Resenha BERMAN, Harold J. Direito e Revolução (Para Impressão)

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RESENHAS/RESUMOS

Livro: Direito e Revoluo: a formao da tradio jurdica ocidentalBERMAN, Harold J

Resenha do livro:'Direito e Revoluo: a formao da tradio jurdica ocidental"

por site Histria do Direito

Resumo:

Afirmar que o sistema de Direito Cannico foi criado no sculo e meio entre 1050 e 1200 no significa negar que uma ordem jurdica j existisse na Igreja desde os seus primrdios. Havia normas eclesisticas, uma ordem jurdica no mbito da Igreja; porm no havia um sistema jurdico de Direito Eclesistico, ou seja, nenhum conjunto de princpios e procedimentos jurdicos eclesisticos independente, integrado e em desenvolvimento, claramente desligado da liturgia e da teologia.A sistematizao das normas jurdicas da Igreja estava intimamente relacionada Revoluo Papal em todos os seus aspectos, estreitamente relacionado proclamao, pelo papado, do seu direito de legislao. Uma periodizao revolucionria foi introduzida na histria do direito Eclesistico e tornou-se possvel fazer uma sntese das normas tomando-a como base. Este movimento culminou em 1140 como grande Tratado de Traciano. O sistema de Direito Cannico, concebido por Traciano, baseava-se na premissa de que um conjunto de normas e princpios de direito no um corpo morto, mas sim um corpus vivente, enraizado no passado, porm crescendo em direo ao futuro. Essas compilaes foram glosadas, comentadas e resumidas por cientistas do Direito; e o novo sistema do Direito Cannico em desenvolvimento influenciou a formao dos conceitos ocidentais sobre a natureza de um sistema jurdico. As tenses entre o antigo e o novo, entre o todo e as partes ou entre a teoria e a prtica no poderiam ter sido harmonizadas somente por livros e sermes.Os canonistas utilizavam o Direito Romano da forma que era compreendido na poca abundantemente, assim como usavam o Direito bblico e tambm o Direito germnico. Os canonistas tambm compartilhavam com os romanistas de sua poca as mesmas teorias em relao natureza e s funes do Direito e os mesmos mtodos de anlise e sntese de opostos, teorias e mtodos que eram tanto emprestados por eles aos romanistas como pelos romanistas a eles. Tambm muitas instituies e conceitos jurdicos especficos foram transportados da nova cincia do Direito Cannico para a cincia jurdica romana contempornea. Mas o Direito Cannico era o direito positivo da Igreja, enquanto o Direito Romano no era Direito positivo de nenhum ente poltico especfico do ocidente. O Direito Romano era tratado como acabado, imutvel, passvel de reinterpretao, mas no de mudana. O Direito Cannico, ao contrrio, no estava acabado, estava sendo continuamente reconstrudo. A existncia de tal dimenso temporal um atributo essencial dos sistemas jurdicos modernos.Os elementos harmonizadores ou estruturais do Direito Cannico, que o auxiliaram a tornar-se um sistema independente, integrado e em desenvolvimento, derivam em parte da constituio da Igreja, como compreendida no final do sculo XI e no sculo XII. Constituio no sentido moderno, para fazer referncia localizao e aos limites da soberania, ao processo de seleo dos governantes, situao dos poderes legislativo, judicirio e executivo, esfera de alcance da autoridade governamental e aos direitos e deveres bsicos dos governados. Tais limites