Resenha - o que é afinal estudos culturais

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170 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral RESENHAS Estudos culturais, pós-modernidade e teoria crítica Antonio Hohlfeldt Professor Coordenador do PPGCOM – FAMECOS/PUCRS O que é, afinal, Estudos Culturais? – Trad. e organização de Tomaz Tadeu da Silva, artigos de Richard Johnson, Ana Caroli- na Escosteguy e Norma Schulman, Belo Horizonte, Autêntica, 1999, 236 páginas, tamanho bolso. OS CHAMADOS ESTUDOS CULTURAIS, surgidos no final dos anos 50, e mais tarde vincula- dos à universidade inglesa de Birmingham, têm alcançado crescente repercussão inter- nacional, eu diria que por dois motivos principais. Embora buscando parte de sua base teórica no campo marxista, distancia- se significativamente do marxismo ortodo- xo ou, pelo menos, daquilo em que seus seguidores o transformaram. Por isso mes- mo, a revisão de Gramsci, de um lado, e a apropriação de conceitos de Louis Althus- ser, por outro, tornaram-se significativos nesses estudos. Do mesmo modo, critica-se a perspectiva cética de Theodor Adorno, mas se relê Walter Benjamin sob nova óti- ca, revalorizando-o. O outro motivo é que o conjunto de estudos culturais, embora se apropriando de certa tradição estruturalis- ta, em especial pós-estruturalista, como a de Roland Barthes, também ficaram longe daqueles estudos mais formais e descriti- vistas, que se negavam a levar em conta a existência de uma prática humana, tão es- sencial à compreensão de qualquer fenô- meno cultural. Assim, os que buscam com- preender efetiva e eficientemente os pro- cessos culturais – e aqui penso muito espe- cialmente nos pesquisadores latino ameri- canos como Nestor Canclini e Martin-Bar- bero – tiveram, com a proximidade dessas pesquisas, um campo dinâmico, descom- preconceituoso, aberto à interdisciplinarie- dade que tem sido a principal característica dos estudos de Birmingham, dos vanguar- distas Richard Hoggarth e Raymond Willi- ams, até os atuais Stuart Hall ou Richard

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170 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral

RESENHAS

Estudos culturais,pós-modernidadee teoria crítica

Antonio HohlfeldtProfessor Coordenador do PPGCOM – FAMECOS/PUCRS

O que é, afinal, Estudos Culturais? – Trad. eorganização de Tomaz Tadeu da Silva,artigos de Richard Johnson, Ana Caroli-na Escosteguy e Norma Schulman, BeloHorizonte, Autêntica, 1999, 236 páginas,tamanho bolso.

OS CHAMADOS ESTUDOS CULTURAIS, surgidosno final dos anos 50, e mais tarde vincula-dos à universidade inglesa de Birmingham,têm alcançado crescente repercussão inter-nacional, eu diria que por dois motivosprincipais. Embora buscando parte de suabase teórica no campo marxista, distancia-se significativamente do marxismo ortodo-xo ou, pelo menos, daquilo em que seusseguidores o transformaram. Por isso mes-mo, a revisão de Gramsci, de um lado, e aapropriação de conceitos de Louis Althus-ser, por outro, tornaram-se significativosnesses estudos. Do mesmo modo, critica-sea perspectiva cética de Theodor Adorno,mas se relê Walter Benjamin sob nova óti-ca, revalorizando-o. O outro motivo é queo conjunto de estudos culturais, embora seapropriando de certa tradição estruturalis-ta, em especial pós-estruturalista, como ade Roland Barthes, também ficaram longedaqueles estudos mais formais e descriti-vistas, que se negavam a levar em conta aexistência de uma prática humana, tão es-sencial à compreensão de qualquer fenô-meno cultural. Assim, os que buscam com-preender efetiva e eficientemente os pro-cessos culturais – e aqui penso muito espe-cialmente nos pesquisadores latino ameri-canos como Nestor Canclini e Martin-Bar-bero – tiveram, com a proximidade dessaspesquisas, um campo dinâmico, descom-preconceituoso, aberto à interdisciplinarie-dade que tem sido a principal característicados estudos de Birmingham, dos vanguar-distas Richard Hoggarth e Raymond Willi-ams, até os atuais Stuart Hall ou Richard

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Johnson.Explica-se assim a importância do pe-

quenino – em tamanho – mas extremamen-te útil volume recentemente lançado, tra-zendo três estudos em torno dos estudosculturais, respondendo à questão centrali-zadora sobre o seu significado.

