Religiosidade, Rebelião e Identidade Afro-baiana (João José Reis)

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Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 6, n° 12, 2001, pp. 255-260. 11. Tempo Religiosidade, rebelião e identidade afro-baiana ENTREVISTA de Martha Abreu e Ronaldo Vainfas com JOÃO JOSÉ REIS * 1 - Por que só recentemente a historiografia tem se dedicado às religiosidades, entendidas como vivências concretas da religião em perspectiva diacrônica, ultrapassando os enfoques institucionais ou o estudo de processos normativos, a exemplo da Igreja, códigos eclesiásticos ou dos projetos missionários? Foram as inovações na historiografia em geral chegando ao campo religioso. Também em torno de outros temas, como história política por exemplo, predominava a perspectiva institucional, diplomática, legal e a atuação da cúpula política, os “missionários” desse ramo da história. Quando a preocupação se volta para a “história de baixo para cima”, os fiéis se tornam o assunto de reflexão e então, necessariamente, a questão da religiosidade vivida vem à tona. Podemos dizer isso de outro modo. Toda religião tem centro e periferia. No centro estão seus líderes “burocráticos”, para usar o conceito de Weber, e a doutrina, a ortodoxia; na periferia estão os fiéis, um grande número dos quais se localizam também nas fronteiras da heterodoxia, contrabandeando elementos de outros registros religiosos, enfim os que “pecam” a roldão. Obviamente entre centro e periferia muita coisa acontece, mas é nesta última que se verifica o que existe de mais interessante, é onde ocorrem com maior intensidade as mudanças, as trocas culturais, é o espaço mais dinâmico das religiões, o lugar inclusive do cisma, do surgimento do líder carismático. Pois bem, essa periferia passou a ser melhor estudada. Acrescente-se , pelo menos no caso do Brasil, a “descoberta” de fontes novas, como os inquéritos inquisitoriais, que permitem uma penetração mais profunda na alma do homem e da mulher comuns, perseguidos por desvios estritamente de fé ou de comportamento, estes também julgados pela ótica da religião “oficial”. Mas veja bem, tem-se estudado a mudança da visão dos representantes do centro religioso a partir do seu contato com o universo das suas fronteiras, e mesmo além de suas periferias. Falo dos estudos de contato cultural, da visão do outro, do trabalho catequético, envolvendo os missionários, enfim estudos importantes em que ideologia e mentalidades estabelecem limites muito tênues entre si, como os que hoje abundam sobre os primórdios da América Ibérica. Acrescente-se que estudos institucionais continuam a ser feitos, bem como aqueles que enfocam os que controlam o centro da religião, biografias, inclusive biografias coletivas, estratégias catequéticas etc. * Professor do Departamento de História da UFBa.

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  • Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 6, n 12, 2001, pp. 255-260.

    11. Tempo

    Religiosidade, rebelio e identidade afro-baiana ENTREVISTA de Martha Abreu e Ronaldo Vainfas com JOO JOS REIS* 1 - Por que s recentemente a historiografia tem se dedicado s religiosidades, entendidas como vivncias concretas da religio em perspectiva diacrnica, ultrapassando os enfoques institucionais ou o estudo de processos normativos, a exemplo da Igreja, cdigos eclesisticos ou dos projetos missionrios? Foram as inovaes na historiografia em geral chegando ao campo religioso. Tambm em torno de outros temas, como histria poltica por exemplo, predominava a perspectiva institucional, diplomtica, legal e a atuao da cpula poltica, os missionrios desse ramo da histria. Quando a preocupao se volta para a histria de baixo para cima, os fiis se tornam o assunto de reflexo e ento, necessariamente, a questo da religiosidade vivida vem tona. Podemos dizer isso de outro modo. Toda religio tem centro e periferia. No centro esto seus lderes burocrticos, para usar o conceito de Weber, e a doutrina, a ortodoxia; na periferia esto os fiis, um grande nmero dos quais se localizam tambm nas fronteiras da heterodoxia, contrabandeando elementos de outros registros religiosos, enfim os que pecam a roldo. Obviamente entre centro e periferia muita coisa acontece, mas nesta ltima que se verifica o que existe de mais interessante, onde ocorrem com maior intensidade as mudanas, as trocas culturais, o espao mais dinmico das religies, o lugar inclusive do cisma, do surgimento do lder carismtico. Pois bem, essa periferia passou a ser melhor estudada. Acrescente-se , pelo menos no caso do Brasil, a descoberta de fontes novas, como os inquritos inquisitoriais, que permitem uma penetrao mais profunda na alma do homem e da mulher comuns, perseguidos por desvios estritamente de f ou de comportamento, estes tambm julgados pela tica da religio oficial. Mas veja bem, tem-se estudado a mudana da viso dos representantes do centro religioso a partir do seu contato com o universo das suas fronteiras, e mesmo alm de suas periferias. Falo dos estudos de contato cultural, da viso do outro, do trabalho catequtico, envolvendo os missionrios, enfim estudos importantes em que ideologia e mentalidades estabelecem limites muito tnues entre si, como os que hoje abundam sobre os primrdios da Amrica Ibrica. Acrescente-se que estudos institucionais continuam a ser feitos, bem como aqueles que enfocam os que controlam o centro da religio, biografias, inclusive biografias coletivas, estratgias catequticas etc.