jurdicos estavam implcitos no modo de seleo do papa, assim como dos bispos, abades e outros oficiais eclesisticos a ele subordinados. No apenas o princpio eleitoral e a necessidade de acomodar os cardeais, os bispos e o clero em geral, mas tambm a prpria complexidade do sistema de governo eclesisticos serviram como limitao substancial ao absolutismo papal. O papado desenvolveu uma burocracia altamente eficiente de especialistas em vrias reas. O governo papal tambm operava, em nvel local e regional, por meio de enviados papais, assim como por meio de outros indicados e subordinados. Embora todos os poderes governamentais no interior da Igreja se reunissem em ltima instncia nas mos do papado, a autocracia papal era limitada pela diviso de funes, pela burocracia, assim como pelo carter hierrquico do governo eclesistico como um todo. Uma estrutura jurdica formal, burocrtica, foi criada, e ela era completamente inovadora para a Europa germnica. Nela, o governo estava separado da lealdade pessoal de um homem para com seu senhor. Complexas relaes institucionais foram desenvolvidas, em contraste evidente no apenas com as instituies tribais, mas tambm com as feudais e mesmo com as antigas instituies imperiais, francas ou bizantinas. A Igreja era um Estado apoiado no Direito, algo como o que os ingleses mais tarde denominaram de rule of law.O princpio de limitaes jurisdicionais sobre o poder e a autoridade era um princpio constitutivo fundamental, subjacente ao novo sistema de Direito Cannico. Contudo, uma anlise das maneiras pelas quais o princpio constitucional era aplicado requer que o Direito Constitucional seja considerado no como tal, mas sim como Direito das Corporaes. Os canonistas do sculo XII
Utilizaram antigos conceitos romanos, conceitos germnicos e cristos das entidades corporativas para desenvolver um novo sistema de Direito das Corporaes aplicvel Igreja. At certo ponto, eles harmonizaram os trs diferentes conjuntos de conceitos. No como um exerccio abstrato de raciocnio jurdico, mas a fim de alcanar solues prticas para conflitos jurdicos reais, exteriores e interiores Igreja. Tais questes jurdicas prticas surgiram uma vez que a Igreja no Ocidente declarou ser uma entidade jurdica corporativa, independente de imperadores, reis e senhores feudais. Ele diferia substancialmente do Direito das Corporaes dos romanos, encontrado nos textos de Justiniano.A jurisdio eclesistica do perodo anterior ao sculo XI no sentido amplo das competncias legislativa, administrativa e judicial carecia de limites precisos. Havia uma superposio considervel entre a competncia das autoridades eclesisticas e das autoridades seculares. Foi a Revoluo Papal, com a liberao do clero dos leigos, e sua nfase na separao entre o espiritual e o secular que tornou tanto necessrio como possvel estabelecer limites claros da jurisdio eclesistica, sistematizando-a.A competio e a cooperao de jurisdies rivais no apenas tornaram possvel e necessria a sistematizao do Direito, como tambm levou formulao e resoluo jurdica de alguns dos mais agudos problemas morais e polticos da poca. A tendncia de converter questes morais e polticas em questes jurdicas. Isso contribuiu para o legalismo excessivo do Ocidente em comparao com muitas outras civilizaes; tambm contribuiu para seu relativo sucesso no alcance da liberdade da tirania poltica e moral.

