Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre

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Revista da PGM - nº 21 – Porto Alegre – Dezembro de 2007 1 Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre Nº 21 Porto Alegre Dezembro de 2007

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Revista daProcuradoria-Geral

do Municípiode Porto Alegre

Nº 21 – Porto Alegre – Dezembro de 2007

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Centro de Estudos de Direito MunicipalMaren Guimarães Taborda – Coordenadora

Letícia Mentz Cabeda

Comissão EditorialAlexandra Giacomet Pezzi

Cristiane Catarina Fagundes de OliveiraCristiane da Costa Nery

Carmen Lúcia Barros PetersenLaura Antunes de MattosMaren Guimarães TabordaVanêsca Buzelato Prestes

ColaboradoresAgueda Reny Pahim

Catarina GomesLea Marilda Dornelles Viero

Maria Teresa ZattiOscar Arseno Flores Machado

Ronaldo Osmar BelliniRafael Puntel de Castro

Conselho Editorial da RevistaAlmiro do Couto e Silva

Araken de AssisCelso Antonio Bandeira de Mello

Cézar Saldanha Souza JúniorCristiane Catarina Fagundes de Oliveira

Eros Roberto GrauJoaquín-Garcia Huidobro

Judith Hofmeister Martins CostaManoel Gonçalves Ferreira Filho

Maren Guimarães TabordaMercedes Maria de Moraes Rodrigues

Vasco Manuel Pereira da Silva

P454 Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre / Prefeitura Municipal de Porto Alegre. - Porto Alegre: CEDIM, n. 20, nov. 2006, 293 p. 1. Direito : Rio Grande do Sul : Periódicos 2. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Procuradoria-Geral do Município. Centro de Estudos de Direito Municipal CDD 340.581651

Catalogação na publicação: Carmem Lucia Menezes Thober CRB 10/630Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães

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PrefeitoJosé Fogaça

Vice-PrefeitoEliseu Santos

Procuradora-GeralMercedes Maria De Moraes Rodrigues

Procurador-Geral Adjunto de Pessoal, Contratos e Serviços Públicos

João Batista Linck Figueira

Procurador-Geral Adjunto de Domínio Público, Urbanismo e Meio-Ambiente

José Luiz Alimena

Procurador-Geral Adjunto de Assuntos FiscaisCésar Sulzbach

Chefe de GabineteCatarina Gomes

Chefe de Gabinete AdjuntoCauê Vieira

Coordenador Administrativo-FinanceiroOscar Arseno Flores Machado

¬Assessoria Especial de Assuntos Legislativos E InstitucionaisClarissa Cortes Fernandes Bohrer

Laerte Marta de OliveiraLuis Maximiliano Leal Telesca Mota

Tami Teixeira AsoProcuradoria de Licitações e Contratos

Carmem Lúcia de Barros PetersenCarin Simone Prediger

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Fernanda BiachiHélio Corbellini Filho

Jorge Augusto Garcia Pacheco José Adão Figueiredo dos SantosNelson Nemo Franchini Marisco

Procuradoria de Pessoal CeletistaRogério Scotti do CantoJacqueline Brum BohrerJane Machado da Silva

José Francisco Teixeira PintoMaria Etelvina Bergamaschi Guimaraens

Procuradoria de Pessoal EstatutárioAlexandre Molenda

Carmem Regina Vilar DugacsekCláudio Hiran Alves Duarte

Edmilson TodeschiniHeron Nunes Estrella

Márcia Leipnitz Rauber

Procuradoria de Serviços PúblicosCláudia Padaratz

Bethânia Regina Pederneiras FlachCristiane da Costa Nery

Márcia Lima

Procuradoria de Assistência Jurídica Municipal

Edgar Garczynski FilhoCarlos Roberto da Costa Aquines

Eduardo Silva de OliveiraMárcia Moura Lameira

Napoleão Corrêa de Barros NetoPaulo de Tarso Vernet Not

Assessora ComunitáriaCarmem Lúcia da Rosa Santos

Procuradoria de Patrimônio e Do-mínio Público

Mauro de Almeida CanabarroAndré Santos Chaves

Caren VasataJacqueline Maria do Couto e Silva

Procuradoria de Urbanismo, Meio-Ambiente e Regularização Fundiária

Giovani CarminattiAna Luísa Soares de Carvalho

Andréa Teichmann VizottoCândida Silveira SaibertEleonora Braz Serralta

Laura Antunes de MattosVanêsca Buzelato Prestes

Gerência de Regularização e Lotea-mentos

Simone Santos MorettoSimone Somensi

Gerência de Aquisições EspeciaisCláudia de Aguiar Barcellos

Ariza Trindade Tavares

Procuradoria da Dívida AtivaAndréa Maria da Silva Corrêa

André KaminskiArmando José da Costa Domingues

Cibele Aline VolkmannCristiane Catarina Fagundes De Oliveira

Luiz Antônio dos Reis VizeuMarcelo Dias Ferreira

Ricardo Felipe Campos de Mello

Procuradoria TributáriaGiovani Kerber Jardim

Alexandra PezziCristiano Silvestrin de Souza

Eduardo Gomes TedescoFernando Vicenzi

Rogério Quijano Gomes FerreiraGerência De Arrecadação Fiscal

Gamaliel Valdovino BorgesComissão Permanente de Inquérito

Leila Maria Reschke

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Sumário

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS – CONGRESSO DE DIREITO MUNICIPAL: A FE-DERAÇÃO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM DEBATE

AS ESPÉCIES DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚ-BLICA E O CONTROLE SOCIALCristiane Catarina Fagundes de Oliveira

A JUSTIÇA FISCAL E A EXAÇÃO SOBRE OS SERVIÇOS NOTARIAIS E REGISTRAIS Maren Guimarães Taborda

A CIDADE E O MEIO AMBIENTEMarga Inge Barth Tessler

O SIMPLES NACIONAL E OS REFLEXOS NA ESFERA MUNICIPALMauro Hidalgo

O MUNICÍPIO NA ATUALIDADE BRASILEIRAPaulo Pasqualini

AS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE SEGURANÇA NO RIO GRANDE DO SUL Rodrigo Ghiringhelli De Azevedo e Eduardo Pazinato Da Cunha

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ARTIGOS E ESTUDOS

LOTEAMENTO CLANDESTINO VILA VIÇOSA - PORTO ALEGRE: DESAFIOS ENFRENTADOS NA REGULARIZA-ÇÃO URBANÍSTICA E JURÍDICAAndrea Oberrather, Luciano Saldanha Varela, Simone Santos Moretto, Simone Somensi e Vanêsca Buzelato Prestes

A DENÚNCIA ESPONTÂNEA COMO FORMA DE EX-CLUSÃO DA RESPONSABILIDADE POR INFRAÇÕESCândida Castro

TITULARIDADE DO MUNICÍPIO PARA AÇÃO CIVIL PÚ-BLICA: POSSIBILIDADES DE CONCRETIZAÇÃO DA TU-TELA INIBITÓRIA DO DANO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃOPERMANENTE(APP)Cândida Silveira Saibert

DELIMITAÇÃO DO CONCEITO DE MORADIA: O ATEN-DIMENTO AOS DESÍGNIOS DO “MÍNIMO EXISTEN-CIAL” E A QUESTÃO DOS CUSTOS DE PRODUÇÃO HA-BITACIONAL EM PORTO ALEGREClarissa Cortes Fernandes Bohrer e Luiz Homero Cabistani

DIREITOS FUNDAMENTAIS NA LEGISLAÇÃO DO MU-NICÍPIO DE PORTO ALEGREGuilherme Dieckmann

LA RECONSTITUCIÓN DEL ESTADOJoaquin Garcia-Huidobro

O PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA NA CONSTI-TUIÇÃO FEDERAL Léa Marilda Dornelles Viero e Anelise Coelho Nunes

PASSEANDO PELA EUROPA DO DIREITO ADMINIS-TRATIVOVasco Pereira da Silva

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PARECERES

RECONHECIMENTO ADMINISTRATIVO DE PRESCRI-ÇÃO EX OFFICIO (PARECER COLETIVO)Rel: Maren Guimarães Taborda

CONSELHO MUNICIPAL DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURALCristiane Catarina Fagundes De Oliveira

SISTEMA FUNERÁRIO MUNICIPALCristiane da Costa Nery

ABONO PERMANÊNCIAHeron Estrella

ALTERAÇÃO DO VALOR DO CONTRATO ADMINISTRA-TIVO João Batista Linck Figueira

OBRAS DE SANEAMENTO NA VILA ASA BRANCA Vanêsca Buzelato Prestes

MUNICÍPIO EM JUÍZO

IMPROCEDÊNCIA DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MO-RAISBethania Regina Pederneiras Flach

INTERNAÇÃO EM FAZENDAS TERAPÊUTICAS PARA TRATAMENTO DE DEPENDENTES QUÍMICOSCristiane da Costa Nery

CONTRIBUIÇÃO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA (CIP) – CONSTITUCIONALIDADE DA EC 39/02 E DA LEI MUNI-CIPAL 9.903/05Eduardo Gomes Tedesco e Cristiano Silvestrin de Souza

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DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. OBRAS DE INFRA-ES-TRUTURA REALIZADAS PELO MUNICÍPIOJacqueline Maria de Oliveira do Couto e Silva

PROIBIÇÃO DE VENDA OU PROMESSA DE VENDA DE PARCELA DE LOTEAMENTO CLANDESTINOSimone Somensi e Simone Moretto

REGULARIZAÇÃO DE LOTEAMENTO CLANDESTINO CAUSADOR DE DANO AMBIENTALSimone Somensi

ENUNCIADOS APROVADOS NO IV CONGRESSO DE PRO-CURADORES DAS CAPITAIS BRASILEIRAS

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APRESENTAÇÃO

A presente edição da Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre conta com uma seção especial de palestras apresentadas no Congresso de Direito Municipal realizado em Porto Alegre1, em junho de 2007, além das tradicionais seções de Artigos, Pareceres e Município em Juízo. O tema do referido congresso foi “A Federação e as Políticas Pú-blicas em debate” e o locus de observação privilegiado (como não poderia deixar de ser), o município. Atendendo ao pedido do Centro de Estudos (CEDIM), alguns palestrantes apresentaram a versão escrita de seus trabalhos, que ora são divulgados. Assim, a profa. Dra. Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira, traz à discussão o problema do controle social da Administração Pública; já a Des. Marga Inge Barth Tessler faz um reflexão sobre a cidade – a polis - e o meio ambiente. A prof. Dra. Maren Guimarães Taborda discute o conceito de Justiça Fiscal em uma apreciação de caso (exação dos serviços notariais e registrais). Por sua vez, o Agente Fiscal da Receita Municipal de Porto Alegre, Esp. Mauro Hidalgo traz à lume uma importante contribuição: inventaria os reflexos na esfera municipal da adoção do “Simples Nacional”. O Prof. Paulo Pasqualini brinda o leitor com uma erudita, completa e pro-funda reflexão sobre o município na atualidade brasileira (como sói aconte-cer), e por último, o resultado de uma pesquisa inusitada, para não dizer atu-alíssima, do prof. Dr. Rodrigo Azevedo qual seja, sobre as políticas públicas municipais de segurança no Estado do Rio Grande do Sul. É a contribuição dos sociológos para a construção do Direito Municipal. A tradicional seção “Artigos e Estudos”, conta, nesta edição, com expressiva produção científica “da casa”, tais como o primeiro artigo, de autoria coletiva (procuradoras Simone Somensi e Vanesca Prestes; assesso-ra jurídica Simone Santos Moretto; arquiteta da SPM, Andrea Oberrather, e engenheiro civil do Município, Luciano Varela), que versa sobre o tema da Regularização Fundiária e que foi premiado com o Prêmio Oswaldo Aranha Bandeira de Mello no concurso de monografias realizado durante o XXXII Encontro Nacional de Procuradores Municipais, em Vitória-ES. Além desse, as procuradoras Cândida Saibert e Clarissa Cortes Fernandes Bohrer, apresentam qualificadas reflexões sobre as possibilidades de concre-tização da tutela inibitória do dano em área de preservação permanente e

1 Realização da Fundação Escola Superior de Direito Municipal e PGM.

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sobre a delimitação do conceito de moradia, respectivamente. Registre-se que o último foi produzido em parceria com o engenheiro do DEMHAB, Luiz Homero Cabistani. Considerando que a busca da excelência é uma tradição na PGM, as assistentes administrativas (também “prata da casa”) Cândida Castro e Léa Marilda Dornelles Viero, apresentam suas excelentes monografias de conclusão de curso: uma versando sobre a denúcia espon-tânea como forma de exclusão da responsabilidade por infrações e outra sobre o princípio da isonomia tributária. Finalmente, contribuições externas (sempre bem vindas) são o artigo de Guilherme Dieckmann, que versa sobre os direitos fundamentais na legislação do município de Porto Alegre e a co-autoria ao trabalho de Léa Marilda, feita por sua orientadora, Profa. Ms. Anelise Coelho Nunes. Os pareceres foram selecionados seguindo-se o critério das edições anteriores, tendo sido escolhidos aqueles cujos temas apresentam grande importância prática e/ou fazem discussão teórica consistente. O Parecer-Coletivo discute a possibilidade de reconhecimento administrativo de pres-crição ex-officio ; os demais, pela ordem, tratam do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural, do sistema funerário municipal , do abono permanência, da alteração do valor dos contratos administrativos e do saneamento da Vila Asa Branca. Na seção Município em Juízo estão apresentados casos paradigmá-ticos debatidos nos tribunais pela PGM, durante o ano de 2007. Dois casos exemplares da Procuradoria de Serviços Públicos (improcedência de inde-nização por danos morais e outro internação em fazendas terapêutica) e da Gerência de Regularização Fundiária (proibição de alienação de loteamento clandestino e de regularização de loteamento clandestino causador de dano ambiental),um da Procuradoria Tributária (constitucionalidade da Taxa de Iluminação Pública) e outro da Procuradoria de Patrimônio e Domínio Público ( desapropriação indireta) . A edição inova com a publicação dos Enunciados Aprovados no IV Congresso de Procuradores das Capitais Brasileiras , principalmente em razão da atuação destacada dos procuradores de Porto Alegre no debate na-cional sobre o direito municipal. Finalmente, foram incluídos no Conselho Editorial dois juristas in-ternacionalmente renomados (o Prof. Dr. Vasco Manoel Pereira da Silva, da Universidade de Lisboa e o Prof. Dr. Joaquin Huidobro, da Universidad de Los Andes, Chile,) que, neste ano, ajudaram a PGM a fazer uma discussão qualificada sobre “A feição atual do Direito Administrativo” e a “Reconsti-

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tuição do Estado”. Além da Procuradora-Geral, Dra. Mercedes Maria de Moraes Ro-drigues, do Conselho Editorial também participam procuradores portado-res do título acadêmico de “Doutor”, em atenção ao esforço que a Casa vem fazendo na busca da excelência acadêmica e na consolidação de uma tradição de pesquisa em direito municipal. Esta pesquisa – da qual resultam muitos dos textos ora publicados – ao par de ser bastante ampla e heterogênea, já é uma referência nacional na discussão de temas ligados ao município, principalmente nas áreas do direito ambiental, direito urbanístico e do direito tributário. Aberta por definição, a pesquisa em construção no Municipio de Porto Alegre volta-se para o futuro, sem esquecer as valiosas lições do passado, pois, como afirmou Hannah Arendt, “ (...) sem testamen-to, ou resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e, portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem”.2

Mercedes Maria de Moraes RodriguesProcuradora-Geral

Maren Guimarães TabordaCoordenadora do CEDIM

2 In: Entre o Passado e o Futuro

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ARTIGOS DO CONGRESSO DEDIREITO MUNICIPAL : A FEDERAÇÃO

E AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM DEBATE

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* Procuradora do Município de Porto Alegre. Doutora em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito do Estado pela UFRGS. Professora de Direito da Graduação e do Programa de Pós Graduação da PUCRS.

AS ESPÉCIES DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

E O CONTROLE SOCIAL

Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira*

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Resumo A pesquisa trata da classificação das formas de controle da Adminis-tração Pública. É proposta a classificação de uma forma de controle – controle social - baseada nos princípios da Constituição de 1988. De outra parte, também se justifica a necessidade de atualizar a interpretação das formas tradicionais de controle da Administração.

Abstract This paper is about the classification of Public Administration forms of control. The author proposes to classify a new form of control - a social control - based on the principals of the Brazilian constitution, as well as actualize the interpretation of the traditional forms of control.

Sumário Introdução - I Noção e fundamento do controle da Administração Pú-blica - I.I Noção de controle I.II - Finalidade do controle administrativo - II Os pressupostos constitucionais para o controle da Administração Pública II.I - Estado Democrático de Direito II.II - Federalismo assimétrico e Princípio de Subsidiariedade III - A Classificação das espécies de controle da Administração Pública e uma proposta de alternativa III.I - A classificação III.II - A inclusão do controle social (misto) como alternativa – Conclusão

INTRODUÇÃO

Trata a pesquisa das espécies de controle da Administração Pública em uma classificação que possa ser compatibilizada e adequada aos princípios da Constituição de 1988. Assim, a partir da definição de controle e da análise da finalidade do controle da administração pública, busca-se ultrapassar os limites da classificação tradicional entre os controles interno e externo, com vistas à maior eficiência da Administração Pública no desempenho de suas competências cons-titucionais.

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I - NOÇÃO E FUNDAMENTO DO CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

I.I -NOÇÃO DE CONTROLE

De início cabe definir a idéia de controlar como o ato de compa-rar o resultado das ações com padrões anteriormente estabelecidos, com a finalidade de corrigi-las, se necessário4. No mesmo sentido, a definição em dicionário consta como: a) o ato ou poder de controlar; domínio, governo; b) fiscalização exercida sobre as atividades de pessoas, órgãos, departamentos, ou sobre produtos, etc., para que tais atividades ou produtos, não se desviem das normas preestabelecidas5. Tradicionalmente a doutrina administrativista trata o controle da administração pública como a faculdade de vigência, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro6. Assim, em matéria de Administração Pública, o controle é uma veri-ficação de conformidade entre os objetivos (e sua determinação) e as ações realizadas pela Administração, pois a função administrativa trata de medir e avaliar o seu desempenho para assegurar que os objetivos sejam atingidos7. O controle da administração pública pressupõe estruturas e organi-zação próprias, com competência e possibilidade fática de realizar as verifi-cações necessárias entre os objetivos fixados pela Administração Pública e as ações administrativas implementadas para tal, no sentido de sua legalidade, legitimidade8 e eficiência9. De outra parte, o controle pode ser definido como social, no senti-do do conjunto dos mecanismos materiais e simbólicos pelo qual uma so-ciedade mantêm o equilíbrio de suas estruturas e de sua organização visando eliminar ou reduzir as formas de comportamentos desviantes individuais e coletivos10. Nesse sentido, é possível a existência de uma espécie de controle social sobre os atos emanados do Estado, enquanto considerados atos de ex-pressão coletiva.

4 Conforme OLIVEIRA, Djalma.P.R. Sistemas, organização e métodos: uma abordagem gerencial. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.427. ISBN 85-224-4185-5 ,obtido no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Controle_%28administra%C3%A7%C3%A3o%29, acessado em 09out2007.5 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.469.6 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p.663.7 CHIAVENATO, Inalberto. Iniciação à Administração Geral. São Paulo: Makron Books, 2000, p.54.8 O controle de legalidade e de legitimidade são considerados os dois referenciais que se impõe ao Estado segundo MOREI-RA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.558.9 A eficiência é citada na obra de MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p.668-669.10 Conforme disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Controlo_social, acessado em 10.out.2007.

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I.II - FINALIDADE DO CONTROLE ADMINISTRATIVO

A finalidade do controle é, a partir de ordens pré-estabelecidas, identificar os possíveis erros ou desvios, a fim de corrigi-los e evitar a sua repetição11. Por isso é que se diz que o controle administrativo, ao examinar os atos já praticados pela Administração, tem efeito nitidamente fiscalizador e reparador12. O controle administrativo visa verificar a legalidade, legitimidade e eficiência na realização das atividades públicas de modo a atingir sua finali-dade plena, que é a satisfação das necessidades coletivas e atendimento dos direitos individuais dos administrados13. No sentido da eficiência, o controle administrativo tem por finali-dade estimular a ação dos órgãos, verificar a proporção custo-benefício na realização das atividades e verificar a eficácia das medidas na solução dos problemas14. Pode-se afirmar ainda que o próprio Estado de Direito deve ser eficiente, isto é, cumprir sua finalidade de modo responsável, controlado e confiável15. Todavia, a finalidade do controle, no sentido de verificação da con-formidade entre os objetivos da Administração Pública e suas ações, tem sido vista preponderantemente nesse aspecto de orientação e de correção dos atos administrativos. E verificar a conformidade dos atos administrativos em relação à sua legalidade, legitimidade e eficiência, para finalidade precípua de orientar ações futuras e punir ações indevidas, não esgota as finalidades do controle administrativo. Isso porque a Administração Pública deve ser controlada com a fi-nalidade também de exercício democrático, na idéia de participação da co-munidade nas atividades públicas não apenas na condição de destinatários das ações, mas comprometidos especialmente com a avaliação de sua legiti-midade e eficência16. Assim, controlar no sentido de buscar o aperfeiçoamento da Admi-nistração Pública, significa não apenas punir, orientar ou evitar novos com-portamentos desviantes, mas contribuir com o aperfeiçoamento democráti-co do Estado de Direito. É finalidade, não apenas do controle administrativo, mas de todas as ações estatais, o exercício de práticas democráticas.

11 CHIAVENATO, Inalberto. Iniciação à Administração Geral. São Paulo: Makron Books, 2000, p.54.12 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 323.13 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p.668-669.14 ZYMER, Benjamin. Direito Administrativo e Controle. Belo Horizonte: Fórum, 2006, que também denomina o controle como controle intra-orgânico ou controle intra-administrativo . 15 KARPEN, Ulrich. Democracia e Estado de Direito. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1993.16 Conforme MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.564, no controle de legalidade, cabe apenas ao administrado “provocar o controle”.

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II -OS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS PARA O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

II.I -ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A par da caracterização do Estado Democrático de Direito pelos princípios da legalidade, da igualdade e da justicialidade17, como configu-radores do Estado brasileiro, o princípio democrático é de ser explicitado como destaque, especialmente em sua aplicação às atividades da Administra-ção Pública. Diante de um consenso atual em torno do juízo de que todos Es-tados devem ser democráticos, a democracia se torna o ideal de um regime em constante aperfeiçoamento18. Por isso, Manuel Aragon afirma que a de-mocracia é categoria jurídica que deve ser considerada como princípio19. De fato, é assente que a constituição deve responder ao problema da dominação, isto é, da relação entre liberdade e poder estatal, fazendo um balanço entre poder de decisão e reivindicações das partes20. O regime de governo adotado – democrático - está relacionado à forma como será res-pondido este problema da dominação. Desde que a prática da democracia poderá fomentar o controle da administração pública, cabe preliminarmente analisar e distinguir entre democracia direta e democracia representativa - duas formas clássicas na classificação da democracia. Além disso, é necessário estabelecer o limite de interpretação da chamada democracia participativa. Inicialmente, na democracia direta, não há mandatários e a partici-pação da comunidade é direta nas decisões políticas, como nos exemplos da iniciativa popular em projetos de lei, referendo popular, plebiscito, veto popular e instituto do ombudsman. Em sua origem, é identificada com a democracia na Grécia Antiga, onde, em Atenas, o povo se governava diretamente21, a partir do conceito de liberdade como possibilidade de integrar a polis22, isto é, como participação no exercício do poder23.

17 Conforme FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo, Saraiva, 1999. p.01-64.18 Nesse sentido ver RAMOS, Dircêo Torrecillas. Autoritarismo e democracia: o exemplo constitucional espanhol. São Paulo: WVC Editora, 1998, p. 49; RIBEIRO, Renato Janine. “A política e o bem comum. Por uma sociedade politicamente democrática”. In: NEUTZLING, Inácio (org.). Bem comum e solidariedade: por uma ética na economia e na política do Brasil. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003, p.3919 Conforme de ARAGON, Manuel. Constitución y Democracia. Madrid: Tecnos, 1990, p. 15.20 KARPEN, Ulrich. Democracia e Estado de Direito. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1993.21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 4.22 Advirta-se que a democracia direta na Grécia Antiga, conforme se descreve, não é assim denominada pelos autores da época, para quem a democracia seria forma corrupta de governo (como sinônimo de demagogia,no sentido atual) ou go-verno da multidão. Conforme BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 1. 12 ed. Brasília: UNB, 2004, p. 320.

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Esse sentido de democracia direta já era considerado como impossí-vel para Rousseau24, tendo em vista o absurdo de deliberações diretas sobre todos os assuntos necessários, com todos reunidos. Por óbvio, a democracia direta hoje é inviável na prática25. Desde logo, refira-se que é comum que seja referida uma disputa entre democracia direta e democracia representativa, sendo que no primeiro caso teríamos a democracia autêntica e no segundo, uma democracia de-feituosa. Todavia, tal argumento é extremamente simplista, pois, na verdade, ambas têm as virtudes da teoria e os defeitos da prática26. Ademais, não são modelos isolados em que cada Estado poderia escolher uma ou outra. Não há, portanto, uma real disputa entre ambas, conforme se verá. A democracia representativa27 está fundada no princípio de repre-sentação, que está ligado à separação de poderes e à organização constitucio-nal estabelecida com base nas revoluções liberais28. A participação política da comunidade, portanto, decorre da escolha dos representantes. A principal distinção29, entre democracia direta e representativa re-side na forma de participação da comunidade para a formação da lei: no primeiro caso, reúnem-se em assembléia, e, no segundo, escolhem represen-tantes que poderão elaborar a lei. Na origem da democracia representativa, Montesquieu, no Espírito das Leis, com habilidade, ao invés de indicar a França como um modelo a ser seguido, descreveu de forma elogiosa a re-alidade inglesa, em que havia um Parlamento representativo com função legislativa30, enquanto que, na França, o que equivaleria ao Parlamento, era uma corte judiciária31. Do princípio da separação dos poderes resultou a su-premacia do Parlamento, acentuada por razões políticas, eis que dava lugar à expressão do povo, pela representação32. Por essa razão é que está no Espírito das Leis o cerne da democracia (representativa)moderna33. De fato, atualmente não há uma verdadeira disputa entre democra-cia representativa e democracia direta. A democracia adotada pela Constitui-

23 Conforme adverte SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada. Dinah de Abreu Azevedo (trad.). 2º vol. São Paulo: Ática, 1994, p. 51.24 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 12.25 CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Sistemas Eleitorais x representação política. São Paulo, 1987, p. 1526 Essa é a conclusão de ARAGON, Manuel. Constitución y Democracia. Madrid: Tecnos, 1990, p.105.27 Segundo FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 18-19, a expressão democracia representativa é relativamente recente. 28 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 4ª ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 63.29 Conforme BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 1. 12 ed. Brasília: UNB, 2004, p. 323 e 324. 30 Conforme FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 4ª ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 70.31 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 4ª ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 61-62.32 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 4ª ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 118.33 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 13.

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ção de 1988 é a democracia representativa34, com ampla participação política expressa por eleições diretas, com voto universal. Contudo a constituição vi-gente prevê instrumentos de participação direta, o que não a caracteriza com a democracia direta, no sentido originário, que seria certamente inviável. De outro lado, pode-se referir a chamada democracia participativa, que consiste em uma forma de entender o regime democrático em que a participação política é vital, não apenas no voto35. A democracia participa-tiva seria uma forma diversa da tradicional democracia representativa. Essa forma de democracia é referenciada na necessidade de uma inter-relação com os instrumentos de democracia representativa, a fim de aprimorar as relações entre sociedade e Estado36. A dificuldade, porém, reside em deter-minar o conteúdo dessa relação com a democracia representativa a fim de dar autonomia conceitual à democracia participativa. Não há, portanto, uma definição clara sobre o que seja a democracia participativa, senão propostas de implementação de formas de participação como um aperfeiçoamento da democracia representativa37. Os defensores da democracia participativa revelam “insistência de que os interessados numa decisão sejam ouvidos pelos órgãos encarrega-dos de torná-la”38. Contudo, o fato da participação dos interessados, sendo ouvidos por aqueles que irão tomar a decisão final, não contraria nenhum princípio da democracia representativa. Destes modelos de democracia, vê-se que a realidade da participação política da comunidade insere-se no campo da democracia representativa no sentido de ser um mecanismo com a finalidade de acrescentar na repre-sentação, mesmo que não seja aplicável apenas no seio do poder legislativo. Pode também, igualmente, relacionar-se no campo da chamada democracia participativa, ainda que muitos autores não a considerem como uma forma diversa de democracia. Em uma descrição abreviada, pode-se dizer que com a democracia representativa ou qualquer que seja outra atribuição nominal do modelo de democracia adotado pela Constituição de 1988, a participação política é essencial para efetivá-la. Assim, essa noção de deliberação na democracia e

34 Também chamada democracia semi-direta em FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 33.35 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Elementos de Direito Municipal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 23.36 BORBA, Everton J. Helfer de; HERMANY, Ricardo; e TABARELLI, Liane. Cooperativismo solidário: uma nova concepção de cidadania como instrumento para políticas públicas de inclusão social. In: LEAL, Rogério Gesta; e REIS, Jorge Renato de (orgs.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. Tomo IV, p. 1147. 37 SARTORI, GIOVANNI. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994, p. 158. 38 Conforme análise de FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 33-34.

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de importância do debate público, por meio do exercício da razão prática39 fundamenta a concepção ideal de democracia. Na Administração Pública, desde que criados instrumentos para tal, a prática democrática dessa forma é possível, a partir do reconhecimento da liberdade de expressão, no sentido de que os membros da comunidade tenham possibilidade de trocar idéias a fim de formular suas opiniões, possam ter proximidade com os órgãos públicos, possam obter informações e ser ouvidos, e estabelecer entre comunidade e autoridades administrativas um canal para exprimir as preferências. Desta forma, a instituição de mecanismos de controle da adminis-tração pública, de um lado com finalidade de exercício da democracia e, de outro, fundada no princípio da democracia representativa com base da relevância das deliberações da comunidade, é adequada e necessária nos ter-mos do Estado Democrático de Direito determinado pela Constituição de 1988.

II.II -FEDERALISMO ASSIMÉTRICO E PRINCÍPIO DE SUBSIDIARIEDADE

O princípio federativo determina a autonomia das esferas federa-tivas, especialmente no que tange a cada uma das Administrações Públi-cas: municipal, federal e estadual. Em vista das competências administrativas determinadas pela Constituição de 1988 a cada uma delas, fica assegurada a possibilidade de auto-determinação na consecução destas competências, com os devidos limitadores constitucionais. De outra parte, a principal relação entre o federalismo adotado na Constituição de 1988 e a participação política que pode fundar o controle da Administração Pública é no sentido de que, no federalismo com três ní-veis, reconhecendo-se a autonomia dos municípios40, a comunidade local, no que tange à Administração Municipal, está mais próxima dos centros de decisões e de quem foi eleito por ela. E essa proximidade facilita o controle da Administração Pública e pode estimular o exercício do controle de forma reflexa nas outras esferas federativas. De outro lado, o federalismo brasileiro se caracteriza também pela assimetria, que no caso dos municípios é fruto da diversidade populacional, por exemplo. No Brasil há muitas diferenças em termos de distribuição de população, de território e de riqueza entre as entidades da federação. Para di-minuir as desigualdades, é preciso uma política de cooperação que o federa-

39 Conforme BARZOTTO, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. São Leopoldo: UNISINOS, 2003 p. 37 e 4440 RAMOS, Dircêo Torrecillas. O Federalismo Assimétrico. São Paulo: Plêiade, 1998, p. 45.

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lismo assimétrico pode contribuir desde que tenha como objetivo diminuir as desigualdades e não aumentar os fatores de desagregação41. O federalismo assimétrico significa a adoção de políticas desiguais entre entidades da federação (assimetria “de jure”) a fim de corrigir as de-sigualdades existentes em termos de população, território, e riqueza entre essas entidades (assimetria “de facto”). Da mesma forma que a distribuição de receitas deve estar de acordo com as tarefas de cada entidade da federa-ção, isto é, de acordo com suas necessidades para atingir seus fins, para evitar uma crise de sobrecarga42, também as formas de controle da administração devem estar adequadas a cada realidade de cada esfera federativa, o que funda o controle administrativo descentralizado e de base social. Em relação ao princípio da subsidiariedade43, a origem dessa noção de remonta a Aristóteles, Tomás de Aquino, Dante e outros pensadores ao longo da história, mas a origem como conceito ou princípio elaborado é bem mais recente. A expressão subsidiariedade pode ser esclarecida a partir da palavra subsidium44, que significa ajuda, no sentido de promover, coorde-nar e controlar. A idéia, portanto, da subsidiariedade, preexistiu à sua formu-lação como princípio. A idéia de subsidiariedade como um princípio surgiu recentemen-te, como princípio de organização social, para viabilizar o desenvolvimen-to da pessoa humana. Ainda pode não ser considerado, portanto, princípio estritamente jurídico, mas princípio social quando foi citado na Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II e expresso inicialmente na Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, em 1931 nos seguintes termos45:

“É injustiça, grave erro e inversão da ordem natural, cometer-se à comunidade maior e superior aquilo que pode ser feito e obtido pela comunidade menor e menos elevada.”

São dois os elementos conceituais presentes: a comunidade menor e a comunidade maior. Por exemplo, como princípio de organização social, as comunidades poderiam ser consideradas: a família e a comunidade escolar, respectivamente, para questões de educação dos filhos. Na aplicação do prin-cípio, fica evidente que tudo aquilo que puder ser ministrado pela família, o seja, e não pela escola, mas sempre a critério da própria família.

41 RAMOS, Dircêo Torrecillas. O Federalismo Assimétrico. São Paulo: Plêiade, 1998, p. 117.42 RAMOS, Dircêo Torrecillas. O Federalismo Assimétrico. São Paulo: Plêiade, 1998, p. 311-312.43 Conforme descreve QUADROS, Fausto de. O Princípio da subsidiariedade no direito comunitário após o tratado da União européia. Coimbra: Almedina, 1995, p. 12 e 13.44 No sentido relatado por TORRES, Silvia Faber. O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.7-17.45 Veja-se que desde 1959 já se propugnava aplicar esse princípio aos municípios como se vê dessa tradução e sua defesa apresentada por MACHADO PAUPÉRIO, A. O Município e seu Regime Jurídico no Brasil. 2. ed. atualizada. Rio: Forense, 1959, p. 14.

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Assim, na evolução do princípio, tratou-se de aplicá-lo na relação entre comunidades e a organização estatal. O princípio passou a ter uma conotação política. A relação, então, entre comunidade maior e menor po-deria ser exemplificada por meio das relações entre, de um lado, pessoas e associações na comunidade e, de outro, os órgãos estatais. E nesse sentido é possível afirmar que se a própria comunidade puder controlar os atos da Administração Pública, isso é sempre preferível aos controles estatais. É possível identificar um paradoxo46 na aplicação do princípio da subsidiariedade no sentido de que ao mesmo tempo em que se impõe limite à atuação do Estado, também o Estado deve auxiliar e ajudar a comunidade menor. Esse paradoxo reflete-se nas duas perspectivas do princípio47: uma negativa, em que a autoridade e o Estado não podem impedir pessoas de conduzirem suas ações e uma positiva, em que a autoridade e o Estado têm como missão: incitar, sustentar e suprir. Dessa forma, o sentido geral do princípio passou a ser formulado como: aquilo que a entidade menor puder fazer bem, ela deve fazer; se não puder fazê-lo, aí a entidade maior fará48. Por isso foi ampliada a aplicação para os planos social, econômico e político-jurídico. Tendo em vista tal formulação, a subsidiariedade exige um juízo em relação a esse “fazer”. A expressão deve ser relativamente flexível, pois deve-se examinar a questão de fato em cada caso, de acordo com as variáveis históricas relativas à possibilidade de consecução por cada esfera49. Veja-se que a possibilidade de fazer é juízo a ser realizado pela esfera a quem caberia o “fazer” e ela é que poderá não se julgar apta. Em outras palavras, a subsidiariedade50 significa que deve haver uma “limitação relativa ao exercício das macro comunidades, em favor das co-munidades intermediárias” ou menores, de acordo com a aptidão destas para realizar melhor as tarefas em virtude da proximidade com as necessidades. A proximidade da necessidade do “fazer” é que determina que o mais próximo fará o julgamento sobre a possibilidade deste “fazer”. Com a evolução do princípio da subsidiariedade, este relaciona-se com o federalismo, por tratar-se de organização de relações entre várias esfe-ras ou comunidades estatais. Assim, no caso brasileiro, em que há três esferas de federação, considera-se o município como comunidade menor em rela-ção ao Estado-membro e à União, e comunidade menor o Estado-membro

46 Conforme TORRES, Silvia Faber. O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 9-1047 Idem, p. 267. 48 Idem, p.7-1749 Idem, p. 12.50 MORAIS, Carlos Blanco de. O princípio da subsidiariedade na ordem constitucional portuguesa. In: BARROS, Sérgio Resende de; e ZILVETI, Fernando Aurelio (coords.). Direito Constitucional: estudos em homenagem a Manoela Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 32.

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em relação à União, que será sempre a comunidade maior.

Daí a formulação do princípio nos seguintes termos:

Tudo que a comunidade local puder realizar por si, deve lhe caber, exceto se for imprescindível a intervenção do município, cuja ação sempre será preferencial em relação à intervenção do Estado-membro e da União.

O princípio da subsidiariedade não está expresso literalmente na Constituição de 1988, o que não impede de ser considerado. Veja-se que a inexistência literal de princípio não pode afetar sua aplicação se for decor-rente do sistema jurídico adotado51. É nesse sentido que José Alfredo de Oli-veira Baracho52 refere que é princípio constitucional dirigido ao legislador, ao julgador e ao administrador ao analisar o seu conceito e a sua aplicação. De forma especial, portanto, dirige-se ao administrador, que na or-ganização e na institucionalização das políticas públicas da Administração, deve ter em conta a precedência das deliberações da comunidade, por exem-plo, e inclusive em matéria de controle administrativo. É papel do Estado subsidiar e fomentar os controles administrativos baseados na apreciação dos atos pela própria comunidade destinatária da ação administrativa.

III - A CLASSIFICAÇÃO DAS ESPÉCIES DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E UMA

PROPOSTA DE ALTERNATIVA

III.I -A CLASSIFICAÇÃO

A classificação mais comum das formas de controle da Administra-ção Pública, no sentido dos órgãos de controle é de órgãos de controle interno e de controle externo. Em relação ao controle interno (ou autocontrole), destacam-se como espécies: o controle Político Administrativo, o controle Jurídico-Adminis-trativo, o controle da Fidelidade Funcional e o controle Financeiro Jurídico-Contábil, exercidos pelos chefes dos Poderes ou órgãos53.

51 Sobre isso, utilizando o exemplo da eventual inexistência do princípio democrático expresso, refere ARAGON, Manuel. Constitución y Democracia. Madrid: Tecnos, 1990, p. 98.52 Conforme BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 200: 21-54, abr./jun. 1995, p.21 a 54.

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O controle interno significa que são os órgãos da Administração que revisam os próprios seus atos, com fundamento no poder hierárquico. Relevante aspecto nessa forma examinar seus próprios atos, é o exame de legalidade e de convivência administrativa54. É de se destacar que no âmbito do controle interno, não apenas é dever da Administração Pública, enquanto Poder de Estado, a realização e fomento do controle administrativo, mas também é dever do agente público, enquanto sujeito de direitos e obrigações perante o Estado. Assim, uma das principais obrigações do agente público é o dever de controle, não apenas sobre os materiais, bens e equipamentos postos a sua disposição para o exer-cício das atividades públicas, como da própria atividade administrativa55. Por essa razão é que a Administração Pública tem o poder de anular os seus próprios atos, quando ilegais, e revogá-los por questão de conve-niência administrativa, com fundamento no seu controle interno. Assim é reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal56. Veja-se que não apenas a Administração Pública, mas os três Poderes de Estado devem manter sistema de controle interno de forma integrada. E se os responsáveis pelo controle interno tomarem conhecimento de alguma irregularidade, deverão dar ciência ao Tribunal de Contas sob pena de res-ponsabilidade solidária57. Isso tem fundamento na integração orçamentária e torna necessária tal prática de controle orçamentário. Por fim, os mecanismos de controle interno da Administração tam-bém deverão levar em consideração os ditames do Estado Democrático de Direito, especialmente os princípios de democracia e de subsidiariedade. Não é possível manter-se os mesmos mecanismos de controle interno, sem as devidas atualizações advindas da Constituição de 1988. Uma das expres-sões da alteração da estrutura da Administração Pública pode ser verificada pelo implemento do papel regulatório do Estado, que demanda mais com-plexos instrumentos de controle. Assim, devem ser implementados mecanismos que estimulem a ho-rizontalização da Administração no plano interno, com participação mais

efetiva dos agentes públicos nas deliberações, opinando em sede de controle da atividade administrativa. Busca-

53. AGUIAR, Afonso Gomes. Direito Financeiro. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 137.54 MILESKI, Helio Saul. O Controle da Gestão Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 140-141 e BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1999, sendo referido inclusive controle em razão da supre-macia do interesse público, que não é objeto de exame segundo classificação anteriormente posta em razão do princípio democrático.55 MILESKI, Helio Saul. O Controle da Gestão Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 140-141 e BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1999, que também considera no âmbito controle interno os órgãos de corregedoria de determinados órgãos, com funções de correição sobre seus membros.56 MILESKI, Helio Saul. O Controle da Gestão Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 140-141 e BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1999.

