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revista da Brasileira de Musical N°17 Setembro 2007

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Brasileirade

Educa~aoMusical

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Associação Brasileira de Educação Musical

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Associação Brasileira de Educação Musical

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Revista da ABEM, n. 17, setembro 2007.Porto Alegre: Associação Brasileira deEducação Musical, 2000

SemestralISSN 151826301. Música: periódicos

Diretorias e Conselho Editorial da ABEM Biênio 2005-2007

DIRETORIA NACIONALPresidente: Prof. Dr. Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo – UDESC, SC

[email protected]: Profa. Dra. Cristina Grossi – UnB, DF

[email protected] de Honra: Profa. Dra. Jusamara Souza – UFRGS, RS

[email protected]ário: Prof. Dr. José Nunes Fernandes – UNIRIO, RJ

[email protected]: Profa. Dra. Regina Cajazeira – UFAL, AL

[email protected]

DIRETORIA REGIONALNorte: Profa. Ms. Sônia Blanco – UEPA, PA

[email protected]: Prof. Dr. Luis Ricardo Queiroz – UFPB, PB

[email protected]: Profa. Dra. Ilza Zenker Joly – UFSCAR, SP

[email protected]: Profa. Dra. Rosane Araújo, UFPR, PR

[email protected]: Profa. Dra. Cássia Virgínia Coelho de Souza (UFMT)

[email protected]

CONSELHO EDITORIALPresidente: Profa. Dra. Cláudia Bellochio – UFSM, RS

[email protected]: Profa. Dra. Cecília Torres – UERGS, RS

[email protected] do Conselho Editorial:

Profa. Dra. Isabel Montandon – UnB, [email protected]

Profa. Dra. Lia Braga – UFPA, [email protected]

Profa. Dra. Maura Penna – UEPB, [email protected]

Projeto gráfico e diagramação: MarcaVisualRevisão: Trema Assessoria Editorial

Fotolitos e impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Tiragem: 500 exemplaresPeriodicidade: Semestral

É permitida a reprodução dos artigos desde que citada a fonte.Os conceitos emitidos são de responsabilidade de quem os assina.

Indexação: LATINDEX - Sistema Regional de Información enLínea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe,España y Portugal; Edubase (Faculdade de Educação/UNICAMP - Campinas/SP - Brasil)

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Sumário

Editorial ..................................................................................................................................................... 5

A inserção da flauta traversa no ensino, em Portugal de 1750 a 1850 ................................................ 7Alexandre Andrade

Mapa e síntese do processo de pesquisa em performancee em pedagogia da performance musical ............................................................................................ 17

Patrícia Furst Santiago

Processos de aprendizagem de músicos populares: um estudo exploratório ................................. 29Simone LacorteAfonso Galvão

Desenvolvimento musical: questão de herança genética ou de construção? .................................. 39Patrícia Fernanda Carmem Kebach

Aspectos figurativos e operativos da aprendizagem musical de crianças e pré-adolescentes,por meio do ensino de flauta doce ....................................................................................................... 49

Renate Lizana WeilandTamara da Silveira Valente

Coro universitário: uma reflexão a partir da história do Coral Universitárioda PUC-Campinas, de 1965 a 2004 ........................................................................................................ 59

Ana Yara CamposKatia Regina Moreno Caiado

Educação musical nas escolas de educação básica: caminhos possíveis para a atuação de profes-sores não especialistas .......................................................................................................................... 69

Luis Ricardo Silva QueirozVanildo Mousinho Marinho

Materiais didáticos nas aulas de música do ensino fundamental: um mapeamentodas concepções dos professores de música da rede municipal de ensino de Porto Alegre ........... 77

Fernanda de Assis Oliveira

Professores de escolas de música: um estudo sobre a utilização de tecnologias ........................... 87Gerson Rios LemeCláudia Ribeiro Bellochio

Relações interativas de docência e mediações pedagógicas nas práticas de EaDem cursos de aperfeiçoamento em educação musical ...................................................................... 97

Susana Ester Krüger

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Contents

Editorial ..................................................................................................................................................... 5

The insertion of the transversal flute in teaching, in Portugal, from 1750 to 1850 .............................. 7Alexandre Andrade

Map and synthesis of the research process on performanceand on the pedagogy of musical performance .................................................................................... 17

Patrícia Furst Santiago

Popular musicians’ learning processes: an exploring study .............................................................. 29Simone LacorteAfonso Galvão

Musical development: a question of genetic inheritance or of construction? .................................. 39Patrícia Fernanda Carmem Kebach

Figurative and operative aspects of children and adolescents’ musical learning,through the teaching of recorder .......................................................................................................... 49

Renate Lizana WeilandTamara da Silveira Valente

University Choir: a reflection from the history of the PUC-Campinas university choir,from 1965 to 2004 .................................................................................................................................... 59

Ana Yara CamposKatia Regina Moreno Caiado

Musical education in primary schools: possible paths for the actingof non-specialist teachers ...................................................................................................................... 69

Luis Ricardo Silva QueirozVanildo Mousinho Marinho

Didactic materials in music classes in primary school: a mapping of the conceptionsof the music teachers from the municipal teaching network in Porto Alegre - RS .......................... 77

Fernanda de Assis Oliveira

Music schools teachers: a study on the use of technologies .............................................................. 87Gerson Rios LemeCláudia Ribeiro Bellochio

Interactive relations of decency and pedagogical mediations in “EaD” practicesin courses to improve musical education............................................................................................. 97

Susana Ester Krüger

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Editorial

TORRES, Cecília. Editorial. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 7, 5, set. 2007.

É com muita satisfação que lançamos este número da Revista da ABEM, noqual apresentamos artigos que trazem temáticas e abordagens diversificadas no

campo da educação musical. O texto de abertura, de autoria de Alexandre Andrade,versa sobre o percurso historiográfico e a “inserção da flauta traversa no ensino, em

Portugal de 1750 a 1850”. O autor chama a atenção para o “crescente interessepelo estudo da flauta” no Conservatório de Música de Lisboa e apresenta um

conjunto de peças musicais escritas para flauta durante este período.

A seguir, destacamos os artigos de Patrícia Furst Santiago e de SimoneLacorte e Afonso Galvão. O primeiro deles traz a abordagem da autora com a

“formação de núcleos de conhecimentos” através das pesquisas realizadas nassubáreas da performance e da pedagogia da performance musical. Santiago

desencadeia reflexões a respeito do “papel a ser assumido pelo músico pesquisadore sua urgência em compreender os processos envolvidos no fazer pesquisa”. No

segundo artigo, intitulado “Processos de aprendizagem de músicos populares: umestudo exploratório”, os autores apresentam dados da pesquisa que investigou

experiências musicais iniciais de um grupo de dez músicos populares que atuamem Brasília e o instrumento metodológico escolhido foi a entrevista semi-

estruturada.

Já o artigo seguinte, de autoria de Patrícia Fernanda Carmem Kebach,insere-se na perspectiva da Epistemologia Genética e busca “compreender os

mecanismos de adaptações orgânicas ao meio”, bem como de que modo seconstrói o conhecimento musical. Kebach, ao longo do seu estudo, traz o seguinte

questionamento: “desenvolvimento musical: questão de herança genética ou deconstrução?”

O artigo que segue, de autoria de Renate Lizana Weiland e Tamara daSilveira Valente, “investiga como se dá a interação entre os aspectos figurativos e

os operativos na aprendizagem musical” por meio do ensino da flauta doce e baseia-se no Modelo C(L)A(S)P. De certa maneira, faz correlações com o artigo de Kebach,

pois também traz a Epistemologia Genética de Jean Piaget como embasamentoteórico para a investigação realizada com crianças de 7 a 12 anos.

O próximo trabalho, uma pesquisa que reuniu fontes orais e documentais,intitula-se “Coro Universitário: uma reflexão a partir da história do coral universitárioda Puc-Campinas, de 1965 a 2004” e tem como autoras Ana Yara Campos e Katia

Regina Moreno Caiado. As autoras enfatizam, ao final do artigo, que, “por suanatureza historiográfica, este trabalho não se conclui. É um caminho aberto,

como a História.”

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Luis Ricardo Silva Queiroz e Vanildo Mousinho Marinho trazem em seu artigodados de uma pesquisa participante “realizada junto a professores do ensino

fundamental do município de Cabedelo (PB)”. Os autores destacam que o trabalhoenglobou, “de forma integrada, práticas de ensino, pesquisa e extensão”, e que estegrupo de profissionais, mesmo sem ter uma formação específica na área de música,pode “desenvolver propostas significativas para o ensino e aprendizagem da música

nas escolas”.

Já o texto “Materiais didáticos nas aulas de música do ensino fundamental:um mapeamento das concepções dos professores de música da rede municipal deensino de Porto Alegre – RS”, de autoria de Fernanda de Assis Oliveira, apresenta

aspectos da sua pesquisa que buscou investigar quais são as concepções que“fundamentam o uso de materiais didáticos” por parte de um grupo de professores

de música ao longo de suas práticas pedagógico-musicais.

O artigo de Gerson Rios Leme e Cláudia Ribeiro Bellochio, por sua vez, trazum estudo realizado também com um grupo de professores de música, na

perspectiva de conhecer “como os professores de música aprenderam a utilizartecnologias musicais e como as empregam em suas práticas educativas diárias”.

Os autores destacam, nas conclusões, que perceberam uma “crescentepreocupação dos professores de música atuantes nas escolas pesquisadas” com

questões de aprendizagem e atualização tecnológica para o ensino de música.

Finalizamos este número com o texto de Susana Ester Krüger, intitulado“Relações interativas de docência e mediações pedagógicas nas práticas de EaDem cursos de aperfeiçoamento em educação musical”, no qual a autora analisa a

organização de quatro cursos de “aperfeiçoamento em educação musical realizadosna modalidade semi-presencial” em um ambiente virtual de aprendizagem. Krügertraz autores como Tardif e Lessard (2005) e faz sua análise “sob os conceitos de

docência enquanto profissão interativa, trabalho ‘codificado’ e ‘não-codificado’ e deinteração social”.

Desejamos que os artigos apresentados neste número possam, peladiversidade de abordagens, de temas de pesquisas, de perspectivas, de espaços esujeitos e de escolhas teórico-metodológicas, instigar e desafiar todos nós a outras

reflexões, diálogos, proposições, articulações e práticas no espaço da educaçãomusical. Uma boa leitura para todos!

Cecilia Torres

Editora

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Nota introdutória

A abordagem de uma temática desta nature-za, bem como as conclusões provenientes da pes-quisa e análises empreendidas para este artigo, de-verão ser encaradas com prudência, uma vez que osestudos centrados exclusivamente no ensino damúsica em Portugal são escassos e descontínuosem face da dimensão ocupada no contexto históri-co. No que diz respeito ao ensino da flauta, tudoquanto possa existir constitui-se como referênciasdocumentais de natureza historiográfica, social, cul-

A inserção da flauta traversa noensino, em Portugal de 1750 a 1850*

Alexandre AndradeInstituto Piaget – Campus Universitário de Viseu (Portugal)

[email protected]

Resumo. Este artigo pretende dar a conhecer o percurso historiográfico da flauta traversa, em Portugal, e suainserção no ensino. Com base no contexto musicológico de Portugal, no início do reinado de D. João V, afundação do Seminário Patriarcal, em 1713, viria a marcar profundamente o ensino da música ao longo do séculoXVIII e primeiras décadas de oitocentos. Esta instituição caracterizada por uma corrente pedagógica de carizreligioso, teve como função a formação dos músicos para o serviço litúrgico da Capela Real. Assim, até à décadade 1830, as principais disciplinas ministradas no Seminário, foram o canto, contraponto e o órgão. Neste período,o ensino da flauta, bem como outros instrumentos de orquestra, só foi possível a título particular. Com oencerramento do Seminário, em 1833, e a abertura do Conservatório de Música de Lisboa, em 1835, em definitivo,o ensino da flauta alcançou o público em geral. Estavam lançadas as bases para a sua rápida projecção edivulgação no quadro da História da Música Portuguesa.

Palavras-chave: flauta traversa, música, Portugal

Abstract. This article aims to inform how was the historiographic course of the flute in Portugal and its insertionin the educational field. The Seminário Patriarcal Foundation in 1713, at the beginning of D. João V reign, wasstriking for the musical teaching throughout the 18th century and the first decades of the eight hundreds. Thisinstitution had a pedagogical perspective of religious type and formed the musicians for the liturgics’ services atthe Capela Real. Therefore, until 1830, the main subjects ruled at the Seminário Patriarcal were chant, counterpointand organ. In this period the flute’s teaching as well as the other instruments of the orchestra were only taughtat a private level. In 1833, with the closing of the Seminário Patriarcal, the opening of the Conservatório deMúsica in Lisbon, in 1835, marked the flute’s teaching to a public level. The basis for its development anddivulgation, at the context of the History of Portuguese Music, was marked.

Keywords: flute, music, Portugal

tural e económica que, temporal e gradualmente,emergem dos arquivos históricos nacionais. O seutratamento ainda carece de uma futura e constantededicação por parte da comunidade científica, no sen-tido de complementar, passo a passo, o registo histó-rico do ensino e práticas musicais em Portugal.

O Seminário Patriarcal de Lisboa

O percurso do ensino da música em Portugalesteve, desde sempre, directamente relacionado com

* Chamamos a atenção do leitor que o português utilizado neste artigo segue a ortografia de Portugal (N. E.).

ANDRADE, Alexandre. A inserção da flauta traversa no ensino, em Portugal de 1750 a 1850. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17,7-15, set. 2007.

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o contexto vivido ao nível político, social, económicoe ideológico. É a convergência destes aspectos quecontextualiza favoravelmente a criação de um esta-belecimento de ensino dedicado à formação dosmúsicos no início do século XVIII. Desta forma, coma subida ao trono de D. João V, em 1707, a socieda-de portuguesa viria a iniciar um novo ciclo de profun-das alterações no tecido cultural, económico, sociale político, como afirma Jorge Costa (2000, p. 177):

“O fim do isolamento de Portugal em relação à Europa,a afirmação do poder do Rei e o controlo do poder daigreja são as pedras base para a transformaçãoocorrida na sociedade portuguesa.”

No campo das artes, nomeadamente da mú-sica, o gosto estético do monarca assentava namúsica sacra. Assim sendo, dentro do quadro dasreformas nesta área implementadas por D. João V,foi criado o Seminário Patriarcal de Lisboa, a 9 deAbril de 1713. Esta instituição, anexa à Capela Real,tinha como principal objectivo, como afirmam RuiVieira Nery e Paulo Ferreira de Castro (1991, p. 89):“[…] garantir o ensino adequado aos jovens músicosportugueses […]”.

Durante todo o século XVIII, a figura centraldo Seminário Patriarcal, detentora de uma visão pe-dagógica de pendor essencialmente religioso, é re-flexo do movimento cultural, visível não só na histó-ria da música portuguesa, mas sentido em todos oscampos artísticos da nossa sociedade. Do ponto devista externo e interno, este cenário foi desde sem-pre questionável, uma vez que inevitavelmente todoo percurso sociocultural setecentista ficou em partecondicionado à intervenção cortesã.

Em 1816, as crónicas1 da AllgemeineMusikalische Zeitung caracterizavam o panoramamusical português pela sua falta de propensão paraa “música séria”, o que era motivado, por um lado,pela natureza e hábitos sociais e, por outro lado,pela quase total ausência de uma verdadeira forma-ção nesta arte (Brito; Cramer, 1990, p. 38).

Em 1822, Adrien Balbi (apud Nery; Castro,1991, p. 135), no seu Essai Statistique, refere que

cinco mestres de música ensinam aí [SeminárioPatriarcal] a um número indeterminado de alunos ocanto, a música instrumental e a composição. Desde1800 deram-se aí lições a cerca de quinze alunos porano. […] O método de ensino é bastante bom, emborademasiado arredado do gosto da música moderna.

Como se constata, até as primeiras décadasdo século XIX, o único estabelecimento de ensinodestinado à formação de músicos profissionais foi,de facto, o Seminário Patriarcal, o qual conservavaainda a sua função original, ou seja, a de preparar osmúsicos para o serviço litúrgico. No entanto, estainstituição, transversal ao tempo, foi assim respon-sável pela formação de grandes músicos como SousaCarvalho, Leal Moreira ou Marcos de Portugal.

Ainda a respeito do ensino aí ministrado, Nerye Castro (1991, p. 89) comentam: “O sistema deensino estava moldado de forma a fornecer aos alu-nos uma formação prática intensa no âmbito daMúsica sacra […]”. Por sua vez, Lambertini (1913-1930, p. 2421) refere-se às disciplinas leccionadasno estabelecimento: “As principais matérias que nósensinamos no Seminário são a teoria da música, osolfejo, o contraponto, o órgão e o acompanhamen-to, mas sobretudo o canto…”

Em relação ao ensino de outros instrumen-tos, para além do órgão, não existem indicações pre-cisas quanto à sua leccionação. Tudo indica que sóviriam a ser contemplados já no decorrer do séculoXIX. Com efeito, em relação às aulas de instrumen-tos de orquestra, estas só foram introduzidas pelasreformas dos seus Estatutos, em decreto de 3 deNovembro de 1824 (Vieira, 1900, v. 1, p. 200).

Perante este contexto, e de acordo com asinformações disponíveis, o ensino da flauta traversano decorrer do século XVIII e primeiras décadas doséculo XIX foi ministrado a título particular, o que re-duz, como é evidente, os seus registos documen-tais. Como exemplo deste procedimento, surgeAntónio Rodil (c.1710-1787), na segunda metade desetecentos, flautista da Real Câmara de Lisboa,como o primeiro responsável pela formação teóricae prática de seu filho Joaquim Pedro Rodil (c.1774-1834), o qual viria a ser também um grande flautistae seu sucessor. Após seu pai falecer, e por vontadede seus padrinhos, Joaquim deu continuidade aosseus estudos musicais no Seminário Patriarcal, ondedeu entrada a 12 de Janeiro de 1788 (Pereira;Rodrigues, 1912, p. 340).

O declínio do Seminário Patriarcal e oaparecimento do Conservatório deMúsica de Lisboa

Com efeito, durante os reinados de D. José I

1 Os artigos expostos nestas crónicas tinham como principal objectivo informar os leitores sobre a actividade e produtividadeoperística, os concertos sob responsabilidade de músicos profissionais, bem como os saraus musicais promovidos por músicosamadores, divulgação da música religiosa e, por fim, a música popular e de salão.

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e D. Maria I verificou-se que, apesar de terem surgi-do no meio musical português instrumentistas domais alto nível europeu,2 estes estavam na sua mai-oria ao serviço da Orquestra da Real Câmara, e quenem sempre foram aproveitados os seus serviços noensino público. Isto quer dizer que as políticas e asreformas institucionais que sustentaram o Seminá-rio Patriarcal não contemplaram a inserção destesinstrumentistas nos seus quadros, como foi o casode Rodil.

É de notar que com o acentuar da crise doregime absolutista e toda a sua política cultural, opróprio Seminário, assim como outras instituiçõesmusicais (Nery; Castro, 1991, p. 135), como o casoda Escola de Santa Catarina, entrariam neste perío-do num certo declínio. Alguns factores estiveram naorigem desta situação: a importância central queocupava a ópera italiana, as ideologias políticas doMarquês de Pombal, que causavam um permanenteconflito com as ordem religiosas, e o próprio terramotode 1755, que levaria a deixar a recuperaçãoinstitucional e estrutural do Seminário para segundoplano em face da prioridade das reformas pombalinas.

Perante este enquadramento, e com ordemlegal de 2 de Maio de 1822, o Seminário Patriarcalrecebeu ordens para encerrar as suas portas e viriaa ser extinto em definitivo em 1833. Os professoresdeste estabelecimento foram transferidos para a novaestrutura de ensino musical, ou seja, a Aula de Mú-sica na Casa Pia, criada por decreto-lei de 28 deDezembro de 1833. Como comenta António Vascon-celos (2002, p. 48), este núcleo constituiria o futuroConservatório de Música de Lisboa, que viria a serfundado por D. Maria, por decreto-lei de 5 de Maiode 1835.

José Ribeiro (1867, p. 386, grifo do autor) co-menta este acontecimento da seguinte forma:

O governo, pretendendo promover a arte da música, efazer aproveitar os talentos que para ella apparecem,maiormente no grande numero de orphão que recebemeducação na Casa Pia, decretou em 5 de Maio que oseminario da extinta Egreja Patriarchal fossesubstituido por um conservatório de música, quehouvesse de ser estabelecido na mesma Casa Pia.

Ribeiro (1867, p. 386-387) refere-se ainda aoregulamento interno do Conservatório, o qual con-templava o seguinte: “Aulas; 1a de preparatórios erudimentos, 2a de instrumentos de latão, 3a de ins-trumentos de palheta, 4a de instrumentos de arco, 5a

de orchestra e 6a de canto.” Quanto ao futuro res-ponsável pela Escola de Música a direcção científi-ca do estabelecimento foi confiada ao célebre pro-fessor João Domingos Bomtempo (1775-1842).

O Conservatório de Música iria ficar incorpo-rado numa estrutura maior, isto é, fazendo parte doConservatório Geral da Arte Dramática, tendo comoseu reitor Almeida Garrett. O modelo adoptado seriao do Conservatoire National de Musique et deDeclamation de Paris, que abrangia três escolas:Escola de Música, Escola de Declamação e a Es-cola de Dança (Vasconcelos, 2002, p. 48-49).

De acordo com Maria José Fuente (1993, p.17), o Conservatório não iniciou de imediato as suasactividades, existindo apenas matrículas de alunosa partir de Dezembro de 1837. De facto, segundoJoaquim Rosa (1999, p. 115), as primeiras candida-turas localizadas nos Livros de Matrículas dizem res-peito ao ano lectivo de 1838/39. As disciplinas queestavam em funcionamento eram as seguintes: Can-to, Piano, Rebeca, Violoncelo, Rebecão grande, Cla-rinete, Oboé, Flauta, Trompa/Corn., Trombone eRudimentos.

Neste período, a cadeira de Flauta e Flautimesteve a cargo do professor Francisco Kuchenbuch(?-c.1845). Anteriormente ao ano lectivo de 1838/39,e, segundo Vieira (1900, v. 2, p. 8), Kuckenbuchleccionou a cadeira de flauta no Seminário Patriar-cal, onde terá dado entrada em 1824. Para além dacadeira de flauta, também estava sob sua responsa-bilidade a leccionação de outros instrumentos desopro, como indica Joaquim Rosa (1999, p. 135):“entrou […] para o Seminário Patriarcal como Pro-fessor de Instrumentos de latão, uma designaçãoque designava todos os instrumentos de bocal, no-meadamente Trompa, Clarim e Trombone”. Contu-do, as fontes documentais disponíveis não permi-tem saber com rigor se na realidade existiam alunosinscritos em flauta no período de 1824 a 1838.

Relativamente ao ano lectivo de 1838/39, deacordo com o levantamento efectuado por Rosa (1999,p. 135), “Kuckenbuch para além de ter alunos inscri-tos nas classes de Trompa/Corn e Trombone, tinhasete alunos inscritos em Flauta”. É de salientar que adisciplina de flauta foi a mais concorrida, depois dastradicionais disciplinas de piano com onze alunos, soba regência de Francisco Migone e a Rebeca com novealunos, do professor Vicente Mazoni.

2 Uma das razões que justificava este fluxo de instrumentistas estrangeiros a fixarem-se em Portugal reside no facto de o próprioSeminário Patriarcal não ter contemplado uma formação, ao nível dos instrumentos de orquestra, capaz de responder às necessidadesda Orquestra da Real Câmara.

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Kuckenbuch poderá não ter sido um especia-lista da flauta traversa; porém, o seu domínio, en-quanto instrumentista de sopros, garantiu-lhe o as-segurar da disciplina de flauta, até 1840. Depois des-ta data, a sua colaboração no Conservatório ficariacircunscrita apenas ao trompa/cornete e ao trombo-ne. Vieira (1900, v. 2, p. 8) refere-se a Kuckenbuchda seguinte forma: “Bom tocador de trombone, cor-neta de chaves e outros instrumentos de vento. Eraalemão, natural de Mogúncia. Deu entrada na Irman-dade de S. Cecília, como tocador de clarinete em 9de Maio de 1805.”

O Conservatório de Música de Lisboa nasdécadas de 1840-50

Um dos aspectos de relevo, que caracterizouo ensino público da flauta em Portugal até 1840, foia falta de um professor especialista para assumir adisciplina. Como se constatou, ficava à responsabi-lidade de um professor a leccionação de um lequede instrumentos de sopro. Todavia, esta realidadenão foi diferente da de outros países europeus, comocomenta Gianni Lazzari (2003, p. 1); no início doséculo XIX, era comum verificar-se que o ensino daflauta estava sob a direcção do professor de oboé,como era o caso em Itália.

Quanto à admissão dos docentes e de acor-do com os estatutos do Conservatório, os novos pro-fessores deveriam ser escolhidos por concurso eprovas públicas perante um júri, composto por seisjurados sorteados entre os professores e por seismembros efectivos da respectiva secção do Conser-vatório. Assim o primeiro concurso público que tevelugar para a cadeira de flauta e flautim no Conserva-tório surge em Outubro de 1840, o qual viria a reali-zar-se a 18 de Outubro (Rosa, 1999, p. 135).

Para a referida cadeira apresentaram-se doiscandidatos, José Gazul Júnior (1801-1868) e Manu-el Joaquim dos Santos (1800-?). O concurso viria aficar marcado por alguma controvérsia. Santos ofe-receu-se de imediato para leccionar gratuitamenteaté à decisão do júri sobre o seu vencimento. Porsua vez, Gazul oferece também o seu trabalho gra-tuitamente e pede a realização de um novo concur-so. Perante estes episódios, João DomingosBomtempo, na qualidade de Director da Escola deMúsica, não ficou satisfeito com os acontecimen-tos, considerando que a admissão de professoresnão remunerados não era decorosa para a institui-ção. Mas mais tarde aceita a ideia, referindo-se aocaso como o dos servidores do Estado sem venci-mento.

Entretanto, surge uma peripécia ainda relaci-onada com este concurso. Apesar de José Gazul

não concordar com o procedimento, propõe-se apre-sentar ao júri um aluno seu e entrega um documentodo Reitor de Música do extinto Real Seminário Patri-arcal, Fr. José Marques, que o classifica como “pro-fessor consumado tocando a solo e magnífico emunião de orquestra” (Fuente, 1993, p. 33).

Manuel Joaquim dos Santos entrega vinte equatro documentos abonatórios da sua capacidadecomo professor, propõe a apresentação de discípu-los e a execução de peças de sua autoria. O Conse-lho de Direcção exclui do concurso os alunos, poiso júri não saberia se seriam efectivamente discípu-los do candidato; por outro lado, qualquer portuguêsou estrangeiro que não tivesse alunos ficaria prejudi-cado, mesmo que mais talentoso. Em face destasituação, Fuente (1993, p. 33) cita o ponto de vistade Bomtempo: “Seria de grande desdouro para estaEscola, se efectivamente se admitirem tais provas,pois que, nem em Portugal nem em parte alguma daEuropa, tal se costuma praticar em semelhantesconcursos.”

Por fim, José Gazul Júnior foi eleito por unani-midade pelo júri, mas ficou a leccionar gratuitamen-te entre 1840 e 1842. Com 39 anos de idade, Gazulfoi oficialmente o primeiro professor de flauta e flautimdo Real Conservatório de Música, tendo tido discí-pulos notáveis, entre os quais seu filho Pedro JoséGazul (c.1820-1872). O seu ordenado era de 200$,recebidos apenas a partir de 8 de Junho de 1842,ano em que seria nomeado professor vitalício da ca-deira de flauta e flautim.

Gazul, que tivera como seu mestre JoaquimPedro Rodil, dedicou-se em especial ao ensino daflauta, tornando-se um dos mais célebres flautistasdo seu tempo. Com base nos registos documentaisrecolhidos, tudo indica, uma vez mais, que o ensinoda flauta transmitido por Joaquim Rodil a Gazul foi atítulo particular, uma vez que Rodil não esteve ligadooficialmente a nenhum estabelecimento de ensino.

Com efeito, os grandes mestres da flauta quemarcaram a vida musical portuguesa nos finais doséculo XVIII e nas primeiras décadas do século XIXtiveram, para além de um brilhante percurso enquan-to instrumentistas, uma responsabilidade pedagógi-ca que seria determinante para a forte implementaçãodo instrumento durante todo o século XIX. Em todocaso, como se verificou até 1840, este ensino, emLisboa, esteve subordinado a título particular a AntónioRodil, Joaquim Rodil e José Gazul Júnior, e na cida-de do Porto, a João Parado e José Maria Ribas.

Antes de iniciar as suas funções de professordo Conservatório, Gazul exerceu uma importanteactividade artística. Assim, em 1824, era segunda

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flauta da Orquestra do Teatro de S. Carlos, onde oseu mestre ocupava o lugar de primeira flauta. Em1825, por cansaço do seu professor, veio a ocu-par o seu lugar na orquestra. Para além das suasfunções como flautista na Orquestra do Teatro deS. Carlos, também estava nas Orquestras da RealCâmara e da Sé. Como descreveu Vieira (1900, v.1, p. 457-458):

Gazul foi um dos primeiros flautistas a distinguir-se porum som intenso vibrante e de grande beleza, por umestilo largo e correcto, por uma execução animada eexpressiva. Em compreensão, mostrava-se no ensinomestre paciente, dedicado e affectuoso; por isso tevenumerosos disciplos, a maior parte dos quaes setornaram outros tantos amigos.

Em relação aos seus discípulos, para alémdo filho, outros flautistas tiveram a oportunidade detrabalhar com Gazul, como por exemplo GarciaAlagarim (séc. XIX), Manuel António Borges da Silva(1827-1898) e Manuel Martins Soromenho (?-1900),o qual viria a assumir o cargo, depois da morte doseu mestre.

Com a entrada de Gazul para o Conservatórioassistiu-se a um aumento do número de alunos ins-critos na disciplina de flauta. Já no ano lectivo de1841/42, tinha 10 alunos em flauta, sendo apenassuperado pelas classes de Canto e Piano com 20 e14 alunos, respectivamente.

A 26 de Dezembro de 1848, num documentomanuscrito localizado por Rosa (1999, p. 197), Gazuldirige-se ao Director da Escola de Música, fazendoum historial desde a sua entrada ao serviço do Con-servatório até à situação vivida à data:

Sendo esta Aula então nascente, de tudo carecia, e eufui requesitando o que para ella era indispensavel, comtal infeleicidade porem, que, mau grado a activa co-operação que Vª Exª, se dignou a conceder-me,apoiando e conseguindo do Vice Presidente d’aquellaepoca a approvação das minhas requisições, jamaisse poude obter foseem levadas a effeito. Eis o motivode ainda hoje só têr para o ensino dos meus discipulosum estropiado livro, falta de folhas, e que custa já areconhecer como exemplar do Methodo doConservatório de Pariz.3

Partindo da análise deste documento, é pos-sível retirar uma ideia clara da situação vivida porGazul que, enquanto primeiro professor e responsá-vel pela cadeira, tinha pela frente um grande desafio,em face da ausência de uma literatura específicapara o instrumento. Por outro lado, confirma-se todauma linha de ensino ministrado no Conservatório, paraalém dos próprios fundamentos ideológicos basea-

dos no modelo francês, que geraram a sua criação.

De acordo com o regulamento interno da Es-cola de Música, e como afirma Vasconcelos (2002,p. 49, grifo do autor):

[…] os professores tinham um conjunto alargado deobrigações para além das decorrentes da actividadelectiva no seu sentido estrito, nomeadamente formarmétodos, compêndios e obras elementares para assuas aulas. […] Enquanto não existissem estas obras,o que serviria de base para os estudos e ensino dasdiferentes disciplinas eram os métodos adoptados noConservatório de Paris, e as obras dos autoresclássicos.

Consciente desta realidade, na sua carta de26 de Dezembro de 1848, Gazul refere-se ao reper-tório utilizado nas suas aulas da seguinte forma:“…teem levado a ministrar-lhes musicas minhas, ea condescendencia d’elles em procurar as que lhesaconselho …” (Rosa, 1999, p. 197). Com efeito, oensino da flauta em Portugal terá adquirido uma es-trutura sólida e sustentada apenas a partir de mea-dos do século XIX. No decorrer da primeira metadede oitocentos, a falta de um programa nacional, aausência de métodos, de estudos e o reduzido re-pertório específico para o instrumento traçaram opanorama interno do ponto de vista do ensino damúsica no país e, em particular, da flauta.

Assim sendo, de forma a acompanhar o cres-cente interesse pelo estudo da flauta, manifestadoprincipalmente desde o início do século no seio davida musical portuguesa, foi necessário constituiroficialmente um programa que visasse corresponderà formação dos novos alunos. Nesta perspectiva, ede acordo com a pesquisa de Rosa (1999, p. 197-198), no ano lectivo de 1844/45, o programa elabora-do por Gazul estava dividido em três anos: “O cursocompleto da minha Aula de trez annos, 1º Anno todoo Methodo do Conservatório de Pariz,. 2º AnnoPerlúdios de Hoffmeister e Exercícios de minha com-posição […], 3º Estudos de José Maria Ribas, deJoão Parado e de Furstenau”.

Com a admissão de José Gazul Júnior aosquadros do Conservatório, para a cadeira de flauta eflautim, estavam assim lançadas as bases ao níveldo ensino para o instrumento poder alcançar gradu-almente um público cada vez mais vasto. Por con-seguinte, deste estabelecimento sairiam muitos flau-tistas para as orquestras, outras escolas ligadas aoensino, bandas filarmónicas e militares ou simples-mente curiosos e amadores do culto pela flauta.

3 Este documento manuscrito encontra-se no Arquivo do Conservatório Nacional.

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Os estudos para flauta de Parado e Arroio e ométodo de C. Neves.

Ainda relativamente ao ensino da flauta emPortugal, e para melhor compreensão desta temática,merecem ser abordados os estudos Three Studies forthe Flute de João Parado (?-c.1842), mencionados porGazul, assim como Doze Estudos para Flauta de JoséFrancisco Arroio (1818-1868) e o Methodo Elementarde Flauta coordenado por Cezar das Neves.

João Parado era natural da cidade do Porto,onde terá nascido nos finais do século XVIII. Poucose conhece da sua vida e obra; no entanto, compôsuns estudos para flauta dedicado ao seu colega eamigo José Maria Ribas. Estes estudos foram publi-cados em Londres com o título: Three studies forthe flute, composed and dedicated to his friend J. M.Ribas, principal flute at Her Majesty’s Theatre, andthe Philarmonic. By João Parado. London, J. AlfredNovello, Ewer & Co.

Para Vieira (1900, v. 2, p. 152), estes estudos

[…] são de execução muito difficil, mas não primorosossob o ponto de vista da composição musical; falta-lhesunidade pois cada estudo é formado de três ou maistrechos que mal se ligam entre si, modulando com muitafrequência mas pouco naturalidade.

De facto, a sua escrita é determinada por umalinguagem muito diversificada, do ponto de vista rít-mico e melódico, e de forma a cativar o músico paraa sua execução. O grau de dificuldade destes estu-dos não é progressivo, o que significa um elevadograu de exigência ao nível da sua performance emtodos os estudos.

Parado foi um grande flautista e professor,sabendo por certo o que seria necessário desenvol-ver e aplicar na sua escrita para tornar estes estu-dos num bom exercício para os seus alunos. Todosos registos do instrumento são devidamente explo-rados, as dinâmicas são cuidadosamente escolhi-das de forma a proporcionar grandes contrastes quevão desde pp ao ff, grandes intervalos, uso frequentede arpejos e sobretudo uma procura constante decontraste nas diferentes formas de articulação.

Todos os estudos são compostos por trêsandamentos. Com base nesta estrutura, Parado pro-cura conciliar a sua expressividade, partindo de umalinguagem romântica nos andamentos mais lentos,como por exemplo Com Sentimento logo no iníciodo segundo andamento do Estudo no 1 e com osmomentos de puro exercício técnico, nos andamen-tos mais rápidos.

Apesar de a sua escrita ser também fortemen-te apoiada numa ornamentação cuidada, é natural

perder-se a fluidez do discurso musical, em face dosobjectivos técnicos propostos pelo autor. A qualida-de e a importância desta obra não foram esquecidasna época, a sua aplicação nos programas oficiais doConservatório e o reconhecimento por parte do mes-tre Gazul são indicadores e reflexo da sua inserçãono plano musical vigente durante a época em estu-do. Numa perspectiva mais integradora das práticasinstrumentais, este património artístico poderia edeveria suscitar um olhar mais atento no quadroactual do ensino e da historiografia do repertório paraflauta.

Numa mesma linha estética, e apesar de nãofazerem parte dos programas oficiais do Conserva-tório, foram localizados os Doze Estudos para Flau-ta de José Francisco Arroio. Na primeira página podeler-se: DOZE ESTUDOS / PARA / FLAUTA / Com-postos / E / DEDICADOS / como pequenotestimunho d’amizade / consideração, e respeito, aoEll.mo Senhor / I. PARADO, / Ensigne Professor eTocador / D’ESTE INSTRUMENTO; / POR / J. F.ARROIO / Todos os exemplares que não tiveremrubrica do seu Autor, / eram havidos como furtados/ A. S. de Castro Lith – Lxª Lith de J. S. Lence.

José Arroio nasceu em Espanha a 14 de Ja-neiro de 1818 e veio para Portugal muito novo, maispropriamente para o Porto. Seguindo os passos deseu pai, começou por aprender a tocar clarinete numdos regimentos militares da cidade, ganhando famade bom instrumentista, o que lhe permitiu, mais tar-de, ocupar o lugar de primeiro clarinete na Orquestrado Teatro Lírico de S. João do Porto. Segundo JoãoSaguer (1940, p. 28) também estudou flauta comJosé Maria Ribas na cidade do Porto; não obstante,a sua carreira é reconhecida enquanto compositor.É de realçar uma relação saudável, ao nível profissi-onal, entre os grandes flautistas da cidade do Porto,assim como se verificou entre João Parado, JoséMaria Ribas e José Arroio, mesmo não tendo esteúltimo seguido um percurso de flautista.

Quanto à data em que foram escritos estesestudos não existe nenhum dado em concreto; noentanto, um pormenor de importante relevo surge naprimeira página. Arroio dedicou esta obra ao flautistaJoão Parado, mestre de outros grandes flautistas,tais como José Maria Ribas (1796-1861) e HypolitoMedina Ribas (1825-1883). Através dos documentosdisponíveis sabemos que Parado faleceu em 1842,e assim, é bem possível que Arroio, por ocasião damorte do seu amigo, tenha dedicado esta obra à suamemória, como está mencionado na primeira página.

O conjunto dos doze estudos são, na suageneralidade, um bom desafio para o flautista; o grau

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de dificuldade não é gradual ao longo das peças,mas sim constante. Resumidamente, estes estudosapresentam todo um leque de características seme-lhantes em relação às linhas gerais que dominam aescrita de Parado nos seus três estudos. É naturalque a obra de Parado tenha influenciado fortementea escrita flautista de Arroio.

Para além de todos os aspectos járeferenciados ao nível da escrita na obra de Parado,existe apenas uma diferença entre estas duascolecções. Enquanto que Parado engloba num sóestudo todo um conjunto de objectivos técnicos aatingir pelo flautista, os doze estudos de Arroio, pelofacto de serem em maior número, normalmente pro-curam explorar e focalizar individualmente determi-nado aspecto técnico e interpretativo.

Nesta perspectiva destaca-se, por exemplo,o Estudo no 4, que desde o primeiro ao último com-passo, partindo da tercina, trabalha a articulaçãousando a primeira nota articulada e as duas seguin-tes ligadas. Nesta mesma linha, o Estudo no 5 exer-cita os mesmos princípios técnicos, recorrendo noentanto, ao grupo de quatro semicolcheias em que aprimeira é articulada e as restantes notas são liga-das. Ainda com base nos mesmos objectivos técni-cos interpretativos, Arroio explora diferentes articu-lações e combinações no Estudo no 6, em que sur-gem grupos de seis semicolcheias ligadas 2+2+2do primeiro ao último compasso. Apenas como últi-mo exemplo, o Estudo no 10 é nitidamente um traba-lho ao nível das oitavas ascendentes, no qual, desdeo primeiro ao último compasso, é pedido ao flautistaum exercício de flexibilidade técnica que permitaexecutar oitavas ligadas, tendo sempre como pontode partida a nota grave.

Arroio comprova conhecer bem as capacida-des e características da flauta. O facto de ter estu-dado o instrumento com grandes mestres da flautae, posteriormente, o contacto privilegiado com seuirmão e flautista João Emílio Arroio (1831-1896)4 con-tribuíram para uma sensibilidade estética e técnica,que fazem hoje destes estudos uma obra capaz deproporcionar e conciliar objectivos pedagógicos, deacordo com as exigências estipuladas ao nível dosprogramas de flauta no ensino artístico.

No âmbito do ensino da flauta em Portugal,no período compreendido entre 1750 e 1850, o pri-

meiro método para o instrumento editado em portu-guês merece um espaço de reflexão no âmbito dopresente artigo, apesar de todos os dados documen-tais disponibilizados apontarem para o seu apareci-mento no meio musical nacional apenas na segun-da metade do século XIX.

O Methodo Elementar de Flauta Contendo osPrincipios Rudimentares de Musica e ObservaçõesIndispensaveis aos Jovens Flautistas, com Gravu-ras Intercaladas, Demonstrando as Flautas Commume Moderna e as Escalas Respectivas Coordenadopor Cezar A. P. Das Neves,5 como se indica na pri-meira página é uma segunda edição da casa CustodioCardoso Pereira – Fornecedor de InstrumentosMusicos para o Exercito, Fabrica a Vapor e Deposi-to de Instrumentos para Banda e Orquestra. Como éconhecido, este estabelecimento foi fundado no Portono ano de 1861, facto pelo que só poderia ter ocorri-do a partir da década de 1860 a sua primeira edição.

No que diz respeito ao seu teor, numa primei-ra parte incide nos Principios Elementares da Musica,referindo-se apenas à flauta quanto à sua extensão;dó¹ ao sí³. Neste sentido, o autor faz a seguinte cha-mada de atenção: “As Flautas que tem menos deoito chaves não dão a primeira nota Dó, principiamem Ré.” (Neves, [s. d.], p. 2, grifo do autor). O quesignifica que mesmo na segunda metade de oito-centos, apesar das flautas maioritariamentecomercializadas incluírem as chaves de dó e dó# nasecção do pé, a procura e venda de flautas com ape-nas uma chave no pé (ré#) é ainda significativa. Ra-zões de ordem económica e os objectivos do com-prador (que muitas vezes seria amador) fizeram, pro-vavelmente, com que a procura e comercializaçãodeste tipo de instrumento fosse visível durante todoo século XIX e mesmo ainda no século XX.

Cezar Augusto Pereira das Neves (1841-1920)passa a focalizar exclusivamente aspectos relacio-nados com a flauta a partir do ponto Observações, oqual se encontra organizado por diferentes itens.Primeiro descreve as diferentes secções que consti-tuem o instrumento, assim como alguns dos seusmecanismos:

Da Flauta em Geral e do seu Mechanismo – A Flautacompõem-se de quatro peças que se armam edesarmam quando é necessario. A primeira peça, oucabeça é a que tem o buraco da embocadura, estapeça é dividida geralmente em duas, sendo a segunda

4 Em 1868, fica como 2a Flauta da Orquestra do Teatro Nacional de S. Carlos, onde mais tarde substitui António José Croner (1826-1888), quando este fica doente. Em 1892, ganha o concurso público para professor de flauta do Conservatório Nacional. De acordocom Ernesto Vieira, João Emílio Arroio terá sido o primeiro flautista a usar uma flauta de sistema-Bohem em Portugal.5 Para além desta obra, Neves também coordenou um Methodo Elementar de Violão e um Methodo Elementar para Guitarra.

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mais pequena, chamada bomba e que serve paragraduar a afinação provisoriamente. A segunda peçaou collo superior contém os tres buracos que pertencemà mão esquerda e pode ter as chaves de Sol#, Dó e Sibe ainda mais duas chaves de trilos. A terceira peça oucollo inferior contém os tres buracos que pertence àmão direita e pode ter uma ou duas chaves para o Fá eainda uma chave para o Fá#. A quarta peça patilha oucorunha contém uma chave e pode ter mais duas paraDó e Dó# graves. Estas quatro peças são guarnecidasde marfim ou de metal. Dá-se o nome de chapeu a umapequena peça que tapa a parte superior da Flauta. Aparte superior da primeira peça da flauta é tapadainteriormente por uma rolha que deve de ser de madeiraguarnecida de cortiça, esta rolha está preza por umparafuzo de graduação ao chapeu que se anda oudesanda para por a Flauta n’uma afinação invariável.(Neves, [s. d.], p. 5).

Ainda neste primeiro ponto, Neves ([s. d.], p.5) refere-se às flautas da seguinte forma: “O numerode chaves que as flautas comuns teem não sãomenos de uma nem mais de dez.” De facto, umaflauta de múltiplas chaves poderia conter mais dedez chaves, neste período; no entanto, o ponto devista do autor parece querer classificar esse tipo deinstrumentos como pouco comuns e menos signifi-cativo no mercado interno.

No item seguinte, Neves ([s. d.], p. 5) abordaa questão do “Aperfeiçoamento da Flauta –Actualmente tem-se procurado aperfeçoar as Flau-tas resultando d’essas tentativas apparecerem a Flau-ta Cylindrica e a Flauta Bohem.” Um dos aspectosimportantes que se pode retirar deste método é ocuidado em disponibilizar todo um conjunto de infor-mações, tanto para os flautistas que utilizavam flau-tas traversas como para aqueles que já tivessem tidooportunidade para adquirir as novas flautas de siste-ma-Boehm. Porém, após uma breve abordagem ge-nérica da flauta Boehm, Neves centra as suas indi-cações e exercícios técnicos das páginas seguin-tes em exclusivo para as flautas traversas com 1 até8 chaves.

É de realçar que a aceitação da flauta-Boehmna Europa provocou reacções diferentes por partedos flautistas e dos construtores. Enquanto que emFrança a casa Godfroy & Lot assegurava os seusdireitos de produção e comercialização,6 em Portu-gal, não só os construtores nacionais não acompa-nharam este movimento, como os flautistas criaraminicialmente alguma resistência. Por conseguinte,não surpreende o facto de Neves articular o seu dis-curso inicial entre os dois tipos de flautas e de se-

guida focalizar os seus exercícios apenas nas flau-tas pré-Boehm. Em relação à flauta, o seu ponto devista reflecte um potencial mercado interno que, ape-sar de contactar gradualmente com um número mai-or de flautas sistema-Boehm, é ainda dominado, naentrada da segunda metade do século XIX, pela ven-da e comercialização das flautas pré-Boehm.