FONTE: http://historia-direito-ufpr.blogspot.com.br/2008/05/berman-harold-j-direito-e-revoluo.html

Resenha do livro:'Direito e Revoluo: a formao da tradio jurdica ocidental"

por Thomas Vesting (traduzido do alemo por Bruno Vieira)

(1) Foi graas a um acaso histrico no final do sculo XI, conhecido como a revoluo papal, que surgiu na histria uma tradio jurdica Ocidental particular. Essa tradio pode ser vista como a origem de uma forma cientfica de direito, ligada a instituies e valores CristoJudaicos, que determinaram a evoluo da sociedade e civilizao Ocidental por muito tempo. Foi no sculo XX que essa particular integrao normativa entrou em colapso e foi no sculo XX que todos os paradigmas correspondentes a esse sistema perderam seu significado. Os smbolos da grande sociedade (jurdico) Ocidental regrediram a nada mais que nacionalismos abstratos e superficiais; vises de uma comunidade justa foram transformadas por uma engenharia social em ambos os lados da cortina de ferro, em um direito focado no Estado Nacional. Eficincia, praticidade, e a reduo do direito a um aparato de truques tcnicos, substituram convices legais fundamentais. Essa crise profunda, ou at mesmo o colapso da tradio legal Ocidental, no pode ser provada cientificamente, mas qualquer observador atento, que tem tato para conexes histricas, pode perceber essa transformao intuitivamente. Um mundo acaba quando sua metfora morre. Essas so as teorias centrais no livro Law and Revolution: The formation of Western Legal Tradition de Harold J. Berman (publicado em portugus pela editora Unisinos como Direito e Revoluo: A formao da tradio jurdica Ocidental), que o tornou famoso. (2) Berman, que nasceu em Hartfort, Conneticut e morreu aos 89 anos em Nova Iorque ano passado, afirmou propriamente que comeou j em 1938 a trabalhar no assunto que predominou grande parte da sua vida. O evento desencadeador foi provavelmente sua estada na London School of Economics como doutorando. Foi seu professor na Dartmouth College, Eugen RosenstockHussey, que deu iniciou a essa jornada. Durante sua estada em Londres, Berman teve a oportunidade de encontrar historiadores do direito como Plucknett e outros historiadores como Richard Tawney. Foi no contexto desta constelao que Berman desenvolveu sua viso da tradio jurdica Ocidental: A tradio jurdica Ocidental foi um resultado de um desenvolvimento ocasional e politicamente no intencionado. A redescoberta dos digestos por volta de 1200 e sua reviso atravs do mtodo escolstico formaram nas universidades em desenvolvimento no norte da Itlia, particularmente em Bologna, a base para uma forma nova, cientfica e sistematizada de direito, que resultou no primeiro sistema moderno de direito Ocidental: o direito cannico. A redescoberta dos digestos representa, portanto, a origem do direito Ocidental, que por sua vez s foi possvel no contexto da Controvrsia da Investidura (Reforma Gregoriana) e o ponto marcante na historia que se seguiu, a grande ruptura que segundo Berman e RosenstockHussey no foi s uma reforma, mas uma revoluo, eis que mudou profundamente as relaes entre poder clerical e secular. Foi particularmente devido separao do clero de todas as relaes seculares (mundanas) no curso da revoluo papal, no qual ele, o clero, criou um corpo prprio (eclesistico) de direito, e um estado eclesistico autnomo e independente que os poderes seculares. Separaramse assim mais e mais o novo estado eclesistico e tambm os poderes seculares de seus contextos locais. Pela primeira vez uma forma cientfica de direito foi desenvolvida sustentada por uma nova classe de profissionais jurdicos especializados (juzes, consultores, advogados, etc.) (3) O novo direito era sistemtico e, portanto, genuinamente moderno. Enquanto o Direito Romano sempre constituiu numa combinao de componentes do saber jurdico, o Direito Cannico introduziu um modo de pensar jurdico construtivo e sistemtico. O Direito Romano antigo, conhecia conceitos como propriedade, posse, ofensa, fraude e roubo, etc. e alcanou, em torno deles, at uma complicada rede de regras. Os conceitos, todavia, no eram entendidos como idias que penetravam as regras e que definiam sua aplicao. Ao invs disso, os termos eram atrelados a situaes especificas e contextos prticos de soluo de conflitos. Poderiase dizer que existiam conceitos jurdicos no Direito Romano, mas no um conceito sobre o conceito. De acordo com Berman isso apenas mudou com os grandes acadmicos Bologneses, Imerius e Ivo de Chartres e a implementao de seu novo estilo escolstico no ius canonicum. Deste ponto em diante, o novo direito sistemtico se espalhou por toda vida social: direito feudal, direito senhoril, direito mercantil, direito urbano e direito real foram um a um moldados e submetidos ao novo mtodo. Com isso criouse um componente da peculiaridade da civilizao Ocidental: o papel destacado de um tipo de direito sistemtico que nasceu e administrado por seus prprios profissionais: os juristas. Isso influenciou toda a rede de comunicao da sociedade feudal e a racionalizou num modo historicamente global e nico.

