "A questãoagrária só se resolverá na mesa das boas inten-ções e de amor à pátria c...) A pátria está nova-mente em perigo porque a questão agrária nodivide como povo, nos separa e nos confronta(. ..) Ela nos afasta de nossa identidade nacio-nal" (p. 13).

A raiz dos problemas sociais do país estariano modo como foi resolvida a escravidão. "Os nos-sos problemas sociais de hoje têm sua raiz nessaanômala modalidade de mudança social" (p. 14)

A tentativa de esclarecer os elos ocultos des-sas anomalias é o objetivo central dos ensaios.

"A dificuldade para compreender a ano-malia das mudanças e os bloqueios a transfor-mações sociais profundas é no essencial o temadeste livro". Esse núcleo temático tem como hi-pótese o fato de "que o período pós-ditatorial émarcado pelo protagonismo da sociedade civilem relação ao estado e não ao contrário" e "aconstatação de que os grupos de mediação daslutas populares, que são grupos de classe mé-dia, especialmente na luta pela reforma agrária,introduziram nela o seu próprio movimento so-cial e o seu próprio e impotente hibridismo declasse" (p. 14-19). Essa anomalia tem gerado umainversão da reforma agrária: não se discute aquestão de fundo que é a questão agrária e asdemandas dos movimentos sociais transfigura-das pela ideologia de classe média das agênciasde mediação colocam em crise a dinâmica ecriatividade dos próprios movimentos sociais. Ahipótese central dos ensaios parte de um pres-suposto que o autor não demonstra e que é umaaporia, ou seja, é uma falsa contradição em ter-mos. A orientação ideológica da classe média,por ser, nas palavras do autor, uma orientaçãohíbrida deveria se refletir na prática do MSTque,por essa origem de classe, seria confusa e umamistura ideológica sem nenhuma coerência. Arealidade nos mostra outras interpretações. Aprática do MST,além de expressar coerentemente

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BCH-UFCPEP;ÓDI~OS

os anseios por terra daqueles que foram expro-priados, revela uma profunda coerência nas prá-ticas políticas dos seus integrantes que não são,com contadas exceções, da classe média, e sim,agricultores familiares. Teoricamente, não é fe-cundo reduzir essa complexa categoria social à"classe media". Aliás, o que define uma classesão suas práticas e não sua origem social. Con-sideramos que o autor não faz as mediações entreo "ideário híbrido da classe média" e as práticasdo MST. Não há nessas práticas a "fantasmagoria"ideológica das classes médias.

Esse eixo de análise é prioritariamenteabordado no primeiro ensaio do livro intitulado"AsMudanças nas Relações entre a Sociedade eo Estado e a Tendência a Anomia nos Movimen-tos Sociais e nas Organizações Populares". Se-gundo o autor, na maior parte da história doBrasil foi o Estado que tutelou a sociedade civil.Durante a ditadura militar houve um flores-cimento dos movimentos sociais e organizaçõespopulares que sugeria, e ainda sugere, uma novafase da história social do país marcada pela im-portância da sociedade civil na construção dademocracia." o entanto, essa curta vivacidadeaparentemente está entrando em crise, diantede um Estado que foi mais ágil na definição das.circunstâncias do agir histórico" (p. 73). Existemevidências de que essas tendências se confir-mem e, nesse caso, esses movimentos vão setornar anômicos, pois suas "referências ideoló-gicas não correspondem à circunstância históri-ca nem às possibilidades de intervençõestransformadora que nela se abrem" (p. 74).