Depois de uma primeira parte baseada nosaspectos mais teóricos, Neves passa a apresentaruma série de Exercicios para a Graduação do So-pro. Por último, conciliando uma linguagem musicalde pendor romântica com a sua reivindicação nacio-nalista, Neves propõe trabalhar todo um conjunto deaspectos, como por exemplo a articulação, a orna-mentação, a frase e suas dinâmicas, partindo depequenas melodias populares7 (O S. João, Cançãodo Marujo e o Himno Nacional D. Pedro IV) e deexcertos das óperas de Rossini, Donizetti e Verdi.

O crescente interesse pela historiografia mu-sical portuguesa de oitocentos tem progressivamen-te despertado o interesse por parte dos musicólogos,em face dos processos já desenvolvidos em grandeescala no século anterior. Na medida em que se re-únem cada vez mais conteúdos científicos em tornoda vida cultural portuguesa do século XIX, torna-secada vez mais evidente que a produtividade musicaldesempenhou um papel determinante no seio dasociedade, servindo de meio de difusão de ideias ede debate político, em face das dificuldades de umpaís marcado geograficamente pelo seu relativo iso-lamento europeu.

Como comenta Lopes-Graça (1989, p. 65):

Apesar de tão sistematicamente denegridopelo faccionismo político de um sector da mentali-dade portuguesa hodierna, o nosso século XIX musi-cal é, contudo, um dos mais activos e importantes,se não o mais activo e o mais importante, dos perío-dos da história da música portuguesa. Se a suaactividade não é a mais intensa, é, sem dúvida algu-ma, a mais fecunda, a de mais fortes e proveitosasconsequências.

Para concluir, verifica-se que o gosto pelamúsica de câmara e pelo concerto, nos meios es-clarecidos dos verdadeiros “conhecedores e amado-res” destes géneros, viria a marcar todo o desenvol-vimento da música portuguesa de oitocentos. Oshistoriadores são unânimes em destacar o pianoforte

6 Cf. Powell (2002, p. 183).7 “César das Neves foi um grande impulsionador da divulgação e recolha da música popular portuguesa, tendo resultado destetrabalho o Cancioneiro de Músicas Populares em 3 volumes” (Borba; Lopes-Graça, 1996, p. 292-293).

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Referências

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Recebido em 26/06/2007

Aprovado em 15/07/2007

e a guitarra como elementos representativos destacorrente. No entanto, conciliando as fontes disponí-veis com todas as especificidades e objectivos tra-çados no presente artigo, verifica-se que, com o de-correr do século XIX, a flauta traversa também viria a

revelar-se neste contexto com a mesma importân-cia como os referidos instrumentos, fruto da projecçãoalcançada essencialmente no plano da indústria ins-trumental, no meio sociocultural, na actividade artís-tico-musical e no ensino.

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Grupo de Pesquisa
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Mapa e síntese do processo depesquisa em performance e em

pedagogia da performancemusical

A atividade de pesquisa tem se tornado cadavez mais relevante para os profissionais da músicaque lidam com a performance e com a pedagogia daperformance musical. Em outros países, vêem-senúcleos bem estruturados de pesquisa sobre temasreferentes a estas subáreas da música, tais comoos processos de avaliação e de planejamento da prá-tica instrumental. No Brasil, vê-se uma preocupaçãocrescente com os tópicos da performance e da pe-dagogia da performance musical, o que pode sercomprovado pelo surgimento de publicações referen-tes a seus diversos aspectos,1 bem como o de li-

Patrícia Furst SantiagoUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

[email protected]

Resumo. O artigo revela uma preocupação com a formação de núcleos de conhecimento viapesquisa nas subáreas da performance e da pedagogia da performance musical. Com o intuito decontribuir para tal, o artigo apresenta uma visão global do processo de pesquisa em forma de mapae uma síntese do estudo de Ericsson, Krampe e Tesch-Römer (1993), relevante para as subáreas daperformance e da pedagogia da performance musical.

Palavras-chave: metodologia de pesquisa, performance musical, pedagogia da performance musical

Abstract. This article reveals a concern with the development of bodies of knowledge through theconduction of research in the areas of musical performance and musical performance pedagogy. Tofacilitate the elaboration and the conduction of research projects in these areas, the article offers anoverview of the research process and a synthesis of a relevant study on instrumental practice,conducted by Ericsson, Krampe and Tesch-Römer (1993).

Keywords: research methodology, musical performance, musical performance pedagogy

nhas de pesquisa nessas subáreas. Porém, tal pes-quisa é emergente. Como Lima (2001) sugere emseu texto Pesquisa e Performance, os estudos de-senvolvidos por músicos instrumentistas no Brasilnão são numérica e qualitativamente significativospara compor um corpo de produção de conhecimen-to sistematizado na performance. Assim, “introduzira figura do instrumentista pesquisador no cenáriocientífico é de real importância, vez que, esse profis-sional poderá, no futuro, conciliar no trabalho de pes-quisa, aspectos reflexivos do fenômeno musical coma performance propriamente dita” (Lima, 2001, p. 532).

1 Veja, por exemplo, as publicações de Ray (2005) e Lima (2006).

SANTIAGO, Patrícia Furst. Mapa e síntese do processo de pesquisa em performance e em pedagogia da performance musical.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 17-27, set. 2007.

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A interdisciplinaridade é inerente à pesquisa emperformance musical. Segundo Lima (2001, p. 537),

[…] o pesquisador trabalha com linhas de pesquisaque estudam não só a performance, mas também osaspectos históricos e teóricos da performance musical,os processos de criação, técnicas e estilos decomposição, relacionando-se com a musicologia,educação musical, sociologia, estética e tecnologia.

Além de considerar a “performance pura” comouma categoria de pesquisa, Borém (2005, p. 15)define sua interdisciplinaridade com outras subáreasda música (a análise musical, a musicologia, a edu-cação musical, a composição, a música popular bra-sileira), bem como sua interface com outras áreasde conhecimento, tais como a medicina/educaçãofísica e a sociologia/filosofia. Porém, para o melhordesenvolvimento de pesquisa nas subáreas da perfor-mance e da pedagogia da performance, há uma ques-tão a ser considerada. Uma vez que estas subáreasdetêm tantos aspectos em comum e por seremcomplementares, elas tendem a se confundir, espe-cialmente na condução de pesquisa. A mescla deconteúdos e tópicos existentes entre elas torna-seinevitável, como esclarecem Glaser e Fonterrada(2006, p. 92):

[Por] não existir uma separação acentuada entre aatuação como instrumentista e como professor deinstrumento na vida do músico profissional […] emboratocar e lecionar sejam atividades completamente dife-rentes, podem ser (e são) exercidas pelo mesmoprofissional, o que é uma peculiaridade da área musicale permite afirmar que todo instrumentista é poten-cialmente um professor de seu instrumento.

Há, ainda, interfaces entre a performance, apedagogia da performance e a educação musical, oque torna o cenário de pesquisa nessas subáreasainda mais confuso. Por exemplo, estudos referen-tes à pedagogia da performance contêm temas quese encaixam ora nesta, ora naquela categoria. Seriaconveniente, então, definir melhor o que é concer-nente a cada uma das subáreas, de forma a carac-terizar melhor suas interfaces para que os músicosinstrumentistas, estudantes de pesquisa, saibamexatamente o que estão fazendo, ao elaborar umprocesso de investigação. Tal delimitação poderiafavorecer a formação de linhas de pesquisa nas quaistópicos específicos de uma subárea, por exemplo,da pedagogia da performance – em sua interface coma educação musical ou com a performance, ou comambas – possam ser investigadas de forma siste-mática, compondo núcleos de conhecimento igual-mente sistematizados. Em última análise, sugere-se aqui a necessidade de aprofundar essa discus-são e delimitar as particularidades da performance eda pedagogia da performance. Do mesmo modo,sugere-se também uma investigação sobre as dife-

renças que as compõem e sobre os conhecimentosnecessários para a atuação profissional nessassubáreas. Os conteúdos específicos de cada sub-área e as variáveis que incidem sobre esses conteú-dos, uma vez caracterizados, em muito poderiamajudar a condução de pesquisa. Por hora, no entan-to, este artigo deve preocupar-se em discutir o pro-cesso de pesquisa, que é seu objetivo imediato, dei-xando para o futuro uma discussão detalhada sobreesse assunto.

Para o desenvolvimento de pesquisa emperformance e pedagogia da performance, dois as-pectos poderiam ser considerados no presente arti-go. O primeiro aspecto refere-se às habilidades ne-cessárias ao músico pesquisador. Para o instrumen-tista e para o professor de instrumento, a prepara-ção de um projeto e sua subseqüente condução podese tornar um grande desafio, já que é necessáriodiferenciar projetos pedagógicos e projetos artísti-cos dos projetos de pesquisa. Para tal, é necessá-rio que se adquira novas habilidades que possibili-tem a tradução da experiência pedagógico-musicalpara o contexto acadêmico-científico. Essa transi-ção requer uma atitude científica por parte do indiví-duo. O incentivo a tal atitude não é, necessariamen-te, incluída na formação de instrumentistas. Nessecaso, é necessário endossar a preocupação depedagogos que questionam a postura ultra especi-alizada do instrumentista e do professor de instru-mento. Por exemplo, Borém, (2006, p. 46) advoga afavor da formação de instrumentistas e pedagogosque possuam também habilidades de pesquisador,perfil multifacetado que tem sido cada vez mais exi-gido pelas universidades brasileiras. Também Fernan-des (2006, p. 14) demonstra preocupação com a for-mação do músico pesquisador, uma vez que paraele, “os programas de pós-graduação em música/educação musical devem buscar uma maior articu-lação entre a formação de professores de música eárea de pesquisa, pois é preparando um bom pes-quisador que se prepara um bom professor”.

Um segundo aspecto a ser considerado parao desenvolvimento de pesquisa em performance epedagogia da performance, refere-se à aquisição deconhecimento sobre metodologia de pesquisa ne-cessária ao músico que pretende conduzi-la. Lima(2001, p. 531) expressa bem essa preocupação:

A pesquisa científica que envolve a performance, denatureza altamente interdisciplinar, na maioria dasvezes, pelo fato de não seguir uma normalizaçãometodológica bem traçada, vem atuandodesordenadamente na elaboração de conhecimentosmusicais, provocando reflexos desastrosos naavaliação e fiscalização de sua produção.

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O presente artigo pretende justamente contri-buir para facilitar a transição do papel do instru-mentista pedagogo para o de pesquisador. O materi-al aqui contido é especialmente endereçado paraaqueles estudantes de pesquisa em música, que vi-sam programas de pós-graduação e que precisamelaborar projetos de pesquisa. A motivação para aprodução do artigo reside na constatação de quemuitos desses estudantes têm dificuldade de elabo-rar projetos, talvez pela falta de uma visão global doprocesso de pesquisa. Longe de propor um conteú-do original, a exposição sobre metodologia de pes-quisa do artigo se baseia nos textos oferecidos porMiles e Huberman (1994), Berry (1994), Hart (1998),Laville e Dionne (1999) e Robson (2002). O artigoapresenta o conceito de pesquisa, as habilidadesnecessárias ao músico pesquisador, um mapa doprocesso de pesquisa2 e, finalmente, uma síntese depesquisa relevante, dirigida às subáreas da performancee da pedagogia da performance musical.

Conceito de pesquisa e habilidadesnecessárias ao músico pesquisador

A atividade de pesquisa não corresponde àatividade musical ou pedagógica em si; torna-se,então, essencial que o músico pesquisador saibadistinguir as características de ambas. Os tópicosdiscutidos pela performance referem-se principalmen-te aos problemas da performance em si – por exem-plo, interpretação e análise musical; aquisição dehabilidades específicas dos instrumentistas; dificul-dades motoras e problemas posturais de instrumen-tistas. Os tópicos característicos da pedagogia daperformance revelam as preocupações dos profes-sores de instrumento no que diz respeito aos pro-cessos de ensino-aprendizado instrumental, aos pro-blemas que permeiam a formação e profissiona-lização do músico instrumentista, bem como à pro-blemática inserida na performance em si.

A atividade de pesquisa indica novos cami-nhos para a compreensão e eventual solução de pro-blemas específicos, contribuindo, assim, para o pre-enchimento de lacunas e ampliação de conhecimentona área investigada (Laville; Dionne, 1999, p. 85). Abusca por um problema de pesquisa vai de encontroàquilo de que dispomos – conhecimento, experiên-cia, valores, conceitos, teorias e motivação (Laville;Dionne, 1999, p. 89). O pesquisador tem uma per-cepção intuitiva sobre a resolução de um problema;porém, para lidar com tal problema dentro do con-texto de pesquisa, adota uma atitude metódica, sis-

temática, racional, crítica, cética, ética e objetiva(Robson, 2002, p. 18).

O músico pesquisador tenderá a investigartópicos que o motivam e que estão inseridos em suaexperiência musical e em sua produção artística,cultural ou pedagógica. Em síntese, os textos depesquisa consultados para a elaboração deste arti-go sugerem que, para conduzir pesquisa é essenci-al que o pesquisador esteja ciente de estudos rele-vantes realizados sobre o tópico, das críticas feitasa esses estudos, dos pontos-chave discutidos naárea de interesse e das principais teorias utilizadaspara se discutir o tópico em questão. É ainda es-sencial adquirir habilidades específicas, tais como:organizar o tempo disponível para a realização dapesquisa; manusear, sintetizar, sistematizar e revi-sar informação; integrar conhecimento de diferentesáreas; dialogar, debater, questionar e argumentar;analisar e criticar argumentos propostos por outros;desenvolver idéias próprias e apresentá-las de formaclara e organizada; estabelecer conexões interdis-ciplinares e conexões entre idéias, teorias e experi-ências; e observar um fenômeno através de diferen-tes prismas. Finalmente, é necessário desenvolvera comunicação oral e uma escrita acurada. O pes-quisador precisará ainda munir-se de flexibilidade ehumildade associados à assertividade e capacidadede diálogo, de forma que possa defender suas pró-prias idéias levando em conta opiniões divergentessobre elas. E, além de tudo, desenvolver a capaci-dade de usar a imaginação e a intuição durante acondução da pesquisa, capacidade essa que deveser aliada à habilidade de construir conhecimentode forma racional, por meios científicos.

A aquisição de conhecimento técnico sobrefundamentos metodológicos de pesquisa também ésine qua non para se lidar com a pesquisa em si.Sob o ponto de vista empírico, o músico pesquisa-dor precisa conhecer e saber aplicar métodos depesquisa. Sob o ponto de vista teórico, é necessáriodesenvolver a capacidade de compreender e inter-pretar o fenômeno estudado; integrar teoria e funda-mentos metodológicos de pesquisa; aplicar uma te-oria conhecida a um fenômeno; abstrair elementosde diferentes teorias para formar uma nova funda-mentação teórica; reconfigurar uma teoria e integrardiferentes teorias para interpretar o fenômeno estu-dado; avaliar e criticar fenômenos, métodos ou teori-as existentes; reconhecer as vantagens e limites dosprocedimentos científicos adotados; e verificar deforma rigorosa os fundamentos adotados em suapesquisa, a fim de validá-la.

2 O mapa apresentado no anexo deste artigo foi elaborado pela autora.

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O processo de pesquisa

O processo de pesquisa geralmente se iniciacom a escolha do tópico a ser investigado e com odesenvolvimento de um projeto de pesquisa referen-te a esse tópico. O projeto de pesquisa é parte inte-grante da mesma (Robson, 2002, p. 529; Hart, 1998,p. 207), sendo reformulado e refinado ao longo doprocesso que culmina no relatório final da pesquisa.Uma boa proposta deverá mostrar, de forma clara,direta e focalizada, como o pesquisador realizará seuestudo e o que pretende alcançar com ele (Robson,2002, p. 527-528; Hart, 1998, p. 207).

Uma proposta de pesquisa se inicia com otítulo, que descreve o tópico específico a ser investi-gado, ou seja, revela “o que” o pesquisador pretendeabordar em seu estudo. O título poderá também in-dicar a metodologia de pesquisa adotada (Berry,1994, p. 41) ou sugerir algo sobre a estrutura internado estudo. Na introdução, apresenta-se a pesquisaao leitor; uma breve descrição do problema a serinvestigado é oferecida, apontando as lacunas noconhecimento e esclarecendo os principais propósi-tos e potenciais contribuições da pesquisa (Berry,1994, p. 40). As perguntas de pesquisa poderão serexpostas na introdução ou em seções subseqüen-tes. Tais perguntas têm como função revelar e espe-cificar aquilo que o pesquisador quer compreenderou descobrir; poderão também ajudá-lo a explicitarsua posição teórica e a especificar as estratégias etécnicas de coleta de dados, uma vez que delimitamo domínio empírico que o pesquisador deseja explo-rar. Finalmente, a formulação de perguntas poderáajudar o pesquisador a traduzir sua experiência einteresses musicais em um tópico de pesquisa viá-vel de ser realizada.

A proposta de pesquisa segue com a justifi-cativa, definindo o problema que motiva sua realiza-ção e argumentando a favor de sua condução. Justi-ficar a relevância da pesquisa e de suas possíveiscontribuições para a ampliação de conhecimento naárea investigada poderá convencer o leitor da impor-tância da realização da mesma (Robson, 2002, p.529). Os objetivos gerais e específicos são apre-sentados a seguir, indicando o que se pretende al-cançar através da pesquisa. Assim, as três pergun-tas iniciais, apresentadas no mapa do processo depesquisa – “o que?”, “por quê?” e “para que?” – ori-entam a elaboração inicial de um projeto (ver Apên-dice – Processo de pesquisa – Mapa parte 1). Ao

responder com clareza essas perguntas, o músicopesquisador poderá definir sua metodologia de pes-quisa, ou seja, escolher os métodos adequados paraa condução do estudo sob o ponto de vista teórico eempírico.

Como Robson (2002, p. 529) especifica, ametodologia de pesquisa refere-se a um plano detrabalho que revela “como” o pesquisador irá realizarsua investigação. Como indicado no mapa do pro-cesso de pesquisa (ver Apêndice – Processo de pes-quisa – Mapa parte 2), dois aspectos são tipicamen-te desenvolvidos em pesquisa – o teórico e oempírico. A investigação teórica é tipicamente inicia-da pela revisão de literatura, que envolve a busca dedocumentos (publicados e não publicados3) que li-dam com o tópico de interesse e que contém infor-mações, idéias e evidências escritas sobre esse tó-pico. Eventualmente, será necessário selecionar ostextos a serem lidos, levando-se em conta sua rele-vância para a pesquisa e para a área investigada. Aodelimitar o material a ser consultado, o músico pes-quisador se familiarizará com a área de seu interes-se e poderá situar seu próprio estudo no contexto deconhecimento produzido até então por essa área.

A revisão de literatura envolve a habilidade dediálogo com os autores lidos, a seleção de idéiasrelevantes e a sistematização da informação obtida,essencial para sua realização da pesquisa. Para tal,é necessário ler os textos de forma crítica, compilá-los de forma acurada e consistente e sumarizar asidéias-chave neles apresentadas.4 Conseqüentemen-te, o músico pesquisador poderá desenvolver e am-pliar suas próprias idéias, argumentos e elaborar afundamentação conceitual e teórica adequada ao seutópico de pesquisa. O desenvolvimento de tal funda-mentação possibilitará ao músico pesquisador esta-belecer conexões entre os dados empíricoscoletados e o fenômeno estudado, interpretar o sig-nificado desses dados dentro do contexto de suapesquisa e verificar sua veracidade e validade.

As bases teóricas que irão orientar um estu-do poderão ser definidas de antemão, o que é típicoem pesquisa que pretende comprovar a validade deteorias preexistentes. Uma base teórica prévia po-derá guiar a escolha das técnicas de coleta e deanálise de dados, ajudando o desenvolvimento doaspecto empírico do estudo. Referências teóricaspreestabelecidas poderão ainda ajudar na definiçãodas variáveis a serem observados, nos possíveis re-

3 Livros, artigos em periódicos, ensaios, monografias e teses; textos produzidos por conferências, seminários, palestras, aulas eencontros; cartas e documentos; documentos na Internet.4 Para detalhes sobre revisão de literatura, veja Hart (1998), capítulo 1.

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lacionamentos entre essas variáveis, na presençade informação excessiva e nas possíveis contradi-ções existentes no processo de pesquisa (Miles;Huberman, 1994, p. 18-22). Por outro lado, em mui-tos estudos, especialmente os de natureza qualita-tiva, é comum que a construção de uma estruturaconceitual e teórica venha a emergir paralelamenteao processo de coleta de dados ou em decorrênciadeste. No entanto, mesmo em estudos indutivos porexcelência, o pesquisador poderá se orientar por umaestrutura conceitual e teórica estabelecidas no iní-cio do estudo (Miles; Huberman, 1994, p. 22). É im-portante ressaltar que a elaboração de fundamenta-ção teórica envolve os valores éticos, humanos e soci-ais, intrínsecos ao pesquisador; tais valores irão in-fluenciar sua forma de perceber e abordar o problemade pesquisa e a escolha de teorias que possam fun-damentar o estudo (Laville; Dionne, 1999, p. 94-95).

O outro lado concernente à metodologia depesquisa lida com o aspecto empírico, ou seja, coma escolha de estratégias e de técnicas de coleta dedados através das quais o músico pesquisador po-derá obter dados que sirvam aos propósitos de suapesquisa, levando em conta questões éticas, no quediz respeito ao envolvimento de indivíduos na pes-quisa.5 As abordagens de pesquisa estabelecem ocenário no qual a investigação empírica seráconduzida. De acordo com Robson (2002, p. 81-82),duas são as tradições de pesquisa que estão asso-ciadas às abordagens mais tipicamente usadas porpesquisadores: os chamados “delineamentos fixos”têm seu antecedente nas tradições rotuladas comopositivistas e pós-positivistas, na ciência natural, naciência hipotético-dedutiva e na pesquisa quantitati-va. Os modelos experimentais são estratégias tipi-camente usadas em pesquisa quantitativa. Por ou-tro lado, as estratégias que geram “delineamentosflexíveis” são comuns em linhas de pesquisainterpretativa, etnográfica ou qualitativa (Robson,2002, p. 46). As estratégias de pesquisa tipicamen-te usadas em ambos os delineamentos são rotasque o pesquisador poderá tomar. Apesar de distin-tas, quando apropriado, essas duas tendências po-derão ser integradas no processo de pesquisa, pos-sibilitando, ao pesquisador, colher dados de ambasas naturezas (dados quantitativos e qualitativos).Neste caso, as diferenças entre tradições de pes-quisa quantitativa e qualitativa deixam de ter caráterepistemológico para tornar-se apenas uma diferen-ça técnica (Robson, 2002, p. 46).

Embora não gerem coleta de dados, as abor-dagens de pesquisa ajudam o músico pesquisador

a definir o ambiente no qual os dados devem sercolhidos e o ajudam a moldar suas próprias atitu-des, no que diz respeito à condução de sua pesqui-sa. Por exemplo, a pesquisa etnográfica foca cená-rios socioculturais específicos e possibilita sua des-crição detalhada. O etnógrafo tende a se tornar par-te do contexto cultural estudado, participando deatividades e de práticas culturais vigentes naquelecontexto. Um estudo etnográfico tende à flexibilida-de; o pesquisador se adapta ao contexto do estudo,e revê as técnicas de coleta de dados à medida queo estudo evolui. Como contra-exemplo temos osexperimentos, nos quais há elaboração prévia demodelos experimentais a serem seguidos pelos pes-quisadores. Estes buscam definir e controlar variá-veis, conduzindo o estudo de forma rigorosa, comoplanejado a priori.

As técnicas de coleta de dados incluem aque-les procedimentos que possibilitam a coleta siste-mática de informação de natureza empírica. Técni-cas típicas de coleta de dados são: entrevista, ques-tionário, processos de observação, grupo focal, ma-teriais audiovisuais, dentre outros. A entrevista é ummétodo freqüentemente usado em pesquisa qualita-tiva, que possibilita ao pesquisador dialogar comoutros indivíduos e a obter informações diretas so-bre o assunto investigado. Questionários, por outrolado, podem servir muito bem aos propósitos quanti-tativos dos levantamentos, que buscam obter infor-mações de grande número de pessoas pertencen-tes a um dado contexto sociocultural, informaçõesessas passíveis de generalização. Os processos deobservação referem-se ao ato de observar, tomarnotas e documentar fatos e eventos. O grupo focalpossibilita ao pesquisador contato direto com osparticipantes do grupo. Enquanto os participantesdiscutem a questão proposta pela pesquisa, o pes-quisador geralmente assume o papel de moderador.Os materiais audiovisuais são produzidos através dedocumentação em áudio ou em vídeo, o que gera aprodução de fitas cassete, CDs, vídeos e DVDs, quepodem servir aos propósitos do estudo desenvolvido.

As diversas abordagens de pesquisa e técni-cas de coleta de dados poderão ser apropriadamen-te escolhidas pelo pesquisador quando o foco de suapesquisa estiver bem definido. Em outras palavras,torna-se difícil decidir “como” a pesquisa será reali-zada sem uma clara definição do objeto de estudo(“o que”), dos seus objetivos (“para que”) e da suajustificativa (“por que”). Interessantemente, o foco dealguns estudos pode ser mais facilmente delimitadoao se definir sua metodologia de pesquisa. Ou seja,

5 Veja discussão sobre ética em pesquisa no texto de Azevedo et al. (2005).

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muitas vezes o “como” pode nos ajudar a compreen-der “o que” queremos estudar.

Tendo estruturado sua base teórica e recolhi-do dados empíricos, o músico pesquisador irá sedeparar com a próxima etapa da pesquisa: a análisede dados (ver Apêndice – Processo de pesquisa –Mapa parte 3). A análise de dados envolve técnicasespecíficas, apropriadas à análise de materialempírico de natureza qualitativa e/ou quantitativa.Nessa fase do processo de pesquisa, o músico pes-quisador precisará contar com sua máxima capaci-dade de reflexão, abstração, organização e síntese,já que o objetivo da análise de dados é compreendero fenômeno estudado, explicá-lo e interpretá-lo à luzde uma fundamentação teórica e chegar a resulta-dos e conclusões finais, passíveis de verificação.Enfim, através da análise de dados, busca-se confe-rir significado aos dados empíricos obtidos pela pes-quisa. Dessa forma, o músico pesquisador poderásistematizar e gerar novas idéias, perspectivas e for-mular hipóteses sobre do fenômeno estudado e fi-nalmente apresentar as contribuições da pesquisapara a área de conhecimento.

Síntese de pesquisa em performance musical

Com o intuito de exemplificar a condução depesquisa que tem implicações para a performance epara a pedagogia da performance musical, esta se-ção oferece uma síntese da pesquisa intitulada Afunção do estudo deliberado na aquisição daperformance de nível excepcional, realizada porEricsson, Krampe e Tesch-Römer (1993). Esse es-tudo é de extrema relevância para ambas assubáreas, uma vez que produziu material teórico eempírico para se discutir o assunto em questão, fa-vorecendo a condução de outros estudos sobre otema.6 A seguir, o estudo de Ericsson, Krampe eTesch-Römer (1993) será sintetizado, levando-se emconta todos os aspectos apresentados no mapa doprocesso de pesquisa. A terminologia específica,adotada pelos autores será discriminada no inícioda síntese do estudo.

Terminologia específica adotada napesquisa

• Prática:7 ato de praticar o instrumento; con-junto de atividades empreendidas por um indi-víduo para desenvolver suas habilidades noinstrumento e para estudar determinada obramusical.

• Prática deliberada: conjunto de atividadessistematicamente planejadas que têm comoobjetivo promover a superação de dificuldadesespecíficas do instrumentista e de produzirmelhoras efetivas em sua performance.

• Performance excepcional: performance dealto nível, apresentada por indivíduos queapresentam grande domínio do seu campoespecífico de atuação. Ericsson, Krampe eTesch-Römer (1993) adotam outros termospara categorizar esse nível de performance,tais como performance de elite e performancesuperior.

Tópico da pesquisa

A função da prática deliberada na aquisiçãode habilidades referentes à performance musical.As seguintes perguntas de pesquisa norteiam oestudo:

• A prática e a experiência musical levam àaquisição da performance excepcional? Ousão os fatores genéticos que proporcionamtal nível de performance?

Justificativas da pesquisa

• Buscar explicações científicas que jus-tifiquem a performance excepcional e propor-cionar discussões sobre os fatores que deter-minam tal performance.

• Proporcionar reflexão sobre as condiçõesideais que favorecem o aprendizado instru-mental e a aquisição da performance musicalde alto nível.

Objetivos da pesquisa

• Especificar as características da perfor-mance excepcional.

• Questionar a idéia do “talento inato” comosendo o principal responsável pela aquisiçãoda performance excepcional.

• Prover uma descrição científica do desen-volvimento do músico instrumentista, que jus-tifique a aquisição da performance excep-cional.

• Revelar os fatores determinantes para aaquisição da performance excepcional.

6 Veja referências à pesquisa sobre prática instrumental em Santiago (2006).7 O termo “prática” adotado por Ericsson, Krampe e Tesch-Römer (1993), corresponde ao que chamamos no Brasil de “estudo”individual, empreendido pelo músico instrumentista.

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• Compreender a função da prática deliberadapara a aquisição da performance excepcional.

Metodologia de pesquisa – aspecto teórico

Para compor sua fundamentação teórica, osautores revisaram literatura referente aos seguintestópicos:

• Domínios da performance de atividades, taiscomo esportes, datilografia, operação decódigo Morse, xadrez, matemática, medicinae música.

• Fatores genéticos e socioculturais quedeterminam diferenças individuais na aquisiçãodas habilidades específicas referentes adiferentes domínios de conhecimento.

• Aquisição de habilidades cognitivas nodesenvolvimento musical.

• Talento musical.

• Prática da performance musical.

A elaboração da fundamentação teórica doestudo:

• Especifica as diferenças entre aperformance “excepcional” e performance“normal”.

• Oferece explicação científica para aperformance de alto nível, alcançada pordeterminados indivíduos.

As hipóteses formuladas pela pesquisa são:

• O talento inato não pode ser o fatorpreponderante na aquisição de níveisexcepcionais de performance, uma vez quenão há estudos cientificamente válidos, quesustentem tal argumento.

• A prática deliberada, realizada de formaconstante, durante longo período da vida doindivíduo, é fator decisivo na aquisição de altosníveis de performance musical.

Metodologia de pesquisa – aspectoempírico

Dois estudos empíricos foram conduzidos, asaber: (1) estudo com violinistas; (2) estudo com pi-

anistas.

(1) Estudo com violinistas: Avaliação dosfatores que influenciam a aquisição de altosníveis de performance em um grupo de 40violinistas, com pelo menos dez anos deestudo do instrumento, em Berlim Ocidental.O estudo acessa os níveis de prática deliberadarealizada pelos 40 violinistas participantes dapesquisa, buscando: identificar as atividadesque constituem a prática deliberada daquelesviolonistas; determinar o planejamento e aduração de sua prática deliberada; comparare contrastar os níveis de prática deliberadaapresentada pelos violinistas. Os violinistasforam divididos em quatro grupos, a saber:Grupo 1: os dez melhores estudantes deviolino; Grupo 2: dez bons estudantes deviolino; Grupo 3: dez estudantes de violinorazoáveis e; Grupo 4: dez violonistasprofissionais que tocam em duas orquestrassignificativas de Berlim.

(2) Estudo com pianistas: Avaliação dosfatores que influenciam a aquisição de altosníveis de performance em um grupo de 20pianistas, sendo 12 deles estudantes avan-çados nas classes de piano solo em academiade música em Berlim (todos com pelo menos14 anos de estudo); os outros 12, pianistasamadores, estudantes em academia ou emprogramas de treinamento vocacional (entrecinco e 20 anos de estudo).

As técnicas de coleta de dados foram:

(1) Estudo com violinistas: Entrevista comtodos os violinistas. Eles forneceram infor-mações sobre: a data de início dos estudos;seus professores de música; sua participaçãoem competições; a estimativa de horas deprática por semana desde o início dos seusestudos; detalhes sobre sua prática e níveisde concentração. Os violinistas receberamuma taxonomia de atividades,8 para seremquantitativamente avaliadas por eles. Oscritérios usados para esta avaliação foram:relevância de cada atividade discriminada nataxonomia para a performance; esforçoempreendido e prazer na realização de cadaatividade.

8 A taxonomia discrimina as seguintes atividades: prática individual, prática em conjunto, tocar por prazer, ter aulas do instrumento,dar aulas, performance solo, performance em grupo, apreciação musical, teoria musical, conversas sobre a profissão, organizaçãoe preparação, tarefas caseiras, cuidado com as crianças, compras, trabalho não relacionado à música, cuidados higiênicos, sono,educação geral, trabalhos em comissões, lazer e esportes (Ericsson; Krampe; Tesch-Römer, 1993, p. 374).

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(2) Estudo com pianistas: Os pianistasconcederam entrevistas semelhantes àsrealizadas no estudo 1 (com violinistas), porémreduzidas. Os pianistas também receberama taxonomia de atividades para serem por elesavaliadas. Adicionalmente, experimentosforam realizados com os pianistas, nos quaisexercícios técnicos e passagens de obrasmusicais foram gravados e inseridos emprogramas de análise quantitativa. Nessesexperimentos, foram testadas habilidadesmotoras (velocidade e precisão) e habilidadesde interpretação musical (precisão narealização de dinâmicas) dos pianistas.

Análise de dados

As informações quantitativas obtidas dos vio-linistas (estudo 1) e dos pianistas (estudo 2) foramanalisadas estatisticamente. Essa análise possibi-litou ao estudo comparar as diferenças apresenta-das pelos instrumentistas nas diversas atividadesavaliadas.

Resultados da pesquisa

O estudo (1), com os violinistas, encontrouos seguintes resultados:

• Os violinistas de todos os quatro gruposconsideraram a prática individual como aatividade mais relevante para a sua evoluçãoinstrumental.

• Houve correspondência entre o nível dehabilidade instrumental dos violinistas e amédia de tempo delicado à prática deliberada,acumulada ao longo dos anos.

• A quantidade de prática instrumental diáriamostrou-se estável para os melhoresviolinistas.

• Os violinistas admitiram que a práticadeliberada demandasse esforço e que osperíodos dedicados ao descanso, especial-mente os cochilos, foram fundamentais parasua recuperação.

• Os melhores violinistas aplicaram parte doseu tempo livre para a realização de outrasatividades relativas à música, que não aperformance em si. Isso sugere que outrasatividades musicais compõem a aquisição dahabilidade instrumental e podem favorecer adiferenciação do nível instrumental.

Os resultados encontrados no segundoestudo, com pianistas, foram consistentes com osdo estudo com os violinistas, discriminado acima.

Conclusões da pesquisa

• As diferenças individuais, apresentadas pordiferentes instrumentistas podem serfreqüentemente explicadas por diferenças dequantidade e de acúmulo de prática deliberadaao longo de anos, supervisionada porprofessores especializados.

• Os indivíduos que iniciarem precocemente oestudo do instrumento e que logo engajaremem atividades da prática deliberada, tenderãoa alcançar melhores níveis de performance.

• Não há pesquisa que sustente a idéia popularsobre o talento inato, como sendo o fatordeterminante do alto nível de performanceapresentado por certos indivíduos. Porém,aqueles que demonstram tal talento, recebemmais atenção e suporte de outros indivíduos(pais, professores), bem como melhorescondições para a realização da práticadeliberada.

• Hipoteticamente, indivíduos talentosos sesentem motivados a praticar intensamente.Assim, pode haver uma alta correlação entretalento inato e motivação para a prática.

• Os indivíduos que apresentam performancede alto nível têm características e habilidadesdiferenciadas em relação a outros indivíduos.Tais diferenças não podem, porém, serconsideradas imutáveis. A performanceexcepcional é alcançada lenta e gradualmente,resultando do acúmulo de experiência musicale da prática deliberada.

• Pelo menos dez anos de preparação intensasão necessários para o alcance de altos níveisde performance.

• Os hábitos de estudo dos indivíduos queapresentam performances de alto nível podemrevelar informação valiosa sobre as condiçõesideais para o aprendizado instrumental.

Contribuições do estudo para aperformance e para a pedagogia daperformance

O estudo oferece as seguintes implicaçõespara o músico instrumentista:

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• Em relação ao processo de desenvolvimentomusical do indivíduo:

O acúmulo de prática deliberada é diretamenterelacionado ao nível atual de performance doindivíduo. Assim, é essencial que o professoresteja qualificado para guiar seus alunos noaprendizado e no máximo aproveitamento dasatividades realizadas no instrumento.

• Em relação aos hábitos e níveis de práticadeliberada:

Bons níveis de performance dependem deprática deliberada constante, num períodoextenso de tempo. Portanto, os períodos deprática diária dos instrumentistas devem terdurações limitadas, intercalados com períodosde repouso.

• Em relação à natureza e função dasatividades relevantes ao desenvolvimentoinstrumental:

As atividades sistematizadas e bem pla-nejadas, desenvolvidas na prática deliberada,são essenciais à performance de alto nível.Mesmo se acumulando dez anos de práticadeliberada, a manutenção de altos níveis deperformance requer a continuação desse tipode prática.

Considerações finais

Este artigo pretendeu expor uma visão globaldo processo de pesquisa, sendo particularmente en-dereçado àqueles estudantes de música que pre-tendem conduzir pesquisa nas subáreas deperformance e pedagogia da performance. Nessesentido, o artigo propôs um roteiro para o processo

de pesquisa sem, no entanto, pretender fixar tal pro-cesso, uma vez que cada projeto demanda umametodologia de pesquisa específica. Aqui foramdelineadas as etapas de pesquisa, através de ma-pas indicativos de seu processo, bem como umailustração deste processo, através da síntese doestudo de Ericsson, Krampe e Tesch-Römer (1993).

Defende-se aqui a necessidade de se consti-tuir no Brasil um corpo de pesquisa estável e núcle-os de conhecimento sistematizado em tópicos daperformance e pedagogia da performance, que pro-porcione aos músicos e aos pesquisadores maioraprofundamento nas questões concernentes a es-sas subáreas. Porém, para que o desenvolvimentode tal pesquisa seja facilitado, torna-se importantecompreender e delimitar: (1) os saberes e os con-teúdos específicos contidos em cada subárea, pas-síveis de serem pesquisados; (2) as possíveis variá-veis que incidem sobre as atividades da performancee da pedagogia da performance; e (3) as interfacesentre performance e pedagogia da performance, bemcomo as conexões existentes entre estas subárease a educação musical.

Outro aspecto discutido no artigo diz respeitoao papel a ser assumido pelo músico pesquisador esua urgência em compreender os processos envolvi-dos no fazer pesquisa. Como afirma Borém (2005,p. 14), a performance musical “ainda é a subárea damúsica mais carente de quadros teóricos de refe-rência específicos ou procedimentos metodológicosconsolidados”. Nesse caso, a conquista de habilida-des específicas e a tomada de uma atitude científi-ca, necessárias ao pesquisador, bem como a ampli-ação de seus conhecimentos sobre pesquisa preci-sa ser empreendida por músicos que queiram seengajar em pesquisa nas subáreas da performancee da pedagogia da performance musical.

Referências

AZEVEDO, Maria Cristina de C. C. et al. Ética na pesquisa: considerações para a pesquisa em educação musical. In: ENCONTRO DAASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 14., 2005, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte, Abem, 2005. p. 1-10.BERRY, Ralph. The research project: how to write it. London: Routledge. 1994.BORÉM, Fausto. Metodologia de pesquisa em performance musical no Brasil: tendências alternativas e relatos de experiência. In:RAY, Sonia (Org.). Performance musical e suas interfaces. Goiânia: Editora Vieira, 2005. p. 13-38.______. Por uma unidade e diversidade da pedagogia da performance. Revista da Abem, n. 14, p. 45-54, março 2006.ERICSSON, K. Anders, KRAMPE, Ralf; TESCH-RÖMER, Clemens. The role of deliberate practice in the acquisition of expert performance.Psychological Review, v. 100, n. 3, p. 363-406, 1993.FERNANDES, José Nunes. Pesquisa em educação musical: situação do campo nas dissertações e teses dos cursos de pós-graduação stricto sensu brasileiros. Revista da Abem, n. 15, p. 11-26, setembro 2006.GLASER, Scheillla; FONTERRADA, Marisa. Ensaio a respeito do ensino centrado no aluno: uma possibilidade de aplicação no ensinodo piano. Revista da Abem, n. 15, p. 91-99, setembro 2006.HART, Chris. Doing a literature review. London: Sage Publications, 1998.

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Apêndice

Processo de pesquisa – Mapa parte 1

LAVILLE, Chistian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia de pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre:Artes Médicas Sul; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.LIMA, Sonia Albano de. Pesquisa e performance. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPPOM, 13., 2001, Belo Horizonte. Anais… BeloHorizonte: Anppom, 2001. p. 531-538.______ (Org.). Performance & interpretação musical: uma prática interdisciplinar. São Paulo: Musa, 2006.MILES, Matthew, B.; HUBERMAN, A. Michael. Qualitative data analysis. London: Sage, 1994.RAY, Sonia (Org.). Performance musical e suas interfaces. Goiânia: Vieira, 2005.ROBSON, Colin. Real world research. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 2002.SANTIAGO, Patrícia Furst. A integração das práticas deliberadas e das práticas informais no aprendizado instrumental. PerMusi:Revista Acadêmica de Música, n. 13, p. 52-62, jan./jun. 2006.

Recebido em 15/02/2007

Aprovado em 10/06/2007

Processo de pesquisa – Mapa parte 2

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Processo de pesquisa – Mapa parte 3

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Grupo de Pesquisa
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Introdução

Apesar da importância cultural e social damúsica popular no Brasil, relativamente poucas in-vestigações têm se dedicado a compreender comomúsicos populares aprendem o seu ofício. Das pes-quisas de Prass (2004) e Pinto (2002), por exemplo,emergiu que as primeiras vivências da música popu-

Processos de aprendizagemde músicos populares:um estudo exploratório

Simone LacorteEscola de Música de Brasília

[email protected]

Afonso GalvãoUniversidade Católica de Brasília (UCB)

[email protected]

Resumo. Esta pesquisa, de caráter qualitativo exploratório, focalizou processos de aprendizagemde músicos populares. Teve como objetivos investigar experiências iniciais de aprendizagem; identificarsignificações sobre músico “bom de ouvido” e “escuta atenta e intencional”; investigar a experiênciaprofissional do músico popular e como isso se constitui no processo de aprendizagem continuada.O instrumento metodológico utilizado foi a entrevista semi-estruturada. Foram entrevistados dezmúsicos populares que atuam profissionalmente em Brasília (freelancers). Os resultados demonstramque a habilidades adquiridas por esses profissionais se baseiam, na prática, em contextosdiversificados, que incluem desde espaços não-escolares à formação acadêmica tradicional. Osfatores determinantes apresentados dizem respeito à rede social na qual os participantes estavaminseridos desde a infância e a uma forte motivação pessoal capaz de fazer superar dificuldadesiniciais de aprendizagem. Professores particulares, aulas em conservatórios e workshops tambémconstituíram importantes aspectos na aprendizagem musical desses profissionais.

Palavras-chave: aprendizagem, músico popular, expertise musical

Abstract: This qualitative exploratory research focused on the learning processes of popularmusicians. It aimed at investigating early learning experiences; identifying meanings of ‘good earmusicians’; purposive and attentive listening and pop musicians’ professional experience as a processof continuous learning. The instrument used was that of semi-structured interview. Participantswere ten freelance professional musicians who performed regularly in the city of Brasilia. Resultsshowed that they develop their performing skills in different contexts, including informal ones suchas playing with family and peers and traditional places like ordinary schools, music schools andconservatoires. Notwithstanding, it emerged that the social net to which they belonged since childhoodas well as participants’ strong self-motivation and determination were pointed out as the mostimportant aspects to achieve expertise. Initially, they learnt from siblings and peers. Later, privateteachers, conservatoires and short courses became important aspects of their learning process.

Keywords: learning, pop musicians, musical expertise

lar ocorrem, geralmente, no seio familiar, entre pa-rentes, vizinhos e amigos próximos. A aprendizagemocorre, muitas vezes, de forma natural, quase quelúdica, em meio a festas, churrascos e práticas in-formais entre amigos. Desde as primeiras etapas,os músicos mais experientes passam o seu conhe-

LACORTE, Simone; GALVÃO, Afonso. Processos de aprendizagem de músicos populares: um estudo exploratório. Revista daABEM, Porto Alegre, V. 17, 29-38, set. 2007.

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cimento para os iniciantes de maneira informal, ge-ralmente ensinando a harmonia, a letra e/ou acom-panhamento de músicas específicas, sem muitaexplicação teórica. O aprendizado se dá, inicialmente,pelo tocar juntos, falar, assistir e ouvir outros músi-cos, e, principalmente, mediante o trabalho criativofeito em conjunto. Quando não há tradição familiarde tocar instrumentos musicais, os amigos repre-sentam os primeiros “professores” e incentivadoresda prática musical. Os jovens, por exemplo, prati-cam em grupo, ensaiam, formam bandas e apren-dem muito por meio das gravações e audições. Cam-pos (2000) destaca que essa prática éfreqüentemente conhecida como “tirar música deouvido”. Green (2000) complementa afirmando que aaprendizagem inicial desses músicos populares re-quer audição e imitação com elevada atenção e comintenção auditiva. Nesse contexto, o “ouvir” é partefundamental da enculturação, que permeia o desen-volvimento dos músicos populares, desde as suastentativas iniciais de fazer música até a carreira pro-fissional.

Green (2001) destaca que tocar, compor e ouvirsão alguns dos caminhos que os músicos popula-res percorrem na trajetória do seu aprendizado. Es-sas três formas de vivência musical envolvem co-nhecimentos em comum, que não se distinguemtanto entre si. O tocar envolve a exploração sonoraatravés de instrumentos musicais ou da própria vozna busca de uma sonoridade que agrade aos ouvi-dos e/ou que faça algum sentido para o executante.O compor abrange o âmbito das atividades musical-mente criativas, incluindo improvisação. E o ouvir éo produto implícito nas duas atividades anteriores,sendo que Green (2000) categoriza de três formas:escuta intencional (purposive listening), escuta atenta(attentive listening) e a escuta distraída ou simples-mente ouvir (distracted listening).

A escuta intencional tem por objetivo a apren-dizagem. É por esse meio que se busca apreenderalgo para colocar em uso após a experiência. Esseé o tipo de audição que o músico emprega, por exem-plo, aprendendo a tocar uma cópia exata ou coverde uma canção. Dessa maneira, na música popular,ele cria ou reproduz um tipo de notação mental ouescrita da harmonia, da forma e de outras proprieda-des da canção, por meio da qual ele poderá colocarem ordem o seu aprendizado para estar disponívelem outro contexto ou na tarefa analítica de exercíci-os. A escuta atenta pode envolver a audição no mes-mo nível de detalhamento da escuta intencional, massem um objetivo específico de aprendizagem. Nãotem por intenção algo como saber tocar, relembrar,comparar ou descrever as propriedades da músicaposteriormente. A escuta distraída refere-se a mo-

mentos nos quais a música está sendo ouvida, semoutro objetivo do que diversão ou entretenimento. Aautora destaca ainda que as fronteiras entre os dife-rentes tipos de audição não são tão bem definidas.O ouvinte pode facilmente passar de uma para outracategoria durante o curso de uma peça musical(Green, 2000).