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se implementar espaços de deliberação e evitar a hierarquização demasiada da Administração, com estímulo à criação de órgãos multidisciplinares que avaliem a ação administrativa em termos de objetivos finais. Destaca-se, as-sim, a importância da não-departamentalização absoluta da atividade admi-nistrativa. Ademais, importa referir o destaque, no plano interno, não apenas do controle de legalidade, mas do controle jurídico efetivo realizado por in-tegrantes da carreira da advocacia pública, que, com a Constituição de 1988, teve papel aprimorado no contexto do Estado Democrático de Direito. Em cada esfera federativa, portanto, de forma autônoma nos termos do art. 18 da Constituição de 1988, cabe ao órgão específico de advocacia pública, o controle jurídico da atividade administrativa. De outro lado, acerca do controle externo, pode-se definir como o con-trole de um Poder sobre o outro ou da administração direta sobre a indireta. Segundo Hely Lopes Meirelles, “controle externo é o que se realiza por órgão estranho à Administração responsável pelo ato controlado, por exem-plo, a apreciação das contas do Executivo e do Judiciário pelo Legislativo; a auditoria do Tribunal de Contas sobre a efetivação de determinada despesa do Executivo; a anulação de um ato do Executivo por decisão do Judiciário; a sustação de ato normativo de Executivo pelo Legislativo”58. De fato, des-tacam-se as competências de controle do Poder Legislativo59, do Tribunal de Contas60 e do Ministério Público e demais funções essenciais à Justiça. As alterações, principalmente quanto à efetividade das formas de controle externo, são oriundas das alterações constitucionais relativas à con-figuração das competências dos órgãos externos de controle. Também é de se mencionar a legislação que tem sido aperfeiçoada, como por exemplo, a Lei de responsabilidade Fiscal. III.II -A inclusão do controle social (misto) como alternativa

O controle da atuação estatal, em especial da Administração pública, que intervém de modo decisivo na vida da comunidade, deve ser realizado prioritariamente pela própria comunidade, em vista do princípio da subsi-diariedade. Dessa forma, a participação política não só é ditame democrático, mas é o mais relevante instrumento de controle estatal61.

57 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, em referência atualizada refere o art. 74, parágrafo 1º da Constituição de 1988.58 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 665.

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A participação política, em que pese seu sentido amplo, pode ser explicitada em relação a instrumentos coletivos como os conselhos muni-cipais. Os conselhos municipais, em suas várias áreas de atuação podem ser considerados importantes instrumentos de controle da atuação estatal. Conforme já dizia Oliveira Viana62, o voto não é a única forma de participação política na democracia e de expressão da opinião:

“Democracia é o governo da opinião. Ora, não é preciso gênio para reconhecermos que o voto é apenas uma forma porque a opinião do povo se revela e se impõe ao Poder; mas, não a forma única, e nem sempre a melhor forma, ou a forma mais eficiente. Há muitas outras modalidades de expressão da opinião popular, isto é, muitos outros meios pelos quais a opinião popular se mostra capaz de forçar o Poder a obedecê-la.”

Há áreas de participação na gestão pública, de acordo com etapas, que são de: planejamento, produção-execução administrativa e controle. Dentre os exemplos comuns de controle na gestão pública pela participação, pode-se citar as oficinas de queixas, de origem nos EUA, o caso de ombuds-man, e o caso do recall ou veto popular63. Nesse sentido, diante das várias demandas da sociedade para a atua-ção estatal, é importante destacar formas alternativas de controle social que tornem possível ao Estado e à Administração Pública o efetivo cumprimento de suas competências constitucionais. Na gestão pública, termo pelo qual se designa a estrutura político-burocrática do Estado de forma ampla, há um staff dirigente e executor das decisões públicas, que são os agentes públicos. Em regra, a participação das pessoas na gestão pública municipal, no sentido estrito acima descrito, con-centra-se na escolha do staff dirigente por eleições64, como no caso do chefe do Poder Executivo e representantes de Poder Legislativo, e, de outro lado, estes se encarregam da elaboração da legislação relativa à seleção dos demais

59 AGUIAR, Afonso Gomes. Direito Financeiro. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p.135-136, que também define como controle parlamentar, incluindo o Tribunal de Contas. Segundo o autor: O primeiro executa esse controle, quando discute e aprova a Lei Orçamentária Anual, que é o ato inaugural de execução da atividade financeira, e depois, quando julga a Prestação de Contas de Governo, apresentada, anualmente, pelo Chefe do Poder Executivo, sobre a qual emite o parecer prévio o Tribunal de Contas. O segundo desenvolve o exercício desse controle, de formas prévia, concomitante ou subseqüente, sobre os atos administrativos da gestão orçamentária, financeira, patrimonial e operacional, praticados pelos administradores auxiliares do Poder Executivo, e julgando suas respectivas Prestações de Contas de Gestão. Enquanto o Poder Legislativo julga politi-camente a Prestação de Contas de Governo do Chefe do Poder Executivo, com o Parecer Prévio do Tribunal de Contas, este julga juridicamente as Prestações de Contas dos administradores e os demais servidores públicos ou qualquer pessoa física ou jurídica responsáveis pela utilização ou emprego de dinheiro, bens e valores públicos.60 AGUIAR, Afonso Gomes. Direito Financeiro. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 137.61 Vide, para mais, OLIVEIRA, Cristiane Catarina Fagundes. Conselhos Municipais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Nova Prova, 2005.62 VIANA, Oliveira. O Idealismo na Constituição. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1927, p. 87.

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integrantes do staff, como, por exemplo, pelas regras do concurso público. Todavia, se essa é a regra, interroga-se sobre outras formas de par-ticipação em sentido estrito na gestão pública, que pode então ter dois sen-tidos. O primeiro sentido é interno à própria gestão pública, entre os níveis internos de decisão, isto é, interior à gestão pública na relação entre os mem-bros do staff. Pode-se implementar a participação por órgãos colegiados cujo objetivo é descentralizar as decisões e permitir maior participação dos mem-bros do staff. O segundo sentido é externo à gestão pública, na participação da comunidade por meio de pessoas, não integrantes do staff, escolhidas para opinar em certas situações, que é o caso de órgãos colegiados com a partici-pação de membros da comunidade: o caso dos conselhos municipais. Os conselhos municipais, portanto, são órgãos colegiados integran-tes da estrutura administrativa de gestão pública municipal, integrado exclu-sivamente por membros da Administração Municipal ou também integrado por membros da comunidade. Veja-se: No caso de órgãos colegiados integrados exclusivamente pelos membros da Administração, pode-se referir que trata-se de um atualizado modo de controle interno que prioriza a participação democrática no nível interno de decisão da gestão pública. No caso da participação de membros da comunidade, por meio de associações ou por meio individual em controle exercido pelo direito de petição, por exemplo, pode-se referir como o caso do controle externo. Tal participação é preferível à ação própria dos órgãos estatais em vista do prin-cípio da subsidiariedade. No caso de um instrumento de controle, todavia, como os conse-lhos municipais, em que há membros da comunidade chamados a opinar e realizar a atividade de controle juntamente com integrantes da Administra-ção, em órgão estatal próprio, diz-se que há um controle social ou misto.

CONCLUSÃO

Em vista da tradicional classificação das formas de controle da ad-ministração pública como controle interno ou externo, há necessidade de atualização das estruturas organizativas de controle da Administração Pública

57 FURLAN, José Luis e CORROCHATEGOI, Nora. El Municipio como instrumento de desarrollo regional y la partici-pación. IN: ESTESO, Roberto e TOCINO, Sergio (comp.), Municipio y Región. Buenos Aires: IIPAS e Fundación Friedrich Ebert, 1989, p. 58-71. Refira-se sobre as eleições locais, a lição de BRICCHI, Adhemar Heriberto. Problemas del regimen y Gobierno Municipal. In: MÁRQUEZ, Daniel Alberto e PICONE, Francisco Humberto (Coord.). Temas de Derecho Municipal. Buenos Aires: Pensamiento Jurídico Editora, 1991, p. 32 em que “La manifestación más cabal de la soberanía del pueblo se encuentra en la elección de su propio gobierno local”.

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em vista das alterações constitucionais. Em especial deve-se examinar a apli-cação dos princípios do Estado Democrático de Direito, do federalismo e da subsidiariedade. Em vista do princípio democrático, o controle interno há de ser atualizado no sentido de implementar-se estruturas horizontalizadas que permitam a deliberação, com relevância do papel de controle dos agentes públicos. Especial destaque, nesse sentido, o trabalho de controle jurídico realizado pelas carreiras de advocacia pública, com autonomia em cada esfera federativa em decorrência do princípio federativo. Ademais, a participação política como expressão da democracia tam-bém pode implementar novas estruturas de controle externo da Administra-ção, exercidas por exemplo, por meio do direito de petição. Os organismos sociais são chamados a contribuir com o controle externo da administração pública. De outro lado, afirma-se a necessidade de incluir como instrumento de controle social ou misto aquele exame dos atos da Administração realiza-dos por instituições cujos integrantes são alguns membros do staff dirigente e executor das decisões públicas bem como outros membros da comunidade. Exemplo dessa espécie de controle são os conselhos municipais. Por fim, em virtude do princípio da subsidiariedade é que se pode afirmar uma prioridade metodológica do controle interno e do controle social (misto), sendo que cabe à Administração Pública fomentar estas novas formas de controle democrático dos atos estatais.

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* Mestre e Doutora em Teoria do Estado e do Direito pela UFRGS. Professora Adjunta de História do Direito, Direito Cons-titucional e de Direito Romano na PUCRS. Professora Adjunta de Direito Romano e de História do Direito na Faculdade São Judas Tadeu de Porto Alegre. Professora substituta de História do Direito e de Direito Romano na UFRGS. Procuradora-Geral do Município de Porto Alegre. Coordenadora do Centro de Estudos de Direito Municipal (CEDIM)

A JUSTIÇA FISCAL E A EXAÇÃO SOBRE OS SERVIÇOS NOTARIAIS E REGISTRAIS

Maren Guimarães Taborda *

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“A justiça e o direito não florescem num país pelo simples fato de o juiz estar pronto a julgar e a polícia sair à caça dos criminosos; cada qual tem de fornecer a sua contribuição para que isso aconteça. A todos cabe o dever de esmagar a cabeça da hidra do arbítrio e do desrespeito à lei, sempre que esta saia da toca. Todo aquele que desfrute as bençãos do direito deve contribuir para manter a força e o prestígio da lei. Em poucas palavras, todo homem é um combatente pelo direito, no interesse da sociedade”.

(Rudolf von Ihering. A Luta pelo Direito)

Resumo Afirma-se, no presente estudo, a constitucionalidade da exação insti-tuída na Lei Complementar nº 116/2003, incidente sobre serviços notariais e registrais, pela consideração de que a mesma concretiza o preceito de “Justiça Fiscal” contido na Constituição Federal. Com base nos argumentos de que a remuneração dos notários e registradores é preço, e não taxa, e de que as atividades dos notários e registradores não estão ao abrigo da regra imunizante porque situam-se justamente na exceção à referida regra, sustenta-se que a regra insculpida em lei só pode ser afastada mediante uma fundamentação racional, necessária e suficiente, uma vez que, quando uma regra vale, é determinado fazer exatamente o que ela exige: nem mais, nem menos.

INTRODUÇÃO. I - O REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS NO-TARIAIS E REGISTRAIS. A) Premissas; B) Os serviços públicos; C) Os serviços delegados. II - SERVIÇOS PÚBLICOS E SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA. A) A distinção entre Taxa e Preço; B)A natureza da remuneração dos notários e registradores. III - O PRINCÍPIO DA CAPACI-DADE CONTRIBUTIVA E A JUSTIÇA TRIBUTÁRIA. A) A relação constitucional-tributária; B) O caráter distributivo da relação de tributação. IV - DO VALOR DAS REGRAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO. A) Distinção entre ‘regras’ e ‘princípios’; B) A inafastabilidade das regras contidas na LC 116/03. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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INTRODUÇÃO

A Lei Complementar 116/2003 instituiu a possibilidade de exação, pelos municípios, de ISS incidente sobre os emolumentos auferidos pelos atos praticados pelos ofícios notariais e registrais. Alegando, em uma equivoca-da argumentação, que os serviços registrais, cartorários e notariais, caracteriza-dos por serem “serviços públicos”, não podem ser tributados a título de ISS (Imposto sobre serviços), em face da concretização do “princípio federativo” e o da “imunidade recíproca”, a ANOREG/BR – Associação dos Notários e Registradores do Brasil interpôs a ADIn nº 3.089, que ainda pende de decisão. Tal demanda vem sendo repetida nos vários estados da Federação, sob idênticos argumentos, com a variante (e agravante) de que as ações de inconstitucionalidade locais são propostas pelo Ministério Público, uma vez que as associações de notários e registradores estaduais não possuem legiti-midade ativa. Em um artigo publicado em meados de 2007, a advogada mineira Bianca Castellar de Faria66 alega serem inconstitucionais tais itens da Lista de Serviços, porque a lei complementar “cria uma exação fiscal totalmente afastada das regras e princípios do Direito”, pois, segundo ela, “pretender que as serventias notariais e extrajudiciais recolham impostos sobre serviços é desconhecer o caráter público de tais serviços extrajudiciais e é ignorar a natureza jurídica de taxa dos emolumentos por elas cobradas”. Nada mais equivocado, porém, e isto é precisamente o que este trabalho quer discutir, com base em três argumentos: a remuneração dos notários e registradores é preço, e não taxa; as atividades dos notários e registradores não estão ao abrigo da regra imunizante porque situam-se justamente na exceção à referida regra; razões de justiça distributiva militam em favor da constitucionalidade da LC 116/2003. Para alcançar tal objetivo – sustentar a constitucionalidade da exação sobre os serviços notariais e registrais a partir do conceito de ‘Justiça Fiscal’ - , é preciso explicitar a natureza dos serviços notariais e registrais (I), fazer-se a distinção entre preço e taxa (II), discorrer sobre o conteúdo do principio da capacidade contributiva (III) e, finalmente, distinguir, cientificamente, as regras dos princípios (IV).

66 CASTELLAR DE FARIA, Bianca. ISS sobre os serviços notariais e registrais: antijuridiciadade e inconstitucionalidades flagrantes. Revista Tributária e de Finanças Públicas. Ano 15. nº 72. São Paulo: Editora RT, Jan-Fev 2007, pp. 31 e ss.

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I - O REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E RE-GISTRAIS

A) Premissas A obra científica é um trabalho de unificação, em que o conheci-mento se realiza com a operação de determinação, isto é, de limitação de um dado da realidade: só se pode dizer que existe uma ciência quando se demonstra a homogeneidade de certos fenômenos, são estes caracterizados e, após, encontra-se um princípio que sirva de base à disciplina assim fundada67. Quando alguém - o jurista - isola a vida jurídica de um povo, consideran-do os membros de uma comunidade exclusivamente em sua relação com a ordem jurídica, prescindindo de uma infinidade de diferenças entre os homens, à toda evidência, tenta abarcar em um conceito - “direito” - a tota-lidade das relações jurídicas, ou, dito de outra maneira, interpreta a realidade das relações humanas enquanto conteúdo de “normas”. A base do discurso científico do Direito é a idéia de sistema , de modo que, se a existência do Direito se assenta em uma série de fenômenos que se concretizam com certa regularidade - em relações estáveis - seja qual for o trabalho teórico que sobre ele incida, necessariamente há o pressuposto de uma concatenação imanente e está presente, portanto, a idéia de sistema. Sendo o sistema também o modelo de organização dos ordenamentos jurí-dicos, que exprime as ligações, nem sempre explícitas, entre as normas que o compõem, sua missão consiste em evitar rigorismos e contradições, estabe-lecendo uma relação entre regra e exceção e assegurando o tratamento igual - princípio da justiça. Segundo a tradição filosófica ocidental, são os conceitos que tor-nam possível a descrição, classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis68 e, tendo um significado genérico, resultante do labor intelectual de abstração das notas e características individuais, sua função primeira e fundamental é a mesma da linguagem, ou seja, a comunicação. Os conceitos de direito são abstrações subministradas por regras jurídicas positivas, que se propõem a ordenar a pluralidade das regras, submetendo-as a pontos de vista que as unifiquem69.

67 Cf. COING, in: Zur Geschichte des Privatrechtssystems, apud CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.Tradução portuguesa de System-denken und Systembegriff in der Jurisprudenz, pág. 14 e HEGEL, F. Introdução à História da Filosofia. Coimbra: Arménio Amado, 1974, pág.105.68 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Mestre Jou, Tradução brasileira por Alfredo Bosi, p.151.69 JELLINECK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Editorial Albatros, 1970, p. 120. Tradução argentina de Allgemeine Staatslehere, por Fernando de Los Rios.

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São os conceitos jurídicos, então, enunciados relacionadores de nor-mas, pontos em que se aglutinam efeitos de direito e, por isso mesmo, são clas-sificações, sistematizações, permitindo que se conheçam a natureza (essência/ substância e significação) e a função (operação) dessas relações normativas. Um conceito jurídico (ou a referida aglutinação de efeitos de direito) pode ser dado, previamente, pela lei, ou ser construído pela via jurisprudencial, mas não necessariamente. Em alguns casos (como o da presente discussão) os conceitos são construídos doutrinariamente. Assim, é preciso, inicialmente, fixar que a doutrina brasileira enten-de ser o ISS imposto (vincula-se a uma situação de fato que se constitui em objeto de imposição, enquanto considerada manifestação direta ou indireta de certa capacidade contributiva, isto é, uma situação que se refere exclusivamen-te à pessoa do obrigado e à sua esfera de atividade, sem relação alguma, nem sequer de fato com a atividade do poder público) que recai sobre a circulação de serviços de qualquer natureza, compreendendo-se por serviço a venda de bens imateriais (noção econômica), isto é, bens que não têm extensão cor-pórea e são permanência no espaço, e não a simples atividade decorrente de contratos de “prestação de serviços” (fornecimento de trabalho)70. Como todo imposto, o ISS é instrumento estatal para a captação de parte da riqueza produzida pela comunidade, que a ela retornará ou sob a forma de serviços públicos ou para custear os encargos estatais. O ‘serviço’, objeto do ISS é tanto o resultado de uma atividade prestada como o de coisas que as pessoas põem à disposição dos outros e, nesta última dimensão, pode ser “material”. Onera-se, pois, a circulação de riqueza. A questão de saber se o serviço que os notários e registradores pres-tam é base de incidência do ISS passa por esclarecer o conceito de “serviço público” , que igualmente não está fixado em lei e sim na doutrina.

B) Os serviços públicos Sustenta Eros Roberto Grau que a Constituição Federal distingue atividade econômica de serviço público, de modo que enuncia hipóteses em que o Estado explora diretamente atividade econômica, aquelas em que o Estado presta serviços públicos, e finalmente, aquelas em que o Estado aparece como agente normativo regulador da atividade econômica.71

Isso é assim porque, se como consubstanciado na doutrina admi-nistrativista francesa (seguida no Brasil), o serviço público é a atividade as-

70 Cf. RIBEIRO DE MORAES, Bernardo. Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços. São Paulo: RT, 1975, pp. 80 e ss71 GRAU, Eros Roberto. ‘Constituição e Serviço Público’, In: Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bona-vides. GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (orgs.) São Paulo: Malheiros, 2001, p. 250.

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sumida por uma coletividade pública com o propósito de dar satisfação a uma necessidade de interesse geral, com a necessidade de participação de uma pessoa pública e, extensivamente, toda atividade que uma coletividade pública decide assumir porque lhe parece que a realização dessa atividade é necessária ao interesse público ou geral, a prestação de um serviço público “está voltada à satisfação de necessidades, o que envolve a utilização de bens e serviços, recursos escassos. Daí porque serviço público é um tipo de atividade econômica”72. Por conseguinte, verifica-se que o gênero - atividade econômica - comporta as espécies “serviço público” e “atividade econômica em sentido estrito”, de forma que, quando a Constituição alude à “atividade econômi-ca” no art. 173, § 1º, está indicando as hipóteses de exploração direta de “ati-vidade econômica em sentido estrito”, cuja titularidade é do setor privado, e não do Estado, mas por razões de “segurança nacional” e “interesse coletivo” este as assume. Da mesma forma, a exploração de atividade econômica pelo Estado, em regime de monopólio, igualmente se dá por imperativos de seguran-ça nacional, mas isto não transforma tais atividades em “serviço público”, porque o que caracteriza uma atividade como serviço público é sua vin-culação ao interesse social, isto é, a sua indispensabilidade à realização e ao desenvolvimento da interdependência social, seguindo a tese de Duguit ou a tese alemã (Daseinsvorsoge), explorada, entre nós, por Ruy Cirne Lima, que compreende como serviço público “todo serviço existencial, relativamente à sociedade, ou pelo menos, assim havido num momento dado, que, por isso mesmo, tem de ser prestado aos componentes daquela, direta ou indireta-mente, pelo Estado ou outra pessoa administrativa73.” Advém daí, que serviço público, nos termos da Constituição, é ati-vidade prestada no interesse social e, por isso, privativa do Estado. O fato dessa atividade poder ser delegada aos particulares - por concessão ou permissão - não signi-fica que deixa de ser “fim” do Estado brasileiro. Se, como afirma Eros Roberto Grau, a ordem econômica delineada na Constituição tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna, “a preservação dos vínculos sociais e a promoção da coesão social pelo Estado assumem enorme relevância no Brasil, a ele incumbindo a responsabilidade pela provisão, à sociedade, como

72 GRAU, Eros Roberto. Constituição e Serviço Público, cit., idem. 73 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6a. Ed. São Paulo: RT, 1987, p cit., p. 82. Para Diogo Figueiredo Moreira Neto, serviços públicos seriam as atividades pelas quais o Estado, direta ou indiretamente, promove ou assegura a satisfação de interesses públicos, assim por lei considerados, sob o regime jurídico próprio a eles aplicável, ainda que não necessariamente de direito público.” In: Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 126.

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serviço público, de todas as parcelas da atividade econômica em sentido am-plo que seja tidas como indispensáveis à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social.”74 Sobre a base de dois critério fundamentais - intervenção no mer-cado e essencialidade do serviço - , surgem três grandes categorias sobre as missões do serviço público: a) permitir aos usuários prestações essenciais; b) contribuir para a coesão social c)favorecer a utilização racional, eficaz e equilibrada do território. O serviço público, justificado pela eficiência e equidade, é capaz de contribuir para a correção dos desequilíbrios do terri-tório e das desigualdades sociais. A doutrina econômica européia mais recente oscila entre duas te-ses: a primeira, é a de que os serviços a serem prestados pelo Estado devem ser aqueles de relativos à prestação de bens coletivos puros (não exclusivos, com acessibilidade geral e em que o consumo de uns não afeta o consumo dos demais) e serviços ditos “de clube”, em que o consumo coletivo está, em princípio, recusados a certos usuários (são exclusivos, mas não rivais, de acordo com a terminologia especializada). A segunda tese é a de que o ser-viço público deve se limitar aos serviços coletivos puros, porque só eles têm a vocação de serem oferecidos ao conjunto dos usuários e serem financiados pelo Fisco. Os “bens de clube” devem ser pagos pelos consumidores e o seu fornecimento fica a cargo da iniciativa privada: a autoridade pública só pode intervir para corrigir distorções de preços, desigualdades flagrantes e corrup-ção75.

C) Os serviços delegados O legislador constituinte, no artigo 236 da Constituição Federal, dispôs que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, de modo que a simples exigência de concurso público para a delegação do serviço cartorário não transforma a natureza do serviço prestado. O exame da lei 8.935/94 desmente o caráter de servidor público que vem sendo emprestado aos titulares dos serviços cartoriais. O art. 3º conceitua estes como “profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro.”O art. 14, por sua vez, ao se referir ao ingresso na atividade, fala em “delegação para o exercício da atividade” não se referindo em momento algum à investidura em cargo,

74 GRAU, Eros Roberto. ‘ Constituição e Serviço Público’, cit., p. 391. 75 MODERNE, Franck. ‘Les Transcriptions Doctrinales de L’Idée de Service Public’. In: MODERNE, Franck et MARCOU Gérard (éds). L’Idée de Service Public dans le droit des États de L’ Union Européene. Paris: L’Hartmattan, 2001, pp. 14/15.

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emprego ou função pública. Dúvida não pode haver no sentido de que os notários são delegatários de serviços públicos, agindo com autonomia no desempenho de suas atividades, sujeitando-se apenas ao controle finalístico a ser exercido pelo Poder Delegante76.

Nos termos da jurisprudência assentada no STF, os notários e regis-tradores, salvo exceções, se organizam e se estruturam sob o regime do di-reito privado e autonomamente, isto é, não ficam subordinados a um poder, como é o caso dos servidores públicos dos cartórios judiciais. No desem-penho de suas atividades delegadas, prestam serviços por sua conta e risco econômico, deles auferindo lucro ou suportando eventuais prejuízos. Só isso já basta para caracterizar atividade sujeito à incidência do ISS. Vejam-se as seguintes ementas:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. INTERPRETAÇÃO DO ART. 236, PAR. 1., DA CF, E DA LEI 8.935, DE 18.11.1994, ARTS. 22, 28 E 37.1. O NOVO SISTEMA NACIONAL DE SERVIÇOS NOTARIAIS E REGISTRAIS IMPOSTO PELA LEI 8.935, DE 18.11.1994, COM BASE NO ART. 236, PAR. 1., DA CF, NÃO OUTORGOU PLENA AUTONOMIA AOS SERVIDORES DOS CHAMADOS OFICIOS EXTRAJUDICIAIS EM RELAÇÃO AO PODER JU-DICIARIO, PELO QUE CONTINUAM SUBMETIDOS A AM-PLA FISCALIZAÇÃO E CONTROLE DOS SEUS SERVIÇOS PELO REFERIDO PODER.(...)3. O TEXTO DA CARTA MAIOR IMPÕE QUE OS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO SEJAM EXECUTADOS EM RE-GIME DE CARATER PRIVADO, POREM, POR DELEGAÇÃO DO PODER PUBLICO, SEM QUE TENHA IMPLICADO NA AMPLA TRANSFORMAÇÃO PRETENDIDA PELOS IMPE-TRANTES, ISTO E, DE TEREM SE TRANSMUDADOS EM SERVIÇOS PUBLICOS CONCEDIDOS PELA UNIÃO FEDE-RAL, A SEREM PRESTADOS POR AGENTES PURAMENTE PRIVADOS, SEM SUBORDINAÇÃO A CONTROLES DE FIS-CALIZAÇÃO E RESPONSABILIDADES PERANTE O PODER JUDICIARIO.

(...)(ROMS 7730 / RS ; RECURSO ORDINARIO

76 CF. MANGIERI, Francisco Ramos. ISS – ISSQN Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Teoria-Prática-Questões Polêmicas. 3ª. Ed. São Paulo: Edipro, 2003, pp. 113 e ss..

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EM MANDADO DE SEGURANÇA 1996/0061180-7; Fonte DJ DATA:27/10/1997 PG:54720 Relator Min. JOSÉ DELGADO; Data da Decisão 01/09/1997; Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TUR-MA)

Ou, ainda:

EMENTA: I – AS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELOS SER-VIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO ESTÃO SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, DE MODO QUE, EM QUE PESE À CONDIÇÃO DE PRESTADOR DE SERVIÇO EXERCIDO EM CARÁTER PRIVADO, POR DELE-GAÇÃO DO PODER PÚBLICO, CONFORME PREVISÃO DO ART. 236 DA CF, NÃO PODEM OS CARTÓRIOS SE FURTAR AO CUMPRIMENTO DAS NORMAS RELATIVAS A DIREITO DO CONSUMIDOR. ADEMAIS, A RELAÇÃO DE SUBORDI-NAÇÃO DOS OFÍCIOS EXTRAJUDICIAIS À FISCALIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NADA TEM A VER COM A RELA-ÇÃO DE MERCADO QUE MANTÊM ENQUANTO PRESTA-DORES DE SERVIÇOS.(...) CONHECER DO RECURSO E A ELE NEGAR PROVIMENTO. UNÂNIME.

Classe do Processo : APELAÇÃO CÍVEL 20000110427153APC DF ; Registro do Acordão Número : 157783; Data de Julgamento : 09/05/2002 ; Órgão Julgador : 3ª Turma Cível ; Relator : WELLING-TON MEDEIROS ; Publicação no DJU: 21/08/2002 Pág. : 87 (até 31/12/1993 na Seção 2, a partir de 01/01/1994 na Seção 3)

Como se vê, é indubitável que o agente delegatário constitui-se sob o regime do direito privado em organização e funcionamento, contratando bens e pessoas e praticando atos particulares na administração do seu negócio, com vistas a bem desempenhar o serviço público que lhe foi cometido. Alegar o con-trário – como o faz a nobre colega e os requerentes das ações comentadas – é desconhecer o conceito legal e doutrinário do que seja ‘serviço público’ e suas classificações.

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II – OS SERVIÇOS PÚBLICOS E OS SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA

A) A distinção entre Taxa e Preço A doutrina brasileira distingue ‘serviço público’ de ‘serviço de utili-dade pública’ quando faz referência à distinção européia, de modo que por “serviço de utilidade pública” entende aquele prestado por particulares, que são remunerados por tarifa ou preço77. No caso, interessa ou que o Estado preste ele mesmo o serviços públicos ou que apenas assegura a sua prestação por meio de delegatários.78 Os serviços de utilidade pública facilitam a vida do indivíduo na comunidade, não são essenciais, e, além disso, são conside-rados “impróprios”, porque satisfazem interesses comuns e são rentáveis. São uti singuli, porque são serviços de utilização particular e são sempre mensu-ráveis79. Neste particular, a posição que se está a rebater padece de um equí-voco, qual seja, que a remuneração dos serviços dos notários é taxa, e não preço, e por isso, não pode haver incidência de imposto (proibição de bis in idem tributário). O argumento é falacioso, oculta o ponto crucial da discussão, a saber, a realidade dos serviços notariais. Se os serviços públicos de utili-dades, específicos e divisíveis podem ser remunerados por preços (regime contratual) ou por taxas (regime de direito público), foi o legislador quem definiu que as utilidades (serviços) cartorárias são remuneradas por preços. Aliás, na teoria das taxas, o único critério seguro de distinção para com os preços dizem respeito ao regime jurídico adotado pelo legislador, de modo que, quando o Estado diretamente presta serviço público exercendo poder de polícia, a remuneração é taxa, da mesma forma que a remuneração é por taxa quando o Estado presta diretamente o serviço. Na mesma medida, quando o Estado “engendra instrumentalidades” para, em regime de direito privado, sob delegação, prestar utilidades, adota-se o regime de preços. Daí, nos termos do artigo 150, inciso VI, combinado com o §3º, as vedações à tributação “não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com a exploração de atividades econômicas re-gidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário”.

77 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22ª. Ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 558. 78 DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na Administração Pública. 3ª. Ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 42 e MOREIRA NETO, Diogo F. Mutações..., cit., p. 125.79 MEIRELLES, cit., p. 299.

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Por isso, assiste razão a Sacha Calmon Navarro Coêlho80, quando assevera que “o Estado, além das atividades econômicas exercíveis em lide concorrencial pode,mediante instrumentalidades, prestar serviços públicos mediante contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelos usuários. Não fora assim, teria sentido cuidar de imunidade de impostos entre pes-soas políticas, suas instrumentalidades, predicando a exclusão daquelas que cobram preços ou tarifas?” Neste particular, é a própria Constituição quem completa a regulação da matéria, quando, no art. 175, remete à lei ordinária a disposição sobre política tarifária , justamente para atender a estes casos.

Sobre o tema, Ives Gandra da Silva Martins81

“ O constituinte houve por bem afastar a imunidade daqueles serviços pú-blicos remunerados por preço público, assim como as atividades econômicas dos entes tributantes, cujo regime jurídico seja de natureza privada, no que agiu muito bem. A intervenção concorrencial, à evidência, é típica atuação preferen-cial do setor privado, razão pela qual a imunidade não se justifica”.

De outra parte, se os preços podem ser públicos, sendo as tarifas ex-clusiva e unilateralmente fixadas pelo Poder Público, sem considerar razões de mercado; privados, estabelecidos em livre concorrência, e semiprivados, com a Administração Pública interferindo na sua formação, admitindo in-fluências do mercado, é indubitável que a remuneração dos notários é um preço público, porque o Poder Público os fixa unilateralmente, através de lei.

B) A natureza da remuneração dos notários e registradores O principal equívoco da posição que se está a discutir é, assim, afirmar que os valores recebidos pelos notários têm a natureza de taxa. Tais valores não se confundem com aqueles recolhidos aos cofres estaduais, sob a denominação de emolumentos ou custas. A remuneração de que os no-tários não são titulares, uma vez que estes têm direito apenas ao repasse dos valores pagos pelos cidadãos ao ente tributante, são taxas, porque o que é remunerado são os serviços notariais e registrais prestados direta ou indire-tamente pelo Estado-membro. Neste caso, o titular do tributo é o Estado, e não os notários ou registradores. Caso contrario, estar-se-ia criando hipótese

80 NAVARRO COÊLHO, Sacha Calmon. Comentários à Constituição de 1988. Sistema Tributário. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 57. 81 In: Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990.

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de delegação de competência tributária, o que é expressamente vedado pelo Código Tributário Nacional (CTN), em seu art. 7º. Isto posto, na hipótese in casu, o que é delegada é a função de ar-recadação do tributo, pois os notários apenas arrecadam em nome do Es-tado-membro as taxas devidas em razão do serviço público prestado. Estes realizam, em favor do público, parcela da totalidade dos serviços públicos de registro, certificação e similares, por força de delegação formal do Estado. Muitas outras funções não são delegadas aos notários, como por exemplo, a licitação e a compra de selos para aposição nos atos de certificação e registro, entre outras. Sendo assim, os recolhimentos vinculados aos atos cartorários ou registrais não são retidos pelos notários ou tabeliães a título de ressarci-mento ou remuneração, o que demonstra que eles são apenas prestadores do serviço público, pertencente ao Estado-membro. Como acentua Ricardo Almeida Ribeiro da Silva82, mesmo a parte dos emolumentos e custas “que é retida no caixa pelos notários e registra-dores, ingressa (ou deveria ingressar), orçamentária e financeiramente, na contabilidade pública do Estado-membro” (....) , ainda que o repasse para os notários seja, no caso da retenção, meramente contábil. Assim, as taxas pertencem sempre ao Estado-Membro: o que os notários recebem é uma parcela dos emolumentos e custas, sendo esta a sua remuneração – o preço do serviço – base de incidência do ISS. Tal remuneração jamais poderá ser taxa, porque esta decorre da relação jurídico-tributaria que existe entre o Estado e o usuário do serviço público. Como se vê, o que é assegurado aos notários pela Fazenda Pública Estadual – sua remuneração – é um preço público, isto é, a Administração os fixa por meio de lei, conforme a quantidade de atos praticados. Neste caso, não há uma delegação contratual, de modo que o particular age “em colabora-ção com o Poder Público, por meio de um ato de investidura, que dá substância a uma espécie de delegação legalmente prevista.83” Por esta delegação, o notário, titular do serviço, tem o direito de auferir lucro com as atividades transferidas e esta circunstância, por si só já descaracteriza tal atividade como remunerada por taxa: não é concebível que haja “lucro” na atividade administrativa do Estado propriamente dita. Deste modo, a remuneração, na parte repassada pelo Estado ou di-retamente detida no caixa pelos notários e registradores, tem um caráter

82 Imposto sobre serviços. A incidência do ISSQN sobre serviços de registro público. In: Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 2004. Acesso em 25 de junho de 2007. 83 RIBEIRO DA SILVA, op. cit.

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contratual ou quase-contratual, podendo ser classificada sempre como tarifa ou preço, nunca como taxa. O que pode ser taxa é “a fonte de custeio desta remuneração, repassada financeira e orçamentariamente aos agentes delegatários como preço pago pelo Estado-membro na medida da parcela dos serviços públicos prestados à população”. Nestas condições, existindo animus lucrandi na atividade ( o bacharel em Direito que assume uma serventia o faz visando ao lucro – a titularidade da serventia é uma profissão rentável), a execução do serviço é concretizada por um profissional autônomo, que faz da mesma um negócio. E aí estamos no âmago da discussão: a contrario sensu, não haveria incidência de ISS para grande parte das paraestatais, além dos concessionários, permissionários e autorizatários de serviços públicos. Em síntese, o serviço que os notários e registradores prestam (ser-viço público) é por eles assumido por conta e risco próprios e está estru-turado de acordo com os princípios do direito privado: o regime jurídico do serviço delegado continua a ser público, mas o particular age de acordo com regras privadas, investe às custas de seu patrimônio, custeia as atividades necessárias e quer, fundamentalmente, obter lucro. Não há dúvida, portanto, que o regime econômico a que se submete o serviço é o da livre concorrên-cia, que, sendo uma das vigas mestras da economia de mercado, baseia-se na diversidade de produtores ou prestadores de serviços atuando em um regime de competitividade. Precisamente porque tal competitividade não é mais aquela que se cria espontaneamente no mercado, e sim aquela derivada de um conjunto de normas de política econômica, fica proibida a concentração do poder econômico por parte de alguns agentes econômicos, mediante a formação de monopólios, cartéis, trustes, etc. Por isso, o sujeito passivo da obrigação tributária, nos serviços em questão, é aquele que obteve a delega-ção para a execução do serviço (delegatário) e não o cartório, porque este não possui existência própria. A parcela transferida do Estado ao agente delegatário é sempre de natureza contratual ou quase-contratual, caracterizando-se, assim, a onerosi-dade peculiar ao fato gerador do Imposto Sobre Serviços e, em seu aspecto quantitativo, a base de cálculo do referido imposto. Os serviços, embo-ra prestados de fato à comunidade, jurídica e formalmente são devidos ao Estado (poder delegante), que obriga o delegatário a desempenhá-lo sob fiscalização. Por isso, afirma Ricardo Almeida Ribeiro da Silva, há “nítida manifestação econômica de riqueza por parte dos notários e registradores, configurando o fato gerador do ISSQN, nos moldes definidos no parágrafo

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3o. do art. 1o. da Lei Complementar n. 116/03, ainda que o pagamento do preço ou tarifa não o seja pelo usuário final do serviço, mas pelo Estado-membro delegante.” Afora estas razões de ordem técnico-científica, há razões de justiça distributiva para sustentar a constitucionalidade da exação, como segue.

III - O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A JUS-TIÇA TRIBUTÁRIA

A ) A relação constitucional-tributária Na atualidade, a tarefa de formação e conservação da unidade polí-tica84 é do Estado - atuação e atividade dos poderes que se constituem sobre a base da unidade sempre a ser formada, conservada e continuando a formar - . Como o nascimento da unidade política é um processo permanente, ne-cessita de uma colaboração organizada, ordenada procedimentalmente, isto é, de uma ordem jurídica que garanta “o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais.85” A Constituição, é, a sua vez, a ordem jurídica fundamental da coletividade, que determina os princí-pios retores da formação da unidade política e das tarefas estatais, regulando os procedimentos de vencimento de conflitos no interior da coletividade e fundamentando competências. Assim, a relação constitucional do Estado é uma atividade contí-nua relativa ao bem comum, que se sustenta e se alimenta ‘da inteligência e vontade do homem’, cuja ‘energia dinâmica’ – “capacidade de agir (poder ou força natural e racional) dos indivíduos humanos criadores do Estado” – gera dois campos de força equilibrados e em sentido contrário: o feixe de deveres centrípetos – a relação tributária – e o feixe de direitos centrífugos – a relação administrativa. O equilíbrio de tal relação é dado pelo princípio da igualdade86. Os deveres centrípetos são aqueles que o Direito Tributário define e disciplina; os direitos centrífugos são definidos e disciplinados pelo Direito Administrativo, de modo que os indivíduos, pólos da relação constitucional, contribuirão para a Receita e participarão dos frutos da Despesa. Então, o

84 Unidade política é “unidade de ação possibilitada e produzida por acordo ou compromisso, por aprovação tácita ou mera aceitação e respeito, eventualmente, até por coação exercida exitosamente, portanto, uma unidade funcional. Essa é pressu-posto para isto, que no interior de um determinado território decisões obrigatórias possam ser tomadas e sejam cumpridas, que, portanto, exista “Estado” e não anarquia ou guerra cvil”, diz HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1998, pág. 30. Tradução da 20a. ed. alemã de Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland.85 HESSE, cit., p. 35.86 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª. Ed. São Paulo: Lejus, 1998, pp. 167 e ss.