    * Professor do Departamento de Histria da UFBa.

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    2 - Embora desde o incio de sua trajetria intelectual, o problema da religiosidade estivesse presente, como no caso do estudo da rebelio dos mals, o seu trabalho se aproximava mais da tradio dos estudos de historia social sobre escravido, revoltas, resistncias e negociaes, onde era forte a influncia da historiografia marxista anglo-sax. Mas em A morte uma Festa percebemos um deslocamento para uma Histria cultural preocupada com a longa durao e com as chamadas mentalidades. Concorda? Para escrever A morte uma festa eu realmente li muita coisa da escola francesa das mentalidades, mas h tantas maneiras de se fazer este tipo de histria... A de Vovelle uma, a de Aris outra. No ramo da morte, h tambm a histria institucional, poltica, legal, administrativa, como no livro menos conhecido de Jacqueline Thibaut -Payen, cujo curioso sub-ttulo precisamente Recherches dhistoire administrative sur la spulture e les cimetires (Estudo de histria administrativa sobre a sepultura e os cemitrios). Que assunto! Ou seja, uma histria absolutamente careta sobre tema tipicamente novo. Um trabalho, alis, excelente. Meu prprio livro tem histria das mentalidades, tem histria administrativa do macabro baiano, mas no uma coisa nem outra. Embora no goste de rtulos, acho que seria algo como histria social da cultura. Minha morte bem contextualizada, eu a trato com classe classe social quero dizer --, etnicidade, gnero, idade, eu discuto a economia material dos ritos fnebres, o mercado mesmo dos utenslios e servios morturios. Uso antropologia cultural, anlise de discurso, sries estatsticas que cruzam atitude fnebre com condio social, e por a vai. E tenho um movimento social para explicar, a Cemiterada. Ento no um livro de mentalides stricto senso, assim como o de vocs no , o seu Ronaldo, sobre a Santidade, o seu Martha, sobre a festa do Divino. Mas este meu modo de ler o trabalho de vocs, e vocs tm toda a liberdade de lerem o meu de outro jeito. J que se fala tanto em histria da leitura recentemente, no somos ns historiadores que vamos dizer que h um s jeito de lerem a gente. 3 Atualmente se tem discutido a validade da utilizao do termo sincretismo para caraterizar as prticas religiosas afro-brasileiras. H quem prefira empregar o conceito de catolicismo africano. No seu entender, que contribuies os historiadores poderiam trazer ao debate sobre o sincretismo religioso? Eu j usei o termo afro-catolicismo em meus trabalhos. No vejo problema. Representava o modo negro de ser catlico. Isso no significa dizer que se tratasse de sincretismo no sentido de representar uma terceira via. Significa dizer que uma religiosidade que se localiza na periferia do Catolicismo, onde se do as trocas culturais mais intensas, no caso trocas envolvendo o que vinha da frica. Mas Catolicismo. Essas trocas no levam necessariamente formao de uma outra coisa, porque pelo ngulo da identidade os fiis esto se definindo como catlicos. Ocorre que podem no ser apenas catlicos. O resultado ento uma vivncia religiosidade em que se verifica a circulao do indivduo atravs de dois, trs sistemas religiosos, em