Assim, aprendizagem do músico popular en-volve uma complexidade de atos mentais ainda pou-co explorados e compreendidos no processo de en-sino-aprendizagem da música. Aspectos como me-mória, atenção e percepção constituem a base paraa compreensão de como esses profissionais apren-dem e constroem o seu conhecimento. É importan-te destacar que apesar da música ser conhecidacomo uma arte essencialmente “aural”, ela évivenciada e aprendida de diferentes maneiras; nes-se processo, outros sentidos são frequentementeutilizados.

Em pesquisa realizada por Prass (2004), so-bre “os saberes musicais de uma escola de samba”,é relatado que muitos dos músicos da escola desamba e o próprio mestre de bateria opinaram quepara participar de uma bateria de escola de samba énecessário ter bom ouvido. Assim como os partici-pantes da pesquisa de Prass, é comum o públicoem geral, e mesmo os profissionais da música, afir-marem ser importante ter um bom ouvido para seaprender música. Jargões como esses sãofreqüentemente citados no dia-a-dia para designarpessoas que têm maior facilidade de apreender de-terminados conceitos e habilidades relacionadas àmúsica, ou seja, muitas vezes rotuladas como por-tadoras ou não de um ouvido musical.

Assim, a percepção musical aqui compreen-dida como a habilidade de reconhecimento e com-preensão de aspectos musicais específicos, comoa percepção de figuras rítmicas e melódicas, harmo-nia e estruturas musicais variadas e sua conseqüentereprodução – seja por meio da escrita ou da práticainstrumental – é citada em alguns trabalhos comenfoques distintos (Bernardes, 2001; Sobreira, 2002).O trabalho de Sobreira (2002), por exemplo, cujo focoprincipal é a desafinação vocal, argumenta que entreas causas existentes e conhecidas no senso co-mum para esse problema estaria uma percepçãoauditiva deficiente. A literatura citada pela autoramenciona desde crenças e mitos que prejudicam odesenvolvimento de adultos e crianças e interferemem diferentes aspectos, como o psicológico (timi-dez, ansiedade, emoção, etc.), até problemas clíni-cos. Entretanto, a autora afirma que, ao contrário doque é geralmente aceito pela sociedade, não se podeafirmar que uma pessoa desafinada não tenha ouvi-

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do musical ou talento para a música. Uma das pos-síveis causas desse problema poderia ser uma per-cepção deficiente com relação aos padrões musi-cais aceitos em nossa cultura ou em alguma mani-festação musical em específico, aspecto tambémenfatizado por Galvão (no prelo).

No processo de aprendizagem de músicospopulares, essa valorização do músico “bom de ou-vido” é ainda mais forte, na medida em que historica-mente é uma atividade cuja transmissão caracteri-za-se por ser essencialmente “aural”, isto é, trans-mitida “de ouvido”. Apesar da aprendizagem de mú-sicos populares, até pouco tempo atrás, ser trans-mitida basicamente por meio da oralidade, não po-demos deixar de enfatizar que há participação deoutros órgãos do sentido caracterizando o queCaznok (2003) cita como uma aprendizagem por meiode uma audição multissensorial. Segundo a autora,na aprendizagem e percepção da música, a partici-pação da visão, por exemplo, é uma ocorrência mui-to comum. Staleva (1981) destaca que as associa-ções visuais, auditivas, motoras e táteis são a basepsicológica da percepção musical. Para Santos(1994), a combinação desses sentidos contribui paraa construção da imagem sonora (imagem auditivaauxiliada pela imagem visual e cinestésica) na apren-dizagem musical. Nessa conversão do objeto sono-ro, de seu estado material para a imagem mental,ocorre uma transformação do ouvinte conjuntamen-te com o objeto.

Parece haver, então, uma lógica subjacentenesse processo de escuta atenta e intencional domúsico popular. Na verdade, parece que eles nãotiram tudo de ouvido. Outros sentidos são utilizadosnesse processo de aprendizagem, entre eles, des-taca-se a visão. Exemplo disso é a aprendizagempor intermédio dos meios eletrônicos de comunica-ção, principalmente a televisão e as gravações, comoo DVD, que trazem novo estilo de linguagem, deno-minado por Belloni (apud Del-Ben, 2000) como lin-guagem audiovisual, na qual ocorre a combinaçãode diversos elementos: sons, palavras e imagenscom cor e movimento.

Assim, as diferentes áreas que compõem ocaleidoscópio de atuação dos músicos popularesexigem o desenvolvimento de várias outras habilida-des, que vão muito além de uma capacidade de terum bom ouvido. Aspectos técnicos e de interpreta-ção, improvisar, conhecer cifras, tablatura e/ou parti-tura, tocar seqüências harmônicas e escalas, acom-panhar e/ou fazer solos em diferentes contextos,dominar um vasto repertório musical são algumasdessas habilidades freqüentemente implícitas no tra-balho desses profissionais. Atuações tão comple-

xas e variadas envolvem o aprimoramento de habili-dades igualmente complexas. A habilidade de ouvir,no sentido da escuta atenta e intencional de Green(2001), é certamente uma realidade. Porém, essetipo de aprendizagem parece envolver bem mais queisso. Pode-se pensar, por exemplo, em uma capaci-dade subjacente de trabalhar padrões preesta-belecidos, que são dominados no contexto de muitoestudo individual deliberado. Este, portanto, pode sercompreendido como estratégia para a obtenção deuma habilidade, de forma a decidir o que, como equando fazer em cada etapa, com objetivos bemdeterminados. Dessa maneira, pode-se definir o es-tudo deliberado como o processo por meio do qual oobjetivo pode ser atingido (Galvão, 2000).

Quanto ao estudo individual de músicos po-pulares, emergiu da pesquisa de Green (2001) queesses profissionais convivem com períodos de práti-ca e estudos intensos, intercalados com outros semestudo. A intensidade do estudo parece dependermuito do humor, da motivação e de fatores externos.A maioria dos jovens músicos relata estudar duranteos ensaios das bandas mais do que individualmenteem casa.

A habilidade dos músicos populares, porexemplo, não se limita a “tirar tudo de ouvido” nahora. Na verdade, há um número de canções comforma, padrões harmônicos e rítmicos comuns. Des-sa maneira, progressões de acordes, como a de 12compassos do blues ou a seqüência harmônica I-VI– IV-V, aparecem em diversas músicas, sendo en-tão somente adaptadas. No entanto, como em todaregra, até mesmo na música, há exceções. Para ascanções que fogem desse padrão, outras habilida-des são exigidas, como alto poder de atenção, con-centração e dedicação da audição (Green, 2001).

Em músicos populares, procedimentos deresolução de problemas por tentativa e erro são umaconstante durante a aprendizagem por meio da au-dição. Nos ensaios em grupo, mesmo sem sabernomes corretos de expressões e conceitos musi-cais, os músicos discutem harmonia e conhecimen-tos aprendidos fora das salas de aula tradicionais(Pinto, 2002). Nesse contexto, o prazer de tocar estáà frente da disciplina e sistematização do estudo.

Assim, apesar de muitos músicos popularesafirmarem não estudar (Green, 2001), deve-se sali-entar que há um aprendizado que vai além da práticaintensa da técnica no instrumento. Os músicosaprendem, na verdade, o tempo todo, mesmo quan-do pensam que estão se divertindo. A aprendizagemocorre durante a apreciação de videoclipes, shows,apresentações informais entre amigos, através daaudição de CDs, LPs, entre outros.

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Pesquisas com enfoques semelhantes (Go-mes, 1998; Pinto, 2002; Prass, 2004) apontam o meiosocial como o principal vetor da aquisição dessashabilidades na aprendizagem de músicos populares.Com intuito de compreender um pouco mais sobre oprocesso de aprendizado de músicos populares, maisespecificamente a vivência musical de músicos po-pulares profissionais em Brasília, essa pesquisa tevepor objetivos investigar experiências iniciais de apren-dizagem; identificar significações sobre músico “bomde ouvido” e “escuta atenta e intencional”; investi-gar a experiência profissional do músico populare como isso se constitui no processo de aprendi-zagem continuada.

Método

Este trabalho caracterizou-se como uma pes-quisa qualitativa de caráter exploratório (Becker, 1999;Puris, 1995), até mesmo devido à escassez de tra-balhos que tratam do problema da aprendizagem demúsicos populares. Como o problema básico dapesquisa foi fazer emergir processos de aprendiza-gem a partir da experiência dos participantes, tra-tou-se, como é comum nesse tipo de abordagem(Sarantakos, 2002), de gerar uma teoria da aprendi-zagem de músicos populares fundamentada nosdados da pesquisa (Glaser; Strauss, 1965) e entãoinvestigar significados de aprendizagem em cone-xão com o contexto social em que eles ocorrem(Pidgeon, 1996). Assim, utilizando-se da técnica daentrevista semi-estruturada, foi estabelecido um ro-teiro de seis questões geradoras, as quais remeti-am aos já mencionados objetivos específicos doestudo. Com base nessas questões foram entrevis-tados em profundidade dez participantes (nove ho-mens e uma mulher), com média de idade de 47anos, sendo que o mais novo tinha 31 anos e o maisvelho, 65. Os participantes atuavam profissionalmenteem Brasília em bares, casas noturnas, shoppings,ou como músicos independentes (freelancers). Em-bora os participantes fossem todos moradores deBrasília, seus estados de origem eram Rio de Janei-ro, Minas Gerais, Ceará e Goiás. Os entrevistadosforam selecionados a partir de alguns critérios bási-cos. O primeiro partiu da escolha do músico peloinstrumento – foram selecionados quatro violonistas(dos quais um também guitarrista e outro cantor),dois tecladistas e pianistas, um baterista, uma can-tora e dois baixistas. Essa escolha deveu-se ao fatode esses instrumentos constituírem um agrupamen-to muito comum na música popular. Um outro crité-rio foi o reconhecimento profissional dessesinstrumentistas no meio musical de Brasília (apre-sentam-se com músicos da cidade e com músicosreconhecidos nacional e internacionalmente). Alémdisso, levou-se ainda em consideração a indicação

dos próprios entrevistados. Segundo Turato (2004),esse tipo de composição de amostragem, conheci-da como bola-de-neve, permite ao pesquisador ouviras indicações das pessoas do campo para que seconsiga uma amostra mais consistente do ponto devista dos objetivos da pesquisa.

As entrevistas ocorreram na própria residên-cia dos entrevistados e/ou outro lugar previamentecombinado, como escolas nas quais lecionam ouestúdio de gravação. É importante destacar que so-mente um músico recusou a participação na pesqui-sa, por motivos pessoais.

Utilizou-se, como estratégia de análise dedados, a técnica da análise do discurso (Brandão,2002, Taylor, 1994). Tomou-se por base a produçãoda palavra como um processo que envolve a pessoaque fala, o objeto do discurso e um terceiro. Levou-se em conta também emoções, desejos e enuncia-dos relacionados às imposições lingüísticascontextuais da produção. Seguindo Gadamer (1975),a idéia foi de promover compreensão (versthehen):trata-se de tentar revelar o que está por trás do que édito, num processo circular que termina quando háuma fusão dos horizontes de interpretação e com-preensão. Em outras palavras, geraram-se teorias econceitos fundamentados nos dados que foram relaci-onados a conceitos abstratos para gerar novas teoriase conceitos, levando a uma teoria final emergente dosresultados, apresentada no próximo tópico.

Resultados e discussão

Contexto de aprendizagem

Aprendizagem informal

Uma idéia que circulou com bastante força,no contexto do discurso dos participantes, envolveua associação entre aprendizagem inicial e brinca-deira. A maioria dos entrevistados enfatizou a idéiade que não só não tiveram professores que os orien-tassem na aprendizagem da música popular, comoque aprenderam sozinhos e brincando. O ato de brin-car dizia respeito a um certo brincar com os sons.Explorá-los, às vezes, com um instrumento musicaltradicional (o violão, por exemplo), outras vezes comqualquer utensílio que pudesse produzir sons, comocolheres, almofadas, instrumentos feitos de lata degoiabada. Apesar de algumas vezes afirmarem quenão sabiam ao certo como tudo começou, semprerelacionavam o aprendizado inicial ao fato de escu-tar muita música em casa e tentar acompanhar.Segundo Mead (1934), faz parte do imaginário infan-til ter profissões de sucesso que aparecem na mídiaou têm reconhecimento social, como policial, ator,bailarino e músico. Normalmente, esse imaginário

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relaciona-se ao meio social no qual a criança estáinserida e na imitação das atividades desempenha-das pelos adultos. Os trechos de fala a seguir ser-vem como evidência disso:

Essas coisas aí eu brincava assim, na verdade euficava mais brincando, né? (Pedro, 44, baterista).

Eu desde pequeno gostava de ouvir minha tia cantar,ela comprava toda semana aqueles bolachões eenquanto ela lavava a roupa e estendia no varal euficava ali brincando no chão ouvindo e tentando imitaro que ela cantava… (Sílvio, 38, violonista e cantor).

Nesse processo, as falas sobre esse períodotambém remeteram a algumas situações específi-cas como, por exemplo, a de aprendizagem comouma pesquisa solitária. Em outras palavras,subjacente à construção do processo de aprendiza-gem havia uma noção de solidão:

Ah! Eu aprendi sozinho, nunca ninguém me ensinou…eu ficava ali no sofá batendo com a colher no sofá, naverdade eu ficava brincando, né?… (Pedro, 44,baterista).

Apesar da afirmação constante e ênfase emuma aprendizagem solitária, diferentes redes soci-ais foram importantes na aprendizagem desses mú-sicos populares. A família, por exemplo, representoupara a maioria dos entrevistados o primeiro espaçopropulsor da aprendizagem musical. A mãe, no en-tanto, merece destaque, pois foi citada pela maioriados participantes como a grande responsável peloprimeiro contato com a música. Galvão e Ghesti(2003) destacam o papel da mãe no desenvolvimen-to infantil. Segundo os autores, o papel materno,naturalmente, caracteriza-se por ser responsável pelaeducação da criança e pelo estabelecimento dasprimeiras relações. O processo educacional teria seuinício, em um sentido mais amplo, ainda com a cri-ança no ventre materno. Assim, a mãe foi referenda-da como professora das primeiras notas,incentivadora no estudo e prática do instrumento,consultora nas decisões relacionadas à educaçãomusical em espaços escolares e como promotorada aquisição do primeiro instrumento.

Eu comecei com cinco anos foi a… a minha mãe meensinando acordeon, que tenho até hoje a sanfoninhaem 60baixos. (Fausto, 42, pianista e tecladista).

E depois disso eu tive minha mãe, que sempre cantou,sempre gostou de cantar, mesmo na infância. Naadolescência ela trabalhava com pessoal de teatro,essas coisas, então, até a minha veia artística vemdela… minha mãe comprava disco, todo disco quesaía minha mãe comprava. (Sílvio, 38, violonista ecantor).

Os amigos também se destacam nesse pro-cesso. Todos os entrevistados declararam que apren-deram muito na convivência com amigos. O interes-

se pela música, bem como a escolha de repertório edo instrumento, foi, muitas vezes, influenciado poressa rede social. Ao contrário da infância, durante aqual a criança convive mais intensamente no seiofamiliar, na adolescência, grupos com característi-cas e interesses semelhantes tendem a se reunircom intuito de estabelecer vínculos e construir iden-tidades próprias. Dessa maneira, a formação de ban-das de música é uma prática muito comum. Segun-do Green (2000), a prática em grupo é muito impor-tante para a aprendizagem de jovens músicos. Osentrevistados relataram ter como hábito ouvir muitamúsica junto com amigos, além de trocarem LPs edicas de harmonias e convenções relacionadas aosinstrumentos que tocavam.

E nessa roda de amigo, já esse pessoal que tocavaviolão, já começava a tocar guitarra, inclusive um tambémhoje é músico profissional também, né?… e ninguémtocava contrabaixo e todo mundo queria tocar guitarrae tal, aí foi crescendo a roda de amigo, todo mundoficou com esse negócio de guitarra, guitarra, e aí quandoeu conheci o contrabaixo dessa forma. (Marmelada,31, baixista).

Aprender sozinho não significa, então, estarisolado do mundo e das influências sociais. Quandoos entrevistados dizem ser autodidatas, tendem arelacionar a sua forma de aprender de maneira opos-ta à aprendizagem em ambientes escolares tradici-onais. Segundo Gohn (2003), na aprendizagem au-todidata as pessoas se colocam na condição deaprendizes, porém têm certa autonomia na escolhados caminhos que irão percorrer durante a aprendi-zagem. Assim sendo, se organizam e direcionam oseu próprio estudo se baseando nas suas necessi-dades e objetivos pessoais. Essa aprendizagemautodidata, caracteristicamente intencional, normal-mente acontece a partir da adolescência, quando aconvivência com amigos e grupos específicos torna-se evidente. Apesar de relatarem que essa vivênciamusical com os amigos consistiu em uma experiên-cia significativa no processo de aprendizagem inici-al, os participantes voltaram a afirmar que não tive-ram professores, mas sim que aprenderam com co-legas em locais variados, como ambiente de traba-lho ou ambientes informais. Há uma tendência de osentrevistados associarem o conceito de professor àidéia de espaço escolar. Muitos aprenderam comamigos que provavelmente funcionavam como pro-fessores informais. Mas essa ligação professor-alu-no, quando estruturada fora do espaço formal da salade aula, tende a não ser vista como uma relaçãodesse tipo.

[…] eu tinha uns amigos músicos, né? Que tocavamviolão, tarará, aí eu comecei a me interessar por músicae comecei a batucar, então até na realidade eu nuncative professor… E aí nos ensaios com os guitarristas,com um amigo meu, eles faziam exercícios pra mim,

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eles me explicavam, e então no outro ensaio levava, efoi assim através dos amigos, né? (Pedro, 44, baterista).

Percebe-se então que o caminho percorridopor músicos populares, desde o início da aprendiza-gem até a profissionalização, é repleto de vivênciasmusicais fora do ambiente acadêmico. Vinculado aprocessos de aprendizagem informal, há o prazer deaprender um instrumento. Algo que não representasacrifício, com regras, prazos e currículos a seremcumpridos. Ao contrário, o aprendiz transforma oaprender em algo vivenciado a ponto de tornar-se algoque contribui para a constituição da própria identida-de do aprendiz (Barbosa; Galvão, 2006). Nesse sen-tido, dedica-se e transforma a prática em constanteprocesso de investigação e descoberta interagindocom o meio em que vive.

Motivação, automotivação e estudoindividual

Além do incentivo da família e dos amigos,outro aspecto bastante enfatizado no discurso dosparticipantes diz respeito à automotivação. Essa sefirmou como uma das principais características daaprendizagem inicial. Nesse contexto, implicitamen-te, há a idéia de um investimento pessoal em umaatividade que, por si só, era prazerosa.

[…] aprendi assim, em casa, sozinho e ouvindo muito.Sempre tive vontade, criança, ainda criança eucomecei, né? No cavaquinho. Com sete anos comeceia tocar violão, com sete nos já tocava violão, jazzessas coisas assim. (Zé Carlos, 49, baixista).

Lembro nesse dia que meu pai, às duas da manhã,levantou do quarto, meu pai que nunca abriu a bocaassim, pra falar: vai estudar! Vai não sei o quê! Elenunca se envolveu com música, foi minha mãe que meensinou no acordeon… e tudo. A única que vez que elese manifestou foi pra levantar da cama e dizer: –…chega. Você está desde as nove da manhã, são duasda manhã! Sai do piano e vai dormir. Amanhã você,você faz de novo. (Fausto, 42, pianista e tecladista).

Assim, emergiu da pesquisa que os partici-pantes dedicaram-se de forma intensa à aprendiza-gem do seu instrumento durante grande parte da suaformação. Na obtenção de habilidades para a práti-ca profissional, esses músicos empreenderam mui-to estudo individual deliberado (prática). Na literaturasobre expertise (Ericsson; Tesch-Romer; Kramp,1993; Galvão, 2007; Sloboda et al., 1996), há a visãode que a prática deliberada é chata, maçante, can-sativa. No entanto, desta pesquisa emerge justamen-te o contrário. Os músicos entrevistados declararamter imenso prazer no seu estudo individual. Quandoperguntados sobre “estudo individual”, os participan-tes também tendem a achá-lo maçante. O interes-sante é que eles não vêem a sua prática como estu-do individual. É mais forte aqui a idéia de uma ativi-

dade de caráter quase que lúdico, que alguém exer-ce quando tem vontade. Algo muito próximo da no-ção de flow (Csikszentmihalyi, 1990).

… música tava muito sedutora e eu me lembro que eumesmo não queria parar. Sempre fui autodidata, e euamava a música, e queria fazer aquilo, então, passavahoras e horas tocando, tirando música de ouvido, nãoqueria parar. (Sílvio, 38, violonista e cantor).

De acordo com a Teoria do Flow, as pessoasconseguem sustentar durante muitos anos o estudoou a prática deliberada porque a atividade em si éextremamente compensatória, proporcionadora degrande prazer. Basicamente, gostam do que fazem,a ponto de adiar gratificações, prazeres, para fica-rem por conta de suas atividades. Alguns chegamaté a não esperar recompensa alguma pelo que fa-zem. A atividade é por si só gratificante. Isso, evi-dentemente, representa a instância necessária aoestudo deliberado, capaz de sustentar uma motiva-ção de longo prazo que transforma alguém em expert.A atividade de estudo torna-se muito gratificante, aoinvés de entediante ou maçante.

Aprendizagem formal

Importante descoberta desta pesquisa diz res-peito ao contexto de aprendizagem do músico popu-lar. Ao contrário da crença do senso comum e dealguns resultados apresentados por pesquisas se-melhantes (Gomes, 2003), vários músicos popula-res que participaram desta investigação freqüenta-ram algum tipo de curso regular de longa ou curtaduração. Destacam-se, por exemplo, as aulas parti-culares de piano. Segundo Bozzetto (2004), no Bra-sil, professores particulares de piano têm papel sig-nificativo no ensino de música fora das instituiçõesescolares tradicionais. Esses profissionais trabalham,geralmente, na própria casa ou no domicílio do alu-no “educando crianças, jovens e adultos, preparan-do músicos e/ou futuros profissionais da área”(Bozzetto, 2004, p. 11). Fato esse enfatizado no dis-curso dos participantes desta pesquisa:

A aprendizagem de tocar foi em Anápolis. Eu nasci emAnápolis, e aí meus pais me colocaram pra aprenderpiano com uma professora particular, cidade do interioro garoto ou a garota além de fazer a escola normal temque fazer… uma professora de arte qualquer ou pintura,ou vai fazer o violão, ou vai fazer o piano, comotradicionalmente tinha duas ou três professoras depiano e era um negócio meio tradicional. Fui aprenderpiano, piano clássico. (Fonteles, 48, pianista etecladista).

Além dos professores particulares, destaca-se ainda o papel dos conservatórios e das escolasde músicas especializadas. Alguns entrevistadosafirmaram ter freqüentado conservatórios e escolasdurante alguma fase da vida. Entretanto, a maioria

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declarou que a prática da música popular, nesseslugares, era por vezes proibida:

… porque as minhas professoras e professores lá deGoiânia e de Anápolis não me deixavam justamente teracesso aos métodos populares. Não, elas achavamque aquilo iria me estragar, tá? (Fonteles, 48, pianista etecladista).

Apesar de afirmarem, algumas vezes, que nãoaprenderam nada de útil nos conservatórios e emaulas particulares no que concerne à música popu-lar, destacaram, entretanto, certos aspectos, comotécnica, disciplina e aprendizado da leitura de parti-turas, enfatizados nos conservatórios, como extre-mamente importantes no desenvolvimento da ativi-dade profissional, já que, em um mercado extrema-mente competitivo, essas habilidades fazem a dife-rença.

Além do acesso a professores particulares, amaioria dos entrevistados afirmou ter freqüentadoescolas, conservatórios e ou faculdade de música etambém cursos esporádicos de pequena duração,como cursos de verão, workshops e palestras.

E depois de muito tempo eu acho que fiz uns dois cursosde verão com o Nelson Aires e Elenice Maranesi,sabe?… que aí deu uma base legal porque aí já foi… eujá sabia tocar, já sabia o que eu tava fazendo e aspessoas me casaram por exemplo com uma músicapopular brasileira, mesmo, como se toca, como se fazos improvisos como devem ser feitos como é que sepode pensar, a maneira de pensar o acorde, a maneirade pensar em pontes e essas coisas assim. (Fonteles,48, pianista e tecladista).

Bom de ouvido

Em suma, para tornar-se um bom músicopopular, nem sempre é necessário, na perspectivados participantes, muito estudo individual, emborase possa concluir a partir dos relatos que todos sededicaram bastante ao estudo individual. Se a im-portância do estudo individual é apenas implícita, omesmo não ocorre com outras noções. Aparece demodo bastante incisivo nas falas, por exemplo, quepara ser bom músico popular, é necessário ser bomde ouvido.

… porque o músico, ele tem que ter um bom ouvido,senão ele não vai conseguir ser um bom músico. Isso écerteza absoluta!… (Sílvio, 38, violonista e cantor).

Além disso, alguns músicos afirmaram queexistem pessoas com ouvido e outras sem ouvido.Apesar de afirmarem enfaticamente essa idéia inici-almente, alguns participantes tiveram dificuldadespara explicá-la. Ao longo da entrevista, muitos fize-ram um discurso que girou, por exemplo, em tornode noções inatistas da aprendizagem. Para essegrupo, a capacidade humana de “ter um ouvido mu-

sical” já nasce pronta. Eles crêem que algumas pes-soas têm jeito para a música e outras não. A maioriados participantes afirmou que a habilidade de ter ounão ter ouvido se relaciona a fatores como ter um“dom divino” e/ou ter uma “genética favorável”. É im-portante enfatizar que alguns desses músicos secontradizem ao longo da entrevista, afirmando tam-bém que o meio influencia no desenvolvimento doindivíduo, retratando assim uma concepçãointeracionista, na qual o ser humano seria umaintegração entre os dois fatores anteriores.

A pessoa sem ouvido, ela não vai conseguir fazer, né?E é até difícil explicar o que seria uma pessoa comouvido, alguém que tem ritmo? Que tem ritmo assimouve o ritmo e saiba de que tipo, que ouve uma nota esaiba cantar aquela determinada nota. Sim, é umapessoa que quando você pega um tom e canta dentrodo ritmo. (Sílvio, 38, violonista e cantor).

Têm pessoas que são por natureza, são detonadas,ou desafinadas. Desafinação às vezes não é só umdefeito, ela pode ser um, a pessoa é normal edesafinada, não tem gente que chama assim [grito], elatá desafinada, não tem gente que fala desafinada, né?Que ronca desafinada [risos]. (Jussara Silva, 65,cantora).

Conceitos sobre habilidade ou aptidão musi-cal, talento, periodicamente retornam à literatura eàs discussões formais e informais como uma impor-tante parte do debate sobre o impacto da natureza edo ambiente na aprendizagem (Galvão, no prelo).Segundo Shuter-Dyson (1999), aptidão musical é umtermo cujo significado nos remete ao potencial parao aprendizado da música, com ênfase no desenvol-vimento das habilidades musicais.

Outra parte dos entrevistados, no entanto, afir-mou que todos temos ouvido. Um dos entrevistadosquestionou a utilização do termo “bom de ouvido”.Para ele, esse conceito é muito relativo e relaciona-se a uma série de fatores externos, como a cultura eo contexto no qual esse termo é utilizado. Os de-mais argumentaram que, muitas vezes, o bom ouvi-do tem relação com conceitos de percepção e sen-sação. O termo percepção estaria relacionado comestar atento, perceber os outros músicos, a reco-nhecer aspectos sonoros específicos mediante pro-babilidade, aos cinco sentidos, a conhecer o campoharmônico e, após algumas tentativas, acertar o queé requisitado. Sensação seria algo relacionado àsensibilidade ao fazer música, isto é, compor, inter-pretar, fazer algo que emocione a si próprio e aosoutros. Ambos dependem, como já foi abordado an-teriormente, de ouvir muito e ter certa “alma musi-cal”. Nesse ponto, alguns entrevistados afirmaramque o inverso da premissa questionada não é verda-deiro, isto é, não é necessário ser músico para seter um bom ouvido.

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É, aí eu concordo se, a gente definir o que é, porexemplo, o bom ouvido. Pra mim, eu acho que é maisuma relação de percepção, mas não necessariamenteela pode ser musical, aquela coisa do conhecimento danota, qual é o acorde, entendeu? Eu acho que apercepção aí que eu falo que é um bom ouvido é você,é você ter a, a, a, você tá, era o que acontecia comigo,quando eu te falo que eu aprendia a tocar aprendiaassim, eu desenvolvia o samba, o baião, o trabalho danoite mesmo, uma vassoura já lá tocando era porqueeu era extre… eu me considerava extremamente atentoao que tava acontecendo. Então, eu tinha muitapercepção, o que… que… o que… o que que tavaacontecendo naquela hora daquela música, então euficava extremamente atento a tudo, né? (Pedro, 44,baterista).

O termo bom de ouvido foi relacionado tam-bém a outros aspectos, como saber ler partitura, ci-fra, harmonia, ter conhecimento teórico, praticar (ti-rar música de ouvido, ouvir de tudo e desde cedo,ouvir o que os outros estão fazendo, etc.) e compre-ender o que está fazendo.

Bom ouvido, eu só classifico bom ouvido aquele caraque tem idéia do… do… da função harmônica que táacontecendo, bom ouvido. Você pode ter um cara bomouvido que não estudou? Pode! Não tem problemanenhum, pode! (Aluízio, 53, violonista).

Segundo um dos entrevistados, ao contrárioda música aprendida na escola formal, a músicapopular foi durante muito tempo aprendida fora doslivros e da teoria, tendo como principal veículo o ou-vido. Por isso as pessoas têm a crença de que paraser um bom músico tem que ter um bom ouvido.

Conclusões

O presente estudo mostrou que o músico po-pular aprende em contextos variados. Diferentemen-te da crença do senso comum, professada inclusivepor muitos dos participantes, de que a aprendiza-gem do músico popular é conseqüência somente deum talento nato ou de um dom divino, emergiu dapesquisa que esses profissionais estudam muito,porém nem sempre de forma homogênea e conven-cional. Isso traz mais suporte para a importância fun-damental do estudo deliberado no desenvolvimentoda expertise, tanto no que diz respeito a domíniosformais, como informais (Chi, 2006, Ericsson; Tesch-Romer; Kramp, 1993; Galvão, no prelo).

A inserção no universo musical ocorre princi-palmente por meio da família e de amigos mais pró-ximos, bem como pela vontade intrínseca de apren-der um instrumento. Gomes (2003) considera que aaprendizagem musical em família representa umadas principais vias para a inserção de crianças ejovens no meio musical. Percebe-se, então, que oshábitos familiares são extremamente importantes nodesenvolvimento da escuta musical.

Para os participantes, o processo ensino-aprendizagem da música popular sofreu grandesmodificações nos últimos anos. Segundo algunsentrevistados, à época em que eles iniciaram seusestudos com professores e em escolas específicasde música a prática da música popular não era per-mitida. No entanto, constatou-se nesta pesquisa quepraticamente todos freqüentaram algum tipo de aulaformal (ensino regular, cursos técnicos, workshops,palestras, cursos de verão, etc.) ao longo de todaformação profissional. É importante destacar queembora essas aulas nem sempre tivessem sidodirecionadas à música popular, acredita-se que dealguma forma esse conhecimento auxiliou na forma-ção desses profissionais, como na compreensão dasestruturas da teoria musical e no desenvolvimentoda técnica no instrumento.

Quanto à aprendizagem, conclui-se, então,que esses profissionais desenvolvem hábitos de es-tudo muito peculiares. Não há homogeneidade naforma como desenvolvem o seu conhecimento. O quese pode considerar é que há intensa dedicação, prin-cipalmente no que diz respeito à escuta, que ocorrediariamente em contextos variados, como em casa,no carro, durante as aulas, em shows e apresenta-ções. Na verdade, pode-se afirmar que os entrevista-dos ouvem música praticamente durante todo o dia.Esse fato influencia profundamente no desenvolvimen-to da escuta atenta e intencional (Green, 2001).

Nesse aspecto, a disponibilidade e facilidadedos recursos tecnológicos e materiais didáticos dis-poníveis no mercado também influenciam profunda-mente essa forma de aprendizado. Conforme a pu-blicação e a elaboração de materiais didáticos, es-ses profissionais, ao longo de sua formação eprofissionalização, utilizaram-se também de méto-dos, porém tendo sempre a audição como guia parao seu aprendizado. Nesse aspecto, além dos recur-sos do rádio e gravações em LPs e, nos últimosanos, em CDs, esses profissionais utilizam fitas devideocassete, DVDs, recursos da internet, etc. Naverdade, esses músicos mostram-se verdadeirospesquisadores e criadores da sua própria aprendiza-gem (Gohn, 2003).

Quanto aos jargões utilizados pelo senso co-mum, como músico bom de ouvido (Prass, 2004),os músicos entrevistados ainda têm dúvida quanto aessa questão. Há uma primeira reação afirmativa,em defesa de uma condição inatista. Quer dizer, aspessoas já nasceriam com essa habilidade. No en-tanto, os participantes também acreditam que essacaracterística musical pode ser desenvolvida. Osparticipantes, no entanto, não falaram sobre serem

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considerados especiais ou especialmente talentososquando crianças. O aspecto que enfatizaram maisfoi o de que gostavam de tocar instrumento e de quebrincavam com isso. Dessa maneira, a princípio es-tudando de forma solitária, em grupos de amigos ouem família, os músicos populares se profissionalizamtendo como principal fator motivador o prazer em to-car, algo muito próximo da noção de flow(Csikszentmihalyi, 1990). No entanto, diferentemen-te da escolha de outras profissões, a atividade domúsico popular, geralmente, caracteriza-se por sermuito árdua e com baixa remuneração. De acordocom o relato dos entrevistados, cada vez mais omercado de trabalho para esses profissionais estásendo modificado. A expansão das opções de atua-ção desses músicos exige profissional capacitado equalificado para a execução de tarefas diversificadas.

Nesse contexto é que se destaca a importân-cia da inserção e estruturação da música popularnas escolas, nos conservatórios e nos cursos supe-riores no país, pois há um mercado de trabalho exi-gente, bem como aprendizes e profissionais dispos-tos a se especializarem. Não obstante, as estrutu-

ras curriculares e as metodologias utilizadas no pro-cesso ensino-aprendizagem da música popular tal-vez precisem ser modificadas. Considerando que asexigências desses profissionais se diferenciam, porexemplo, das exigências de músicos eruditos, deve-se considerar que a formação desses músicos po-pulares também deva ser diferenciada.

Outro ponto importante diz respeito à utiliza-ção da tecnologia. Conforme afirma Requião (2002),os músicos populares precisam ter outros conheci-mentos, além do seu instrumento em específico,como saber operar uma mesa de som, trabalhar comcabos e materiais de amplificação. Talvez a amplia-ção da utilização dos recursos tecnológicos no en-sino da música represente importante caminho paraa reestruturação do ensino da música nas escolas eprincipalmente na elaboração de estratégias efica-zes para o ensino da música popular. A sistematiza-ção do saber do músico popular, nas suas mais dife-rentes especialidades, representa um desafio paratodos os profissionais da área. Esta é uma das for-mas de suprir a demanda do mercado de trabalho edemocratizar o ensino da música no nosso país.

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Recebido em 15/02/2007

Aprovado em 05/06/2007

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Introdução

As pessoas costumam atribuir o “bom desem-penho artístico” a algo que não conseguem explicar,como ao talento, por exemplo. Alguns pesquisado-res, assim como Gardner (1997), pensam que o ta-lento está ligado à questão hereditária, apesar desteautor mencionar que suas bases teóricas têm liga-ções com a epistemologia genética de Piaget e coma psicanálise freudiana, o que nada tem a ver composturas teóricas inatistas. Ou seja, essa concep-ção traz à tona a idéia de que os bons músicos já

trazem consigo um saber inato sobre a música queprecisam apenas trazer à consciência e organizar.Esse tipo de pensamento tem a ver com a epistemo-logia apriorista, que vem de a priori, isto é, o que éposto antes como condição do que vem depois. Es-pecialmente na área da música, a questão do dommusical é utilizada à revelia de um estudo com pro-fundidade ligado à função da hereditariedade na cons-trução do conhecimento musical. Teria realmente ahereditariedade um papel determinante no processo

Desenvolvimento musical:questão de herança genética ou

de construção?

Patrícia Fernanda Carmem KebachUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

[email protected]

Resumo. Procuro, através deste estudo, refletir se a herança genética desempenha alguma funçãono desenvolvimento musical. Através da epistemologia genética, busco compreender os mecanismosde adaptações orgânicas ao meio e traçar um paralelo entre estas e as adaptações cognitivas, emrelação ao objeto musical, na tentativa de compreender quais as semelhanças e diferenças entreambas. O objetivo principal, portanto, é o de saber como se constrói o conhecimento musical, qual opapel do organismo e do meio nesta construção e, especialmente, se as estruturas musicais possuemalgo de inato. Minha proposição é a de que as estruturas musicais não são inatas, e sim, construídasna interação entre sujeito (corpo e mente) e objeto (no caso, a música), embora o mecanismo deadaptação cognitiva possua características semelhantes ao de adaptação orgânica.

Palavras-chave: desenvolvimento musical, epistemologia genética, adaptação orgânica e cognitiva

Abstract. I intended, with this study, to learn if the genetic inheritance has any function in themusical development. Through the genetic epistemology, I tried to understand the mechanisms oforganic adaptations to the environment and to plot a parallel between these and the cognitiveadaptations, related to the musical object, in an attempt to understand the similarities and differencesbetween both. The main purpose, hence, is knowing how the musical knowledge is built, which theroles of organism and environment are in this construction and, particularly, if the musical structurespossess something inborn. My proposal is that the musical structures are not inborn, but, built in theinteraction between the subject (body and mind) and object (music, in this case), although thecognitive and organic adaptation mechanisms have similar characteristics.

Keywords: musical development, genetic epistemology, organic and cognitive adaptation

KEBACH, Patrícia Fernanda Carmem. Desenvolvimento musical: questão de herança genética ou de construção? Revista daABEM, Porto Alegre, V. 17, 39-48, set. 2007.

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de aprendizagem musical? Afinal, como ocorre o pro-cesso de desenvolvimento musical?1 Seria um pro-cesso distinto de construção ou apenas um conteú-do diferenciado construído obedecendo às mesmasleis do processo geral de construções cognitivas dosujeito? E o meio? Teria algum papel nessa constru-ção ou ela estaria tão atrelada a um quadro hereditá-rio que o meio desempenharia um papel secundárionesse processo?

Minha hipótese de partida para tentar respon-der a essas questões está ligada a um quadro teóri-co interacionista construtivista, proporcionado pelaepistemologia genética: os aspectos gerais do me-canismo de construções musicais obedecem àsmesmas leis de funcionamento de todo processo deadaptação do sujeito em relação aos objetos desco-bertos. Diferente de Hargreaves (1995), para quem ateoria dos estágios de Piaget serve apenas para evi-denciar a progressão do pensamento lógico-científi-co, penso que o desenvolvimento musical segue osmesmos estágios de desenvolvimento do que osoutros conteúdos estudados pela Escola de Gene-bra. Essa afirmação foi proporcionada por uma deminhas pesquisas, cujas conclusões remeteram-mea pensar que a música é um objeto constituído pelaação humana que se caracteriza pelo atravessamentodas estruturas lógico-formais estudadas por Piaget(Kebach, 2003a). Assim, minha proposição piagetianaé a de que o processo de construção geral está liga-do ao mecanismo de equilibração majorante (Piaget,1978a), em termos de um vetor imanente de trans-formação epistêmica (De Lajonquière, 1999), ou seja,de construções cognitivas progressivas, prolongan-do a tendência geral da vida orgânica a uma con-quista do meio, isto é, a tendência fundamental àassimilação (Piaget, 1978a, 1996). A energia quemobiliza essa tendência está ligada à afetividade. Éo desejo (o interesse), portanto, o que mobiliza ossujeitos a se construírem musicalmente. Resumida-mente, a partir da epistemologia genética piagetiana,penso que a capacidade musical, assim como asdemais, é construída na interação entre sujeito eobjeto.

Para explicar os mecanismos desse proces-so geral de adaptação e, especialmente, ao proces-so de construção musical ou, dito de outro modo, osmecanismos de adaptação do sujeito em relação aos

elementos da linguagem musical que procura conhe-cer, iremos à sua fonte original ligada à estruturaçãoorgânica, visando à verificação do papel da heredita-riedade no quadro geral das construções do sujeito.Mas, antes, precisamos diferenciar herança genéti-ca de herança cultural.

A influência cultural sobre as construçõesmusicais dos sujeitos

O conceito de hereditariedade, que está sen-do especificado aqui, está ligado ao significado deherança genética (as estruturas que estão no corpodo sujeito ao nascer, sua “bagagem hereditária”), enão ao conceito muito corrente de Bourdieu (1996)sobre a herança, no sentido de reprodução dohabitus.2 Esse conceito bourdieusiano nos permite,na experiência cotidiana, compreender ou pressen-tir as condutas, as ações, interações, relações derivalidade e conflitos que formam o curso do históri-co musical dos sujeitos. Ou seja, sob o ponto devista teórico bourdieusiano, quanto mais acesso acapitais culturais de elite, maior será a oportunidadedo sujeito que se estrutura musicalmente de ser re-conhecido como bom musicista. Isso, portanto, estáligado a uma questão de herança de condensaçãode capitais culturais, socioeconômicos e políticos(o que chama de poder simbólico). Assim, sabe-seque nos meios sociais mais altos, o acesso à cultu-ra de elite é maior, e que as oportunidades nos ní-veis sociais menos privilegiados, é restrita. Por exem-plo, uma pessoa que nasce em uma família abasta-da financeiramente, terá acesso a cursos de músi-ca, espetáculos artísticos, à compra de CDs, terátempo para estudar, etc. Seu meio, portanto, alémde proporcionar ofertas culturais de elite, favoreceráseu desenvolvimento. Ela terá mais tempo para pen-sar, estudar, interagir musicalmente. Já o meio deuma pessoa que nasceu na favela, embora ofereçapossibilidades de interações culturais diversificadas,pode bloquear o desenvolvimento musical em fun-ção da energia que será desviada para outras fun-ções, como a da própria luta pela sobrevivência. Alémdisso, a cultura musical popular é preconceituada, eos habitantes da favela não têm os mesmos aces-sos a uma cultura de elite, que é considerada comosuperior, em detrimento da rica diversidade da cultu-ra popular. Apesar dessa constatação, do ponto devista epistemológico, ambos, morador da favela e

1 Desenvolvimento musical tem aqui o sentido de compreensão progressiva das regras de organização da linguagem musical, nãoimporta de que cultura. Dessa forma, construir-se musicalmente possibilita a produção sonora em forma de execução organizadaou de composição, em grau mais elevado. Dito de outro modo, a uma construção progressiva de condutas musicais organizadas.2 Reprodução do habitus aqui tem o sentido de seqüências estratégicas ordenadas e orientadas de práticas inconscientes ouconscientes, que todo o grupo produz para reproduzir-se enquanto grupo, legitimando privilégios ou condutas culturais diversas,neutralizando-as. Essas estratégias não são percebidas como tais pelos agentes (Bourdieu, 2005, p. 11).

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pessoa pertencente à família abastada, têm a possi-bilidade de se desenvolverem musicalmente, poisnasceram com estruturas orgânicas similares. Ouseja, o funcionamento cognitivo de ambos é idênti-co. As oportunidades é que serão diferentes.

Bourdieu fala que as trajetórias dos indivíduossão constituídas pela relação de forças do campo esua inércia própria. Isto é,

essa inércia está inscrita, de um lado, nas disposiçõesque eles devem às suas origens e às suas trajetórias,e que implicam uma tendência a perseverar na maneirade ser, portanto, em uma trajetória provável, e, de outrolado, no capital que herdaram, e que contribui paradefinir as possibilidades que lhe são destinadas pelocampo. (Bourdieu, 1996, p. 24).

Essa análise de Bourdieu, a partir de seu con-ceito de herança, fornece-nos informações a respei-to do preconceito existente em relação à questão dodom. Na falta de um olhar aprofundado sobre osmecanismos de adaptação e do papel da sociedadena construção musical, as pessoas costumam utili-zar frases de senso comum como “filho de peixe,peixinho é”, “a fruta nunca cai longe do pé”, etc., natentativa de “comprovar” que as pessoas que nas-cem em famílias de músicos, herdam “no sangue”esse talento. Na verdade, não se dão conta de queas estruturas musicais são constituídas a partir dasvivências musicais dos sujeitos, ou a partir do inte-resse do sujeito de buscar, de alguma forma, cons-truir-se musicalmente. Assim, o mecanismo quemobiliza as ações é o interesse e, portanto, não estáabsolutamente determinado pelo meio, embora esterealize um papel importante no desenvolvimento.Porém, não adiantaria alguém nascer numa famíliade músicos, independentemente de sua condiçãosocial, se não se interessasse por música.3 Mesmoassim, aqueles que nascem num ambiente commuitos incentivos musicais, sejam eles de qualquernatureza cultural, têm maiores chances de desper-tarem interesse pela oferta constante da música, epela tendência à reprodução das condutas familia-res ou de seu entorno cultural, assim como nos indi-ca o conceito de reprodução do habitus, como já odefinimos em nota anterior. Por outro lado, qualquerpessoa que tenha um interesse tão forte em cons-truir-se musicalmente, embora tenha nascido em ummeio que não seja tão propício às suas construções,irá buscar formas para a estruturação desse conhe-cimento. Os caminhos podem ser diversos, comoaponta Beyer (1995, 1996), centrados em uma cons-

trução mais informal ou mais formal, mais erudita oumais popular, etc., conforme os percursos realiza-dos pelos sujeitos em jogo. Gomes (2006) apontatambém a questão da importância do projetoeducativo dos pais e a diversidade de situações eenvolvimento com outras pessoas além das do nú-cleo familiar nas aprendizagens musicais em famí-lia. Portanto, existem vários fatores em jogo nesseprocesso de aprendizagem musical que não tem nadaa ver com dom ou talento inatos.