FONTE: Harold J. Berman (19182007) Thomas Vesting - translated by Bruno Vieira

Resenha do livro:'Direito e Revoluo: a formao da tradio jurdica ocidental"

por Bernardo Ferreira

No representa nenhuma novidade afirmar que o processo de institucionalizao das cincias sociais no Brasil tem sido acompanhado de uma crescente especializao disciplinar. Sob diversos aspectos, essa especializao se impe pelas prprias condies de um trabalho intelectual srio. No difcil enumerar, um pouco arbitrariamente, alguns dos fatores que levam a essa direo: o volume crescente da produo bibliogrfica nos diferentes campos do saber e nas diferentes temticas, a multiplicao e progressiva especificao dos objetos de pesquisa, a exigncia de uma qualificao tcnica adequada, a disseminao de redes de investigao em torno de problemas particulares e por que no? os limites humanos dos prprios estudiosos conduzem especializao e fazem dela um fator fundamental do desenvolvimento da pesquisa acadmica. Outra coisa, no entanto, o isolamento e a ausncia de comunicao entre as diferentes reas do conhecimento que tm acompanhado o pro- cesso de institucionalizao e a tendncia especializao. Para no falar da compreenso demasiado estreita e, freqentemente, corporativa das fronteiras e diferenas disciplinares. Uma compreenso que corre o risco de reificar a atual partilha dos saberes, ignorando o que h de historicamente condicionado nas diferenciaes entre os campos do conhecimento com que estamos acostumados.As dificuldades de dilogo que decorrem desse tipo de perspectiva podem se tornar ainda maiores, quando est em jogo o intercmbio entre as cincias sociais e as demais reas que integram o campo que, grosso modo, denominamos humanidades. Essa , em certa medida, a situao dos estu dos no campo jurdico. O ensino e a pesquisa no mbito do Direito e das cincias sociais constituem mundos cujo contato muito mais descontnuo e intermitente do que se poderia esperar. A ttulo de exemplo: no incomum que pesquisas relevantes, obras significativas e tradues de textos importantes acabem por circular privilegiadamente no mbito do mercado das editoras e livrarias jurdicas, sem que, muitas vezes, os profissionais de reas afins tenham sequer notcia de sua existncia. H, naturalmente, razes de parte a parte que contribuem para esse estado de coisas. Para alm do enrijecimento das fronteiras disciplinares decorrente do processo de institucionalizao e especializao, possvel supor que, no caso especfico do Direi- to, a posio tradicional da educao jurdica no pas a qual, durante o sculo XIX e parte do XX, foi praticamente sinnima de ensino universitrio tenha contribudo para o isolamento da disciplina dentro de um circuito relativamente fechado. Acrescentem-se a isso os aspectos tcnicos que distinguem a formao de um jurista e a feio marcadamente instrumental que tem caracterizado os cursos universitrios de Direito.Direito e revoluo: a formao da tradio jurdica ocidental [Law and revolution: the formation of Western legal tradition], recm-traduzido para o portugus pela Editora Unisinos, vai na contramo dessas tendncias. Publicado em 1983 quando o seu autor, Harold Berman (1918-2007), j era um reconheci- do especialista em direito sovitico da Harvard Law School , o texto procura reconstruir a histria do direito ocidental no perodo da Reforma Gregoriana, movimento de reestruturao da Igreja medieval ocorrido entre a segunda metade do sculo XI e o sculo XII e cujo nome est associado a seu principal protagonista, o papa Gregrio VII. Para compreender as transformaes ocorridas nesse perodo, observa o autor, seria preciso se afastar de uma viso por demais estreita do direito, que o restringiria a um conjunto de leis, procedimentos, normas administrativas e tcnicas vlidas em um determinado pas (p. 9). Essa perspectiva, ao estabelecer uma identidade entre o direito e uma ordem normativa positivada, teria capacidade limitada de dar conta dos processos