[RESENHA] Complexo de "re"

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Complexo de “re” Bruce Springsteen faz tudo novo. De novo Por Guilherme Mendes Poucos artistas mundo afora têm tanto fôlego quanto Bruce Springsteen. Uma das melhores provas disso é um perfil do YouTube, de nome “BRUCETHEBOSS2012”, não se sabendo ao certo se é algo gerido pela equipe do cantor ou por algum fã. Seja lá quem for o autor, ele é responsável por disponibilizar o áudio integral dos shows da turnê Wrecking Ball Tour, promovendo o álbum homônimo. Ali se tem shows de, no mínimo, duas horas e meia. As últimas postagens têm a ver com a passagem do cantor pelo Brasil no mês de setembro: o show dele no festival Rock in Rio está lá, com suas duas horas, quarenta e seis minutos e onze segundos. Esses shows épicos pelos quais Springsteen tão famoso, essa alegria de estar no palco vem, em grande parte, do sopro na qual o álbum mais recente do cantor trouxe à sua carreira. Após uma sequência de álbuns pouco inspirados, ele voltou aos estúdios no início de 2012 para a concepção de Wrecking Ball. Afinado como sempre à E Street Band – provavelmente a melhor banda de apoio da história da música, Bruce recriou o modo como se apresenta no palco. Nunca foi surpresa pra ninguém a sua capacidade de fazer o show se tornar uma experiência ímpar – nem é esse o motivo da discussão aqui. Mas este é o primeiro álbum do cantor sem Clarence Clemmons, o mítico saxofonista à sua direita nos palcos por mais de 40 anos. Clarence faleceu em 2011 e Bruce buscou em seu sobrinho, o jovem Jake Clemmons, a nova mistura de solos envolventes com uma equipe inteira de metais – nos shows do Brasil, a banda chegou a incríveis 18 membros, incluindo um trompetista e um tubista (sim, uma tuba). Como Clarence era o braço-direito de Springsteen durante os shows, não seria surpresa se suas apresentações perdessem em potencial, ou se o cantor buscasse uma fase introspectiva e morna em seu trabalho. Como David Remnick contou em um perfil na revista The New Yorker, isso é quase impossível se tratando de Springsteen. Com 64 anos, ele não Wrecking Ball Bruce Springsteen Columbia Records Lançamento: 5 de março de 2012 R$27,90 Avaliação: 9/10 (ótimo)

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Bruce Springsteen faz tudo novo. De novo

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Complexo de “re”

Bruce Springsteen faz tudo novo. De novo

Por Guilherme Mendes

Poucos artistas mundo afora têm tanto fôlego quanto Bruce Springsteen. Uma das

melhores provas disso é um perfil do YouTube, de nome “BRUCETHEBOSS2012”, não se

sabendo ao certo se é algo gerido pela equipe do cantor ou por algum fã. Seja lá quem for o

autor, ele é responsável por disponibilizar o áudio integral dos shows da turnê Wrecking Ball

Tour, promovendo o álbum homônimo. Ali se tem shows de, no mínimo, duas horas e meia. As

últimas postagens têm a ver com a passagem do cantor pelo Brasil no mês de setembro: o

show dele no festival Rock in Rio está lá, com suas duas horas, quarenta e seis minutos e onze

segundos.

Esses shows épicos pelos quais Springsteen tão famoso, essa alegria de estar no palco

vem, em grande parte, do sopro na qual o álbum mais recente do cantor trouxe à sua carreira.

Após uma sequência de álbuns pouco inspirados, ele voltou aos estúdios no início de 2012

para a concepção de Wrecking Ball. Afinado como sempre à E Street Band – provavelmente a

melhor banda de apoio da história da música, Bruce recriou o modo como se apresenta no

palco. Nunca foi surpresa pra ninguém a sua capacidade de fazer o show se tornar uma

experiência ímpar – nem é esse o motivo da discussão aqui.

Mas este é o primeiro álbum do cantor sem Clarence Clemmons, o mítico saxofonista à

sua direita nos palcos por mais de 40 anos. Clarence faleceu em 2011 e Bruce buscou em seu

sobrinho, o jovem Jake Clemmons, a nova mistura de solos envolventes com uma equipe

inteira de metais – nos shows do Brasil, a banda chegou a incríveis 18 membros, incluindo um

trompetista e um tubista (sim, uma tuba).