Desse modo, para Bourdieu, falar em dommusical, inclusive, é uma forma de naturalizar (ouneutralizar) a exclusão daqueles que não possuemacesso a possibilidades de ações diferenciadas so-bre, por exemplo, a música como objeto a serconstruído. Geralmente, possuir um dom musical tema ver com um quadro de apropriação de técnicascomplexas, não aquelas populares, mas as impos-tas por padrões culturais eurocêntricos. Transmite-se e impõe-se, via de regra, padrões culturais quese tornaram modelos, através de um processo his-tórico-cultural de valorização de certos conteúdoscomo bem simbólico. Há legitimação de obras querepresentam a hierarquia dos bens culturais válidosdentro de uma sociedade, em um dado momento.No entanto, nem todos têm acesso a esses padrõesculturais, como diz Penna (1990). A cultura popularé excluída por uma boa parte da sociedade, emboraabraçada por outra. A parte que deslegitima os sa-beres culturais gerados em ambientes diversos, comoa cultura popular, por exemplo, é justamente a bur-guesia, que, enquanto detentora do poder deveiculação musical nas mídias, embora desmereçaa cultura popular, dela tira proveito em termos finan-ceiros. Em meio a esse paradoxo, o que seria umbom músico? O que é ser talentoso ou possuidor deum dom musical? Essa discussão gera muitas con-trovérsias e preconceitos, e não fornece as informa-ções que necessitamos para compreender se amúsica depende da herança genética ou de constru-ções progressivas. Entretanto, a partir dela podemoscompreender os mecanismos de herança cultural quenão são exatamente o foco deste artigo.

Para que possamos extrapolar uma análisesuperficial sobre os mecanismos de hereditariedadegenética, iremos discutir aqui se o sujeito herda al-guma capacidade musical inata ou não. Desse modo,através da teoria de Piaget sobre a adaptação vital eo comportamento motor da evolução iremos tentar

3 A partir destas proposições podemos refletir, então, sobre a importância das ações docentes em educação musical. Sob o pontode vista construtivista, é responsabilidade do professor proporcionar situações significativas e de desafio, que mobilizem ointeresse dos sujeitos em se apropriar dos conteúdos.

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compreender as semelhanças e diferenças entre aadaptação orgânica, em relação ao meio, e do sujei-to, em relação aos objetos a serem construídos. Aanálise, portanto, será sobre a música, como objetoem construção.

O processo geral de adaptação orgânica

Apesar das conservações orgânicas seremapenas aproximativas, incapazes de invenção, comregulações mais ou menos limitadas e rígidas, emfunção de uma programação hereditária, podemospensar os aspectos gerais dos mecanismos de adap-tação já no organismo. Se fizermos a seguinte rela-ção: o organismo corresponde ao sujeito e o meio,ao conjunto dos objetos exteriores que se trata deconhecer, podemos pensar no processo análogo deadaptação tanto no que diz respeito à interação en-tre organismo e meio quanto entre sujeito e objeto.Trata-se de verificar certos aspectos gerais de me-canismos de adaptação nos dois casos: tanto noorganismo em relação ao meio quanto do sujeito emrelação aos objetos a serem descobertos.

Partamos da adaptação orgânica. De acordocom Piaget, a tendência de todo organismo é a deregular-se em função do meio e de manter-se, emprincípio, equilibrado. Dessa forma, a lógica dogenoma é de manter-se como ele é. Porém, esseorganismo está constantemente respondendo aosdesequilíbrios causados pelo meio. Portanto, orga-nismo e meio estão em constante interação. Passoa passo, poderíamos dizer, segundo a explicaçãopiagetiana, que o organismo procura responder aodesequilíbrio causado pelo meio. Esse processo levaa uma nova integração somática e causa bloqueiosinteriores parciais. Entretanto, com uma repercus-são próxima ao desequilíbrio. Se os processosepigenéticos4 não bastam para restabelecer o equilí-brio, os genes reguladores são sensibilizados parabuscar uma nova síntese. Então, aparecem as varia-ções genéticas, atuando mediante efeitos seletivosaté a estabilização, ou equilíbrio desse processo.Por exemplo, um organismo que é transportado deseu ambiente natural para um outro meio em que oambiente climático é hostil, terá que, ao longo dasgerações, criar novas formas para adaptar-se a es-sas mudanças, o que acaba sensibilizando os genese os transformando em novas formas fenotípicas. Istoé, há mudança na estrutura orgânica, a fim de reali-zar novas adaptações e essas transformações (oumutações) são herdadas geneticamente (Piaget,1996, p. 313).

Esse processo de regulação que o organis-mo realiza para adaptar-se aos desequilíbrios cau-sados pelo meio está ligado, no plano biológico, aum mecanismo de “copiar” (no sentido de imitação,que para Piaget, está sempre ligado a uma recons-trução interna) no mundo endógeno (no genótipo) asadaptações exógenas (o fenótipo). A esse mecanis-mo Piaget chama de fenocópia, que desempenhauma função bastante geral nos processos evolutivos.Podemos dizer, então, que quando vemos o fenótipode alguém, vemos um genótipo adaptado ao meio(Piaget, 1978a, p. 7).

O processo de interiorização e exteriorizaçãocorrelativas que ocorre no plano cognitivo corres-ponde ao processo de regulação endógena que ogenótipo realiza quando copia o fenótipo, substituin-do-o e reconstruindo-o, visando a um melhor equilí-brio. Por exemplo, no plano cognitivo, quando entraem desequilíbrio diante de algo novo a ser assimila-do, o sujeito, ao mesmo tempo em que age (exte-rioriza algo) sobre o objeto em jogo, diferenciandosuas propriedades, integra (interioriza) essas ações,transformando suas estruturas mentais, pois agoraconhece mais a respeito do que se propôs a apren-der (equilibra em patamar superior). Isso lhe possibi-litará uma melhor performance posterior. Há, portan-to, convergência entre o processo adaptativo biológi-co e a estruturação das formas de inteligência, in-clusive as superiores, cujas construções são reali-zadas a partir das interações entre os desafios vin-dos do meio ou perturbações interiores que levam auma resposta ativa (ou não, dependendo dos esque-mas de assimilação que o sujeito já possui), visan-do a um maior equilíbrio. Vejamos mais de pertoessas correspondências.

Da adaptação orgânica à construçãocognitiva: estruturações operatóriasprogressivas

Pensamos que refletir sobre o processo deadaptação vital e estruturação cognitiva musical po-derá ajudar a responder às perguntas introdutóriasdeste estudo. A primeira questão está relacionada àherança genética: qual o papel da hereditariedadeno desenvolvimento musical e no geral? Já vimosque o papel da hereditariedade na adaptação orgâni-ca é fundamental. A adaptação biológica, em termosde fenocópia, depende das estruturas herdadas.Constitui-se, portanto, num processo muito restrito,que leva anos para ser realizado.

4 Processos que se formaram posteriormente.

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Mantendo a relação que propusemos inicial-mente sobre a correspondência do organismo aosujeito e do meio, ao conjunto dos objetos exterio-res que se trata de conhecer, podemos verificar queos processos adaptativos são muito semelhantes,tanto no que diz respeito à adaptação orgânica, quan-to à adaptação cognitiva. Dito de outra forma, cadavez que o sujeito depara-se com coisas novas, oucom as resistências do objeto, para as quais aindanão construiu soluções, desequilibra-se (ou não), emfunção daquilo que já estruturou mentalmente até omomento, na busca de um novo equilíbrio que ga-ranta a manutenção do sistema. Prolonga a tendên-cia geral da vida orgânica a uma nova conquista domeio, ou seja, a tendência vital fundamental à adap-tação (Piaget, 1978a, p. 121).

Piaget (1978a, p. 152), para acentuar a se-melhança dos processos adaptativos em termos or-gânicos e cognitivos, refere-se ao equivalentecognitivo da fenocópia, que são fenocópias apenasaparentes, com o nome de pseudofenocópias, porsimetria às abstrações pseudoempíricas (semelhan-ça no processo), pois, a partir destas, se extraemdo mundo exógeno informações que são recons-truídas no mundo endógeno. Qual o papel da heredi-tariedade no mecanismo de pseudofenocópia? É omesmo da fenocópia? A pseudofenocópia, ao con-trário da fenocópia biológica, não depende diretamen-te de estruturas herdadas, porém, não está desco-nectada da própria função orgânica, que é sua fonteoriginal. Ou melhor, na fenocópia biológica, o pro-cesso endógeno tem origem no genoma e nas auto-regulações orgânicas. Já na pseudofenocópia (seuequivalente cognitivo) é também originado porregulações internas e orgânicas, porém sem atingiro genoma e, portanto, sem caráter hereditário. As-sim, a hereditariedade na construção cognitiva, combase na epistemologia genética, não desempenhapapel relevante como propõe o senso comum, espe-cialmente no âmbito musical. Toda a vez o músicoexecuta ou cria uma peça musical com tal naturali-dade que remete à possibilidade de algo inato, ouquando atinge um estado tal de equilibraçãomajorante, em que seus movimentos de execução,por exemplo, estão completamente automatizados,podemos falar na ocorrência da pseudofenocópia.Ou seja, podemos dizer que esta construção foi atin-

gida por um longo processo de aprendizado, atravésda ação desse sujeito sobre seu objeto (no caso,seu instrumento musical, seu corpo, a partitura etc.).Nesse caso, a naturalidade das condutas musicaisé tão grande que é “como se” o genótipo houvessecopiado o fenótipo. Por medidas econômicas men-tais, automatiza-se essa aprendizagem, naturalizan-do-a e tornando-a algo que parece inato, assim comoacontece quando aprendemos a dirigir, por exemplo.Temos aí o equivalente cognitivo da fenocópia, istoé, um exemplo do fenômeno da pseudofenocópia (ou“fenocópia cognitiva”).

O papel do meio físico e social nasconstruções musicais

Mas, e o meio? Qual a função do meio? Pro-curo essa resposta em um novo estudo. Ou seja,em minha pesquisa atual5 procuro demonstrar o quan-to o meio é fundamental para o desenvolvimentomusical do sujeito. Busco compreender de que modoos sujeitos cooperam na tarefa de produzir músicacoletivamente. Ou, dito de outro modo, de que modoseus sistemas de significação são mobilizados quan-do interagem com a diversidade de saberes cultu-rais construídos, dependendo do contexto de quevêm. Enfim, procuro verificar os conflitos cognitivose emotivos ocasionados pelas interações dos sujei-tos com a música como objeto socialmente consti-tuído, em ambiente de musicalização coletiva. Por-tanto, compreendo a relevância do meio como fatorfundamental na construção do conhecimento musi-cal. O meio pode ser desafiante o suficiente, comojá afirmei, para possibilitar a mobilização de energi-as de ação do sujeito sobre o objeto, bem comocriar barreiras, engessar, bloquear ou mesmo deses-timular o sujeito a construir conhecimento. Porém, omeio não é fator exclusivo, mas sim correlativo àsações do sujeito, pois a necessidade de ação inter-na organizadora é indispensável.

Desse modo, penso o conhecimento musicalcomo o resultado, portanto, da interação contínuaentre o sujeito e a realidade que o rodeia, realidadeesta que não diz respeito somente aos objetos físi-cos, mas também à realidade social, às trocas, en-fim, a tudo que o sujeito transforma em objetos deconhecimento. Quanto mais essa realidade for mu-

5 Esta análise que proponho em minha atual investigação segue com os pressupostos teóricos da epistemologia genética. Não buscoem Vygotski as explicações para esses fenômenos. Os principais conceitos que desenvolvo para analisar as interações sociaispartem dos conceitos piagetianos de auto-regulação, abstração reflexionante (Piaget, 1995), conflito sócio-cognitivo (Perret-Clermont, 1996) e cooperação (Piaget, 1973, 1994), e não do sócio-interacionismo vygotskiano (Vygotski, 1984) que, a meu modode ver, não garante uma análise mais profunda dos processos de aprendizagem e estruturação cognitiva. Assim como Piaget, nãopenso que a linguagem estrutura o pensamento (proposição vygotskiana), e sim o inverso: a ação precede a compreensão (Piaget,1978b).

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sical, isto é, apresente formas que incentivem o in-teresse do sujeito a se desenvolver musicalmente,maior será seu nível de construção em relação àmúsica, como objeto a ser assimilado. A interaçãosocial, nesse sentido, é muito importante, já que aorealizar trocas de pontos de vista, criando, recrian-do, apreciando música coletivamente, o sujeito é in-centivado a experienciar o objeto musical por outrosângulos, de outras formas, enfim, aprende que seuponto de vista não é absoluto: é apenas um, entrevários outros.

Já para as doutrinas clássicas neodarwinistas(Piaget, 1996, p. 38) e behavioristas (Skinner, 1938),o meio desempenha papel exclusivo em todos osníveis. Essas doutrinas consideram ainda que as ativi-dades endógenas do organismo e do sujeito são in-capazes de invenção (Piaget, 1996, p. 121). Pode-ríamos pensar então que o meio é quem fornece asinformações necessárias para as construções mu-sicais do sujeito? Pelo fato de falarmos em “cópia!”,poderíamos dizer que o sujeito apenas copia do meioas informações tal qual lhe são apresentadas e per-cebidas, no sentido empirista de Hume?6 Ora, omecanismo tanto da fenocópia orgânica quanto dapseudofenocópia obedece, como já falamos na in-trodução, a leis de equilibração majorante que ocor-rem por auto-regulações sistêmicas. Se o processogeral da fenocópia e da pseudofenocópia visa aoequilíbrio interno frente aos desequilíbrios causadospelo meio, então essas equilibrações não são so-mente uma cópia do real, tal como a explicaçãoempirista. São, na verdade, uma reconstrução endó-gena daquele objeto diferenciado pelo organismo, oupelo sujeito, mediante uma perturbação interna cau-sada pelo meio. Essa diferenciação é integrada àsestruturas biológicas e mentais. Assim, o processode desequilíbrios e reequilibrações que levam à feno-cópia biológica, voltamos a encontrar na fenocópiacognitiva (pseudofenocópia):

[…] igualmente en este caso un conocimiento exógeno,por su carencia de necesidad interna y el gradodesconocido de su generalidad, mantiene undesequilibrio latente, sobre todo si no se handescubierto los observables en cuestión o sólo hansido analizados con dificultad a causa de su carácterimprevisto; tras lo cual este desequilibrio arrastra unareequilibración por reconstrucción endógena, en la

medida en que las comprobaciones empíricas hanpodido ser asimiladas, sensibilizando-lo, a un juegodeductivo de operaciones que se atribuyen entoncesa los objetos cuyas acciones no se comprendían.(Piaget, 1978, p. 158).

Os caracteres exógenos e endógenos dasabstrações

De modo geral, a analogia entre fenocópia re-alizada no plano orgânico e no plano intelectual estánesse mecanismo de “copiar”, no mundo endógeno,as adaptações exógenas (Piaget, 1978a p. 134). Emtermos mais explícitos, como ocorre o processo dapseudofenocópia? Piaget (1978a, p. 138) consideraque todo o conhecimento novo supõe abstrações.Propõe que, apesar da reorganização que entranha,nunca constitui um começo absoluto, a não ser pelofato de extrair seus elementos de alguma realidadeanterior. Ou seja, para agir de alguma forma sobreorganizações sonoras, buscamos informações so-bre os esquemas mentais que já construímos sobrea música. Resumidamente, poderíamos dizer queestas abstrações obedecem a leis de apreensão dealgumas propriedades dos objetos, cuja fonte é exó-gena, mas é reconstruída de modo endógeno. Pro-curei explicar esse processo de apreensão das pro-priedades do objeto musical na pesquisa de mes-trado (Kebach, 2003a). Fiz uma análise de comocrianças de 4 a 12 anos diferenciam os parâmetrosdo som, conseguem seriar auditivamente uma esca-la temperada,7 compreendem a pulsação e a dife-renciam de outras células rítmicas ou generalizamcriações rítmicas (Kebach, 2003c), entre outras ob-servações sobre a construção do conhecimentomusical. Essas observações foram feitas a partir daverificação dos processos de abstração descritos porPiaget (1995). A compreensão do mecanismo geralde construção do conhecimento musical é impor-tante para a compreensão do funcionamento dascondutas psicológicas musicais.

Segundo Maffioletti (2005), autora que anali-sa e explica os processos de composição musicalinfantil e é fiel à teoria piagetiana, Swanwick e Tillmantambém procuram compreender os processos deconstrução musical pela teoria de Piaget. Porém,para a autora, “O significado de visão dialética paraKeith Swanwick não tem relação com a dialética pró-

6 A teoria do conhecimento de Hume segue a tradição empirista e norteia as idéias behavioristas. Para os empiristas, a origem dasidéias estaria na experiência sensível. Desse modo, quanto mais próximas da percepção que as originou, mais nítidas e precisasseriam as idéias. As idéias, para Hume, por mais abstratas que sejam, são, assim, sempre cópias de impressões sensíveis. O modode operar da mente por associações, além das impressões sensíveis, é fonte das idéias (Marcondes, 1999).7 Na prova da seriação auditiva, as crianças deveriam organizar do mais grave ao mais agudo oito sinos de formato idêntico, porémcom notas diferentes (Kebach, 2003b). Procurei conversar livremente, com base no método clínico piagetiano, sobre as organizaçõesrealizadas pelas crianças em todas as provas clínicas musicais, para seguir a lógica de seus pensamentos. Todas as provas estãodescritas e analisadas na dissertação de mestrado (Kebach, 2003a).

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pria dos processos de pensamento estudados porPiaget” (Maffioletti, 2005, f. 54). Maffioletti (2005, f.50) explica que os trabalhos de

Swanwick e Tillman analisam as composições a partirdas gravações prontas. Embora eles tenham afirmadoque sua preocupação não era com o produto, e simcom o processo, não há relatos sobre as ações dascrianças no desenrolar dos trabalhos de composição.

Concordo com a autora quando esta diz queseria necessário o registro sobre a movimentaçãocorporal realizada durante a composição, bem comoa livre conversação com as crianças sobre suas con-dutas musicais para que fosse possível uma expli-cação sobre os processos de abstração. Assim,Swanwick e Tillman parecem deformar as idéias dePiaget sobre o funcionamento e estruturação cogni-tiva, pois não descrevem em suas pesquisas dadosrelevantes como as ações das crianças no momen-to em que realizam abstrações procurando estruturaros sons musicalmente. A importância do movimentocorporal na compreensão musical é citada em pes-quisas atuais como a de Ciavatta (2003) e Bündchen(2005). Na obra desses autores fica claro que naconstrução musical a ação precede a compreensão.

Vejamos, de modo resumido, os tipos de abs-trações, segundo fontes endógenas ou exógenas.Basicamente, Piaget se refere a quatro tipos de abs-trações que o sujeito realiza, de acordo com seusesquemas de assimilação, no momento em que agesobre os objetos a serem descobertos. Quando aação do sujeito se detém apenas nas característi-cas materiais do objeto musical ou em suas ações,num amplo ato de exploração, em que observa aspropriedades físicas em jogo, ou seja, detém-se nosobserváveis,8 enfim, realiza ações sem comparaçõesou relações entre os elementos de uma determina-da estrutura sonora, falamos que ele realiza umaabstração empírica (fonte exógena). A abstraçãoempírica pode levar a êxitos imediatos sobre os ob-jetos (por exemplo, bater a pulsação correta, ao ex-plorar um gesto sonoro), mas não garante a genera-lização desse ato para a resolução de problemasfuturos, pois é um processo de construção dosobserváveis parcial, baseado em percepções imedi-atas, sem novas construções. Porém, tem sua ori-gem em abstrações reflexionantes precedentes. Em

termos musicais, poderíamos exemplificar esse tipode abstração, quando a criança pequena não dissociaos parâmetros do som, confundindo-os: diz que amúsica está com maior intensidade, quando é tocadade modo mais grave, por exemplo. Nesse caso, acriança ainda não construiu essa diferenciação e nãoconstruirá via abstração empírica. Pela abstraçãoempírica, ela simplesmente “sente” que algo é dife-rente, mas não sabe designar o que, pois simples-mente explora o material em jogo, sem possuir es-quemas suficientes para uma possível comparaçãooperatória. Entretanto, essa exploração é importan-te, pois constitui a fonte das primeiras informaçõese exercícios sobre o objeto.

Para explicar as abstrações que caracterizamo processo de diferenciação dos elementos em jogoem uma determinada estrutura (que pode ser a mu-sical) e integração dos mesmos nas estruturas men-tais em forma de novos esquemas de ação, Piaget(1995) utiliza o conceito de abstração reflexionante.A abstração reflexionante (fonte endógena) consisteem retirar das coordenações das ações novas ca-racterísticas (materiais ou mentais) que o própriosujeito exerce sobre os objetos, no momento emque procura conhecer algo novo. Através do estabe-lecimento de relação entre a novidade e aquilo quejá conhece, o sujeito amplia suas estruturas cogni-tivas, e poderá usar esse conhecimento em eventosfuturos. Diferencia determinadas propriedades e in-tegra esse novo conhecimento às suas estruturasmentais. Por exemplo, toda a vez que uma criançaconsegue criar células rítmicas obedecendo a umapulsação ou criar trechos musicais obedecendo aum centro tonal, está mobilizada por esse tipo deabstração, através de regulações ativas.

A abstração reflexionante, em seu sentidorestrito, diz respeito às regulações ativas incons-cientes (coordenações de ações que caracterizama inteligência prática9). Em seu sentido amplo,envolve os processos de abstrações pseudo-empírica e refletida.

A abstração pseudo-empírica é um tipo deabstração reflexionante que difere da abstraçãoempírica pelo fato de que o que está em jogo nãosão as características observáveis dos objetos, mas

8 Por exemplo, força de um gesto sonoro, som global produzido, arranhar, agarrar, puxar, bater livremente num instrumento, observara cor, o timbre.9 Segundo Piaget, a ação precede a compreensão, ou seja, o sujeito pode obter êxitos no nível prático, o que não o levanecessariamente a conseguir explicar de que modo agiu para realizar determinada tarefa. A compreensão é uma ação bem maiscomplexa que requer nova reorganização mental. O processo que leva à compreensão é realizado pela tomada de consciência dosmecanismos em jogo (regulações ativas, coordenação de ações, organizações, encadeamento de ações, etc.) no momento derealização de ações sobre os objetos visando à resolução de problemas.

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as coordenações de ações projetadas nos objetos enas ações em suas características materiais, namedida em que o sujeito compara, mede, identifica,diferencia e integra o conhecimento às suas estrutu-ras mentais. Assim, enquanto na abstração empíricaobservam-se elementos isolados da estrutura emjogo, na tentativa de resolução dos problemas, naabstração pseudo-empírica ocorre o estabelecimen-to de relações em nível mental. Essas relações sãofeitas entre aquilo que o sujeito observa nos objetos(suas características materiais, por exemplo, a com-paração de duas fontes sonoras, entre seu gestosonoro, cujas mãos batem uma célula rítmica e a deoutro colega, realizando a mesma tarefa, etc.), ouentre a comparação de um objeto presente e outroausente, apenas representado mentalmente. Dito deoutro modo, o sujeito compara o que havia observa-do em momentos passados com o que realiza atual-mente (por exemplo, a regulação de seu timbre vo-cal na interpretação de uma obra musical, em rela-ção à voz do cantor que interpreta a canção original,mesmo que seja para se expressar de modo diferen-te). Ao realizar abstrações pseudo-empíricas, o su-jeito já tem esquemas suficientes ou um esquemabásico do objeto para que possa coordenar suasações, através do estabelecimento de relações, so-bre o objeto atual, aprendendo-o e ampliando seusesquemas de ação. A abstração pseudo-empírica éa que mais se aproxima das condutas do nível ope-ratório concreto (operação sobre dados concretos).Existe, nesse nível, tomada de consciência (Piaget,1978b) ainda parcial sobre as operações realizadas.Desse modo, a inteligência não é ainda formal: nãose consegue teorizar com total reversibilidade sobredados observados e ações realizadas, expressandoos eventos através de implicações significantes10

(Kebach, 2004). Essas implicações são ainda parci-ais. A inteligência ligada à abstração pseudo-empíricatende mais à prática. A partir dela, a título de ilustra-ção, um sujeito pode criar células rítmicas, peque-nos trechos musicais, executar ritmos mais com-plexos, porém pode não conseguir explicar tudo oque fez no momento de sua produção.

O quarto tipo de abstração que Piaget abordaestá ligado a um quadro de inteligência superior.Nesse caso, refere-se à abstração refletida que con-siste num nível superior de reflexão, pois se dá emnível de estabelecimento de relações apenas men-tais, não havendo a necessidade de ação materialdo sujeito sobre os objetos para compreendê-los.Opera-se formalmente. Através das informações que

o sujeito já retirou e estruturou em ações passadas,ele consegue agir mentalmente, refletindo novas pos-sibilidades de estruturar o objeto. A abstração refleti-da é rigorosamente reflexionante, na medida em queo sujeito diferencia e integra o novo conhecimentoem patamares superiores de sua inteligência. As-sim é que alguns compositores não precisam ir aosinstrumentos para conseguirem, por exemplo, es-crever uma música em forma de partitura. Ou, emsua forma mais simples, um músico consegueteorizar sobre suas técnicas para obter melhores tim-bres em seu instrumento. Através desse tipo de abs-tração o sujeito consegue expressar, em forma deimplicações significantes, todas suas condutas cri-ativas e exeqüíveis e pensar em novas possibilida-des de organização dos dados. Quando o sujeitoatinge o êxito prático e representativo, permitido pelomecanismo de pseudofenocópia, numa execução oucriação e consegue expressar as condutas que rea-lizou, caracterizando o núcleo funcional dos aconte-cimentos, então, nesse caso, age a partir de abstra-ções refletidas. Elas dão continuidade às regulaçõesativas e implicam tomadas de consciência das rela-ções entre as propriedades de uma determinadaestrutura que garantem sua totalidade. Em termosmusicais, poderíamos dizer que as propriedades sãoos elementos da linguagem musical e a totalidade éa música em si (organização desses elementos coma intencionalidade musical).

Se todas essas regulações ativas, através deabstrações empíricas e reflexionantes são necessá-rias para que haja o fenômeno da pseudofenocópia,que “parece” ser algo inato, enquanto ato “naturali-zado” frente aos olhos daqueles que apreciam osresultados de uma construção musical, então, deforma alguma podemos pensar que existam estrutu-ras musicais herdadas. Existem sim, estruturasconstruídas progressivamente, na relação necessá-ria entre sujeito e objeto musical.

Conclusões

Em termos musicais, para ser específica, todaa vez que o sujeito se encontra diante de uma novasituação de ação sobre o objeto musical, em queseus esquemas de assimilação sejam mobilizadospela necessidade de apreender algo novo, agir deoutra forma, ou explicar os eventos sonoros, procuradiferenciar essa novidade e integra essa diferencia-ção em seus esquemas de ação. Fará isso a partirdo que já construiu em relação à música. Como já

10 Expressão de significados musicais e a reunião destes em forma de conexões lógicas.

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disse, quando consegue uma execução musical, porexemplo, tão natural que pareça herdada (inata), nãose imagina que este conhecimento foi construídonuma longa interação do indivíduo com o objeto mu-sical. Através do mecanismo de adaptação, quePiaget chama de pseudofenocópia, automatiza suasações, para que não precise pensar em cada gesto,ação ou organização, portanto põe em prática uma“medida econômica” de agir de modo adaptado. Apseudofenocópia se refere a um conhecimentoendógeno construído pelo sujeito a partir de constru-ções exógenas comparáveis às variações fenotípicas.Aparece em forma de condutas referentes aos obje-tos construídos. No caso desse estudo, procureiexplicar esse processo de fenocópia cognitiva no quese refere às construções musicais (performance,compreensão e diferenciação dos elementos da lin-guagem musical, capacidade de composição, im-provisação, etc.).

Seguindo a epistemologia genética, dessemodo, proponho o seguinte: é na ação sobre a músi-ca, como objeto a ser construído, e não numa re-cepção passiva de comandos exteriores ou audiçõessem reflexão, ou ainda por herança genética, que osujeito se constrói musicalmente. Esses são argu-mentos fortes para aqueles professores de músicaque se deparam com alunos, quase sempre adul-tos, que dizem que não “nasceram para serem mú-sicos”. É a partir da mobilização dos esquemas deação referentes à música, através das perturbações

interiores frente aos desafios do meio, que o sujeitose constrói musicalmente. Para o professor de mú-sica, é essencial que conheça os processos deaprendizagem musical, para que possa tornar suasaulas significativas e, portanto, produtivas.

Neste artigo, procurei, desse modo, apontarbrevemente os processos de estruturação musicalprogressiva, buscando proporcionar reflexões paraos pesquisadores da área de música e cognição.Procurei também abordar conceitos que possamsubsidiar teoricamente as condutas práticas doseducadores musicais. A partir do ponto de vistapiagetiano construtivista e interacionista, as ativida-des em ambiente de educação musical devem serdesafiadoras, significativas e devem levar em contaas construções já realizadas pelos alunos em ambi-entes diversificados.

Resumidamente, quanto mais desafios musi-cais, quanto mais ofertas forem proporcionadas,quanto maior o contato com capitais culturais musi-cais diversificados, maiores serão as construçõesdos sujeitos em relação à música. É por isso que“filhos de músicos”, muitas vezes, se tornam gran-des músicos. Mas essas estruturas musicais nãoestão “no sangue”! São construídas progressivamen-te, obedecendo a uma gênese estrutural gerada pelainteração entre “os filhos dos músicos” e o ambientemusical no qual eles nasceram.

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Recebido em 14/02/2007

Aprovado em 15/06/2007

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Atuando como professora de Flauta Doce eEducação Musical Coletiva por um longo período detempo, procurei compreender como ocorre a apren-dizagem musical de crianças e adolescentes. Re-centemente, estudando a obra de Piaget sob a ori-entação da Profª Drª Tamara S. Valente, especial-

Aspectos figurativos e operativosda aprendizagem musical de

crianças e pré-adolescentes, pormeio do ensino de flauta doce

Renate Lizana WeilandEscola de Música e Belas Artes do Paraná

[email protected]

Tamara da Silveira ValenteUniversidade Federal do Paraná (UFPR)

[email protected]

Resumo. O presente trabalho investiga como se dá a interação entre os aspectos figurativos e osoperativos na aprendizagem musical mediante o ensino de flauta doce, baseado no Modelo C(L)A(S)P.Apóia-se teoricamente na Epistemologia Genética de Jean Piaget e na Teoria e Modelo Espiral deDesenvolvimento Musical de Keith Swanwick. Os dados empíricos foram coletados a partir de umaintervenção, realizada em uma Escola Pública, na cidade de Curitiba. Os sujeitos foram crianças de 7 a12 anos, alunos que participaram voluntariamente de um processo de ensino de música por meio daflauta doce. A pesquisa compreende a criação de recursos e estratégias figurativas visando promovero pensamento operativo dos alunos, mediante o aprendizado musical. Os resultados demonstram queestes recursos levam os alunos à operatividade desejada, facilitando a aprendizagem musical.

Palavras-chave: Piaget, Modelo Espiral de Desenvolvimento Musical, flauta doce

Abstract. This research investigated the relationships between figurative and operative aspectsthroughout the learning of music by means of recorder lessons based on C(L)A(S)P Model. This studywas grounded in Jean Piaget’s theoretical concepts as exposed in Genetic Epistemology and in KeithSwanwick’s concepts as proposed in his Theory of Spiral Model of Musical Development. The datawere collected through an intervention applied on some children from seven to twelve years old, at apublic school in Curitiba-PR. They freely agreed to take part in a music learning process by studyingrecorder. Figurative recurs were created based on the C(L)A(S)P Model to cope with the transversalmethodology used in the research. The results showed that figurative aspects proposed in themethodology contributed with the students to build their operative thinking in musical learning.

Keywords: Piaget, Spiral Model of Musical Development, recorder

mente os aspectos figurativos e operativos da apren-dizagem, procuramos trazer estas reflexões para aárea musical. Considerando as recentes pesquisasna área, o ensino musical não deveria se restringirapenas a dominar habilidades específicas e técni-cas instrumentais na execução de músicas na flau-

WEILAND, Renate Lizana; VALENTE, Tamara da Silveira. Aspectos figurativos e operativos da aprendizagem musical de criançase pré-adolescentes, por meio do ensino de flauta doce. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 49-57, set. 2007.

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ta doce, mas deveria buscar o desenvolvimento mu-sical do aluno, incluindo diversas formas de interaçãocom a música, integrando as atividades de compo-sição, execução e apreciação, apoiadas na técnicae literatura musicais.

Para compreender como as atividades acimacitadas se processam no pensamento da criança,estudos sobre cognição musical (Cestari, 1983;Sloboda, 1985; Hargreaves, 1986; Beyer, 1988; Lino,1998; Kebach, 2003; Maffioletti, 2005), apoiadosepistemologicamente na teoria de Piaget, apontama interação do sujeito com o objeto como explica-ção para o desenvolvimento das estruturas e do co-nhecimento.

A opção pelo uso do Modelo C(L)A(S)P deve-se ao fato deste priorizar um ensino através doengajamento ativo e direto com a música. O ModeloC(L)A(S)P (Swanwick, 1979) consiste num modelode parâmetros ou atividades musicais no qual o alu-no se desenvolve musicalmente através das ativida-des de execução, composição e apreciação musi-cal, como atividades centrais, apoiado na literaturae na técnica como atividades periféricas.

Por meio de pesquisa realizada durante oMestrado em Educação, a proposta foi de investigarcomo se dá a interação entre os aspectos figurati-vos e os aspectos operativos na aprendizagem mu-sical por meio do ensino de flauta doce.

Piaget (1970, p. 15), ao fazer analogia entre abiologia e a psicologia, descreve a inteligência comouma forma de adaptação, “um caso particular deadaptação biológica, […] essencialmente uma orga-nização e que sua função é a de estruturar o univer-so como o organismo estrutura o meio imediato”.Para sobreviver, o organismo necessita atuar sobreo meio, adaptando-se a ele, o que pode ocasionarmodificações tanto no meio quanto no próprio orga-nismo. A adaptação é, então, um processo ativo, poiso organismo, ao adaptar-se, está se modificando e,por sua vez, modificando o meio. Para que a adapta-ção ocorra, o organismo conta com dois processosdistintos: a assimilação e a acomodação. A assimi-lação é a “ação do organismo sobre o meio, comincorporação real ou simbólica deste e modificaçãodo meio para poder incorporá-lo” (Delval, 2001, p.32). Quando esta ação não é possível, o que sugereum conflito cognitivo, o organismo precisará de ou-tros esquemas para resolver seus objetivos e faráuso da acomodação, “modificação do organismo,desencadeada por efeitos do meio, que tem comofinalidade incrementar a capacidade de assimilaçãodo organismo e, finalmente, a adaptação” (Delval,2001, p. 32). Portanto, o desequilíbrio com o meio

está na origem da ação, pois, para que ocorra o avan-ço, é necessário que os esquemas iniciais, que nes-se caso são insuficientes para resolver o conflito, semodifiquem.

Para Piaget (1964), conhecer um objeto é agirsobre ele, e a operação é a essência do conheci-mento. A operação é uma ação interiorizada, reversí-vel e nunca isolada, ligada a outras operações e sem-pre parte de uma estrutura total; essas estruturasoperacionais constituem a base do conhecimento.

Segundo Dolle (1983, p. 58), “agir, é no finaldas contas, coordenar esquemas entre si ou encaixá-los num sistema regido por leis de totalidade”. Es-quema pode ser definido como uma “sucessão deações (materiais ou mentais) que têm uma organi-zação e que são suscetíveis de repetir-se em situa-ções semelhantes” (Delval, 2001, p. 29). Um esque-ma possui um caráter de um sistema de relações namedida em que coordena entre si diversas ações, eele é, em si mesmo, a estrutura da ação.

Piaget (1964) propôs quatro fatores que expli-cam o desenvolvimento cognitivo: maturação, expe-riência, interação social e equilibração. Esses qua-tro fatores interagem entre si e juntos são responsá-veis pelo desenvolvimento da criança.

Sobre o primeiro fator, Piaget (1964) explicaque a maturação é importante e não pode ser igno-rada. Ela toma parte em cada transformação queacontece durante o desenvolvimento da criança.Sabe-se que a ordem desses estágios é constantee tem sido encontrada em diferentes sociedadesestudadas, mas as idades cronológicas desses es-tágios variam bastante, demonstrando que só amaturação não é suficiente para explicar as mudan-ças que ocorrem no indivíduo.

O segundo fator é a experiência, que Piaget(1964, p. 178, tradução nossa) cita como “obviamenteum fator básico no desenvolvimento das estruturascognitivas”. Este autor distingue dois tipos de expe-riência que são psicologicamente muito diferentes,mas que são importantes do ponto de vista pedagó-gico: a experiência física e a experiência lógico-ma-temática. A primeira consiste na ação da criançasobre os objetos, abstraindo conhecimento atravésdas suas propriedades físicas. Já na segunda, aexperiência lógico-matemática, a criança tambémage sobre os objetos, mas o conhecimento é dedu-zido de suas ações sobre os objetos. “É o começoda coordenação das ações, mas essa coordenaçãodas ações antes do estágio das operações precisaser suportada por material concreto. Mais tarde, essacoordenação de ações leva às estruturas lógico-mate-máticas” (Piaget, 1964, p. 179, tradução nossa).

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O terceiro fator é a transmissão social. Piaget(1964, p. 180, tradução nossa), que muitas vezes écriticado de modo infundado sobre o fato de menos-prezar o aspecto social, preocupou-se também como fator social, quando deixou claro que “esse fatormais uma vez é fundamental”; explica que, mesmosendo fundamental, esse fator em si não é suficien-te, “porque a criança pode receber informação valio-sa via linguagem ou via educação, dirigida por umadulto, somente se ela estiver em um estado quepossa entender essa informação”. Para isso a crian-ça precisa de uma estrutura que seja capaz de assi-milar essa informação.

O quarto fator, chamado de equilibração, é umfator auto-regulador e coordena os demais fatores.Permite a busca de um novo equilíbrio, uma novaadaptação a partir de uma situação de desequilíbriocognitivo. Em todo o avanço no conhecimento é fun-damental a instituição do desafio e do conflitocognitivo. No ato de conhecer, o sujeito ativo, ao sedeparar com uma perturbação externa, reagirá a fimde compensar o desequilíbrio causado e tenderá avoltar ao equilíbrio. Este, definido por compensaçãoativa, levará à reversibilidade, “onde a transformaçãoem uma direção é compensada por uma transforma-ção em outra direção” (Piaget, 1964, p. 181, tradu-ção nossa).

Tendo estudado crianças e adolescentes pormais de 50 anos, Piaget conclui que os mesmospassam por estágios de desenvolvimento, apesar decada indivíduo realizar isso no seu ritmo próprio. Aprincipal idéia não é a de enquadrar as crianças emestágios estanques; antes, o autor pretende expli-car as importantes transformações qualitativas queocorrem no desenvolvimento cognitivo. A ordem desucessão dos estágios é constante e cada estágioé definido por suas estruturas que sucessivamenteintegram as estruturas de conhecimento adquiridasnos estágios precedentes. Para entender o desen-volvimento do conhecimento, é necessário entendera formação, a elaboração, a organização e o funcio-namento das estruturas.

Indiscutivelmente, a obra de Piaget é bastan-te significativa, e é importante o seu estudo por par-te dos professores que trabalham com a construçãodo conhecimento musical. Na obra A formação dosímbolo na criança – Imitação, Jogo e Sonho, Ima-gem e Representação, Piaget (1975) acompanha pas-so a passo, através de observações minuciosas sobreseus próprios filhos, a gênese da representação.

Piaget (1975) defende que a representaçãoderiva em parte da imitação, que fornece seussignificantes imaginados, e em parte também do jogo,

na medida em que evolui da sua forma inicial de exer-cício sensório-motor para sua segunda forma – jogosimbólico ou jogo de imaginação. Sobre a imitação,Piaget insiste que não se trata de uma técnica here-ditária ou instintiva, mas de uma ação aprendida,sendo a imitação uma das manifestações da inteli-gência da criança. Na imitação ocorre o predomínioda acomodação, sendo a imitação considerada umprolongamento da acomodação, enquanto no jogosimbólico ocorre o predomínio da assimilação.

Através da interiorização da imitação, a inteli-gência tem acesso ao nível da representação, a par-tir da função simbólica ou semiótica. Esta permite àcriança representar os objetos ou acontecimentosnão percebidos no momento, por meio de símbolosou signos diferenciados. A capacidade pertence àfunção simbólica ou semiótica: os meios são a lin-guagem, a imitação diferida, a imagem mental, odesenho, o jogo simbólico (Dolle, 1983).

Piaget estudou detalhadamente como ocorrea passagem dos esquemas sensório-motores paraos esquemas conceituais. Entre o pensamento pré-conceitual e o pensamento operatório “pode interca-lar-se certo número de termos intermediários, con-forme o grau de reversibilidade atingido pelo raciocí-nio”, aparecendo entre os quatro e sete anos da cri-ança, com o nome de pensamento intuitivo; esteimplica uma lógica transdutiva, que segundo Piaget(1975, p. 300) gera um raciocínio carente de“imbricações reversíveis”. Por isso é que a criançausa um tipo de lógica, que expressa pré-conceitos,que só ela entende.

A criança, no período pré-operatório, faz usodo pensamento intuitivo recorrendo às diversas ima-gens mentais do seu repertório, e para transformaressas imagens em conceitos percorre um longo ca-minho, sendo esse processo bastante lento.

Através da representação, a criança passarápor uma lenta evolução estrutural que lhe forneceráa possibilidade do aparecimento da linguagem ver-bal. A formação de conceitos integra um complexosistema de assimilações e acomodações. Mas oconceito supõe ainda uma acomodação suplemen-tar: a reunião de todos os dados aos quais ele serefere e que estão fora do campo perceptivo atual oudo campo das antecipações e reconstituições queinteressam à ação.

Discorrendo sobre a operação, Ramozzi-Chiarottino (2002, p. 103) explica:

É uma ação tornada reversível. Esta reversibilidadenão é outra coisa senão a expressão de um equilíbriopermanente alcançado entre uma acomodação

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generalizada e uma assimilação não deformante: areversibilidade é, de fato, a possibilidade de reencontrarum estado anterior de dados, não contraditório com oestado atual (assimilação), e um estado tão real ourealizável quanto este estado atual (acomodação). Éeste equilíbrio móvel e reversível que assegura aconservação dos conceitos e dos juízos e que regulatanto as correspondências das operações entreindivíduos (troca social do pensamento) quanto osistema conceitual anterior a cada um.

O processo fundamental que assinala real-mente a passagem do equilíbrio sensório-motor parao equilíbrio representativo consiste em que no perío-do sensório-motor a assimilação e a acomodaçãoacontecem sempre no campo da ação, e no segun-do as assimilações e as acomodações anterioresinterferem a guisa de estruturas, como condição paraque os presentes processos representativos se as-sentem. Esses processos só se equilibrarão rumo àdescentração que resulta no equilíbrio estável entrea assimilação e a acomodação, tendendo a umaestrutura então finalmente reversível, já no pensa-mento operatório.

Aspectos figurativos e operativos

Uma vez que a criança esteja de posse dafunção simbólica, ela é capaz de diferenciar ossignificantes dos significados, o que lhe permite en-tão evocar objetos ou situações, constituindo o co-meço da representação.

Piaget (1973, p. 71) explica que

o aspecto figurativo do pensamento representativo étudo o que se dirige às configurações como tais, emoposição às transformações. Guiado pela percepçãoe sustentado pela imagem mental, o aspecto figurativoda representação desempenha um papel preponde-rante (no sentido abusivamente preponderante edependendo precisamente das transformações) nopensamento pré-operatório […] o aspecto operativodo pensamento é relativo às transformações e se dirigeassim a tudo o que modifica o objeto, a partir da açãoaté as operações.

Dolle (1983) igualmente se refere a esses doisaspectos diferentes da representação do pensamen-to: o aspecto figurativo e o aspecto operativo do co-nhecimento. O aspecto figurativo refere-se a tudo quese relaciona às configurações, por oposição às trans-formações, sendo guiado pela percepção e imagemmental. Ramozzi-Chiarottino (2002, p. 79) completa:

Há três tipos de conhecimento figurativo: a percepção,que funciona exclusivamente em presença do objeto epor intermédio de um campo sensorial; a imitação, nosentido amplo (imitação gestual, fônica, imitação gráfica,ou desenho, etc.), funcionando na presença ouausência do objeto, mas através de manifestaçãomotora manifesta, e a imagem mental, que só funcionana ausência do objeto e por meio da reproduçãointeriorizada.

Segundo Cestari (1983), o aspecto figurativodesempenha um papel preponderante no período pré-operatório, e o aspecto operativo no período das ope-rações concretas. Para que a criança possa realizara representação gráfica da música, são necessáriostanto os aspectos operativos do pensamento, navinculação entre as condutas da correspondênciasom/grafia, como os aspectos figurativos do pensa-mento, para as condutas utilizadas na construçãodo símbolo (Cestari, 1983, f. 79).

No período sensório-motor e no pré-operató-rio, os esquemas são estruturas importantes e as-sim continuam existindo em todos os períodos dodesenvolvimento humano. Quando a criança passado período pré-operatório para o operatório, ela pas-sa não somente à ação, mas sobretudo à compre-ensão dessa ação, o fazer sendo condição neces-sária para o compreender (Piaget, 1978). No níveloperatório, o fazer não deixa de existir, mas podeser acionado pela representação, passando pelocompreender. Piaget (1978, p. 176), em sua obraFazer e Compreender, cita:

Fazer é compreender em ação uma dada situação emgrau suficiente para atingir os fins propostos, e com-preender é conseguir dominar, em pensamento, asmesmas situações até poder resolver os problemaspor ela levantados, em relação ao porquê e ao comodas ligações constatadas e, por outro lado, utilizadasna ação.

Beyer (1995) cita um exemplo bastanteiluminador para essa questão, ao explicar a obser-vação realizada em seu filho, que, aos 25 meses,realizava vocalmente sons de glissandos ascenden-tes quando via um objeto em movimento de subida,ou glissandos descendentes ao observar movimen-tos descendentes. A criança conhecia a relação en-tre o espaço físico e o musical, dominando o fazer,mas ainda não possuía uma reflexão sobre esse fa-zer que a levasse a compreender o que fosse gravee agudo. Sendo assim, a criança não saberia nessaidade emitir um conceito sobre a altura do som, masconseguia fazer com que sua voz subisse ou des-cesse acompanhando coerentemente o movimentocorporal.

Educação musical

Já no início do século XX, pedagogos e músi-cos como Jacques-Dalcroze, Willems, Kodály e Orff(Paz, 2000) enfatizavam a necessidade da vivênciasensorial, corporal e auditiva para a educação musi-cal. Mais recentemente, vários autores enfatizam anecessidade de um envolvimento direto com a músi-ca, ou seja, não somente um ensino musical basea-do nos aspectos teóricos, mas um ensino baseadono engajamento ativo do sujeito com a música. Para

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que isso possa ocorrer, vários autores, como Gainza(1990), Hargreaves (1986), Mills (1991), Paynter eAston (1970), Plummeridge (1991), Reimer (1989),Schafer (1991), Swanwick (1979), Swanwick eRunfola (2002), defendem a utilização de três ativi-dades de envolvimento direto com a música: a apre-ciação, a execução e a composição musicais.