O primeiro, mais extenso e não só porisso, principal deles, é o de Richard John-son, terceiro diretor do Centre for Contem-porary Cultural Studies (CCCS). É que seutrabalho não é apenas uma síntese de todaa história do Centro, quanto uma síntesecrítica, escrita por alguém que dele partici-pa diretamente e por ele respndeu até pou-co tempo. Johnson pode estabeceler, assim,algumas premissas básicas a respeito dofuncionamento da instituição, mostrando,por exemplo,que foi a partir da crítica lite-rária e da história social, especialmenteaquela ifluenciada pela perspectiva marxis-ta, que nasceram os estusdos culturais, aofinal da década de 50 e princípio da de 60,culminando com a criação da instituição,em 1964, que passaria a ser dirigida pelopróprio Richard Hoggarth.

Vinculando os estudos iniciais docentro a três vertentes, as relações sociais ede classe, a cultura e seu envolvimentocom o poder, e a cultura enquanto camponão-autônomo mas local de disputas soci-ais, Johnson mostra a influência que tive-ram as revisões do pensamento de Grams-ci, com a contribuição especial de MichelFoucault e Pierre Bourdieu, a que Ana Car-lina Escosteguy, no ensaio seguinte, somaRoland Barthes, Louis Althusser e Michelde Certeau, evidenciando a aproximação,pela primeira vez, na história recente, dopensamento inglês e francês, com o que lu-craram as pesquisas culturais. Por fim,Norma Schulman acrescenta a oposição aopensamento conservador de F.R. Leavis eT.S. Eliot, então vigente na Inglaterra, a par-tir da descoberta de Lacan e Saussure, es-pecialmente, abrindo o campo dos estudosà valorização da leitura dos textos.

O depoimento de Johnson, que é com-plementado pelos estudos das duas outras

autoras, sublinha a preocupação em os pes-quisadores de Birmingham se distanciaremdos estudos puramente acadêmicos, suaaproximação dos estudos feministas e anti-racistas, a valorização da cultura operária,a quebra de parâmetros tradicionais de vi-sualização da cultura de massa como umtodo homogêneo e, ao mesmo tempo,amorfo, etc.

Numa síntese feliz, ele mostra que agrande conquista destes estudos foi a des-coberta da consciência e da subjetividade,visualizadas enquanto formas históricas es-pecíficas, portanto, contextualizadas. Oprojeto de cada pesquisa, assim, é a leituradaquele contexto com suas especificidades,ou melhor, das condições específicas pro-pícias a transformação social (p. 34). Nasúltimas páginas de seu ensaio, Johnsonaponta para a nova tendência verificadanos estudos culturais, que é a valorizaçãoda etnografia, com isso ultrapassando-sequaisquer vestígios de preconceitos hierar-quizantes quanto às diferentes culturasuniversais ou formas de produção cultural.

Ana Carolina Escosteguy, por seulado, aluna-bolsista do Centro, pode racio-nalizar alguns aspectos da contribuição dainstituição, exatamente por encontrar-semais distante dele, emocionalmente. As-sim, ela começa identificando os chamadostextos fundadores desta tendência, a partirde The uses of literacy, de Richard Hoggarth(1957), Culture and Society, de Raymond Wi-lliams (1958) e The making of the englishworking-class, de E. P. Thompson (1963), osdois últimos traduzidos e editados no Bra-sil, e o primeiro publicado apenas em Por-tugal, obrigando seus pesquisadores a bus-car o texto muito mais no original, sobretu-do que ele já se encontra na forma do po-cket-book.