Como Clarence era o braço-direito de Springsteen durante os shows, não seria

surpresa se suas apresentações perdessem em potencial, ou se o cantor buscasse uma fase

introspectiva e morna em seu trabalho. Como David Remnick contou em um perfil na revista

The New Yorker, isso é quase impossível se tratando de Springsteen. Com 64 anos, ele não

Wrecking Ball

Bruce Springsteen

Columbia Records

Lançamento: 5 de março de 2012

R$27,90

Avaliação: 9/10 (ótimo)

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para um momento. Nesse disco se vê, desde os singles lançados como prévia do álbum, um

Boss (o Chefe, apelido entre os fãs) acertando na mão novamente ao aliar melodiais formam a

música americana com letras fortes, simbólicas, mas ao mesmo tempo cáusticas. Há tempos

ele não compunha assim.

Quando tinha lá meus 15 anos, não conseguia entender direito o porquê de tanta

gente, dos quatro cantos do planeta, amavam tanto a obra-prima do cantor, Bron in the U.S.A.

Quando ouvia aquele riff inicial e o refrão tipicamente meloso, o tio Sam passava nos

pensamentos, a águia, os tanques de guerra, tênis Nike e grandes Big Macs. Durante uns anos,

nutria certo ódio por ela. Mas a letra ganhou um novo tom quando investiguei sua origem,

algum tempo atrás: Ela possui o valor de ser um depoimento de um ex-combatente na guerra

do Vietnã, incapaz de entender como foi parar em campo alheio matando “homens amarelos”,

chorando a morte de irmãos, da desilusão de voltar pra casa e ser um excluído do maior país

do planeta.

O disco vendeu como água (passando as 30 milhões de cópias) e Bruce, elevou-se

como um santo entre seus fãs – gente simples do mundo todo – e a canção virou um símbolo

da América dos anos 80, de Reagan, recessões e Guerra Fria em seu fim. Sim, Bruce virou

santo, não deus. Pois, se fosse deus, não teria se jogado no público como fez em São Paulo,

deixando-se levar pelas mãos daqueles incrédulos da pista premium do Espaço das Américas

naquela noite chuvosa de uma quarta-feira de novembro.

Com o novo disco, o cantor e guitarrista americano revive o espírito do cidadão

comum, com críticas ao American Way of Life.A faixa de abertura, We Take Care of Our Own,

ou “Nós tomamos conta de nós mesmos”, é uma pesada ironia contra um governo americano

bipolar a ponto de solucionar a crise econômica de 2008 salvando bancos – e despejando os

contribuintes de suas casas. (Entre os críticos de Springsteen, conforme lembra Remnick em

seu perfil, a mesma critica sobra ao cantor: Bruce fala de uma vida de trabalhador operário

quando ele, um eterno artista desde a adolescência, nunca botou muito a mão na massa).

Por isso, nessa canção, ele usa do artifício inventado pelo seu ídolo inspirador – Bob

Dylan: ele pergunta. A pergunta une músico e fã, lima as lacunas entre dois universos, e

instaura a comunicação e uma identidade entre ambos. Foi assim com Like a Rolling Stone de

Dylan, e é assim com Springsteen:

Onde está o trabalho que libertará minhas mãos e mina alma?

Onde está o espírito que reinará, reinará sobre mim?

Onde está a promessa da Costa Leste à Costa Oeste?

As letras remetem sempre àquele americano comum, não necessariamente aqueles de

Manhattan ou Los Angeles. A balada Jack of All Trades é exatamente seu título – uma gíria

para “Pau para toda obra”. Death to My Hometown tem inspirações da música irlandesa (terra

dos antepassados de Springsteen) e ainda bate na tecla da crise de 2008, numa alegoria de

uma cidade destruída não por bombas ou armas, mas pela falta de capital (Detroit, sede do

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império automotivo ianque, virou um grande exemplo dessa “Morte”). A faixa-título é quase

uma reflexão autobiográfica, com o cantor falando dos “pântanos de (Nova) Jersey” e de como

as coisas vêm e vão.