Estes autores da área musical concordamnuma questão importante também defendida porPiaget: de que o conhecimento se origina a partir daação do indivíduo e não da simples percepção. Aatividade do sujeito sobre o objeto a ser conhecido éque vai determinar o que ele vai aprender. Conformeesses educadores musicais, a construção do co-nhecimento em música é um processo ativo, no qualcada aluno deverá ter a oportunidade de se envolverdiretamente.

O termo atividade refere-se, no entanto, aoengajamento ativo no qual o sujeito é o agente doseu conhecimento, não preconizando a simples ati-vidade pela atividade, antes, valorizando a experiên-cia que leva o sujeito a construir seus esquemaspara conhecer. O professor desempenha um papelimportante na condução dessa atividade, pois é elequem formula os questionamentos e as suposiçõespara que o aluno construa seu conhecimento.

Swanwick (1979) propôs uma integração, bemcomo certa hierarquia a partir das cinco atividadesmusicais: composição, apreciação, performance,estudos de literatura e técnica, no qual anunciou oModelo C(L)A(S)P. A sigla C(L)A(S)P refere-se a ati-vidades de composição – C (Composition), aprecia-ção – A (Audition) e performance – P (Performance)também denominada de execução, como atividadescentrais, ao lado de atividades de suporte, periféri-cas como aquisição de habilidades ou habilidadestécnicas – S (Skill acquisition) e estudos sobre aliteratura musical – L (Literature). Os parênteses nasigla indicam que estas atividades assinaladas sãoperiféricas.

Nesse modelo, que não é um método de edu-cação musical, mas antes carrega em si uma visãofilosófica sobre a educação musical, Swanwick ad-voga um equilíbrio entre as diferentes atividades. Tam-bém estabelece uma hierarquia em relação às ativi-dades centrais de envolvimento direto com a músi-ca: composição, apreciação e performance e asperiféricas, concernentes aos estudos de literaturae técnica.

As implicações curriculares do ModeloC(L)A(S)P no ensino musical são de importância fun-damental também nas aulas de ensino de instrumen-

tos musicais. O fato de considerar a técnica e litera-tura como periféricas faz com que o ensino instru-mental deixe de ser somente uma reprodução dehabilidades técnicas e motoras.

Segundo França e Swanwick (2002), essasatividades deveriam compor a agenda de uma edu-cação musical ampla e integradora, pois a experiên-cia em uma modalidade do fazer musical pode enri-quecer, reforçar e iluminar a experiência em outramodalidade. Segundo os autores,

isto se dá porque o produto relevante de uma atividadeé a aquisição de conhecimento musical, que não seresume simplesmente em se saber teoria ou conceitos,ou saber que Beethoven escreveu nove sinfonias –isto é conhecimento sobre música, e não de música[…] Conhecimento de música corresponde aoentendimento do funcionamento dos elementos damúsica como linguagem: as dimensões referentes aosmateriais sonoros, ao caráter expressivo e à estrutura,conduzindo à valorização da música como discursosimbólico relevante tanto a nível pessoal quanto coletivo.(França; Swanwick, 2002, p. 42, grifo dos autores).

As atividades presentes no Modelo C(L)A(S)Ppassam a fazer parte das aulas de música:

A composição, vista como ferramenta de en-sino em sala de aula, refere-se ao ato de organizaridéias musicais elaborando uma peça, seja umaimprovisação rítmica com instrumentos de percus-são ou uma combinação de notas dentro de um es-tilo específico proposto. Segundo Swanwick (1979),a composição é importante para desenvolver a com-preensão sobre o funcionamento dos elementosmusicais porque por meio dela o aluno tem liberda-de de escolha dos materiais musicais para expres-sar-se, decidindo como será sua própria obra.

A apreciação musical é certamente a formamais comum de relacionamento com a música paraa maioria das pessoas. Em sala de aula, a aprecia-ção é considerada como um comportamento ativopor parte dos alunos, é necessária uma atitude re-ceptiva para o ouvir, selecionando os sons que seapresentam, de maneira a classificá-los, integrá-los,codificá-los, enfim, organizando auditivamente o queé apresentado. Também através da apreciação po-dem-se expandir os horizontes culturais dos alunos.

A performance musical, segundo Swanwick(1994), abrange todo e qualquer comportamentomusical observável, desde o acompanhar uma can-ção com palmas à apresentação formal de uma obramusical para uma platéia. Muitas vezes, a palavraperformance encontra-se associada a virtuosismoinstrumental, mas não é nesse sentido que aqui estásendo empregada. Cada aluno deve ter a oportuni-dade de usar instrumentos musicais, ou a própria

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voz e o corpo, para poder fazer música de forma cri-ativa, adotando a performance como meio para oprazer da execução musical, sem que para isto sejanecessário um grande domínio técnico. Por outrolado, mesmo a performance mais simples deverápriorizar uma execução musical que busque a me-lhor qualidade artística possível, para que seja umaexperiência musical significativa e relevante, nãoimportando o nível de complexidade envolvida. Nes-te trabalho, o termo utilizado para esta atividade foiexecução musical.

A técnica envolve os aspectos técnicos daaprendizagem musical, sejam estes de domínio ins-trumental, vocal, auditivo e/ou notacional. Os estu-dos de literatura envolvem estudos sobre a música,buscando as perspectivas históricas, a vida dos com-positores e ainda aspectos relacionados aos estilosmusicais, referentes ao repertório escolhido.

A pesquisa realizada propõe-se a discutir osaspectos cognitivos envolvidos nas atividades deengajamento com a música – de forma mais especí-fica, o papel dos aspectos figurativos como suportepara o pensamento operativo nas experiências mu-sicais dos alunos.

A pesquisa de abordagem qualitativa utilizou-se de um estudo de campo de caráter exploratório,com um recorte transversal, ocorreu em uma escolapública estadual em Curitiba, nos anos de 2005 e2006, sendo os alunos provenientes de famílias debaixa renda, com idades entre sete e doze anos.

Na intervenção, as sessões foram filmadas edepois transcritas para posterior análise. Durante osdois anos da pesquisa, formaram-se três grupos dealunos, conforme o tempo de aula que freqüentaram,resultando em três grupos de níveis de aprendizadodiferentes.

Materiais de apoio

Este artigo aborda um recorte da pesquisa,exemplificando algumas atividades, e, portanto, deve-se ter em mente que os alunos participavam de au-las de música e de flauta doce. A flauta doce foi uti-lizada aqui também no sentido do aluno poder exer-cer a operatividade, pois mediante a aprendizagemcom esse instrumento, o aluno pôde integrar os con-ceitos teóricos e ampliá-los, agindo sobre eles.

Como o espaço neste artigo é restrito, apre-sentaremos resumidamente um exemplo de materi-al de apoio para cada um dos três distintos gruposde alunos. Cada grupo escolheu seu nome: SonsDivertidos constituía-se de alunos iniciantes, queparticipavam pela primeira vez de aulas de música e

flauta doce; Clave de Sol, alunos que participavamde aulas de música e flauta doce há dois semes-tres; e Si Bemol, alunos que participavam há trêssemestres das aulas.

O mapa musical diz respeito a uma atividadede apreciação musical, realizado com o grupo dealunos iniciantes, Sons Divertidos. Este recurso pôdeprender a atenção dos alunos, instigando-os a ouvi-rem mais vezes a apreciação proposta pelo profes-sor, mantendo a sua atenção constante.

A decisão entre uma apreciação livre ou umaapreciação mais estruturada requer do professorsensibilidade para perceber o que será mais apropri-ado aos alunos. Bamberger (1995), que realizou es-tudos analisando condutas de crianças durante ofazer musical, procurando investigar o desenvolvimen-to musical das mesmas, atesta a importância de osprofessores estarem atentos às múltiplas escutasdos seus alunos, requerendo atenção a respostasinesperadas por parte dos mesmos. Existem alu-nos, porém, que sem a presença de um materialmais estruturado não conseguem se manter concen-trados na escuta musical, pois para eles os sons sóexistem enquanto estão sendo ouvidos; ainda nãohá a imagem aural, que permite estabelecer signifi-cados, ou relações para discussão posterior.

Também Wuytack e Palheiros (1995, p. 18),em outro estudo com representações gráficas queapóiam a apreciação musical, defendem o uso dematerial estruturado, pois “a representação da es-trutura dos acontecimentos auditivos através de umesquema visual facilita a percepção da unidade, umavez que torna possível aproximar os pormenores semos separar do conjunto”.

A decisão sobre quando usar apreciação livreou apreciação estruturada dependerá do professor,analisando as reações de seus alunos e suas possi-bilidades de respostas ao que está sendo proposto.O mapa musical sempre será visto como uma formade apoio para a atividade principal – a apreciaçãomusical.

Na aula, inicialmente os alunos ouvem a obramusical (primeira parte), sem o material de apoio.Numa segunda apreciação, eles recebem o mapamusical, mas a professora não explica nada sobreos símbolos e desenhos do mesmo, dizendo aosalunos que eles descobrirão o significado. Dessaforma ouvem a música o número de vezes que dese-jarem, a fim de que descubram as relações impli-cadas na representação gráfica.

O mapa musical descreve as ações de equi-valência feitas pelo sujeito, fazendo corresponder um

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som para cada grafia, ou correspondência termo atermo grafia/som. Serve assim, nesse contexto, paraaguçar a curiosidade dos alunos e mantê-los aten-tos à música ouvida. Quando se pede que somenteouçam a música, na maioria das vezes, os alunosnão conseguem se concentrar, em virtude de a mú-sica acontecer no tempo, sendo efêmera e invisível,o que dificulta bastante a sua atenção. Percebe-seque o mapa musical procura valorizar as múltiplasescutas, oferecendo material concreto para apoiar aaudição dos sujeitos.

Para esses iniciantes expressar-se oralmen-te sobre o som não foi tarefa simples. Isso tambémficou claro quando, um aluno, Joh, demonstrando quecompreendeu a relação grafia/som, diz, “é verdade,quando nós bota o dedo aqui faz o trroimmm [sic]”.Joh, ao dizer “botar o dedo”, referiu-se à passagemdo tempo da música, pois o fato de acompanhar como seu dedo indicador cada pulso representado por Oou Ô lhe deu a sensação de que a música aconte-ceu no tempo. O fato de “botar o dedo” e simultane-amente ver o símbolo Ô desenhado no papel e ouviro som acentuado pelos instrumentos de percussão,pratos, demonstra a interação entre o sujeito e oobjeto. Para este sujeito, naquele momento, a suaação de “botar o dedo”, ao longo da série de sons,foi a causa da ocorrência do “trroimmm.”

Sem esse material de apoio, provavelmenteos alunos não teriam interesse em ouvir tantas ve-zes a mesma música e talvez não fossem mobiliza-dos pelas perguntas feitas. A partir dessa aprecia-ção musical, as crianças construíram seu conheci-mento em relação ao significado de pulsação.

Outro recurso figurativo criado, para o grupode alunos Clave de Sol, os quais já tocavam flautadoce, e que foi denominado de cartelas pentatônicas(Figura 2), que se inseriu em uma unidade na qualse estudavam as escalas pentatônicas.

Foram apresentadas aos alunos quatro cartelascom trechos pentatônicos escritos, contendo quatropulsos cada uma. Os alunos, a partir do que ouviam,deveriam ordenar as cartelas de acordo com a seqüên-cia tocada na flauta doce pela professora.

Figura 1: Mapa musical – Bizet Figura 2: Cartelas pentatônicas

Para tal, o aluno deveria ler a cartela, recons-truir no plano mental o som resultante e compará-locom o som emitido pela professora. Tudo foi realiza-do rapidamente, pois aconteceu com as quatro carte-las de forma seqüencial. Somente o aluno que tiveruma estrutura operatória será capaz de realizar essatarefa.

Partindo desse material de apoio, foram reali-zadas outras atividades, nas quais os alunos esco-lheram seqüências diferentes, compuseram novosfinais para trechos iniciados com algumas cartelas,e fizeram composições coletivas.

Para esta atividade de composição em gru-pos, a estratégia dos alunos foi a realização da mon-tagem de uma seqüência apoiando-se na colocaçãoespacial das cartelas, para depois tocar nas flautase comentar o resultado sonoro. Isso mostra que osalunos ainda estavam bastante envolvidos com omaterial concreto e que para eles foi mais fácil ma-nusear primeiro as cartelas para depois analisar oresultado sonoro, confirmando a teoria de Piaget, queressalta a importância do material concreto. A partirdessa atitude, percebe-se que a composição aindanão tinha intencionalidade sonora, no sentido de quenão houve uma antecipação sonora da música com-posta. Antes, pareceu tratar-se do resultado da ma-

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nipulação de materiais que estavam à sua disposi-ção. Os alunos estavam preocupados com a neces-sidade de uma boa performance, para que o outrogrupo pudesse decodificar as cartelas utilizadas.(Diferentemente, em outros momentos, estes mes-mos alunos apresentaram a intencionalidade em suascomposições, tocando a flauta doce, para tomaremas decisões musicais e depois grafá-las).

O propósito desse material de apoio foi deixaros alunos tomarem decisões a respeito de comoqueriam construir a sua música a partir das cartelas,e gradativamente aumentar a liberdade de escolha,até a composição individual nos instrumentos. A pri-meira parte da atividade já permitia ao aluno certaliberdade, na composição em grupos. Ao executarsuas composições, os alunos percebiam se tratarde um código universal, que poderia ser entendido ecompartilhado por outros sujeitos. Isso foi conside-rado como um “preparo” para a atividade que viria aseguir – a composição individual.

Os próprios alunos manifestaram interesse emrealizar uma composição individual, ao dizerem quegostariam de anotar em seus cadernos as suasmúsicas. Todos receberam papel pautado para essefim e grafaram suas composições.

O terceiro material didático, utilizado com alu-nos do grupo Si Bemol, que já freqüentava as aulasde música há mais tempo, foi uma cartela (Figura 3)apresentada aos alunos, seguida da pergunta – Qualserá a música mais longa?

Para elaborar a resposta o aluno já deve pos-suir aspectos operativos do pensamento. Apoiando-se somente nos aspectos figurativos a resposta serábaseada no tamanho físico da composição e não no

Figura 3: Cartela com a atividade “qual a mais longa?”

número de tempos da mesma. Portanto, o aluno teráde comparar os tempos de duração das figuras rít-micas envolvidas na questão. Raciocinando assim,o aluno chegará à conclusão de que o primeiro exem-plo, embora tenha mais notas musicais e fisicamen-te pareça mais longo, ocorrerá em um menor tempo.

Considerações finais

Na prática docente não se pode admitir que oensino de música – tanto teórico como instrumen-tal, fique restrito aos aspectos figurativos, o que ge-raria uma aprendizagem superficial. Assim foram cri-ados diferentes materiais de apoio – aqui denomina-dos de recursos figurativos, que levassem os alunosa exercer um domínio operativo da sua aprendiza-gem musical.

A flauta doce mostrou-se um instrumento muitoadequado para que o aluno alcance a operatividadeno pensamento musical, dando-lhe a oportunidadede explorar o instrumento para retirar dessa experi-ência o conhecimento necessário e colocá-lo a ser-viço dos aspectos abstratos da educação musical.Os recursos e as estratégias criados foram conside-rados dentro do Modelo C(L)A(S)P, levando em con-ta os aspectos figurativos e operativos das diferen-tes modalidades de envolvimento direto com a músi-ca. O Modelo C(L)A(S)P mostrou-se bastante con-veniente ao ensino de música por meio da flauta doce.Propondo um ensino musical abrangente, contem-pla as diversas modalidades de envolvimento com amúsica, e também estabelece uma hierarquia entreas modalidades de envolvimento centrais e as peri-féricas no ensino musical.

Ao realizar este trabalho, consideramos osalunos como parceiros ativos na elaboração de res-postas musicais, enfoque este que difere de um en-sino musical que busca o imediatismo e a poucaprofundidade da simples repetição de conteúdosmusicais. Procuramos ver o aluno como alguém quetem algo a dizer e não como alguém que somentereproduz a execução de músicas ouvidas. Além dis-so, percebeu-se, por meio da análise de dados, queexiste uma grande complexidade cognitiva implicadanas respostas dos alunos, o que indica a necessi-dade da realização de outros estudos na interfacede conhecimento compostas pela psicologiacognitiva e o ensino de música.

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Recebido em 12/02/2007

Aprovado em 10/06/2007

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Grupo de Pesquisa
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O presente artigo surge a partir das inquieta-ções de uma regente de coral universitário sobre suaatividade, na Pontifícia Universidade Católica de Cam-pinas (PUC-Campinas).

A produção de pesquisas relacionadas aocanto coral ainda é escassa no Brasil, em relação à

Coro universitário: uma reflexãoa partir da história do Coral

Universitário da PUC-Campinas,de 1965 a 2004

Ana Yara Campos*

[email protected]

Katia Regina Moreno CaiadoPontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)

[email protected]

Resumo. O artigo reflete sobre o coro universitário, a partir da história do Coral Universitário daPUC-Campinas, de 1965 a 2004. A pesquisa reuniu fontes orais – depoimentos dos quatro regentesque atuaram junto ao coro – e documentais. As fontes indicaram modificações, continuidades e umacrise no presente, caracterizada pela concentração de trabalho, aumento da burocracia, perda deautonomia das regentes e redução da prática coral à atividade de prestação de serviços. O coralvem contribuindo para legitimar a instituição, mas reflete as tendências que a influenciam, hoje, nopanorama do ensino superior brasileiro. No entanto, o coral não pode se isentar de seu compromissoformativo. Espera-se colaborar com a memória da PUC-Campinas (o período anterior a 1983 eradesconhecido antes desta pesquisa) e contribuir para a formação do regente coral.

Palavras-chave: coral universitário da PUC-Campinas, coro universitário, formação do regentecoral

Abstract. The article reflects on the university chorus during the history of the University Chorus ofPUC-Campinas from 1965 to 2004. The study consulted oral resources – interviews with the fourconductors who had directed the group – and pertinent documents. The resources indicated changes,continuities, and a crisis at the present time, signalized by a greater concentration of work, increasedbureaucracy, loss of autonomy of the conductors and limitation of the choral practice to an activityof services execution. The group has contributed to legitimizing the institution, but it reproduces thetendencies that influence it, today, in the panorama of Brazilian Higher Education. However, thechorus cannot run away from its formative responsibility. We hope to collaborate with the memoryof PUC-Campinas (the period previous to 1983 was unknown before this work) and contribute to theformation of the choral conductor.

Keywords: university chorus of PUC-Campinas, university chorus, formation of choral conductors

freqüência com que sua prática é encontrada emestabelecimentos de ensino. Além disso, parte des-sa literatura volta-se para o estudo de aspectos maistécnicos e musicais do que históricos e críticos.

Mas que conhecimentos poderão emergir deum olhar na perspectiva educativa acerca da história

CAMPOS, Ana Yara; CAIADO, Katia Regina Moreno. Coro universitário: uma reflexão a partir da história do Coral Universitário daPUC-Campinas, de 1965 a 2004. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 59-68, set. 2007.

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de um coro, que possam ir além de seus repertóri-os, de sua produção artística particular?

No presente contexto, em primeiro lugar, éimportante explicitar que aqui se entende a “práticaartística” como um direito (não um privilégio) e umanecessidade (não um ornamento):

O ser humano precisa tanto de arte quanto precisa dealimento, [porque] quer conhecer o mundo, […]transformar esse mundo […]. Temos a capacidade denos vincularmos profundamente com a vida, atravésdas diversas formas artísticas. […] Quer dizer: nós, aoolharmos, já estamos pensando; […] ao ouvirmos, jáestamos pensando […]. (Castanho, 2005).

A presença de um coro na PUC-Campinas éobservada desde 1965. Assim, essa pesquisa decaráter historiográfico volta-se para o passado, como objetivo de indagar, pesquisar, registrar, analisar,interpretar e refletir sobre o percurso de quatro déca-das (1965-2004) do Coral Universitário, com vistas acompreender e explicitar seu papel hoje, frente àsdiretrizes político-pedagógicas daquela instituição deensino superior.

Para atingir o objetivo, foi necessário conhe-cer suas práticas, investigar acerca de seus desafi-os, resistências, interesses e contribuições para aformação de seus participantes, tanto coralistas,como regentes e públicos.

Nos primeiros passos da pesquisa, porém,nada se sabia acerca do Coral Universitário no perí-odo anterior a 1983. O grupo era divulgado como ten-do sido criado apenas naquele ano. Esse fato levouà urgência de se construir as fontes orais e recupe-rar as fontes documentais existentes.

Fontes orais e documentais

As fontes orais foram construídas a partir deentrevistas temáticas com os quatro regentes queatuaram junto ao coral na PUC-Campinas no perío-do estudado: Oswaldo Urban (1965-1983), CláudiaArcos (1983-1990), Beatriz Dokkedal (1990-2000) eYara Campos (2000-2004).

Segundo Neves (2003, p. 33), as entrevistastemáticas referem-se a “experiências ou processosespecíficos vividos ou testemunhados pelos entre-vistados […], que fornecerão elementos, informações,versões e interpretações sobre temas específicos”.

Assim, o roteiro para a entrevista foi organiza-do em três eixos: o regente, em sua formação e tra-jetória profissional; o Coral da PUC-Campinas e suaprodução; e a PUC-Campinas como contexto.

As fontes documentais foram relatórios anu-ais, programas, correspondências (ofícios, cartas),anotações dos regentes (impressas, datilografadasou manuscritas), fotografias, publicações institucio-nais (revistas da Universidade Católica e anuários,revista Antena, Revista da PUC-Campinas 2003, Pla-no Estratégico da PUC-Campinas, relatórios do Cen-tro de Cultura e Arte, Catálogo de Projetos de Exten-são 2003, entre outros) e artigos jornalísticos da re-gião de Campinas.

Dada a natureza historiográfica da pesquisa,de um lado avista-se a História em sua concretude ecomplexidade, que resulta das ações humanas.1 Deoutro, a construção do conhecimento histórico, queresulta da pesquisa historiográfica e pressupõe es-colhas do pesquisador, determinadas por sua visãode mundo.

Ao reconhecer a impossibilidade de apreen-são total da realidade, assume-se que os resultadosdessa pesquisa representam apenas aspectos par-ciais do caminho percorrido pelo coral estudado. Alémdisso, o objeto de estudo – o Coral Universitário – ésituado no interior de uma universidade campineira,confessional e comunitária2 – a PUC-Campinas –,por sua vez, parte de um contexto maior: o ensinosuperior brasileiro, inserido numa sociedade de clas-ses e historicamente acessível a uma elite.

A partir da década de 1990, devem ser consi-deradas as políticas neoliberais, que atingem tam-bém a educação e a colocam como mercadoria enão como um direito. Hoje, a universidade está cri-se, com a expansão de empresas privadas na área,sem compromisso com a produção e a socializa-ção do conhecimento. Há uma “abertura generaliza-da do bem público universitário à exploração comer-cial”, à “mercadorização da universidade” (Santos,2004, p. 16-18).

Nesse cenário, voltado para a formação defuturos “especialistas” adequados aos modos de pro-dução da sociedade capitalista – com base no traba-lho fragmentado – (Santomé, 1998, p. 48), os reper-tórios curriculares selecionados são delimitados por

1 Para Marx, o homem é um sujeito histórico e o ponto de partida, concreto e real. “É um ser social e como tal está sempre ligado àscondições sociais. […] Cria a sua História, que é a sua atividade.” (Schaff, 1967, p. 55-56).2 Universidade comunitária é uma universidade “instituída, mantida e supervisionada por uma pessoa jurídica de direito privado, semfins lucrativos, gerida por colegiados constituídos de representantes de professores, alunos e funcionários e da sua entidademantenedora, bem como a sociedade em geral.” (Vannucchi, 2004, p. 31-32).

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“rígidas fronteiras” (Severino, 2002, p. 25). No con-texto do ensino superior brasileiro, as práticas artís-ticas têm ocupado uma posição periférica e acrítica.Desconsideram-se suas contribuições para o desen-volvimento harmonioso dos seres humanos, em suasmúltiplas dimensões (Gainza, 2002a, p. 140; 142-143), conforme revelam estudos nos campos da psi-cologia, pedagogia e seus desdobramentos.3

Entretanto, houve um momento na política edu-cacional brasileira em que o canto coletivo ocupouum espaço significativo nas escolas. No início doséculo XX, acentuava-se a preocupação com umaprodução artística de identidade brasileira, defendi-da por Mário de Andrade, mentor intelectual do movi-mento musical nacionalista. Na década de 1930, aguerra e o Estado Novo provocavam tensão. Foi na-quele contexto, caracterizado pelo panorama políti-co do Governo Provisório, “impregnado de valoresculturais de cunho nacionalista” (Guimarães, 2003,f. 2), que o compositor Heitor Villa-Lobos coorde-nou, a partir de 1931, o projeto pedagógico de cantoorfeônico nas escolas do Distrito Federal, mais tar-de oficializado em nível nacional: uma mescla devalores cívicos e artísticos, que visava fornecer ins-trução musical “culta” à população. No eco dessemovimento, teve início a história do Coral Universitá-rio na PUC-Campinas.

O Coral Universitário da PUC-Campinas, de1965 a 2004

A música está presente na PUC-Campinasdesde a criação do Conservatório de Canto Orfeônico“Maestro Julião”,4 em 1947, agregado à Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras das Faculdades Cam-pineiras, que formava professores especializados emCanto Orfeônico (Guimarães, 2003, f. 72). Quando aLei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de1961 eliminou o canto orfeônico do currículo escolar,foi inaugurado na Universidade Católica de Campi-nas, em 1965, o curso de Licenciatura em Música,com a duração de quatro anos. Os documentospesquisados mostraram que, nessa transição, man-tiveram-se os objetivos anteriores:

Tendo em vista a extinção de todos os Conservatóriosde Canto Orfeônico no Brasil, […] deverá funcionar em1965 a 1ª Série [sic] do Curso de Professor de EducaçãoMusical, da Faculdade de Música, Curso de nível

superior, que realizará os objetivos do Conservatóriode Canto Orfeônico. (Anuário, 1964, p. 216-217).

O Coral Universitário nasceu dentro da Facul-dade de Música. Nos documentos pesquisados, aprimeira vez em que o grupo aparece oficialmentedivulgado data de agosto de 1965, por ocasião da XSemana da Universidade (Vida Universitária, 1965,p. 197), marco zero da pesquisa. A matériajornalística “Encerrou-se o ano letivo na Universida-de Católica”, publicada no Diário do Povo, em no-vembro de 1965, informa que, após as solenidades,“foi realizada uma Vesperal Artística, da qual tomouparte o Coral Universitário, com recital sob a regên-cia do maestro Oswaldo Antônio Urban”, tambémdiretor da Faculdade de Música.

A maior ruptura observada no percurso do co-ral aconteceu entre a extinção do Curso de Música,5

com a saída do maestro Oswaldo Urban, e a entradada segunda regente Cláudia Arcos, em 1983. O gru-po ressurgiu vinculado à Reitoria e à Vice-Reitoriapara Assuntos Acadêmicos, mas sem conexão coma fase anterior.

Cinco anos mais tarde, um Centro de Culturae Arte (CCA) foi estruturado, para intermediar as re-lações entre a Reitoria e o Coral Universitário, oMuseu Universitário e outros grupos artísticos quefossem constituídos naquela universidade.

Ao desligar-se da PUC-Campinas em 1990,Cláudia Arcos indicou Beatriz Dokkedal para ocuparseu lugar junto ao coro. Esta regente, por sua vez,recomendou Yara Campos para assumi-lo em abrilde 2000. Os vínculos do coral com o CCA e destecom a Reitoria mantiveram-se até março de 2003,quando passou a reportar-se à Pró-Reitoria de Ex-tensão e Assuntos Comunitários.

O período de 1990 a 2004 – que correspondeà atuação das regentes Beatriz Dokkedal e YaraCampos – caracterizou-se por uma modernização eampliação da universidade, com investimento na infra-estrutura, informatização, construção de dois gran-des auditórios e surgimento da TV PUC. Em 2003,foram divulgados 41 cursos de graduação e 36 de pós-graduação (Revista da PUC-Campinas, 2003). O pro-jeto político-pedagógico deu ênfase ao trinômio pes-quisa-ensino-extensão (Plano Estratégico…, 2003).

3 Para expandir esse tema, sugere-se a leitura de Ribeiro (2005) e Gainza (1988, 2002b).4 O professor e compositor João Batista Julião (1886-1961) foi um dos pioneiros do canto orfeônico no Brasil. Organizou orfeõesescolares em São Paulo (SP) durante mais de 30 anos (Guimarães, 2003, p. 70-73).5 Segundo a professora Eloísa Lopes (informação oral, 18 mar. 2005), que lecionou no estabelecimento na década de 1970, o curso,com a duração de três anos, teria sido extinto em 1977, dado o reduzido número de alunos. Nessa época, a Faculdade de Músicafuncionava no Instituto de Artes, Campus 1.

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Assim, o Coral Universitário pode ser visto emdois momentos bem distintos. No primeiro, de 1965a 1983, foi marcado pela presença da Faculdade deMúsica e voltado para alunos da universidade. Nosegundo, após 1983, já não havia o curso de Músicano Instituto de Artes.

A falta de um ambiente musical após 1983 –capaz de acompanhar e avaliar suas práticas – foisinalizado, nas entrevistas, como um ponto negati-vo: “[Tinha a] sensação que ninguém entendia o queeu estava falando, porque não havia nada similar [naUniversidade]” (Cláudia Arcos).

Em sua migração interna, o grupo foi deslo-cado do ensino formal para o não-formal. Partiu da“sala de aula”, foi absorvido pela área administrativae alojou-se na Extensão. Esse movimento descreveuma dinâmica de dentro para fora, do centro para asbordas.

Agora, seguem-se algumas evidências queemergiram da análise dos dados da pesquisa.

Uma reflexão

A partir dos depoimentos dos regentes, foipossível perceber similaridades entre eles, localizarmodificações e continuidades no percurso do coral.Essas evidências conduziram à problematização desuas práticas e à compreensão dos desafios enfren-tados, na perspectiva da formação de seus partici-pantes.

Em relação às similaridades, os quatro regen-tes revelaram sua paixão pelo canto coral. Por exem-plo, o maestro Oswaldo Urban – com 86 anos deidade no momento da entrevista, 70 dos quais dedi-cados à música –, revela seu envolvimento com ocanto coral e o justifica:

Eu posso ser suspeito no que vou falar, porque souapaixonado pelo canto coral como meio de expressãoartística. Mas o que eu gostaria de dizer aos jovens dehoje […] é que o canto coral é uma paixão. Uma paixãoque tem uma razão de ser. [A] participação num coralreúne um conjunto de aspectos diferentes que envolvemo ser humano […] e compreende todo seu ser: o corpofísico, sua alma, seu coração.

Beatriz Dokkedal valoriza a prática do cantocoral na universidade, porque “é uma chance que oaluno tem […]. Você acorda uma percepção queestava dormindo e abre possibilidades infinitas nacabeça dos coralistas. Isso é lindo na idade deles,[…] não é?”

Os quatro regentes iniciaram seus estudosde música erudita quando crianças, em conservató-rios de música ou com professores particulares. Sua

formação em regência ocorreu por diferentes cami-nhos, mas todos foram alunos de professoresmarcantes no meio musical brasileiro. Os quatronasceram em cidades próximas a Campinas e can-taram em coros durante muito tempo, antes de co-meçarem a reger. Dois regentes, além da música,têm formação em Pedagogia. Três atuam como re-gentes na cidade. Somente Cláudia Arcos deixou dereger e seguiu a carreira de cantora.

Junto ao Coral Universitário, os quatro regen-tes trabalharam sozinhos. Três deles lutaram paraconseguir a contratação de um regente auxiliar, masisso não aconteceu. Ao mesmo tempo em que regi-am o Coral Universitário, atuavam também em ou-tros estabelecimentos, ou se dedicavam a outraspráticas musicais (nunca houve dedicação exclusi-va à PUC-Campinas). Para nenhum dos quatro oCoral Universitário pareceu ter um significado cen-tral em seu percurso profissional, embora todos te-nham afirmado gostar de trabalhar junto ao grupo.

Os regentes acreditam que a instituiçãomantém o Coral pelo potencial humanizador e inte-grador dessa prática musical, além de requererpoucos gastos:

Em minha opinião, a PUC-Campinas […] valoriza – demaneira especial – a formação humana como um todo,através dessa parcela de arte, que é a música,integrando-a e fornecendo-a para quem está dentrode um curso universitário. Eu acho que dificilmenteteríamos uma formação que fosse, de fato, universitária,sem essa conotação com a música […]. Então, a PUC-Campinas deve ter se conscientizado desse valorextraordinário que é a formação integral do ser humano.(Oswaldo Urban).

A PUC-Campinas sempre se interessou em ter um coro[…] por duas razões principais: […] o coro sempre foio carro-chefe, o filho mais velho, e seu custo demanutenção é muito baixo, precisa de pouca infra-estrutura,. […] diferente da dança, que precisa de umpiso com tratamento adequado, do teatro, que precisade recursos de iluminação, […] o grupo coral nãoenvolve grandes gastos […]. (Beatriz Dokkedal).

Nas fontes pesquisadas, aparecem com fre-qüência frases ambíguas, como “complemento aca-dêmico”, “órgão complementar”, “órgão auxiliar”, en-tre outras, para justificar a presença ou indicar o lu-gar institucional do coral. Nenhum documento ourelato explicitam acerca do significado dessas ex-pressões. Subentende-se, no entanto, que o coralrepresente um “lugar de acesso” à vivência musical,uma vez que as grades curriculares das unidades aca-dêmicas – no período posterior à extinção do curso demúsica – não oferecem essa possibilidade.

As regentes que atuaram após 1983 coincidi-ram na enumeração dos seguintes problemas en-

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frentados: carência de espaço fixo para ensaiar, exi-gências burocráticas aumentadas, falhas de divul-gação, falta de comunicação e rotatividade doscoralistas. Alguns desses problemas aparecem commaior clareza no exame das modificações e conti-nuidades observadas no coral durante o período es-tudado, como se segue.

O que mudou nas práticas do Coral Universi-tário, entre 1965 e 2004?

Entre as modificações, destaca-se avinculação a diferentes instâncias da PUC-Campi-nas (Faculdade de Música, Instituto de Artes e Co-municações, Reitoria, Centro de Cultura e Arte, Pró-Reitoria de Extensão).

Além desse percurso no interior da institui-ção, o Coral Universitário é marcado por sucessivasmudanças de espaços físicos de ensaios, nem sem-pre adequados às necessidades:

Cheguei a ter cinqüenta, sessenta, até setenta vozesno Coral. Não cabíamos na salinha do CCA […]. Entãomudaram nosso espaço […] para o Campus 2, [numa]sala enorme, [e] lá foi pior […], porque, além de sermuito distante, [era] péssima para ensaio e sempremuito suja de giz. As pessoas entravam, começavam atossir e espirrar. Reclamei e voltei para o Campus 1. Foium ano muito conturbado. [Ali] o Coral ensaiou numasala maior ainda. […] Depois, fomos para o Prédio Centrale ainda para a Sede do CCA. Num mesmo ano aconteceutudo isso, com muita reclamação e luta. (Cláudia Arcos).

Essas mudanças de espaço físico prejudica-vam o trabalho e geravam situações de difícil supe-ração, no decorrer do ano letivo:

Já havíamos assumido compromissos […] e nãotínhamos para onde ir; não pudemos suspender asatividades naquele momento. [Iniciou-se a reforma doprédio] e chegamos a ensaiar em meio a tapumes edemolição, em situação precária, durante dois meses.(Yara Campos).

No início, seu local de atividades era natural-mente resolvido junto às unidades acadêmicas doensino formal. Entretanto, a separação do ensinoformal e a aproximação com as instâncias adminis-trativas instauraram um nomadismo, que caracteri-zou o percurso do grupo até o final de 2004, fatoconcomitante e contraditório ao processo de expan-são da Universidade: “À medida que novas instala-ções eram inauguradas, perdíamos nossas salaspara ensaiar. E assim fomos resistindo…” (Yara Cam-pos).

O perfil dos coralistas também se alterou como passar do tempo, em função das diferentesvinculações institucionais e variações de espaço fí-sico. Na época de Oswaldo Urban, até 1983, o CoralUniversitário foi restrito a alunos da Faculdade de

Música e alunos de outros Institutos. Com CláudiaArcos, depois de 1983, começou a abertura à comu-nidade externa, que se manteve até o presente.

Um outro aspecto que aparece na história docoral é a gradativa exclusão dos alunos dos cursosnoturnos após o ano 2000, impedidos de corresponderàs exigências intensificadas de horários e compro-missos do grupo.

O surgimento da bolsa-estímulo, em 1984 –desconto na mensalidade para o aluno coralista,mediante freqüência e participação satisfatórias nocoral – foi um outro marco no histórico do coro. Fun-cionou como um “chamariz”:

As mensalidades da universidade eram caras. Então,foi criada uma bolsa que correspondia a cinqüenta porcento da mensalidade do curso mais barato. […] A partirdas bolsas, [Cláudia Arcos] começou a ter um grupobem maior. A bolsa foi um divisor de águas, […] umchamariz. (Beatriz Dokkedal).

Mas o benefício da bolsa-estímulo produziucontradições. Teria contribuído para modificar os in-teresses dos alunos coralistas na prática do cantocoral, vista agora como “serviço pago” e não como“acesso” ao conhecimento musical e enriquecimen-to cultural. Teria produzido desigualdade de privilégi-os entre os coralistas que recebiam a bolsa-estímu-lo, os ex-alunos e os colegas vindos da comunidade,sem direito à bolsa, mas igualmente empenhados eresponsabilizados em seus compromissos com o coro.

Entretanto, na opinião dos regentes entrevis-tados, mesmo que a bolsa-estímulo funcionassecomo um “chamariz”, as razões que de fato manti-nham o coralista enraizado no Coral eram o prazerde cantar, o intercâmbio com pessoas de outras áre-as do conhecimento e a experiência de pertenci-mento a um grupo:

Embora [funcionasse como] um primeiro atrativo, ospróprios coralistas me diziam que estavam ali não pelabolsa-estímulo, mas porque gostavam de cantar – esseera o motivo mais forte –, porque era gostoso o convívioem grupo, fazer amizades com pessoas de outrasáreas do conhecimento […]. (Yara Campos).

No coro havia um intercâmbio, um entrelaçamento depessoas […] vindas de outras unidades daUniversidade. […] O coro é um grupo e todo mundoprecisa fazer parte de um grupo. […] Quando você sesente lá no meio, cantando e somando, é emocionante![…] É a força de um somando com o outro […]. É asolidariedade, o companheirismo […]. Tem a música,que, claro, é a essência de tudo. Mas tem a força dogrupo, do trabalho coletivo. (Beatriz Dokkedal).

Cláudia Arcos chamou a atenção para inte-resses mais específicos dos universitários:

Os alunos de Direito diziam que precisavam aprender a

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ser mais extrovertidos, para o exercício da futuraprofissão. […] Já a busca dos alunos de Medicina eraaliviar, pensar em outra coisa que não fossem asquestões árduas [da] área médica, quando ficamfechados em laboratórios estudando anatomia. Elesdiziam: “Que delícia vir aqui no Coral! Quando canto,esqueço daquele cheiro de formol”.

Na evolução histórica do coral, as mudançasdiscutidas até aqui foram acompanhadas de um si-multâneo deslocamento ou readequação dos objeti-vos do trabalho. Suas práticas, no início, estavamcompromissadas com a formação de futuros profes-sores de Educação Musical. Porém, a partir de 1983,suas ações voltaram-se para a integração acadêmi-ca e para a realização de apresentações públicas.Ainda que o grupo buscasse manter como alvos odesenvolvimento e aperfeiçoamento musical de seusparticipantes – e aqui não se trata somente de umabusca, mas de uma necessidade, em vista do perfil“leigo” da maioria dos coralistas –, emergiu e crista-lizou-se a noção de prática coral como “atividade desensibilização”, com a função de prestar serviçospara a instituição, por meio de seus “produtos cultu-rais”, conforme indicam os textos de fôlderes e pro-gramas do Coral Universitário.

Como um recurso para diminuir essa lacunaformativa, em alguns momentos do percurso do Co-ral Universitário, as regentes Cláudia Arcos, BeatrizDokkedal e Yara Campos ofereceram oficinas depercepção e leitura musical para coralistas. Houvetambém as “Práticas de Formação e o Curso de In-trodução à Regência Coral, com a duração de umano, no qual se inscreveram mais de trinta regentese professores de música [da região], em 2001” (YaraCampos).

Todavia, essas iniciativas foram esporádicas.Embora avaliadas como positivas, não chegaram aacontecer com regularidade. A agenda do coral pas-sou a ser cada vez mais volátil – com solicitaçõesde última hora – e exigente, em relação à disponibi-lidade de tempo e de deslocamento para as apre-sentações públicas. O coral chegou a realizar 35apresentações num só ano (Relatório…, 2001). Con-siderando o perfil dos participantes – não musicistas–, a duração do ano letivo e os dados dos relatóriosdas primeiras décadas do coral, esse número é altoe indica que a produção do coral transformou-se emprodutividade, com tendência ao ativismo. Isto é,houve aumento da concentração do trabalho,notadamente depois do ano 2000: “De produção,passamos à produtividade. De atividade, passamosa um ativismo” (Yara Campos).

O papel dos regentes também se modificou.Segundo suas próprias falas, com o passar do tem-po, novas tarefas começaram a ser requisitadas.

Nos anos de 1965, o regente Oswaldo Urbanera visto como um músico educador: maestro e pro-fessor de música. As regentes que o seguiram, po-rém, foram solicitadas para o exercício de tarefasadicionais – como recitais de canto, realização deoficinas, participação em cursos de extensão paraalunos de graduação e desdobramentos do coral emoutros grupos. Relata Cláudia Arcos: “era algo queme alegrava de um lado e me desgastava de outro.Cheguei a cantar até no Conselho dos Reitores, emBrasília, Uberlândia, São Paulo…”. Essas novas atri-buições não estavam previstas no vínculo de traba-lho, não resultaram de uma revisão do plano de car-reira e não foram desacompanhadas de oposição:

Surgiam solicitações de oficinas, […] parcerias diversas[…]. Meu perfil de trabalho não é esse. […] Eu nãogostava, não queria ir, não achava justo ir pelo mesmosalário que a gente recebia… O argumento, a desculpa– desculpa, não! – a “ordem” era sempre a mesma:“Vocês têm hora sobrando e dá para fazer uma oficinaem tal lugar!”. Eu reagia e falava que […] eu queriaestudar para o ensaio do coro, pesquisar repertório,fazer coisas pertinentes ao trabalho! (Beatriz Dokkedal).

As três depoentes que atuaram após 1983apontaram o aumento da burocracia e o número ele-vado de funcionários administrativos –, alongando oprocesso e tornando lento o fluxo do trabalho. NoCCA, chegou a haver “quatro coordenadores de gru-pos artísticos para nove funcionários administrativos,altamente hierarquizados” (Yara Campos).

Ou seja, a universidade passou a necessitarde um regente com novo perfil, que fosse um músicopolivalente e funcionário burocrata.

Na década de 1990, houve uma crescenteperda de autonomia das regentes, que pode serexemplificada com a obrigatoriedade do uso do cra-chá e, mais tarde, do cartão de ponto por todos osfuncionários “administrativos”:

O estopim foi quando chegou uma cartinha dizendoque nós […] teríamos [que] fazer o cartão digital deponto. […] No meu tempo […] também houve crachá.[…] O cartão digital para mim foi o fim. Resolvi sair. Eu jáestava muito insatisfeita e isso […] foi a gota d’água.(Beatriz Dokkedal).

Tive que me submeter […] ao cartão digital. Foi umtormento. Em primeiro lugar, porque minha função nãoera administrativa. […]. A natureza do trabalho de umregente de coro não se enquadra numa rotina estável,nem de horários, nem de espaços físicos. (YaraCampos).

Na verdade, os próprios mecanismos de con-trole se modificaram. Na primeira fase desse coral,época da ditadura militar, o controle exercido nasuniversidades era de ordem político-ideológica, en-quanto no segundo momento do grupo passou-se aconviver com nítidas pressões administrativas, em

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prol da produtividade e eficácia, interpretadas comotraços da crise institucional que atinge as universi-dades, hoje (Santos, 2004, p. 9).

“A universidade é uma instituição social ecomo tal exprime de maneira determinada a estrutu-ra e o modo de funcionamento da sociedade comoum todo” (Chauí, 2003, p. 1). Sua mudança de “ins-tituição” para “organização” faz com que a práticasocial se apóie na instrumentalidade, no “conjuntode meios [administrativos] para obtenção de um obje-tivo particular”, efetuando operações eficazes, ágeis,de sucesso, regida pelas idéias de gestão, planeja-mento, previsão, controle e êxito (Chauí, 2003, p. 2).

Quanto às situações que se mantiveram najornada desse coral, é interessante destacar quesempre foi um grupo unitário na universidade; não semultiplicou nas décadas estudadas. A organizaçãode eventos e a interação com a vida cultural da cida-de – encontros de corais, parcerias com conjuntosinstrumentais e orquestras, que datam de seus pri-meiros anos –, também são uma constante em suatrajetória. Em eventos intra e extramuros, segundoos depoimentos dos regentes, o grupo representa ainstituição, agrega valor e lhe confere prestígio. Suapresença foi constante nas principais solenidadesda universidade, de maneira que os marcos históri-cos da PUC-Campinas coincidem com os marcos dasprincipais atuações do coro. No dia 16 de março de1973, por exemplo, o jornal Diário do Povo noticiou:

Altas autoridades e um sem-número de convidados[compareceram à] inauguração do campus da PontifíciaUniversidade Católica. […] Participou das solenidades[…] o Coral da PUCC [sic], regido pelo maestro OswaldoUrban […], Diretor do Instituto de Artes e Comunicações,[que] abriu a cerimônia entoando o Hino Pontifício, logoapós os presentes terem cantado o Hino Nacional sobacompanhamento da Banda da Escola Preparatória deCadetes do Exército. […] O Coral cantou o Hino aoReitor, composição do maestro Oswaldo Urban […](Inauguração…, 1973).

A forte correspondência entre o coro e a insti-tuição está expressa no próprio nome do Coral. Àmedida que a PUC-Campinas, em sua evolução histó-rica, fazia-se veicular sob diferentes siglas (UCC,PUCC, PUCCAMP, PUC-Campinas), ou sempre quehouvesse uma recolocação do Coral no interior da ins-tituição, o nome do coro mimeticamente se alterava:Coral da UCC, Coral PUCCAMP, Coral do CCA, etc.Cláudia Arcos narra que “houve uma época em que umgrupo de coralistas quis criar um nome [para o coral],uma sigla, mas não resultou em nada” (Cláudia Arcos).