No caso da reforma agrária, essa tendên-cia anômica se expressa no desencontro entreas aspirações e o modo de vida dos "pobres" docampo e o projeto dos mediadores que estádescolado dessas aspirações. Os principais me-diadores das reivindicações camponesas seriamo MST e a CPT. Os primeiros, oriundos dohibridismo político da classe média e, os segun-dos, da Teologia da Libertação. Os primeiros rei-vindicando seus projetos particulares de classee os segundos lutando "pelos pobres teológicos

que não são o mesmo que os pobres sociológi-cos". Nesse processo em que os mediadores seautonomizam daqueles que dizem representaros excluídos da sociedade globalizada tambémforam excluídos da palavra Cp. 19- 81-82). Isso éevidentemente uma visão tortuosa dos movimen-tos sociais e, especificamente do MST. Cabe aindagação: se o MST excluísse seus representa-dos da palavra teria a importância e o peso soci-al e político que tem? Essa análise está ancoradano famoso "saco de batatas" de Marx, em queos camponeses não passam de "coisas indífe-renciadas", incapazes de assumir e expressarautonomamente suas reivindicações. E essa au-tonomia é uma das originalidades do MST. Asnovas práticas sociais trazidas pelo MST ao ce-nário político brasileiro revelam o novo dos mo-vimentos sociais. E esse "novo" exige abordagensteóricas que vão além das leituras petrificadasde Marx.

Para Martins, no complexo processo daemergência dos movimentos sociais durante aditadura militar, grupos de militantes de parti-dos clandestinos e forças de oposição em geralestabeleceram uma coalizão de interessesaglutinados pelo antagonismo ao regime mili-tar e não por um interesse geral com projetopróprio. A predominância dos interesses parti-cularizados dessa ampla constelação opositora,na qual muitos de seus integrantes não esta-vam enraizados nos grupos sociais que diziamrepresentar, gerou "um oposicionismo residu-al, uma coalizão dos resíduos da repressão edo autoritarismo, sem o qual teria sido impos-sível a superação do regime militar e a transi-ção para a democracia" (p. 77). Todos essesgrupos articularam de uma ou outra forma seusdifusos interesses sob o manto protetor da Igre-ja. Com o fim da ditadura, "a sociedade civil foise tornando rapidamente, corporativa e autori-tária. Os movimentos sociais tornaram-se orga-nizações, não raro agressivas, autoritárias eintolerantes, com burocracia própria, bloque-ando o espaço para novos e autêntico movi-mentos ociais" Cp. -9). a afirmação não e -

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sustentada por pesquisas empíricas e fica, porisso, genérica e de difícil compreensão.

Martins, ao mesmo tempo em que reco-nhece o relevante papel desempenhado pelo MSTe a CPT "pela inclusão da questão agrária na agen-da política do estado brasileiro, já não mais comoproblema residual, episódico e menor c. .. ) Mas,como rotineiro problema social de urgência", cri-tica a relação entre a autonomia dos movimentossociais e sua direção 'ideologizada". Porém, essepapel relevante, e aí está o questionamento cen-tral de Martins aos "mediadores políticos", temsido vanguardista e descolado das aspirações dospobres da terra. "Fizeram-no, portanto, sem osaber, pela tortuosidade das vias indiretas, pormeio das repercussões injustamente negativas desuas ações e não pela via política de quem pro-põe, assume e administra politicamente a pro-posta e a conquista. De fato, MSTe CPT perderamo controle do seu projeto de transformar a socie-dade brasileira através de transformação da estru-tura agrária, porque sua concepção maniqueístae redutiva da política não lhes permite reconhe-cer-se como donatários políticos da vontade dospobres da terra" (p. 20-21). Mais uma vez, a reite-ração radical de uma visão do MST que odemoniza e não contribui ao conhecimento desuas práticas.

Nessa perspectiva, o MST e a CPT "Perde-ram o controle", já que não compreenderam quequem "questiona e propõe não é quem resolve.Nessa dialética, é a política agrária do governoquem define a demanda que não é priorita-riamente sua e para a qual, não obstante, é aresposta" (p. 21). Essa perspectiva de análisepode conduzir a uma perda de autonomia dosmovimentos sociais diante do governo eminimiza a luta pela hegemonia dos movimen-tos sociais no seio da sociedade civil, já que, opressuposto da postura analítica do autor é queo governo é o "mediador" e "articulador" acimadas classes dos interesses do conjunto da socie-dade, sem distinção de classes. E nós sabemosque essa é a aparência do Estado brasileiro, queé profundamente classista e autoritário. O MST

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não inventou esse Estado. Ele é produto de umasociedade de classes antagônicas.