A partir de Stuart Hall, a ênfase sobrea etnografia se explicita, buscando os estu-dos sobre os mass media e a cultura popular.Ela, assim mostra ter havido três fases dife-rentes na existência do Centro, a primeiradelas de 1964 aos anos 70, ainda embrioná-ria, depois uma fase de consolidação, até

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os anos 80, e, por fim, uma fase de interna-cionalização, correspondendo, cada uma, auma diferente direção da instituição, pri-meiro Richard Hoggarth, depois StuartHalle por fim Richard Johnson.

Norma Schulman, por seu lado, apro-funda esta mesma perspectiva de análise,enfatizando que, desde o início, foi a inter-discilinariedade a principal característicado Centro, e enfatiza os principais rompi-mentos provocados pelos estudos cultu-rais, quais sejam, a quebra da tendência en-fática sobre o behaviorismo; o questiona-mento quanto à pretensa transparência dossuportes da comunicação de massa; o ques-tionamento quanto à concepção do públicoreceptor de meios de comunicação de mas-sa de modo passivo e, por fim, o questiona-mento quanto à cultua de massa ser um fe-nômeno indiferenciado, isto é, literalmentemassificado e semelhante em todas as suasconcretizações.

Ela é a única, por outro lado, a enfati-zar a permanente crise financeira que temsido enfrentada pela instituição que, quan-do muito, sobrevive com parcos recursosfinanceiros de um fundo, o apoio da Pen-guin Books e os recursos auferidos pelosdireitos autorais das obras editadas e tra-duzidas internacionalmente.

O volume é enriquecido por uma cro-nologia bastante atualizada, uma bibliogra-fia em português e outra em inglês e a indi-cação de sites da Internet que recebem dife-rentes pesquisas no campo dos estudosculturais. A organização e tradução do vo-lume, devido a Tomaz Tadeu da Silva, emmeu entendimento, apresenta um único se-não. Acredito que o autor poderia ter sidomais fiel à idéia original se, ao invés deutilizar o termo publicação preferisse publici-zação (ps. 40 e 47 e ss.). Salvo esta questão, aedição é muito cuidada e lança, na verda-de, mais uma pequena e valente editora nomercado brasileiro ■

A identidade cultural na pós-modernidade –Stuart Hall, Rio de Janeiro, DP&A, 1998,102 páginas.

UM DOS NOMES REFERENCIAIS dos estudos cul-turais britânicos, Stuart Hall vai sendo gra-dualmente traduzido no Brasil e comsucesso imediato, como o atesta a segundaedição de um artigo de sua autoria, A iden-tidade cultural na pós-modernidade.

Neste trabalho, a indagação principaldo estudioso inglês se centraliza em tornodas velhas identidades e seu desapareci-mento, substitição e/ou modificação, espe-cialmente diante do fenômeno da globali-zação. Mais que uma crise, como queremmuitos, ele vê ocorrer uma mudança, resul-tado da fragmentação de identidades que amobilidade produzida pela globalizaçãoprovoca, mobilidade tanto espacial, em seusentido restrito, quanto figurado, graças es-pecialmente às novas tecnologias.

Hall identifica três diferentes tipos deidentidade, a do Iluminismo, que é a dohomem centrado em si mesmo; a da socio-

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logia, em que o indivíduo se coloca em re-lação com os demais; e a da pós-moderni-dade, em que o homem é múltiplo e mó-vel, conforme o momento e o local.

Identifica ele, assim, a modernidadecomo um processo de rupturas e chama aatenção para o fato de que a glaobalização,na verdade, é um processo mais antigo doque se pretende, pois teria surgido exata-mente com a modernidade, ou seja, no sé-culo XV, a partir das grandes navegações esuas conseqüentes descobertas de novosmundos.

A novidade, contudo, para ele, é quea identidade tornou-se contemporânea-mente politizada. Por isso, mapear a histó-ria do sujeito moderno é difícil, pois háuma descentração caracterizada pelo ultra-passamento do pensamento tradicionalmarxista, pela descoberta do inconsciente,através de Freud, pela descoberta da lín-gua como sistema anterior ao próprio indi-víduo, graças a Saussure, e ao impacto dofeminismo.