Esse “anonimato” sinaliza que a identidadedesse coral não tem sido outra, senão a da própriauniversidade. Nas falas dos regentes, apareceu aexpressão “cartão de visitas”, para justificar a manu-

tenção do coral, frente aos problemas enfrentados.“O Coral da PUC-Campinas mantinha um contatopróximo com a Reitoria. Era o cartão de visitas daUniversidade Católica de Campinas” (OswaldoUrban). Ou ainda: “lembro-me muito bem da primei-ra audiência com o reitor. Ele queria ter um coro nauniversidade, porque achava importantíssimo. Sabiaque um coral podia ser um cartão de visitas da Uni-versidade” (Cláudia Arcos).

Ao examinar o conjunto das fontes historio-gráficas, no entanto, identifica-se uma crise no Co-ral Universitário, que se instalou aos poucos e con-solidou-se no tempo presente. Essa crise se mani-festa, simultaneamente, na ausência de diálogo coma universidade, na gradativa diminuição de participa-ção dos estudantes, no pouco público que compare-ce às apresentações internas, nas pressões para aprodutividade, na falta de espaço próprio para osensaios, na escassez de uma divulgação interna dequalidade, na carência de um contexto de músicaou de arte, capaz de avaliar suas práticas, segundocritérios, e ter condições de gerir de maneira com-petente e consciente suas ações.

No final do período estudado, houve uma con-vergência desses desafios junto ao coral. Pensar quebasta resolver, por exemplo, o problema do espaçofísico, pode ser um engano. Ajudará, mas talvez nãoseja suficiente para dar conta do impasse atual. Asdificuldades são mais complexas. Por exemplo,como articular o coro como espaço universitário “de-sinteressado”, que não vale “créditos” para a obten-ção do “diploma”, que não representa um produto aser comercializado, à universidade “interessada” dopresente?

É certo que a universidade vem garantindo apresença do coral em seu território. Só é precisoexaminar que presença é essa. Se há interessesque justificam a manutenção do coro, que interes-ses são esses?

Sempre que passava por situações difíceis,[perguntava-me]: “Por que [a PUC-Campinas] quer terum coral? Será que é porque [o] relaciona à Igreja? […]Está preocupada com a imagem de uma alta cultura, deprestígio, que o coro possa contribuir para legitimar?Um instrumento de marketing?” (Yara Campos).

Se o Coral Universitário está inserido numestabelecimento de ensino, é pressuposta sua res-ponsabilidade educativa e compromisso com a for-mação de seus participantes. Se aqui se entende“formação” como possibilidade de superação queconduz à emancipação, cabe olhar para a resistên-cia de quatro décadas do Coral Universitário na PUC-Campinas e perguntar: “Houve superação em suaspráticas sociais?”.

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Considerações finais

Uma primeira consideração a fazer é que nãose pode falar numa história do Coral Universitário naPUC-Campinas que seja autônoma e universal. Nãoé autônoma, porque o Coral Universitário só existe apartir de um grupo constituído por sujeitos históri-cos, orientados por uma concepção musical singu-lar e sua produção de quatro décadas dependeu decircunstâncias muito específicas. Não é universal,porque a interpretação das fontes historiográficas ea síntese apresentada são apenas uma das versõespossíveis: a história desse coral, contada na pers-pectiva de seus regentes. Quais seriam as versõesgeradas pelas centenas de coralistas que passarampelo grupo? Que história seria contada por funcioná-rios e professores da universidade? Que diria o pú-blico freqüentador das audições?

No entanto, pode-se considerar que o CoralUniversitário, a partir da voz de seus regentes atuan-tes entre 1965 e 2004, também produziu felicidade,além de canções; produziu valores humanos, alémde eventos; cultivou o patrimônio artístico-cultural dopassado, para além das influências da indústria cul-tural; e contribuiu para ampliar a percepção de mun-do de seus participantes, além de promover o conví-vio social e a integração acadêmica.

O valor cultural desse grupo transcende suaação técnico-musical. Seu histórico, compreendidoem dois momentos, articula-o à memória musicalda cidade e à evolução do próprio canto coral, a par-tir do canto orfeônico. A presença do coral na univer-sidade atesta o pioneirismo da PUC-Campinas noensino superior regional, com o oferecimento de cur-sos de música quando ainda não havia um movimentomusical similar na cidade.

O grupo não surgiu em 1983 – como era co-nhecido e divulgado antes dessa pesquisa – masem 1965, na Faculdade de Música da UniversidadeCatólica, por sua vez, sucedânea do curso de forma-ção de professores de orfeão, instituído em 1947.Isso quer dizer que o coral se traduz num testemu-nho de quase seis décadas de canto coletivo na ins-tituição.

O rompimento com o ensino formal e a apro-ximação com órgãos administrativos propiciou o apa-recimento de problemas, cujo agravamento, a partirde 1990, conduziria a uma crise, caracterizada pelatendência à produtividade, aumento da burocracia eperda de autonomia das regentes.

A resolução de alguns desses obstáculos, nopercurso do Coral, foi resultado da vontade e habili-dade políticas e competência dos regentes, quando

aliadas às de autoridades e gestores da universida-de. Mas nem sempre houve a superação real e efeti-va dos problemas, pois, se o coral representa a ins-tituição, reflete suas realizações e também seus di-lemas.

A crise do ensino superior brasileiro que semanifesta, hoje, sob a égide do neoliberalismo, pro-jeta-se também sobre o coro. Assim, após 1990, emgrande parte, os problemas do coral estão relacio-nados e condicionados à superação da própria criseque perpassa o ensino superior brasileiro, na atuali-dade, da qual a PUC-Campinas, mesmo em suanatureza comunitária, não está imune. A tendênciano ensino superior que o transfigura de instituiçãopara organização também se manifesta no âmbitodo coral, que deixa de ser um coro institucional (quecontribui para legitimar), para assumir-se como umcoro utilitário (cujos serviços devem ser utilizados).

Se aqui a prática artística é concebida comopossibilidade educativa e se todo ato educativo é umaprática social intencional (Saviani, 2003, p. 13), istoé, movida por interesses, será fundamental uma to-mada de posição. No âmbito do Coral estudado, atomada de posição corresponderia a uma rejeiçãoda concepção de prática coral como “atividade” re-duzida a um treinamento técnico-musical, desacom-panhada da crítica e autocrítica, e à rejeição de suafunção limitada à prestação de serviços. Na pers-pectiva interna – dos regentes e coralistas –, o Coralsó realizará um salto qualitativo mediante uma con-cepção educativa emancipatória, voltada para a for-mação musical de seus participantes. É preciso ela-borar um projeto educativo para o Coral Universitá-rio, mesmo que sem a preocupação de definir deantemão o lugar institucional ideal, porque, ao incor-porar pesquisa-ensino-extensão como tríadeindissociável, onde quer que o coral esteja locado,suas ações convergirão para esses pontos.

Já na perspectiva mais ampla e complexa daPUC-Campinas, não é possível definir qual o papelatual do Coral Universitário, porque isso depende dodiálogo que se mantenha entre as partes – institui-ção e coral – e, mais que isso, seu papel será de-terminado pela tomada de posição que a própria uni-versidade assumir no panorama do ensino superior,hoje, sob o domínio do neoliberalismo, que fortifica aexclusão social, dá as costas ao histórico autorita-rismo da sociedade brasileira (Chauí, 2001, p. 13),descarta a “intelectualidade da arte” (Castanho, 1982,2005) nas políticas educacionais – porque é “inútil”no mundo do trabalho – e mantém a visão estereoti-pada e confortável de música como enfeite e nãocomo necessidade; como um privilégio e não comoum direito; música para esquecer e não para co-

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nhecer; música como complemento e não comoacesso.

Logo, a contradição decorrente da luta que setrava entre os interesses de um possível projetoeducativo emancipatório do Coral Universitário e osinteresses do mercado que cercam a PUC-Campi-nas na atualidade será o maior obstáculo a ser ultra-passado.

Quanto às interações entre o coral, a univer-sidade e a sociedade, se por um lado o mercado, aoinfluenciar, “rege a universidade”, e o regente, ao re-ger, “influencia” seus coralistas, como produzir umaoposição que mantenha essas tensões sob contro-le, menos autoritárias, menos desviantes de suasintenções educacionais, que defendem o acessodemocrático ao ensino superior e à arte, no discur-so, mas não criam meios para efetivá-lo?

Espera-se que algumas das contribuições ine-rentes a este estudo, além de fornecerem subsídios

para intervenção num presente concreto, tenhamcolaborado para a reunião de documentos que seencontravam dispersos, para a construção de rela-tos de pessoas e memórias de fatos esquecidos oudesconhecidos, para o registro da memória musicalda PUC-Campinas e para a formação do regente coralatuante em estabelecimentos de ensino.

Por sua natureza historiográfica, este traba-lho não se conclui. É um caminho aberto, como aHistória. As considerações finais buscaram somen-te apontar e socializar aspectos que, enquanto me-mória, não sejam olvidados; enquanto presente, pro-voquem a reflexão; enquanto experiência vivida e re-fletida, encorajem para uma ação transformadora.

Se por meio da arte é possível ampliar a per-cepção e captar o mundo, será na via histórica, nomovimento dialético entre o passado e o presente,que se encontrarão os fundamentos para transformá-lo. Que soe o coral num cântico novo.

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Recebido em 15/02/2007Aprovado em 18/06/2007

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Este trabalho apresenta os resultados de umapesquisa participante, na área de educação musi-cal, realizada com professores de ensino fundamen-tal do município de Cabedelo (PB), durante o ano de

Educação musical nas escolasde educação básica: caminhos

possíveis para a atuação deprofessores não especialistas

Luis Ricardo Silva QueirozUniversidade Federal da Paraíba (UFPB)

[email protected] Mousinho Marinho

Universidade Federal da Paraíba (UFPB)[email protected]

Resumo. Este trabalho tem como base uma pesquisa participante realizada junto a professores doensino fundamental do município de Cabedelo (PB), contemplando profissionais que não possuemformação específica na área de música, mas que, de certa forma, podem contribuir para a educaçãomusical dos estudantes no contexto escolar. O trabalho abrangeu, de forma integrada, práticas deensino, pesquisa e extensão, favorecendo a formação continuada de professores para trabalharcom a música nas escolas e possibilitando um levantamento de conteúdos e metodologias significativaspara a atuação nessa realidade. Com base na literatura da área de educação musical e em dadosempíricos coletados junto aos professores, pudemos verificar que esses profissionais têm grandecarência para trabalhar com a música na sala de aula, tanto no que se refere ao domínio deconteúdos quanto no que diz respeito às estratégias metodológicas. Tal fato aponta para anecessidade de pensarmos em ações e estudos que permitam (re)definir caminhos para a educaçãomusical no universo da educação básica, estabelecendo alternativas reais para a atuação deprofissionais que, mesmo sem uma formação específica na área, podem desenvolver propostassignificativas para o ensino e aprendizagem da música nas escolas.

Palavras-chave: formação de professores, educação musical, educação básica

Abstract. This paper is based in a research carried out with teachers of compulsory education atCabedelo city (Paraíba). It regards professional that do not posses specific formation in the musicfield, however, they may contribute for the musical education in the school context. The work treatin an integrated way, practical of education, researches as well as extension, improving the continuedteachers education to work with music in schools, moreover, making possible a survey of contentsand significant methodologies for the performance in this reality. Based in the literature of musicaleducation subject and in the empirical data, we could claim that these professionals have great lackto work with music in the classroom, to bring out lower domain of contents as well as lowermethodological strategies. This fact points out the necessity to think actions that allow create newways for the musical education in the universe of the compulsory education, in order to establishalternatives for the performance of these professionals that, despite the fact of they not have aspecific formation, can develop significant purpose for education and learning of music in theschools.

Keywords: teacher training, musical education, Compulsory education

2006. O trabalho abrangeu, de forma integrada, ativi-dades de ensino, pesquisa e extensão, tendo comoprincipal objetivo favorecer a formação continuada deprofessores atuantes no município para realizarem

QUEIROZ, Luis Ricardo Silva; MARINHO, Vanildo Mousinho. Educação musical nas escolas de educação básica: caminhospossíveis para a atuação de professores não especialistas. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 69-76, set. 2007.

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práticas de ensino e aprendizagem da música nocontexto escolar, refletindo sobre conteúdos e pro-cedimentos metodológicos contextualizados com ouniverso dessa realidade educacional. O projeto foirealizado a partir de uma parceira entre o MEC/Sesu,a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Se-cretaria de Educação do Município de Cabedelo,1 Asatividades foram realizadas entre os meses de feve-reiro e dezembro de 2006, contemplando especifica-mente os professores de artes, que atuam de 5a à 8a

séries, e os professores de 1a à 4a séries, que atuamde forma polivalente.

As concepções educacionais que fundamen-taram a proposta foram alicerçadas por uma amplapesquisa bibliográfica na área de educação musicale afins, permitindo que, a partir do confronto da lite-ratura já existente com dados empíricos da realida-de do ensino de Cabedelo, pudéssemos construiruma proposta de formação continuada contextua-lizada com as necessidades e os objetivos das es-colas e com as perspectivas da área de educaçãomusical na atualidade.

A música, por sua forte e determinante rela-ção com a cultura, ocupa dentro de cada universosocial um importante espaço com significados, valo-res, usos e funções que a particularizam de acordocom seu contexto de produção e/ou assimilação(Blacking, 1995; Hood, 1971; Merriam, 1964; Myers,1992; Nettl, 1983; Nettl et al., 1997; Queiroz, 2004).Tal fato faz do fenômeno musical um importante esignificativo elemento da vida humana, capaz de ex-pressar características diversificadas da relação dohomem consigo mesmo, com a natureza, com asociedade e com a cultura.

Nesse sentido, a música é um importante sis-tema de expressão cultural e artística com valoreducativo particular, que a insere no processo detransmissão de conhecimento como linguagem dife-renciada de outras formas de estruturação e(des)organização dos saberes.

Estudos de áreas como a educação musical,a etnomusicologia, a antropologia e a educação emgeral, entre outras, têm enfatizado a importância damúsica, e das demais linguagens artísticas, para asociedade, para a cultura e, conseqüentemente, parao ensino (Duarte Júnior, 2002; Fonterrada, 2005;Gainza, 1988; Geertz, 1989, 2004; Paynter, 1991;Queiroz, 2004; Schafer 1991a, 1991b, 2001). Essaperspectiva demonstra a necessidade de pensarmos

em propostas de formação musical no universo cul-tural de cada sociedade, contemplando espaçosmúltiplos de produção e transmissão de conhecimen-to. Somente promovendo experiências diversificadasde ensino da música no universo das escolas deeducação básica é que poderemos proporcionar, auma parcela significativa da sociedade, a oportuni-dade de vivenciar, experimentar e compreender o fe-nômeno musical nas suas distintas formas de ex-pressão. Considerando que a escola de educaçãobásica, é, a priori, o único espaço educacional ver-dadeiramente democrático, o qual todos os cidadãostêm o direito de freqüentar, qualquer outro universode ensino da música será de alguma forma seletivoe, conseqüentemente, excludente.

Desde a década de 1930 propostas de ensinode música nas escolas são experimentadas no ce-nário educativo brasileiro. É dessa época a criaçãoda Superintendência de Educação Musical e Artísti-ca (Sema), que foi dirigida pelo compositor HeitorVilla-Lobos. Na direção desse órgão, Villa-Lobos con-seguiu respaldo governamental para instituir o cantoorfeônico como obrigatório nas escolas – a partir de1931 para o Distrito Federal e posteriormente, em1942, para todo o Brasil. Essas iniciativas marca-ram a institucionalização do ensino de música naescola regular e apontaram para a sua importânciana formação dos indivíduos em sua fase deescolarização básica (Brasil, 1997; Beyer, 1993;Hentschke; Oliveira, 1993; Paz, 2000).

Depois de trinta anos como base do ensinode música nas escolas, o canto orfeônico se tornouenfraquecido em seu conteúdo e em sua metodologiade aplicação. Tal fato está diretamente relacionadoà ausência de políticas que fortalecessem a forma-ção de professores com competências necessáriaspara conduzir essa proposta de ensino. Assim, ocanto orfeônico foi substituído na década de 1960por alternativas mais amplas, que deveriam compora proposta da educação musical nas escolas. Valedestacar que o termo “educação musical” surgiu pelaprimeira vez, na legislação educacional brasileira,com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)4.024 de 1961 (Brasil, 1997).

A partir desse período, as mudanças estéti-co-musicais, embasadas nas perspectivas pós-mo-dernas, trouxeram novas configurações pedagógicaspara o campo da música. Surgem, nessa época,propostas como as das oficinas de música, e asdefinições para a educação musical passam, então,

1 Este projeto fez parte do Programa Educação Ambiental, Educação Sexual e Educação Musical na Escola: formação continuada deprofessores de escolas públicas de ensino fundamental do município de Cabedelo-PB, aprovado pelo Proext 2005/2006 MEC/Sesu.

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a conceber a criação musical, a educação auditiva,a exploração de novos recursos materiais/sonoros,o rompimento com o tonalismo, entre outros aspec-tos, como elementos de significativo valor para ensi-no da música na contemporaneidade (Gainza, 1988;Paynter, 1991; Queiroz, 2000; Schafer, 1991a, 1991b,2001). Essa visão trouxe novas perspectivas para aeducação musical nas escolas, entendendo comoválidas e necessárias práticas e experiências musi-cais que utilizem recursos que transcendam o uni-verso da música “tradicional” ocidental. As oficinasapresentam possibilidades abrangentes de produçãomusical, que se mostram contextualizadas com arealidade das escolas do país e com o que se espe-ra de um ensino de música democrático e acessível,sendo alternativas ainda válidas na educação musi-cal contemporânea (Fernandes, 1997).

A LDB 5.692 de 1971 gerou novos direcio-namentos para o ensino de música na escola, quepassou a fazer parte da proposta polivalente da edu-cação artística, estabelecida por essa Lei como ati-vidade obrigatória nas escolas de 1o e 2o graus (atu-almente denominadas de escolas de ensino funda-mental e médio). Essa mudança na legislação ge-rou a criação de cursos de formação de professoresde educação artística (nas modalidades licenciaturacurta e licenciatura plena) nas universidades brasi-leiras. Cursos esses que tinham como objetivo for-mar profissionais para atuar nas diferentes áreas dasartes (artes cênicas, artes plásticas e música). Ofe-recidos em dois anos para a licenciatura curta e emquatro anos para a licenciatura plena, os cursos deeducação artística formaram professores, em dife-rentes regiões do país, que até hoje atuam nas es-colas brasileiras (Penna, 1995, 2001, 2003).

A partir de 1980, a arte passa a ter um movi-mento educacional mais organizado, surgindo nes-sa época os cursos de pós-graduação na área, quepossibilitaram um aumento significativo da produçãode conhecimento nesse campo. Com base em tra-balhos de pesquisa e nas novas propostas pedagó-gicas, inclusive da Federação dos Arte-Educadoresdo Brasil (Faeb), criada em 1985, os cursos respon-sáveis pela formação em artes começam a estabe-lecer um perfil mais específico para cada um dosseus campos de atuação. Essa perspectiva partedo princípio de que cada linguagem artística possuicaracterísticas particulares, e que a busca de umapolivalência no ensino dos seus conhecimentos erainadequada para que se privilegiasse a qualidade e aprofundidade da formação em artes plásticas, artescênicas e em música.

A criação da Associação Brasileira de Educa-ção Musical (Abem) em 1991 é, sem dúvida, um

marco para o ensino de música no Brasil. A associ-ação, desde sua origem, tem gerado um grande nú-mero de publicações na área, e favorecido, atravésde seus encontros nacionais e regionais, a troca deexperiências entre educadores musicais das váriasregiões e contextos educacionais do Brasil. Desdea sua criação a Abem tem gerado debates significa-tivos em torno de questões como o perfil do profissi-onal atuante no ensino de música, a reformulaçãodas estruturas curriculares dos cursos de formaçãode professores, e a necessidade de participação efe-tiva em políticas públicas educacionais que favore-çam a inclusão da música na escola e a formaçãode profissionais para atuar nesse universo. Essestemas, que se tornaram emergentes na área, vêmexigindo novas (re)definições e novas atitudes frenteà realidade do ensino de música no cenário educativobrasileiro.

As discussões, os debates e o representativocrescimento das áreas artísticas possibilitaram con-quistas importantes na legislação do país, valendodestacar a inclusão das artes como conteúdo obri-gatório para as escolas de educação básicaestabelecida pela LDB vigente (Lei 9.394 de 1996).Com a lei, houve a exclusão da nomenclatura “edu-cação artística”, sendo estabelecido o termo “arte”como representativo do universo das diferentes lin-guagens da área (Brasil, 1996). O uso da expressão“arte”, ainda de forma genérica e abrangente, apre-senta alguns problemas, pois não deixa clara a im-portância e a necessidade de que sejam trabalha-dos, especificamente, o ensino de artes visuais, demúsica, de teatro e de dança. Esse fato tem geradointerpretações diversas dos profissionais que atuamnas definições da estrutura escolar, e que, muitasvezes, ainda pensam num ensino artístico polivalentee com carga horária excessivamente reduzida, o queo torna desprovido de profundidade em cada umadas linguagens das artes.

Como fundamentação para os direcionamentosdas propostas de ensino de cada área de conheci-mento, o Ministério da Educação (MEC) elaborou epublicou os Parâmetros Curriculares Nacionais(PCN). Esses documentos tinham a finalidade deservir como referências e como sugestões para aatuação dos professores na educação básica. OsPCN para o Ensino Fundamental, de 1a à 4a séries –1o e 2o ciclos – (1997) e de 5a à 8a séries – 3o e 4o

ciclos – (1998), trazem documentos específicos paraa área de artes, garantindo em sua proposta a inde-pendência de cada uma das linguagens artísticas,entre as quais a música. O documento para o ensi-no médio (1999), embora não tenha um volume es-pecífico para a área de artes, apresenta, em sua base,proposta que também prioriza o desenvolvimento dos

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alunos em pelo menos uma das linguagens artísti-cas, garantindo o aprofundamento necessário para osconhecimentos básicos em artes visuais, ou música,ou teatro, ou dança (Brasil, 1997, 1998, 1999).

Dessa forma, o ensino de música nas esco-las brasileiras, diante de uma trajetória de erros eequívocos, mas também de avanços e descobertas,ainda precisa de estudos e de ações concretas quepossam fortalecer a sua estruturação e os seusdirecionamentos pedagógicos na educação básica.Em se tratando das séries iniciais do ensino funda-mental (1a à 4a séries), a situação ainda é mais gra-ve, tendo em vista que o professor responsável pelodesenvolvimento das atividades relacionadas ao en-sino de artes e, conseqüentemente, ao de música éo regente de classe, que atua de forma polivalente,ministrando os conteúdos de, praticamente, todasas áreas do conhecimento (Penna, 1995, 2001).

Entendemos que, em face dessa realidade,duas alternativas precisam ser adotadas urgentemen-te no cenário do ensino de música no contexto es-colar. A primeira, a médio e longo prazo, está relaci-onada à atuação de um profissional com formaçãoespecífica em música, que possa empreender pro-postas no âmbito do ensino fundamental, inclusivede 1a à 4a séries. Já a segunda alternativa, que podeser concretizada de forma mais imediata, diz respei-to ao oferecimento de cursos de formação musicaldirecionados aos professores das escolas de edu-cação básica. Essa ação não visa a formação deespecialistas, mas sim dar a esses profissionaiscondições necessárias para trabalharem com con-teúdos musicais de forma adequada para o desen-volvimento da sensibilidade e da percepção dos alu-nos. Assim, esses professores teriam condições deencontrar alternativas para proporcionar aos estudan-tes conhecimento da estruturação de linguagensmusicais e acesso ao patrimônio cultural artísticoimaterial caracterizado pela música em suas dife-rentes expressões.

Marisa Fonterrada (1993, p. 72-73) retrataessa perspectiva ao afirmar:

[…] sem dúvida há muitas atividades que o professornão músico pode desenvolver com sua classe paraestimular o gosto pela música; sem dúvida é possívelcantar ou tocar, mesmo que o professor não saiba lermúsica; sem dúvida ele poderá conduzir o interesse daclasse na apreciação do ambiente escolar sonoro oudas imediações. Para isso ele não necessita de forma-

ção específica, mas apenas de musicalidade e interes-se pela música e pelos sons. Mas mesmo para isso énecessário que tenha uma sólida orientação. […] Outrasquestões, porém, são da alçada do professorespecialista, e é ele quem deverá tomar as rédeas doprocesso educativo […].

Com efeito, faz-se necessária a estruturaçãode caminhos que possam fomentar alternativasmetodológicas de ensino de música que atendam arealidade das escolas de educação básica, favore-cendo, sobretudo, a atuação do professor das séri-es iniciais do ensino fundamental. Iniciativas dessanatureza fornecerão subsídios para que esses pro-fissionais possam concretizar atividades de educa-ção musical fundamentais para o processo de for-mação cultural, artística, perceptiva e estética doindividuo.

Considerando as questões apresentadas e dis-cutidas acima, elaboramos uma proposta de ensinode música para escolas de educação básica, com focoespecífico na realidade dos professores de 1a à 4a sé-ries e dos professores de artes de 5a à 8a séries que,em sua grande maioria, não possuem formação espe-cífica em música. O trabalho objetivou, então, propor-cionar aos profissionais atuantes nesse universo umaformação que lhes permita trabalhar com o ensino demúsica, contando com a estrutura, com os recursos ecom as possibilidades reais desses professores noâmbito das escolas de Cabedelo.

Para realizamos o trabalho desenvolvemosduas ações fundamentais que alicerçaram o projetode formação continuada: 1) elaboramos uma propostadidático-pedagógica de educação musical para oensino fundamental; 2) oferecemos um curso de for-mação para os professores, com o intuito de desen-volver conhecimentos e habilidades que julgamosnecessárias para realizarem um trabalho de educa-ção musical nas escolas.

Metodologia para a formação continuada deprofessores do ensino fundamental

O projeto foi realizado pelos membros do “Gru-po de Pesquisa em Ensino e Aprendizagem da Mú-sica em Múltiplos Contextos”2 do Departamento deEducação Musical da UFPB. Ao todo a equipe detrabalho contou com 13 integrantes, sendo três pro-fessores do Departamento de Educação Musical,3

sete bolsistas de extensão – alunos dos cursos deLicenciatura em Música, Bacharelado em Música e

2 O “Grupo de Pesquisa em Ensino e Aprendizagem da Música em Múltiplos Contextos” da UFPB/CNPq foi criado em maio de 2004 etem atuado em trabalhos de pesquisa e de extensão na área de educação musical no Estado da Paraíba. Atualmente o grupo écoordenado pelos professores Luis Ricardo Silva Queiroz e Vanildo Mousinho Marinho.3 Eleonora Montenegro, Luis Ricardo Silva Queiroz e Vanildo Mousinho Marinho.

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Educação Artística (Habilitação em Música)4 –, e trêsvoluntários.5 O projeto foi desenvolvido de acordo coma seguinte metodologia:

1) Estruturação de uma proposta pedagógicade educação musical efetivada a partir dasseguintes etapas:

• Pesquisa bibliográfica.

• Planejamento e seleção das atividades.

• Redação da proposta, enfatizando: afundamentação teórica que norteou asconcepções educacionais, os objetivos, osconteúdos, as atividades metodológicas, osexercícios práticos, e os sistemas deaplicação, acompanhamento e avaliação dotrabalho desenvolvido.

• Gravações de atividades práticas, em áudioe em vídeo, que serviram de ilustrações eexemplos das propostas apresentadas nomaterial didático.

Após a estruturação final do trabalho foi con-cebido um livro, contendo as atividades realizadasnas oficinas, além de outras possibilidades metodo-lógicas de ensino da música. Esse material será dis-tribuído para todas as escolas do município deCabedelo e também para instituições de ensino ebibliotecas públicas de outros municípios e estados.

2) Realização de oficinas com os professores,de acordo com a seguinte metodologia: umavez por mês eram trabalhados com os profes-sores conteúdos fundamentais para o ensinoda música. Durante as oficinas foram arti-culados conhecimentos musicais com pers-pectivas metodológicas para o desenvolvi-mento do trabalho na escola, de acordo coma realidade do contexto em que atuam. Duran-te o projeto foram realizadas oito oficinas queaconteceram entre os meses de março eoutubro. Cada oficina contemplou um temaespecífico, que se inter-relaciona com os de-mais, visando, num todo, apresentar uma pers-pectiva geral de possibilidades para a práticade ensino da música nas escolas. As temá-ticas das oito oficinas contemplaram temasdiversificados conforme relacionado a seguir:

• Oficina 1 – Concepções para o ensino damúsica nas escolas de educação básica:nessa oficina foram trabalhos conceitos rela-cionadas ao campo da música e da educaçãomusical, favorecendo a ampliação da visão dosprofessores em relação aos conteúdos e asmetodologias de ensino da música no con-texto escolar. Foram discutidas também ques-tões relacionadas ao perfil do profissional deeducação musical que deveria atuar nocontexto das escolas de educação básica eos caminhos possíveis para o trabalho doprofessor não especialista no campo damúsica.

• Oficina 2 – Som, ritmo e movimento: essaoficina teve como objetivo proporcionar aosprofessores conhecimentos gerais sobre aspossibilidades do uso do corpo e do movi-mento para a compreensão musical, bemcomo a importância do desenvolvimentodesses aspectos para a formação humana emgeral. O trabalho da oficina foi fundamen-talmente prático, demonstrado exercícios eatividades diversas que poderiam ser utilizadasem sala de aula, mas construindo perspec-tivas para que os professores pudessem, apartir dos exemplos realizados, criar novasestratégias para a inter-relação desseselementos no universo de suas salas de aula.

• Oficina 3 – Canto, gesto e palavra: nessaetapa do trabalho, foram demonstradas ediscutidas diversas possibilidades de ensinoda música, a partir da relação entre a palavra,o gesto e o canto. Utilizando parlendas, mú-sicas diversas e jogos musicais os professo-res puderam perceber diferentes perspectivasdesse trabalho que poderiam ser aplicadas emsala de aula, sendo (re)adaptadas e transfor-madas a partir das necessidades dessesprofissionais. Foi enfatizada a riqueza dessatemática para o estabelecimento de uma inter-relação das práticas desenvolvidas no âmbitoescolar com a realidade sociocultural dos alu-nos, tendo em vista que em atividades dessanatureza podem ser contemplados contospopulares, brincadeiras de cada localidade,bem como música do dia-a-dia dos alunos.

• Oficina 4 – Sistemas musicais, afinação eestruturação melódica, rítmica e harmônica:

4 Anne Raelly Pereira de Figueirêdo, Carla Pereira dos Santos, Jonathan de Oliveira, Marcelo Aprígio da Silva Filho, Marciano da SilvaSoares, Nadya de Araújo Amorim e Uirá de Carvalho Garcia.5 Alexandre Milne-Jones Nader, Ana Maria Ferreira de Oliveira Aprígio, Ciran Costa Carneiro da Cunha.

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sem a intenção de sistematizar dimensõescomplexas da estética estrutural ocidental damúsica em torno desses aspectos, essa ofi-cina possibilitou aos professores a vivência dediferentes mundos musicais. Assim, a partirda apreciação e análise de músicas dossistemas tonal, modal, serial, entre outros, osprofessores puderam compreender que nãoexiste uma receita de como fazer música, eque há, em cada contexto sociocultural, for-mas diversas de estruturar, executar e compre-ender o fenômeno musical. Após uma visãoabrangente de músicas de diferentes culturasque, conseqüentemente, têm formas distintasde concepção, foram trabalhados aspectosrelacionados à música tonal ocidental,bastante presente e difundida no cotidiano danossa sociedade. Dessa forma, pudemosdemonstrar dimensões básicas da estrutura-ção melódica, rítmica e harmônica presentena nossa música, apresentando e problemati-zando formas diversas de trabalhar essesparâmetros na sala de aula. Evidenciamos paraos professores que esse trabalho não tem aintenção de promover nos alunos uma compre-ensão sistemática desses aspectos, mas simde possibilitar a experimentação e a vivênciadesses elementos musicais.

• Oficina 5 – Exploração sonora, improvisaçãoe criação musical: tendo como base asperspectivas da educação musical contempo-rânea, desenvolvemos essa oficina como umcaminho para experimentarmos e (re)pensar-mos, juntamente com os professores, possibi-lidades diversas para a criação musical. Foienfatizada a riqueza da exploração sonoracomo recurso que transcende o uso de instru-mentos e recursos musicais tradicionais,abrindo possibilidades diversas de criaçãosonora. A improvisação e a criação musicalforam trabalhas também como uma alternativade fundamental valor para o ensino da músicanas escolas, permitindo que, dentro daspossibilidades e dos recursos disponíveis, osalunos possam criar e reinventar músicaspresentes na sua história de vida e no seuuniverso sociocultural;

• Oficina 6 – Fabricação de instrumentosmusicais: nessa oficina utilizamos recursosdistintos para a construção de instrumentosmusicais não tradicionais, demonstrando paraos professores que com poucos recursos épossível criar fontes sonoras com significativaspossibilidades de aplicação musical. Forampriorizados materiais reciclados e recursos da

natureza, como bambu, casca de coco,madeiras diversas, etc.

• Oficina 7 – Práticas em grupo: vocal, corporale instrumental: essa oficina teve um caráterfundamentalmente prático, criando diversaspossibilidades de práticas em grupo, utilizandoos instrumentos construídos e retomando asdemais atividades realizadas ao longo dasoficinas. Os professores foram incentivados aparticipar do processo de criação das ativi-dades, colocando em pratica os conhecimentoadquiridos ao longo do projeto.

• Oficina 8 – Prática integrada de performancesmusicais: com o intuito de realizar uma práticacoletiva no encerramento do projeto, essaoficina teve como objetivo trabalhar asatividades já realizadas na oficina anterior, como intuito de que, utilizando recursos diversos,pudéssemos consolidar diferentes trabalhospara a realização de uma apresentação final.

Avaliação do trabalho e sistemática da coletade dados

Além da atuação prática no universo das es-colas, o trabalho visou coletar dados que pudessemservir de base para discussões e reflexões quealicercem a estruturação de propostas e ações futu-ras no contexto da educação básica. Nesse sentido,foi realizado um processo sistemático de investigaçãoe avaliação que contou com a seguinte estrutura:

1) Indicadores:

• Planejamento e desenvolvimento dasatividades realizadas nas oficinas.

• Clareza na elaboração e na redação daproposta de ensino de música.

• Participação e interesse dos professores notrabalho de formação.

• Assimilação dos conteúdos por parte dosprofessores participantes.

• Adequação entre os objetivos propostos e oandamento das atividades desenvolvidas.

• Cumprimento das atividades de acordo como cronograma estabelecido.

• Impacto acadêmico e social da proposta.

2) Sistemática:

• Avaliação semanal, por parte de toda a equipede execução do trabalho, dos textos

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elaborados e das atividades desenvolvidas.

• Questionários aplicados junto aosprofessores durante o curso de formação,verificando o grau de interesse desses profis-sionais pela proposta e grau de assimilaçãodos conteúdos desenvolvidos.

• Observação das atividades realizadas,analisando o desenvolvimento didático-pedagógico-musical dos professores durantea participação nas aulas.

• Relatórios mensais, elaborados por cadamembro da equipe, apresentando a produçãorealizada no período e sintetizando osresultados alcançados pelo trabalho, no quese refere ao desenvolvimento da proposta emrelação aos objetivos e ao cronogramaestabelecido.

Resultados alcançados

Os resultados obtidos no projeto evidencia-ram questões significativas para refletirmos sobre oprocesso de formação dos professores do ensinofundamental. A partir do nosso processo de investi-gação e avaliação da proposta estamos convictos quepodemos criar alternativas que permitam a esses pro-fissionais desenvolver trabalhos significativos de edu-cação musical nas escolas. No entanto, é preciso fi-car claro que a atuação desses professores não subs-titui o trabalho de um profissional com formação espe-cífica na área de música, ma sim se apresenta comomais uma possibilidade para efetivarmos ações con-cretas de ensino da música nas escolas.

As experiências vivenciadas na prática dasoficinas, bem como os resultados obtidos, tanto apartir da análise dos questionários aplicados juntoaos professores quanto no processo de avaliaçãodas atividades e do desempenho dos docentes, de-monstraram que os profissionais do município têmgrande dificuldade em transpor para a sua realidadepropostas efetivas de educação musical. Propostasessas que muitas vezes adquirem nos livros, emcursos e nas próprias oficinas realizadas ao longodo projeto. Existe ainda, por parte desses professo-res, a busca das “receitas” ideais para se aplicar emsala de aula e, muitas vezes, preferem exercíciosprontos a concepções mais abrangentes para ela-borarem as suas propostas de educação musical. Éimportante destacar que, de acordo os resultadosobtidos, ficou evidente que os professores sentemfalta de uma formação musical mais consistente eapontam esse aspectos como o principal empecilhopara desenvolverem propostas significativas de ensi-no da música nas suas aulas.

Uma questão que também ficou evidente é avisão que muitos profissionais ainda têm da educa-ção musical nas escolas. Ainda há aqueles que acre-ditam que trabalhar a letra das músicas e realizaratividades de relaxamento, expressão corporal, etc.,são práticas suficientes para uma proposta de ensi-no da música.

A dificuldade em compreender como lidar comdiferentes repertórios no contexto da escola, utili-zando, inclusive, músicas presentes no universosociocultural dos alunos, foi outro aspecto que cha-mou nossa atenção. Grande parte dos profissionaisnão vê alternativas para contemplar as músicas queos alunos “gostam”, tendo em vista que a maioriadelas fazem parte de um repertório veiculado pelamídia atual e são, na concepção dos professores,de “baixa qualidade”.

Detectados esses problemas, que gerou im-portantes reflexões e (re)definições para a realiza-ção do trabalho de formação continuada que ofere-cemos, buscamos construir uma proposta mais realpara o contexto vivenciado pelos professores. As-sim, pudemos perceber que trabalhando com músi-cas mais próximas do universo desses profissionaise com materiais mais acessíveis, tanto no que serefere à aquisição dos recursos quanto no que diz res-peito ao seu manuseio técnico, foi possível fomentaruma práxis de ensino da música que, mesmo consi-derando a falta de uma formação musical “regular” dosprofessores, pode apresentar uma relevante contribui-ção para a educação musical nas escolas.

Fundamentalmente podemos afirmar que otrabalho, realizado principalmente nas oficinas, pôdecontribuir para ampliar as perspectivas sobre formase conteúdos para se trabalhar a música nas esco-las, rompendo com certos preconceitos existentese despertando a percepção dos professores envolvi-dos na proposta para as múltiplas possibilidades quepoderiam ser utilizadas para o desenvolvimento umaeducação musical consistente. O trabalho deixouevidente, ainda, para os professores que eles po-dem contar com os materiais disponíveis na escolae que a criatividade e a estruturação de propostas, apartir de músicas vivenciadas pelos alunos e de prá-ticas desenvolvidas por eles mesmos para o univer-so escolar, são caminhos possíveis para construí-rem rumos consistentes para a educação musicalnas escolas.

Finalmente, percebemos que a proposta nãosó apresentou perspectivas importantes para a for-mação dos professores como também alicerçou re-flexões para a construção de alternativas para a edu-cação musical nas escolas de educação básica.

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Recebido em 14/02/2007

Aprovado em 08/05/2007

Dessa forma, entendemos que o trabalho conseguiuestabelecer caminhos relevantes para o ensino damúsica. Caminhos que só puderam ser construídosa partir de uma pesquisa que considerou o perfil dosprofessores, sua realidade educativo-musical, seusconhecimentos estéticos e estruturais da música,bem como a dimensão sociocultural que caracterizaa realidade dos seus trabalhos no âmbito das esco-

las. Assim, não só elaboramos uma proposta deensino da música e oferecemos cursos de formaçãocontinuada, mas, fundamentalmente, (re)pensamose (re)definimos estratégias significativas para o de-senvolvimento de uma educação musical consisten-te e contextualizada com o universo das escolas deeducação básica, considerando especificamente arealidade do município de Cabedelo.

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Materiais didáticos nas aulas demúsica do ensino fundamental: ummapeamento das concepções dos

professores de música da rede municipalde ensino de Porto Alegre

Fernanda de Assis OliveiraUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

[email protected]

Resumo. Este artigo consiste em um relato de pesquisa que teve como objetivo investigar asconcepções que fundamentam o uso de materiais didáticos pelos professores de música em suaspráticas pedagógico-musicais. Para compreender essas concepções me apoiei nos conceitosutilizados pelo campo de pesquisa sobre o pensamento do professor. O método escolhido foi osurvey de pequeno porte, com desenho interseccional. Fizeram parte da amostra vinte professoresde música atuantes no Ensino fundamental da Rede Municipal de Porto Alegre. A técnica de coleta dedados foi a entrevista semi-estruturada. Os resultados revelaram as concepções dos professoressobre os materiais didáticos disponíveis, além de sugerirem as características necessárias aosmateriais didáticos a serem utilizados nas aulas de música, no ensino fundamental. As consideraçõesfinais mostram a importância e a necessidade de ampliar as discussões sobre os materiais didáticosem música utilizados por professores de ensino fundamental, bem como a inserção dessa temáticanos cursos de formação e formação continuada de professores de música, auxiliando assim naanálise e produção de materiais didáticos para as aulas de música.

Palavras-chave: concepções de professores de música, ensino de música no ensino fundamental,materiais didáticos em música

Abstract. This paper reports a research that aimed to investigate the music teachers’ conceptionsconstituting the use of educational materials in their musical-pedagogical practice. For the analysis ofdata, I took as a theoretical approach the concepts used by the field of investigation on teacherthinking. The chosen method is survey with intersectional design. Twenty Music teachers work atmunicipal primary school of Porto Alegre-RS took part of the sampling. The technique of data collectingis the semi-structured interview. Among the results of this study, I emphasize that all the teachersconsider the didactical materials that as important resources to their musical-pedagogical practice.Final considerations showed the importance and the necessity to extend the discussions aboutdidactical materials in music used by teachers of primary school and the introduction this thematic inteachers’ continuous music education assisting to analysis and production the didactical materialsfor the music class.

Keywords: conceptions of music teachers, musical education at Primary School, educational materialson music

Introdução

Nos últimos anos, o material didático tem sidoum dos temas recorrentes nos trabalhos e nas dis-cussões na área de educação musical no Brasil. Otrabalho organizado por Souza (1997), intitulado Li-

vros de Música para Escola: uma Bibliografia Co-mentada, pode ser considerado pioneiro nessa área,especificamente na descrição dos conteúdos de li-vros didáticos. Nesse trabalho, Souza reuniu, na ci-

OLIVEIRA, Fernanda de Assis. Materiais didáticos nas aulas de música do ensino fundamental: um mapeamento das concepçõesdos professores de música da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 77-85, set. 2007.

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dade de Porto Alegre, 223 livros didáticos de músicapara escola publicados a partir da década de 1920até a década de 1990. Os conteúdos desses livrosforam descritos, analisados e organizados em umabibliografia comentada, que revela a heterogeneidadedos materiais publicados.

Souza (1977, p. 9) reforça a necessidade deum maior conhecimento dos materiais didáticos uti-lizados em educação musical e julga ser preciso

suprir a lacuna a respeito do material instrucionalproduzido na área de música, bem como oferecersubsídios ao debate sobre o livro didático de música,não apenas apontando suas deficiências, mas tambémtentando contribuir na elaboração de alternativas parasuperar a realidade precária dessa área no Brasil.

Diante disso, vários trabalhos têm sido reali-zados com o objetivo de descrever e analisar os con-teúdos de música inseridos nos livros e materiaisdidáticos. Trabalhos como: Gonçalves e Souza(1997), Dias (1998), Franco (1999), Oliveira (2000),entre outros, são relevantes para a área n medidaem que proporcionam uma compreensão maior aosprofessores de diversos aspectos envolvidos nos pro-cessos de ensino e aprendizagem musical, taiscomo: a utilização e função do canto no ensino demúsica, as estratégias de iniciação musical, as jus-tificativas para o ensino de música na escola bási-ca, e as etapas de desenvolvimento do senso rítmi-co, da acuidade auditiva e da criatividade da criança.

Essas pesquisas, no entanto, focalizam so-mente os conteúdos dos materiais didáticos. Aindasão escassos estudos que enfoquem como os pro-fessores se relacionam com os materiais didáticosdisponíveis.

Gimeno Sacristán (2000, p. 157) aponta queos materiais didáticos “são recursos muito impor-tantes para manter a atividade durante um tempoprolongado, facilitando a direção da atividade nasaulas”. No ensino de música, esses materiais sãoum recurso auxiliar para as práticas de ensino. Di-ante disso, nesta pesquisa tive como objetivo geralinvestigar as concepções que fundamentam o usode materiais didáticos pelos professores de músicaem suas práticas pedagógico-musicais. Mais espe-cificamente, acerca do material didático utilizado peloprofessor de música, esta pesquisa buscou identifi-car: o que os professores consideram, mapear ostipos, identificar os critérios que fundamentam a se-leção, mapear o acesso, analisar a opinião dos pro-fessores sobre os materiais didáticos disponíveis eexaminar a produção desses materiais pelos profes-sores de música. Minha proposta, portanto, foi ouviros professores, acreditando na possibilidade de com-preender, a partir de suas vozes, um pouco mais

sobre os materiais didáticos disponíveis e seu usoem sala de aula.

Para entender as concepções dos professo-res de música sobre os materiais didáticos, me apoieinos conceitos utilizados pelo campo de pesquisasobre o pensamento do professor.

O campo de pesquisa sobre o pensamentodo professor surgiu na década de 1970 a partir doreconhecimento das limitações das pesquisas reali-zadas segundo o modelo processo-produto, entãodominante, as quais desconsideravam a importân-cia dos conteúdos nos processos de ensino e apren-dizagem e do professor como mediador ativo des-ses processos.

Essa linha de pesquisa, segundo Clark eYinger (1979), parte da concepção do professor comoum profissional que busca, elabora, comprova e com-preende as situações específicas do processo deensino e aprendizagem, e tem como centro a figurado professor. Segundo Zeichner (1994), nos estudosdesenvolvidos nesse campo de pesquisa, o profes-sor deixa de ser visto como participante passivo doensino e passa a ser concebido como sujeito de suaspróprias ações. Diante disso, Gimeno Sacristán(1999) aponta o professor como um sujeito que pos-sui teorias sobre suas práticas, além de ser um agen-te capaz de elaborar e atribuir significados às suasações (Clark; Yinger, 1979, p. 100).

É nesse sentido que Elbaz (1990) destaca aimportância de dar voz ao professor, considerando-ofigura fundamental no processo de ensino. Para ela,é necessário conhecer e compreender o ensino apartir da perspectiva dos docentes e das práticaspedagógicas que esses vivenciam na escola.