Para Martins, aí está o impasse e a possí-vel derrota da luta pela terra e seu desdobra-mento em luta pela reforma agrária: "a histórianos mostra também, que rapidamente, por vári-as razões, essas organizações estão perdendo aluta pela reforma agrária, que não se limita nempode se limitar a essas instituições mediadoras,pois passa pela incorporação da reforma ao pro-grama político do governo e por seu reconheci-mento pela ação do Estado. E não se limita,obviamente, à questão da redistribuição da ter-ra" (p. 22). A realidade mostra algo diferentedaquilo que sustenta Martins. Sem a "mediação"do MST e da CPT dificilmente o governo deFernando Henrique Cardoso teria se preocupa-do da "questão agrária" e há evidências empíricasde que no seio da sociedade civil o MST e a CPTestão ganhando a luta pela reforma agrária. Alémdisso, a essência da reforma agrária é a expro-priação de terras dos grandes proprietáriosfundiários e sua distribuição, pelo Estado, quepossui o monopólio legítimo da força, àquelesque têm pouca terra ou que foram expropriadosdesse meio de produção. Uma reforma sem dis-tribuição rápida e massiva da terra não é refor-ma agrária.

Para Martins, a luta pela terra vai além dasinstituições mediadoras que, no caso, não ex-pressam e não representam a dinâmica real daluta pela terra, pela sua incapacidade de visualizarque essa luta pela terra deve se transformar emluta pela reforma agrária. (p. 22)

E essa transformação depende "de que aação de seus protagonistas ganhe sentido naviabilização política de uma reforma social queenvolve necessária e obrigatoriamente o Estadoe os partidos políticos e envolve, portanto, umpacto em favor da reforma" (p. 22).

Essa é a tese central de Martins. Não hácorrespondência mecânica entre luta pela terrae luta pela reforma agrária. A primeira é umareivindicação dos movimentos sociais. A segun-da vai além das reivindicações imediatas dos

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movimentos sociais e envolve, como diriaGramsci, o consenso do Estado ampliado: a so-ciedade política e a sociedade civil. Parece-nosque a pergunta central é: as possibilidades des-se consenso não foram abertas em grande me-dida pelas lutas do MST que, justamente comessas lutas, ganhou o apoio da sociedade civil eabriu as portas para a legitimidade social da re-forma agrária? Seriam possíveis esse consenso ea legitimidade social sem o MST?

O ensaio, Reforma Agrária, o ImpossívelDiálogo sobre a História Possível, é uma refle-xão sobre a questão agrária e "o modo como elase propõe na conjuntura atual, que seria a con-juntura do governo de Fernando Henrique Car-doso" (p. 88).

Nessa análise o "Ponto essencial e proble-mático raramente considerado, mesmo por quemé sério e competente, é o de que a questão agrá-ria tem a sua própria temporalidade que não éO 'tempo' de um governo" (p. 89). essa pers-pectiva histórica "a questão agrária está no cen-tro do processo constitutivo do Estadooligárquico e republicano do Brasil" (p. 92), As-imo ~O tempo da questão agrária é o tempoongo dos bloqueios, dificuldades e possibilida-de a que o Estado faça uma revisão agrária dealcance histórico e estrutural, mais contida oumais ousada". (p. 92)

O confronto entre o governo e as oposi-ções estaria permeado por questões que nãosão essenciais. "Uma delas é o empenho doMST,da CPT e de vários intelectuais de esquer-da na reinvenção da reforma agrária. Uma boaparte do discurso dessas agências de mediaçãoé hoje dedicada ao conceito de reforma agráriae praticamente nada é dedicado à questão agrá-ria, embora muito se fale na reforma agrária,propriamente dita" (109). Isso leva a certa per-plexidade, contrariamente às afirmações deMartins: o MST e a CPT defendem precisamen-te o conceito clássico de reforma agrária. Con-ceito postulado por estudiosos, "acima dequalquer suspeita", tais como ].K., Galbraith eDoreen Warrimer.