pelos quais uma ordem jurdica adquire efetividade social e realidade histrica. Da a necessidade de sublinhar a primazia da atividade jurdica sobre as suas regras (p. 15), des- locando a nfase para o processo dinmico de atribuir direitos e deveres e, assim, resolver conflitos e criar canais de cooperao (p. 15). Dentro desse horizonte mais amplo, acredita o autor, seria possvel conferir ao direito profundidade histrica e densidade social e, ao mesmo tempo, abrir a via para um tipo de pesquisa que no ficasse presa aos limites da compartimentao disciplinar.Dessa forma, Berman se prope reconstruir o processo histrico de formao dos traos distintivos do direito ocidental ou, para ser mais preciso, do que ele denomina de Tradio Jurdica Ocidental. Segundo ele, no perodo anterior ao sculo XI no existia, tanto no mbito eclesistico como no secular, uma clara separao entre o direito e outros processos de controle social e de outros tipos de preocupao intelectual (p. 111). Nesse contexto, a ordem jurdica no se diferenciava dos costumes sociais e das instituies polticas e religiosas. Ainda que existissem concepes, normas e procedimentos jurdicos, o direito no existia como um sistema estruturado, ou seja, como um corpo articulado de princpios, instituies e prticas, dota- dos de independncia em relao a outras esferas da vida social. As transformaes ocorridas com a Reforma Gregoriana teriam um carter inaugural, porque, com elas, o direito tornou-se autnomo (p. 112). Essa autonomia seria um resultado do es- foro iniciado no sculo X com o movimento monstico de Cluny e radicalizado com a reforma dos sculos XI e XII de estabelecer uma clara separao entre as esferas temporal e espiritual, o mundo dos clrigos e o dos leigos, e, simultaneamente, afirmar a independncia das autoridades eclesisticas em face dos poderes seculares. A busca da libertas ecclesia (liberdade da Igreja) por parte dos reformadores foi, segundo Berman, inseparvel do recurso ao direito. Como ele observa, a Igreja lanou-se reforma tanto de si mesma quanto do mundo por intermdio do direito (p. 102, traduo modificada). Dessa forma, a Igreja veio a ser concebida, para alm da sua unidade espiritual e doutrinria, como uma comunidade de natureza jurdica, como um corpo coletivo estruturado em torno de uma autoridade centralizada e dotada de competncia legislativa e jurisdicional. A expresso poltica mais evidente desse fato foi a tentativa de instituir uma monarquia papal no interior da Igreja, resultante da supremacia jurisdicional do governo do bispo de Roma sobre o conjunto da comunidade eclesistica.A contraface secular desse esforo de separao entre a esfera temporal e a espiritual e de concomitante afirmao da independncia do clero em relao s autoridades no eclesisticas foi o progressivo esvaziamento do significado sagrado da realeza. No perodo anterior Reforma Gregoriana, a realeza era compreendida em termos da sua funo no interior da Igreja e estava revestida de um carter sagrado. O movimento de reforma ao rei- vindicar para o clero a exclusividade das funes espirituais procurou despojar reis e imperadores de seu papel eclesistico e reduzi-los a uma condio meramente profana. Com isso, as transformaes iniciadas na segunda metade do sculo XI fizeram surgir, pela primeira vez, entidades polticas desprovidas de funes eclesisticas e ordens jurdicas no eclesisticas (p. 345, traduo modificada).No interior da Igreja, um dos principais desdobramentos dessas mudanas foi o surgimento do Direito Cannico como um sistema articulado de regras jurdicas, diferenciadas da liturgia e da teologia. Segundo Berman, at o sculo XI, havia normas eclesisticas, uma ordem jurdica no mbito da Igreja, mas nenhum sistema de direito eclesistico (p. 259, traduo modificada). O movimento de re- forma teria desencadeado um esforo de sistematizao e racionalizao das normas que deveriam reger a vida na Igreja como um corpo jurdico. Com o Direito