Com base nesses princípios orientadores, tra-balhos realizados nas diversas áreas do conhecimen-to têm procurado dar voz aos professores com o in-tuito de melhor compreender diferentes aspectos desuas práticas pedagógicas, dentre eles:

o planejamento de ensino dos professores, os pro-cessos mentais envolvidos no ensino (reflexão, tomadade decisões, solução de problemas, etc.), a natureza eespecificidade do conhecimento dos professores, suasteorias acerca do ensino, o conhecimento disciplinar esuas representações durante o ensino, bem como anatureza do contexto institucional, social e cultural esuas influências sobre concepções e práticas deensino. (Del-Ben, 2000, p. 201).

Na área de educação musical também sãovários os temas pesquisados, como: os saberesdocentes que norteiam as práticas pedagógico-mu-sicais em diversos contextos de ensino (Araújo, 2003;Bellochio, 2003), as concepções de ensino dos pro-

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fessores (Beineke, 2000; Del-Ben, 2001; Souza etal., 2002), o processo de planejamento durante o es-tágio supervisionado (Mateiro, 2003), as competênci-as necessárias para o exercício da prática docente(Machado, 2003) e a identidade profissional de profes-sores de música (Bozzetto, 1999; Louro, 2004).

Em todos esses trabalhos, diversos termossão utilizados para se referir ao pensamento do pro-fessor, como “concepções”, “crenças”, “percepções”,“fundamentos”, “construtos”, “idéias”, “perspectivas”,entre outros.

Nesta pesquisa, assim como Freire e Sanches(1992), optei por utilizar o termo “concepção”, quesignifica um conjunto de idéias, crenças, entendi-mentos e interpretações de práticas pedagógicasrelativas à natureza e ao conteúdo, aos alunos e àforma como aprendem, aos professores e ao papelque esses possuem na sala de aula, e ao contextoem que a prática ocorre (Freire; Sanches, 1992, p.498). A utilização desse termo é justificada na medi-da em que engloba o pensamento do professor demaneira mais ampla na geração ou formação do con-junto de crenças, perspectivas, idéias, fundamentosou planos.

Metodologia

Com o propósito de investigar as concepçõesdos professores de música, desenvolvi um survey depequeno porte de desenho interseccional, visto queos dados foram coletados uma única vez, em umdeterminado espaço de tempo, com cada indivíduoselecionado para amostra (Babbie, 1999, p. 101).

A população escolhida para a realização des-ta pesquisa foram os professores de música da ci-dade de Porto Alegre. A seleção dos professores demúsica ocorreu por meio da amostragem não-probabilística, pois nem todos os elementos da popu-lação tiveram chances iguais de participar deste estu-do (Babbie, 1999, p. 152). Dentre os métodos deamostragem não-probabilística, utilizei a amostragemintencional ou por julgamento (Babbie, 1999).

A opção pela amostragem intencional ocor-reu uma vez que foram selecionados somente osprofessores de música que se incluíam dentro dosseguintes critérios de seleção: 1) atuar com músicano ensino fundamental na Rede Municipal de Ensinode Porto Alegre, 2) possuir licenciatura na área demúsica, e 3) aceitar participar da pesquisa. A esco-lha dos professores da Rede Municipal de Ensino dePorto Alegre justifica-se pela facilidade de acessoàs escolas e seus professores. E a dos professoresda Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre pelafacilidade de acesso as escolas, bem como aos seus

professores. A escolha do ensino fundamental ocor-reu porque a maioria dos professores de música con-centrava-se nesse nível de ensino. Foram investiga-dos 20 de um total de 22 professores atuantes naRede Municipal de Ensino de Porto Alegre.

Como técnica de coleta de dados foi utilizadaa entrevista semi-estruturada. As entrevistas foramrealizadas individualmente, gravadas em MiniDisc eposteriormente transcritas. Depois de transcritos, osdados foram analisados de acordo com categoriasconstruídas a partir das questões do roteiro de en-trevista e dos objetivos da pesquisa.

A seguir apresento os resultados da pesquisacom base nas seguintes categorias: definições e ti-pos de materiais didáticos, usos e funções dos ma-teriais didáticos, seleção dos materiais didáticos,acesso aos materiais didáticos, necessidades refe-rentes aos materiais didáticos e produção de materi-ais didáticos. Posteriormente, apresento uma síntesedos resultados identificando as concepções dos pro-fessores de música que fundamentam o uso de mate-riais didáticos em suas práticas pedagógico-musicais.

Resultados da pesquisa

Formação e atuação dos professores demúsica

Os professores, na época da coleta de da-dos, tinham entre 32 a 52 anos, todos licenciadosem Educação Artística com Habilitação em Música.Sugiro iniciar a frase com verbo: graduaram-se 16professores pela Universidade Federal Rio Grandedo Sul, dois pela Universidade Federal de SantaMaria e dois pelo Conservatório de Música Palestrina,formação que ocorreu entre os anos de 1970 e 1998.

Os professores relataram que durante sua for-mação inicial não tiveram uma disciplina específicaque contemplasse os materiais didáticos. Aponta-ram, entretanto, que tiveram contato com essesmateriais a partir da troca com outros colegas e du-rante a participação em projetos desenvolvidos porseus professores. Um professor destacou que o con-tato com os materiais didáticos foi superficial.

Definições e tipos de materiais didáticos

Como mostram os dados obtidos nas entre-vistas, todos os professores entrevistados conside-raram que os materiais didáticos são importantesem suas práticas pedagógico-musicais. Eles defi-nem materiais didáticos como um recurso para aaula de música: “o material didático é o recurso queajuda a gente em sala de aula. Para aprender, paraensinar, para tudo […] o material didático é um ami-gão” (Bianca).

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Na literatura, Castro e Costa (1991) apontamque os materiais didáticos têm um papel fundamen-tal no processo educacional, pois os consideramcomo meios de ensino, os quais são elementosmediadores entre o processo de ensino e o de apren-dizagem. Além disso, do ponto de vista desses au-tores, os materiais didáticos exercem uma influên-cia direta nos seus agentes professores e alunos(Castro; Costa, p. 223). Sobre isso, uma das profes-soras comenta:

Material didático pra mim, é aquele que vai me ajudar naaprendizagem do aluno. Que irá concretizar oconhecimento que eu quero transmitir ao aluno. São osrecursos que eu uso. Tudo que eu levar para a sala deaula, e que me auxiliar na conceituação de conheci-mento pelo aluno, eu considero material didático. Osmateriais didáticos são o meio que irei utilizar. (Marina).

As definições de material didático como meio ecomo recurso foram as mais freqüentes. No entanto,uma professora definiu material didático como aquelematerial que apresenta uma metodologia específica:“[…] aquele que tem uma metodologia desenvolvida.Um método. Para mim é um material didático. Podeser um livro, uma apostila, uma coletânea” (Isa).

São vários os tipos de materiais didáticos uti-lizados pelos professores, desde livros até sites daInternet. Os materiais mencionados podem ser clas-sificados, de acordo com os autores Lima, Scopinhoe Grinkraut (1995), em materiais escolares (folhas,cadernos, lápis, borracha, quadro e giz), materiaisbibliográficos (livros, métodos de ensino de música,exercícios, arranjos, partituras) e equipamentos (apa-relhos de som, TV, vídeo, DVD e computador). Osmateriais didáticos como fitas de vídeo, fitas casse-te e CDs podem ser classificados como materiaisaudiovisuais. Alguns materiais citados pelos profes-sores não se enquadram nas categorias estabele-cidas por Lima, Scopinho e Grinkraut (1995). Dessaforma, classifiquei-os como materiais sonoros (ins-trumentos musicais, corpo e voz), e materiais deinformática (software específicos na área de músi-ca, Internet e sites).

Usos e funções dos materiais didáticos

Os professores mencionaram que utilizam osmateriais didáticos “em diferentes momentos” desuas práticas pedagógico-musicais. Dentre eles, aprofessora Sandra relata: “eu utilizo material didáti-co em todos os momentos. Tanto no planejamento,para ver o que eu vou usar na vivência, e quando euvou avaliar também”.

É a partir do uso dos materiais didáticos emsuas práticas pedagógico-musicais que os docen-tes atribuem-lhes funções para o ensino de música.

Uma dessas funções se refere ao auxílio dos mate-riais didáticos no planejamento de ensino. A profes-sora Isa ressalta que “o material didático, […] eletem bastante importância. […] ele organiza o traba-lho do professor. Ele auxilia o professor para que oplanejamento da aula seja mais bem conduzido”.

Além disso, os materiais didáticos tambémtêm como função concretizar ou ilustrar para os alu-nos os elementos a serem trabalhados em aula. Aprofessora Adriana comentou:

[…] o material ajuda muito na ilustração das aulas, apartir dos conteúdos que vou trabalhar, eu procuro ummaterial que possa ilustrá-lo. O ritmo eu posso vivenciarno corpo, os sons posso vivenciar na voz. Buscogravações, instrumentos para ilustrar minhas aulas.

Os depoimentos salientam o papel que osmateriais didáticos desempenham nas práticas des-ses professores, uma vez que o manuseio dessesmateriais, tanto por parte dos professores quanto dosalunos, proporciona uma compreensão maior dosconteúdos musicais a serem desenvolvidos, bemcomo o contato com os elementos que os professo-res pretendem concretizar em aula.

Seleção dos materiais didáticos

A maioria dos professores revelou que selecio-na os materiais didáticos “de acordo com o planeja-mento” (Mateus). Grande parte deles seleciona osmateriais didáticos a partir dos objetivos a serem de-senvolvidos, como relata Felipe: “o material didático,eu seleciono a partir do meu objetivo em sala de aula”.

Um outro aspecto do planejamento utilizadopelos professores para a seleção dos materiais di-dáticos são os conteúdos. Sobre isso, a professoraJoana pontua:

[…] o material didático eu uso de acordo com o assuntoque eu vou trabalhar nas aulas. Eu sempre determino oconteúdo a ser trabalhado e vou selecionando osmateriais didáticos a serem utilizados para me auxiliaremdiante daquela temática.

Outro critério adotado é a faixa etária dos alu-nos. Nesse sentido, a professora Marina salienta que“para a seleção do material didático, eu penso na ida-de com que eu trabalho. Procuro materiais que pos-sam estar de acordo com a faixa etária dos alunos”.

Os professores também tomam como critériopara a seleção dos materiais didáticos o fato dosmesmos serem mais ou menos atrativos para seusalunos. Para Isa, o material didático tem que estarpróximo da realidade dos alunos. Para tanto, elacomenta que “[…] eu procuro selecionar materiaisdidáticos que chamem a atenção dos alunos. Euacho bem importante proporcionar aos alunos um

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contato com um material didático que possa ser sig-nificativo para eles” (Isa).

Nessa visão, autores como Ferreira eCerqueira (1996, p. 8) destacam que

a seleção dos recursos ou instrumentos que auxiliam oprofessor no seu trabalho deve concorrer paraconcentrar a atenção e interesse dos alunos nasatividades propostas, estimulando a imaginação, aobservação, o raciocínio, as percepções, a coorde-nação muscular, a expressão de sentimentos, etc.

Acesso aos materiais didáticos

A maioria dos professores demonstrou encon-trar dificuldades quanto ao acesso aos materiais didá-ticos, principalmente porque não encontram apoio dasescolas para a aquisição desses materiais. Ilustrandoessa realidade, o professor Leandro salientou que:

O material didático para o ensino de música na maioriadas vezes não é adquirido pela escola. Pois essa temoutras prioridades e os outros conteúdos sempre sãocontemplados. Dessa forma, eu procuro ir comprandoo material aos pouquinhos. Faço rifas com os alunos,e apresentações também. Cada um vai contribuindopara que a gente possa assim ter o nosso própriomaterial didático.

Diante disso, os professores relataram quebuscam materiais em lojas, livrarias, sites da Internet,através da troca com outros colegas por e-mail, emencontros realizados na escola e, principalmente,em cursos de formação continuada. Nesse sentido,a professora Débora ressaltou: “eu vou comprando,buscando, vou atrás sempre. Troco muito com osmeus colegas, principalmente nos cursos de forma-ção. A escola não ajuda muito, eu mesma que tenhode ir atrás”. Assim como Débora, o professor Felipeacrescenta: “Eu troco com os colegas, através doscursos de formação, […] converso muito com a pro-fessora que trabalha junto comigo aqui na escola.Eu corro atrás, eu tenho que sempre ir atrás”.

Nessa perspectiva, Hentschke (2000) obser-va que os professores de música em serviço neces-sitam recorrer continuamente às atividades de for-mação continuada, para que possam ter maior con-tato com a literatura da área de educação musical etrocar informações com outros professores de músi-ca sobre suas práticas educativas.

Isso ocorre porque, conforme relatam, os pro-fessores se sentem isolados dos outros professo-res, tanto os de música quanto os de outras discipli-nas. Sobre isso, a professora Sandra menciona:

Olha, eu tenho que correr atrás. Eu, às vezes, necessitode um CD que tem o material que eu preciso. Com isso,telefono para outros colegas para ver como elestrabalham. Eu me sinto isolada, como profissional demúsica, em relação aos materiais didáticos.

Os depoimentos dos professores desta pes-quisa reforçam as constatações de Beineke (2000),Del-Ben (2001), Penna (2002) e Machado (2003) emrelação ao isolamento dos professores de música.Os professores entrevistados nessas investigaçõesrelataram que se sentem isolados dos demais pro-fessores de música, bem como dos cursos e con-gressos que são realizados na área de educaçãomusical de maneira geral.

Não obstante, Tourinho (1993) destaca que oisolamento dos professores parece ter início já du-rante a prática do estágio na graduação. A autorasustenta que:

[…] não há espaço para a troca de saberes. E por maisinquisidores que sejam os estagiários, neste períodocada qual se esconde em uma sala. Os colegasgeralmente desconhecem onde e como seuscompanheiros estão desenvolvendo sua práticapedagógica e o objetivo é ficar livre de mais esteincômodo que a formação universitária guarda paraseus pretendentes. (Tourinho, 1993, p. 85).

Além disso, essa autora aponta que o isola-mento na profissão repercute no isolamento das ins-tituições entre si e, conseqüentemente, no desem-penho dos professores e no desempenho de suaspráticas docentes (Tourinho, 1993, p. 45).

Necessidades referentes aos materiaisdidáticos

Os professores relataram que para identificarsuas necessidades referentes aos materiais didáti-cos, inicialmente realizam um levantamento de todoo material didático que está disponível, e, posterior-mente, enumeram suas demandas em relação aesses materiais didáticos. Além da dificuldade deacesso, outro obstáculo para os professores é acarência de uma série de materiais didáticos, dentreeles, o livro.

Sendo o livro um dos materiais didáticos utili-zados com maior freqüência pelos professores, atotalidade dos docentes mencionou a carência delivros didáticos que abordem conteúdos musicais:

Livros didáticos, não tem, não tem nada. Volta e meiaestá tendo livros de editoras, várias dessas que estãoaí no mercado, muito pouco de música, quase nada.Tem uma professora de Curitiba, muito boa, que faz umtrabalho muito bom. Mas são muitos raros, a gente pegaassim no susto. Mas não tem livro, nem que fosseaqueles antigos que eu tenho de música folclórica, nãotem, não tem. (Felipe).

Os professores destacaram ainda a necessi-dade de materiais didáticos que abordassem diver-sos contextos socioculturais, interesses e vivênciasmusicais dos alunos. A maioria dos professores res-saltou que os materiais didáticos disponíveis não

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focalizam as vivências musicais dos alunos fora daescola, principalmente em relação ao repertório aque esses têm acesso no contexto extra-escolar.Alguns entrevistados destacaram a demanda demateriais didáticos que se centrem no repertórioabordado pela mídia, como mostra o depoimento aseguir.

Tem muita coisa pronta, mas, para eu utilizar em sala deaula, poucas delas funcionam, pois os materiaisdidáticos disponíveis não estão voltados para o que osalunos estão acostumados a ouvir. Eu sinto neces-sidade de um material que esteja mais próximo da minhaprática pedagógica. Materiais voltados para as músicasque estão hoje tocando no rádio. (Rita).

Para os docentes é importante que os materi-ais didáticos estejam atualizados para que a aula demúsica se torne cada vez mais atraente aos alunos,minimizando, assim, a realidade atual de suas au-las de música onde os alunos e também os própriosprofessores estão insatisfeitos com os materiais di-dáticos disponíveis.

Tendo em vista essa necessidade, os profes-sores salientaram algumas características que osmateriais didáticos poderiam conter para atender àsdemandas da aula de música no contexto escolar. Comisso, o professor Giovani salienta a necessidade de:

Livros que falem de todos os ritmos, principalmentedas músicas populares atuais como o rock, MPB,reggae, axé music, enfim, de músicas da mídia. Eugostaria também que os livros trouxessem conteúdos,os quais pudessem ser aproveitados em sala de aula.Sinto falta de publicações que direcionem e tragamdicas de como trabalhar esses conteúdos.

Além desses conteúdos, o professor Mateusconsidera a carência de livros didáticos que abor-dem “[…] arranjos para trabalhar na aula de músicano ensino fundamental. Arranjos de música popular,música da mídia, para prática de conjunto. Acho queseria bem importante a disponibilidade de arranjosnesse sentido”.

Os professores ressaltaram também a ca-rência de materiais didáticos para trabalhar comadolescentes, musicalizados ou não, e com tur-mas grandes.

Um outro aspecto que os professores chama-ram à atenção foi a divulgação dos materiais didáti-cos na área de educação musical. Uma delas co-mentou que sente carência de propagandas, ou atémesmo de vendedores que vão até as escolas e quelevem materiais que possam ser adequados a suasrealidades. Outra professora ressaltou que tem cons-ciência que existe material, de que há uma produ-ção de qualidade disponível, mas a divulgação é sóem nível regional, não há diálogo entre as regiões

sobre os materiais didáticos. Dessa maneira, a profes-sora Laura relata:

Sinto falta de mais divulgação, sinto falta de vir até aescola, até porque como a gente trabalha quarentahoras, o espaço que a gente tem pra fazer esse tipo depesquisa é muito pequeno.

De modo distinto de seus colegas acima,Adriana, apesar de achar que existe carência demateriais didáticos e de divulgação dos mesmos,não demonstrou certa insatisfação em relação aosmateriais didáticos disponíveis. Sobre isso, a pro-fessora salienta que:

[…] na verdade eles são suficientes [os materiais],mas se o professor sabe fazer música, acho que é osuficiente, entende? Qualquer material disponível, se oprofessor sabe mesmo, ele é capaz de fazer músicacom os alunos. Agora se tivesse outro tipo de material,mais quantidade, mais variáveis, a gente poderiamelhorar cada vez mais. A divulgação poderia auxiliartambém, pois assim o material didático estaria maispróximo da gente. (Adriana).

O depoimento acima sugere que o conheci-mento musical do professor pode influenciar o usodo material didático que está disponível. Além disso,destaca que o fato de o professor saber fazer músi-ca direciona o que ele pretende com os materiaisdidáticos disponíveis, além de orientar outras possi-bilidades de uso dos mesmos.

Produção de materiais didáticos

Diante das dificuldades de acesso aos mate-riais e das necessidades com que se deparam nocotidiano escolar, os professores relataram que, paradiminuir suas carências, produzem seus própriosmateriais didáticos, como afirma Marina: “eu con-fecciono material com os meus alunos para auxiliaras minhas práticas e diminuir minha carência emrelação a esses materiais”.

Isso remete a uma questão de fundo, que,como os autores Castro e Costa (1991) afirmam, “oprocesso de produção de material didático reflete adefasagem que tende a existir entre o momento emque novos conhecimentos se produzem e o da suasistematização para fins de transmissão” (Castro;Costa, 1991, p. 42).

No cenário pesquisado, os professores rela-taram que produziam diferentes tipos de materiaisbibliográficos, como textos, exercícios rítmicos esonoros em folha, cartazes, apostilas e portfólios.Os entrevistados mencionaram também a produçãode materiais sonoros, como CDs e gravações desons do cotidiano. Além disso, a sucata foi um re-curso utilizado com freqüência na produção de ma-teriais didáticos, tendo em vista a facilidade de aces-

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so e o baixo custo tanto para os professores quantopara os alunos. Grande parte dos docentes relatouque confecciona instrumentos musicais com o usoda sucata.

Não obstante, produzir materiais didáticos éuma das estratégias encontradas pelos professoresde música para sanar suas necessidades referentesaos mesmos. A falta de materiais didáticos faz comque os professores busquem informações e criemalternativas para a realização de seu trabalho. É pos-sível inferir que os entrevistados possuem uma pos-tura responsável no processo de ensino e aprendi-zagem no contexto escolar. Seus relatos sugeremuma preocupação constante de promover aos alu-nos atividades musicais interessantes e significati-vas, que estimulem sua criatividade por meio do de-senvolvimento de materiais didáticos.

As concepções dos professores de músicaque fundamentam o uso de materiaisdidáticos em suas práticas pedagógico-musicais

Os depoimentos dos professores sugerem queuma primeira concepção que parece fundamentar ouso dos materiais didáticos é a própria definiçãoapresentada pelos professores: material didático érecurso, é meio. Os dados revelaram que é didáticotudo aquilo que o professor considera como recurso,aquilo que ele acredita ser capaz de auxiliar suaspráticas, desde livros, equipamentos, CDs, até ocorpo e a voz. Dessa forma, a qualidade de didáticosomente será atribuída ao material a partir do usoque o professor poderá fazer dele, seja no planeja-mento e na execução das aulas ou na avaliação dosalunos.

Para a maioria dos entrevistados, os materi-ais didáticos fazem a mediação entre o ensino e aaprendizagem, auxiliando o professor “a construir umcaminho de conhecimento para o aluno aprender”.Mas essa mediação parece ser precedida pela inter-pretação do professor, ou seja, pelos significadosque ele atribui a esses materiais e à sua própria prá-tica de ensino. Isso sugere que os professores con-cebem o ensino como uma atividade construída apartir de suas próprias intenções. Tanto que, paragrande parte dos professores, o uso dos materiaisdidáticos tem como ponto de partida o planejamentoque eles estabelecem para as aulas de música.

A ênfase no planejamento indica que as con-cepções que fundamentam o uso dos materiais di-dáticos são construídas a partir da prática dos pró-prios professores. É com base na prática que osprofessores analisam os materiais disponíveis, pro-duzem aquilo que julgam necessário e destacam as

características que os materiais didáticos deveriamter para atender as necessidades dos contextos emque atuam. Os professores não solicitam “receitas”de como ensinar, mas sugestões, idéias, pontos departida que possam auxiliar o desenvolvimento desuas práticas. Nesse sentido, o professor Leandrocompartilha:

Olha, nós não queremos materiais didáticos para seremreproduzidos. Materiais prontos e estáveis. Nós que-remos um material que possa nos proporcionar idéias,conteúdos, sugestões. Não queremos uma produçãopaternalista.

Visto que o ensino é uma atividade intencio-nal, cabe ao professor refletir sobre as situações queenfrenta no contexto escolar, pois é a partir dissoque ele irá fundamentar suas decisões pedagógicas,o que inclui a escolha, a produção e o uso de mate-riais didáticos em sala de aula.

Considerações finais

Os resultados aqui apresentados sinalizam aimportância de dar voz aos professores de música,uma vez que, a partir de seus depoimentos, foi pos-sível compreender como eles se relacionam com osmateriais didáticos. Nesse sentido, a entrevista semi-estruturada se mostrou uma técnica de pesquisaadequada, pois possibilitou investigar o uso de ma-teriais didáticos a partir da visão dos próprios profes-sores de música. O método de survey, por sua vez,proporcionou identificar padrões referentes às con-cepções dos professores sobre o uso dos materiaisdidáticos na aula de música.

Os padrões identificados sugerem que as con-cepções que fundamentam o uso dos materiais di-dáticos pelos professores de música são construídasa partir de sua própria prática pedagógico-musical.É com base em suas intenções em relação ao ensi-no de música, especialmente os objetivos e conteú-dos planejados, nas características do contexto emque atuam e nas vivências e interesses dos alunosque os professores analisam, selecionam, adaptame produzem os materiais didáticos a serem utiliza-dos nas aulas de música. Os professores se assu-mem, assim, como sujeitos de suas próprias ações,como profissionais capazes de interpretar a realida-de em que atuam e de construir suas próprias práti-cas pedagógico-musicais. Diante dessa situação, osdocentes destacaram que sentem falta de materiaisdidáticos que possam ser usados em seus planeja-mentos, e não de receitas prontas para serem de-senvolvidas em sala de aula.

Além disso, os professores ressaltaram quehá um descompasso entre os materiais didáticosdisponíveis e a realidade das salas de aulas em que

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estão inseridos. Nesse sentido, as principais neces-sidades apontadas pelos professores em relação aosmateriais didáticos referem-se a livros que abordemconteúdos diversos e atuais voltados para adoles-centes, repertórios de músicas da mídia, arranjos epartituras a partir desses repertórios para serem exe-cutados em grupo, materiais para adolescentes jámusicalizados, materiais que abordem diversos es-tilos musicais e materiais que possam ser utiliza-dos com turmas grandes.

Os resultados apontam também para a ne-cessidade de uma maior divulgação dos materiaisdidáticos disponíveis e de aquisição de materiais porparte das redes de ensino e secretarias de educa-ção, com o intuito de melhorar as condições de tra-balho dos professores.

Espero, com esta pesquisa, ter proporciona-do à área de educação musical subsídios para futu-ras discussões, bem como para a análise e elabora-ção de materiais didáticos, os quais possam aten-der as necessidades salientadas pelos professoresde música. Além disso, os resultados deste traba-

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lho parecem ser fundamentais para alimentar pro-postas de cursos de formação inicial e continuada,direcionadas para auxiliar os professores na análi-se, produção e uso de materiais didáticos.

Visto que as concepções dos professores demúsica sobre os materiais didáticos são um primei-ro mapeamento sobre esse assunto, sugiro que ou-tras investigações semelhantes a esta sejam reali-zadas em diferentes contextos de ensino, uma vezque concepções sobre os materiais didáticos, iguaisou não às apontadas pelos professores de músicaentrevistados nesta pesquisa, podem ser identifi-cadas. Além disso, ressalto a necessidade de pes-quisas que focalizem a utilização de materiais didá-ticos por meio de observações dos professores demúsica para averiguar se as concepções dessesdocentes condizem com suas ações. Sugiro tam-bém que os professores registrem o processo deprodução de materiais didáticos para que esses pos-sam ser compartilhados com outros professores. Porfim, sugiro a realização de estudos que focalizem avisão dos alunos em relação aos materiais didáticosutilizados pelos professores nas aulas de música.

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Recebido em 15/02/2007

Aprovado em 05/06/2007

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Grupo de Pesquisa
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Considerações iniciais: delimitando o tema

Vivemos em um mundo cada dia maistecnológico, rodeados de um número crescente de

“artefatos, objetos, bens e símbolos que remetem àtecnologia” (Carvalho; Feitosa; Araújo, [s.d.], p. 1).

Professores de escolas demúsica: um estudo sobre a

utilização de tecnologias*

Gerson Rios [email protected]

Cláudia Ribeiro BellochioUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM)

[email protected]

Resumo. Os avanços da tecnologia aplicada às mais diversas áreas, entre elas a música, vêmtransformando o contexto de ensino e de aprendizagem, bem como o ambiente de sala de aula, ecom isso a relação professor-aluno através da mediação tecnológica. Tais transformações motivarameste estudo, que se propôs a verificar, a partir de dados coletados com o uso de matriz de entrevistasemi-estruturada, como os professores de música aprenderam a utilizar tecnologias musicais ecomo as empregam em suas práticas educativas diárias, além de investigar quais são os critériosempregados por esses professores de música para escolherem quais recursos tecnológicos devemser utilizados ou não para mediar o ensino de música, bem como pesquisar o papel mediador dastecnologias no ensino de música nas três escolas pesquisadas em Santa Maria, Rio Grande do Sul.Como conclusão desta pesquisa, percebe-se uma crescente preocupação dos professores demúsica atuantes nas escolas pesquisadas no que se refere à sua aprendizagem e atualizaçãotecnológica, objetivando a utilização dos recursos tecnológicos que eles dispõem para ensinarmúsica.

Palavras-chave: educação musical, tecnologia educacional, formação de professores

Abstract. Technology advances applied to the most different areas, like music, have been transformthe education and learning contexts, as well as the environment of classroom, and the relationprofessor-pupil through the technological mediation. Such transformations had motivated this study,that if considered to verify, from data collected with the use of matrix of interview half-structuralized,how the music’s teachers learn to use the musical technology and how to apply it in your diaryeducation practice, above to investigate which are the criterions used for these music’s teachers tochoose which technological resources must be use or not to use to help the teaching of music, aswell as to search how the technology can mediate the teaching of music in the three schoolsinvestigated in Santa Maria, Rio Grande do Sul. In the conclusion of this research, there is a growingcare of the music’s teachers that acting in the searched schools regarding your act of learning andtechnological update, intending the utilization of the technological resources that they have availableto teach music.

Keywords: musical education, educational technology, formation of teachers

* Estudo desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria, na linha de pesquisaem Educação e Artes – Educação Musical – pelo grupo Fapem – Formação, Ação e Pesquisa em Educação Musical.

LEME, Gerson Rios; BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro. Professores de escolas de música: um estudo sobre a utilização de tecnologias.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 87-96, set. 2007.

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Cada indivíduo tem como buscar tecnologias espe-cíficas às suas necessidades e encontra inúmerasopções similares para fins semelhantes no mercadotecnológico. Dispositivos de áudio e vídeo são con-cebidos, por exemplo, para alterar sons, fazer, re-produzir música e/ou vídeo separadamente ou simul-taneamente, sendo que tais aparelhos diferenciam-se ou assemelham-se entre si tanto pelos recursosespecíficos que possuem como pela qualidade deseus componentes.

Tal fato ocorre em virtude do acesso a essesrecursos tecnológicos ter se tornado consideravel-mente viável conforme avança largamente a produ-ção comercial dessas ferramentas, gerando assimuma ampla variedade de itens, aplicações práticas,pesquisas e preços para os mesmos; como ratificaDowbor (2001, p. 13): “informática, multimídia, tele-comunicações, bancos de dados, vídeos e outrostantos elementos se generalizam rapidamente. […]Os custos destes instrumentos estão baixando ver-tiginosamente.”

O tema tecnologia vem despertando interes-se em todas as áreas do conhecimento humano,gerando um crescente número de pesquisas acadê-micas e científicas referentes à inserção de recur-sos tecnológicos em contextos variados.

Um recente estudo acerca da produção aca-dêmica e científica produzida entre 1996 e 2002(Barreto et al., 2005), abrangendo 242 dissertações,47 teses e 42 artigos, que relacionam tecnologia eeducação, tendo como núcleo as tecnologias da in-formação e da comunicação (TIC), identificou trêsabordagens básicas, a saber:

1) as discussões em nível macro, objetivandoas políticas e propostas de inserção das TIC,subdivididas em concepção de sociedade eparadigma educacional;

2) as várias inserções das TIC no processode ensino e de aprendizagem como um todo,distribuías pelas modalidades: presencial, àdistância (EAD) e virtual;

3) os usos específicos, traduzidos emaplicações tópicas, na medida em querestritos a determinados suportes, neces-sidades e/ou conteúdos.

No campo da educação musical, pesquisasreferentes aos recursos tecnológicos vêm sendodesenvolvidas a partir da investigação e apresenta-ção das maneiras que as tecnologias musicais sãoutilizadas como alternativas para mediar atividadesno ensino de música.

Basicamente, podemos situar essas pesqui-sas em dois âmbitos diferentes:

• as que empregam recursos tecnológicos jáexistentes, concebidos para performance,composição e apreciação musical (Araldi,2004; Bozzetto, 2003; Corrêa, 2000; Fialho,2003; Freitas et al., 2004; Gohn, 2003; Leme,2002; Pires; Bünchen, 2003; Ramos, 2002;Ratton, 1995; Rudolph, 1996; Schmeling,2005; Schmidt, 2001; Silva, 2000; Valente,2003), refletindo a utilização desses recursosna educação musical;

• as que utilizam recursos tecnológicos musi-cais concebidos especificamente para oemprego na educação musical. Tais pesquisastêm avançado no campo de recursos virtuais,como ambientes para ensino à distância ouainda softwares na área de percepção eapreciação musical, bem como a sua cons-tante avaliação e aperfeiçoamento (Ficheman;Krüger; Lopes, 2003; Marins, 2003; Miletto etal., 2004).

Uma vez que “a educação no mundo de hojetende a ser tecnológica, o que, por sua vez, vai exi-gir o entendimento e interpretação de tecnologias”(Bozzetto, 2003, p. 9), o professor de música opta,para trabalhar, por estar interado e consciente quan-to às tecnologias musicais e sua utilização comoinstrumento mediador na educação musical ou não,o que se reflete na prática conforme a sua experiên-cia individual com as mesmas.

No entanto, a tecnologização da educaçãomusical é peculiarmente negativa, se entendida comoa disponibilização de recursos tecnológicos ou ainformatização acrítica por si só, pois “leva apenas aque as mesmas bobagens sejam feitas com maiorrapidez, além do acúmulo de equipamento sofistica-do utilizado como máquinas de escrever” (Dowbor,2001, p. 15), ou seja, leva ao uso limitado das possi-bilidades que esses recursos podem proporcionar,isso, principalmente, quando são utilizados pelo pro-fessor.

Essa limitação referente ao uso de alternati-vas tecnológicas por parte do professor de músicapode ser entendida como a necessidade de uma rá-pida aprendizagem que ele encontra diariamente paramanter-se atualizado quanto às crescentes opçõestecnológicas que se encontram no mercado, aliadaà constante falta de diretivas ou normas de procedi-mento quanto às maneiras de utilizar didaticamenteesses recursos como mediadores no ensino de mú-sica, ocasionando práticas engessadas ou mesmoconfusas quanto ao emprego dessas alternativastecnológicas em sala de aula.

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O professor passa a entender de tudo um pou-co e de nada com suficiente profundidade, não con-seguindo ser crítico-reflexivo em suas ações musi-cais educativas mediadas por tecnologias e acabaprocurando receitas que levem-no a uma relaçãoestável e tranqüila com estas alternativastecnológicas; um certo acomodamento traduzido emum conjunto de procedimentos fixos, fórmulas eações predeterminadas, como se fosse imutável ocontexto dessas alternativas tecnológicas, bem comoelas próprias.

Para poder dimensionar as utilizações musi-cais práticas desses recursos tecnológicos, o pro-fessor de música necessita mais que o acesso e oconhecimento técnico-operacional dos mesmos. Aomexer com tecnologias, não quer dizer que o profes-sor de música saiba como utilizá-las de modo críti-co-reflexivo ou que ele tenha compreensão das pos-sibilidades práticas das mesmas, do seu potencialeducativo. Assim, é preciso que o professor apren-da, inicialmente, a lidar com os recursos tecnológicosque escolhe, ou que precisa aprender, para poderempregá-los em relação a um fazer musical signifi-cativo para ele e para os seus alunos.

Segundo Miletto et al. (2004, p. 9), “pesqui-sas têm sido realizadas no sentido de aplicar recur-sos tecnológicos à área musical”, mas apenas “umpequeno número destas destina-se à educação, po-dendo ser utilizadas pelo professor de música noseu dia a dia”.

Supõe-se ainda nesses trabalhos, que o pro-fessor de música tenha um domínio tecnológico alémdo básico, o que nem sempre é uma realidade. Mui-tas vezes, independentemente da sua formação, oprofessor de música passa a ter contato com essesrecursos tecnológicos apenas nas práticaseducativas, de modo inevitável e limitado, já imersoem seu ambiente de trabalho.

Essa formação do professor de música, emseu ambiente de trabalho, é gradual e diária, confi-gurando um constante processo de aprendizagem,pesquisa e adaptação às diferentes realidades en-contradas em sala de aula. Sem uma formação ade-quada, esse processo educativo pode adquirir umcaráter equivocado, apoiado no status de práticamusical educativa mediada por tecnologias, como sea utilização de elementos tecnológicos sustentassepor si só um fazer musical educativo, configurando oensino e a aprendizagem musical do indivíduo.

Os professores de música precisam sabertransitar entre as tecnologias disponibilizadas e ne-cessitam rever ou reformular com freqüência seusconceitos educacionais e pessoais com relação aoemprego das mesmas como ferramentaspotencializadoras da aprendizagem musical, já quecada nova tecnologia traz consigo recursos diferen-ciados e a necessidade de uma (re)adaptação porparte dos professores.

É imprescindível, para esses professores demúsica, compreender as possibilidades de utiliza-ção de tais recursos em sala de aula, bem como(re)aprender os seus princípios básicos para elencarferramentas potenciais para ensinar música, alémde serem capazes de solucionar problemas decor-rentes do uso das mesmas em suas práticaseducativas diárias, certos de seus objetivos educa-cionais. Isso exige uma formação diferenciada des-ses professores.

Essa formação diferenciada pode ser enten-dida como uma prática de reflexão contínua sobreos processos de ensino mediados pelo uso dastecnologias, no ambiente de trabalho desses profes-sores de música, constituída por estágios simultâ-neos e ciclos que se reiniciam a cada nova alternati-va tecnológica com a qual o professor entra em con-tato. Não é necessária a conclusão de um proces-so, estágio ou ciclo para que outro se inicie. Geral-mente o que se nota é que esses elementos ocor-rem interativamente na constituição das estratégiaspedagógicas do professor de música.

Esse tipo de construção de conhecimentorespeita a não-linearidade do pensamento humano,e pode acontecer em três grandes momentos, refle-tidos a partir de experiências pessoais, compostospor processos e estágios que constituem um ciclo.A saber:

• a aprendizagem tecnológica do professor demúsica;

• a reflexão crítica1 do professor de músicaquanto ao uso desses recursos tecnológicoscomo instrumentos mediadores nos proces-sos de ensino e aprendizagem;

• o emprego dessas tecnologias em sala deaula de modo a contribuir com o fazer musical,mediando a aprendizagem musical.

1A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria/prática sem a qual a teoria pode ir virando blablablá e aprática, ativismo (Freire, 1996, p. 22).

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Definindo tecnologias

Esta pesquisa foi realizada com o foco na áreada educação musical e, desse modo, trata dastecnologias do ponto de vista educacional. Assim, éfundamental para a compreensão deste estudo queas palavras tecnologia(s), recurso(s), recurso(s)tecnológico(s), alternativa(s) tecnológica(s), nova(s)tecnologia(s), produto(s) tecnológico(s), tecnologia(s)de ponta, bem como todas as suas variáveis usadaspara remeter à grande categoria tecnologia, estejamvinculadas ao adjetivo educacional(is) sempre queaparecerem no decorrer do discurso.

O termo tecnologia está relacionado à educa-ção musical nesta pesquisa como uma palavra quedescreve uma ampla variedade de dispositivos e apli-cações na música e na educação musical, comoafirma Rudolph (1996, p. 4-5), ou seja, recursostecnológicos que podem ser categorizados eminterativos – que proporcionam um aprendizado maisativo e efetivo, como videogame, seqüencer, tecla-do, computador, entre outros – ou passivos – quetocam músicas ou mostram informações sem que ousuário interaja diretamente, como aparelhos quetocam sons e reproduzem imagens, por exemplo,videocassete – que podem ser empregados de diver-sas maneiras pelo professor de música, conformecada situação, de modo a apoiar e mediar o ensinode música nas suas práticas educativas.

A validação da tecnologia como uma categoriacomposta pelas ferramentas e dispositivos que o pro-fessor de música pode utilizar como mediadores noprocesso de ensino e aprendizagem remete a umaaproximação com as reflexões de Vygotski (1995,2002) na teoria sociocultural, tanto pela dimensão ins-trumental como pelas dimensões históricas – ao con-siderar as transformações históricas e sociais dos ins-trumentos através do tempo – e cultural, já que a me-diação acontece sempre de modo relacional entre omeio social e cultural construído e organizado pelohomem. Dessa forma os recursos tecnológicos, im-buídos da mesma dimensão instrumental, histórica ecultural se configuram como elementos indispensá-veis e inevitáveis nas atividades desses professoresde música não somente como auxiliares, mas principal-mente como transformadores ativos no processo deaprendizagem de alunos e dos próprios professores.

Portanto, tecnologias devem ser entendidascomo ferramentas que podem alterar a maneira deconhecer e fazer música, que atuam na mediação

do desenvolvimento do conhecimento musical deprofessor(es) e aluno(s) e destes entre si, modifi-cando suas atividades dentro ou fora de sala de aula,para a criação de um ambiente favorável ao ensino eà aprendizagem. Não se resume à condição de com-putador ou novos recursos simplesmente, mas aouso crítico-reflexivo de quaisquer recursos que vali-dem a educação musical. O professor de músicaprecisa, então, entender as diferenças e semelhan-ças entre os recursos tecnológicos para situar-secriticamente em relação aos mesmos.

Objetivos

Para entender como se estabelecem as rela-ções entre os professores de escolas de música etecnologias, investigamos como ocorre a utilizaçãode recursos tecnológicos nas práticas de ensino damúsica dos professores atuantes em escolas demúsica de Santa Maria (RS).

No contexto das relações que se estabele-cem entre educação musical, aprendizagem musi-cal e o emprego de recursos tecnológicos auxilian-do as práticas musicais nas escolas de música re-feridas, foram consideradas questões de interessedesta pesquisa:

• identificar como os professores de músicaaprendem a utilizar tecnologias musicais ecomo as empregam em suas práticaseducativas diárias;

• conhecer quais são os critérios empregadospor esses professores de música para escolherquais recursos tecnológicos devem serutilizados (ou não) para mediar o ensino demúsica.

• certificar o papel mediador das tecnologiasno ensino de música nas três principaisescolas de música de Santa Maria,denominadas de Nota, Pauta e Cifra,2 nestapesquisa.

Metodologia

A partir de uma análise inicial do contexto emque se estabelecem os objetivos desta pesquisa pro-curamos verificar o significado dos fatores que levamà formação do professor de música, bem como assuas conseqüências para a aprendizagem e para oensino de música aos seus alunos. Sendo assim,optamos pela abordagem qualitativa. As pesqui-

2 Ocorreu a utilização de nomes fictícios, por considerarmos as escolas analisadas equivalentes na validação de dados para estapesquisa e objetivando o anonimato das mesmas.

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sas com abordagem qualitativa procuram enfatizar“as especificidades de um fenômeno em termosde suas origens e de sua razão de ser” (Haguette,1987, p. 55) e podem apresentar cinco caracterís-ticas, destacadas por Bogdan e Biklen (1994, p.47-51), a saber:

1. Na investigação qualitativa a fonte directa de dadosé o ambiente natural, constituindo o investigador oinstrumento principal;

2. A investigação qualitativa é descritiva;

3. Os investigadores qualitativos interessam-se maispelo processo do que simplesmente pelos resultadosou produtos;

4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar osseus dados de forma indutiva;

5. O significado é de importância vital na abordagemqualitativa.

A escolha do ambiente escola de música sedeveu ao fato de ser este um espaço que atendeuma demanda considerável de alunos diariamente eque apresenta ou não recursos tecnológicos utiliza-dos para ensinar música. Além do mais, as váriasopções de aula de instrumento que podem ser en-contradas nessas escolas possibilitam a convivên-cia entre guitarristas, violonistas, cantores, percus-sionistas, disc-jóqueis (DJs) e violinistas, só paracitar alguns, gerando também atividades organiza-das de integração tais como apresentações, cursos,concursos e formação de bandas com alunos e pro-fessores de diversos níveis, do iniciante até os queatuam profissionalmente.

Esses professores abordam em suas aulasvariados tipos e estilos de música, como vocal, ins-trumental, eletrônica, rock, erudita, MPB, samba,música tradicionalista gaúcha, entre outros, e advêmde variadas formações, desde autodidatas até ba-charéis e licenciados em música e, em alguns ca-sos, dão aulas em mais de uma das escolaspesquisadas, além de também trabalharem com oensino particular de instrumento.

Alguns desses professores exercem suas prá-ticas educativas em instrumentos e estilos musicaisdiversos, dando aulas de guitarra elétrica e violão,teoria musical e teclado, baixo e notação musicalno computador, por exemplo. Sendo assim, transi-tam por mais de um recurso tecnológico, ora fazen-do a interação entre eles, ora utilizando algum espe-cificamente.

Foram entrevistados oito professores3 a pes-quisa, a partir de uma matriz de entrevista semi-estruturada, que se mostrou adequada para a verifi-cação das questões desta pesquisa, principalmentepor possibilitar ao entrevistado e ao entrevistador fle-xibilidade para discorrer sobre o assunto pesquisado.

Conforme Triviños (1987, p. 146), a entrevistasemi-estruturada é:

[…] aquela que parte de certos questionamentosbásicos, apoiados em teorias e hipóteses, queinteressam à pesquisa, e que, em seguida, oferecemamplo campo de interrogativas, fruto de novashipóteses que vão surgindo à medida que se recebemas respostas do informante.

Desse modo, analisamos as questões levan-tadas com maior profundidade, pois os sujeitos fala-ram sobre as suas próprias experiências seguindouma estrutura de tópicos que guiaram o foco princi-pal de interesse da pesquisa.

Além do mais, nas entrevistas semi-estruturadas existe uma colaboração entre as par-tes envolvidas, pois “o entrevistador faz perguntasespecíficas, mas também deixa que o entrevistadoresponda em seus próprios termos” (Alves-Mazzotti;Gewandsznajder, 1998, p. 168).

Foi dada atenção especial à coleta das en-trevistas, onde optamos por empregar técnicas degravação de áudio direto (ou som direto) que oprimeiro autor deste texto utiliza em produçõespara cinema e publicidade, adaptadas para os finsdesta pesquisa.

Tais técnicas levam em conta variáveis comoo ambiente em que a coleta do material sonoro éfeita e as condições ideais para que se tenha ummelhor aproveitamento do mesmo, os diferentestipos característicos de microfone usados paracaptar o som no ambiente, bem como o seuposicionamento adequado e suas particularidades,além da escolha do suporte apropriado a ser usa-do para armazenamento dos dados, sendo cadauma dessas variáveis facilmente perceptível edeterminante direta da qualidade do resultado fi-nal de cada entrevista.

As técnicas utilizadas para realizar as entre-vistas consistem de três processos, a saber: capta-ção (onde ocorre a gravação da entrevista propria-mente dita, que pode ser chamada tecnicamente de

3 Cada professor foi identificado, de comum acordo, a partir das iniciais aleatórias dos seus nomes e sobrenomes, visando preservaras suas identidades.