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Estado, na relação jurídica87 de administração, figura no pólo negativo e os indivíduos, no pólo positivo; ao contrário, na relação jurídica de tributação, quem está no pólo negativo são os indivíduos e, no pólo positivo, o Esta-do. Ora, a relação tributária nada mais é do que uma relação obrigacio-nal, polarizada pelo interesse do Estado (credor) e pelo interesse público. Contribuinte é quem tem uma relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato jurídico tributário. Daí ser a relação jurídico-tributária uma relação obrigacional – pessoal - cujo objeto é a renda, o patrimônio ou o consumo de determinado sujeito.

B) O caráter distributivo da relação de tributaçãoPosta a questão nestes termos, sempre se pode afirmar que a relação

de tributação tem o caráter da justiça distributiva, isto é, trata diferentemente as pessoas porque é o tipo de justiça que se manifesta “nas distribuições de honras, de dinheiro ou das outras coisas88” que se tenha que distribuir na sociedade política. Aqui, estamos diante do problema de atribuir vantagens ou desvantagens, direitos ou deveres aos indivíduos pertencentes a uma de-terminada categoria, equiparando-se pessoas (homens e mulheres na relação conjugal; trabalhadores e patrões na relação de trabalho), em relação a deter-minadas coisas: os objetos distribuídos ( relação entre o todo e as partes).

Neste caso, qual o melhor critério do justo? È aquele que observa a proporção entre as pessoas, isto é, a qualidade pessoal do indivíduo que constitui a causa do débito na distribuição.

O padrão de correção da distribuição é a posse de determinada característica pessoal (parentesco, saber, necessidade, renda) que torna o in-divíduo destinatário de um processo de distribuição. Com isso, a Justiça distributiva opera segundo um dever que se fundamenta num processo de qualificação/diferenciação de indivíduos. Tanto é de justiça tributária que se trata, que o legislador consti-tuinte erigiu o principio da capacidade contributiva (a tradução, no plano da relação constitucional da isonomia proporcional) em fundamento de todo o sistema tributário, conforme art. 145, § 1º, da Constituição da República, verbis: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados

87 Consoante Paulo de Barros Carvalho, “relação jurídica é definida como aquele vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação.” In: Curso de Direito Tributário. 8ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 194. 88 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, Livro V,30 e 1131ª.

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segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributá-ria, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. O princípio, tal como posto na Constituição, vincula o legislador ordinário, “obrigando-o a escolher para a composição da hipótese de incidência das regras jurídicas tributárias, fatos que sejam signos presuntivos de renda ou capital acima do mínimo indispensável89”, bem como exige que este, ao instituir o tributo, não só escolha fatos de conteúdo econômico, mas observe as desi-gualdades próprias de diferentes categorias de contribuintes. Com isso, os tributos de modo geral e os impostos, em particu-lar, “quando ajustados à capacidade contributiva, permitem que os cidadãos cumpram, perante a comunidade, seus deveres de solidariedade política, econômica e social90”. Admitindo-se a eficácia vinculativa dos princípios constitucionais, ao Judiciário é vedado “deixar de aplicar” a lei tributária, sempre que a hipótese de incidência atender ao preceito constitucional que determina a observância de fatos que constituem uma presunção de renda ou capital acima do indispensável91. Nestas condições, o preceito da justiça tributária engloba o processo tributário e impõe-se ao legislador ordinário e à administração tributária. Com isso, se o Judiciário é, antes de mais nada, aquele que pronuncia jul-gamentos - o que atribui a cada um a sua coisa – resta claro que não pode servir de meio para atingir-se um fim que pode chegar às raias da imorali-dade: pessoas que demonstram uma grande capacidade contributiva serem eximidas da tributação, de contribuir para o bem comum de acordo com a sua condição pessoal. Este é o sentido da regra contida no artigo 150, inci-so VI, combinado com o §3º, da Carta Magna, que afirma não estarem ao abrigo da regra imunizante os delegatários, concessionários, autorizatários e permissionários de serviços remunerados por preços ou tarifas. Demonstrado que os concessionários, permissionários, autorizatá-rios e delegatários de serviço público, no caso - os notários e registradores -

não estão, de forma alguma ao abrigo da norma imuni-89 BECKER, cit., p. 488.90 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Consitucional Tributário. 22ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 86. 91 De acordo com Becker, o conceito jurídico-constitucional de capacidade contributiva , mesmo “deformado” quando juridicizado, contém “um mínimo de certeza e praticabilidade que revela a sua natureza jurídica e fixa sua restrita eficácia jurídica”. Sendo assim, a relação entre o ônus tributário e montante da riqueza de determinado contribuinte é feita em rela-ção a cada tributo isolado dos demais; não é totalidade da riqueza de um contribuinte que é considerada, mas unicamente “um fato-signo presuntivo de sua renda ou capital”; ademais, a renda e o capital presumido deve ser acima do mínimo indispensável. O legislador está obrigado a escolher, para a composição da hipótese de incidência, fatos que sejam signos presuntivos de renda ou capital e, nesta escolha, fica obrigado a escolher uma espécie de renda ou de capital acima do mínimo indispensável. Finalmente, o legislador também fica obrigado a aumentar alíquota de tributos segundo a maior ou menor riqueza presumível do contribuinte. In: Teoria..., cit., pp. 494 e ss.

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zante, resta discutir o significado das alegações no sentido de que é possível, por via da interpretação, afastar expresso dispositivo de lei que consubstancia uma regra.

IV - DO VALOR DAS REGRAS NO ORDENAMENTO JURÍDI-CO

A) Distinção entre ‘regras’ e ‘princípios’ “Normas” não são somente textos, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Os textos consti-tuem o objeto de interpretação, e as normas, o seu resultado. Dado que nor-mas podem ser regras e princípios, um ou vários dispositivos de lei podem ser, simultaneamente, regra (dimensão imediatamente comportamental), princípio (dimensão finalística) e, ainda, postulado (dimensão metódica)92. Princípios são espécie de normas jurídicas por meio das quais são estabelecidos deveres de otimização, aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Daí decorre que os princípios são nor-mas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Mandatos de otimização, os princípios são caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em di-ferentes graus. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. Regras são normas que só podem ser cumpridas, ou não, e con-têm determinações no âmbito do fática e do juridicamente possível, de modo que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra ou é um princípio e, no caso do conflito entre princípios, a distinção se torna clara, pois aí há a dimensão do peso ou da importância: o conflito deve ser solucionado através de uma ponderação de princípios opostos. Nestes casos, os interesses são do mesmo grau, e se trata de ponderar qual deles possui maior peso no caso concreto93. Nas colisões de princípios, um tem que ceder diante do outro, e, como os princípios têm

92 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, passim93 A distinção entre regras e princípios é importante porque constitui a base da fundamentação iusfundamental e é uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais. A distinção, ademais, fornece uma teoria adequada dos limites, uma teoria satisfatória da colisão e uma teoria suficiente acerca do papel que têm os direitos fundamentais em um sistema jurídico. Constitui também um marco de uma teoria normativo-material dos direitos funda-mentais e, com isso, o ponto de partida para responder a pergunta acerca da possibilidade e dos limites de racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais. Esta distinção entre regras e princípios é uma distinção entre tipos de normas, e os crité-rios podem ser: a) generalidade (princípios alto; regras, baixo); c) determinabilidade dos casos de aplicação (Esser); c) forma de sua gênesis: Shuman (normas criadas e normas desenvolvidas); d) caráter explícito do conteúdo valorativo (Canaris); e) referência a uma idéia de Direito (Larenz); f) legitimidade suprema (HJ Wolf); g) importância para o ordenamento jurídico; i) fundamento de regras ou regras em si mesmo (Esser); h) normas de argumentação ou comportamento (Grossi). Outras teses advogam que: a) não é possível a distinção; b) a diferença é de grau (generalidade é o critério decisivo); c) a diferença não é de grau mas qualitativa.

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diferente peso, em certas circunstâncias, um deles tem precedência (princí-pio com mais peso). Se uma norma de direito fundamental entra em colisão com o princípio oposto, então a possibilidade jurídica de realização da nor-ma de direito fundamental depende do princípio oposto. Pode-se afirmar, em síntese, a partir do trabalho de Humberto Ávi-la94, que, no plano conceitual, os princípios têm como dever imediato, a promoção de um estado ideal de coisas, e as regras, a adoção da conduta descrita; como dever mediato, os princípios têm a adoção da conduta ne-cessária, e as regras, a manutenção de fidelidade à finalidade subjacente e aos princípios superiores; no plano da justificação, os princípios são justificados como correlação entre efeitos da conduta e o estado ideal de coisas, e as, regras, a correspondência entre o conceito de norma e o conceito do fato; finalmente, no que diz respeito à pretensão de decidibilidade, os princípios decidem concorrentemente e parcialmente, e as regras, exclusivamente e de forma abarcante. No que diz respeito à dita “colisão de princípios”, ela não existe no caso concreto posto em discussão. E mais, partindo-se de uma premissa falsa – a de que o Judiciário pode afastar uma regra do ordenamento jurídico (declarando sua inconstitucionalidade) pela incidência de dois princípios (o Federativo e o da imunidade recíproca) - chega-se a conclusões igualmente falsas , quais sejam, a de que as disposições constitucionais relativas à imuni-dade são princípios e não regras, bem como a de que os serviços notariais são remunerados por taxas e não por preços.

B) A inafastabilidade das regras contidas na LC 116/03 Dado que normas podem ser regras e princípios, deve ficar ressalta-do que as regras podem ou não ser realizadas. Quando uma regra vale, então é determinado fazer exatamente o que ela exige: nem mais, nem menos. Assim, a regra insculpida na Lei Complementar Federal nº 116/2003 e na Lista Anexa só pode ser afastada mediante uma fundamentação racional, ne-cessária e suficiente. A colisão de regras sempre se resolve com a decretação de invalidade de uma delas, porque as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, e os princípios, obrigações prima facie Assim, as regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições, mediante a des-

94 ÁVILA, Teoria dos Princípios, cit., p. 39.

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crição da conduta a ser cumprida. Diante disso, as conseqüências estabele-cidas por uma regra só podem ser afastadas em face de razões substanciais consideradas pelo aplicador, segundo uma condizente fundamentação, como superiores àquelas que justificam a própria regra. Ou se examina a razão que fundamenta a regra, restringindo ou ampliando o conteúdo da hipótese normativa, ou se recorre a outras razões, baseadas em outras normas, para justificar o descumprimento daquela regra. Nada disso foi feito nos pedidos de inconstitucionalidade que tra-mitam no Judiciário e no artigo científico que se está a discutir: pretende-se o afastamento da regra da estrita legalidade tributária quando contém expressões cujo âmbito de aplicação é total e previamente delimitado, não deixando nenhuma liberdade ao intérprete (o que pode acontecer no caso das regras, mas não neste em discussão). Neste caso, não foi feita uma “fun-damentação capaz de ultrapassar a trincheira decorrente da concepção de que as regras devem ser obedecidas,95” muito antes pelo contrário: não houve fundamen-tação capaz de ultrapassar os limites traçados pelas normas constitucionais e tributárias, e a que houve, foi totalmente errônea, porque contrapôs estas regras - de interpretação restritiva - , ao “princípio federativo” e o da “imu-nidade recíproca” que sequer foram fundamentados e explicitados. O que está sendo esquecido pelos autores das ações diretas de in-constitucionalidade e pelos doutrinadores que advogam a tese de que o ser-viço prestado pelos notários e registradores é remunerado por taxa e não por preço, é que as próprias regras funcionam como razão para adoção de de-terminados comportamentos e estes são adotados, independentemente dos seus efeitos, porque foram definidos previamente – em lei – como corretos. Desta forma, as regras instituídas na Lei Complementar Fede-ral 116/03 (e por conseguinte nas leis tributárias municipais), no Código Tributário Nacional e nas Constituições Federal e estaduais geram, para a argumentação, tanto razões de correção quanto razões autoritativas. Estes fatos são desconhecidos pelos defensores da tese que se está a rebater, por-que diante das razões da lei, argumentaram com razões doutrinárias que advogam não poder ser o serviço público remunerado por tarifa ou preço, esquecendo-se do principal: se os notários e registradores prestam serviço que é base de incidência do ISSQN, remunerado por preço público, e não estão ao abrigo da regra imunizante (estão situados precisamente na exceção à referida regra), devem contribuir com a sua riqueza para o bem comum, isto é, devem pagar a exação que lhes é exigida, em razão do preceito da

95 ÀVILA, op. cit., p. 41.

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96 Neste particular, deve ser ressaltado que o fato gerador do IR é a renda particular do delegatário e o ISS, a renda bruta do estabelecimento.

justiça. Este é claramente o sentido tanto da Constituição Federal, quanto da Lei Complementar 116/03.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, várias razões militam em favor da tese da constitucionali-dade da exação fiscal incidente sobre os serviços notariais e registrais. A primei-ra razão é relativa à natureza dos serviços prestados: de acordo com a Constitui-ção Federal, serviço público é atividade prestada no interesse social e, por isso, privativa do Estado. O fato dessa atividade poder ser delegada aos particulares - por concessão ou permissão - não significa que deixa de ser indispensá-vel à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social. Organizados e estruturados sob o regime do direito privado e gozando de autonomia, os notários prestam serviço público delegado por sua conta e risco econômico, deles auferindo lucro ou suportando eventuais prejuízos. Havendo animus lucrandi em tal atividade, já está preenchida a condição necessária e suficiente para a incidência da exação, uma vez que fica evidente a capacidade contributiva dos prestadores dos serviços. A segunda razão diz respeito à compreensão da distinção entre taxa e preço: quando o Estado diretamente presta serviço público exercendo po-der de polícia, a remuneração é taxa, da mesma forma que a remuneração é por taxa quando o Estado presta diretamente o serviço. Ao contrário, quando o Estado “engendra instrumentalidades” para, em regime de direito privado, sob delegação, prestar utilidades, adota-se o regime de preços. Assim, o sujeito passivo da obrigação tributária, nos serviços em questão, é aquele que obteve a delegação para a execução do serviço (delegatário) e não o cartório, porque este não possui existência própria. Os serviços, embora prestados de fato à comunidade, jurídica e formalmente são devidos ao Estado (poder delegante), que obriga o delegatário a desempenhá-lo sob fiscalização. Na medida em que a Constituição afastou expressamente da regra imunizante o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, um argumento de ordem sistemático deve ser articulado em favor da exação, qual seja: para que seja afastada a regra da imunidade deve haver uma fundamentação capaz de demonstrar que tais atividades não são remuneradas por preços ou tarifas, bem como de que são imunes a todos os impostos. Preci-

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samente porque tais atividades geram a presunção de riqueza, constituem fatos geradores de vários impostos, como, por exemplo, o Imposto sobre a Renda96. Por último, se a relação jurídico-tributária é uma relação distributiva, deve ser observado, pelo legislador e pela administração tributária, o preceito constitucional que determina a observância de fatos que constituem uma pre-sunção de renda ou capital acima do indispensável para instituir a exação. Se é inquestionável que os notários e registradores demonstram grande capacidade contributiva, sob qual argumento estariam eximidos de contribuir para o bem comum de acordo com as suas condições pessoais? Nenhum que seja aceitável do ponto de vista racional ou mesmo moral. Pensar o contrário significaria anular o princípio de Justiça Tributária insculpido na Constituição Federal e não compreender a finalidade do Direito que visa, sempre, à melhor divisão, ou à divisão possível. Arte da divisão, o Di-reito não trata de todas as espécies de coisas, mas apenas das coisas exteriores, divisíveis; se exerce em certas operações, as distribuições, as trocas. Se o direito consiste numa proporção das coisas divididas entre as pessoas (ison ou aequum)97, é na Constituição e nas leis que estão delineados os parâmetros básicos desta divisão. No caso em discussão, para eliminar-se qualquer um dos critérios dis-tributivos estabelecidos, não basta arguir “inconstitucionalidade” e “ilegalidade” da lei complementar, é preciso eliminar a Constituição inteira. Dito de outro modo, enquanto a Carta Politica de 1988 for válida, a Lei Complementar Fe-deral n° 116/03 é constitucional em toda a sua extensão.

97 Cf. VILLEY, Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 65/66.

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A CIDADE E O MEIO AMBIENTE98

Marga Inge Barth Tessler

Resumo O estudo trata da relação entre a cidade e o meio ambiente na pers-pectiva da função social da propriedade. Desde a Antiguidade há uma preocu-pação com a manutenção da ordem e da paz e com a habitabilidade saudável, mas é na Era Contemporânea que se afirmou direito à “cidade sustentável” como um direito fundamental do cidadão. Tal direito implica a busca da melho-ria das condições de vida de toda a coletividade e se concretiza quando a todos são assegurados equipamentos urbanos, saneamento básico, eudcação, cultura, transporte seguro, segurança, trabalho e lazer. Finalmente, afirma-se que a cida-de sustentável é um bem ambiental coletivo

Sumário I-Introdução II-O conceito da Cidade III-As cidades antigas IV-As cidades ficcionais e reais V-A cidade ideal como imagem horizonte VI-A Cons-tituição Federal e a Política Urbana VII-Cidade sustentável: contribuição da Justiça Federal VIII- Conclusão.

I- Introdução Rimbaud99, o mais desesperado dos poetas, em um de seus versos, revela que a “paciência ardente” é um atributo que devemos cultivar para in-gressar nas cidades esplendorosas, [...] ao amanhecer, armados de paciência ar-dente, ingressaremos nas esplendorosas cidades”. O presente trabalho pretende refletir sobre a Cidade e o Meio Ambiente, servindo de introdução ao painel e homenageando todos aqueles que têm entre suas atribuições funcionais, no nível municipal, a gestão da questão urbana, efetivando e concretizando caso a caso a função socioambiental da propriedade, que é poliédrica e verdadeira-

98 Marga Inge Barth Tessler, Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Mestre emDireito Público, PUC/RS, Especialista em Direito Sanitário, UNB/BSB, Mestranda – Mestrado Profissional em Poder Judiciá-rio, FGV – Direito Rio. Texto-base para participar do Congresso de Direito Municipal “A Federação e as Políticas Públicas em Debate, 26 a 29 de junho de 2007, Porto Alegre-RS. Mesa presidida pela Drª Maren Taborda, e integrada também pelas pales-trantes Drª Betânia Alfonsin, Drª Vanêsca Buzelato Prestes, Drª Anelise Monteiro Steigleder e Dr. Arlindo Daibert Neto.99 RIMBAUD, Arthur. Une saison en enfer. Adieu. (Uma temporada no inferno. Adeus).

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mente indeterminada, tantos são os aspectos sob os quais pode vislumbrar- se uma função social, na lição de Eros Grau100. Este painel de debates, “Políticas Públicas da Administração Municipal”, reúne alguns dos seus aspectos, como a efetividade do Estatuto da Cidade e o Direito à Moradia na perspectiva urba-noambiental, a competência do município na custódia do meio ambiente e a participação popular nas políticas públicas, todas questões importantíssimas. Nesta perspectiva, sem condições de esgotar a matéria, a minha parti-cipação pretende servir de estímulo e homenagem aos dedicados procuradores e gestores ambientais das cidades sustentáveis.

II -O CONCEITO DA CIDADE

A “cidade” não está explicitamente conceituada na Lei n.º 10.257/2001, assim, tanto a cidade real quanto a cidade ideal são objetos da lei101 A cidade deve apresentar oportunidade de realização individual e coletiva do ser hu-mano. A cidade deve proporcionar os elementos necessários para uma vida de qualidade para todos, hoje e no futuro, eis em síntese a cidade sustentável

III - AS CIDADES ANTIGAS A manutenção da ordem e da paz, da habitabilidade saudável das cida-des foi uma preocupação constante do homem e muito antiga nas organizações humanas. Passagem bíblica102 recomenda aos munícipes fugitivos de Sodoma e Gomorra não olhar para trás, enquanto as cidades eram destruídas, pois seriam reduzidos a estátuas de sal. Esta passagem pode estar a recomendar uma visão prospectiva, tendo sempre em vista o futuro das cidades, embora os altares que se ergam ao culto e preservação do passado. Preservar o passado, construindo o futuro. Uma das primeiras leis relativas à limpeza e à manutenção ordenada de uma pólis foi encontrada no porto grego de Tasos. Seus fragmentos indicam restrições às construções, responsabilidade pela limpeza das ruas e penalidades pelo nãocumprimento da legislação. Os fragmentos são do início do século V a.C.103

Em Atenas, no período próximo de 440 a 430 a.C., fragmentos da legislação protetora dos lugares sagrados e notáveis testemunham que proibiu-

100 GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, p. 63.101 FRANGETTO, Flavia Witkowski. Do caráter simplista do direito à cidade: Constituição Federal, cidade e meio ambiente, cidade como meio ambiente. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, v. 12, n. 49, p. 114-138, out./dez. 2004.102 Genesis 19:26103 ARNAOUTOGLOU, Ilias. Leis da Grécia antiga. São Paulo: Odysseus, 2003.

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se aos curtidores de couro jogar peles e outros detritos nas margens ou no rio Ilissos. Tragédias ocorreram em face do descumprimento das regras básicas e apropriadas a cada tempo na convivência humana nas cidades. Gaio, jurista romano do século II, d.C., comentando a Lei das Doze Tábuas, registra antiga lei de Sólon sobre a definição de distâncias entre as construções urbanas, escavações e plantações, e a obrigação das autoridades em preservar aquedutos e obras de proteção das cidades contra ataques inimigos, cheias, inclusive banheiros públicos e esgotos. Nas apinhadas cidades medievais, cercadas por muralhas, segundo Rosen104, “muitos problemas de saúde pública resultaram do fato de as cidades serem incapazes de acomodar, no interior de suas paredes fortificadas, uma população crescente”, a eclosão da peste negra exterminou 25 milhões de pessoas, segundo Tuchman105. Do passado distante, temos notícias da Cidade Antiga106, da Cidade de Deus107 , das cidades míticas, da Cidade Eterna Jerusalém. Cidades em ruínas no século XX: Berlim, Bagdá, Cabul. Cidade do futuro como Los Angeles, vista em “Blade Runner108” , em 2019, são exemplos do caos urbano real e ficcional. A “Cidade Maravilhosa”, em plena decadência social vitimada pela violência.

IV - AS CIDADES FICCIONAIS E REAIS A ficção antecipa a possível realidade, a arte tem uma visão de futuro e assistimos a uma série de filmes que vaticinam o caos urbano, a extrema inse-gurança, cidades das quais é melhor fugir. Nesta linha, os filmes “Fuga de Nova York109” e “Fuga de Los Angeles110” , em que as megalópolis se vêem destitu-ídas do domínio da ordem pública e gangues criminosas assumem o controle. O filme “O dia depois de amanhã111” , aborda as alterações climáticas sofridas pelo planeta, modificando drasticamente a vida da cidade de Nova York, com o Norte se resfriando cada vez mais e passando por uma nova era glacial, milhões

104 ROSEN, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Unesp, 1994.105 TUCHMAN, Bárbara Wertheim. Um Espelho Distante: O Terrível século XIV. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.106 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e deRoma. 2. ed. São Paulo: EDIPRO, 1999.107 Santo Agostinho108 BLADE Runner. Direção: Ridley Scott. Produção: Miachel Deeley. Intérpretes: Harrison Ford (Rick Deckard), Rutger Hauer (Roy Batty), Sean Young (Rachael) e outros. EUA: The Ladd Company, 1982. (118min).109 FUGA de Nova York. Direção: John Carpenter. Produção: Larry J. Franco e Debra Hill. Intérpretes: Kurt Russell (Snake Plissken), Lee Van Cleef (Bob Hauk) e Ernets Borgnine (Cabbie) e outros. EUA: City Film, AVCO Embassy Pictures; Goldcrest Films International; International Film Investors, 1981. (108 min).110 FUGA de Los Angeles. Direção: Joh Carpenter. Produção: Debra Hill e Kurt Russel. Intérpretes: Kurt Russell (Snake Plissken), A. J. Langer (Utopia), Steve Buscerni (Eddie) e outros. EUA: Paramount Pictures; Rysher Entertainment, 1996. (101 min).111 O DIA depois de amanhã. Direção: Roland Emmerich. Intérpretes: Denis Quaid (Prof. Jack Hall), Jake Gyllenhall (Sam Hall) e Emmy Rossum (Laura) e outros. Produção: Roland Emmerich e Jeffrrey Nachmanoff. EUA: Centropolis Entertain-ment; Mark Gordon Productions; Tomorrow Films, 2004. (124min).

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de sobreviventes fogem para o Sul. Outro, um pouco mais recente, “O Efeito Dominó112” , que imagina em “apagão” de energia elétrica e a cidade deixa de funcionar, a sociedade começa a desmoronar. Não precisamos mais da ficção, já temos a dura realidade, os atos de vandalismo em São Paulo, no Rio de Janeiro e Nova Orleans. Não acredita-mos na possibilidade de uma catástrofe, o caos urbano esta distante das nossas mentes, tanto quanto a catástrofe ecológica, sabemos da possibilidade mas não acreditamos possa de fato ocorrer. As cidades brasileiras, resultado da nossa cul-tura são uma realidade complexa, as cidades brasileiras são cidades difíceis em face de sua organização e segurança, tudo dificultado pela pobreza de imensas camadas da população. Nova Orleans é um bom exemplo da situação de falhas diversas, e registra um caos urbano no primeiro mundo. As autoridades norte-americanas, essa polícia universal, perdeu o controle de sua metrópole durante semanas. A cidade regrediu e se transformou em território selvagem, onde se praticaram assassinatos, saques, toda sorte de violência contra a população. Houve o fura-cão, imprevisível, mas que passou a 40 quilômetros da cidade, contudo, nas horas seguintes, evidenciou-se a falha na gestão urbana federal e municipal. Os muros e diques não foram suficientes, disso as autoridades sabiam antecipadamente, e a cidade invadida pelas águas, submergiu. As autoridades não estavam preparadas para atender às necessidades urbanas. Danificado um extraordinário patrimônio cultural e urbanístico, por falta de prevenção e pre-caução.

V - A CIDADE IDEAL COMO IMAGEM HORIZONTE Cidades destruídas, cidades ilegais, marginais, todas são cidades objeto da política urbana.. Conceituar cidade, na lição de Flavia Frangetto113 “implica em enxergar no futuro a cidade ideal, a cidade digna e dinamicamente funcio-nal”. A cidade ideal como “imagem horizonte”, a cidade em devir114 .

112 O EFEITO dominó. Direção: David Koepp. Produção: Michael Grillo. Intérpretes: Kyle MacLachlan, Elisabeth Shue, Dermot Mulroney e outros. EUA: Amblin Entertainment; Universal Pictures, 1996. (96 min).113 Frangetto, op. Cit.

114 Lei nº 11.445/2007 – Saneamento Básico. Recentes documentários brasileiros: “Memória Sem Visão”, deMarcos Vale. O que é viver ao lado de uma obra “minhocão”, em São Paulo, com desvalorização dos imóveis vizinhos em cerca de 40%. “Cotidiano da Cidade Lagoa/RJ, de Luiz Eduardo Lerina, Brasil 2003. Neste a cena de abertura é dramática. Trata-se da demolição de um palacete na Lagoa vista pelos vizinhos do empreendimento e a perda para o patrimônio cultu-ral em troca de um espigão. “Além dos Outdoors”, documentário de Caio Salgado e Paulo Henrique dos Santos, Brasil 2006, rodado na cidade de Goiânia.

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VI - A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A POLÍTICA URBANA

Reformas e atualizações urbanas, o emprego de novos instrumentos e técnicas se faz necessário, mas hoje não se as fazem como no passado. Reformas urbanas autoritárias como a do arquiteto Barão Haus-mann, em Paris, e a do Prefeito Pereira Passos, no Rio de Janeiro, em 1906. Com a Política Urbana instituída pelos artigos 182 e 183 da Cons-tituição Federal de 1988, sobreveio a Lei n.º 10.257/2001, O Estatuto das Cidades, instrumento executor da ordem urbanística. Na lição de Vanêsca Prestes115, o Estatuto da Cidade é “expressão legal da política pública urbana ambiental, norma originadora de um sistema que interage com os diversos agentes que constróem a cidade e a reconhece em movimento, em um pro-cesso que precisa de um lado avaliar e dar conta das necessidades urbanas e, de outro, estabelecer os limites para a vida em sociedade, considerando que esta sociedade está cada vez mais dinâmica, exigente e com escassez de recursos naturais”. As atividades e empreendimentos urbanos impactantes do meio socioambiental ganharam um novo paradigma para o seu exame de via-bilidade. O direito proprietário deve cumprir uma função social e o Plano Diretor da Cidade é o principal instrumento da política urbana, reforçado com o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) para a gestão sustentável das cidades116. A construção de espigões, hipermercados, condomínios e grandes loteamentos deve ser examinada com olhos postos na coletividade que ha-bita a cidade e tem direito a continuar a fazê-lo, desfrutando da salubridade, do acesso e da paisagem, continuando a desenvolver-se de forma sustentável e a apreciação desta condição envolve três variáveis, a estabilidade, a seguran-ça e o oferecimento de oportunidade; aí temos então a qualidade de vida, a “sadia qualidade de vida”, expressão adotada pela Constituição Federal, no artigo 225. Todos temos o direito à cidade sustentável e a cidade cumpre função social (art. 182, da Constituição Federal de 1988), devendo assegurar a todos: equipamentos urbanos, saneamento básico, saúde, educação, cultura, transporte seguro, segurança, trabalho e lazer. O direito à cidade sustentável implica em uma busca contínua de fazer realidade a melhoria das condições

115 PRESTES, Vanêsca Buzelato. Plano Diretor e Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV). Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 10, n. 37, p. 80-95, jan./mar. 2005.116 Comunidade Quilombola Família Silva. Medida Cautelar Inominada nº 2005.71.00.019117-8/RS e Ação de Manutenção de Posse nº 2005.71.00.020104-4/RS. Lixão Urbano. Ação Civil Pública nº 92.00.024440/RS.Agrotóxicos urbanos (Clorpirifós). Ação Civil Pública n…º 2004.71.00.020735-2/RS.

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de vida de todos. Olhos postos no futuro, sem esquecer das tradições e as-pectos do passado. A cidade sustentável é um bem ambiental coletivo. Na lição de Benjamin117 , o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), assim como o EIA (Estudo de Impacto Ambiental), é instrumento de pre-venção ambiental que incide diretamente na discricionariedade do admi-nistrador, justamente porque limita o poder discricionário, na medida em que restringe a liberdade do responsável pelas decisões, exigindo que na motivação do ato administrativo esteja presente a análise da questão socio-ambiental. É mais um esforço de integração do que de dominação. O EIV in-tegra o processo de aprovação urbanística e ambiental e deve estar conectado ao Plano Diretor118.

VII - CIDADE SUSTENTÁVEL: CONTRIBUIÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL

A Justiça Federal da 4ª Região (RS, SC, PR) e, em especial, a Vara Ambiental de Porto Alegre119, tem a seu encargo um fabuloso acervo de processos envolvendo questões urbanas, a saber: reconhecimento do primei-ro quilombola urbano, Família Silva, bairro Três Figueiras. Conflito entre o Município de Porto Alegre em torno do Parque Municipal Morro do Osso, contra a comunidade de indígenas Kaingang. Reformas em prédio histórico tombado. Responsabilização por poluição de rio por cinzas de carvão no Rio Jacuí. Licenciamento de rodovias: Rota do Sol Mostarda-Tavares, na Lagoa do Peixe. Fiscalização em postos de gasolina. Mineração irregular em nossos rios, objeto da Operação Dragão II. Comercialização por órgão federal de leite em pó, supostamente contaminado por radioati-vidade. Ocupação de quiosques em praia (Bar Bali Hai e Bar Babilônia, em Xangrilá; Parador Ibiza e Tortuga’s Bar, em Atlântida). Lixões em perímetro urbano no Município de Portão. Agrotóxicos cancelados pela Anvisa. Corte de araucárias, animais silvestres e fauna da Lagoa do Peixe, caça amadorística, pesca predatória, infrações diversas e questões múltiplas referentes ao Parque

117 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, p. 25-45, jan./mar.1992.118 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. A distinção entre Cidade e Muni-cípio, a cidade compreende o que se denomina perímetro urbano.119 LEAL JÚNIOR, Cândido Alfredo Silva. Inventário da Jurisdição Ambiental em Porto Alegre: primeiros dias da vara federal ambiental, agrária e residual. Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 22-29, abr./jun. 2006.

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Nacional da Lagoa do Peixe e Parque Nacional dos Aparados da Serra. Di-versos municípios postulam a liberação de recursos federais bloqueados em face de atos irregulares de gestores municipais. Há uma demanda em que se controverte em torno da mineração de água mineral em um bairro da cidade de Porto Alegre e outra demanda envolvendo a construção de um condomínio residencial para as famílias de brigadianos, que é contestado em face da ausência e relatório de impacto de vizinhança. A Justiça Federal, em rápidas pinceladas, contribui também para a cidade sustentável.

VIII - CONCLUSÃO A cidade considerada sustentável é a cidade capaz de se manter e de manter os seus habitantes, planejada e segura e com uma política urbana suficientemente forte para manter a qualidade de vida aqui e agora e no futuro. Exige trabalho e “paciência ardente” para planejar, educar e fiscalizar, armados de paciência ardente ingressaremos nas esplendorosas cidades, ao amanhecer.

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* Representante da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) na Secretaria Executiva do Comitê Gestor do Simples Nacional. Agente Fiscal da Receita Municipal de Porto Alegre.Especialista em Direito Tributário, Financeiro e Econômico pela UFRGS

O Simples Nacional e os reflexos na esfera municipal

Mauro Hidalgo*

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Não há corpo sem células. Não há Estado sem Municipalidades. Não pode existir matéria vivente sem vida orgânica. Não se pode imaginar existência de Nação, existência de povo constituído, existência de Estado, sem vida municipal.

Rui Barbosa

Resumo O presente artigo trata do impacto do “Estatuto Nacional da Micro-empresa e da Empresa de pequeno porte” nas finanças municipais, a partir da adoção do regime opcional de arrecadação de tributos nele previsto, deno-minado “Simples Nacional”. Tal regime, ao unificar vários tributos, impõe a redução ou aumento de alíquotas aplicáveis ao ISS e ao ICMS e invade a com-petência tributária municipal e estadual. No texto, são aduzidas as razões pelas quais o regime único de tributação fere o sistema federativo e as autonomias financeiras locais.

Sumário I- Da fundamentação constitucional para a edição da LC n°123/06 II- Da abrangência e dos objetivos gerais III- Da estruturação do comitê ges-tor III.I- Da Secretaria executiva III.II- Dos grupos técnicos IV- Do novo enquadramento e limites IV.I- As exclusões previstas ao regime IV.II- Da ins-crição e baixa das microempresas e empresas de pequeno porte V- Da incidên-cia tributária do simples nacional V.I- As atividades vedadas para ingresso no regime unificado V.II- Serviços permitidos para o regime do simples nacional V.III- Outras atividades não-vedadas expressamente V.IV- Recolhimento do tributo na matriz da empresa V.V- Recolhimento pelo regime de caixa VI- Das providências ao encargo da fiscalização tributária municipal VI.I- Convênios para a fiscalização do simples nacional VI.II- Contencioso entre ICMS e ISS VI.III- Consultas VI.IV- Processo tributário e a cobrança da Dívida Ativa do Simples Nacional VII- Prazo para regulamentação do Simples Nacional VIII- Avanços decorrentes da lei complementar n° 123/2006 VIII.I- Integração das administrações tributárias das três esferas de governo VIII.II- Fim de benefícios fiscais que incentivam a guerra fiscal IX- Ações da CNM e da representação municipalista no CGSN IX.I- Necessidade de inscrição municipal para ingres-so no Simples Nacional IX.II- Regras de transição para sublimites estaduais e opção no exercício de 2007 IX.III- Manutenção das atuais obrigações aces-sórias previstas no município IX.IV- Alterações no sistema de arrecadação e repasse IX.V- Disponibilização de sistema para crítica das empresas do Simples Federal X- Conclusão

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INTRODUÇÃO

A Lei Complementar n.º 123, de 14 de dezembro de 2006, ins-tituiu o “Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte”, beneficiando esse segmento com um tratamento diferenciado e favorecido no âmbito das três ordens jurídico-estatais integrantes do Esta-do Federal, prevendo ainda, o cumprimento das obrigações tributárias, por meio de um regime denominado de “Simples Nacional”. O “Simples Nacional” será um regime opcional de arrecadação de tributos devidos pela Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, unifi-cando oito tributos, seis federais - IRPJ, IPI, CSLL, PIS/PASEP, COFINS e a contribuição para as entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical (INSS patronal) - um estadual (ICMS) - e um municipal (ISS). Esse regime pretende introduzir uma forma de arrecadação e tri-butação singular, de âmbito nacional, partilhado entre os entes federados, de discutível constitucionalidade, frente à autonomia Municipal, quando se observa que a Lei não admite aos Municípios competência para a edi-ção de normas legais complementares em matéria tributária, sendo essa exercida exclusivamente pela União e pelo Comitê Gestor do Simples Nacional. Na prática, o “Simples Nacional” impõe a redução ou aumento de alíquotas aplicáveis ao Imposto Sobre Serviços – ISS, ao Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, invadindo competência tributária municipal e Estadual. Isso implicará, em muitos casos, redução de arrecadação de receita própria (ISS) e de transferência constitucional, no caso do ICMS, reduzin-do a participação municipal e os respectivos repasses mensais desse tributo através da cota municipal do ICMS. No caso dos tributos federais (IRPJ e IPI), haverá redução dos valores dos impostos que integram o Fundo de Participação Municipal – FPM. Registre-se, ainda, que o Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte dispensa o cumprimento das normas que disci-plinam a inscrição e baixa de seus atos constitutivos, permitindo, também, o estabelecimento dessas sem vistoria prévia do local de instalação. Nesse contexto, o regime único de tributação fere de morte o sistema federativo e as autonomias financeiras locais.

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I - DA FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL PARA A EDIÇÃO DA LC N.º 123/06

Com fundamento na alínea “d”, inciso III, artigo 146 da Constituição e do art. 94 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, introduzidos pela Emenda Constitucional n.º 42/03 (Anexo I), a Lei Complementar n.º 123/06 criou normas gerais sobre o tratamento diferenciado e favorecido para as Microempresas - ME e para as Empresas de Pequeno Porte - EPP, a ser apli-cado pela União, pelos Estados,

Distrito Federal e Municípios.

Constituição Federal de 1988

Título VI - Da Tributação e do OrçamentoCapítulo I - Do Sistema Tributário NacionalSeção I - Dos Princípios Gerais

Art. 146. Cabe à lei complementar:(...)II - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:(...)d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que:I - será opcional para o contribuinte;II - poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Esta-do;III - o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento;IV - a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes.

Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da compe-

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tência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.(...)

Título VII - Da Ordem Econômica e Financeira

Capítulo I - Dos Princípios Gerais da AtividadeEconômica

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes:(...)IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.(...) Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou re-dução destas por meio de lei.Ato Das Disposições Constitucionais Transitórias(...)Art. 94. Os regimes especiais de tributação para microempresas e empresas de pe-queno porte próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cessarão a partir da entrada em vigor do regime previsto no art. 146, III, d, da Constituição.

II - DA ABRANGÊNCIA E DOS OBJETIVOS GERAIS

O artigo 1.º da Lei Complementar n.º 123/2006 fixa o alcance das normas gerais para tratamento diferenciado à ME e a EPP, compreendendo:i Cadastro único - Um dos maiores avanços na busca da simplificação e desburocratização. Possibilidade de registro das MPE num único cadastro nacional;i Arrecadação unificada de tributos federais, estaduais, distrital e muni-cipal - Possibilidade de ser criada uma única exigência englobando todos os tributos aplicáveis à MPE;i Respeito às diferenças de enquadramento em relação às especificida-des de cada Estado. A adesão ao regime será opcional para o contribuinte.

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III - DA ESTRUTURAÇÃO DO COMITÊ GESTOR

O inciso I do artigo 2.º da Lei Complementar n.º 123/06 institui o Comitê Gestor de Tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, órgão de instância colegiada e federativa, composto por dois represen-tantes da Secretaria da Receita Federal e dois representantes da Secretaria de Receita Previdenciária, como representantes da União, dois representantes dos Estados e do Distrito Federal e dois dos Municípios, para tratar dos as-pectos tributários relacionados ao Simples Nacional.