Cannico, forma-se, afirma o autor, o primeiro sistema jurdico ocidental moderno (1). Como conseqncia da separao entre a esfera secular e a eclesistica, desenvolveram-se, por meio de um movimento de emulao e rivalidade em face do Direito Cannico, uma srie de sistemas jurdicos de natureza no eclesistica. Enquanto o direito da Igreja apresentava um carter unitrio, o direito secular tinha uma feio plural, distinguindo-se em diversos sistemas: feudal, senho- rial, mercantil, urbano e rgio.As mudanas ocorridas a partir o sculo XI ao buscarem estabelecer uma ntida distino entre o sagrado e o profano, entre o espiritual e o temporal, entre ordem eclesistica e ordem laica teriam dividido o Ocidente medieval em duas partes, a Igreja e a esfera secular (cf. p. 655). Dessa forma, observa Berman, teriam introduzido um dualismo entre as jurisdies secular e eclesistica e, como resultado, a coexistncia e a competio, na mesma comunidade, de vrias jurisdies e sistemas jurdicos (p. 21). Ambos os traos constituiriam caractersticas distintivas, se no nicas, da cultura ocidental (cf. p. 59). Nesse sentido, o recuo aos anos da Reforma Gregoriana se imporia a todos aqueles interessados em pensar a trajetria peculiar dessa cultura. O termo Ocidente, diz o autor, no se confundiria com uma unidade geogrfica, mas buscaria dar conta de uma espcie de identidade cultural e civilizatria, marcada por uma forte dimenso diacrnica (p. 12). Da a necessidade de ir alm de uma concepo do direito que o reduziria ordem legal instituda numa dada nao, esvaziando a profundidade histrica da tradio jurdica do Ocidente. A compreenso da especificidade do direito ocidental implicaria, portanto, uma abordagem que ultrapassasse as fronteiras nacionais e reconhecesse que, no Ocidente, os tempos modernos [...] deitam suas razes no perodo de 1050-1150, e no antes (p. 14).Para dar conta da transformao fundamental que teria ocorrido nesse perodo, o livro est dividido em duas partes. A primeira dedicada s alteraes no interior da Igreja decorrentes da Reforma Gregoriana e emergncia do Direito Cannico. A segunda voltada para a formao dos diferentes sistemas jurdicos seculares. Harold Berman realiza, em cada uma das partes, uma anlise pormenoriza- da dos fatores envolvidos em processo de trans- formao histrica, em que o direito seria simultaneamente causa e efeito. Assim, o leitor trava contato com o surgimento das universidades, a constituio de um pensamento poltico de feio secular, as mudanas nas concepes sobre o tempo histrico e a vida no alm, a expanso das relaes feudais, o desenvolvimento dos vnculos senhoriais, o cresci- mento do comrcio, a emergncia da vida urbana, a progressiva afirmao da ordem estatal. Ao recuar no tempo, remetendo o incio da modernidade ocidental aos sculos XI e XII do mundo medieval, a narrativa de Harold Berman organiza-se, de um ponto de vista conceitual, a par- tir de dois eixos distintos. Esses eixos, embora no se encontrem claramente separados no texto, apresentam, a meu ver, rendimentos desiguais. Por um lado, existe uma narrativa sobre a passagem de uma ordem jurdica tradicional e de natureza no sistemtica em que o direito est imerso em um conjunto de prticas e representaes religiosas e costumeiras para outra ordem jurdica, mais prxima do que admitiramos ser uma compreenso moderna em que o direito se organiza como um sistema racionalizado e se apresenta como uma es- fera autnoma da vida social. A noo de sistema jurdico e a sua diferenciao em relao idia mais geral de ordem jurdica so fundamentais na organizao dessa narrativa. A partir desses conceitos, busca-se analisar como a autonomizao do direito sob a forma de um sistema trouxe consigo uma srie de mudanas: o surgimento de profissionais treinados em instituies voltadas para a transmisso de um conhecimento jurdico especializado, a constituio do direito como um todo coerente como um corpus juris e que se desenvolve temporalmente segundo