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    cada um dos quais ele assume uma identidade. Mas a integridade ritual, o protocolo de comunicao com o outro mundo mantm a integridade bsica especfica de cada um. No se manda rezar missa para Oxal ou Ogun, no se oferece comida para Senhor do Bonfim ou Santo Antnio, mesmo quando imagens destes ltimos representam os dois primeiros. Porque o que importa o nome, no a imagem. Sobretudo em tradies em que a palavra dita tem poder sagrado. Ora, ao pesquisar a escravido africana no Brasil a gente percebe que os escravos, lanados num mundo incerto e hostil, usavam de todo arsenal espiritual sua disposio para resolver seus problemas, e se tornavam catlicos sem nunca deixarem de crer em seus deuses e ancestrais. Na Bahia, os escravos podiam circular entre Candombl, Isl e Catolicismo. H indcios nesse sentido. Vejo a pluralidade religiosa mais do que sincretismo religioso. H no entanto certas formaes religiosas que institucionalizaram ritualmente as aproximaes entre as tradies catlicas, africanas e o espiritismo, como em certas expresses da Umbanda. Neste caso, talvez possamos falar de sincretismo, ou pelo menos de hibridismo, no centro nervoso da religio. Por outro lado, se escolhermos pensar a religio na longa ou, melhor, na longussima durao, no sobraria religio que no fosse de alguma forma hbrida, no sentido de que no existe prtica cultural pura. 4 Os estudos antropolgicos do passado, desde Nina Rodrigues, ajudaram a criar determinadas vises sobre o carter africano das prticas religiosas baianas, se comparadas com as prticas do sudeste. Alguns sugeriram o contraste entre cultura nag, num caso, e cultura banto, no outro, para explicar estas diferenas. Como voc avalia este debate, que continua estabelecendo diferenas entre nags e bantos, mas resgata para estes ltimos um importante papel na manuteno das africanidades. Os escravos oriundos da frica Centro-Ocidental, os chamados bantos, foram trazidos em grande nmero para a Bahia at a segunda metade do sculo XVIII, e continuaram a chegar mesmo quando aqueles oriundos do antigo reino do Daom, do norte e do sudoeste da atual Nigria, vieram a constituir a grande maioria entre os importados para a regio. A matriz banto teve assim um papel importante na formao da religiosidade negro-baiana. O prprio termo Calundu, que designava essa religiosidade na Colnia -- e no s na Bahia --e o termo Candombl, que passou a design-la no sculo XIX, so de origem banto. Eu encontrei, em 1808, a palavra Candombl sendo referida a um pai-de-santo angola. Essa data marca o registro documental mais antigo conhecido deste termo. No entanto Candombl virou praticamente sinnimo de religio de matriz jeje-nag. Os bantos tambm foram provavelmente os principais inventores do afro-catolicismo baiano, atravs de suas irmandades do Rosrio. O que aconteceu ao longo do sculo XIX foi uma extrema concentrao do trfico baiano nas regies iorubs, a terra dos nags baianos. Estes vieram a representar, em meados do sculo, cerca de oitenta por cento dos escravos de Salvador. Uma concentrao tnica que talvez s tenha paralelo em Cuba, e um paralelo tambm envolvendo os iorubs, que l eram conhecidos como lucums. Na Bahia os nags realmente instalariam uma espcie de hegemonia cultural ao longo da segunda metade do Oitocentos, aliando -se, competindo e depois superando os jejes. Nina Rodrigues escreveu numa poca, a passagem do sculo XIX para o XX, em que este resultado j estava praticamente dado.

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    Da sua nfase e seu fascnio em relao aos nags. Acrescente-se, no entanto, que seu principal informante e assistente de pesquisa era o famoso babala Matiniano Eliseu do Bonfim, intelectual orgnico do Candombl nag, que inclusive vivera alguns anos entre os iorubs na frica. Porm, os chamados candombls de angola nunca desapareceram, e na onda atual de resgate banto, os angoleros falam cada vez mais alto, at na Bahia. inegvel que incorporaram elementos da tradio nag, mas mantendo a identidade angola. J no Sudeste do Brasil, o intenso trfico oitocentista concentrou-se na frica banto. A Umbanda um dos resultados dessa formao cultural. Ocorre, no entanto, que o Rio de Janeiro, So Paulo e outras regies, inclusive o extremo sul do pas, foram tambm abastecidos de escravos nags, principalmente durante a segunda metade do sculo XIX, atravs do trfico interno com origem na Bahia, bem como da migrao de libertos nags tambm de l. Da a Pequena frica, da a Tia Ciata e outras tias no Rio de Janeiro. Ento encontrarmos a religio de origem iorub fortemente instalada principalmente no Rio de Janeiro, que sem dvida viria a ser o grande caldeiro multicultural africano do pas. Tinha inclusive muito mal, negros muulmanos. Tudo isso foi magnificamente relatado por Joo do Rio. A Bahia, porm, se manteve como referncia ritual importante para essas comunidades imigrantes e seus descendentes, porque l estavam os terreiros formadores, os pais e mes-de-santo renomados, o ax mais forte. Para efeito das religies afro, a Bahia era uma espcie de frica no Brasil. O estudo recente de Gabriela Sampaio mostra que o famoso Juca Rosa estagiou pelo menos uma vez na Bahia, na dcada de 1870, quando j era um pai -de-santo de prestgio no Rio. 5 possvel afirmar que existe uma identidade afro-baiana derivada da cultura nag do XIX, que no encontra similar em outra regio do Brasil? Sem dvida a hegemonia nag um dado inescapvel da identidade baiana, pelas razes que j indiquei. Mas quando falo de identidade baiana quero dizer principalmente Salvador. A questo que no negcio das almas, como o caso das religies, a propaganda tambm a alma do negcio. E sendo a cidade de Salvador o centro administrativo e cultural, onde se concentram os meios de comunicao e se geram as notcias, ela d o tom do que a Bahia tem e . Mas quando passamos, por exemplo, ao Recncavo dos antigos engenhos -- do qual alis Salvador seria geograficamente parte--, a coisa muda de figura. O Recncavo, sobretudo Cachoeira e cidades vizinhas, tido como terra de jeje. Hoje se observa uma reao dos adeptos dos candombls jeje e angola ao predomnio nag, inclusive imagem nag-cntrica da Bahia, mas um movimento que se d com muita diplomacia e cordialidade.