Art. 2.º O tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às micro-empresas e empresas de pequeno porte de que trata o art. 1.º desta Lei Com-plementar será gerido pelas instâncias a seguir especificadas:

I – Comitê Gestor de Tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, vinculado ao Ministério da Fazenda, composto por 2 (dois) representan-tes da Secretaria da Receita Federal e 2 (dois) representantes da Secretaria da Receita Previdenciária, como representantes da União, 2 (dois) dos Estados e do Distrito Federal e 2 (dois) dos Municípios, para tratar dos aspectos tributá-rios;

É importante destacar que com a edição da Lei n.º 11.457, de 16 de março de 2007, houve a fusão da SRF com a SRP, criando-se a Receita Federal do Brasil (SRB). Ainda não existe definição quanto a repercussões no quorum do CGSN.

III .I - DA SECRETARIA EXECUTIVA

O Decreto n.º 6.038/2007, que instituiu o Comitê Gestor do Sim-ples Nacional, previu, ainda, a constituição de uma Secretaria-Executiva para apoio institucional e técnico-administrativo, nos termos do artigo 8.º do mesmo diploma legal:

Art. 8o O CGSN contará com uma Secretaria-Executiva, para o fornecimen-to de apoio institucional e técnico-administrativo necessário ao desempenho de suas competências.§ 1o A Secretaria da Receita Federal proverá a Secretaria-Executiva do

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CGSN.§ 2o Compete à Secretaria-Executiva:I - promover o apoio e os meios necessários à execução dos trabalhos;II - prestar assistência direta ao Presidente;III - preparar as reuniões;IV - acompanhar a implementação das deliberações;V - exercer outras atividades que lhe sejam atribuídas pelo CGSN.

III . II - DOS GRUPOS TÉCNICOS

O CGSN, por meio das Portarias n.º 01 e 02/2007, instituiu os Gru-pos Técnicos de Assessoramento, coordenados pela Secretaria Executiva, com o objetivo de analisar, propor e implementar as normas relativas ao Simples Na-cional, constituídos da seguinte forma:

GT 01 – Opção e MigraçãoGT 02 – ParcelamentoGT 03 – Cálculo do Valor DevidoGT 04 – Substituição TributáriaGT 05 – Arrecadação e RepasseGT 06 – Tecnologia da InformaçãoGT 07 – CadastroGT 08 – Processos JudiciaisGT 09 – Fiscalização, Lançamento e Contencioso AdministrativoGT 10 – Obrigações AcessóriasGT 11 – ExclusãoGT 12 – Atendimento aos ContribuintesGT 13 – Restituição e Compensação

IV - DO NOVO ENQUADRAMENTO E LIMITESEspécie

Microempresas - MG - igual ou inferior a R$ 240.000.00 (du-zentos e quarenta mil reais)

- superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos

mil reais

Empresas de Pequeno Porte - EPP

Receita Bruta

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Nos termos do inciso I, artigo 3.º da LC n.º 123/2006, consideram-se microempresas a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 do Código Civil, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:

IV. I - AS EXCLUSÕES PREVISTAS AO REGIME

Quando a microempresa ou empresa de pequeno porte incorrer em alguma das situações previstas em impeditivo de enquadramento previsto no § 4.º do artigo 3.º da Lei Complementar n.º 116/2006120 - restrições de caráter geral - será excluída do regime do Simples Nacional, com efeitos a partir do mês seguinte ao que incorrida a situação impeditiva.

IV. II - DA INSCRIÇÃO E BAIXA DAS MICROEMPRESAS E EMPRE-SAS DE PEQUENO PORTE

O novo Estatuto da ME e EPP propõe diversos avanços para a abertu-ra, manutenção e encerramento de empresas. Registra-se, do artigo 4.°, a obrigatoriedade de que os órgãos respon-sáveis pelo cadastramento de pessoas jurídicas das 3 esferas de governo deverão adotar procedimentos uniformes para o registro, manutenção e encerramento de empresas.

Da Inscrição e Da Baixa

Art. 4.º Na elaboração de normas de sua competência, os órgãos e entidades envolvidos na abertura e fechamento de empresas, dos 3 (três) âmbitos de governo, deverão considerar a unicidade do processo de registro e de legalização de empre-sários e de pessoas jurídicas, para tanto devendo articular as competências próprias

120 § 4o Não se inclui no regime diferenciado e favorecido previsto nesta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica: I – de cujo capital participe outra pessoa jurídica; II – que seja filial, sucursal, agência ou representação, no país, de pessoa jurídica com sede no exterior; III – de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; IV – cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não beneficiada por esta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; V – cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; VI – constituída sob a forma de cooperativas, salvo as de consumo; VII – que participe do capital de outra pessoa jurídica; VIII – que exerça atividade de banco comercial, de investimentos e de desenvolvimento, de caixa econômica, de sociedade de crédito, financiamento e investimento ou de crédito imobiliário, de corretora ou de distribuidora de títulos, valores mobiliários e câmbio, de empresa de arrendamento mercantil, de seguros privados e de capitalização ou de previdência complementar; IX – resultante ou remanescente de cisão ou qualquer outra forma de des-membramento de pessoa jurídica que tenha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-calendário anteriores; X – constituída sob a forma de sociedade por ações.

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com aquelas dos demais membros, e buscar, em conjunto, compatibilizar e integrar procedimentos, de modo a evitar a duplicidade de exigências e garantir a linearidade do processo, da perspectiva do usuário.

V - DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DO SIMPLES NACIONAL

A amplitude dos tributos que se encontram albergados pelo novo re-gime de arrecadação instituído pela Lei Complementar contempla tributos federais, estaduais e municipais como pode se depreender da leitura dos arts. 12 e 13, a saber:

Art. 12. Fica instituído o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional.Art. 13. O Simples Nacional implica o recolhimento mensal, mediante documen-to único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições:I – Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica - IRPJ;II – Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI, observado o disposto no inciso XII do § 1.o deste artigo;III – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL;IV – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, observado o disposto no inciso XII do § 1.o deste artigo;V – Contribuição para o PIS/Pasep, observado o disposto no inciso XII do § 1.o deste artigo;VI – Contribuição para a Seguridade Social, a cargo da pessoa jurídica, de que tra-ta o art. 22 da Lei n.o 8.212, de 24 de julho de 1991, exceto no caso das pessoas jurídicas que se dediquem às atividades de prestação de serviços previstas nos incisos XIII a XXVIII do § 1.o e no § 2.o do art. 17 desta Lei Complementar;VII – Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comuni-cação - ICMS;

121 Art. 17. Não poderão recolher os impostos e contribuições na forma do Simples Nacional a microempresa ou a empresa de pequeno porte: I – que explore atividade de prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, gestão de crédito, seleção e riscos, administração de contas a pagar e a receber, gerenciamento de ativos (asset management), compras de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring); II – que tenha sócio domiciliado no exterior; III – de cujo capital participe entidade da administração pública, direta ou indireta, federal, estadual ou municipal; IV – que preste serviço de comunicação; V – que possua débito com o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, ou com as Fazendas Públicas Federal, Estadual ou Municipal, cuja exigibilidade não esteja suspensa; VI – que preste serviço de transporte intermunicipal e interestadual de passageiros; VII – que seja geradora, transmissora, distribuidora ou comercializadora de energia elétrica; VIII – que exerça atividade de importação ou fabricação de automóveis e motocicletas; IX – que exerça atividade de importação de combustíveis; X – que exerça atividade de produção ou venda no atacado de be-bidas alcoólicas, cigarros, armas, bem como de outros produtos tributados pelo IPI com alíquota ad valorem superior a 20% (vinte por cento) ou com alíquota específica; XI – que tenha por finalidade a prestação de serviços decorrentes do exercício de atividade intelectual, de natureza técnica, científica, desportiva, artística ou cultural, que constitua profissão regulamentada ou não, bem como a que preste serviços de instrutor, de corretor, de despachante ou de qualquer tipo de intermediação de negócios; XII – que realize cessão ou locação de mão-de-obra; XIII – que realize atividade de consultoria; XIV – que se dedi-que ao loteamento e à incorporação de imóveis.

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VIII – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS.

V . I - AS ATIVIDADES VEDADAS PARA INGRESSO NO REGIME UNIFICADO

O artigo 17121 da Lei Complementar n.º 123/06 trata das vedações de ca-ráter específico ou objetivo – aqueles relacionados ao objeto da atividade desenvolvida pela empresa, para ingresso no Simples Nacional, devendo ser alvo da atenção dos Fiscos Municipais, especialmente quanto aos itens de XI a XIV.

V . II - SERVIÇOS PERMITIDOS PARA O REGIME DO SIMPLES NACIONAL

De outra forma, as atividades listadas a seguir, conforme incisos de I até XVIII do § 1.º do artigo 17122 da Lei Complementar n.º 123/2006 , serão permitidas para que as MEs e EPPs optem pelo Regime de Tributação do Simples Nacional.

V . III - OUTRAS ATIVIDADES NÃO-VEDADAS EXPRESSAMENTE

122 Art. 17 (...) § 1o As vedações relativas a exercício de atividades previstas no caput deste artigo não se aplicam às pessoas jurídicas que se dediquem exclusivamente às atividades seguintes ou as exerçam em conjunto com outras atividades que não tenham sido objeto de vedação no caput deste artigo: I – creche, pré-escola e estabelecimento de ensino fundamental; II – agência terceirizada de correios; III – agência de viagem e turismo; IV – centro de formação de condutores de veículos automotores de transporte terrestre de passageiros e de carga; V – agência lotérica; VI – serviços de manutenção e reparação de automóveis, caminhões, ônibus, outros veículos pesados, tratores, máquinas e equipamentos agrícolas; VII – serviços de instalação, manutenção e reparação de acessórios para veículos automotores; VIII – serviços de manutenção e reparação de motocicletas, motonetas e bicicletas; IX – serviços de instalação, manutenção e reparação de máquinas de escritório e de informática; X – serviços de reparos hidráulicos, elétricos, pintura e carpintaria em residências ou estabelecimentos civis ou empresariais, bem como manutenção e reparação de aparelhos eletrodomésticos; XI – serviços de instalação e manutenção de aparelhos e sistemas de ar-condicionado, refrigeração, ventilação, aquecimento e tratamento de ar em ambientes con-trolados; XII – veículos de comunicação, de radiodifusão sonora e de sons e imagens, e mídia externa; XIII – construção de imóveis e obras de engenharia em geral, inclusive sob a forma de subempreitada; XIV – transporte municipal de passageiros; XV – empresas montadoras de estandes para feiras; XVI – escolas livres, de línguas estrangeiras, artes, cursos técnicos e gerenciais; XVII – produção cultural e artística; XVIII – produção cinematográfica e de artes cênicas; XIX – cumulativamente administração e locação de imóveis de terceiros; XX – academias de dança, de capoeira, de ioga e de artes marciais; XXI – academias de atividades físicas, desportivas, de natação e escolas de esportes; XXII – (VETADO); XXIII – elaboração de programas de computadores, inclusive jogos eletrônicos, desde que desenvolvidos em estabelecimento do optante; XXIV – licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação; XXV – planejamento, confecção, manutenção e atualização de páginas eletrônicas, desde que realizados em estabelecimento do optante; XXVI – escritórios de serviços contábeis; XXVII – serviço de vigilância, limpeza ou conservação; XXVIII – (VETADO).

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Conforme dispõe o § 2.º do artigo 17 da Lei Complementar n.º 123/06, será permitida, às sociedades, opção de ingresso no Regime de Tri-butação do Simples Nacional, quando essas se dedicarem exclusivamente à prestação de outros serviços que não tenham sido objeto de vedação expres-sa.

Alterações nas datas de recolhimento do ISS

Os tributos deverão ser pagos até o último dia útil da primeira quin-zena do mês subseqüente àquele em que houver sido auferida a receita bruta (Artigo 16 da Resolução CGSN n.º 4/2007). Nesse sentido, haverá uma mudança significativa no fluxo de caixa dos municípios que recebem a receita do ISS em data anterior ao fixado inicialmente na LC e ratificado na Resolução do Comitê Gestor. O valor do Simples Nacional não pago até a data do vencimento, sujeitar-se-á à incidência de encargos legais na forma prevista na legislação do imposto sobre a renda, ou seja, regra diversa da vigente nos municípios, demonstrando mais um ponto de invasão de autonomia em relação ao tri-buto de competência municipal (ISS).

V . IV - RECOLHIMENTO DO TRIBUTO NA MATRIZ DA EM-PRESA

Frise-se que na hipótese de a ME ou EPP possuir filiais, o recolhi-mento dos tributos do Simples Nacional dar-se-á por intermédio da matriz. Com isso, poderá gerar dificuldades para alguns municípios. Nesse sentido, tendo em vista que a microempresa ou a empresa de pequeno porte, quando possuir filial, fará o recolhimento dos tributos do Simples Nacional por in-termédio da matriz, é preciso acompanhar de que forma será feita a partilha e a elaboração do Documento Único de Arrecadação.

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V . V - RECOLHIMENTO PELO REGIME DE CAIXA

A aplicação do regime de tributação do Simples Nacional poderá se dar, à opção do contribuinte, sobre a receita recebida no mês (regime de caixa), na forma regulamentada pelo Comitê Gestor, sendo esta opção irre-tratável para todo o ano-calendário, conforme dispõe o § 3.º, artigo 18, LC n.º 123/2006. Isso significa dizer que só será tributado naquele mês o que efetiva-mente entrou no caixa da empresa.Essa forma de tributação é desfavorável aos Municípios, levando-se em con-sideração a atual sistemática do ISS, em que o recolhimento se dá por com-petência, no momento da realização do fato gerador. O regime de caixa, na forma proposta na presente Lei, considerando-se que os valores de caixa poderão vir a ser substancialmente diferenciados daqueles lançados nos do-cumentos fiscais, poderá gerar instabilidade no ingresso de receita nos cofres municipais.

VI - DAS PROVIDÊNCIAS AO ENCARGO DA FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA MUNICIPAL

Conforme o disposto neste artigo, a competência para fiscalizar o cumprimento das obrigações principais e acessórias relativas ao Simples Na-cional e para verificar a ocorrência das hipóteses de exclusão de ofício é da Secretaria da Receita Federal e das Secretarias de Fazenda ou de Finanças do Estado ou do Distrito Federal, segundo a localização do estabelecimento, e, tratando-se de prestação de serviços incluídos na competência tributária municipal, a competência será também do respectivo Município. Nesse contexto, os fiscos municipais deverão estar preparados para essa nova forma de atuação. Qualificando seus procedimentos de auditoria, tendo em vista que será necessária a ampliação de conhecimento sobre a composição da base cálculo dos tributos federais, e, quando for o caso, do imposto estadual (ICMS).

Art. 33. A competência para fiscalizar o cumprimento das obrigações prin-cipais e acessórias relativas ao Simples Nacional e para verificar a ocorrência das hipóteses previstas no art. 29 desta Lei Complementar é da Secretaria da Receita Federal e das Secretarias de Fazenda ou de Finanças do Estado ou do Distrito Federal, segundo a localização do estabelecimento, e, tratando-se de

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prestação de serviços incluídos na competência tributária municipal, a competên-cia será também do respectivo Município. § 1o As Secretarias de Fazenda ou Finanças dos Estados poderão celebrar convênio com os Municípios de sua jurisdição para atribuir a estes a fiscalização a que se refere o caput deste artigo. § 2o Na hipótese de a microempresa ou empresa de pequeno porte exercer alguma das atividades de prestação de serviços previstas nos incisos XIII a XXVIII do § 1o do art. 17 desta Lei Complementar, caberá à Secretaria da Receita Previdenciária a fiscalização da Contribuição para a Seguridade Social, a cargo da pessoa jurídica, de que trata o art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991. § 3o O valor não pago, apurado em procedimento de fiscalização, será exigido em lançamento de ofício pela autoridade competente que realizou a fiscalização.

VI . I - CONVÊNIOS PARA FISCALIZAÇÃO DO SIMPLES NACIO-NAL

A Lei Complementar n.º 123/06 reforça a previsão inscrita no Có-digo Tributário Nacional e no texto constitucional, ao afirmar que as Secre-tarias Estaduais poderão firmar convênios para atuar conjuntamente com os Municípios ou atribuir-lhes competência para a fiscalização de tributos de sua competência. Nesse contexto, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão, ainda, impor uma atuação integrada das Administrações Tributárias, de todos os entes da Federação, nos termos do disposto no inciso XXII, do artigo 37 da Constituição.

Capítulo VII - Da Administração Pública

Seção I - Disposições Gerais

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

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XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.

As Secretarias Estaduais poderão firmar convênios para atuar con-juntamente com os Municípios ou atribuir-lhes competência para a fiscali-zação de tributos de sua competência. Esses convênios poderão ampliar a atuação das fiscalizações munici-pais, não mais limitadas as ME ou EPP de prestação de serviços. Com isso, a autoridade fiscal municipal poderá, inclusive, proceder à verificação do Simples Nacional em empresas que tenham como objeto, exclusivamente, a realização de atividades abrangidas pelos fatos geradores do ICMS, de competência estadual. Como se sabe, a transferência constitu-cional desse imposto estadual ainda é, de longe, a maior parcela da receita tributária municipal. Havendo convênio, em que o Estado atribua ao Município a com-petência de fiscalização, as municipalidades terão maior poder de atuação perante as empresas exclusivamente com atividades abrangidas pelos fatos geradores do ICMS, possibilitando a verificação das receitas incluídas nos 75% de valor adicionado, que serão base de rateio do ICMS, a ser transferido para os Municípios de acordo com a legislação estadual.

VI . II - CONTENCIOSO ENTRE ICMS E ISS

É preciso ter um cuidado especial em relação às ME e EPP de prestação de serviços com fatos geradores que gerem algum conflito com o ICMS ou que atuem com venda de mercadorias, base de cálculo do imposto estadual. Nesse sentido, é importante frisar que a competência do julgamento administrativo é delegada ao ente federado que efetuou o lançamento ou exclusão de ofício da ME ou EPP integrante do Simples Nacional. A LC incentiva a entrega da competência do julgamento do con-

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tencioso administrativo, ao prever que os Municípios poderão transferir a competência de julgamento exclusivamente ao respectivo Estado em que se localiza. (Artigo 39, § 1.º, LC n.º 123/2006) VI . III - CONSULTAS

As consultas de caráter geral ou sobre tributo federal que digam respeito ao Simples Nacional serão solucionadas pela Secretaria da Receita Federal. Em relação às dúvidas em matéria tributária que digam respeito ao ICMS ou ISS, a consulta será respondida pelo Estado ou Município. A Secretaria da Receita Federal, as Secretarias de Finanças e Fazenda dos Estados e Municípios, deveriam prestar informações de forma integrada e consolidada sobre a legislação do Simples Nacional e, ainda, orientar a ME e EPP, sobre as condições para a opção de ingresso no Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições. Entretanto, é inadmissível pretender que o contribuinte se desloque até uma Delegacia da Receita Federal para ter atendimento presencial. Mais uma vez, é preciso usar o argumento de que o Simples Nacional não é um sistema de arrecadação da União, e sim, um sistema compartilhado de tribu-tação entre as três ordens jurídico-estatais integrantes do Estado Federal. Ou seja, o Simples Nacional não pode vir a se constituir em um novo sistema tributário federal, mas deve cingir-se a um modo de reunião das arrecadações dos entes federados.

Art. 40. As consultas relativas ao Simples Nacional serão solucionadas pela Secretaria da Receita Federal, salvo quando se referirem a tributos e contribui-ções de competência estadual ou municipal, que serão solucionadas conforme a respectiva competência tributária, na forma disciplinada pelo Comitê Gestor.

VI . IV - PROCESSO TRIBUTÁRIO E A COBRANÇA DA DÍVIDA ATIVA DO SIMPLES NACIONAL

No regime do Simples Nacional, em face dos dispositivos da LC, há deslocamento de competência para a Justiça Federal em relação à execução judicial do ISS, além de afetar o controle administrativo do crédito tributário do município, que será inscrito junto a Dívida Ativa federal. (Artigo 41, LC n.º 123/2006)

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Seção XIII

Do Processo Judicial

Art. 41. À exceção do disposto no § 3.o deste artigo, os processos relativos a tri-butos e contribuições abrangidos pelo Simples Nacional serão ajuizados em face da União, que será representada em juízo pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

§ 1.o Os Estados, Distrito Federal e Municípios prestarão auxílio à Procurado-ria-Geral da Fazenda Nacional, em relação aos tributos de sua competência, na forma a ser disciplinada por ato do Comitê Gestor.

§ 2.o Os créditos tributários oriundos da aplicação desta Lei Complementar serão apurados, inscritos em Dívida Ativa da União e cobrados judicialmente pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

§ 3.o Mediante convênio, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá delegar aos Estados e Municípios a inscrição em dívida ativa estadual e municipal e a cobrança judicial dos tributos estaduais e municipais a que se refere esta Lei Complementar.

VII - PRAZO PARA REGULAMENTAÇÃO DO SIMPLES NACIO-NAL

Cumpre alertar que a Lei Complementar n.º 123/06 não trata so-mente de aspectos tributários, que serão exclusivamente regulamentados pelo Comitê Gestor. Nesse sentido, tendo em vista que a Lei possui uma abrangência maior, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão ade-quar suas legislações, com o objetivo de regulamentar diversos outros pontos tratados na Lei, dente os quais as compras governamentais para MPE, a re-dução da burocracia nos processos licitatórios, no fornecimento de crédito, acesso à tecnologia, meio ambiente (Alvará para atividades de risco) etc. Assim, diversos dispositivos precisarão ser regulamentados. Entre-tanto, salvo melhor juízo, a partir de sua publicação, a Lei entrou em vigor, podendo, os órgãos e entidades, dos três níveis de governo, iniciar os ajustes que entenderem necessários.

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CAPÍTULO XIV

DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

Art. 77. Promulgada esta Lei Complementar, o Comitê Gestor expedirá, em 6 (seis) meses, as instruções que se fizerem necessárias à sua execução.

§ 1.º O Ministério do Trabalho e Emprego, a Secretaria da Receita Federal, a Secretaria da Receita Previdenciária, os Estados, o Distrito Federal e os Mu-nicípios deverão editar, em 1 (um) ano, as leis e demais atos necessários para assegurar o pronto e imediato tratamento jurídico diferenciado, simplificado e favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte.

§ 2.º As empresas públicas e as sociedades de economia mista integrantes da administração pública federal adotarão, no prazo previsto no § 1.º deste artigo, as providências necessárias à adaptação dos respectivos estatutos ao disposto nesta Lei Complementar.

VIII - AVANÇOS DECORRENTES DA LEI COMPLEMENTAR N.º 123/2006

VIII . I - INTEGRAÇÃO DAS ADMINISTRAÇÕES TRIBUTÁRIAS DAS TRÊS ESFERAS DE GOVERNO Com a edição da Lei Complementar n.º 123/2006, será aplicado, pela primeira vez no Brasil, o disposto no inciso XXII do artigo 37 da Constituição Federal, que disciplina forma de atuação integrada entre as administrações tributárias da União, dos Estados e dos Municípios, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais. A integração dos Fiscos, na prática, funciona como instrumento para alcançar justiça social. A atuação destes operadores de cidadania contribui para o crescimento da consciência tributária e uma sociedade mais justa. Por meio de uma administração tributária autônoma e compro-metida com a modernização de suas estruturas de arrecadação, será possível criar um modelo que não privilegie a arrecadação vulgar, que tributa aquele

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mais fácil de alcançar, mas, sim, priorize a implantação de uma política de arrecadação eficiente e de combate permanente à sonegação.

VIII . II - FIM DE BENEFÍCIOS FISCAIS QUE INCENTIVAVAM A GUERRA FISCAL

Com base no artigo 94 do ADCT, existe uma automática e expressa revogação dos Regimes Especiais de benefícios fiscais Estaduais e Munici-pais, a partir de 1.º de julho de 2007. Os entes federativos vêem se utilizando de isenções e outros bene-fícios fiscais para incentivar contribuintes a procederem à troca de domicílio tributário. Essas sistemáticas têm provocado verdadeira guerra fiscal, ofere-cendo menor tributação, desconsiderando muitas vezes a legislação tributá-ria nacional e a Lei de Responsabilidade Fiscal, gerando, ao final, prejuízos a toda a comunidade por possível renúncia de receita. Com a edição da Lei Complementar n.º 123, de 2006, a partir de 1.º de julho de 2007, perderão eficácia os regimes instituídos pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal anteriores ao Simples Nacional, po-dendo, inclusive, acarretar aumentos pontuais na carga tributária quando antes houvesse isenções gerais. Nesse contexto, revogados os atuais regimes especiais, Estados e Municípios estarão contribuindo para redução significativa da guerra fiscal entre os entes federativos.

IX - AÇÕES DA CNM E DA REPRESENTAÇÃO MUNICIPALIS-TA NO CGSN

IX . I - NECESSIDADE DE INSCRIÇÃO MUNICIPAL PARA IN-GRESSO NO SIMPLES NACIONAL

Uma das mais importantes definições em favor das municipalidades é a exigência de obtenção de inscrição municipal para a realização da opção de ingresso no Simples Nacional. A partir dessa exigência, nenhum contribuinte poderá optar pelo Simples Nacional sem a comprovação prévia de que está estabelecido no

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Município. Com isso, os controles em relação ao Cadastro Fiscal do Muni-cípio serão mais eficientes, em razão do compartilhamento de informações com a Receita Federal e Estadual, permitindo, ainda, um melhor controle sobre os empreendimentos estabelecidos no em seu território.

IX . II - REGRAS DE TRANSIÇÃO PARA SUBLIMITES ESTADU-AIS E OPÇÃO NO EXERCÍCIO DE 2007

Como a vigência do Simples Nacional deu-se a partir de 1.º de ju-lho de 2007, houve uma lacuna na Lei Complementar n.º 123, de 2006, uma vez que não havia previsão expressa de opção por esse regime de tributação nesta data. Também, o referido diploma legal estabelece em seu art. 19 que os Estados poderão optar pela aplicação de sublimites para efeito de recolhi-mento de ICMS na forma do Simples Nacional, impondo aos Municípios os mesmos sublimites. Nesse caso, também não há previsão para que a opção seja exercida no ano-calendário de 2007, produzindo efeitos nesse próprio ano. Assim, Gestores de Municípios auxiliaram a representação da CNM, junto ao Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), decidindo sobre a viabilidade de regras de transição para os contribuintes optantes pelo Sim-ples Nacional para 2007 e sobre a adoção de sublimites para o recolhimento do ICMS nos Estados e do ISS nos municípios. Prefeito e secretários municipais, nas federações regionais de repre-sentação de municípios, manifestaram-se positivamente em relação às regras de transição que seriam benéficas aos contribuintes impedidos de optarem pelo Simples Nacional, mas também seriam utilizadas com relação ao esta-belecimento dos sublimites estaduais, importantes para o equilíbrio federati-vo.

IX . III - MANUTENÇÃO DAS ATUAIS OBRIGAÇÕES ACESSÓ-RIAS PREVISTAS NO MUNICÍPIO

Os representantes municipalistas no CGSN apresentaram argumen-tos em favor da manutenção das Notas Fiscais de Serviços, conforme mo-delo aprovado e autorizado pelo Município, onde a pessoa jurídica possuir

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estabelecimento, enquanto não for aprovado documento fiscal específico para as pessoas jurídicas enquadradas como Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, optantes pelo Simples Nacional. O prestador de serviço sujeito ao ISS utilizará a Nota Fiscal de Pres-tação de Serviços, conforme modelo aprovado e autorizado pelo Município ou outra autorizada conjuntamente pelo Estado e pelo Município da sua circunscrição fiscal.

IX . IV - ALTERAÇÕES NO SISTEMA DE ARRECADAÇÃO E REPASSE

Em 18 de maio de 2007, na sala de reuniões do Gabinete da RFB/Brasília-DF, realizou-se a primeira reunião extraordinária do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), com o objetivo de avaliar as propostas de arrecadação e repasse do Simples Nacional. Frise-se que essa reunião foi provocada pela representação da Con-federação Nacional dos Municípios (CNM) no Comitê Gestor do Sim-ples Nacional (CGSN), após tomar conhecimento, por meio dos servidores municipais que atuam na Secretaria Executiva e nos Grupos Técnicos do CGSN, de que até aquela data a Receita Federal do Brasil apontava para uma única solução: - a arrecadação do Simples Nacional transitaria por den-tro da conta do Tesouro Nacional para posterior repasse na forma decendial aos Municípios, como ocorre com o FPM. Nesse contexto, a provocação de Reunião Extraordinária, por par-te da representação da CNM, foi fundamental e decisiva para as ações do Comitê Gestor. Não houvesse o alerta o Comitê Gestor somente tomaria conhecimento dessa situação quando não mais houvesse prazo hábil para construir outra solução para a arrecadação e repasse do Simples Nacional, o que poderia gerar grande prejuízo ao fluxo de caixa dos Municípios, que teriam seus recursos retidos no Tesouro Nacional. As propostas apresentadas até aquele momento não atendiam aos preceitos constitucionais e aos interesses dos Municípios, em relação ao re-passe dos recursos decorrentes do Regime Especial Unificado de Arrecada-ção de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional criado pela Lei complementar n.º 123, de 14 de dezembro de 2006. Nesse sentido, a Confederação Nacional de Municípios, por meio

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de sua representação no Comitê Gestor do Simples Nacional, adotou po-sição intransigente em defesa dos interesses dos Municípios. A posição da CNM é de que a arrecadação do ISS, propriedade dos Municípios, não deveria, sob hipótese alguma, transitar pela Conta da União. A única alter-nativa aceitável para a arrecadação do Simples Nacional é o imediato repasse ao respectivo ente federado, conforme determina o inciso III do parágrafo único do artigo 146 da Constituição da República Federativa do Brasil. A sistemática que vigorará determina que o produto da arrecadação do Simples Nacional será recolhido por uma rede arrecadadora credenciada, através de documento único de arrecadação do Simples Nacional, com có-digo de barras, para uma instituição financeira centralizadora, em uma conta aberta exclusivamente para a arrecadação do Simples Nacional. A rede bancária enviará o arquivo com os registros dos recolhimentos do Simples Nacional ao Serpro. A identificação dos valores correspondentes aos tributos do Simples Nacional quem compõem cada pagamento, incluindo a identificação do respectivo ente federativo, será realizada pela Serpro e enca-minhada para a instituição financeira centralizadora. Com essas informações, a instituição financeira centralizadora repassa-rá os valores para União, Estados, DF e Municípios, de forma imediata, evitando o trânsito desses recursos pelo Tesouro Nacional.

IX . V - DISPONIBILIZAÇÃO DE SISTEMA PARA CRÍTICA DAS EMPRESAS DO SIMPLES FEDERAL

A migração automática para ingresso no Simples Nacional das Mi-croempresas e Empresas de Pequeno Porte exigia que o contribuinte não possuísse débito junto às Fazendas Públicas Municipais, cuja exigibilidade não esteja suspensa (artigo 17, inciso V, LC n.º 123/06). Nos termos definidos pelo Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), seria preciso, ainda, verificar se a ME ou EPP está regularmente autorizada à localização e exercício de suas atividades no Município. Em maio de 2007, a Receita Federal do Brasil disponibilizou aos Estados, Distrito Federal e Municípios a relação dos contribuintes para veri-ficação quanto à regularidade para a opção pelo Simples Nacional. A Confederação Nacional dos Municípios, como representante dos municípios junto ao Comitê Gestor, recebeu uma senha para acesso ao en-dereço eletrônico mantido na Internet governamental, onde estavam 27 ar-quivos, um para cada Unidade da Federação-UF, contendo todos os CNPJ

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dos estabelecimentos (matriz e filiais) daqueles Estados, excluídas as empre-sas baixadas na Receita Federal do Brasil hoje. Nesse contexto, a Confederação Nacional de Município (CNM), na permanente busca de melhorias para as municipalidades e como inte-grante do Comitê Gestor do Simples Nacional, disponibilizou um sistema para simplificar e auxiliar os gestores municipais no processo de análise dos CNPJs das empresas de cada município, no endereço www.simplesnacional.cnm.org.br. O acesso final representou mais de 1500 municípios que utilizaram o sistema da CNM.

X - CONCLUSÃO

O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, instituído pela Lei Complementar n.º 123/2006, apresenta matéria complexa, prevendo uma nova forma de arrecadação e tributação por meio do regime especial unificado e simplificado denominado de Simples Nacio-nal. A constitucionalidade dessa Lei será alvo de grandes debates. Na prática, o “Simples Nacional” impõe a redução ou aumento de alíquotas aplicáveis ao Imposto Sobre Serviços - ISS, deixando de observar a compe-tência tributária municipal. Registre-se, ainda, que a Lei dispensa o cumprimento das normas que disciplinam a instalação de empresas, permitindo o estabelecimento em locais inadequados, se não observadas as regras previstas no Plano Diretor e no Código de Postura Municipal. Nesse contexto, o regime único de tributação fere de morte o sis-tema federativo e as autonomias financeiras locais. Trata-se de um retrocesso, relegando os Municípios à qualidade de dependentes de repasses da União. Seria muito mais lógico pretender-se lutar por um sistema federa-tivo de arrecadação que permitisse aos Municípios tomar frente das ações sociais, substituindo a União e os Estados, com muito mais competência e menor custo para o país, desde que é claro administrassem os recursos tribu-tários correspondentes aos seus encargos.

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* Professor Titular (aposentado) de Direito Administrativo da UFRGS. Advogado.

O MUNICÍPIO NA ATUALIDADE BRASILEIRA

Paulo Pasqualini*

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Resumo O artigo apresenta uma investigação relativa ao município da atu-alidade brasileira, a partir da reflexão sobre o conceito de corporação. Afir-ma-se que o conceito de corporação moderno originou-se naquele de uni-versitas, presente no Direito Romano, e que, por diversas razões, sempre foi considerado como de direito privado, porque o poder estatal era considera-do como grandeza extrajurídica. Com o advento do Estado Constitucional e do Estado de Direito, os teóricos alemães do séc. XIX, através do uso do conceito de direito subjetivo público, puderam alagar o conceito de pessoa jurídica, para abranger as pessoas jurídicas de direito público. O trabalho, por fim, inventaria a evolução constitucional brasileira no que diz respeito aos municípios.

Sumário I- Conceito e natureza II- Espécies III- Origem histórica IV- De-saparecimento temporário da personalidade do Estado e das Corporações de Direito Público V- Renascimento do Conceito de Pessoa Jurídica e de Direito Público VI- Classificação das pessoas jurídicas de Direito Público VII- Pessoas de Direito Público e de Direito Privado VIII- O município no Brasil IX- O Município na Primeira República X- O Município na Segun-da República XI- O Município na República de 1946 XII- O Município e os seus serviços públicos XIII- O Município brasileiro atual

I - CONCEITO E NATUREZA

O Município é uma corporação de Direito Público de natureza po-lítica e existência necessária. Sua sede está na Constituição Federal (art. 1º). A manifestação aparente e o conceito das atuais corporações coin-cidem com o conceito romano de “universitas”: uma associação, que no seu conjunto representa a soma de diversos associados, que são pessoas diferentes unidas em torno de um propósito comum. Contudo, a essência da nossa atual corporação não é a da “universitas” romana.

II - ESPÉCIES

As corporações existentes dividem-se segundo diversos pontos de vista. A divisão mais importante hodiernamente é a que separa a corporação de direito público da corporação de direito privado.

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Todas as corporações possuem capacidade de direito público, na medida em que direitos subjetivos públicos são reconhecidos às pessoas ju-rídicas. Da mesma forma, não se pode excluir das corporações públicas a capacidade de direito privado, de agir e de relacionar-se segundo as normas jurídicas do direito privado. As corporações modernas, como unidades jurídicas, como associa-ções dotadas de diferentes órgãos de manifestação de sua vontade, devem ser divididas, “no campo do direito público entre as corporações propriamente estatais e aquelas que resumem sua ação e a sua vida a uma comunidade, dotada de órgãos representativos. À comunidade devidamente estruturada , com seus órgãos representativos denominamos de Município.”

III - ORIGEM HISTÓRICA

O Direito Romano, com o seu conceito de “universitas” e os seus di-ferentes desenvolvimentos, nos forneceu a origem da corporação moderna.Na República romana, havia 3 tipos de personalidade jurídica:

1º) O Estado (populus Romanus);2º) As Municipalidades;3º) As Corporações privadas de várias espécies

O “p o p u 1 u s” era a mais importante de todas as corporações, mas a sua aparição era pequena no direito privado, seus direitos e obrigações sendo regulados não pelas cortes de justiça ordinárias, mas pela máquina administrativa: ele era essencialmente uma entidade pública. Na medida em que o Imperador crescia o populus diminuía em expressão. No terceiro sé-culo d.c. , o tesouro do populus, o assim chamado “aerarium”, praticamente desapareceu, e o Tesouro Imperial, denominado de “Fiscus Caesaris” veio a tomar o seu lugar (W. W. BUCKLAND, A TEXT-BOOK OF ROMAN LAW, from Augustus do Justinian, ed. 1977, Cambridge, by PETER STEIN, p. 175). A concepção exata da propriedade fiscal, isto é, da natureza do “fis-cus” , foi muito discutida. a. De acordo com MOMMSEN, o sistema da República estava ba-seado no “aerarium populi romani”, em que o magistrado ou o preposto do povo, que fazia despesas em seu nome, recebia, antes de as fazer, a soma correlativa em dinheiro contado do “Aerarium” (LE DROIT. PUBLIC RO-

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MAIN, t.V, trad. de J. Marquard, p. 290). Esse dinheiro era propriedade do “populus Romanus” , que era uma pessoa jurídica de direito público. b. Entretanto, ainda segundo THEODORE MOMMSEN, o Prin-cipado rompeu o sistema consistente em custear os encargos públicos por meio de receitas públicas: ele o substituiu por um sistema oposto, de acordo com o qual o “Princeps” pagava os encargos públicos por ele assumidos, por meio de sua fortuna privada. A caixa imperial, o fiscus caesaris, ou de acordo com a linguagem usual, o “fiscus” simplesmente, era de propriedade privada do “Princeps”. Ele era possuído e transferido ao seu sucessor, independente-mente de sua família. c. Sua propriedade é descrita algumas vezes como do “fiscus” , mas não raro como de “caesar”. Sua propriedade privada inicialmente podia ser disposta, por exemplo, por testamento, como qualquer cidadão, mas, com o passar do tempo, o herdeiro do “fiscus” passou a ser o seu sucessor, que era escolhido por meio de um instituto de direito privado, a adoção. Assim, a propriedade fiscal de todos os tipos ia para seu sucessor. Era conhecida, du-rante o primeiro Império, como propriedade do Imperador, enquanto que os funcionários imperiais eram seus agentes, e o “populus”, representado pelo Senado Romano, dividia a soberania com o Imperador. d. Há romanistas como H. MITTEIS que afirmam que essa proprie-dade passou a ser do Estado e que o “fiscus” mesmo era um estabelecimento público independente (öffentliches Anstalt) , que detinha realmente a proprie-dade do erário de CAESAR. e. Como prolongamento do Estado havia os “Municipia”. O Muni-cípio é, assim, uma criação romana. Sua etimologia vem de “munus, eris” + “capere”, isto é, assumir um encargo. Os seus habitantes eram os “Municeps, is”, que eram as pessoas que tinham seu domicílio em seu território. PA-PINIANO, no livro L do Digesto, Título I, fragmento 14, diz o seguinte: “Munícipes intelliguntur scire, quod sciant hi quibus summa reipublicae comissa est” – Traduzindo: “Os munícipes devem saber tudo quanto concerne ao Supre-mo interesse público”. O principal município era constituído pela própria cidade de Roma, o que levou MODESTINO a dizer: “Roma comunis nostra patria est” - “Roma é a nossa pátria comum” – DIGESTO, L 50, título I, fragmento 44. f. De acordo com a opinião de P. W. DUFF, professor em Cambrid-ge, “Se o Estado é a maior das Pessoas e o dispensador da personalidade, é a cidade que se constitui na mais importante unidade na história das cor-

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porações. 0 “populus” nunca se submeteu às restrições do direito privado, e o “fiscus” era tratado inicialmente, ao lado de suas anomalias publicísticas, como a propriedade de uma pessoa natural, isto é, caesar (PERSONALITY IN ROMAN PRIVATE LAW, 1938, Cambridge). Mas as cidades do Império eram, numa grande extensão, submetidas ao direito privado: “civitates privatorum loco habentur” (DIGESTO, L. 50, Tit. 16, fr. 16). Foi para elas que as idéias de propriedade corporativa e de ação de corporação foram primeiramente desenvolvidas; e elas eram o modelo sobre o qual foram conhecidas todas as pessoas jurídicas no direito ulterior. Nós não podemos nesse curto tempo fazer um exame das di-ferenças entre as várias espécies de municipalidades, as “civitas liberae et foederatae”,”coloniae” , Romanas e Latinas, “municipia” propriamente ditas e assim por diante. Essas cidades e “municipia” são importantes primariamente como um tema de Direito Constitucional e não de Direito Privado. Uma coisa é certa. Após o Edito de CARACALLA, do ano 212 d.c., não há mais distinção entre as cidades dentro do Império Romano. A expressão está no Digesto: “omnes civitates quae sub imperio populi Romani sunt” (36, L.36, Tit I, fr. 27) . As Corporações Privadas eram também denominadas de “sodalita-tes” , devotadas a cultos particulares, algumas muito antigas, outras expres-samente fundadas pelo Estado. Havia numerosas sociedades com diferentes objetos, como comércio, associações funerárias etc.. Algumas eram dotadas de personalidade jurídica, outras não.