Valendo-se de ampla bibliografia, quevai de Anthony Giddens a David Harvey,passa por Raymond Wiliams, Descartes,Locke, Kafka, Benjamin, Althusser, Lacan,Derrida, Foucault e Hobsbawn, entre ou-tros, mais conhecidos no Brasil, Stuart Hallexlicita estar menos preocupado com aidentidade individual do que com a cha-mada identidade nacional.

Para ele, a nação é um sistema de re-presentações culturais, que passam por di-ferentes práticas sociais como a narrativada nação, a ênfase em suas origens, a in-venção da tradição, o mito fundacional e,muitas vezes, o mito da raça original e/oupura.

Independentemente dos aspectos deraça, classe ou gênero, uma cultura nacio-nal é uma unidade cultural, e a nação, nes-te sentido, deve ser visualizada enquantoum dispositivo discursivo (p. 62) que re-presenta a diferença enquanto unidade eidentidade.

A globalização, contudo, tem desloca-do essas identidades nacional, advindo daí

três possibilidades: a) as identidades nacio-nais se desintegram; b) as identidades lo-cais se reforçam e reafirmam, enquanto re-sistência à globalização; c) novas identida-des híbridas surgem no lugar das antigasidentidades nacionais.

Claramente, Stuart Hall, a partir daprópria experiência britânica de séculos decolonialismo e, contemporâneamente,como lugar de chegada de migrantes de to-dos os quadrantes do mundo, em especialdo oriente, opta por dedicar sua atenção aeste aspecto.

Mostra ele que a globalização deslocaos conceitos de tempo e de espaço, que sãofundamentais para as identidades, criandogeografias imaginárias (p. 71) e permitindoamplos fluxos culturais entre as nações. Aomesmo tempo, há um renovado interessepelo local, enquanto nova articulação como global. A mistura étnica que a globaliza-ção permite e provoca gera uma pluraliza-ção cultural (p. 82), cujos efeitos podem sera) a contestação da identidade estabelecidatradicionalmente; b) o alargamento do cam-po das identidades, muitas vezes com o re-cuo de algumas identidades que se tornammais defensivas (ver a Europa contemporâ-nea, em especial França e Áustria) e c) aprodução de novas identidades.

A globalização, assim, contesta e des-loca as identidades fechadas e centradasem si mesmas, sobretudo a partir do queele denomina de identidades em transição(p. 88). Haveria, assim, a se identificar, asidentidades de tradição (p.88), e as identi-dades de tradução, desenvolvidas poraqueles que se dispersam da terra natal etêm a nítida consciência de que não hámais como regressar a ela. Embora detendofortes vínculos com a terra pátria, não têmqualquer ilusão de retorno ao passado. Ne-gociam, assim, com as culturas em que sãorecebidos, constituindo as chamadas cultu-ras híbridas (p. 88).

A resistência a este movimento outendência é o revival que se pode traduzirna valorização da étnica (p. 93) ou na reli-gião (o fundamentalismo iraniano, por

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exemplo), mas que significam o isolamen-to. Na verdade, Stuart Hall advoga a neces-sidade de uma abertura das nações aos no-vos tempos, o que, para ele, pode significarum enriquecimento devido ao multicultu-ralismo inusitado.

O ensaio de Stuart Hall é extrema-mente atual e interessa especialmente aoleitor brasileiro que, ao longo dos tempos,tem constituído sua nacionalidade justa-mente a partir da mestiçagem e do hibridis-mo cultural, do índio e do negro escraviza-dos, aos diferentes grupos de imigrantesque aqui acorreram, sobretudo a partir doséculo XIX ■

Comunicação e teoria crítica da sociedade, deFrancisco Rüdiger, P. Alegre, EDIPUCRS,1999, 260 páginas.