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áudio direto, ou seja, o som gravado diretamente nolocal mais apropriado que estiver ao alcance doentrevistador e do entrevistado), edição (feita no com-putador, onde se realiza conforme as possibilidadesoferecidas pelo software específico e se for neces-sário, a otimização do material bruto captado atra-vés de processamento para limpar algum eventualruído, além de realizar ajustes de volume, organi-zando e separando os arquivos conforme os tópicosda matriz de entrevista semi-estruturada, possibili-tando uma leitura direta de cada ponto) e finalização/transcrição (que consiste, basicamente, em gerarum novo arquivo de áudio para cada entrevista, comas modificações feitas na edição, para deixar maisprático o acesso aos pontos desejados, além datranscrição dos trechos selecionados de cada en-trevista para o formato final de texto, direto do áudioeditado).

Desse modo, o equipamento escolhido pararealizar a captação foi um pendrive4 com tocador demp3, microfone e gravador acoplados, além desoftware específico para trabalho com áudio para aedição e a finalização/transcrição.

Os professores e o uso das tecnologias

As entrevistas foram realizadas com a partici-pação de oito professores de música, sujeitos cola-boradores, que se dispuseram a conversar acercade suas práticas educativas, possibilitando assim,uma parte de fundamental importância para estapesquisa, sendo destes, dois professores de tecla-do e piano, dois de guitarra e violão, um de técnicavocal, um de violino, um de bateria e percussão eum DJ. A experiência desses professores em escolade música varia de três até mais de 15 anos de ativi-dade profissional. Alguns resultados das entrevistassão apresentados a seguir.

Dentre os meios que os professores encon-tram para aprender a lidar com novas tecnologiasmusicais, a Internet, a consulta direta de manuais, atroca de experiências com técnicos, outros profes-sores e a tentativa por erro e acerto são possibilida-des constantemente utilizadas, como relata BB:

Aprendi pesquisando na Internet, perguntando paraamigos meus que tinham uma noção, pegando osmanuais e mexendo, bem naquelas de erro e acerto,porque tu vai ali e fala – “ah não deu certo […] não eraassim, então vamos lá” – vai no computador de novo,por exemplo, e faz – “ah agora deu, é isso aí!” – Aprendena marra mesmo, porque todos os dias a gente vaibuscando, vai aprendendo alguma coisa, porque, comosão muitas as tecnologias, tu ter tempo para fazer cursode tudo é difícil […] então acontece que tu tem que tevirar nos dias de hoje, não tem outro jeito.

A aprendizagem do professor tem como prin-cípio a indagação, a busca e a pesquisa que fazemparte da natureza da prática docente (Freire, 1996),processos presentes na constante atualização dosconhecimentos do professor em relação ao uso detecnologias para mediar as suas práticas educativasdiárias, uma vez que nem sempre o contato préviocom recursos tecnológicos é possível, em virtude daquantidade de opções existentes no mercado, bemcomo a velocidade em que elas surgem. Muitas ve-zes, o professor acaba aprendendo a trabalhar comferramentas tecnológicas já em sala de aula, segun-do CV:

Comecei a aprender mexendo, por exemplo, no teclado,quando um aluno trazia uma música em cd, fita, emcifra,5 tablatura6 ou partitura, eu procurava timbres paradeixar o conjunto parecido com a música que elegostaria de aprender a cantar […] procurando regularo pedal de guitarra junto com o aluno, experimentando,assim: – “ah vamos tentar um pouquinho deste oudaquele efeito, ajustando os níveis, a gente quer maisou menos deste ou daquele parâmetro” […] e testandotambém o que cai na mão da gente.

A condição e a postura do professor comoaprendiz tecnológico ocorre num contexto no qual,muitas vezes, os professores precisam preparar osalunos para trabalhar em um universo de tecnologiasonde eles mesmos ainda são principiantes, comoconstata Dowbor (2001, p. 27).

Questionados quanto à motivação depesquisar novas tecnologias e aprender os procedi-mentos para usá-las, os professores de música ci-tam razões como a busca pelo aperfeiçoamento domodo de lecionar, a necessidade de atualização eos novos recursos que podem motivar a criatividade,conforme a fala de LS:

4O pendrive grava, dependendo da pré-configuração de qualidade do arquivo e da quantidade de memória física que dispõe, emformato digital de até oito horas consecutivas, com qualidade de áudio equivalente ou até mesmo melhor ao registro realizado pelosgravadores comuns usados para entrevistas, que usam fita magnética para armazenagem final. As memórias físicas dessesdispositivos variam conforme fabricante e modelo, mas situam-se de modo geral, entre 128 megabytes (MB) até 60 gigabytes (GB),e podem armazenar qualquer tipo de arquivo, sendo limitado apenas pela sua capacidade vinda de fábrica.5Cifra: sistema usado para dar nome às tríades. A cifra indica se um acorde é maior ou menor e a nota do baixo (Corrêa, 2000).6Tablatura: representa o desenho do braço do violão ou da guitarra com suas cordas e casas. Tem por objetivo possibilitar avisualização de onde colocar os dedos (Corrêa, 2000).

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Por exemplo, eu compro um teclado novo e aprendo ausar ele por causa dos recursos bem melhores que eletem, porque ele vai me trazer mais possibilidades decriatividade […] quanto mais recursos tu tem, mais televa a criar em cima […] e motiva também os alunos,porque eles trazem teclados que têm em casa comcoisas incríveis que tem de recurso […] a gente temque saber para poder ensinar também.

Já MO problematiza a necessidade de utilizarnovas ferramentas devido a estas se tornarem obso-letas,7 fato que dificulta aos professores continua-rem trabalhando sempre apenas com os recursosque estão habituados, além da exigência de ter quesaber fazer uso de alternativas tecnológicas especí-ficas para certas ocasiões:

Com certeza é a necessidade, porque eu tinha umteclado, por exemplo, que estragou uma vez e leveipara consertar, daí o técnico me disse assim – “olha,se acontecer de estragar de novo, dá jeito de comprarum novo porque as peças dele já estão antigas e émuito ruim de conseguir” – […] No violino, às vezes ficacomplicado de tocar em algum lugar tipo casamento ouuma apresentação porque ele não tem a parte elétricae isso faz falta. Eu pesquiso para achar uma solução,mas eu não quero furar ele, nem mexer demais […]mas para comprar um elétrico agora ainda não dá, masjá é uma necessidade, aí a gente improvisa e colocamicrofone nele. E tem também a parte do método Suzuki,o material de apoio, que é todo com CD agora, antesera com fita cassete […] é a necessidade mesmo queme faz aprender.

A aprendizagem de recursos tecnológicosacaba levando os professores de música à reflexãorelacionada ao conhecimento específico que possu-em, conforme utilizam tais tecnologias musicais dia-riamente interagindo com seus alunos. Schön (2000),defende que os profissionais somente “aprendem aserem inteligentes” a partir da reflexão sobre a pró-pria prática. O professor deve, assim, ser um profis-sional que reflete criticamente sobre a sua prática e,a partir dela, desenvolve conhecimentos próprios re-lacionados ao contexto em que atua, às suas expe-riências e às suas concepções sobre educação.

As ações do professor de música em sala deaula resultam em reflexões acerca do emprego detecnologias como ferramentas mediadoras, que aju-dam ou atrapalham as suas práticas educativas,estimulando no professor a atitude de buscar umacompreensão mais aprofundada acerca dos recur-sos que utiliza para ensinar música, uma vez que“não podemos ensinar nem pensar de forma criativasobre o ensino daquilo que nós não compreende-mos” (Swanwick, 2003, p. 14).

Desse modo, os professores procuram enten-der se o que sabem é o suficiente para exercer assuas atividades de educação musical mediada portecnologias. Fatores variados podem desencadeartais reflexões a partir de situações práticas, comoexplica BB:

A minha reflexão vem do momento que eu vejo queconsegui passar alguma coisa para o aluno, vendo eletocar aquela música que ele queria tanto tocar, aqueletrecho que é importante […] na verdade é pelosresultados, a coisa acontece de maneira natural, porexemplo, a primeira vez que eu gravei uma trilha nocomputador, fiz a linha de baixo, da bateria, gravei numCD e pude levar para o aluno […] no momento que issofuncionou eu vi que deu certo, porque vi o resultado, aípensei, funcionou a coisa.

Quanto ao fato da tecnologia ajudar ou atra-palhar as práticas de ensino diárias do professor demúsica, GD destaca à facilidade de acesso que elaproporciona às mais variadas informações:

Ajuda sim, porque hoje em dia tu tens vários lugarespara correr, tem vários recursos, então se nãoconsegue de um jeito com um recurso dá com outro[…] é menos limitado do que tu só passar o teuconhecimento, o que tu sabe só pelo que tu tem nacabeça, eu posso buscar as coisas pela Internet bemfácil. Então ajuda porque tem mais acesso à informaçãode qualquer coisa que eu queira e precise.

ML reflete em relação a modos diferenciadosde dar aulas, sem esquecer do cuidado com a dosa-gem do uso de recursos tecnológicos:

Acho que vai ter mais cursos e aulas pela Internet, queé um recurso maravilhoso. Eu sei que já tem hoje acessoa isso, mas não é uma coisa tão viável ainda, assim,que tu faça fácil. E eu acho que é um futuro bem próximo,e que daí isso vai acabar sendo uma coisa normal,como é o [software] Messenger ou e-mail hoje […] Sópensar que antigamente tu não tinha nem o telefone ehoje tem o Messenger, que tu fala com gente do outrolado do mundo em tempo real […] mas eu não coloco atecnologia acima do pensamento, acho que se ela vierpara agregar para o pensamento, de ser um recursopara utilizar mas pro lado psicológico eu acho que beleza,mas acho que não substitui a sonoridade que vem dapegada mesmo do cara, porque se não chega umahora que vão te falar – “não cara, eu te chamei aquinão foi para a bateria eletrônica tocar por ti, eu querover tu tirando som” – e o feeling da máquina, pelo queeu conheço, não faz melhor do que a gente mesmo.

Esse discurso demonstra que não bastamcondições e recursos à disposição do professor paragarantir que se ensine música musicalmente, con-forme descreve Swanwick (2003, p. 57):

7 Acreditamos que nenhum produto pode ser considerado obsoleto por quem o desconhece, desconhecendo também as possibilidadesintrínsecas a ele. A qualidade de obsolescência é definida, portanto, mais por fatores mercadológicos do que por fatores pessoaiscircunstanciais.

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Tenho visto a música ser ensinada de forma não musicalem condições onde o tempo e os recursos eram maisque suficientes, e tenho visto a música ser ensinadamusicalmente em condições não promissoras. Essenão é, certamente, um argumento para não oferecer àeducação musical recursos, mas um reconhecimentode que recursos, somente, não bastam. Assim como éimportante compreender as qualidades essenciais damúsica, tem de haver um senso do que seja engajar-seem transações musicais vivas.

Não se pode ignorar o fato de que a disponibi-lidade de tecnologias musicais proporciona um le-que de novas possibilidades educacionais, bem comotrazem consigo novos problemas que o professor demúsica precisa saber administrar, já que:

Tecnologia não é uma panacéia para a educaçãomusical. Ela não resolve todos os nossos problemas e,como qualquer nova ferramenta educacional, introduzalguns problemas característicos. Tecnologia funcionamelhor quando é percebida como uma melhoria ao invésde norteadora de um currículo inteiro. (Rudolph, 1996,p. 10, tradução nossa).8

Portanto, saber por que usar tecnologias vari-adas como instrumentos mediadores do processode ensino e de aprendizagem é tão importante quan-to saber o porquê de não usá-las, e essa escolha sópode ser feita de modo consciente quando o profes-sor problematiza sua prática e conhece as possibili-dades dos recursos que tem à sua disposição.

Conclusões

Buscando responder aos objetivos da pesqui-sa a partir das falas dos professores de música en-trevistados, procuramos desmistificar a tecnologiacomo sendo algo sempre distante e inacessível,construindo uma rede de significados que pudessemostrar o caminho que os professores atuantes emescolas de música fazem em relação à sua aprendi-zagem tecnológica crítico-reflexiva-transformadoravoltada para o campo da educação musical.

Analisando qualitativamente os discursosdos professores, a respeito das suas experiênci-as quanto à sua própria aprendizagem e à utiliza-ção de recursos tecnológicos musicais na suaprática educativa em educação musical, foi pos-sível compreender algumas relações entre a sele-ção dos conteúdos, a maneira como estão sendotrabalhados, se vão em direção à construção doconhecimento em música, e qual a finalidade des-sa ação pedagógica.

É importante que passemos a utilizar atecnologia na educação como possibilidades reaisde potencializar os processos de ensinar e de apren-der, de modo cada vez mais complementar, visto queé sim possível realizar educação musical com amediação de tecnologias, gerando novas tecnologiasou novas aplicações tecnológicas a partir da refle-xão em educação. Nesse contexto cabe ao profes-sor de música assumir uma postura diferente deapenas consumidor tecnológico passivo, tornando-se produtor e co-produtor de conteúdos tecnológicose novos contextos educacionais, em conjunto comoutros professores, com seus alunos e com a soci-edade.

O ensino de música mediado por recursostecnológicos é uma realidade presente nas escolasde música e vem sendo ampliado a partir de investi-mentos em tecnologias específicas, bem como emmelhorias de estrutura e condições para que os pro-fessores que trabalham nesses ambientes utilizemalternativas tecnológicas de modo a incrementar aaprendizagem musical dos seus alunos.

Desse modo, quanto mais cedo o professorde música tiver contato e pensar nas alternativastecnológicas como mediadoras na educação musi-cal, inserindo-as em suas práticas educativas diári-as, menor se torna a defasagem do conhecimentotecnológico que ele possui em relação ao contextotecnológico que os seus alunos vivenciam, o que podeser positivo, se levado em conta que isso pode pro-porcionar o estreitamento da relação professor alu-no na busca de objetivos comuns relacionados àeducação musical.

Acreditamos que, pensando desse modo, éde interesse das escolas investir não apenas na atu-alização de produtos tecnológicos, mas também naformação do seu quadro de professores, objetivandodespertar neles uma postura mais ativa acerca doemprego ou não de ferramentas tecnológicas comoopção mediadora do ensino de música.

A reflexão crítica transformadora do professorno contexto da escola de música pode gerar, a partirdo diálogo professor-escola, mais clareza do profes-sor de música em relação às suas práticas e objeti-vos educativos, bem como mais objetividade dasescolas em relação à necessidade ou não de inves-timentos em determinados recursos tecnológicos.

8 No original: “Technology is not a panacea for music education. It will not solve all of our existing problems and, aswith any new educational tool, it introduces some problems of its own. Technology works best when it is perceivedas an enhancement or teaching device rather than the driving force of an entire music curriculum.”

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Referências

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Passada a euforia inicial da revoluçãotecnológica na educação, com todas as suas possi-bilidades conhecidas e as que ainda estão por sur-gir, chega o momento de focar a atenção na forma-ção dos profissionais, no caso os professores demúsica, que trabalharão com tecnologias inserindo-as em suas práticas educativas como mediadorasno campo da educação musical.

Desse modo, há o entendimento de o que éfundamental para o professor fazer, ensinar e apren-der música não é a tecnologia em si, mas sim acapacidade que ele tem de pensar conscientemente

acerca dos prós e contras em relação ao uso destastecnologias, problematizá-las.

A diferença que existe entre a educação mu-sical que pode proporcionar um professor de músicaque procura estudar possibilidades diferenciadas paradar as suas aulas e se mobiliza a fazer o melhorpossível, indo além do alcance do seu conhecimen-to, e um professor que considera qualquer mudançana sua rotina como sendo completamente dispen-sável ou mesmo incômoda é que o que não estuda,faz o que pode, ao passo que o professor que estu-da e reflete, faz o que quer!

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Recebido em 15/02/2007

Aprovado em 08/06/2007

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Introdução

Embora existam muitas pesquisas sobre di-ferentes aspectos pedagógicos da docência, pou-cos educadores abordam os aspectos profissionaisinerentes a esse trabalho. Nessa área, destacam-se os estudos de Tardif e Lessard (2005, p. 16), quecaracterizam o trabalho docente como uma “profis-são humana interativa” por incluir formas específicasde interação do professor sobre e com os alunos eoutros atores escolares. O ser humano – o aluno e

as demais pessoas do círculo escolar – são cen-trais para a compreensão do trabalho docente e dasrelações que são estabelecidas nos diferentes mo-mentos de atuação; ele não é um mero “objeto detrabalho”, “um meio ou finalidade do trabalho, mas a‘matéria-prima’” (Tardif; Lessard, 2005, p. 8-9, 20). Apalavra interação nos remete a “influência mútua”,“intercâmbio”, e estes são alguns dos pontos cen-trais aos processos de ensino-aprendizagem.

Relações interativas dedocência e mediações

pedagógicas nas práticas de EaDem cursos de aperfeiçoamento

em educação musicalSusana Ester Krüger

Escola de Música e Belas Artes do Paraná[email protected]

r

Resumo. Neste artigo, identifico alguns aspectos defendidos por Tardif e Lessard (2005) naspráticas de quatro cursos de aperfeiçoamento em educação musical realizados na modalidadesemi-presencial, com apoio em um ambiente virtual de aprendizagem para Educação a Distância(EaD). Analiso a organização dos cursos sob os conceitos de docência enquanto profissãointerativa, trabalho “codificado” e “não codificado” e de interação social (Tardif; Lessard, 2005) erelaciono-os com os conceitos de mediação e co-mediação em EaD – ou o estar junto virtual dePrado e Valente (2002). Concluo que estes conceitos são relacionados e se traduziram empráticas efetivas nos cursos investigados.

Palavras-chave: educação a distância, relações interativas de docência, mediação pedagógica

Abstract. In this article, I identify in the practices of four refresher courses in Music Educationsome issues defended by Tardif and Lessard (2005). These courses were hybrid (presential anda distance) and had the support of a virtual learning environment used in Distance Education (DE).I analyze the organisation of the courses using the concepts of teaching as an interactive job, of“codified” and “non-codified” work, and of teaching interactive relations (Tardif; Lessard, 2005). Irelate such concepts with mediation and co-mediation in DE – or the estar junto virtual (virtuallybeing together), coined by Prado and Valente (2002) and come to the conclusion that theseconcepts are related and have effectively been translated into practices found in the investigatedcourses.

Keywords: distance education, teaching interactive relations, pedagogical mediation

KRÜGER, Susana Ester. Relações interativas de docência e mediações pedagógicas nas práticas de EaD em cursos deaperfeiçoamento em educação musical. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 17, 97-107, set. 2007.

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Como a docência, a música também é umaatividade social interativa. Segundo Small (1997, p.2, tradução minha), embora pareça “uma atividadesolitária, realizada por um indivíduo, geralmente érealizada em conjunto por duas ou mais pessoas”:mesmo na apreciação musical – de uma obra grava-da ou ao vivo –, há alguém tocando e, de uma ououtra forma, acontece uma interação entre essaspessoas. Assim, “fazer música é tomar parte, comqualquer aptidão, numa performance musical” (Small,1997, p. 2-3, tradução minha), o que implica nãosomente executar, mas apreciar/ouvir, compor, en-saiar ou qualquer atividade relacionada à performancemusical. Ross (1995, p. 195, tradução minha) afirmaque “a música é uma experiência expressiva e apren-der a expressar-se musicalmente significa participarem ocasiões de pensamento e sentimento musicalreal ou imaginário. Essas serão, por definição […],experiências conjuntas com outra pessoa ou pesso-as através da música”. Em educação musical asinterações sociais são moldadas pelas concepçõesdos docentes sobre as funções, valores e justificati-vas da música na escola. Estas se refletirão nasatividades, conteúdos e organização das aulas.

O uso das Tecnologias da Informação e Co-municação (doravante TICs) nas escolas tambémressalta a importância das interações entre profes-sor e seus alunos e entre os próprios alunos. Maisdo que nunca, está claro que o professor não serásubstituído pelas tecnologias, e que ele é fundamen-tal para, junto com o aluno, construir conhecimento.É essa proposta de estar junto que atribui o caráterinterativo da profissão também no âmbito dastecnologias educacionais como ocorre nos Ambien-tes Virtuais de Aprendizagem (doravante AVA). Porexemplo, Johnson e Johnson (1996) citam a pesqui-sa de Dwyer (1994), que demonstrou que as tarefascomputacionais que exigiram interações entre osestudantes eram “mais espontâneas e mais amplas”do que as interações individuais tradicionais. Tam-bém são cada vez mais comuns os aplicativos paraEducação a Distância (doravante EaD) via Internetque incluem ferramentas para interações e trabalhoscolaborativos (bate-papos, confecção conjunta detextos e outros).

É possível, portanto, considerar que estes trêscampos – a docência, a música e a EaD – estimu-lem as relações interativas e de colaboração entreos docentes e seus alunos e entre os próprios alu-

nos. Neste artigo, verifico como as relaçõesinterativas do trabalho e os conceitos de interaçãode Tardif e Lessard (2005), de mediação e co-media-ção em EaD – ou o estar junto virtual de Prado eValente (2002) se traduzem nas práticas de quatrocursos de aperfeiçoamento em educação musicalrealizados semipresencialmente em 2006 como partedo Programa Descubra a Orquestra1 desenvolvidopela Coordenadoria de Programas Educacionais daOrquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (CPE/Osesp) com apoio da FDE/CENP/COGSP2 da Se-cretaria de Estado da Educação de São Paulo. Umdos cursos foi destinado a professores com forma-ção musical, dois foram destinados a professoresleigos em música e o quarto foi misto. A carga horá-ria do curso para professores com formação foi de66 horas, sendo 30 desenvolvidas a distância, e dosdois cursos para professores sem formação e domisto as cargas horárias foram de 40 horas, sendo20 a distância via Internet. Seu objetivo principal foifornecer subsídios teórico-práticos para que os pro-fessores trabalhassem com o repertório orquestralem sala de aula como preparação e/ou continuidadeao evento didático orquestral apreciado na Sala SãoPaulo. Todos foram realizados em seis meses (demarço a agosto de 2006). Foi utilizada como ferra-menta de trabalho a distância o TelEduc, desenvolvi-do pelo Núcleo de Informática na Educação/Unicamp(http://hera.nied.unicamp.br/teleduc/) hospedada emwww.osespeducacionais.art.br. Seus recursos inclu-em módulos colaborativos para atividades síncronas(que requerem participação simultânea), como o bate-papo, e para atividades assíncronas – como fórumde discussão, correio, portfólio individual e de gru-pos, etc.

A organização do trabalho docente na EaD

Tradicionalmente, a escola é relacionada aos“modelos organizacionais do trabalho produtivo”, quese assemelham aos modelos industriais: padroniza-ção, controle burocrático nas tarefas diárias, etc.(Tardif; Lessard, 2005, p. 24-25). Infelizmente, des-sa forma muitas vezes

os responsáveis escolares adotam uma atitudeprescritiva quanto às tarefas e aos conteúdosescolares; introduzem medidas de eficiência e umcontrole cerrado do tempo; […] o currículo torna-sepesado; ele é separado em partes muitas vezes semrelação entre si, engendrando o parcelamento dotrabalho (Tardif; Lessard, 2005, p. 25).

1 Outras informações em www.osesp. art.br/educacionais.2 Fundação para o Desenvolvimento da Educação, Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas e Coordenadoria da Grande SãoPaulo.

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Da mesma forma, os autores criticam a intro-dução das TICs caso sejam reproduções de “mode-los de racionalização” do uso convencional e indus-trial dessas ferramentas, pois, ao contrário, é ne-cessário que sua validade e impactos sejam ques-tionados e avaliados em relação aos “conhecimen-tos escolares, o ensino e a aprendizagem dos alu-nos” (Tardif; Lessard, 2005, p. 25).

Essa crítica procede quando observamos al-gumas teorias sobre EaD que relacionam-se aosmodelos industriais acima mencionados. Em 1960,destacavam-se os estudos de Otto Peters, que pro-curavam orientar a organização e funcionamento daEaD segundo os princípios de produção industrialcomo “divisão do trabalho, produção em massa eorganização para obtenção de economias de escalae redução das unidades de custo” (Garrison, 2000,p. 6, tradução minha). A partir do ano de 2000 seustrabalhos já demonstram um outro foco: a aprendi-zagem a distância e o estudo da autonomia einteração dos alunos nos estudos, no que ele deno-mina intercurso social (Garrison, 2000, p. 7). Talmudança indica uma oscilação entre o foco nas ques-tões organizacionais e nas educacionais, e a ne-cessidade de reflexão sobre a viabilidade de premis-sas da EaD como o atendimento personalizado econstante. Por exemplo, a teoria de Borje Holmberg(1989 apud Garrison, 2000) sobre conversação didá-tica guiada confere importância à conversação entreo formador e os alunos, mas reconhece que, devidoàs necessidades econômicas, ela é complementarà organização prévia do curso (Garrison, 2000, p. 7-8) que inclui outras atividades síncronas e assín-cronas, como as realizadas apenas entre os alunosem fóruns e bate-papos.

Essa estrutura/organização de curso muitofirme e planejada, embora aberta a mudanças, rela-ciona-se com a Teoria da Distância Transacional deMichael Moore (1997, p. 1) – que também não seafasta totalmente do modelo industrial, embora fo-calize mais as questões pedagógicas. Ela entendea EaD como um conceito pedagógico mais do queuma definição da separação geográfica [e física] en-tre alunos e professores. Seus três pilares de análi-se possibilitam a verificação da distância comunica-tiva entre os professores e alunos: as relações e odiálogo entre professores e alunos (associados àsferramentas de comunicação utilizadas); a estruturado curso (organização e design); e a natureza e ograu de autonomia dos alunos (Garrison, 2000, p. 8;Henderson, 2005, p. 3). Garrison (2000, p. 8) resu-me: o programa mais distante tem maior diálogo ebaixa estrutura, enquanto o programa menos distan-te tem maior diálogo e estrutura. Uma grande

estruturação de um curso apoiado pela EaD possibi-litaria maior autonomia aos alunos, pois eles podemtomar decisões, estabelecer objetivos, procedimen-tos, recursos e avaliações (Moore, 1990, p. 13) apartir de orientações claras a seguir, e eles não fica-riam total ou constantemente dependentes do acom-panhamento e supervisão dos professores. Do outrolado dessa autonomia, está o controle dos professo-res – e, para Garrison (2000, p. 9, tradução minha),“a dificuldade nesta polarização parece ser aconceituação da autonomia menos como uma fun-ção ou responsabilidade pessoal e mais como umafunção da estrutura e dos materiais de aprendiza-gem”. Porém, a autonomia dos alunos parece serproporcional ao seu conhecimento e experiência emEaD: quanto maiores, mais autônomos poderão sernão apenas nas questões técnicas, mas tambémnas pedagógicas, entendendo qual é papel espe-rado deles, de seus colegas e do formador res-ponsável.

Um exemplo de cursos de atualização emeducação musical na EaD via Internet

Como exemplo das questões acima apresen-tadas, exponho adiante a estrutura básica dos qua-tro cursos de formação continuada em educaçãomusical realizados pela CPE/Osesp no primeiro se-mestre de 2006 (Tabela 1). A organização inicial foiproposta pela coordenação e submetida à análisedos docentes, para verificação da adequação e deadaptações pertinentes às propostas individuais eao perfil de cada público-alvo. Embora poucas alte-rações tenham sido realizadas, a participação dosdocentes foi fundamental para delimitação de ativi-dades complementares e prazos de execução dastarefas. Mas a necessidade de envolvimento contí-nuo dos formadores e da equipe administrativa su-gere que, além das questões pedagógicas, os as-pectos financeiros e organizacionais são determi-nantes da qualidade. Por exemplo, nos cursos men-cionados, deveriam acompanhar o trabalho de umcerto número de alunos, embora não precisassemparticipar em todos os bate-papos devido à diversi-dade de horários. Por isso, os cursos requereramgrande dedicação, compromisso, organização e tem-po. Ou seja, se analisado sob o aspecto “industrial”,na relação custo-benefício, os cursos requereraminvestimentos financeiros elevados (como outros deEaD) no que tange à carga horária dos formadores,além do tempo da equipe de apoio para a organiza-ção dos cursos, formatação e atualização da ferra-menta de trabalho e supervisão técnico-pedagógica.Uma alternativa foi estimular a autonomia dos alu-nos para que não dependessem exclusivamente dosformadores e trabalhassem em grupos por meio de

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Tabela 1: Organização inicial dos cursos realizados no primeiro semestre de 2006 pela CPE/Osesp

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bate-papos ou de fóruns. Estes foram consideradosmais viáveis por serem realizados assincronamente,atendendo assim a disponibilidade individual de cadaaluno e também dos formadores.

Enquanto sugestão metodológica, esta estru-turação considerou o fato de que os docentes tinhampouca ou nenhuma experiência em EaD. Os alunos,além da inexperiência em EaD, às vezes tambémdemonstravam inexperiência no próprio acesso e usodo computador e grandes dificuldades em manter aconstância de participação. Portanto, uma estru-turação maior poderia auxiliá-los e motivá-los a de-sempenhar as atividades. Além disso, cada docentepoderia acrescentar ou modificar conteúdos, criaratividades adicionais e alterar prazos (com exceçãodos prazos do final dos cursos) devido às necessi-dades percebidas nas interações com os alunos.Porém, na prática, pouco foi modificado – o que podeter sido gerado: 1) pela proposta inicial (acomoda-ção e apropriação da estrutura, conteúdos e objeti-vos dos cursos), 2) pouca disponibilidade de tempo(além da exigência contratual), ou 3) inexperiênciaem EaD.3

O trabalho docente “codificado” e “nãocodificado”

A estruturação dos cursos acima se relacio-na ao que Tardif e Lessard (2005, p. 41-42) denomi-nam de “trabalho codificado” da docência, ou seja,os aspectos burocráticos, codificados, prescritos,rotineiros, formais, normatizados, controlados, pa-dronizados e delimitados, de divisão de tarefas – aênfase em “elementos institucionais”. Sob este ân-gulo, o docente é “um agente da organização esco-lar, ele é seu mandatário e seu representante. Suaidentidade profissional é definida pelo papel que exer-ce e o status que possui na organização do traba-lho” (Tardif; Lessard, 2005, p. 43).

Por outro lado, a liberdade para modificaçõesno decorrer de um curso pode ser relacionada a umoutro conceito de Tardif e Lessard (2005): o “trabalhonão codificado”, ou seja, ele engloba os componen-tes informais, variáveis, implícitos, imprevistos. Es-tes permitem que o professor interprete e realize suastarefas com certa flexibilidade, “principalmente quan-to às atividades de aprendizagem em classe e à uti-lização de técnicas pedagógicas” (Tardif; Lessard,

2005, p. 43). Almeida (2003, p. 8) considera que “aEaD em ambientes digitais e interativos de aprendi-zagem permite romper distâncias espaço-temporaise viabiliza a recursividade, múltiplas interferências,conexões e trajetórias, não se limitando a dissemi-nar informações e tarefas inteiramente definidas apriori”. Para Cerqueira (2005, f. 39), esta situação écomum e até desejável na EaD:

Talvez seja este o novo paradigma do profissional, nocaso, do professor, envolvido em projetos em EaD: umprofessor a posteriori e não a priori, ou seja, seu papelserá definido de trás para frente, dadas asnecessidades que vão sendo “coladas” no processode ensino e aprendizagem a distância, e que podem,por sua vez, ser apenas “rascunhadas”, nunca“passadas a limpo” a priori. Ele deverá sempre estaraberto para o novo, para o porvir.

A autora cita Kenski (2003, p. 30), que tam-bém defende a flexibilidade e a adaptabilidade doprofessor:

As velozes transformações tecnológicas da atualidadeimpõem novos ritmos e dimensões à tarefa de ensinare aprender. É preciso estar em permanente estado deaprendizagem e de adaptação ao novo. Não existemais a possibilidade de considerar a pessoa totalmenteformada, independentemente do grau de escolarizaçãoalcançado (Cerqueira, 2005, f. 40).

Como exemplo, transcrevo um trecho (textua-lizado4 com base em Gattaz, 1996) um trecho deum bate-papo sobre a organização das atividades eo acompanhamento dos alunos, realizado entre acoordenadora da CPE/Osesp e as duas formadorasdo Curso para professores com formação musical.Nele ocorre a distribuição das tarefas entre as for-madoras principalmente sobre o acompanhamentodos alunos em seus trabalhos individuais e nos fórunsde discussão:

Vemos assim que, apesar de um planejamentoinicial, a coordenação geral e as formadoras acorda-ram modificações e detalhamentos na distribuiçãodas tarefas, devido ao tempo escasso, alto númerode participantes e outras necessidades percebidasno início do curso. Essa flexibilidade na reorganiza-ção da proposta – que acaba gerando umdetalhamento e uma estruturação, organização esistematização mais firme ainda – também é previs-ta nas relações entre os alunos e os docentes, comosugerem os conceitos de mediação e co-mediaçãoem EaD, sobre os quais discorro adiante. A previsão

3 Estas questões carecem de investigação mais profunda, fazendo parte da pesquisa de doutorado da autora (em andamento).4 Este procedimento foi adotado em todos as transcrições deste artigo. O autor comenta que a linguagem falada (que pode serequiparada à linguagem escrita em bate-papos na Internet) difere da linguagem escrita, por isso, a textualização deve ser umanarrativa clara, com texto “limpo”, “enxuto” e “coerente”; sua leitura deve ser fácil e compreensível, o que não ocorre com atranscrição literal (Gattaz, 1996, p. 135, 136). Por isso, palavras e frases podem ser “retiradas, alteradas ou acrescentadas”, comopalavras redundantes e expressões como gírias (Gattaz, 1996, p. 136).

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Tabela 2: Bate-papo sobre a organização das atividades do Curso para prof. com formação musical

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de atuação do docente enquanto mediador pode sergerada no âmbito do “trabalho codificado” (previstona própria estrutura do curso), mas sua mediaçãoserá viabilizada e expandida no âmbito do “trabalhonão codificado”, que dá abertura à diferentes estra-tégias de mediação levando em conta a reação eparticipação dos alunos.

Relações interativas na EaD: mediação dosformadores e co-mediação dos alunos

Em EaD torna-se cada vez mais comum aparticipação ativa e determinantes dos alunos nacondução dos trabalhos. Por isso, as interaçõessociais dos docentes envolvem não somente suaprópria mediação pedagógica junto aos alunos, mastambém a co-mediação dos alunos. Muitos cursos5

começam com a mediação dos docentes e culmi-nam na ênfase da co-mediação dos alunos, propor-cionando assim experiências variadas e úteis para oseu desenvolvimento social e educacional.

A mediação pedagógica dos docentes naEaD

A interatividade entre docentes e alunos de-pende muito do que os docentes entendem comomediação pedagógica e como a viabilizam em suaspráticas. Para Masetto, Moran e Behrens (2000, p.144), deve-se entender a mediação pedagógica emEaD como

a atitude, o comportamento do professor que se colocacomo um facilitador, incentivador ou motivador daaprendizagem, que se apresenta com a disposição deser uma ponte entre o aprendiz e sua aprendizagem –não uma ponte estática, mas uma ponte ‘rolante’, queativamente colabora para que o aprendiz chegue aosseus objetivos.

Os educadores ainda colocam a mediaçãopedagógica como “fundamento para que se realizesignificativamente o processo de aprendizagem adistância” (Masetto; Moran; Behrens, 2000, p. 132apud Cerqueira, 2005, f. 55). Cerqueira (2005, f. 61)cita Mori (2004, f. 80-81), que considera a mediaçãopedagógica como

o resultado da articulação de uma série de situações,fatores, intenções e saberes que contribuem ou nãopara o seu desenvolvimento. Sendo assim, o processode mediação pode variar de acordo com o contexto noqual os sujeitos estão envolvidos, as característicaspessoais e profissionais do professor, a motivação einteresse dos alunos, os conteúdos e os conceitosque são desenvolvidos, as estratégias e técnicasempregadas, a linguagem estabelecida, a intencionali-dade do professor.

A mediação também se aproxima do concei-to do estar junto virtual (Prado; Valente, 2002), umavez que atuar na EaD inclui expressar pensamentose sentimentos, tomar decisões, dialogar, trocar in-formações e experiências e produzir conhecimento.As interações por meio dos recursos disponíveis nosAVAs propiciam as trocas individuais e a constitui-ção de grupos colaborativos que interagem, discu-tem problemáticas e temas de interesses comuns,pesquisam e criam produtos, ao mesmo tempo emque se desenvolvem (Almeida, 2003, p. 7). Masetto(2001, p. 131) também comenta que o professor dei-xa de ser o “expert e transmissor de informações”partindo “para um relacionamento de co-operação,de co-participação, de estar junto, de equipe, deparceria entre os participantes daquele processo deaprendizagem”.

Com o uso de ambientes virtuais de aprendizagemredefine-se o papel do professor que finalmente podecompreender a importância de ser parceiro de seusalunos e escritor de suas idéias e propostas, aqueleque navega junto com os alunos, apontando aspossibilidades dos novos caminhos sem a preocupaçãode ter experimentado passar por eles algum dia. Oprofessor provoca o aluno a descobrir novossignificados para si mesmo, ao incentivar o trabalhocom problemáticas que fazem sentido naquele contextoe que possam despertar o prazer da descoberta, daescrita, da leitura do pensamento do outro e dodesenvolvimento de projetos colaborativos.Desenvolve-se a consciência de que se é lido paracompartilhar idéias, saberes e sentimentos e não apenaspara ser corrigido. (Almeida, 2003, p. 7).

Um outro aspecto apontado por Tardif eLessard (2005), que inicialmente nos parece polêmi-co e relaciona-se à mediação pedagógica em EaD,é o dos alunos como “clientes involuntários” ou “for-çados”. Esses alunos “podem neutralizar a ação dostrabalhadores [formadores], porque estes têm neces-sidade da participação deles” para trabalhar; assim,os alunos precisam ser convencidos “quanto ao be-nefício de sua ação”, “aderir subjetivamente” por ces-são de oposição ou por neutralização. As principaisnecessidades são a motivação para a sua participa-ção e diminuição da resistência (Tardif; Lessard, 2005,p. 34-35). E essa motivação muitas vezes passa pelocampo emocional, extracurricular, extrapolando asáreas técnico-pedagógicas e organizacionais dainteração social entre os docentes e seus alunos.

Como exemplo, apresento uma situação emque a mediação dos docentes e da equipe de apoiofoi fundamental para o alcance dos objetivos doscursos da Osesp. A mediação considerou aspectos

5 Como exemplo, encontramos várias disciplinas desenvolvidas a distância na PUC/São Paulo no Programa de Pós-graduação emEducação: Currículo, sob a orientação da profa. Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida (Almeida et al., 2004; Cerqueira, 2005).

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pedagógicos, mas o foco foi organizacional. O últi-mo módulo de três desses cursos (os dois Cursospara leigos e o Curso misto) foi agendado para umadata em que poderia ocorrer um dos jogos do Brasilnas quartas de final da Copa do Mundo de Futebolde 2006. A antecedência com que o agendamentofoi feito não permitiu a confirmação desse dado, por-tanto, qualquer decisão seria tomada em questãode dias. Ora, visto que a grande maioria dos partici-pantes preferiria acompanhar o jogo (à tarde) e reve-lou que provavelmente faltaria aos cursos, foi neces-sário propor uma alternativa que ao mesmo temposuprisse a carga horária e cujo conteúdo fosse perti-nente aos cursos. A negociação foi feita em doisestágios: em um primeiro, optou-se por condensar acarga horária do curso diminuindo os intervalos emantendo a organização inicial. Não tendo sido aceitaessa proposta, foi necessário criar uma nova alter-nativa que contemplasse o desejo da maioria paraque o curso pudesse ser efetivado a contento. A al-ternativa final manteve o horário da manhã edisponibilizou a participação em uma palestra noCurso para professores com formação musical, na

semana seguinte. Essa transferência/reposição decarga horária precisou de autorização tanto da dire-ção da Osesp quanto da Secretaria de Educação, eassim demonstrou disposição em atender aos inte-resses dos participantes. Como resultado do atendi-mento a essa dimensão “afetiva” (Tardif; Lessard,2005, p. 46) –, verificamos que 52% dos alunos ins-critos nos cursos compareceu no dia do jogo e, des-tes, 65% compareceram também na reposição.Muitos lamentaram e justificaram sua ausência nareposição devido a compromissos anteriormenteassumidos ou emergências pessoais, e se compro-meteram a participar do fórum Avaliação que tratariado mesmo tema.

Além dessas negociações que envolvem adimensão afetiva e social, é necessário que os alu-nos compreendam seu processo de trabalho em EaD,e que os professores os motivem e acompanhemconscientes do estágio desse processo em que seencontram (vide Salmon, 2000). Essa compreensãopode ajudar alunos, formadores e equipe de apoio aotimizarem as interações on line, levando as

Tabela 3: Mensagem com orientações organizacionais e técnicas – Curso II para leigos

Tabela 4: Mensagem com orientações organizacionais e pedagógicas – Curso misto

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interações que inicialmente versam sobre aspectostécnicos ao campo das interações pedagógicas. Asdificuldades técnicas diminuem após a familiarizaçãoinicial, dando lugar ao diálogo sobre aspectos peda-gógico-musicais – como podemos ver nas mensa-gens postadas pelas formadoras de dois cursos –Curso II para leigos e Curso misto:

Um breve olhar sobre a movimentação dosalunos no ambiente do Curso misto demonstrou 101acessos antes mensagem postada (do início do cur-so em 11/05 à postagem da mensagem acima em21/05/2006), e 573 nos meses seguintes até 13/08/2006, com um aumento gradual dos acessos e dasinterações. Ou seja, além de orientar sobre proce-dimentos, as mensagens também devem motivaros alunos e demonstrar o acompanhamento (es-tar junto virtual e mediação pedagógica) dos do-centes, mostrando o convencimento dos alunosquanto ao benefício da ação docente (Tardif;Lessard, 2005, p. 34-35).

Tabela 5: Exemplo de co-mediação no fórum Avaliação do Curso I para leigos em música

A co-mediação dos alunos na EaD

Outro aspecto importante é a atuação do alu-no como co-mediador do processo de ensino e apren-dizagem em EaD. Também essa atuação possibilitaa sua compreensão do papel do professor, pois oaluno se coloca no papel de formador do curso e setorna responsável pelo seu próprio processo de apren-dizado e o dos colegas. Para Cerqueira (2005, f. 112-113), os alunos “precisam garantir este espaço damediação articulada em co-mediação e inter-media-ção como mais uma conquista dentro dos ambientesde ensino-aprendizagem digitais ou presenciais, efeti-vando, conseqüentemente, espaços de colaboração”.

Nas comunidades virtuais de aprendizagem, abandona-se o modelo de transmissão de informação tendo afigura do professor como o centro do processo e abre-se espaço para a construção social do conhecimentoatravés de práticas colaborativas. Assim, as dúvidasdos alunos são respondidas pelos colegas e deixamde ser responsabilidade [exclusiva] do professor.(Cerqueira, 2005, f. 44).

Acrescentei a palavra “exclusiva” porque o pro-fessor ou mesmo algum outro membro da equipeprecisa estar presente em situações-chave que lhepermitam acompanhar o processo de construção doconhecimento dos participantes do curso. Novamentevemos aqui a importância do aumento gradual daautonomia dos alunos e do estímulo à cooperação.

Como exemplo, apresento na Tabela 5 um tre-cho de um diálogo em um dos fóruns, que represen-ta a co-mediação de uma aluna. Em sua mensa-gem, a aluna lembra a colega do objetivo inicial dofórum, e a estimula a refletir sobre o aspecto emquestão.

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Tabela 6: Exemplo de relato sobre as interações entre os participantes e os colegas em suas escolas(Curso I para leigos em música)

Finalizando: algumas perspectivas

Tardif e Lessard (2005) apontam como de gran-de importância o caráter da relação entre os alunose formadores – individual ou coletiva, privada ou pú-blica. Os mesmos consideram que normalmente ocaráter é de “coletividade pública”, o que levanta as-pectos como igualdade e controle (Tardif; Lessard,2005, p. 35). Estes podem ser relacionados ao queos autores chamam de “regularidades sociais” e nasações – para eles, “a escola existe, sobretudo, por-que milhares de professores e milhões de alunosfazem a cada dia grosso modo a mesma coisa, nasmesmas situações, com os mesmos recursos e emfunção dos mesmos fins” (Tardif; Lessard, 2005, p.46) que seriam o ensinar e o aprender. A partir des-sas regularidades é que podem ocorrer os desvios eas adaptações (Tardif; Lessard, 2005, p. 47) dospadrões estabelecidos. Desse modo, não há comonegar que é necessário haver um certo cronograma,um controle, uma rotina com objetivos e tarefas cla-ros a serem cumpridos, a partir das quais podemser feitas adaptações para atender aos “coletivosindividuais”.

Esses aspectos foram encontrados nos cur-sos aqui apresentados, e envolvem critérios comunse claros para a sua realização e avaliação e das suasatividades na “macroestrutura” (todos os cursos) ena “microestrutura” (diferenças de cada curso). Essaanálise permite verificar, de um lado, aspectos ine-

rentes a cada curso – por exemplo, público-alvo,docentes e a evolução/movimentação dos participan-tes; e, por outro lado, aspectos mais gerais entre oscursos – eventualmente por meio de análises com-parativas da proposta geral. A partir dessas análi-ses, os cursos subseqüentes podem ser aperfeiço-ados e adaptados.

Por fim, lembramos também das questõessociais envolvidas, enquanto influência dos cursosnas escolas dos docentes. Tardif e Lessard (2005,p. 53) asseguram que o trabalho docente não é ape-nas uma “experiência pessoal”, mas também é so-cial – “situações e significações pelas quais a expe-riência de cada um é, também, de certa maneira, aexperiência de todos”, marcada pela “heterogenei-dade dos princípios culturais e sociais”. Conformeos autores “as escolas não são um lugar neutro detrabalho […], mas um dispositivo social de trabalhocujas características físicas, estruturais e simbóli-cas têm um peso claro sobre os trabalhadores”(Tardif; Lessard, 2005, p. 48). Por isso, o professor émais “um ator social” cujas “relações humanas coti-dianas com seus alunos e seus colegas de traba-lho” e “negociações diárias com outros agentes edu-cativos” são mais significativas do que a imagem delecomo “um agente da organização” Tardif; Lessard,2005, p. 45). No depoimento adiante, observamos oquanto as relações e negociações são importantespara o sucesso das atividades do professor partici-pante do curso, onde a interação do professor com

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seus colegas no curso e nas escolas foi crucial paraque a escola se envolvesse como um todo e os alu-nos pudessem ter o máximo de aproveitamento doPrograma Descubra a Orquestra:

Interações como as apresentadas neste arti-go confirmam o quanto o ser humano é central aodesenvolvimento do trabalho docente, na medida emque não se esgotam na relação professor e aluno,

mas envolvem os demais atores sociais da institui-ção escolar. Portanto, a partir dos dados apresenta-dos, podemos inferir que os conceitos de interaçãosocial de Tardif e Lessard (2005), de mediação e co-mediação em EaD – ou o estar junto virtual de Pradoe Valente (2002) são coerentes e complementares,e realmente se traduziram em práticas efetivas noscursos investigados.

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Recebido em 15/02/2007

Aprovado em 04/05/2007