Se as músicas de Wrecking Ball ficaram como hinos de um tragédia moral, 2012 ainda

guardava uma outra, só que climática: em outubro, o furacão Sandy matou 148 pessoas e

deixou uma cicatriz quase irreparável na costa leste americana. Pouco acostumados a receber

uma tragédia com furacões, os estados de Massachussets, Nova Jersey e mesmo a cidade de

Nova York sofreram com enchentes, corte de energia e desabamento de grande parte da infra-

estrutura, o que abalou o brio da nação como não se via desde 2005, quando o Katrina tornou

Nova Orleans um mar de desabrigados.

Logo que a tempestade arrefeceu e o céu abriu, os ianques olharam para as pilhas de

escombros, carros virados, os incêndios, e procuravam por uma luz ou mesmo uma reles

musiquinha para irem assoviando enquanto iam juntando os cacos.

Aí aparece o Chefe de novo.

Bruce sempre teve a capacidade de reunir o povo americano. Foi assim com Born in

the USA. Foi assim também com The Rising, álbum de 2001 onde as músicas falavam sobre os

atentados de 11 de setembro – isto ajudou a elevar a moral de um povo americano abalado

como nunca. E o mesmo aconteceu em 2012, quando Land of Hope and Dreams, faixa criada

treze anos antes, entrou como o hino extraoficial da reconstrução dos estragos do Sandy. Em

Death to my hometown, Bruce lembra:”get yourself a song to sing, and sing until you’re done”

(“escolha uma canção para cantar, e cante até cansar”). E eles fizeram isso. O espírito

indestrutível do povo americano foi algo que coube a Bruce restaurar. Foi em seu entorno na

qual eles se reuniram e buscaram força e inspiração (exemplo disso foram os concertos

beneficentes na qual ele participou). Americano nenhum deixaria de se identificar com ele.

Eu te sustentarei

E ficarei ao seu lado

Você precisará de uma boa companhia agora

Nessa parte da viagem

Deixe pra trás a tristeza

Deixe que esse dia seja o último

O amanhã saldará a luz do sol

E toda essa escuridão passará

*

As grandes rodas deslizando através dos campos

Onde brilha a luz do sol

Encontre me na terra de esperança e sonhos.

O álbum chegou ao número 1 das paradas americanas. A Rolling Stone americana o

nomeou o álbum do ano (mesma opinião do autor dessa humilde resenha) e ainda produziu

uma edição, com Springsteen na capa, onde o chamava de “Melhor show ao vivo da

atualidade”. Isso pode ser claramente visto nos dois shows do cantor fez no Brasil, os

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primeiros em 25 anos: três horas e dezesseis minutos em São Paulo, e o melhor show entre

todos no festival carioca, na visão da crítica especializada.

Springsteen fechou no Brasil uma turnê capaz de impressionar por lotar estádios no

mundo todo, mesmo com sucessos de 30 ou 40 anos. Os show nunca tem um setlist fixo: o

cantor sobe, toca lá algumas músicas e, em dado momento do show, atende os pedidos dos

fãs, já acostumados a levar placas com seus pedidos para os shows. De sucessos lado B até

canções de Elvis ou Clash ou Ramones, a E Street Band se mostra preparada pra qualquer coisa

– tal qual não foram as caras de surpresa quando, frente às câmeras da Globo e de 100 mil

pessoas, a banda canta “Sociedade Alternativa”, clássico de Raul. Como era a primeira música,

nem houve tempo para engraçadinhos gritarem “toca Raul!”, sobrando apenas queixos caídos

pela Cidade do Rock.

Desde o início da turnê os críticos e especialistas se contorcem pra tentar explicar

como podem existir shows tão longos e díspares entre si, redesenhando o conceito de rockstar

(talvez gente como Queen e Aerosmith não aguentariam coisas assim). 142 shows e 19 meses

depois, a turnê terminou com Bruce gritando “I Love You” aos cariocas, às 2h51 da manhã, e

prometendo voltar. Nessa turnê ele já gravou novas canções – High Hopes foi gravada na

Austrália e conta com Tom Morello, ex- Rage Against The Machine, na guitarra – e em 2014 ele

já tem quatro datas na África do Sul e 13 datas na Oceania, revivendo seu pique mais juvenil

mesmo depois de passar dos 60.

Recriar. Redesenhar. Reunir. Restaurar. Reviver. E Bruce tem na gaveta uma centena

de canções, uma promessa de gravar um novo disco, e de voltar ao Brasil o mais rápido

possível. É sentar e esperar pois, seja lá o que for, ele vai fazer novamente.