FRANCISCO RÜDIGER TEM-SE DESTACADO entrenós pela publicação de estudos cuidadosa-mente elaborados, podendo-se destacar,dentre outros, sua recente tese de doutora-do. Agora, está publicando um ensaio queé extremamente importante, até porque vai

contra a corrente, como ele mesmo registralogo na introdução de seu novo trabalho,antecipando que se coloca contrário à ten-dência à legitimação da cultura de massa(p. 7), revisando, por isso mesmo, a teoriacrítica, vinculada aos chamados integrantesda Escola de Frankfurt, notadamente o pen-samento de Theodor Adorno, como bem oindica o subtítulo de sua obra. Assim, nalinha de Jürgen Habermas, propõe-se a re-visar aquela linha de estudos sob a pers-pectiva tríplice da restauração, revivência ereconstrução dos textos originais, que elevai consultar em diferentes e variadas fon-tes, boa parte das quais inexistentes em lín-gua portuguesa.

No primeiro capítulo, deste modo,restaura o contexto histórico dos anos vintee recupera, inclusive o momento de nasci-mento a expressão indústria cultural (ps. 14 e15), mostrando que ela é bem anterior aospróprios frankfurtianos. Articulando exem-plificações contemporâneas, como o filmeToy story (p. 17), Rüdiger mostra que a pre-missa daqueles teóricos é o reconhecimen-to da importância do processo social peloqual se transforma a cultura em um bem deconsumo. As primeiras empresas a se orga-nizarem sob tal perspectiva teriam sido asempresas jornalísticas, e isso já a partir dasegunda metade do século XIX.

Citando Adorno, Rüdiger mostra quea conjunção entre o conceito de arte e o deindústria cultural se deve à burguesia, deonde advém a ambivalência do mercado dearte, coincidente com o nascimento da pró-pria arte burguesa. Daí que, para Adorno eHorkheimer, a crítica à indústria culturalque eles empreendem é apenas uma parteda crítica da sociedade a que almejam, den-tro das premissas estabelecidas pelo nas-cente Instituto de Pesquisas Sociais, a partirde 1923, em Frankfurt.

O desenvolvimento das forças produ-tivas convertem os valores culturais emprodutos de consumo – este o princípioconta o qual eles se insurgem, pois eviden-ciam que as camadas consumidoras dessesprodutos sãoe ssencialmente os grupos so-

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ciais em processo de ascensão, que assimse comportam exatamente na busca de suaafirmação social, através da fixação de umaidentidade, o do que aparenta sê-lo.

Os frankfurtianos não ignoravam osprincípios da teoria hipodérmica norte-americana, até porque, desde os anos vinte,havia se popularizado a leitura de revistasem toda a Europa, inclusive na Alemanha.A emergência das massas havia estabaleci-do, na esteira dos estudos de Nietzsche, opensamento de uma crise da cultura. Maspara eles, o problema se colocava com mai-or complexidade. Para Siegfried Kracauer,por exemplo, considerado por Adornocomo o pioneiro neste tipo de estudo, amodernidade caracterizava-se pela falta detranscendência reconhecida ao ser humano(p. 69). Por isso, eles chegavam a acreditarnum potencial positivo da classe única pro-piciada pela revolução proletária soviética.Para eles, o fato de o capitalismo fragmentara experiência era algo profundamente gravee de sérias conseqüências, justamente pordesumanizava o universo e o reificava. Aaura da obra de arte, indicada por WalterBenjamin, na verdade relacionava com oaspecto de fetichização que a produtivida-de massiva provocava no consumidor.

Na obra sempre mencionada de Ador-no e Horkheimer, A dialética do esclarecimento,eles denunciam a falsidade da promessa deprogresso social para a humanidade que amodernidade havia trazido, na medida emque terminou por engendrar justamente oseu contrário, graças ao controle repressivoda natureza e a reificação dos seres humanos.

Rüdiger reconhece haver certo exage-ro na maneira pela qual os frankfurtianos,em especial Adorno, focalizaram a exten-são em que a cultura perde seu valor deuso ao se tornar puro divertimento e mer-cadoria, na medida em que perde a capaci-dade de fantasia inerente a ela. Ao mesmotempo, Adorno teria acertado ao reconhe-cer que, ao longo de milênios, as elites ha-viam produzido cultura às custas dos tra-balhos das massas subalternas. Assim, agrande conquista burguesa teria sido a de