IV - DESAPARECIMENTO TEMPORÁRIO DA PERSONALIDA-DE DO ESTADO E DAS CORPORAÇÕES DE DIREITO PÚBLI-CO

1. Com a queda do Império Romano, primeiro no Ocidente, em 476d.c., depois no Oriente, em 1453 d.c., desaparece também a noção da personalidade do Estado e dos Municípios. A noção esteve por largo tempo perdida, relegada a investigação da personalidade jurídica aos teólo-gos, que se preocupavam em investigar o mistério da Santíssima Trindade, tratando de explicar e conciliar a existência de três pessoas distintas como expressão de um único ser. Daí a noção de que a pessoa não esgota o ser. A pessoa é apenas um modo de ser face aos outros. A pessoa é uma relação.

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Manifesta-se na relação, segundo os teólogos,”uma disposição objetiva pela qual os extremos se ordenam um ao outro”. A relação é aquela linha que vincula esses extremos, ordenando-os reciprocamente. Esse conceito teo-lógico, segundo PIETRO BONFANTE, passou para o mundo jurídico e da relação das pessoas da Santíssima Trindade passou-se à definição da pes-soa jurídica como uma relação de direito (SCRITTI GIURIDICI VARII, t. III, Torino, ed. 1926, p. 472). 2. Assim, no dizer de RUY CIRNE LIMA, a pessoa jurídica é uma relação de direito, estabelecida entre duas ou mais pessoas, para a unifica-ção e, não raro, para a perpetuação,em unidade, quanto a bens comuns e atos determinados, das virtualidades jurídicas, ínsitas na capacidade de agir de cada uma (SISTEMA DE DIREITO ADMINISTRATIVO BRASI-LEIRO, t. I, P. Alegre, ed. 1953, p. 178). É o vínculo jurídico que, separada-mente, não poderia produzir o resultado a ser alcançado. 3. Por diversas razões históricas a pessoa jurídica sempre foi con-siderada como de direito privado, porque o Poder Estatal era considerado como grandeza extrajurídica (FRANCESCO FERRARA, TRATTATO DI DIRITTO CIVILE ITALIANO,Roma, edição 1921, p. 621). Com o advento do Estado Constitucional e do Estado de Direito, a aludida con-cepção tornou-se insustentável. As investigações acerca do direito subjeti-vo público, devidas a GEORG JELLINEK, alargaram o conceito de pessoa jurídica, para abranger também as pessoas jurídicas de direito público, sem as quais todo o direito seria impensável.

V - RENASCIMENTO DO CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO

1. Houve um longo debate jurídico no que concerne à existência das pessoas jurídicas de direito público. À ciência jurídica alemã é que nós devemos o renascimento do conceito na doutrina e no direito positivo. A noção de pessoa jurídica de direito público decorre de um empréstimo feito ao Direito Civil. O Estado foi qualificado como pessoa jurídica. Quem o afirma é OTTO MAYER, ao dizer que “Os professores alemães, sem a ajuda de mais ninguém, promoveram o Estado a pessoa jurídica” (“Die Deutschen Professoren haben, ohne alIe Beihilfe, den Staat zur juristischen Person ernannt” - cf. ERNST FORSTHOFF, LEHERBUCH DES VERWALTUNGSRE-CHTS, vol. I, Allgemeiner Teil, 10ª. edição, 1973, § 25, II, I. , p. 484).

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VI - CLASSIFICAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO 1. Coube a OTTO MAYER operar a classificação das pessoas jurí-dicas de direito público em corporações (öffentliche Genossenschaft”), de que constitui exemplo conspícuo a nossa ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, que é uma corporação resultante de um processo de descentrali-zação perfeita, sem tutela ou supervisão administrativa; fundações (öffentliche Stiftungen”) de que é exemplo, entre nós, a Fundação Casa de Ruy Barbosa e as diferentes universidades instituídas como fundações públicas e os esta-belecimentos públicos (öffentlichen Anstalten”) , constituídos por um conjun-to de meios materiais e pessoais, dotado de personalidade jurídica, destinado a servir, permanentemente, a uma finalidade de administração pública, de que constitui exemplo o BANCO CENTRAL, e no âmbito municipal de P. Alegre, o DMAE. 2. OTTO MAYER atribui um relevo especial ao grupo represen-tado pelas corporações públicas de natureza política e existência necessária, que denomina de comunas ou municípios (“gemeinde”) ou, ainda de cor-pos de administração própria (“Selbstverwaltungskörper) , formados de acordo com um modelo de instituição política. À diferença dos estabelecimentos e das corporações meramente ad-ministrativas -os quais estão restritos a uma determinada entrepresa pública, os Municípios constituem uma parte mais ampla da administração pública: são corpos de administração própria de um caráter geral. Os seus destinatários são os seus membros, reunidos em uma certa organização como aqueles das corporações públicas; mas a designação desses destinatários se faz de um modo totalmente diferente. Primeiramente, os Municípios estão ligados mais intimamente ao Estado: seus membros não formam senão uma fração da totalidade dos par-ticipantes do Estado. Desde logo, à diferença das pessoas jurídicas de que se falou no item l, as comunas ou Municípios supõem em seus destinatários a nacionalidade do Estado de que elas fazem parte, ou pelo menos o domicí-lio legal dos seus habitantes. São comunidades políticas (Politische Gemeinwe-sen) . A distribuição dos habitantes e dos membros do Estado em dife-rentes comunas ou Municípios é feita essencialmente de acordo com o seu

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domicílio, por meio do qual cada pessoa está fixada sobre o território de um determinado município. Nesse sentido, são denominados, com exatidão, de corporações territoriais, nas quais o território é um dado originário. Assim, enquanto que a designação dos destinatários e sua vincula-ção ao estabelecimento público personificado, é feita por meio de um ato jurídico, pelo qual o indivíduo participa desse estabelecimento; enquanto que os destinatários de uma corporação, denominados de associados, a ela se vinculam seja pela vontade direta da lei, ou por sua adesão, a designação dos membros de um Município se faz através de uma qualidade pessoal, de um status. A nacionalidade, que é essencial aos indivíduos que devem pertencer ao Município, com poder de decisão pelo voto, é, na verdade, um status , o “status civitatis”. A qualidade de membro do Município, com direito a par-ticipar das decisões políticas, é obtida por meio desse status. Além dos que desfrutam da cidadania, há os simples habitantes do Município, que gozam de direitos fundamentais, mas não têm direitos de natureza política por não possuírem a nacionalidade da nação respectiva. 0 fato do seu domicílio no território municipal é determinante para que esses indivíduos desfrutem dos direitos fundamentais, mas na qualidade de meros habitantes, que são desti-natários de todos os serviços públicos postos à disposição da comunidade. De modo que o Município tem o seu povo, assim como o Estado Federal tem o seu (OTTO MAYER, LE DROIT ADMINISTRATIF, ALLEMAND t. IV.edição 1906, Paris, p. 272/274).

VII - PESSOAS DE DIREITO PÚBLICO E DE DIREITO PRIVADO

1. WALTER JELLINEK, quando nos fala das pessoas jurídicas de direito público e as classifica em “Körperschaften” (corporações) , “stiftungen” (fundações) e “anstalten” (estabelecimentos públicos”), nos diz mais adiante que “Wichtiger als die Dreiteilung ist die Zweiteilung in juristische Personen des Privatrechts und des öffentlichen Rechts”, ou seja, “Mais importante do que a divisão tripartida é a divisão bipartida em pessoas jurídicas de direito privado e de direito público” (VERWALTUNGSRECHT; EDIÇÃO 1929, Berlin. § 8. II, 1, p. 164). 2. Dessa divisão bipartida decorrem duas corporações de natureza política, extremamente importantes: de um lado o Estado nacional (“Der STAAT”), que é a pessoa jurídica maior, que corporifica a nação; de outro

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as assim denominadas “Gebietskörperschaften” (corporações territoriais), que representam o plano mais elevado de todas as corporações de direito público (WALTER JELLINEK. ob. cit.. § 8. p. 176/177). Essas corporações territo-riais nada mais são do que os Municípios (“die Gemeinde”) , que represen-tam subdivisões importantes do Estado. Na Alemanha hodierna, há segura-mente 8 mil municípios, que representam divisões dos Estados-membros da Federação alemã. Os Estados-membros, denominados de “LÄNDERN”, constituem-se na terceira espécie de corporação política territorial. A eles é que corresponde a divisão do seu território em municípios e as normas que resguardam o Estado Republicano, democrático e social de Direito, assim como dispõe o art. 28, nºs 1 e 2) da Lei Fundamental. Já a Federação garante a conformidade da ordem constitucional dos estados com os direitos funda-mentais (art. 28, alínea (3)) da “grundgesetz”. 3. Na Alemanha, que é um Estado Federal como o nosso, a Cons-tituição outorga à administração autônoma municipal, que é subdividida em Municípios (gemeinde) e em Distritos autônomos (landkreise) proteção constitucional por meio de uma garantia formal: os Municípios devem ser regidos pela lei e todos os negócios e atividades da comunidade local devem se enquadrar dentro das leis que regularão as responsabilidades nos casos individuais. Também as corporações municipais têm dentro do quadro de suas atividades legais o dever de respeitar as normas que regulam o Direito de Administração Autônoma (GG, art. 28, alínea 2). 4. A Administração Autônoma comunal é, assim, resguardada por uma proteção objetiva, que provém do Poder Público da Federação e dos Estados-membros, por meio da respectiva legislação federal e estadual, que devem ser observadas. Por esse modo, a administração autônoma municipal, na sua particularidade e autonomia outorgadas pela Constituição, é uma instituição com capacidade de direito e de atuação dentro “da organização administrativa, distinta da administração estatal do Estado-membro, para cuja conservação e desenvolvimento, fala-se de “Garantias Institucionais”. 5. Disso decorre, ao mesmo tempo, que a garantia constitucional não significa uma garantia imóvel para o exato momento da entrada em vigor da Constituição para os Municípios existentes. Por intermédio da lei e tendo como fundamento a lei, podem os municípios dissolverem-se, assim como em outros municípios se fundirem, ou em seus limites serem alterados, desde que persista a garantia e o fato básico da autoadministração comunal e as suas características próprias não sejam desprezadas. Limites legais ou alterações especiais da situação jurídica dos Municípios não devem, por con-

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seguinte, conduzir à conseqüência de que a autonomia municipal e a plena força da sua atuação sejam perdidas e reste apenas uma falsa aparência do seu poder de atuar. 6. Em conexão com as exigências de que a Lei Fundamental se aplique à ordem constitucional dos Estados, fala-se de uma ampla garantia de que o Povo nos Distritos e nos Municípios deve ter uma representação, a qual em conjunto, deve ser imediata, livre e igual, mediante voto secreto( art. 28, Abs. 1, GrundGesetz). Com isso, fica assegurada a autonomia municipal e a administração própria das comunas, por intermédio de eleições demo-cráticas para escolher os representantes das corporações políticas municipais, que desenvolverão sua ação no sentido de administrar as tarefas municipais essenciais, com competência para legislar e exercitar o governo Municipal. 7. Os Municípios são Corporações Territoriais. Como tais, eles se distinguem de outras corporações do Direito Público, que decretam normas de autoridade para um determinado território e que exercem sua atividade tendo como regra de conduta a universalidade de sua competência den-tro do território municipal. Nesse caso, estaríamos diante de Disposições Autonômicas, que são fonte derivadas do Direito. Soberania territorial, ao contrário, significa que o poder soberano do município sobre o respectivo território compreende não apenas o território, mas todos os seus habitantes (PETER BADURA, STAATSRECHT, edição 1986, München, p. 87, letra D).

VIII - O MUNICÍPIO NO BRASIL

1. Ao tempo do Império, os municípios não eram considerados como pessoas de natureza política e existência necessária, como hodierna-mente estão definidos pela nossa Constituição Federal de 3 de outubro de 1988. 2. Entretanto, já naquele tempo, havia um grande jurisconsulto, JOSÉ ANTÔNIO PIMENTA BUENO, o Marquês de S. Vicente, que visu-alizou, com inteligência , o grande futuro que estaria reservado aos municí-pios a partir da República, com expansões e retrações, que culminaram no grande papel que a Constituição de 1988 lhes atribuiu. 3. PIMENTA BUENO nos dizia, com aquela acuidade que o carac-terizava, que o Município “É a primeira pátria em que o cidadão toma parte nos negócios públicos, o seu primeiro amor” (DIREITO PÚBLICO BRA-

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SILEIRO E ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO,edição Se-nado Federal, 1978, Capítulo VI, § 29, p. 316). 4. PIMENTA BUENO também era o jurisconsulto que atribuía à legislação administrativa municipal o caráter de verdadeiras leis e não de meras disposições autonômicas.Dizia ele: “450. A instituição municipal tem duas partes distintas: a primeira é a que delibera, que vota, que examina e re-cebe as contas, é o conselho e como que o poder legislativo local; a segunda a que executa, que presta as contas, é uma autoridade que emana do poder administrativo. Isto não só é uma conseqüência do princípio da monarquia representativa, cuja imagem convém representar desde os municípios, e en-tranhar em todos os hábitos sociais, mas é mesmo uma conseqüência natural das cousas. Para consultar e deliberar a pluralidade, para executar a unidade” (Ob. cit. , § 4. nº 450, p. 317). Dizemos nós, para consultar e deliberar um poder legislativo; para executar, a unidade do poder executivo. Assumindo essa posição, PIMENTA BUENO se colocava em contraposição direta com os que diziam não ser a legislação administrativa municipal constituída de verdadeiras leis, mas representar meras disposições autonômicas.

IX - O MUNICÍPIO NA PRIMEIRA REPÚBLICA 1. Com a proclamação da República a Constituição de 24 de fe-vereiro de 1891, cuja redação em sua maior parte é de RUY BARBOSA, definiu um Título III especial para os Municípios, estipulando em seu artigo 68 o seguinte: “ Art. 68 - Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a auto-nomia dos municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”. 2. Pela primeira vez, surge, em nosso direito, o conceito de “peculiar interesse” do Município, como fundamento inquestionável de sua autono-mia. Tudo quanto respeitar ao peculiar interesse municipal, que se expressa sobretudo na organização de seus serviços públicos essenciais, deve ser deci-dido de forma autônoma pelo próprio Município. 3. RUY BARBOSA; defendendo a autonomia municipal, assim se expressava: “A autonomia dos municípios é a necessidade capital na educação democrá-tica do país. A Constituição Federal dedicou-lhe entre os seus preceitos car-deais, um lugar de honra. Mas, agora mesmo, estamos tendo, em Santa Cata-rina , o espetáculo de inanidade do regime municipal, numa situação, em que

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basta a mais ligeira menção da vontade do Governo, agitando os seus agentes, para resolver, e desorganizar em vastas regiões, os municípios. dispersando-lhes os representantes eletivos, como folhas sacudidas de uma árvore morta”. COMENTÁRIOS À CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, t. V, p. 75. edição de 1934, coligidos e ordenados por HOMERO PIRES). 4. Na afirmação de RUY BARBOSA está presente o contraste en-tre os ideais com que foi redigida a Constituição republicana de 1891 e a prática política dos Estados-membros da Federação, que se transformaram em verdadeiros feudos na primeira República, com partidos estaduais, com o predomínio das oligarquias e dos presidentes dos Estados, tudo levando ao caminho inexorável da Revolução de 1930.

X - O MUNICÍPIO NA SEGUNDA REPÚBLICA 1. Em 16 de julho de 1934 foi promulgada por uma Assembléia Nacional Constituinte, a terceira Constituição do país e a segunda da Repú-blica. 2. Essa Constituição Federal dizia, em seu artigo 13 que “Os Muni-cípios serão organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e especialmente: I. a eletividade dos Prefeitos e dos Vereadores da Câmara Municipal, podendo aquele ser eleito por esta; II. a decretação dos seus impostos e taxas, e a arrecadação e aplicação de suas renda; III. a organização dos serviços de sua competência. 3. Nessa Constituição havia um dispositivo que dificultava seria-mente o desenvolvimento de uma política tributária de âmbito nacional, com normas uniformes de Direito Tributário, que estava na competência outorgada aos Municípios para decretar seus próprios impostos e taxas. Pode-se afirmar que essa disposição, demasiado liberal, contribuiu, em parte, para o advento da Constituição outorgada de 10 de novembro de 1937, que definiu no art. 23 , § 29, o imposto de indústrias e profissões, a ser dividido pelos municípios com o Estado, em partes iguais e que estipulou, em seu artigo 28 , o elenco dos impostos municipais.

XI - O MUNICÍPIO NA REPÚBLICA DE 1946

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1. A nova Constituição Federal de 18 de setembro de 1946, resta-beleceu a autonomia municipal pela eleição do Prefeito e dos vereadores e pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse (art. 28). Mas , no artigo 29, novamente foram estabelecidos, em caráter uniforme para todo o país, os tributos que o Município poderia lançar e cobrar. 2. Indúbio que essa providência de estabelecer um “numerus clausus” para os impostos municipais é indispensável dentro de uma Federação, sob pena de inviabilizar toda e qualquer política financeira. Provém dessa consi-deração as restrições que foram estabelecidas também na Constituição de 15 de março de 1967 e as que constam do artigo 156 da Constituição Federal de 1988. Essa orientação veio para permanecer.

XII - O MUNICÍPIO E OS SEUS SERVIÇOS PÚBLICOS 1. O serviço público é todo serviço existencial relativamente à cole-tividade, ou pelo menos, assim havido em um momento dado, que, por esse motivo deve ser prestado direta ou indiretamente à coletividade pela União, pelos Estados-membros, pelo Distrito federal, ou pelos Municípios. O conceito de existencialidade do serviço público liga-o ao concei-to de bem comum e de utilidade pública. 2. Na verdade, a definição que já oferecemos no início desta re-flexão serve perfeitamente para delinear os contornos do Serviço Público. Serviço público é todo o serviço existencial relativamente à coletividade. Existencial quer dizer essencial, quer significar indispensável à promoção do bem individual e do bem coletivo. Liga-se o conceito de existencial ao de utilidade pública, que é a expressão orgânica do bem comum, a definição deste, quanto aos meios e processos capazes de realizá-lo. O bem comum é mais do que a simples multiplicação aritmética, pelo número de indivíduos da coletividade, do bem de cada qual. Sujeito a que o bem comum se pro-ponha, somente pode ser o homem - o indivíduo, na sociedade, enquanto componente dela, ou seja, enquanto parte no todo, interessado como tal na conservação deste. À sua vez, e ainda como conseqüência, a distinção entre o bem individual e o bem comum somente pode estar em que o primeiro vai referido ao indivíduo sobre si, ao passo que o último se lhe refere, enquanto parte no todo, cuja conservação lhe é um bem, em si mesma: “alia est ratio

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boni communis et boni singularis, sicut alia est ratio totius et partis” advertia SAN-TO TOMÁS DE AQUINO ( SUMMA THEOLOGICA .IIa, Iae, quolibet XXVI, art. 6). 3. A obrigação do Poder Público de organizar e fazer funcionar o serviço público, como um dever imperativo, segundo GASTON JEZE está enunciada implicitamente no preâmbulo da Constituição Americana, no qual esta se diz adotada “in order to...establish justice, insure domestic tranquillity, provide for the common defence, promote the general welfare, and secure the blessings of liberty to ourselves and our posterity” (LES PRINCIPES GÉNÉRAUX DU DROIT ADMINISTRATIF, t. III, Paris, 1926, cap. I, sec. I, p. 5).

XIII - O MUNICÍPIO BRASILEIRO ATUAL

1- Hodiernamente, o Município brasileiro, em primeiro lugar, pela primeira vez, faz parte da organização política da Federação, de acordo com o art. 1º da Constituição Federal de 1988, cujo diz o seguinte: “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união in-dissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Esta-do Democrático de Direito e tem como fundamentos:” O Município brasileiro passou a ser parte da União indissolúvel da Federação. Antigamente o Município representava, como na Alemanha, uma subdivisão política dos Estados-membros. Agora, o Município é uma entidade de natureza política e existência verdadeiramente necessária, pois não se pode mais pensar a Federação, sem que nela estejam incluídos os Mu-nicípios.

2- Competências Comuns. A Constituição enumera uma série de atividades que são comuns à União, aos Estados ao Distrito Federal e aos Municípios. Essas atividades, geralmente, já são serviços públicos consagrados, que as entidades federadas se unem e se complementam para melhor prestá-las. Estão nesse caso: 1º) cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadores de deficiência (CF, art. 23, II) ; 2º) proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histó-

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rico, artístico e cultural, os monumentos, as “paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (CF, art. 23, III) ; 3º) impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico e cultural (CF, art. 23,IV); 4º) proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência (CF, art. 23, V); 5º) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (CF, art. 23,VI) ; 6º) preservar as florestas, a fauna e a flora (art. 23, VII); 7º) fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar (CF. art. 23. VIII) ; 8º) promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (CF. art. 23. IX) ; 9º) combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (CF, art. 23. X); 10º) registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (CF, art. 23, XI) ; 11º) estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito (CF, art. 23, XII).

3- Grande parte dessas competências comuns já vinham sendo ob-jeto de preocupação dos Municípios mais desenvolvidos. O Município de Porto Alegre, em matéria de saúde pública , presta relevantes serviços por meio de seu Hospital de Pronto Socorro, que já tem mais de 60 anos (CF, art.30, inciso VII). Também em matéria de ensino fundamental, o nosso Mu-nicípio oferece condições adequadas, por meio de inúmeras escolas, espalha-das por toda a cidade. O DMAE é uma autarquia que cuida do tratamento e da distribuição da água potável, com expressão crescente no setor de esgotos. O Município se preocupa com a preservação de bens de valor histórico e artístico. O Município também dispõe, na sua administração indireta da EPTC, que é uma empresa pública que cuida dos transportes coletivos e de tudo quanto se relaciona ao trânsito nas ruas. O Município, há muitos e muitos anos é proprietário da Cia. Carris Portoalegrense, que presta serviço de transporte coletivo de primeira grandeza (CF, art. 30 inciso V). Enfim, são muitos os setores em que serviços públicos que dizem com o peculiar inte-resse do Município são prestados continuamente pelo Município de Porto Alegre. Nesse particular, vale recordar a afirmação perene de LÉON DU-

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GUIT, que dizia: “La continuité est un des caractères essentiels du service public.” - “A continuidade é um dos caracteres essenciais do serviço público.’’ Nesse particular, podemos dizer que essa noção tem sido objeto da maior atenção das diferentes administrações públicas, encabeçadas por diversos Prefeitos Municipais, em Porto Alegre. O fundamento de toda a presente exposição sobre o Município como Corporação de natureza política e existência ne-cessária está na afirmação do jurisconsulto PAULUS: “Libertas inaestimabilis res est”. “A liberdade é um bem inestimável” (Digesto, Livro L Tit. XVII – De diversis regulis – fragmento 106).

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123 O presente artigo insere-se em projeto de pesquisa em andamento, financiada pelo CNPq, com a finalidade de mapear e analisar o processo de municipalização da Segurança Pública no Rio Grande do Sul.*124 Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da PUCRS. *125 Mestrando em Direito UFSC.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE SEGURANÇA NO RIO GRANDE DO SUL 123

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo 124*

Eduardo Pazinato da Cunha 125**

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Resumo Na última década, importantes experiências de políticas de segurança passaram a ocorrer na esfera municipal. Vários são os municípios que, nesse últi-mo período, têm assumido responsabilidades na área, produzindo diagnósticos, desenvolvendo planos municipais de segurança urbana, formando e/ou qua-lificando suas guardas municipais, criando conselhos municipais de segurança, etc. Tais experiências são, muitas vezes, diversas e se orientam por princípios e expectativas também muito variados, permanecendo, no geral, pouco estudadas e conhecidas. Pretende-se com a presente pesquisa realizar um levantamento bi-bliográfico das bases legais e teóricas para esse movimento, assim como verificar as políticas que têm sido implementadas em Porto Alegre e em algumas cidades da região metropolitana (São Leopoldo, Novo Hamburgo, Cachoeirinha, Al-vorada, Gravataí, Esteio, Sapucaia do Sul, Guaíba), com base nessa tendência de municipalização. Partimos da hipótese de que os municípios podem cumprir um papel destacado na redução das taxas criminais e da violência de maneira geral e, particularmente, das taxas de homicídio. A experiência internacional tem demonstrado que o controle de determinados agenciamentos ou facilita-dores para o crime e a violência pode produzir resultados muito importantes e, muito provavelmente, mais amplos e duradouros do que os eventuais resultados produzidos a partir dos mecanismos tradicionais de controle punitivo (polícias, tribunais, prisões).

PALAVRAS-CHAVE: Segurança Pública; Municipalização; Políticas Públicas de Segurança.

Sumário I- Introdução II- Bases Teóricas II.I- A Escola De Chicago III- As pro-postas do Realismo de Esquerda IV- Cidade, Participação Popular E Políticas Públicas De Segurança V- Conclusões Preliminares

I- INTRODUÇÃO

O tema da segurança pública tem despertado grande interesse da sociedade e ocupado lugar de destaque na agenda política nacional e inter-nacional. O aumento objetivo dos índices de criminalidade, o crescimento do sentimento de insegurança pública e a percepção coletiva de que o en-frentamento da criminalidade e o controle da violência são responsabilidades de todas as instâncias governamentais (federal, estadual e municipal) apresen-tam-se como hipóteses plausíveis para explicar a centralidade conquistada por essa temática no país nos últimos anos. Para Túlio Kahn e André Zanetic (2005, p.5),

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Não é difícil compreender porque simultaneamente empresas privadas, go-verno federal e municipais começaram a intervir de forma mais intensa na segurança pública: 1) a criminalidade cresceu rapidamente em todo o país nos anos 80, em especial os homicídios cuja taxa passou de 11 para 27 ocorrências por 100 mil habitantes entre 1980 e 2000 (Fonte: Datasus); 2) em paralelo, houve um crescimento da sensação de insegurança, que colocou o crime entre as principais preocupações da população, ao lado do desemprego; 3) junte-se a isso o fato de que a população culpa a todos os níveis de governo pelo problema e não apenas ao governo estadual, detentor das polícias civil e militar.

Observe-se que, a despeito do modelo de policiamento adotado no Brasil e das limitações impostas por uma interpretação literal do texto constitucional , importantes experiências de políticas de segurança têm sido implementadas pelas administrações municipais na última década. Vários são os municípios que, nesse último período, têm assumido responsabilidades na área, produzindo diagnósticos, desenvolvendo planos municipais de segu-rança urbana, formando e/ou qualificando suas guardas municipais, criando conselhos municipais de segurança, etc. Pode-se afirmar que as experiências de políticas públicas de segu-rança nos municípios brasileiros tendem a traduzir um debate mais amplo sobre o tema e, a materializar dois modelos fortes: o primeiro, enfatizando iniciativas repressivas e o segundo, medidas de prevenção. Não se trata aqui de introduzir uma tipologia absolutamente dicotômica entre prevenção e repressão, mesmo porque determinadas iniciativas repressivas podem cum-prir um papel preventivo. O que importa é identificar duas racionalidades específicas, cujos pólos hegemônicos insinuam, também, dois paradigmas. Não obstante, é importante registrar que essas experiências de mu-nicipalização da segurança pública são, não raro, diversas, orientando-se por princípios e expectativas também muito variados e permanecendo, no geral, pouco estudadas e conhecidas. Parte-se do pressuposto, todavia, de que tanto a descentralização político-administrativa promovida pela Constituição Fe-deral de 1988 quanto a emergência de novas possibilidades de compreensão e tratamento dos conflitos sociais para além do modelo punitivo estabele-ceram as bases para a construção de um novo modelo de segurança pública,

126 O art. 144 da CF não veda aos municípios a possibilidade de desenvolver políticas de segurança pública. Não obstante, ao estabelecer que a segurança pública é um serviço prestado pelas polícias, e somente por elas, discriminando estas forças policiais (art. 144, incisos I a V, CF) e, ainda, estabelecendo que as guardas municipais só deveriam proteger os bens, serviços e instalações do município (art. 144, § 8º, CF), o texto relegou as cidades a um papel secundário no âmbito das responsabi-lidades sobre segurança pública.

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menos centrado no papel repressivo e reativo do Direito Penal e do sistema de justiça criminal (judiciário, polícias e prisões), e mais na construção de alternativas democráticas e dialogais para a gestão e mediação dos conflitos e da violência. Nesse contexto, acredita-se que os municípios podem cumprir um papel destacado na redução das taxas criminais e da violência, de maneira geral e, particularmente, das taxas de homicídio. A experiência internacional tem demonstrado que o controle de determinados agenciamentos ou facili-tadores do crime e da violência podem produzir resultados muito importan-tes e, muito provavelmente, mais amplos e duradouros do que os eventuais resultados produzidos a partir dos mecanismos tradicionais de segurança e controle punitivo. Tendo o apoio do CNPq para o desenvolvimento da pesquisa, com conclusão prevista para o ano de 2008, o trabalho está sendo desenvolvido mediante os seguintes recursos metodológicos de coleta de dados:

i Pesquisa bibliográfica: levantamento de material bibliográfico, em fontes nacionais e internacionais, sobre o tema da municipalização da gestão da segurança pública, com um recorte inter e transdisciplinar, con-siderando as disciplinas de Criminologia, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Sociologia, Antropologia, Ciência Política.

i Coleta de documentos: coleta de material produzido pelas se-cretarias municipais de segurança urbana e/ou afins de Porto Alegre e de alguns municípios da região metropolitana (São Leopoldo, Novo Hambur-go, Cachoeirinha, Alvorada, Gravataí, Esteio, Sapucaia do Sul, Guaíba), nos quais estejam explicitadas as políticas do município no âmbito do controle da criminalidade e da violência urbanas. Num segundo momento serão co-letados também documentos nos municípios de Canoas, Caxias, Pelotas e Santa Maria, que juntamente com Porto Alegre se constituem nas cidades com maior número de habitantes no estado do Rio Grande do Sul.

i Realização de entrevistas com os principais gestores públicos municipais responsáveis pela área da segurança nas cidades pesquisadas, em especial: o secretário municipal de segurança urbana e/ou afim, o presidente do conselho municipal de segurança, e o chefe da guarda municipal.

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II- BASES TEÓRICAS

II.I- A ESCOLA DE CHICAGO

A idéia de que os mecanismos de controle social informal seriam mais eficazes para a redução da criminalidade do que o sistema penal não é nova. Foi no âmbito da Escola de Chicago que essa perspectiva surge e se desenvolve, dando origem aos Chicago Area Projects, nas primeiras décadas do século XX. Caracterizada pelo empirismo e pela finalidade prática de oferecer um diagnóstico confiável sobre os problemas sociais da realidade norte-ame-ricana de seu tempo, a Ecologia Criminal ficou conhecida como a primeira grande teoria sociológica do crime. Elaborada e difundida a partir da Uni-versidade de Chicago, tendo seu apogeu no período entre-guerras, a sua temática é a análise do desenvolvimento urbano, da moderna civilização in-dustrial, e a morfologia da criminalidade nesse novo contexto. H. Mannheim refere-se à Ecologia Criminal dizendo que (...) do que aqui tratamos é da importância de certos aspectos da ecologia humana ou social como a den-sidade e mobilidade populacional, em particular as migrações, a urbanização e o urbanismo, e o problema da ‘área delinqüente (MANNHEIM, 1985, p. 812). Para compreender o enfoque da Escola de Chicago, basta lembrar que a cidade de Chicago tinha, em 1860, cento e dez mil habitantes, e em 1910, cinqüenta anos depois, já contava com cerca de dois milhões de ha-bitantes, com todas as conseqüências daí decorrentes para a ordem social. O mundo da cidade surge em radical contraste com a comunidade rural tra-dicional, fenômeno também vivenciado na Europa e que já havia aparecido pouco antes, no final do século XIX, nas proposições teóricas de Durkheim (solidariedade mecânica/solidariedade orgânica) e de Tönnies (comunida-de/sociedade). A grande cidade é vista como unidade ecológica, dentro da qual poderiam ser identificadas as zonas ou áreas onde se concentra a crimina-lidade (delinquency areas). O efeito criminógeno dos aglomerados urbanos é explicado pelos conceitos de desorganização e contágio, bem como pelo debilitamento do controle social nesses centros. A deterioração dos “grupos primários” (família), a modificação qualitativa das relações interpessoais, que se tornam superficiais, a alta mobilidade e a conseqüente perda de raízes no lugar de residência, a crise dos valores tradicionais e familiares, a superpo-

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pulação, a tentadora proximidade às áreas comerciais e industriais onde se acumula a riqueza, criam um meio desorganizado e criminógeno, no qual se enfraquecem os mecanismos de controle social (García-Pablos, 1997, p. 246). Park, depois de uma carreira como jornalista, chegou a Chicago em 1915, tendo antes sido aluno de Windelband e Simmel. A orientação ecoló-gica nos estudos urbanos tem como marco fundador seu artigo “A cidade: propostas de pesquisa sobre o comportamento humano em meio urbano”, publicado em 1916. Sua obra e a dos demais integrantes da Escola tem o cla-ro objetivo de romper com o passado sócio-filosófico puramente especulati-vo da sociologia européia, seguindo a orientação do pragmatismo de Pierce, Dewey e James. O resultado é uma sociologia que atribui a si mesma a missão de elaborar “tecnologias sociais”, capazes de resolver as questões que geram as suas problemáticas: o tratamento dos fenômenos de marginalidade, de criminalidade e de segregação social, objeto dos Urban Area Projects. Fazendo a análise da implementação dos Chicago Area Projects, Davi de Paiva Costa Tangerino (2005, p. 98/99), destaca os princípios elaborados pela Escola de Chicago para o enfrentamento dos problemas sociais:

Tal filosofia pode ser traduzida nos seguintes princípios: (1) necessidade do desenvolvimento da comunidade como um todo e não apenas de tal ou qual grupo social. Trata-se de verdadeiro axioma para Shaw: na medida em que as vizinhanças encerram em si todos os elementos necessários para exercer a con-tento o controle social informal, a intervenção no sentido de prevenir ou tratar um problema social deve ser feita envolvendo a comunidade como um todo, sob pena de se transformar em uma intervenção inútil ou ainda ilegítima, sem participação social local. (...) Um segundo princípio, (2), reza que a autonomia dos verdadeiros residentes locais no planejamento e na execução das tarefas de qualquer programa em contraste com as instituições tradicionais que impõem uma agenda externa por meio de pessoas ou que residem ou que representam interesses externos à comunidade; (3) ênfase no treinamento e na utilização de líderes locais, da vizinhança; (4) utilização ao máximo das instituições já localmente constituídas, particularmente daqueles grupos sociais locais tais como igrejas, sociedades e clubes; (5) as atividades do programa devem ser entendidas primariamente como um pretexto para alistar a participação efetiva dos mo-radores locais em um esforço comunitário construtivo e criando e cristalizando um sentimento de vizinhança em relação à tarefa de promover o bem estar das crianças e a melhoria social e física da comunidade como um todo. Trata-se

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efetivamente do princípio do controle social informal no sentido de que há uma mobilização coletiva no sentido de impor um conjunto de valores e de condutas naquela região com vistas à melhoria da mesma. O autor menciona um sexto princípio, o de avaliação, fundamental para balizar cientificamente eventuais conquistas do Programa.

III- AS PROPOSTAS DO REALISMO DE ESQUERDA

A partir dos anos 80, com o aumento da criminalidade e o fortale-cimento dos movimentos de lei e ordem, a criminologia crítica, que havia se desenvolvido desde os anos 60 a partir das perspectivas do labeling approach e do marxismo, passa por uma situação de confusão, divisão e desânimo (LARRAURI, 1991, p. 192). A confusão se deveu ao surgimento de novos movimentos sociais (ecologistas, feministas, pacifistas, anti-racistas), defensores de uma “nova moral” e da utilização do direito penal para a sua defesa. A divisão foi fruto do aparecimento de tendências distintas no interior da criminologia crítica, entre as quais se destaca o realismo de esquerda na Inglaterra, o movimen-to abolicionista nos países do norte da Europa e o minimalismo penal na Itália, posteriormente redefinido como Garantismo. O desânimo se deveu ao abandono de uma perspectiva mais ampla de transformação social, com a falência dos regimes de socialismo real, e as ambigüidades e dificuldades enfrentadas pelas experiências alternativas à prisão e ao sistema penal. O Realismo de Esquerda vai se destacar por defender uma revalori-zação do direito à segurança, com programas de orientação a setores sociais mais vulneráveis e vitimizados, programas de proteção para testemunhas, aproximação da polícia em relação à comunidade, colocando as políticas de prevenção ao delito no lugar da ênfase na repressão, e propondo uma atuação mais efetiva dos mecanismos de controle estatais sobre determinadas esferas da criminalidade, como a ambiental, a doméstica, a de “colarinho branco”, e os delitos cometidos por organizações criminosas. Para o Realismo de Esquerda, uma crítica da teoria criminológica existente deveria abranger todos os aspectos do processo criminal (normas, controle, criminosos e vítimas), tendendo mais a uma síntese do que sim-plesmente a uma oposição às demais teorias. Nesse sentido, o Realismo de Esquerda dedica atenção às formas da criminalidade, ao contexto social do

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crime, ao desenvolvimento da criminalidade temporal e espacialmente. Quanto às formas da criminalidade, o Realismo de Esquerda destaca a interação entre a polícia e demais agências de controle social, o público, o delinqüente e a vítima. O pressuposto é que as taxas de criminalidade são geradas não apenas pela atuação destes quatro elementos, mas pelos relacio-namentos sociais entre eles. Assim, é o relacionamento entre a polícia e o público que determina a eficácia do policiamento; é a relação entre a vítima e o agressor que determina o impacto do crime; é a relação entre o Estado e o agressor que influencia as taxas de reincidência, etc. As taxas de crimi-nalidade são um produto, portanto, de mudanças no número de potenciais delinqüentes, de potenciais vítimas, nos níveis de controle exercidos pelas agências estatais e pelo público (Young, 1997, p. 104). O Realismo de Esquerda sustenta que as taxas de criminalidade são também o produto de duas dimensões sociais, não necessariamente co-variantes: mudanças no comportamento individual e na atuação das forças de controle social. A análise de ambas as dimensões permite definir o que constitui um comportamento intolerável e a habilidade do controle social para atuar sobre este comportamento a cada momento. Nessa perspectiva, o crime é visto como uma série de relaciona-mentos, envolvendo tanto cooperação quanto coerção. A trajetória do delito através do tempo deve portanto levar em conta (1) as causas remotas do crime; (2) o contexto moral que leva à opção pelo comportamento crimi-nal; (3) a situação de cometimento do crime; (4) a detecção do crime; (5) a resposta do transgressor; (6) a resposta da vítima. As carreiras criminais são construídas através da interação da posição estrutural na qual se encontra o transgressor e das respostas administrativas para as suas transgressões. O crime é uma atividade que envolve uma escolha moral em um determinado momento e em determinadas circunstâncias. Não é nem totalmente determinado social ou biologicamente, como crê o positivismo, nem é puramente uma escolha racional, como acreditavam os representantes da Escola Clássica. É um ato moral que acontece sempre dentro de um determinado contexto. A dimensão espacial diz respeito ao espaço material no qual o even-to criminal ocorre. Todo crime tem uma dimensão espacial, uma geografia, e assim como um crime específico envolve diferentes estruturas de relacio-namento, também envolve estruturas espaciais específicas. O Realismo de Esquerda propõe que o controle da criminalidade deve envolver intervenções em todos os pontos do ‘quadro’ criminal, o que

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significa um melhor policiamento, um maior envolvimento da comunidade, proteção e fortalecimento da vítima, e tratamento dos problemas estrutu-rais que causam a transgressão. Porém há uma clara prioridade no nível da prevenção ao crime sobre as ações que tem lugar depois do crime ter sido cometido. Embora reconheça que não há uma mono-causalidade para o crime, o Realismo de Esquerda reconhece a importância do que chama privação relativa (desemprego, falta de escola, ambiente familiar degradado, etc.), que não é exclusiva das classes trabalhadoras, ocorrendo em toda a estrutura so-cial. A privação relativa em certas condições é vista como principal causa da criminalidade, e ocorre quando uma pessoa se depara com o que entende ser uma injustiça em termos de distribuição de riqueza e poder, e opta por modificar esta situação através de uma alternativa individualista. O Realismo de Esquerda não rejeita a existência de correlações en-tre a biologia e o crime, que não podem ser desconsideradas. O crime, assim como outras formas de comportamento, envolve sempre uma escolha moral em certas circunstâncias restritivas, e entre estas últimas estão as característi-cas orgânicas (força, composição hormonal, etc.) do indivíduo. Centrando o seu foco nas realidades vividas, o Realismo de Es-querda recupera a teoria das subculturas delinqüentes, ao abordar a forma como grupos específicos de pessoas enfrentam seus problemas materiais, e se estruturam em termos de idade, gênero, classe, raça e espacialidade, isto é, parâmetros estruturais que dão forma às subculturas. O crime é visto como uma forma de adaptação subcultural que ocorre quando determinadas cir-cunstâncias materiais bloqueiam as aspirações culturais, e alternativas não criminais estão ausentes ou são menos atrativas. Da mesma forma, a ansiedade e o medo da criminalidade é um as-pecto de subculturas particulares que possuem diferentes graus de tolerância à desordem social. Em geral, as pessoas mais vulneráveis não apenas correm um maior risco de serem vítimas de crimes, mas também sofrem um impac-to maior da criminalidade por sua carência de recursos. O Realismo de Esquerda sustenta que quando as agências de con-trole social como a polícia e os tribunais atuam sem considerar o senso de justiça, priorizando a ordem, com prisões arbitrárias e penas desproporcio-nais aos crimes, a tendência é tornar mais difícil a manutenção da ordem, causando o colapso da comunidade e elevando os níveis de criminalidade. Nessa perspectiva, o controle do crime envolveria intervenções em todos os níveis: nas causas sociais da criminalidade, no controle social exercido pela

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comunidade e pelas agências formais, e na situação das vítimas. Bons em-pregos com perspectiva de futuro, atividades comunitárias que promovam o senso de coesão e pertencimento, redução das diferenças injustas, criam uma sociedade menos injusta e criminógena. Para determinados crimes, a rede de controle social poderia ser dras-ticamente reduzida, como no caso dos consumidores de drogas, delinqüen-tes juvenis, etc., enquanto que para outros delitos deveria haver uma maior preocupação punitiva, como nos crimes corporativos, poluição industrial, racismo, abuso de crianças e violência doméstica.