uma lgica interna, o surgimento de uma pluralidade de jurisdies e sistemas jurdicos. Ao lado dessa primeira narrativa, h outra, de carter mais geral, que pressupe a existncia de uma Tradio Jurdica Ocidental, surgida com as transformaes dos sculos XI e XII e integrada ao percurso histrico do Ocidente. Nessa segunda narrativa, o conceito de revoluo desempenha um papel decisivo. Por meio dele, seria possvel compreender a histria do mundo ocidental moderno e da prpria tradio jurdica a ele associada como o resultado de uma seqncia de episdios em que ocorreram mudanas abruptas, violentas, de alcance total e com conseqncias duradouras. Em cada uma dessas revolues, as bases do direito ocidental seriam transformadas e, ao mesmo tempo, essas transformaes se incorporariam a uma espcie de lastro anterior que acabaria por ser conservado. A Reforma Gregoriana teria sido a primeira das revolues ocidentais; por isso, ela denominada pelo autor de Revoluo Papal. Nessa perspectiva, a conseqncia mais importante da Revoluo Papal foi a introduo na histria ocidental da experincia da prpria revoluo (p. 148). A essa primeira revoluo ter-se-iam seguido cinco outros episdios revolucionrios: a Reforma Protestante, a Revoluo Inglesa do sculo XVII, a Revoluo Americana, a Revoluo Francesa e a Revoluo Russa. Aos olhos do autor, estaramos vivendo um momento de crise da Tradio Jurdica Ocidental, uma crise que se traduziria por um cinismo em relao ao direito e que, em ltima anlise, se confundiria com uma perda de confiana da civilizao ocidental em si mesma. Recontar as origens dessa tradio seria uma forma de buscar no passado elementos que permitissem interpelar a crise do presente. Trata-se, nos diz Berman, de um esforo de apresentar a histria do direito como uma metfora de nosso tempo (p. 10).Nem sempre essa narrativa de carter mais geral convincente. Ao buscar na Revoluo Papal um momento inaugural da histria do Ocidente moderno, o autor levado a estabelecer aproximaes foradas e, em certos momentos, anacrnicas. A comear pela idia de que a Reforma Gregoriana constitui a primeira revoluo ocidental. preciso concordar com Harold Berman quando ele sublinha o carter convencional da diferenciao entre Idade Mdia e Idade Moderna, insistindo em que uma estrita separao e descontinuidade entre os dois tempos nos tornaria incapazes de abordar satisfatoriamente uma srie de temas histricos e, em particular, a histria do direito. No entanto, o leitor, muitas vezes, fica com a impresso de que seria preciso introduzir elementos de mediao em algumas de suas anlises sobre a modernidade das trans- formaes ocorridas a partir do final do sculo XI. Mediaes, enfim, que permitissem pensar de uma forma mais matizada no s as continuidades, mas tambm as descontinuidades no tempo. sempre bem-vinda a iniciativa de traduo de uma obra como essa. A editora Unisinos, ao levar a cabo essa tarefa, d mostras de compreenso sobre o papel que as editoras universitrias podem desempenhar, no sentido de garantir o acesso em lngua portuguesa a obras que, de outra forma, dificilmente encontrariam espao no mercado editorial. uma pena, no entanto, que a iniciativa no tenha sido acompanhada do cuidado editorial necessrio. A traduo do livro apresenta inmeros problemas, que vo desde imprecises na verso de termos tcnicos e nomes prprios, passando por erros de portugus, at incorrees que compro- metem drasticamente o entendimento da leitura. Harold Berman chegou a publicar, em 2003, um segundo volume de Law and revolution (Law and revo- lution II. The impact of the protestant reformations on the Western Legal Tradition), no qual ele se volta para as transformaes jurdicas decorrentes do movimento de reforma protestante e da Revoluo Inglesa. Es- pera-se que, em breve, possamos dispor de uma verso desse segundo volume. S que, dessa vez, com um pouco mais de ateno qualidade do resultado editorial.

Nota 1 Esse o subttulo do captulo 5 do livro.