extender a possibilidade de fruição estéticaà todas as categorias sociais mas, ao mes-mo tempo, sujeitou-a à perspectiva da di-versão, com o que provocou o desencanta-mento do mundo (p. 111). A cultura popu-lar, por conseqüência, perdeu sua esponta-neidade ao ser industrializada, sobreviven-do eventualmente o chamado clássico popu-lar graças às suas características inerentes.Este ponto, contraditório na teoria frankfur-tiana, não chega a ser aprofundado porRüdiger, que se limita, repetindo os auto-res que estudo, a mostrar que a televisão(então nascente), o rádio – e com ele a mú-sica – e as revistas, não servem, de fato, parafazer as pessoas felizes, mas sim para levaros indivíduos a esquecer sua infelicidade, afrieza e o anonimato da sociedade liberal ad-ministrada, na medida em que a indústriacultural, se não leva à felicidade, funcionacomo um antídoto à infelicidade (p. 146).

A importância do livro de FranciscoRüdiger é o fato de que, mesmo afirmando,mais adiante, que a crítica à indústria cul-tural encontra-se encerrada (entenda-se, es-gotada), ele mesmo realiza uma tentativade crítica ao revisar estes autores pioneirose, mais que isso, num apêndice à obra, pro-põe um projeto de pesquisa sobre a críticaà indústria cultural, o que significa, de cer-to modo, contradizer-se. Felizmente paranós, leitores, eis que o resultado de seu tra-balho é altamente positivo e permite umarevisão não apenas da crítica ao pensamen-to crítico, quanto a todo o pensamento quefez a crítica dos frankfurtianos.

No último capítulo de seu trabalho,assim, Rüdiger vai recuperar o processo deprodução e de circulação dos produtosconstituintes da indústria cultural, esta-belecendo algumas características dos mes-mos, como a padronização, a pseudo-indi-viduação, a glamourização, a hibridação, aesportização, a estereotipagem e a persnali-zação (ps. 155 e 156).

Neste momento recupera a nova pers-pectiva que, com o passar dos anos, e coma vivência norte-americana, especialmente,os integrantes do grupo de Frankfurt foram

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capazes de descobrir, reconhecendo quetanto a propaganda totalitária quanto a in-dústria cultural mantém semelhanças, so-bretudo porque manipulam o impulso mi-mético humano. Rüdiger pode, por conse-qüência, lamentar que Adorno jamais tenhachegado a imaginar que a indústria cultu-ral pudesse contribuir para o surgimentode esquemas emancipatórios (como os quese pode deduzir de produtos como o filmeO informante, imagino eu), concluindo seutrabalho com o exame de alguns dos críti-cos mais recentes dos frankfurtianos, emespecial Dieter Prokop, Fredric Jameson,Douglas Kellner e Stuart Ewen, os dois úl-timos, em especial, praticamente desconhe-cidos no Brasil, do mesmo modo que, empáginas anteriores, examinara os projetoscoletivos do grupo (p. 57), o encontro entreAdorno e Paul Lazarsfeld, ou as contribui-ções do chamado Círculo de Berlim, comHanns Eisler, Georg Lukács e Bertolt Bre-cht, ou os estudos pioneiros de SiegfriedKracauer e Leo Lowenthal, que depois fica-riam distanciados de Adorno.

Livro denso, de pesquisador sério eatento, esta nova obra de Francisco Rüdigertraz um aparato bibliográfico extenso e iné-dito, para boa parte do público leitor, pos-sibilitando, por isso mesmo, mais do queuma crítica e uma revisão, a indicação deestudos que, em geral, jamais circularamentre nós. Para quem apresenta certo ceti-cismo, na mesma linha dos autores estuda-dos, a própria realização da obra e, em es-pecial, a apresentação do projeto de pes-quisa evidencia que, ao contrário, o ceticis-mo não passa de um posicionamento inte-lectual, de ponto de partida capaz de per-mtir a (re)leitura atenta desses que já sãohoje clássicos e que, apesar de muitas ve-zes contestados, tornaram-se referênciaobrigatória para a reflexão a respeito dosprocessos culturais na sociedade industri-al, sobretudo na sua fase monopolizadora,como a em que se encontra hoje ■