IV- CIDADE, PARTICIPAÇÃO POPULAR E POLÍTICAS PÚBLI-CAS DE SEGURANÇA No contexto contemporâneo, os novos contornos dos espaços pú-blicos de participação sócio-política extrapolaram os estreitos limites estatais. O Estado, embora continue operando como instância política privilegiada, deixa de possuir o monopólio da identificação dos problemas sociais e da eleição das prioridades dos investimentos em políticas públicas. A gestão dos conflitos sociais tem levado em algumas situações ao estabelecimento de um modelo político participativo, no qual os canais ins-titucionais de deliberação coletiva (dimensão retórica e argumentativa) são abertos às experiências informais de comunicação e de aprendizagem sur-gidas no espaço heterogêneo do social. A moderna dicotomia entre esfera pública estatal, caracterizada por um sujeito político universal e homogêneo, e esfera privada, como espaço apolítico das particularidades e diferenças, passa a ser questionada. Dito de outro modo, as pautas e reivindicações dos movimentos sociais ultrapassaram os limites da esfera pública estatal, atin-gindo as práticas sociais autoritárias exercidas no bojo da esfera privada da sociedade civil, as quais, justamente por estarem sob o manto do privado, permaneciam imunes aos instrumentos de proteção de direitos por parte do Estado. Com a ressignificação do conceito de poder local e a emergência, ou o alargamento do conceito de esfera pública, no final do século XX, a partir da atuação de diversos grupos organizados (associações de classe, or-ganizações não-governamentais, movimentos sociais, representantes estatais, etc.), precipitou-se a incorporação ao debate público de questões até então tratadas somente no âmbito privado (vide a violência doméstica).

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Essas substanciais alterações do papel político desempenhado pelo Estado na sua relação com a sociedade criaram as condições para o surgi-mento do conceito de governança, que alterou sensivelmente o padrão e o modo de pensar a gestão pública, antes restrita aos representantes dos pode-res públicos. Note-se que a vitalidade desse processo de ampliação da esfera pú-blica não decorre da identificação coletiva com determinado espaço políti-co, como o estatal, mas sim, da proliferação extra-estatal de arenas públicas em que é facultado aos cidadãos debater ou publicizar seus conflitos. Para Dias Neto,

Quanto mais amplos, inclusivos e igualitários forem os canais de comunica-ção e deliberação política, mais favoráveis serão as condições para o enfrentamen-to pacífico e racional dos conflitos sociais. A exclusão de dissidências, a censura de idéias ou temas, a ocultação de diferenças ou qualquer forma de entrave no acesso às esferas públicas representam falsas garantias de estabilidade, que mas-caram a complexidade social e impedem o enfrentamento racional e transparente dos conflitos, criando terreno fértil para que estes venham à tona sob a forma de violência e intolerância. (DIAS NETO, 2005, p. 42)

O desafio advindo desse processo consiste na articulação do maior nível de participação com os critérios de eficiência e eficácia reclamados para uma maior racionalidade na gestão e destinação dos recursos públicos por parte do poder local. A superveniência do conceito de governança local, pensado, a princípio, em termos globais, nacionais e regionais, tem rela-ção com um sistema de governo em que a inclusão de novos atores sociais torna-se fundamental. Trata-se de erigir um sistema político-administrativo de gestão pública compartilhada, capaz de envolver diversos atores sociais (ONG’s, movimentos sociais, entidades privadas, órgãos públicos estatais, en-tre outros). Decerto, a simples construção de espaços públicos democráticos de discussão e participação da população na eleição e no controle das políticas públicas prioritárias para o enfrentamento da criminalidade e da violência não assegura, de per si, a efetividade de sua implementação. Nesse sentido, pondera Avritzer que,

Ao nível da esfera pública, a racionalidade do processo participativo não leva à constituição imediata de propostas administrativas, mas conduz a um processo

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democrático de discussão. Diferentes atores construindo identidades em público, estabelecendo novas formas de solidariedade e possibilitando a superação de uma condição privada de dominação constituem os elementos centrais da noção de esfera pública. (AVRITZER, 1999, p. 32)

A deliberação pública, ou o exercício da democracia deliberativa, como assevera Boaventura de Sousa Santos, subsidia o entendimento mais pleno do conceito de governança local, ao passo que amplifica as possibili-dades de uma gestão democrática compartilhada. Para esse autor,

Cabendo ao Estado mais funções de coordenação do que funções de produção direta de bem-estar, o controle da vinculação da obtenção de recursos a destina-ções específicas por via dos mecanismos da democracia representativa torna-se virtualmente impossível. Daí a necessidade de a complementar com mecanismos de democracia participativa. A relativa maior passividade do Estado, decorrente da perda do monopólio regulatório, tem de ser compensada pela intensificação da cidadania ativa, sob pena de essa maior passividade ser ocupada e coloniza-da pelos fascismos societais.127 (SANTOS, 1999, p. 51-52)

A combinação da democracia representativa com a participativa, sob a mediação da fiscalidade participativa da cidadania, favorece o estabeleci-mento da nova democracia redistributiva ou deliberativa. A sua lógica po-lítica assenta-se na construção de uma esfera pública não-estatal, na qual o Estado atua como um elemento crucial de articulação e de coordenação de políticas públicas. A democracia deliberativa apresenta-se, assim, como um sistema político que estimula o envolvimento e a participação dos indivíduos como cidadãos políticos ativos, construtores de consensos, por meio de diálogos interativos, em prol da elaboração e do controle social das políticas públicas. Para Maria da Glória Gohn,

Os novos mecanismos participativos incluídos na governança local se ba-seiam no engajamento popular como um recurso produtivo central: a participa-ção dos cidadãos provê de informações e diagnósticos sobre os problemas públicos, gerando conhecimentos e subsídios à elaboração de estratégias para a resolução

127 O conceito de fascismo societal, suscitado por Santos, não se relaciona com o fascismo dos anos 30 e 40. Não se trata de um regime político, mas antes de um regime social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capi-talismo, este promove a democracia, a ponto de não ser mais necessário sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Configura-se em um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo que nunca existiu antes.

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dos problemas e conflitos envolvidos. (GOHN, 2001, p. 41)

A necessidade de desenhos institucionais alternativos de algumas instituições governamentais reaviva a discussão acerca da reforma do Estado, articulada, modernamente, em torno do conceito-chave de descentralização, prenhe de acepções e significados, variando de acordo com a vertente ide-ológica a que se filia o interlocutor. Mesmo reconhecendo a inexistência de consenso em relação a um modelo de reforma do Estado, a descentralização envolve a transferência de recursos e competências (tanto no plano interes-tatal - dos governos centrais aos locais, quanto extra-estatal - do Estado para a sociedade civil). Entre as iniciativas mais promissoras nessa seara sobressaem-se aque-las que buscam fortalecer os instrumentos de democracia representativa, bem como, os mecanismos de participação direta dos cidadãos no planejamento das políticas públicas, horizontalizando o relacionamento entre o governo e a sociedade, através do aperfeiçoamento das instâncias decisórias locais e do controle mais direto das agências estatais pela população. Se existe algum modelo ideal de descentralização, este será aquele capaz de articular, de modo equilibrado, as dimensões administrativas, eco-nômicas e políticas das reformas, envidando esforços para a democratização do Estado e para a adoção da política como princípio dominante e transver-sal.No caso brasileiro, o movimento de descentralização das políticas públicas, incorporado pela Constituição de 1988, vem sendo constantemente relacio-nado ao da municipalização, já que

O ideal da descentralização política tem sido freqüentemente associado ao caminho da municipalização. A proximidade do centro decisório ao ambiente em que se deve atuar pode estimular a comunicação entre Estado e sociedade, o que amplia as condições de gestão política da diversidade social, uma das maio-res fontes geradores de conflitos urbanos. Acredita-se ainda que a proximidade entre governantes e governados e a experiência mais direta com os problemas possam estimular o interesse da sociedade civil para as questões públicas. O fortalecimento das competências municipais seria, portanto, forma de estímulo às ações políticas de base e de legitimação do sistema político-estatal como um todo. (DIAS NETO, 2005, p. 55)

O revigoramento do poder local conduz, pois, a uma concepção

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mais abrangente de municipalização, considerando a revitalização das com-petências políticas dos governos locais e, sobretudo, o resgate da cidade como lócus privilegiado de participação da cidadania e da sociedade civil organiza-da na proposição, no monitoramento e na fiscalização de políticas públicas, mormente, para os fins deste estudo, as que dizem com a área de segurança. À evidência, está em questão a conversão do espaço local como núcleo decisório relevante para a articulação de políticas públicas integradas e participativas de proteção dos direitos fundamentais. O desafio reside na constituição de uma verdadeira esfera pública local, na qual a sociedade, por intermédio de suas instituições (estatais, econômicas, culturais, profissionais, religiosas, beneficentes, etc.), mobilize os recursos necessários à sua própria governabilidade. Juntamente com políticas sociais, as políticas públicas de segurança, elaboradas em parceria por prefeituras, agências policiais, associações de mo-radores e demais atores sociais, têm apostado em mecanismos de redução das oportunidades para o cometimento do delito, tendo como referência a idéia de que prevenir é melhor do que punir (DIAS NETO, 2005). Programas de redução do consumo de álcool e de drogas, pautados pela perspectiva da redução dos danos e pela adesão voluntária, trazem resultados efetivos na redução da violência doméstica e interpessoal. Soluções mais drásticas, como a adotada em Diadema, como o fechamento de bares a partir das 23h, para impedir a comercialização de bebidas e drogas, ou as câmeras de vigilância em determinadas áreas de maior circulação de pessoas, podem ser adotadas, de forma provisória e experimental, uma vez que se constatem os efeitos desses dispositivos para a desconstituição dos mecanismos de agenciamento da violência. V- CONCLUSÕES PRELIMINARES

As alterações por que passou o Estado contemporâneo, mormente o brasileiro, a partir da década de oitenta, no bojo do processo de redemocra-tização, deram ensejo ao fortalecimento do poder local (governança local) e, à criação de novos mecanismos políticos e jurídicos de participação demo-crática da cidadania na gestão e no controle público (conselhos gestores e Orçamento Participativo, por exemplo). É nesse contexto mais amplo que se insere a recente tendência de municipalização da segurança pública no país e a conseqüente incorporação de novas possibilidades sócio-políticas de gestão e mediação dos conflitos,

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para além da pura e simples criminalização. Afigurou-se, para tanto, impres-cindível a compreensão teórico-conceitual da segurança como um direito social fundamental, inscrito no rol dos direitos sociais previstos no art. 6° da Constituição Federal de 1988. Ao se deslocar o foco de análise do modelo repressivo e reativo da dogmática do Direito Penal, adstrito ao controle do sistema de justiça criminal, para o modelo preventivo, tornou-se possível re-politizar o debate da segurança e, assim, incorporar uma maior participação da cidadania e da sociedade civil organizada. Acredita-se, pois, que é preciso avançar para a garantia da segurança dos indivíduos em todos os seus direitos fundamentais, o que inclui os di-reitos de prestação positiva por parte do Estado, promovendo ou garantindo as condições materiais de gozo efetivo desses bens jurídicos (ações positivas fáticas), e extrapola o escopo dos tradicionais direitos de defesa do cidadão frente ao sistema punitivo estatal, ou mesmo, dos direitos de prestação posi-tiva estatal, de ordem normativa, previstos pela legislação penal para proteger os direitos fundamentais do cidadão contra a atividade de terceiros128. Esse novo arranjo hermenêutico subsidiou, ademais, uma nova fun-damentação constitucional da atual tendência de intervenção das adminis-trações municipais na gestão da segurança pública, fortalecendo também a importância da emergência de uma esfera pública não-estatal de gestão par-ticipativa da segurança por parte da coletividade, a exemplo dos conselhos municipais de segurança. Tendo por base esse escopo preliminar, procuramos investigar, por meio da realização de uma pesquisa documental (fontes bibliográficas na-cionais e internacionais) e de campo (realização de entrevistas), alguns dos principais elementos relacionados com a implementação de políticas públicas de segurança no âmbito local, quais sejam: a existência de um órgão gestor da área em nível municipal; a constituição de conselhos municipais de segurança, de modo a favorecer a participação da cidadania e da sociedade civil organi-zada na proposição, no monitoramento e na fiscalização dessas ações; o papel e as características da Guarda Municipal no contexto das muitas alterações por que a instituição passou desde 2002 e, finalmente, os projetos que vêm sendo desenvolvidos pelas prefeituras municipais nessa área. O debate acerca das políticas públicas municipais de segurança está longe de ser pacífico, pela própria natureza do tema, envolvendo questões de ordem empírico-analítica e política, como também pelas limitações impostas

128 O conceito de garantismo positivo de Alessandro Baratta, erigido no contexto do movimento da Nova Prevenção, resume a tese aqui sustentada. (BARATTA, 1999).

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por uma interpretação literal do texto constitucional (art. 144 da Constitui-ção Federal de 1988). A presente pesquisa, no entanto, inova, ao sistematizar as recentes experiências de políticas de segurança levadas a efeito pelas admi-nistrações municipais de Porto Alegre e de outros municípios do Rio Grande do Sul, contribuindo, desse modo, teórica e pragmaticamente, para a identifi-cação das ações e projetos desenvolvidos pelos municípios para o controle da violência e da criminalidade. Em linhas gerais, pode-se afirmar que a questão da segurança pública vem sendo enfrentada pelos municípios a partir de duas frentes, diversas e complementares, a serem manejadas de forma combinada e simultânea: a de natureza social e a de natureza policial. A primeira delas centra-se na intervenção preventiva que consiste na concepção e aplicação de políticas públicas de segurança voltadas a alterar as condições propiciatórias imediatas do crime e da violência. Observe-se que essas ações não se confundem com mudanças estruturais da sociedade, as quais, embora necessárias, exerceriam um impacto somente futuro na redu-ção das dinâmicas criminais . Como lembra Rolim:

No Brasil, normalmente, quando se fala em prevenção da violência ou da criminalidade, imaginam-se possibilidades vinculadas diretamente às chamadas “políticas sociais”. Em função disso, as chances de redução da criminalidade e da violência estariam na dependência de mudanças significativas nas oportuni-dades de emprego, educação, habitação, etc., a partir da extensão efetiva desses direitos a todos. É certo que mudanças desse tipo afetam largamente as taxas de criminalidade, produzindo resultados positivos e importantes. Essa maneira de encarar o tema da prevenção, não obstante, carrega consigo várias limitações. (ROLIM, 2006, p. 110)

Essas limitações dizem justamente com a segunda frente: a policial. Em se tratando da atuação municipal na área de segurança pública, é funda-mental uma política de constituição e/ou qualificação das Guardas Munici-pais, tendo como diretrizes estratégicas:

[...] a formação e valorização profissional; gestão do conhecimento; reorga-nização das estruturas administrativas e dos processos de trabalho, de tomada de decisão, de comunicação e de interconexão intra e extragovernamental; in-vestimento na perícia (em sua descentralização com integração sistêmica); na prevenção (em harmonia com outros segmentos governamentais - a ponto de integrar-se com eles, formando um novo sujeito da gestão pública, com as ca-racterísticas descritas acima, e com setores da sociedade; e no controle externo (o

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qual, associado aos controles internos e à participação da sociedade, confere às polícias e às Guardas Municipais transparência e lhes devolve confiabilidade). (SOARES, 2005, p. 35-36)

Finalmente, uma nova agenda municipal de segurança, organizada em torno de uma unidade, uma agência ou um organismo central, deve abordar preferencialmente ações preventivas, articuladas com departamentos e secretarias importantes da administração pública (educação, saúde, serviços sociais, habitação, transporte, planejamento urbano, comunicação, esporte, lazer e cultura) - políticas específicas de segurança preocupadas com a pro-teção integral de direitos, com o sistema de persecução criminal (também e sobretudo com a Guarda Municipal), incluindo, ainda, entidades da socieda-de civil, associações comunitárias, cidadãos de forma geral - daí a importân-cia da instituição e funcionamento dos conselhos municipais de segurança. Resta claro que esses pressupostos, embora não exaustivos, representam os primeiros passos para um novo enfrentamento da violência e da criminalida-de a partir da experiência local das cidades no campo da segurança pública.

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BIBLIOGRAFIA

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ARTIGOS E ESTUDOS

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LOTEAMENTO CLANDESTINO VILA VIÇOSA - PORTO ALEGRE: desafios enfrentados na regularização urbanística e jurídica

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RESUMO O presente trabalho apresenta estudo de caso demonstrando a for-ma de atuação do Município de Porto Alegre na regularização fundiária de loteamentos, integrando ao conceito as dimensões urbanística e jurídica, bem como atuando de forma interdisciplinar. Demonstra como foi possível regularizar o loteamento clandestino denominado Vila Viçosa, estabelecendo limites entre a urbanização e a preservação ambiental. Analisa a ocupação de área de preservação permanente de curso d´água ocupada há mais de vinte anos por habitações populares. Conclui pela possibilidade de regula-rização da área, em face das condições da gleba e do benefício urbanístico e sócio-ambiental decorrente da regularização do loteamento à população e à qualidade ambiental. Aponta a sustentação jurídica da hipótese estudada, demonstrando que a regularização de áreas ocupadas por população de baixa renda é um passivo ambiental das cidades brasileiras e que deve ser tratado na perspectiva do meio ambiente nas cidades, a partir de conceitos da le-gislação ambiental, a partir de uma interpretação sistemática destes. Analisa igualmente o direito intertemporal no caso estudado.

PALAVRAS-CHAVE: regularização jurídica e urbanística; área de preserva-ção permanente; Provimento More Legal.

SUMÁRIO I- O contexto de Porto Alegre e da forma de atuação na regulari-zação fundiária de loteamentos I.I.- A Região da Lomba do Pinheiro I.II- Projeto Integrado – Desenvolvimento sustentável da Lomba do Pinheiro II- Loteamento Vila Viçosa II.I- Histórico da implantação II.II- Mudança de cenário II.III- Uma nova iniciativa III- A aprovação do Projeto Urba-nístico IV- Enfrentamento da questão ambiental V- Registro do loteamento V.I- Provimento More Legal VI- Reflexões sobre regularização fundiária VII- Conclusões

ANDREA OBERRATHER, arquiteta da Secretaria Municipal de Planejamento Município de Porto AlegreLUCIANO SALDANHA VARELA, engenheiro civil do Município de Porto AlegreSIMONE SANTOS MORETTO, assessora para assuntos jurídicos do Município de Porto AlegreSIMONE SOMENSI, procuradora do Município de Porto AlegreVANÊSCA BUZELATO PRESTES, procuradora do Município de Porto Alegre

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INTRODUÇÃO

Visa o presente estudo de caso, apresentar a forma utilizada para pos-sibilitar a regularização do loteamento clandestino denominado Vila Viçosa, cuja gleba está localizada na Rua Orquídea, n° 415, Lomba do Pinheiro, no Município de Porto Alegre, com área superficial de 66.680m², bem como delinear os entraves urbanísticos e jurídicos que dificultaram sobremaneira o processo. Além disso, visa demonstrar como foi possível estabelecer limites entre a urbanização e a preservação ambiental, pois parte do loteamento situa-se em área de preservação permanente – faixa de proteção marginal de curso d’água. Ainda pretende demonstrar o meio jurídico utilizado para individu-alização da gleba, com obtenção de matrícula por lotes. A problemática envolve questões jurídicas, fundiárias, urbanísticas e avaliação do desempenho das configurações espaciais, das atribuições do Poder Público e da capacidade de gestão. Por isso, uma das características que se ressalta e que pretendemos demonstrar é a necessidade de atuação inter-disciplinar, envolvendo áreas do conhecimento diversas, a fim de qualificar o exame e as soluções apresentadas à regularização pretendida.

I-O CONTEXTO DE PORTO ALEGRE E DA FORMA DE ATUA-ÇÃO NA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE LOTEAMENTOS

Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, situada ao leste do Es-tado, com 470,25 Km² de área, está limitada ao sul e oeste pelo rio Guaíba e ao norte e leste por municípios integrantes da região metropolitana. É o principal município da RMPA (RMPA – Região Metropolitana de Porto Alegre, composta por 31 municípios e com 3,974 milhões de habitantes) com 1,403 milhões de habitantes (Mammarella, Rosetta, 2006) e uma taxa de crescimento populacional de 1,35% ao ano. Sua população está mais con-centrada na metade norte, onde também se encontram os grandes equipa-mentos urbanos de escala metropolitana, como aeroporto, rodovias federais e outros. Possui uma cadeia de morros que, de uma certa forma, foi uma barreira natural à expansão urbana para a metade sul, com características mais rarefeitas, áreas que ainda mantém suas características naturais, embora

129. Classificação usada pela Prefeitura para irregular – assentamento que não concluiu sua aprovação nos órgãos competen-tes e clandestinos - para aqueles que não entraram com nenhuma documentação para sua aprovação.130 Irregularidade Fundiária em Porto Alegre por Região de Planejamento: Mapeamento e Caracterização – Secretaria de Planejamento Municipal – Dezembro 2004.

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também contenham assentamentos populacionais consolidados. Assim como a maioria das grandes cidades brasileiras, Porto Alegre sofreu nas últimas décadas um acelerado processo de crescimento urbano, principalmente através da desordenada produção informal, resultado da im-plantação de ocupações e loteamentos irregulares e clandestinos129, quase sempre localizados nas áreas periféricas da cidade. Possuía em 2004, 723 áreas irregulares, sendo que 473 são vilas ou núcleos de ocupação espontânea e 250 loteamentos que caracterizam a venda130. O Município de Porto Alegre trabalha a regularização fundiária em duas dimensões: urbanística e jurídica. A história já nos mostrou que os re-sultados somente serão positivos quando as duas dimensões são avaliadas e trabalhadas na sua integralidade. A esfera urbanística trabalha as etapas que precedem a regularização jurídica e registrária da gleba. O objetivo desta etapa é a formatação de um programa de urbanização que prevê a aprovação de projetos nos órgãos pú-blicos, implementação de infra-estrutura e prestação de serviços públicos. É nesta etapa que se encontram as maiores dificuldades do trabalho de regularização fundiária. Neste momento é que aparecem os condicio-nantes urbanísticos e ambientais não respeitados pela ocupação, como, por exemplo, a existência de moradias em faixas não edificáveis sobre redes de esgoto, de preservação ambiental marginal de arroio ou nascente, incidência de diretriz de abertura viária, etc.. Superar estes obstáculos é um desafio. A dificuldade está em remo-ver o menor número possível de famílias do lugar em que estão. Em alguns casos, simplesmente é impossível regularizar, dadas as condições do local. Nestas hipóteses indica-se a relocalização das casas para outro local. Ultra-passada esta fase, com o projeto urbanístico discutido e aprovado primeiro pela comunidade e depois pelo Município, inicia-se a etapa jurídica. Estando a ocupação devidamente inserida na cidade formal em decorrência da delimitação como AEIS (área especial de interesse social), aprovação do estudo de viabilidade urbanística ou do projeto urbanístico e sua decorrente implantação, necessário adequar o título de propriedade à realidade fática, dando início à política de legalização das áreas e dos lotes ocupados, gerando segurança jurídica aos moradores. Esta é a concretização do princípio da segurança da posse apontado na Agenda Habitat. Importante destacar que a dimensão jurídica somente estará com-pleta quando finalizada a etapa registral, ou seja, quando disponibilizado ao morador o seu título de posse ou propriedade devidamente registrado no

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cartório imobiliário.

I.I- A REGIÃO DA LOMBA DO PINHEIRO

A Região da Lomba do Pinheiro está situada no limite leste de Porto Alegre, fazendo divisa com o município de Viamão. É uma área desvinculada da malha urbana contínua e compacta, que engloba parte dos bairros Agro-nomia e Lomba do Pinheiro, com superfície de aproximadamente 3.214 ha, abrigando mais de 63.000 habitantes. Constitui-se numa parcela do territó-rio municipal que se destaca pela presença de valores naturais significativos para a cidade, com influência na Região Metropolitana. Sua principal via, Estrada João de Oliveira Remião, encontra-se sobre o divisor de bacias de dois importantes arroios de Porto Alegre, o Dilúvio e o Salso. No entanto, tem sido ao longo dos anos uma alternativa de assen-tamentos habitacionais bastante desorganizados, apresentando ausência ou precariedade no atendimento de serviços públicos, com sérios problemas de infra-estrutura, saneamento básico e situações de risco, além de uma intensa degradação ambiental. São da década de 60 os primeiros loteamentos, sendo que nos anos 70 houve uma verdadeira explosão de loteamentos e ocupa-ções nesta região131, oferecendo opção de moradia, principalmente para pes-soas de baixa renda. Como resultado, existe uma concentração de cerca de 50 loteamentos clandestinos e núcleos habitacionais irregulares nesta região, sendo que praticamente todas as ocupações urbanas na Lomba do Pinheiro têm algum tipo de irregularidade urbanística e fundiária.

I.II- PROJETO INTEGRADO - DESENVOLVIMENTO SUSTEN-TÁVEL DA LOMBA DO PINHEIRO

Entre importantes instrumentos de intervenção no solo urbano con-tidos no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA, LC 434/99), estão os Projetos Especiais. Este “exige uma análise diferenciada, de-vendo observar acordos e condicionantes específicos132”. Considera-se perti-nente o desenvolvimento destes projetos em grandes áreas da cidade que, por suas peculiaridades, características e conflitos, merecem ser solucionados de for-ma criativa, com normas próprias e diferenciadas. Na Estratégia de Produção da Cidade133 estão identificadas as principais áreas passíveis do desenvolvimento de Projeto Especial, inclusive a da Lomba do Pinheiro, para implementar vários

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instrumentos do PDDUA, especialmente suas estratégias. Dentro deste contexto, o Projeto Integrado Desenvolvimento Susten-tável da Lomba do Pinheiro foi lançado, oficialmente, no dia oito de agosto de 1999, com a instalação de um escritório na região. O projeto busca identificar oportunidades de desenvolvimento que resolvam os conflitos de urbanização e proteção ambiental, de forma a atender qualitativamente parcela da demanda habitacional reprimida, bem como propiciar geração de renda através da quali-ficação da capacidade de trabalho na área em estudo, resgatando valores sociais dos moradores da região. A proposta inovadora propiciou a contribuição efetiva dos moradores, construindo uma consciência coletiva sobre os sérios conflitos de urbaniza-ção e preservação dos elementos naturais existentes. Também alertou para as necessidades de regularização urbanística e fundiária, estruturação e mobili-dade urbana, de qualificação ambiental, de produção de novas habitações e de viabilização dos recursos financeiros necessários para aplicar na região. As ações previstas no Marco Referencial do projeto foram articuladas por meio de uma equipe básica do Projeto Integrado, composta por técnicos da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM), Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM) e Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB). Diante da grande incidência de loteamentos irregulares e clandestinos nesta região, o Projeto Integrado Desenvolvimento Sustentável da Lomba do Pinheiro promoveu em julho de 2000, um Encontro com a comunidade sobre este tema: O Processo de Regularização. Nesta ocasião, foram apresentados os diversos instrumentos de regularização existentes, suas possibilidades de uso e as etapas administrativas necessárias para desencadear este processo. Como decorrência, foi realizado um levantamento da situação da ir-regularidade, buscando determinar sua dimensão, bem como classificar as di-ferentes manifestações, a partir da perspectiva de regularização determinada caso a caso, já com vistas ao seu encaminhamento. Verificou-se que a região concentrava mais de quarenta situações entre ocupações e loteamentos clan-destinos e irregulares, sendo que a maioria dos assentamentos tinha problemas de irregularidade. Especificamente no caso dos loteamentos, verificou-se que poderiam ser classificados em três grandes grupos: •Loteamentosanterioresa1979eàlegislaçãofederal(LeiFederaln° 6766/79) em vigor a partir de então, que definiria as regras básicas do lo-

131. Série Memória dos Bairros – Lomba do Pinheiro. Publicação da Secretaria Municipal da Cultura, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, ano 2000.132 Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental – PDDUA – LC 434/99.133 LC 434/99. Parte I, Título II art 3°, Das Estratégias, Capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII, respectivamente da Estruturação Urbana; da Mobilidade Urbana; do Uso do Solo Privado; da Qualificação Ambiental; da Promoção Econômica; da Produção da Cidade; do Sistema de Planejamento, art 4° ao art 25.

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teamento. Para estes casos existe em Porto Alegre legislação municipal134 que determina os critérios de regularização. •Loteamentosposterioresa1979eaté1996,anoemqueseinstituiuo Núcleo de Regularização de Loteamentos (NRL)135 na Prefeitura de Porto Alegre, com o objetivo de encaminhar de uma forma mais ágil a tramitação destes processos. •Loteamentosposterioresa1996,quesãopassíveisdeaçãomovidapelo Município contra o loteador.Para cada um destes grupos, que levavam à aplicação de instrumentos jurí-dicos específicos, foram selecionados casos representativos, que receberam orientação sobre os procedimentos de regularização, com o objetivo de se monitorar a tramitação destes processos. Dos casos escolhidos, verificamos que houve a necessidade de intervenção direta da equipe para encaminhar a regularização, sob pena de novamente não lograr nenhum resultado. Passare-mos a detalhar o desenvolvimento de uma experiência, relativa à regulariza-ção do loteamento clandestino chamado Vila Viçosa.

II- LOTEAMENTO VILA VIÇOSA

II.I-HISTÓRIO DA IMPLANTAÇÃO

A Vila Viçosa caracteriza-se por se tratar de um loteamento clan-destino com 110 lotes, numa gleba de 66.630 m² localizada na Lomba do Pinheiro, matriculada como uma “área de terras de situação interna” sob o n° 16.989 no Registro de Imóveis da 3° Zona de Porto Alegre. Na década de 70, o proprietário da gleba, Rafael Antônio da Sil-va, iniciou a venda de lotes através de contratos de compra e venda, sendo

134. LC 140/86 - A Lei Complementar 140/86 é aplicada como instrumento urbanístico para a regularização dos parcela-mentos do solo implantados irregular ou clandestinamente anteriormente à Lei Federal n. 6.766/79, independentemente da observância dos padrões urbanísticos definidos no Plano Diretor. Contudo, para a aplicação desta lei deve ser analisa-da a situação do loteamento no que concerne ao sistema viário e aos equipamentos urbanos e comunitários e aos aspectos jurídicos ligados ao domínio da gleba. O texto legal ainda faz menção ao art. 178 da Lei Complementar Municipal n. 43/79, o qual veda o parcelamento em terrenos alagadiços ou que tenham sido aterrados com materiais nocivos à saúde pública, em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), em terrenos onde as condições biológicas não aconselham a edificação, nas reservas ecológicas e biológicas e em imóveis dos quais resultem terrenos encravados. Além das observâncias dos requisitos acima mencionados, a Lei Complementar Municipal n° 140/86 ainda exige, para a efetivação da regularização, que os loteamentos apresentem vias de comunicação, lotes demarcados, equipamentos urbanos de abastecimento de água e energia elétrica e condições de escoamento das águas pluviais.135 O Núcleo de Regularização de Loteamentos foi instituído em 1996 para coordenar o trabalho de várias Secretarias e Departamentos na condução da regularização urbanística e fundiária. Lançou um edital que cadastrou os loteamentos interessados na regularização para que fossem orientados sobre os procedimentos.

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que as primeiras edificações iniciaram-se em 1975, mesmo estando a área desprovida de qualquer infra-estrutura. Desde então, o Município tem im-plantado progressivamente as redes e serviços básicos neste loteamento. Em 1978 ocorreu a instalação da rede de energia elétrica, em 1979 a iluminação pública, em 1982, a instalação definitiva da rede de abastecimento de água e a construção do posto de saúde e em 1983 a construção da escola pública estadual nas áreas pré-destinadas a estes equipamentos. Mais recentemente, através do Orçamento Participativo136, foram realizadas obras de pavimenta-ção, drenagem e urbanização da praça. Em 26 de maio de 1981, a gleba passa a ser propriedade da Asso-ciação de Moradores da Vila Viçosa, devidamente constituída, que registra a compra da área em algumas parcelas, sendo o Pacto Comissório cancelado em 09 de agosto de 1982, com a quitação do pagamento. São de inicia-tiva da Associação de Moradores, no início da década de 80, as primeiras tentativas de regularização do loteamento, conforme o Expediente Único n° 002.209605.00.6, nomenclatura do processo administrativo utilizado no Município de Porto Alegre. Entre 1980 e 1984 houve a contratação de um responsável técnico para a elaboração do Levantamento Topográfico, Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU)137 e Projeto Urbanístico, que foram sub-metidos à aprovação na Prefeitura. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, vigente de 1979 a 1999 (LC 43/79), preconizava para esta região a manutenção de seu uso original, de produção primária, classificando sua área como de uso rural. A gleba em questão estava localizada em zona definida como Unidade Territo-rial Seccional Rural, considerada Área Funcional com Potencial de Reserva Biológica (zoneamento da LC 43/79 atribuído a regiões com predominân-cia de bens naturais que deveriam ser devidamente avaliados, com vistas a sua manutenção) e, portanto, não passível de loteamento urbano, como proposto. Por fim, não possuía frente para logradouro público cadastrado, sendo con-siderada encravada. Estes impedimentos legais fizeram com que a aprovação deste projeto, diversas vezes solicitada, fosse sempre negada.No entanto, o loteamento se consolidava conforme o projeto, que atendia a legislação de parcelamento do solo quanto a padrões urbanísticos, como largura de vias e destinação de áreas para equipamentos públicos e comuni-tários, sendo os lotes ocupados por seus compradores, com a infra-estrutura básica sendo progressivamente implantada pelo Poder Público.

136 Orçamento Participativo – Processo de discussão e decisão sobre parte dos investimentos públicos na cidade, em funcionamento desde 1990 em Porto Alegre.

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II.II- MUDANÇA NO CENÁRIO

Alguns fatos relevantes ocorreram no final da década de 90, criando as condições legais para permitir a regularização. Primeiro foi o cadastra-mento da via de acesso ao loteamento, chamada de Rua Orquídea, ocorrido em 1998. Isto foi feito de forma administrativa, uma vez que a referida via já estava implantada com uso público por mais de 20 anos. Com este procedi-mento, a gleba do loteamento passou a ter frente a um logradouro público que integra oficialmente o sistema de ruas do Município. Com a aprovação do Plano Diretor Desenvolvimento Urbano Ambiental – PDDUA – de Porto Alegre em 1999, a Lomba do Pinheiro foi incorporada na Área de Ocupação Intensiva, numa iniciativa que busca integrar esta porção ao resto da cidade, por meio do reconhecimento da tendência de ocupação urbana já existente na região. Esta passa a receber o regime urbanístico que permite o parcelamento do solo na modalidade de loteamento, com ênfase na habitação de interesse social, de acordo com as características daquele território. Este é o marco legal que possibilita, a partir de então, a regularização fundiária dos mais de quarenta loteamentos e ocu-pações irregulares e clandestinos na região, incluindo a Vila Viçosa.

II.III-UMA NOVA INICIATIVA

Após uma reunião específica com a Associação de Moradores for-necendo com mais detalhes os passos necessários à regularização, estes pe-diram as Diretrizes de Regularização138 que foram emitidas e aprovadas na Comissão Técnica (CEPS – Comissão Especial de Parcelamento do Solo) em 08/03/2001, definindo o instrumento legal que permitiria a regulari-zação, bem como determinando alguns padrões urbanísticos, como a largu-ra das vias e localização dos equipamentos. Também nesta ocasião já ficou registrada a existência de Área de Preservação Permanente, decorrente da faixa de proteção marginal de 30,00m ao longo do arroio que faz a divisa da propriedade. Estas diretrizes também foram aprovadas no Conselho Munici-pal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental – CMDUA, em 29/05/2001

137 EVU - Estudo de Viabilidade Urbanística, introduzido pelo Plano Diretor de Porto Alegre, corresponde a uma etapa de aprovação de projetos de parcelamento do solo e edificação na qual ficam definidas diretrizes e condicionantes à ocupação do solo, Estudo de Impacto Ambiental e EIV – Estudo de Impacto de Vizinhança, introduzido pelo Estatuto da Cidade, definido nos artigos 36 a 38 do capítulo II, secção XII, previsto como um instrumento com que se possa fazer a mediação entre os interesses privados do empreendimento e o direito à qualidade urbana daqueles que moram ou transitam em seu entorno. Também possibilita avaliar pontos positivos e negativos

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através do Parecer n° 019/01. A próxima etapa foi a elaboração do levantamento topográfico, pois através deste se tem um retrato da realidade com a necessária delimitação do que de fato está implantado no local, sendo que este serve de referência para a elaboração do Projeto Urbanístico. Este levantamento a Associação de Moradores conseguiu contratar com recursos próprios, cotizando seus associados, apesar das dificuldades de organização típicas das comunidades de baixa renda. No entanto, o trabalho não atendia às exigências deste tipo de levantamento, sendo realizado de forma deficiente e criando incertezas sobre as informações. Portanto, houve a necessidade de se refazer o levantamento topográfico, que desta vez foi realizado através de recursos conquistados pela comunidade no Orçamento Participativo. Com relação ao Projeto Urbanístico, a comunidade foi orientada a fazer contato com o profissional que havia feito o projeto original, de 1981, para que o atualizasse, conforme o novo levantamento topográfico, com vistas a sua aprovação, uma vez que o loteamento estava implantado conforme a proposta. Diante de sua negativa, outros profissionais foram contatados, mas apresentaram custos inviáveis para esta comunidade de baixa renda. As etapas que dependem da contratação de responsável técnico para elaboração de Levantamento Topográfico e Projeto Urbanístico são as de maior dificuldade, levando à paralisação de grande número de processos de regularização. Esta fase envolve custos que a comunidade muitas vezes não consegue absorver, pois ou não consegue dividir os custos devido ao perfil econômico dos moradores ou não está suficientemente organizada para este procedimento. Muitas vezes, na tentativa de diminuir custos, acaba contra-tando profissionais que, embora legalmente habilitados, não tem o devido conhecimento ou prática para tratar deste assunto específico, acabando por interromper o processo nesta etapa. No caso das ocupações, todos os recursos para regularização, in-cluindo levantamento topográfico e obras de urbanização, são conquistados através do Orçamento Participativo (OP), sendo que o projeto urbanístico e os projetos executivos das obras são desenvolvidos pelo DEMHAB. Já nos loteamentos, somente recentemente foram executados levantamentos topográficos através do OP, sendo que a elaboração do projeto urbanístico permaneceria a cargo da comunidade ou do loteador. Ainda assim, a oferta de recursos no OP ainda é muito limitada frente à demanda nesta questão.