Para Martins, a forma privilegiada para re-solver a questão agrária está nas terras devo lutasrecuperadas pelo Estado.

Assim, critica as propostas de reformaagrária da CPT e do MST por tratar-se de umprograma "limitado a aspectos puramente quan-titativos da reforma" - "desapropriação de umagrande quantidade de terras em tempo relativa-mente curto" e não se preocupar com os aspec-tos qualitativos tais como o da "reconcentraçãoda propriedade" (p. 23), Martins propõe umaoutra abordagem de reforma agrária. A propos-ta de uma reforma agrária possível, nas circuns-tâncias históricas do país, através de um pactosocial que envolva o conjunto da sociedade pararesolver os problemas da luta pela terra.

E para isso um aspecto central da questãoagrária e que, mesmo negada pelo MST, CPT eintelectuais, indica a forma de resolvê-Ia, é a re-cuperação do Estado do senhorio de seu territó-rio. A recuperação territorial do direito de domíniodo Estado sobre áreas griladas por grandes fa-zendeiros possibilitaria recuperar o território e,ao mesmo tempo, proporcionar terras suficientespara resolver a questão agrária. A regularizaçãofundiária que é negada pelo MSTe pela CPTcomoinstrumento jurídico à disposição do Estado pos-sibilitaria assentar milhares de famílias a baixocusto. Essa solução é questionável. A maioria dosestudiosos da questão agrária coloca que a políti-ca de colonização, utilizada fartamente durante ogoverno militar, trouxe enormes benefícios paraas empresas colonizadoras e foi um fracasso paraos trabalhadores rurais. Lembremos que coloni-zação não é reforma agrária. Os fracassos daspolíticas de colonização e seus custos sociais ain-da estão frescos na nossa memória. A soluçãoapontada pelo autor reduz a questão agrária e areforma agrária a uma simples redistribuição deterras em áreas marginais e deixa, paradoxalmente,intocada a questão agrária que é a preocupaçãocentral dos ensaios.

Sem dúvida o livro de José de SouzaMartins levanta, como dizia Weber, conjecturas.E esse é o eu mérito.

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BIBLIOGRAFIAA bibliografia deve conter todas as obras

citadas e orientar-se pelos seguintes critérios:

Livro: Sobrenome em maiúsculas, Nome. (Dataentre parênteses), Título em itálico. Local, Editora.

Exemplo: HABERMAS, ]ürgen. (987), Disleticse hermenéutica para a crítica bermenéutics deGsdsmer. Porto Alegre: L&PM Editores.

Coletânea: Sobrenome em maiúsculas, Nome.(Data), "Título do capítulo entre aspas", in emitálico, iniciais do nome seguidas do Sobreno-me does) organizador(es), Título da coletâneaem itálico. Local, Editora.

Exemplo: MATOS, Oligária. (990), "Desejo deevidência, desejo de vidência: Walter Benjamin",in A. Novaes (org.), O desejo. São Paulo, Com-panhia das Letras.

Artigo: Sobrenome em maiúsculas, Nome.(Data), "Título do artigo entre aspas" Nome doperiódico em itálico, número da edição: nume-ração das páginas.

Exemplo: VILHENA, Luís Rodolfo. (996), "Osintelectuais regionais. Os estudos de folclore eo campo das Ciências Sociais nos anos 50". Re-vista Brasileira de Ciências Sociais, 32: 125-149.

"Impressão e Acabamento Imprensa Univesitária da UFCL

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