138 Etapa do processo administrativo do parcelamento do solo, onde as Secretarias e Departamentos definem seus con-dicionantes sobre a gleba, para orientar a elaboração do EVU ou Projeto Urbanístico.

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Diante deste impasse, a comunidade pediu uma audiência com o Prefeito Municipal de Porto Alegre, que ocorreu em 13/10/01, na Associa-ção de Moradores, expondo suas dificuldades em avançar nesta nova tentati-va de regularização, desta vez fomentada pela própria Prefeitura. A partir daí, a equipe do Projeto Integrado foi autorizada a assumir a responsabilidade de desenvolver o Projeto Urbanístico de regularização. Para isto, foi determi-nante o fato do projeto urbanístico que deu origem ao loteamento já constar no expediente administrativo, precisando apenas ser adequado à situação que de fato existia no local, agora registrada no levantamento topográfico.

III- A APROVAÇÃO DO PROJETO URBANÍSTICO

Para elaboração do Projeto Urbanístico havia a necessidade de aten-dimento das diretrizes estabelecidas por técnicos do Município, das diversas Secretarias e Departamentos em especial as seguintes: a) faixa não edificável ao longo do arroio de 30,00m para cada lado do mesmo, referente à zona com possibilidade de inundação (área de risco) e a Área de Preservação Permanente (APP); b) os primeiros seis lotes da Rua Silvestre ao lado da Escola seriam parcialmente ou totalmente atingidos pela faixa não edificável de arroio, não podendo ser regularizados no local; c) quanto à faixa de proteção à inundação, quando da elaboração do projeto foi realizada uma dragagem para desassoreamento do arroio e foi criada uma espécie de dique natural, que reduziu o risco de inundação para níveis baixos, suportados inclusive pela cidade formal do município de Porto Alegre. Isto ficou materializado no parecer desenvolvido por técnicos do Programa de Áreas de Risco, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente – SMAM. Afastado o risco, restava a questão da área de preservação ambien-tal. De acordo com a manifestação dos técnicos da SMAM, a APP devia ser de 30,00m para cada lado do arroio. Esta metragem foi estabelecida em observância do disposto no Código Florestal139 cuja redação foi modificada no ano de 1989, passando a largura das APP’s dos cursos d’água de 5,00 para 30,00m. Isto implicaria na impossibilidade de regularização dos lotes citados nas diretrizes apresentadas acima, sendo que alguns deles estavam ocupados há muito tempo por casas bem consolidadas. Seria bastante difícil transferir

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estes moradores de onde eles estavam.

IV ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO AMBIENTAL

As normas de proteção ambiental muitas vezes têm sido colocadas como óbice legal e constitucional aos processos de regularização fundiária. Isto porque muitas áreas de preservação permanente estão irregularmente ocupa-das, podendo ser objeto de irresignação no momento em que a regularização for desencadeada. Não vamos aqui tratar das causas desta ocupação. Contudo, não po-demos perder de vista que (a) historicamente as cidades não destinaram áreas para população de baixa renda, seja por falta de previsão, seja pela falta de um mercado que produzisse habitação popular regular que pudesse ser adquirida por grande parcela da população, (b) que as áreas de preservação permanente foram sendo ocupadas com a conivência do Poder Público, (c) que muitos locais já estavam ocupados antes de se tornarem legalmente APPs e (d) que a ineficácia das normas ambientais contribui para o descontrole atual que leva milhões de brasileiros a morar na ilegalidade, colocando em contraposição o direito a moradia com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do como se fossem antagônicos e não interdependentes. O meio ambiente no espaço urbano pressupõe a presença do homem. Não é possível ignorar esta realidade, sob pena de deixar à margem elemento fundamental de análise. O espaço construído não prepondera sobre o am-biente natural, porém é parte integrante de um mesmo contexto. As decisões urbano-ambientais a serem tomadas precisam avaliar esta universalidade, a in-teração entre os objetos. Quando se debate sobre área de preservação permanente assim defi-nida pelo Código Florestal e explicitada na Resolução Conama 303/02, não pode se perder de vista que o Código Florestal foi publicado originalmente em 1965. Em seu artigo 2º, alínea “a” estabelecia como área de preservação permanente a faixa mínima edificável de 5,00m. Em 1985, a Resolução Co-nama 04, em seu art. 3º, inc. I, estabeleceu que 5,00m para rios com menos de dez metros de largura e igual à metade da largura dos corpos d água que meçam de 10 a 200 metros. Em 1989, com a edição da Lei Federal Nº 7.803/89 que alterou o Código Florestal temos a redação hoje existente. Posteriormente, o Código

139 Lei Federal Nº 4771/65, alterado pela Lei Federal 7.803/89 e posteriormente pela MP 2.166-67/2000.

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Florestal ainda foi modificado por Medidas Provisórias, sendo a última a de nº 2.166/67, de 26/07/2001, que em nada alterou as metragens. No que concer-ne a área de preservação permanente ao longo dos lagos naturais e artificiais, conforme se verifica da redação do artigo 2º transcrita, inexistia metragem específica a ser observada, matéria regulamentada na Resolução 303/02, ora editada. A par disso, a legislação do parcelamento do solo urbano, Lei Federal nº 6.766/79, marco legal importante para as cidades brasileiras, estabeleceu que ao longo das águas dormentes a faixa não edificável era de 15,00 metros. Já no âmbito municipal, a Lei Complementar nº 43/79 acolheu a regra da Lei Federal nº 6766/79, atinente ao parcelamento do solo, e dispôs sobre a obrigatoriedade de faixa não edificável de 15,00m ao longo das águas dormentes e correntes. No Plano Diretor atual não há alusão a metragem específica como no anterior, sendo que se reporta a Lei Federal n° 4.771/65, bem como a compatibilização com a Legislação Federal existente. Destarte, de pronto se verifica a incidência de várias leis de mesma hierarquia incidindo sobre o mesmo objeto, na medida em que no meio ur-bano para edificação ou parcelamento aplica-se a Lei Federal nº 6.766 ou o Plano Diretor, além do Código Florestal. É necessário, pois, apontar um crité-rio de interpretação que permita com a maior segurança possível examinar o tema. E, para chegar a este critério entendemos que não cabe debater pura e simplesmnte a incidência ou não do Código Florestal no âmbito urbano ou, de outra parte, se pode o Município, por intermédio do Plano Diretor, legis-lar de forma diferente do Código Florestal. O fato concreto é que em Porto Alegre a Lei Complementar n° 434, nosso Plano Diretor, não legislou sobre o tema, sendo que fez menção expressa a compatibilização com a legislação federal existente sobre a matéria. Assim, mesmo que em tese fosse possível, não há que se falar em preponderância da lei local, na medida em que esta lei inexiste. Destarte, não há como negar vigência ao Código Florestal, com a alteração inserida em 1989, por intermédio da Lei Federal n° 7.803, redação que remanesce até hoje. Ademais, o problema é de maior profundidade e certamente não é em casos concretos ou somente na esfera municipal que conseguiremos solvê-lo140. Por isso, a análise deve partir dos elementos novos trazidos pela Re-solução 303/02 do Conama. Isto porque, houve elemento novo, significativo para o âmbito municipal, em especial para aqueles municípios que, como Porto Alegre, são licenciadores ambientais, relativo ao conceito para os fins

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ambientais de área urbana consolidada. Evidentemente que o conceito de área urbana consolidada previsto na Resolução não define o que é área urbana nos municípios, pois compete constitucionalmente aos municípios, por lei própria, definir o perímetro ur-bano respectivo. Todavia, para os fins ambientais, que é o limite constitucio-nal das Resoluções do Conama e no âmbito do poder regulamentar inerente ao Conselho Nacional, cabe aos municípios integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), observar o disposto nestas. Para aqueles que são licenciadores ambientais, a obrigação é reforçada na medida em que no âmbito local são delegatários do Sistema Nacional (Sisnama). A Reso-lução traz este elemento novo que não pode passar despercebido. Neste sentido, a partir de sua publicação, qual seja, 20 de março de 2002, cabe ao Município, para os fins ambientais, adotar as metragens apontadas como li-mitação administrativa, sendo mais restritiva, inclusive que o nível médio das enchentes (Código de Águas e em geral apontado pelo DEP) e parcelamen-to do solo urbano. Este aspecto é reforçado pela ausência de disciplina local quanto à matéria, diferentemente no disposto no Plano Diretor anterior. Assim sendo, para o fim de identificar o momento para determinar a mudança de orientação, ensejando a metragem maior (leia-se 30,00 m), ca-beria uma série de interpretações, inclusive de teoria geral do direito no que concerne a aplicação das leis no tempo. Poderíamos sustentar que as normas de ordem pública têm aplicação imediata, que o direito adquirido somente é alcançado com o licenciamento das edificações, podendo até lá ocorrerem mudanças que sejam necessárias ao interesse público, que os particulares que não tivessem as obras licenciadas deveriam observar a Resolução Conama 303/02. Todavia, é imperioso considerar que há outros princípios em direito que devem ser observados, dentre os quais destaca-se o da segurança jurídi-ca. Em acórdão, publicado no Informativo do STF nº 310 - Brasília, 26

140 Veja-se a propósito, a decisão da 2ª Turma do STJ, RESP 194617/PR, 1998/0083512-1, Rel. Min. Franciulli Netto, publicado no DJ em 01/07/2002.“RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE REGISTRO DE LOTEAMENTO ÀS MARGENS DE HIDRELÉTRICA. AUTORIZA-ÇÃO DA MUNICIPALIDADE. IMPUGNAÇÃO OFERECIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ÁREA DE PROTEÇÃO AM-BIENTAL. RESOLUÇÃO Nº 4/85-CONAMA. INTERESSE NACIONAL. SUPERIORIDADE DAS NORMAS FEDERAIS.No que tange à proteção do meio ambiente, não se pode dizer que há predominância do interesse do Município. Pelo con-trário, é escusado afirmar que o interesse à proteção ao meio ambiente é de todos e de cada um dos habitantes do país e, certamente, de todo mundo. Possui o Conama autorização legal para editar resoluções que visem à proteção das reservas ecológicas, entendidas como as áreas de preservação permanentes existentes às margens dos lagos formados por hidrelétri-cas. Consistem elas normas de caráter geral, às quais devem estar vinculadas as normas estaduais e municipais, nos termos do art. 24, inc. VI e §§ 1º e 4º, da Constituição Federal e do art. 6º, inc. IV e V e §§ 1º e 2º da Lei nº 6938/81. Uma vez concedida a autorização em desobediência às determinações legais, tal ato é passível de anulação pelo Judiciário e pela própria Admi-nistração Pública, porque dele não se originam direitos”.

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a 30 de maio de 2003 – Pet (MC) 2.900-RS* -, o MIN. GILMAR MEN-DES entre decidir pela legalidade e a segurança jurídica optou pela segunda, citando o excertos de lapidar artigo do Prof. Almiro do Couto e Silva, o qual reproduzimos:

“No âmbito da cautelar, a matéria evoca, inevitavelmente, o princípio da segurança jurídica.A propósito do direito comparado, vale a pena trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do aludido:

“É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão ale-mã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regu-larmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben)dos administrados.

(...)

Esclarece OTTO BACHOF que nenhum outro tema despertou maior inte-resse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da im-possibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in der Rechtss-prechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs.; vol. II, 1967, p. 339 e segs.)”.

Depois de incursionar pelo direito alemão, refere-se o mestre gaúcho ao direito francês, rememorando o clássico “affaire Dame Cachet”:

“Bem mais simples apresenta-se a solução dos conflitos entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica no Direito francês. Desde o famoso affaire Dame Cachet, de 1923, fixou o Conselho de

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Estado o entendimento, logo reafirmado pelos affaires Vallois e Gros de Beler, ambos também de 1923 e pelo affaire Dame Inglis, de 1935, de que, de uma parte, a revogação dos atos administrativos não cabia quando existissem direitos subjetivos deles provenientes e, de outra, de que os atos maculados de nulidade só poderiam ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses, que era o mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalidade dos atos administrativos.HAURIOU, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, inda-gando: ‘Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administra-ção poderá exercer-se indefinidamente e em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis? Quantos perigos para a segurança das relações sociais encerram essas possibilidades inde-finidas de revogação e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve prazo de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão, sem lhe impor nenhum prazo’. E conclui: ‘Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade es-tender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.’ (La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105-106.)”.

O processo de aprovação e licenciamento é moroso. Depende de uma série de fatores externos (oportunidade do negócio, mercado, motiva-ção do empreendedor) e internos (tramitação) que implicam em um tempo de maturação do próprio empreendimento. A mudança desta metragem que tinha amparo na Lei do Parcelamento do Solo, não era aleatória, incide di-retamente na esfera privada, que possui projetos em andamento, sendo que tais projetos já geraram custos para os particulares. Além disso, nas cidades, a avaliação das restrições e das incidências urbanísticas e ambientais se dá por matrículas ou por projetos que envolvam mais de uma matrícula. Não se considera o todo, até porque o processo de formação da cidade é paulatino, não ocorrendo ao mesmo tempo. Por isso é que constatamos que em determinadas regiões da cidade alguns imóveis não respeitam, p. ex. o alinhamento, pois foram construídos antes das regras respectivas. Assim, a situação entre vizinhos pode ser diferente, considerando o marco temporal da utilização de cada imóvel. Isto não é bom e nem ruim. É decorrente do processo de urbanização que acompanha as necessidades

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urbanas. Exceção a este entendimento são os casos em que a preservação ou a conservação de bens ambientais (sítios históricos, ambiências, bens am-bientais pontuais) devam ser protegidos por suas características. Nestes casos entendemos que a preponderância do interesse é o da preservação ambiental, porque só se protege aquilo que ainda existe. A segurança jurídica é suplan-tada pela necessidade de preservação ou conservação dos bens, solvendo-se eventual conflito resultante de direitos no âmbito obrigacional. Considerando que é de interesse de todos a eficácia das normas ambientais, o evitar subterfúgios para não aplicá-las e que para aplicação das normas, sobretudo, é necessário conhecê-las, entendemos que a Resolução deve ser aplicada a partir da sua publicação. Por estes motivos, e considerando o princípio da segurança jurídica que deve reger a relação do administrador com os administrados, entende-mos que a Resolução deve ser aplicada a partir da sua publicação. Foi emitido um parecer da Procuradoria Geral do Município – PGM que conclui no seguinte sentido, orientando a atuação administrativa: a) historicamente houve divergência quanto a aplicação do Código Florestal às cidades, tanto que esta discussão remanesce até os dias atuais; todavia, a Resolução Conama 303/02 traz um elemento novo para órbita municipal, que é o conceito de área urbana consolidada, dando conta que, para os fins ambientais, naquelas áreas explicitadas na Resolução 303, as metragens nas áreas urbanas consolidadas são de observância compulsória; b) a explicita-ção para os fins ambientais implica em observar a limitação mais rigorosa (30,00m) em detrimento dos 15,00m decorrente da linha correspondente ao limite médio das cheias ou da área não edificável determinada pela Lei Federal nº 6.766/79, a todas as hipóteses presentes no art. 2º da Lei Federal nº 4.771/65, especialmente porque o Município de Porto Alegre é licen-ciador ambiental delegatário do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Am-biente); c) o Código Florestal originalmente não dispôs sobre a metragem de área de preservação permanente ao redor das lagoas ou lagos naturais; a Re-solução Conama 303/02, em seu art. 3º inc. III, letra “a”, estabeleceu trinta metros para os que estejam situados em áreas urbanas consolidadas; assim, ao longo do Lago Guaíba a metragem mínima da área não edificável é 30,00m; d) o princípio da segurança jurídica no Brasil tem assento constitucional e é decorrente do Estado de Direito estabelecido pela Constituição Federal (art. 1º), merecendo ser aplicado pela Administração Pública ; e) a aplicação da Resolução ocorre a partir da sua publicação; f) aquelas hipóteses em que os órgãos municipais, em especial o órgão ambiental licenciador, entender que

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as Diretrizes para regularização, mesmo já expedidas, devam ser modificadas por razões técnicas ou de necessidade de preservação ambiental, inexiste óbice a sua modificação para que incida as novas regras, na medida em que a emissão destas Diretrizes não geram direitos, sendo que o eventual direito adquirido somente ocorre com o licenciamento dos projetos aprovados. A interpretação acima foi adotada para a cidade formal em áreas desocupadas, sem contestação até o presente momento. A regularização de loteamentos pressupõe que as pessoas já estejam morando no local. Ou seja, a área já está ocupada, portanto não guarda as características que a fizeram APP. Não há mais vegetação natural que justifique o gravame ou será que uma área densamente ocupada, com as todas interações decorrentes (esgoto, produção de resíduos sólidos, destinação de águas servidas, impermeabiliza-ção do solo, etc.) permanece com as características que lhe gravaram como APP? Assim com mais razão cabe adotar o mesmo posicionamento jurídico para os casos de regularização fundiária.De outra parte não é ambientalmente mais adequado identificar o que ainda é possível proteger e no restante investir em urbanização (tratamento esgoto, medidas para conter impermeabilização, controle das edificações, etc.) para minimizar os impactos decorrentes da ocupação? Veja-se que não estamos tratando de situações individuais, localizadas, mas de um contexto que não é peculiar a Porto Alegre, mas que prepondera na maior parte das cidades de portes médio e grande brasileiras.Neste sentido sustenta-se que a regularização fundiária é um enorme passi-vo ambiental das cidades brasileiras que precisa ser enfrentado. O conceito passivo ambiental tem origem na economia, podendo assim definido: “Valor monetário, composto basicamente de três conjunto de itens: o primeiro, composto das multas, dívidas, ações jurídicas (existentes ou possíveis), taxas e impostos pagos devi-dos à inobservância de requisitos legais; o segundo, composto dos custos de implantação de procedimentos e tecnologias que possibilitem o atendimento às não conformidades; o terceiro, dos dispêndios necessários à recuperação de área degradada e indenização à população afetada. Importante notar que este conceito embute os custos citados acima mesmo que eles não sejam ainda conhecidos; e, pesquisadores estudam como incluir no passivo ambiental os riscos existentes, isto é, não apenas o que já ocorreu, mas também o que poderá ocorrer141” . A irregularidade urbana, expressa pelas ocupações irregulares, pelos loteamentos clandestinos realizados à margem da lei, pelos assentamentos auto produzidos que não respeitam regras e limites físico territoriais, mas se configuram a partir do local e da organização dos próprios ocupantes, são

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uma realidade cotidiana das cidades brasileiras. Negar a existência ou enfren-tar o problema a partir da ótica pode ou não pode continuar morando neste local, enxergando a situação a partir dela mesma e sem considerar se há outro local mais apropriado para aquelas pessoas residirem e se há possibilidade de relocalização, bem como sem identificar quem paga os custos de eventual re-localização, é perpetuar em conceitos cuja decorrência hoje estamos sofren-do. É necessário romper com o paradigma compartimentalizado das análises, superar a avaliação urbana a partir do imóvel ou da gleba, tendo a dimensão do espaço que está inserido, criando diretrizes de sustentabilidade urbano-ambientais, considerando as ocupações irregulares como uma realidade que precisa ser enfrentada. As ocupações irregulares, portanto, não são um problema de direito individual entre o ocupante e o Poder Público, mas decorrem deste passivo ambiental que as cidades precisam enfrentar, tanto no que diz com a neces-sidade de implementar a regularização fundiária como política pública, nas suas duas dimensões – urbanística e jurídica –, quanto da importância de criar um mercado que produza habitação popular regular, que a população de baixa renda tenha condições de adquirir. Não é tarefa fácil. Contudo, a ordem urbanística, decorrente do Es-tatuto da Cidade, que está sendo construída, não pode ignorar estes proble-mas até então tratados como individuais, mas que pela sua dimensão social, dão conta da necessidade de tratá-lo como política pública. Cabe à cidade sustentável fazer este debate, envolvendo agentes pú-blicos e privados, desenvolvendo mecanismos para superar esta dicotomia, bem como apresentando soluções fruto da simbiose de conceitos interdisci-plinares e que, sobretudo, resultem em qualificação da gestão ambiental. O caso ora em exame é exemplo de projeto de sustentabilidade urbano ambiental. Faz parte do Projeto Integrado Lomba do Pinheiro, a comunidade custeou levantamento topográfico, há diretrizes aprovadas, as ruas estão pavimentadas, há esgotamento sanitário, há uma escola estadual no local, bem como área destinada à praça. Todas as diretrizes urbanísticas para regularização foram discutidas com a comunidade, inclusive para explicitar os motivos técnicos de manter a margem de proteção do arroio, de evitar o seu assoreamento, entre outros aspectos. Conforme consta no relatório deste estudo de caso, há manifestação de geólogo informando sobre as condições das casas que estão inclusas no limite dos 30m, declarando que estão em

141 Dicionário Brasileiro de Ciências Ambientais. Thex Editora, 1999. Pedro Paulo de Lima e Silva, Antonio Guerra, Patrícia Mousinho, Cecília Bueno, Flávio de Almeida, Telma Malheiros e Álvaro Bezerra de Souza Jr..

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situação similar a outras aceitáveis na cidade formal. Portanto, antes da regu-larização jurídica, foi adimplida a etapa da negociação urbanística, tanto em apontamento das diretrizes quanto no debate com a comunidade acerca das regras da regularização. Ainda, foram efetuadas obras. Em se tratando de passivo ambiental a ser enfrentado pelas muni-cipalidades a regularização fundiária precisa melhorar as condições urbano ambientais da população moradora do local. Assim se o projeto desenvolvi-do implicar em melhoria das condições ambientais da área, enfrentando o problema como verdadeiro passivo ambiental e minimizando os problemas decorrentes da ocupação, não há óbice que em situações específicas, nas quais demonstradamente não apresentem risco à população, a APP já des-caracterizada deixe de ser observada. Isto tem sentido porque outros valores ambientais serão protegidos, como tratamento do esgoto, o recolhimento e o destino dos resíduos sólidos urbanos, o desassoreamento dos cursos d`água, a maior permeabilidade do solo, entre outros elementos que podem ser tra-balhados no caso concreto. Isto porque é necessário reconhecer e tratar este passivo, de modo que a qualidade de vida nas cidades possa ser melhorada. Isto porque a aplicação da Resolução Conama nº 303/02 ocorre a partir da sua publicação; não se cogita a aplicação desta nos casos de regula-rização de loteamentos, porque se trata de situações historicamente consoli-dadas. E para os casos de regularização de loteamentos, aplica-se a metragem de APP prevista à época da sua implantação, sendo que antes de 1979 era 5,00m, após dezembro de 1979 até maio de 2003 a metragem de 15,00m e após maio de 2003 a metragem 30,00m. Ainda, porque, a regularização fun-diária é passivo ambiental das cidades brasileiras e como tal deve ser tratada.No caso em exame – Vila Viçosa – além de se constituir em projeto de sus-tentabilidade urbano ambiental, que trata a regularização fundiária como passivo ambiental, o loteamento é anterior a 1979, aplicando-se a metragem de APP de 5,00m. Atualmente vige a Resolução Conama 369/06, a qual identifica a regularização fundiária sustentável como hipótese de interesse social e que permite intervenção e supressão de APP, nos termos autorizados pela MP 2.166-67/2000, que modificou o Código Florestal. Regularização fundiária é caso de intervenção em APP, pois pressupõe que as pessoas já residam. As-sim há fundamento novo para ser adotado, nos termos da citada Resolução. Naquela época o exame jurídico foi distinto, utilizando para tan-to os princípios do direito intertemporal. Com base nestes e considerando que a ocupação fora anterior a 1979, juridicamente havia a possibilidade da

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manutenção da faixa de preservação de 5 metros. Contudo, para o Projeto Urbanístico adotou-se uma largura da APP de 15 metros, suficiente para manter as edificações existentes, viabilizando a regularização de todos os lotes propostos no projeto original, consolidados há praticamente 30 anos naquele local, mas que também permitisse a manutenção da vegetação ao longo do arroio, contribuindo para sua preservação. Esta faixa de 15 metros foi incluída na descrição dos lotes e será gravada nas matrículas de cada lote atingido. Toda esta articulação entre a SMAM, para definir as situações de ris-co e os procedimentos cabíveis, e a Procuradoria, para embasar o parecer que possibilitou a aprovação do Projeto, bem como a própria análise do projeto diante dos fatores urbanísticos, foram acompanhados pela equipe do Projeto Integrado. A aprovação do projeto levou aproximadamente quatro anos, ou seja, aconteceu seis anos após a iniciativa de emitir as diretrizes. Isto mostra que ainda nos deparamos com a morosidade dos órgãos públicos em trami-tar os expedientes e aprovar os projetos, mormente nas situações irregulares consolidadas, o que acaba desmotivando os moradores na continuação da regularização. Além disso, o desenvolvimento deste projeto demonstrou a neces-sidade de se estabelecer critérios para os procedimentos administrativos de regularização fundiária, a fim de se evitar exigências de padrões urbanísticos incompatíveis com as áreas ocupadas. O mesmo acontece com as partes ocu-padas das Áreas de Preservação Permanente, onde não se permite regularizar, mas também não se consegue recuperá-las. Neste sentido, os novos instrumentos jurídicos que levam em con-sideração estas questões precisam ser urgentemente implementados, assim como decisões e pareceres integrados inter-setorialmente, para alavancar o processo de regularização fundiária sustentável, que preconize a compatibi-lização da moradia com a preservação dos bens naturais ainda existentes. No caso específico da Vila Viçosa, foi através do Projeto Integrado, que promo-veu e por fim assumiu a condução e responsabilidade por esta regularização que se conseguiu chegar nas etapas alcançadas, uma vez que tomou as ini-ciativas para criar um ambiente favorável que integrasse as visões e propostas setoriais, a partir de um determinado território. Atualmente o Projeto Integrado Lomba do Pinheiro foi o embrião e originou o projeto de lei que está em debate na cidade denominado Opera-ção Consorciada Lomba do Pinheiro. Esta Operação Consorciada, delineada

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a partir do que dispõe o Estatuto da Cidade, pretende trabalhar aquele terri-tório de forma diferenciada, incentivando a recuperação urbana, a produção de habitação popular regular nas áreas vazias, a realização de infra-estrutura e de serviços compatíveis com a planejada operação. Em suma, pretende tratar a região de forma integrada, a partir do diagnóstico e do plano de melhorias projetado na Operação.

V-REGISTRO DO LOTEAMENTO

Com o levantamento adequado e as condições legais que faltavam, o Projeto Urbanístico de Regularização deste loteamento foi aprovado na Prefeitura Municipal de Porto Alegre em fevereiro de 2006. No entanto, este projeto foi re-aprovado em novembro de 2006, pois expirou o prazo de 180 dias previstos para o registro do loteamento no Cartório de Registro de Imóveis. A Associação de Moradores tentou encaminhar este registro, contratando um advogado que requereu o registro mas não obteve sucesso, pois as exigências e custos envolvidos nesta etapa são similares a de um lo-teamento novo, não havendo uma sensibilização por parte dos registradores quanto às questões da regularização fundiária, que quase sempre envolvem comunidades de baixa renda, que não conseguem arcar com estes novos custos. Por isso novamente o Município assumiu este encargo, ficando a responsabilidade pelo registro imobiliário do loteamento à Procuradoria-Geral do Município, através da Gerência de Regularização de Loteamentos, com vistas a realizar o registro via Provimento More Legal142. Não foi sem dificuldade que a Associação de Moradores mobilizou seus associados para carrear ao Município os documentos necessários para viabilizar o ajuizamento da ação de registro, pois os moradores se encontram descrentes no processo de regularização. Muitos, inclusive, negaram-se, num primeiro momento, a fornecer documentos, refletindo a desconfiança pelos processos organizativos e comunitários. Neste caso específico, como a pro-priedade da gleba é da própria Associação de Moradores, ficou facilitada a questão de acertar a situação daqueles que já não possuíam os contratos de compra e venda, ou já estavam na enésima compra e não conseguiam docu-mentar a seqüência de transmissão deste lote desde o contrato original. Portanto, com esta documentação reunida, no dia 12.02.07 houve o ingresso da ação na Vara dos Registros Públicos. Já houve a complementação de documentos neste processo e espe-

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ra-se que o desfecho seja a conclusão bem sucedida, com os registros indivi-dualizados, neste que será um caso de Regularização Fundiária pioneiro em Porto Alegre.

V.I- PROVIMENTO MORE LEGAL

A regularização fundiária e registral dá a segurança da posse e a qualidade de vida da população. Um lote devidamente registrado confere a propriedade ao adquirente e a tranqüilidade de ser “dono da sua terra”. Conforme já explanado, a regularização do loteamento Vila Viçosa se deu através da aprovação do projeto urbanístico com base na Lei Com-plementar Municipal n° 140/86, e assim, uma série de documentos exigidos pela Lei Federal n° 6.766/79 e LC 434/99 (atual PDDUA de Porto Alegre), foram flexibilizados. Assim, quando a Associação levou o projeto do loteamento para registro junto ao Cartório Imobiliário competente, esbarrou na documenta-ção por este exigida uma vez que este tratou como se o loteamento regular fosse. Analisando a situação em tela, verificamos que poderíamos fazer a regularização registral através do Provimento n° 28/2004 da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, denominado Projeto More Legal 3. A grande contribuição do Provimento é que ele diminui signifi-cativamente as exigências documentais para a aceitação do registro do par-celamento do solo, valorizando em especial os documentos emitidos pela Municipalidade. Este provimento é um verdadeiro instrumento de inclusão social. Podemos dizer que tal provimento, bem como seus antecessores, Provimento n° 39/95 (Projeto More Legal 1) e Provimento n° 17/99 (Pro-jeto More Legal 2) tem como objetivo transformar a propriedade “informal” oriunda dos loteamentos clandestinos e/ou irregulares em propriedade for-mal. Assim, tratando-se de situação consolidada, onde: a) não há litígio sobre a propriedade e posse; e b) há vínculo entre o adquirente e o proprietário, haverá a possibilidade de regularização com a exigência documental reduzi-da. Insta registrar que se entende por situação consolidada aquela em

142 Provimento N° 28/2004 da Corregedoria Geral da Justiça do Rio Grande do Sul.

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que o prazo de ocupação da área, a natureza das edificações existentes, a lo-calização das vias de circulação ou comunicação, os equipamentos públicos disponíveis, urbanos ou comunitários, dentre outras situações, indique sua irreversibilidade. Importante frisar que o art. 2º do Provimento dispõe que nas co-marcas do Rio Grande do Sul, em situações consolidadas, poderá a autori-dade judiciária competente autorizar ou determinar o registro do parcela-mento acompanhado do título de propriedade do imóvel, certidão de ação real ou reipersecutória de ônus reais e outros gravames e planta e memorial descritivo, emitido ou aprovado pelo Município. A ação para a regularização registral do loteamento Vila Viçosa ainda não foi julgada e está tramitando na Vara dos Registros Públicos da comarca de Porto Alegre, sob o n° 107.0025652-4.

VI- REFLEXÕES SOBRE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Este caso permitiu identificar alguns problemas que ocorrem no processo de regularização, que geralmente ocasionam a interrupção e até a desistência dos interessados na conclusão do processo. Um dos mais evidentes é a dificuldade de organização das comuni-dades. Embora exista um significativo número de associações de moradores e cooperativas habitacionais, a iniciativa da regularização normalmente parte de um indivíduo ou pequeno grupo de moradores. Estes, na maioria dos ca-sos, não tem conseguido mobilizar seus vizinhos, já bastante descrentes, nem reunir documentos individuais necessários, como contratos de compra e venda dos lotes. Muitos, inclusive, negam-se a fornecer informações e prin-cipalmente documentos, alegando já terem uma solução individual para seu lote, refletindo a desconfiança pelos processos organizativos e comunitários. Mesmo a Vila Viçosa, tendo Associação de Moradores desde 1980, enfrentou estas questões principalmente no que se refere a cotizar seus associados para contratar serviços técnicos e juntar documentos. Outro problema comum ocorre em relação à titularidade das glebas. A maioria dos casos apresenta mais de um proprietário na mesma matrícula, em condomínio indivisível e somente um dos proprietários comercializa lo-tes. Isso ocorre muito em caso de falecimento do titular e registro de frações ideais dos herdeiros numa mesma matrícula. Neste caso específico, como a propriedade da gleba é da própria Associação de Moradores, ficou facilitada a questão de acertar os contratos de compra e venda, pois se conhecia a his-

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tória de cada morador. Também, para aqueles que não possuíam os contratos originais, ou já estavam na enésima compra e não conseguiam documentar a seqüência de transmissão do seu lote desde o contrato original, o processo ficou facilitado. No entanto, a maior dificuldade, sem sombra de dúvidas, encon-tra-se na fase urbanística da regularização, especificamente nas etapas que dependem da contratação de responsável técnico para elaboração de Le-vantamento Topográfico e Projeto Urbanístico. Esta fase envolve custos que a comunidade muitas vezes não consegue absorver, pois ou não consegue dividir os custos devido ao perfil econômico dos moradores ou não está suficientemente organizada para este procedimento. Na tentativa de econo-mizar, contrata profissionais que, mesmo legalmente habilitados, não tem o devido conhecimento ou prática para tratar de regularização de loteamentos, acabando por interromper o processo. Ainda nos deparamos com a morosidade da máquina pública em tramitar os expedientes e aprovar os projetos, o que acaba diminuindo o in-teresse na continuação da regularização, por parte dos moradores. Não existe um critério para os procedimentos administrativos quanto à regularização. Mesmo gravando a área como AEIS, acaba-se exigindo padrões urbanísticos incompatíveis com a área ocupada. O mesmo acontece com as partes ocu-padas das áreas de preservação permanente, onde não se permite regularizar, mas também não se busca uma forma de recuperá-las. Esta é apenas uma abordagem superficial de alguns fatores que con-tribuem para inviabilizar a possibilidade de regularizar lotes, e por conse-qüência edificações e atividades de comércio e serviço que ali ocorrem. Isto aumenta o sentimento da exclusão urbana que existe em muitas destas comunidades. A degradação ambiental é um dos efeitos mais evidentes deste pro-cesso, pois as edificações se estendem, em geral, até junto aos arroios, geran-do, além da poluição, o risco de deslizamento e inundação para as moradias, que são atingidas pela água nas épocas de chuva intensa. Um outro aspecto é a falta de infra-estrutura. O loteador clandestino demarca os lotes e os vende sem qualquer compromisso com a execução de obras de infra-estrutura, tais como obras e instalação de redes de água, esgo-tos, iluminação predial e pública, pavimentação e arborização, entre outras. Com o aumento da urbanização, as redes básicas que atendiam a população rural se tornaram insuficientes para a crescente demanda populacional, e as pessoas passaram a sofrer com a carência de infra-estrutura básica, serviços

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públicos complementares e de equipamentos comunitários como escolas, praças e postos de saúde. A progressiva implantação destas redes e serviços pelo poder público feitas principalmente a partir dos anos 80, sempre fica aquém da expecta-tiva e da necessidade dos moradores. Apesar disto, a Lomba do Pinheiro atualmente ainda apresenta uma significativa concentração de glebas vazias, representando um potencial de ocupação urbana para o futuro. De toda a região considerada no estudo através do Projeto Integrado, em torno de 50% da área se encontra vazia, e aproximadamente 28% foi considerada apta para ocupação urbana. Estas áreas vazias ainda mantêm suas características natu-rais preservadas e sua ocupação com algum tipo de urbanização dependerá de uma definição sobre o quanto este ambiente poderá ser modificado, com a projeção do impacto desta ocupação em todo o sistema de recursos natu-rais da região, bem como na qualificação urbana que esta ocupação poderá proporcionar.

VII-CONCLUSÕES

O caso ora em exame é exemplo de projeto de sustentabilidade urbano ambiental. O projeto desenvolvido implicou em melhoria das con-dições ambientais da área, enfrentando o problema como verdadeiro passivo ambiental e minimizando os problemas decorrentes da ocupação. Este en-frentamento se expressa pela implantação paulatina da infra-estrutura, exis-tindo solução para drenagem (dique natural decorrente do desassoreamento do curso d’água), obras de esgotamento pluvial e cloacal (sistema misto), recolhimento dos resíduos sólidos, pavimentação de rua, todas obras con-quistadas pela população por intermédio do Orçamento Participativo e que foram viabilizadas a partir da análise da possibilidade de regularização do lo-teamento. Já, água tratada havia desde 1978 no local. Veja-se que a análise da possibilidade da regularização é critério para implantação da infra-estrutura, pois implica na possibilidade de pelo menos parte da população permanecer no local. Por outro lado, exigir a regularidade “a priori” para implantação da infra-estrutura é inviável, pois são processos interdependentes e que ocorrem ao longo do tempo. Compreender que se trata de um processo e que exige atuação permanente implica em possibilitar que este processo se desenvolva, tanto urbanística quanto juridicamente. Ademais, a regularização fundiária atualmente exige ser tratada

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como política pública porque a dimensão da irregularidade urbana é de tal monta que deixa de ser um problema individual para ser um problema difuso, que acaba por afetar toda a coletividade. Por isso a necessidade de ponderar todos os aspectos, verificando como enfrentá-los de forma a mini-mizá-los, melhorando as condições urbano-ambientais da coletividade. Disso decorre a necessidade do Poder Público assumir a regulari-zação fundiária como prioridade em todas as suas etapas. O estudo de caso apresentado dá conta dos limites da atuação da comunidade, especialmente financeiros. A atuação em parceria com a comunidade, sem substituir a ne-cessária organização comunitária nestes processos que é fundamental para o sucesso destes, não pode significar a exigência de pagar por serviços que a política pública de regularização fundiária deve disponibilizar. Entendemos que a elaboração dos projetos urbanísticos e a regularização jurídica fazem parte destes serviços que devem ser disponibilizados pelo Poder Público para os casos de regularização fundiária de baixa renda, que integram o passivo ambiental das cidades brasileiras. Importante anotar que tratar o problema na sua dimensão ampla não é novidade, em matéria de direito ambiental. Um dos pilares da lei dos recursos hídricos é identificar os usos e a qualidade da água dentro de uma bacia hidrográfica, propondo metas para atingir a partir desta constatação. Há um reconhecimento que existem locais em que o nível de poluição é 4 (quatro) e vai permanecer neste patamar. Há um planejamento dos usos com compensação para outras áreas. Isto faz parte de uma política ambiental propositiva, de planejamento, que não trabalha somente nas conseqüências, mas que também atinge as causas das questões, a partir de uma análise ampla do problema. No ambiente urbano precisamos atuar de forma similar, atacando os problemas, fazendo compensações ambientais e estabelecendo limites para ocupação daquelas áreas que ainda restam e são tão necessárias à proteção dos ecossistemas. Ainda, enfatiza-se que a regularização fundiária também deve abran-ger o registro do loteamento no Ofício Imobiliário, pois com isso fecha-se o ciclo do processo. A segurança da posse e o direito à moradia se expressam pela regularização urbanística, jurídica e registraria tratada em conjunto. A legislação existente atualmente dá conta da diversidade de situ-ações a serem enfrentadas pela regularização fundiária. Todavia, falta muita gestão, ou seja, compreensão do processo como tendo início, meio e fim. Há a necessidade de cada área saber despir-se de concepções pré-estabelecidas,

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analisando os processos com suas peculiaridades e apontando soluções, alter-nativas que dialoguem com aquela realidade e represente uma simbiose de conceitos interdisciplinares e que, sobretudo, visem a qualificação urbanística e ambiental.

BIBLIOGRAFIA

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A DENÚNCIA ESPONTÂNEA COMO FORMA DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE

POR INFRAÇÕES

Cândida Castro*

* Assistente Administrativo. Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre - Procuradoria Tributária. Bacharel em Direi-to pela PUCRS. Extraído da monografia de conclusão do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, com idêntico título.

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RESUMO Trata o presente trabalho sobre responsabilidade tributária com en-foque na denúncia espontânea, prevista na legislação brasileira como for-ma de exclusão da responsabilidade pelo cometimento de infrações. Esse instrumento tem o objetivo de incentivar o adimplemento de obrigações tributárias antes da iniciativa fiscalizadora da Fazenda Pública mediante o afastamento da cobrança da penalidade pecuniária devida. Para a identifi-cação dos requisitos e dos efeitos da denúncia, o texto traz uma abordagem do nascimento da obrigação tributária e de seus elementos característicos, como fato gerador, crédito tributário, sujeitos ativo e passivo. Também são estudadas as espécies de responsabilidade tributária, entre elas a responsa-bilidade por substituição e por transferência, inclusive de cada uma de suas subespécies. Há a análise da responsabilidade pelo cometimento de infração tributária, entendida em linhas gerais como o inadimplemento de obrigação tributária. Conclui-se o estudo pelo trato dos seguintes aspectos do tema: o pagamento parcelado do tributo, os limites à espontaneidade pelo início de procedimentos fiscalizatórios, a possibilidade de denúncia de obrigação acessória e o afastamento das multa moratória e indenizatória, espécies de penalidade pecuniária.

ABSTRACT The present assignment is about tax liability, mainly about sponta-neous denunciation. This instrument is foreseen in the Brazilian legislation as a method of responsibility exclusion for breaching taxes law. It has the goal of stimulating taxes payment before the initiative from State by remo-ving the fine. The requirements and the effect of the denunciation are brou-ght on this paper by the study of the elements related to the taxes at all, such as credit and citizens who were in debt to the State. Also tax liability species are studied, including their subspecies. This study is concluded by analyzing the specific topics related to spontaneous denunciation, such as payment, tax procedures effects, and the fine types able to be removed.SUMÁRIO: I -INTRODUÇÃO II -A OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA; II.I -Noções gerais; II.II -Relação jurídica tributária: obrigação tributária principal e acessória; II.III -Crédito Tributário; II.IV -Fato Gerador; II.V -Sujeitos da relação jurídica tributária. III -RESPONSABILIDADE TRI-BUTÁRIA; II.I - Noções introdutórias: o conceito de responsável; III.II -A responsabilidade por transferência e por substituição; III.III -Outras Clas-sificações; III.IV-Espécies de responsabilidade por transferência: do art.129

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ao art.135 do Código Tributário Nacional; III.V-Responsabilidade por in-frações. IV -DENÚNCIA ESPONTÂNEA: REQUISITOS E EFEITOS; IV.ICaracterísticas gerais da denúncia espontânea; IV.IIRequisitos para a De-núncia Espontânea; IV.IIIEfeitos da Denúncia Espontânea. V -CONSIDE-RAÇÕES FINAIS

I -INTRODUÇÃO

Trata o presente trabalho da responsabilidade tributária; em espe-cífico, de uma forma de afastá-la, chamada pela doutrina de denúncia es-pontânea. Está prevista no art.138 do Código Tributário Nacional e seu principal efeito é tornar inexigível a multa decorrente do descumprimento de obrigações tributárias. O principal problema proposto é a verificação de como funciona a denúncia espontânea, isto é, quais são seus requisitos e o espectro de seus efeitos. Para tanto, é necessária a definição e a identificação dos tipos de res-ponsabilidade tributária que atinge.Esse estudo foi elaborado justamente em função da importância que o tema da responsabilidade tributária possui. Sendo uma das principais prerrogativas do Estado a de arrecadar para o custeio de suas atividades, não há como se furtar à pergunta de como será entregue ou retirado o dever de pagar tributo ou multa a um terceiro que não o contribuinte, o responsável tributário. O conhecimento das hipóteses de responsabilidade tributária e das formas de seu afastamento, dentre elas a denúncia espontânea, pelo contribuinte ou responsável é garantia de efetivação do direito, pois permitirá a imposição contra perseguições injustas – inclusive judiciais – pelo Estado. Para esse fim, foi consultada a doutrina brasileira sobre o tema, tan-to por obras clássicas, como por artigos em periódicos recentes. Algumas decisões judiciais trazidas pelos autores foram incluídas para a ilustração dos pontos abordados. O corpo do trabalho está dividido em três capítulos: o primeiro trata do nascimento da relação obrigacional tributária e de todos os seus ele-mentos (sujeitos e objeto), além das especificidades próprias dessa obrigação, como o conceito de fato gerador e crédito tributário. O segundo, sobre as espécies de responsabilidade tributária, com destaque para a responsabilidade por infração, entendida como o descumprimento de uma obrigação tributá-ria. Por fim, o terceiro capítulo aborda a denúncia espontânea, identificando seus elementos caracterizadores e seus efeitos.

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II -A OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

II.I-NOÇÕES GERAIS

Quando se menciona norma tributária tem-se em mente uma pres-crição abstrata e legítima para impor comportamento determinado a quem se dirige. È composta de uma hipótese, que descreve os critérios necessários para que a respectiva conseqüência aconteça, compreendida como o com-portamento a ser imposto em função da ocorrência dos critérios hipotéticos. E a referência é a comportamento em sentido amplo, que pode abranger o estabelecimento de uma relação jurídica ou de uma sanção. A relação jurídica tributária característica do ordenamento jurídico brasileiro é formada envolvendo o sujeito passivo (contribuinte/responsável) e o sujeito ativo (Estado) para a prestação de tributo ou de deveres instru-mentais. Essas prestações formam as relações jurídicas material e formal, am-bas decorrentes de lei, respectivamente chamadas de “obrigação principal” e de “obrigação acessória”. Sua natureza é ex lege: se consuma independentemente da mani-festação de vontade do obrigado, bastando a ocorrência do fato necessário ao nascimento da obrigação143. Esse fato deve ser previamente determinado em lei e subordinado às diretrizes constitucionais. Isso não abrange somente o controle da legalidade do fato que deu nascimento à relação tributária. A leitura constitucional deve influenciar os atos dele decorrentes, como a atu-ação da administração pública ao fiscalizar e cobrar o tributo; a solução de controvérsias na esfera administrativa e na judicial; e atualmente, com grande relevância, o campo dos gastos públicos, aos quais se destinam os tributos arrecadados. O Estado, quando ocupa o pólo passivo, tem, além desse direito de exigir o adimplemento, o dever de proteger a confiança do sujeito passivo de que seus direitos constitucionais serão respeitados. Esse, além de pagar o tributo e atender a exigências de caráter formal, tem o direito, entre outros, de receber tratamento igualitário pelo Estado e sigilo quanto às informações obtidas pela fiscalização e aos atos praticados. Chama a atenção a importância do princípio da igualdade no trato entre o Estado e o sujeito passivo. Presente na Constituição Federal brasileira de 1988 em seu art 5º, caput, assume, sob a ótica do direito tributário, dois sentidos. No sentido jurídico, o Estado deve dar tratamento fiscal idêntico

143 Fato esse aqui compreendido como o critério descrito na hipótese da norma.

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a todos os contribuintes que se encontrem em idêntica situação; no sentido econômico, os encargos públicos devem ser suportados em igual medida por todos, respeitando a capacidade contributiva dos indivíduos. O princípio da igualdade também deve estar presente no momento da construção da norma tributária, como norma jurídica de caráter impera-tivo (de conteúdo diretivo e prescritivo). Temos, pois, que o tributo, dentre as espécies de pagamento de caráter pecuniário que se faz ao Estado, deve estar revestido de características que denotem a aptidão em colaborar com os gastos públicos daqueles a quem incumbe pagá-lo.

II.II -RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA: OBRIGAÇÃO TRIBU-TÁRIA PRINCIPAL E ACESSÓRIA

Dentre as relações jurídicas, que dizem respeito ao Direito, está a re-lação jurídica dita “tributária”. É aquela cujo objeto envolve uma prestação pecuniária (tributo) ou não-pecuniária (dever instrumental relativamente a tributo) conforme está no art.113 do Código Tributário Nacional (CTN). O pólo ativo dessa relação (credor) é o Estado, que tem o direito de exigir do pólo passivo (devedor) a prestação do objeto. Esses elementos formam uma relação do tipo obrigacional, cujo objeto central é o tributo, que é, regra geral, indisponível ao Estado (lhe é vedado deixar de exigir o adimplemento da obrigação).Existem duas principais teorias para explicar o vínculo jurídico obrigacio-nal. A primeira, a teoria monista, (ou unitária, postulada por F. Savigny) afir-ma que o liame entre o sujeito passivo e ativo é uno, compreendido como o direito de crédito e o dever de satisfazer o débito respectivamente entre os sujeitos. Em especial, o dever do sujeito passivo significa o dever de prestar sob coação, isto é, sob o risco do sujeito ativo perseguir seu crédito pela uti-lização de meios coativos no caso de inadimplemento. A teoria dualista percebe no vínculo jurídico a existência de dois elementos: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). De procedência alemã, essa teoria afirma que esses dois elementos são duas sub-relações. Há o débito, que é o dever de adimplemento propriamente dito do sujeito passivo (momento em que há a expectativa pelo credor do cumprimento espontâneo), e há a responsabilidade, que é a garantia dada por lei de que o sujeito passivo, se não houver a satisfação do crédito, pode constranger o devedor a efetuar o pagamento atingindo seu patrimônio. Na primeira,

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temos uma sub-relação de crédito-débito, na segunda, de constrangimento-sujeição. Embora soem parecidas, na verdade a teoria dualista permite prever a possibilidade de existir um vínculo entre um credor e um responsável que não tenha a titularidade do débito, mas deve sujeitar seu patrimônio. Caso clássico é o do fiador, que, ao contrário da maioria das relações obrigacionais que tem esses dois sub-vínculos ao mesmo momento, não tem o débito, mas a responsabilidade. Ressalte-se, porém, que não significa a existência de uma ordem de acontecimentos, primeiro o débito, depois a responsabilidade. A teoria apresenta-os como simultâneos, mas independentes. Com dito, se dividem basicamente em obrigação principal e acessó-ria, conforme o texto do art.113 do Código Tributário Nacional:

Art.113. A obrigação tributária é principal ou acessória. §1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por ob-jeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. §2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nelas previstas no interesse da arrecadação ou fiscalização dos tributos. §3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente a penalidade pecuniária.

A obrigação principal tem evidentemente por objeto pagamento de um tributo. Passa a ser exigido a partir da ocorrência do fato gerador, isto é, de uma situação previamente descrita em lei ensejadora do dever pagar tributo ao Fisco competente. A definição trazida pelo Código abarca, além do tributo em si, as penalidades pecuniárias, que são sanções administrativas. Cada um desses objetos tem seu fato gerador: o do tributo e o das sanções (o próprio des-cumprimento da norma que determina o pagamento do tributo ou algum dever instrumental). Nesse sentido, tanto o descumprimento da obrigação acessória, como o não pagamento do tributo se caracterizam num ato omis-sivo, que leva a uma conseqüência, a penalidade pecuniária. Não parece razoável o texto do §3°, que converte penalidade em obrigação principal (na verdade, está mais próximo de uma conversão da obrigação acessória em perdas e danos). O conceito de obrigação acessória define seu objeto em presta-ções negativas ou positivas sem conteúdo pecuniário. São deveres instru-

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mentais instituídos pela legislação (leis, decretos, instruções normativas) com o objetivo de assegurar e possibilitar o cumprimento de alguma obrigação principal para cuja fiscalização sirvam de instrumento. O fato, porém, de se denominar “acessória” não significa que sua existência dependa de uma obrigação principal específica, anterior e subordinante. Na verdade, a aces-soriedade está no conjunto de normas instrumentais, que existem para via-bilizar o cumprimento das obrigações principais como um todo. O termo “obrigação acessória” também não é considerado adequa-do, já que implica uma prestação de natureza patrimonial. Ora, o objeto da obrigação acessória é sempre não patrimonial, uma prestação de caráter instrumental que deve ser suportada pelo sujeito passivo correspondente. Abrange atos como a emissão de documentos fiscais, a escrituração de livros, a entrega de declarações, a inscrição em cadastro fiscal. O adimplemento ocorre com a realização dos atos na forma prescrita. O adimplemento de penalidade pecuniária sempre depende de atu-ação prévia do sujeito ativo, já que nasce justamente na atividade fiscalizató-ria, quando se depara com uma infração à lei em sentido amplo. A aplicação da penalidade é resultado do poder penal do Estado e tem o objetivo de resguardar a validade da ordem jurídica. Pode ser dispensada nos termos do art.108, §2º do CTN. Se cobrada, o é juntamente com o crédito tributário e com esse não se confunde, apesar do CTN ter assimilado (erroneamente, como dito) a penalidade pecuniária ao conceito de tributo. Quanto ao adimplemento da obrigação tributária propriamente dita, a prestação pecuniária pode ser satisfeita sem a atuação prévia da admi-nistração tributária (por homologação, no dizer do CTN), bastando o sujeito passivo recolher o tributo no prazo legal. Ou ainda, ser necessária provi-dência posterior do sujeito ativo, mediante a consecução do lançamento de ofício ou com declaração apresentada pelo sujeito passivo, que deve efetuar o adimplemento após notificação desse lançamento.

II.III -CRÉDITO TRIBUTÁRIO

É comum no Direito Privado a simetria entre os termos “obriga-ção” e “crédito”. No Direito Tributário, referem-se a dois momentos da relação tributária. Com o primeiro, há o nascimento da obrigação pela ocor-rência do fato gerador, além da identificação dos sujeitos passivo e ativo. Já com o crédito, que decorre da obrigação e acontece após o lançamento, há

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o tributo dotado de liquidez, certeza e exigibilidade. Essa é a técnica do CTN, que considera crédito como tal, somente se plenamente líquido, certo e exigível. Observando-se, porém, do ponto de vista da relação jurídica obrigacional, o crédito nasce simultaneamente à obrigação tributária. O lançamento é o ato administrativo144 que revestirá o crédito de tais características. Será permitido, a partir daí, que o sujeito ativo pratique atos de cobrança do tributo e que se considere o sujeito passivo adstrito a efetuar o pagamento. O debate sobre a natureza jurídica do lançamento já dividiu a dou-trina: os que consideravam o lançamento como declaratório ou como cons-titutivo do crédito. Atualmente temos a tese de Alberto Pinheiro Xavier145, que reconhece no lançamento o título jurídico da obrigação tributária. Essa tese afirma que há independência entre o que está declarado no título e a situação de fato (obrigação) que o originou, embora já existente a obrigação; o lançamento torna o crédito atendível, de modo que seja possível ao sujeito passivo pagar quantia determinada, e ao ativo, a receber. Caso não haja o pagamento, o crédito se torna exeqüível (como efeito do inadimplemento) com a persecução judicial dos valores devidos. O lançamento, porém, não se dá de uma única forma nas vias admi-nistrativas. O CTN lista suas espécies nos art.147 a 150. O chamado lançamento por declaração acontece quando cabe ao contribuinte avisar o Fisco da ocorrência do fato gerador, informando todos os dados necessários para a identificação do valor devido. Após o cálculo, cabe a notificação do contribuinte para que impugne; hoje, porém, consi-dera-se o contribuinte notificado no ato em que presta as informações. Esse era o caso do imposto de renda. O lançamento por arbitramento ocorre quando a autoridade admi-nistrativa não confere fé às informações prestadas ou quando ausentes. Nesse caso, arbitra-se um valor provável, a partir do qual se calculará o tributo devido. Como exemplo, citamos o imposto de transmissão de bens imóveis. A autoridade, se não concordar com o valor do imposto apresentado pelo contribuinte, propõe um novo valor, que poderá ser pago ou impugnado (mediante investigação administrativa ou judicial do fato gerador). O lançamento de ofício na verdade se constitui na revisão por ini-

144 Conforme o art.142, que afirma ser o ato vinculado (não-discricionário) e obrigatório (não-facultativo), sob pena de responsabilidade do servidor público.145 Citado por AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro.São Paulo: Saraiva, 2005. 11ª ed revista e atualizada p.337 e por COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Manual de Direito Tributário.Rio de Janeiro: Forense, 2002. 2ª ed p.427

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ciativa da administração pública de lançamento já efetuado. Ocorre nos ca-sos relacionados no art. 149 do CTN podendo acontecer dentro do prazo decadencial de 5 anos (art 173). O lançamento também pode ser revisto por iniciativa do contribuinte, quando este apresenta sua impugnação ou recurso voluntário, nos termos do art 145. Por fim, o lançamento por homologação. Ocorre quando o valor do tributo é verificado pelo contribuinte, que recolhe o tributo. Em tese, há o dever de verificar todos os aspectos desse recolhimento, porém, havendo o silêncio do sujeito ativo, conclui-se que há a concordância com o valor pago. Considerando o papel do lançamento de materializar o crédito, observa-se que de fato não há um lançamento propriamente dito, mas uma homolo-gação tácita do pagamento, o que aproxima essa espécie da decadência do direito de o sujeito ativo pessoalmente apontar o seu crédito. O lançamento é um ato administrativo complexo, que se inicia com a investigação da realização do fato gerador, passa pela fixação do valor do tributo até a notificação do sujeito passivo. Somente a ciência do sujeito pas-sivo pela notificação satisfaz a condição de eficácia do lançamento, a partir da qual se considerará “definitivamente” constituído o crédito tributário. Ressalte-se, por fim, que desde seu início o lançamento gera efeitos jurídicos, entre os quais o de afastar a possibilidade da denúncia espontânea, nos termos do parágrafo único do art. 138 do CTN ( “Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.”).

II.IV -FATO GERADOR

A despeito de todo o debate146 em torno da denominação do fato que se subsume a hipótese da norma tributária, devemos primeiramente nos ater a definição dada pelo CTN nos art.114 e art.115:

Art. 114. Fato gerador da obrigação tributária é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. Art.115. Fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal.

Para o nascimento da obrigação de pagar tributo, é necessária a

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ocorrência de um fato, uma situação da vida, cuja descrição compõe o nú-cleo material de uma norma tributária. Ocorrendo o fato, tem-se como conseqüência o dever do pagamento do tributo previsto. Essa situação pre-viamente descrita chama-se fato gerador147 (ou fato imponível, hipótese de incidência, suporte fático, entre outras denominações). Essa circunstância, que descrita em lei, dá origem à obrigação tri-butária, pode ser um fato qualquer ou um conjunto de fatos. Pode ser um fato jurídico (como a morte é para o Imposto de Transmissão), um negócio jurídico (compra-e-venda), ou simplesmente um ato não jurídico, como está descrito no art.116 e parágrafos do CTN:

Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmen-te lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja defini-tivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

No parágrafo único, o código aponta para aquelas situações por vezes irrelevantes na relação jurídica material da qual fazem parte, mas são eleitas para determinar o tempo do fato gerador de um tributo, e que podem ser mascaradas ilicitamente. Por exemplo, o caso do fato gerador do ICMS, que é a saída de mercadorias do estabelecimento mercantil. A “situação jurídica” descrita no inciso II exige que o ato seja re-vestido de uma formalização específica para se constituir como fato gerador. É o caso da situação jurídica condicional148 do art. 117 do CTN. Trata-se de fato ou negócio jurídico que corresponda à descrição legal do fato gerador

146 Veja em AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro.São Paulo: Saraiva, 2005. 11ª ed revista e atualizada. p.257 e em CARVALHO, Paulo de Barros Carvalho. Teoria da norma tributária. São Paulo: Max Limonad, 2002. 4ª ed p.116.147 Não podemos considerar, porém, que a descrição hipotética na qual se constitui o fato gerador possa ser chamada de tipo jurídico. Segundo Ricardo Lobo Torres, o tipo jurídico é uma figura aberta, composta de significados inclusive oriundos da vida social, como é a noção de empresário ou de indústria. O fato gerador é uma descrição legal fechada, determinada. Sua formalização é exigência do princípio da legalidade, que atua como garantia de não-arbitrariedade do Estado perante o sujeito passivo. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.13ª ed.

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e que tem sua eficácia subordinada a evento futuro e incerto. Se a condição é suspensiva, sua implementação gera obrigação tributária. Se é resolutiva, é fato gerador, ainda que no futuro suas conseqüências possa ter efeito ex nunc. A tributação também pode ocorrer a partir de atos ilícitos, confor-me está no art. 118, I do CTN (grifo posto): Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstrain-do-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos con-tribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.

Ressalte-se que não se trata de a lei descrever como fato gerador uma situação ilícita; apenas considera-se válido um fato como gerador se descrito como fato gerador de norma tributária, embora eventualmente atingido de ilicitude. A justificação está no princípio do non olet: a ilicitude do fato gerador não atinge o respectivo crédito, mesmo que ato ilícito implique na verdade numa sanção, que não se confunde com tributo. O objetivo é promover a igualdade de tratamento entre o sujeito passivo, não devendo receber um tratamento mais gravoso do que aquele que age ilicitamente. E ainda no Princípio da Capacidade Contributiva, que impõe a cobrança de tributos sobre atos que demonstrem a capacidade contributiva do sujeito passivo ainda que sua origem esteja em atividades ilícitas149. Considerando ainda a Capacidade Contributiva, o fato gerador pode ser causal se tiver conteúdo jurídico-econômico. É formal se ausente esse conteúdo econômico. Exemplo é o imposto sobre o selo, cobrado no Brasil até a Emenda nº18 de 1965. Nos casos em que a descrição de algum fato gerador pré-existente é acompanhada de “novas” características, temos o chamado fato gerador complementar, formando um novo fato. É a saída de mercadorias do estabe-lecimento, que atende ao ICMS. O IPI tem também no seu fato gerador a

148 Sobre negócios jurídicos condicionais, assim diz o Código Civil de 2002: “Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa. Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.”

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mesma descrição, mas acompanhada da expressão “destinada ao estrangeiro”. Nesse caso, prevalece a não incidência estabelecida pela Constituição Fede-ral150 . A ocorrência do fato gerador também revela os sujeitos da obriga-ção. Se ocorre o fato “aquisição de renda”, que é fato gerador do tributo “Imposto de Renda”, temos o sujeito passivo, aquele que adquiriu renda, e o sujeito ativo, a União (que o é por competência atribuída pela Constituição Federal). Devem ser considerados o momento no tempo e o local no espaço em que acontece o fato gerador. O aspecto temporal permite a identificação da norma vigente à época, o que serve tanto para sua caracterização como fato gerador, tanto como fato “isento” do dever de pagar tributo. O aspecto espacial se refere à norma vigente naquele território; é matéria sujeita ao Princípio da Reserva Legal. No caso de o fato gerador ocorrer em territó-rios de mais de uma pessoa jurídica de direito público, devem ser invocados os princípios da territorialidade ou do lugar do destino nalgum caso de conflito aparente de normas. O fato gerador é instantâneo quando sua ocorrência num momento do tempo implica uma obrigação imediata do pagamento de tributo. Sob o aspecto material, trata-se de fato gerador simples. Fato gerador periódico, também chamado complexivo (por Amílcar de A. Falcão) e definido como complexo no plano material, é o que se reali-za ao longo do tempo, quanto “n” fatos isolados são somados, aperfeiçoando o fato gerador. Ocorre num período de tempo, abrangendo um conjunto de fatos. É o caso do Imposto de Renda, cujo fato gerador é toda obtenção de renda que tenha ocorrido no período de apuração. Basicamente há dois posicionamentos quanto aos efeitos de normas novas em relação a fatos geradores periódicos: i) o fato gerador se aperfeiçoa somente no último minuto do período de apuração (no caso do IRPF, 31 de dezembro) de modo que leis que entraram em vigência durante o esse perí-odo geram seus efeitos desde seu início do transcurso; ii) leis novas somente gerariam efeitos a contar do início do período imediatamente seguinte. É a tese expressa no art. 150, III, b da Constituição Federal. O STF adotou o primeiro entendimento com a edição da Súmula 584151 O fato gerador continuado é uma situação duradoura, estável no

149 Segundo TORRES, Ricardo Lobo, op. cit., a maioria da doutrina brasileira defende o non olet, “embora em alguns países haja reserva sobre sua legitimidade, por contrastar com princípios do Direito Penal.150 “Art.153. Compete a União instituir impostos sobre:(...)IV – produtos industrializados;(...)§3º o imposto previsto no inciso IV:(...)III – não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior;”

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tempo, que “está”. A norma tributária estabelece um corte, um momento no tempo (por exemplo, todo dia 15 de dezembro de cada ano), quando se verificará a ocorrência do fato gerador. È o caso do IPTU, cujo fato gerador é ser proprietário de imóvel territorial urbano. A quantificação do tributo pode se dar de diversas maneiras. A mais simples é o pagamento da quantia já fixada em lei: basta a ocorrência do fato descrito, para que haja o dever de pagar o montante “x”. É o chamado “tributo fixo”, cuja expressão mais comum está nas taxas152. De maneira geral, os tributos são pagos em quantias determinadas, a partir de uma medida de grandeza do fato gerador (valor do imóvel, preço; chamada genericamente de base de cálculo) sobre a qual se aplica um per-centual. È o caso do ICMS, cuja alíquota é aplicada sobre o valor constante em nota fiscal. Ou ainda a partir de um fator (quantidade, peso, volume), pelo qual se multiplica por uma cifra “x”. O tributo será tantas vezes (por exemplo, R$ 10,00) quantos forem as unidades de medida pré-determinada do fator. Nesse último não há uma base de cálculo propriamente dita, mas uma forma de se calcular o tributo em que a cifra é chamada de base de cálculo técnica. Tanto esse fator (e sua cifra) quanto a medida de grandeza só servirão para o cálculo do montante do tributo se forem legais, isto é, previamente definidos por lei. Quanto à alíquota, geralmente apresentada por um percentual, é aplicada sobre a base de cálculo expressada em moeda. Isso significa que toda alíquota será ad valorem (não o seria se fosse passível recolher tributo em espécie). O termo “alíquota” também é utilizado não só para designar per-centual, mas a própria cifra que será multiplicada pelo número de unidades do fato gerador (base de cálculo técnica). Quanto se referir a essa cifra, a legislação também chama a alíquota de “específica”, como está no texto do art. 149, §2, III, a e b da constituição federal. Há algumas espécies de alíquota ad valorem; as mais comuns são as seguintes: a) progressiva: como é a do imposto de renda, cujas alíquotas são proporcionalmente crescentes a medida em que cresce a base de cálcu-lo; b) proporcional: a alíquota é a mesma percentagem sobre qualquer base de cálculo;

151 Veja o RE 194 612-1 como exemplo.152 As taxas são uma das espécies de tributo, cujo fundamento legal está no art.145, II da Constituição Federal: “II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”.

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c) seletiva: é a alíquota crescente na medida em que o produto não seja essencial (o IPI sobre álcool e tabaco); d) regressiva: a alíquota é regressiva se é percentualmente pe-quena em relação a uma base de cálculo elevada, mas considerada elevada se aplicada a uma base de cálculo pequena; e) zero: é literalmente a alíquota de 0%.Ocorre indicando a ausência de tributo a pagar, mas diferencia-se da isenção porque subsistem todos os outros elementos da obrigação tributária. O principal efeito do fato gerador de uma obrigação principal é proporcionar o nascimento do tributo no tempo e no espaço. Há, porém, na legislação tributária, normas que visam afastar ou excluir esse efeito. É o caso das normas de imunidade ou de isenção. Diz-se incidência de norma de imunidade ou isenção quando ocor-re uma situação que implica naquele afastamento. Da mesma forma em que uma situação enseja pagamento de tributos, fala-se na incidência de um tributo relativamente aquele fato. A não incidência de tributo por imunidade ocorre em situações elencadas pela Constituição Federal, compondo um rol de fatos não passíveis de se tornar fato gerador de alguma norma tributária. A Constituição Fede-ral não estabelece competência para a criação de tributos. Caso ocorra essa criação a norma será nula por inconstitucionalidade. Quando há essa competência, há casos em que não é exercida ou o é parcialmente. É a chamada não incidência simples, quando o legislador opta por não criar a norma tributária. A não incidência também ocorre da opção do legislador em estabelecer situações que, embora virtualmente capazes de se subsumir numa norma, não darão origem a uma obrigação tributária. São as isenções153 tributárias, que, na verdade, são exceções legais à regra geral de incidência. As isenções, definidas no CTN como forma de exclusão do crédito tributário, na verdade contemplam as descrições em lei de hipóteses neu-tralizantes dos efeitos de uma norma tributária (ensejadora de tributo ou de dever instrumental). O Supremo Tribunal Federal adota o entendimento de que primeiramente ocorre o nascimento da obrigação tributária; em seguida incide a isenção, desobrigando o sujeito passivo do pagamento do tributo. Outros doutrinadores, porém (entre eles, Ricardo Lobo Torres154),

153 Quanto a nomenclatura utilizada pela legislação, Luciano Amaro aponta algumas expressões que se identificam a isenção “não sujeitos a incidência”, “fatos a e b não são tributáveis”.154 Em: Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.13ª ed atualizada.

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defendem que norma de isenção atua no plano normativo, atingindo fatal-mente o fato gerador que está descrito na norma tributária. Nesse caso, não é possível o nascimento da obrigação e conseqüentemente, dos seus efeitos. As isenções podem ser condicionais (ou onerosas). Em geral con-cedidas por prazo determinado, implicam em contraprestações recíprocas entre o Estado e o contribuinte beneficiado. A concessão desse privilégio pode implicar, por exemplos, na construção de prédios, na manutenção de parques, na instalação de indústria, etc. Para receber o benefício, primeiramente o contribuinte deve pro-var que possui as condições legais. Se reconhecidas como existentes, reco-nhece-se a isenção, que agora não pode mais ser revogada unilateralmente (surge um direito subjetivo para o contribuinte). Após, caberá a fiscalização do cumprimento da prestação que a lei concedente impõe. Se não ocorrer esse cumprimento, poderá aí haver a revogação (art. 179, § 2º CTN). Esse é o caso da isenção onerosa, que exige o reconhecimento expresso do Fisco concedente, como determina o art.179 do CTN. Há as isenções que não demandam contraprestação do beneficiário. São as isenções gratuitas, que podem ser objetivas ou subjetivas. Estas são as que beneficiam certas pessoas (físicas ou jurídicas), as que levam em conta condições pessoais. Aquelas levam em conta coisas, mercadorias ou tipos de empresa, que por razões de política fiscal, não se quer tributar (sob esse as-pecto, a isenção é uma técnica legislativa). Ambas são geralmente concedidas em relação a tributos indiretos. São de fruição imediata. Por fim, há as isenções impróprias, quando a própria lei que des-creve a situação tributável (fato gerador) exclui de seu campo de incidência alguns fatos, tidos, a partir daí, como isentos. Com a revogação155 da norma isentiva, aplica-se o disposto no art.104, III do CTN se a norma tributária anteriormente vigente era sub-metida ao princípio da anterioridade156. A revogação reconstrói a norma tributária, concedendo-lhe novamente campo de incidência, devolvendo-lhe a possibilidade de gerar o nascimento da obrigação. Sob esse aspecto, não há porque estabelecer diferença entre os elementos que já faziam parte do campo de incidência e os que passaram a fazer.

155 Ao contrário das isenções, as imunidades não podem ser revogadas: art. 60, §4, IV da CF e art. 150, VI do CTN.156 O princípio da anterioridade dá corpo ao princípio da segurança jurídica ao determinar que a regulação de um fato gera-dor deve ser a que já existia antes de sua ocorrência.Com a revogação da isenção, é necessário aguardar o próximo exercício financeiro para que a norma tributária incida plenamente, sem a limitação isentiva.

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II.V -SUJEITOS DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA

Na relação jurídica obrigacional tributária estabelece-se um liame entre sujeitos. Aquele pólo que é titular do direito de exigir o adimplemento da obrigação (tanto principal quanto acessória) é chamado de sujeito ativo. É o pólo ocupado pelo Estado, também citado por Fisco, Tesouro, Fazenda Pública. O sujeito ativo de qualquer tributo é dado pela Constituição Fe-deral ao distribuir competência tributária157 (privativa ou residual) pela re-partição de receitas. Às autarquias é concedido por extensão o conceito de fazenda pública, em geral beneficiárias das contribuições especiais. Entidades privadas são sujeito ativo, mas por força de benefício que recebem oriundo de relação financeira. Pode ocorrer em algum momento que algum ente público suceda a outro no pólo ativo de alguma obrigação. São os casos em que há o des-membramento ou fusão de território. No desmembramento, o ente novo se sub-rogará nos direitos da anterior, de quem aplicará a legislação até que tenha a sua própria. O mesmo se estende para a fusão. Já o sujeito passivo é o devedor da obrigação tributária158. É sujeito dotado de capacidade tributária , isto é, tem a aptidão para exercer direi-tos e assumir obrigações tributárias. Embora soe próximo do conceito de capacidade civil, com ele não se confunde. Uma das conseqüências de ser a obrigação tributária ex lege é tornar irrelevante para fins tributários a titularidade de capacidade civil pelo sujeito passivo, já que dispensa a mani-festação de vontade para se constituir (art.126 do CTN). A capacidade civil, como aptidão para exercer direitos e assumir obrigações, se torna relevante no cumprimento das obrigações, em especial a acessória, e no exercício de capacidade postulatória, no momento de defesa perante o Estado. O Código Tributário Nacional, no art 126, deixa clara a diferença, ressaltando que, no caso de pessoas jurídicas (art 126, III), é desnecessária, inclusive, a regularida-de na sua constituição. A definição legal de sujeito passivo está no art. 119, § 1º e art.121 para a obrigação principal, e no art. 122 do CTN, para obrigação acessória. O Código ainda apresenta outras classificações; na verdade as duas espécies de sujeição passiva: o contribuinte e o responsável. Ambas são situa-ções de alguém na posição de credor de uma relação jurídica tributária, mas

157 Competência tributária é a “capacidade para legislar sobre relações jurídico-tributárias”. Em COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Manual de Direito Tributário.Rio de Janeiro: Forense, 2002. 2ª ed p.374.158 O sujeito ativo também é dotado de capacidade tributária, na medida em que está autorizado pela Constituição Federal a exigir o cumprimento de uma obrigação.

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que se vinculam de forma diferente ao fato gerador. O contribuinte é definido pelo CTN como a pessoa que se vincula direta e pessoalmente ao fato gerador da obrigação principal. Embora seja difícil vislumbrar o que seja uma relação pessoal e direta entre uma pessoa e uma situação fática, a doutrina a caracteriza como uma relação ação-agente, fato-autor, na qual o contribuinte tem uma participação jurídica na realiza-ção do fato gerador. A identificação do contribuinte seria “natural”, apenas bastando a ocorrência do fato gerador. Ocorre que essa identificação não acontece de maneira tão simplificada; há relações jurídicas que envolvem mais de uma pessoa no pólo passivo. É o caso da transmissão de imóveis, que temos, em tese, tanto o transmitente como o transmissor juridicamente passíveis de se tornar devedores (nesse caso, a legislação resolve apontando o devedor). Um importante critério soma-se a definição legal de contribuinte para melhor identifica-lo: o princípio da capacidade contributiva. Decorrente do princípio da igualdade, a capacidade contributiva é observada a partir da materialização do fato gerador, quando temos a iden-tificação da titularização de riqueza pelo contribuinte. Pode ser definido como critério de distribuição de impostos de maneira proporcional às pos-sibilidades econômicas. Considerando o tal princípio, a doutrina ressalta a diferença entre contribuinte de fato e de direito. Aquele é o que “sofre o encargo financei-ro”, mas não realiza o fato gerador, não participa da relação jurídica tribu-tária. Identifica-se o contribuinte de fato quando se investiga os impostos indiretos, como é o caso do ICMS, que é pago pelo comerciante e “reem-bolsado” a esse no valor do preço do produto. A maioria da doutrina tem essa figura como objeto de discussão jurídica, pois há efeitos jurídicos dela decorrentes, entre os quais a restituição de tributos (art.116 do CTN) ou o debate sobre justiça do sistema tributário. Na perspectiva de uma relação jurídica de natureza obrigacional, o contribuinte é aquele que tem o dever de satisfazer um débito seu (o crédito tributário) sob a possibilidade de sujeição de seu patrimônio. Já o responsável sofre a mesma sujeição de patrimônio, embora não seja titular do débito (re-aliza o adimplemento no lugar do contribuinte). Também o sujeito passivo da penalidade pecuniária, o infrator (que o CTN chama de “responsável por infrações”) tem responsabilidade.

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A presença de um responsável “traduz uma modificação subjetiva no pólo passivo da obrigação”; é a pessoa que passa a ocupar, em função de um vínculo indireto como fato gerador, o lugar do contribuinte. Essa alte-ração não se dá sem algumas limitações, que veremos melhor no seguinte capítulo.

III -RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA

III.I -NOÇÕES INTRODUTÓRIAS: O CONCEITO DE RESPON-SÁVEL

Contribuinte é o sujeito passivo por excelência; o responsável ape-nas ocupa seu lugar (ou se põe ao seu lado) em circunstâncias especiais dadas pela legislação. Isso pode se dar no momento do nascimento da obrigação ou em função de evento posterior a esse nascimento. Os motivos que levam o legislador a instituir essa figura são varia-dos; vão desde razões de conveniência até necessidade. O objetivo principal ao ampliar o rol de sujeitos submetidos ao dever de adimplir a obrigação tributária é aumentar a possibilidade jurídica de recebimento dos créditos. Sob esse aspecto, temos o responsável como garantidor do crédito (Schuld). O conceito de responsável dado pelo CTN não é muito esclarece-dor: é aquele que “sem revestir da condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei” (art. 121, § único, II). Temos aí mais uma expressão do princípio da legalidade, além da contida no art. 97, III. A doutrina aponta requisitos sem os quais não se pode falar em responsável. Primeiramente temos a vinculação ao fato gerador (art.128 do CTN). É uma vinculação indireta (já que a direta define contribuinte) e decorrente do texto constitucional, que indica quais eventos serão passíveis de se tornar hipótese de norma tributária e, por conseqüência, quem os suportará, ainda que por vínculo indireto. Temos aqui o responsável como sujeito passivo – alguém que de alguma forma faz parte da relação jurídi-ca tributária – decorrente de uma norma, cuja conseqüência seja adimplir dever tributário e a hipótese seja a existência de uma relação obrigacional tributária provocada por um contribuinte. Em segundo lugar, se a legislação previr um responsável alheio à relação jurídica tributária (também chamado de terceiro), deve garantir que não sofra qualquer prejuízo em seu patrimônio, tanto econômico como jurídico, sob pena de ofensa ao princípio da isonomia e do não confisco.

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Essa relação indireta que leva a responsabilização de terceiro vincu-lado indiretamente ao fato gerador pode ser de duas espécies: por substitui-ção e por transferência.

III.II -A RESPONSABILIDADE POR TRANSFERÊNCIA E POR SUBSTITUIÇÃO

A responsabilidade por transferência é legalmente atribuída a al-guém a quem se transmite o dever de pagar o tributo no lugar do sujeito passivo direto. O responsável não realiza o fato gerador, mas a situação fática que como conseqüência legal, implica a sub-rogação no pólo passivo de um terceiro. Este passa a ter o dever de pagamento de dívida alheia, que origi-nalmente não lhe pertence. Substituto é aquele que fica no lugar do contribuinte e assume o pagamento do tributo por força de lei. Há a entrega da responsabilidade a este terceiro antes mesmo de ocorrido no mundo o nascimento da obriga-ção tributaria. O substituto é o único que tem o dever de adimplemento, dever esse que não chega a ser do contribuinte, que apenas realiza do fato gerador. É instituído no lugar do contribuinte logo no nascimento da obri-gação tributária. Aliás, isso ocorre tão logo que o adimplemento é imediato, como se o substituto fosse sujeito passivo direto. Fazendo eco a tese de Ru-bens Gomes de Souza, Sacha Calmon Navarro Coelho159 assim considera:

De ver, e isso é fundamental, que a pessoa designada na lei como ‘realiza-dora’ da hipótese de incidência (fato gerador) é diversa da que, na conseqüência da norma, aparece designada como sujeito passivo da obrigação. Então, juridi-camente, B é sujeito passivo direto. Ele não paga ‘dívida alheia’. Paga dívida própria. Apenas não realizou o fato gerador. Todavia, ninguém antes dele esteve jamais na condição de sujeito passivo. E todo o substituto pressupõe substituído. Dita substituição decorreria de um raciocínio jurídico, qual seja: quem realiza o fato gerador é que deve pagar o tributo. A substituição seria, assim, em nome da praticidade160 .Rubens decalca a tese com muita clareza: ‘O tributo deve ser cobrado da pessoa que esteja em relação econômica com o fato, ato ou negócio jurídico que dá origem à tributação. Por outras palavras, o tributo deve ser cobrado da pessoa que tira vantagem econômica do ato, fato ou negócio tribu-

159 SOUZA, Rubens Gomes de. Compendio de Legislação Tributária, 3. ed Rio de Janeiro, Financeiras, 1960. p.71-2. apud COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Manual de direito tributário.Rio de Janeiro: Forense, 2002. 2ª ed p.381 (grifo original).160 Aproveita-se o texto de Sacha Calmon N. C. para lembrar que a instituição de um substituto leva em conta a quantidade de contribuintes que operam nos setores nos quais a administração fazendária identifica dificuldade de fiscalização.

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tado...Entretanto pode acontecer que em certos casos o Estado tenha interesse ou necessidade de cobrar o tributo de pessoa diferente: dá-se a sujeição passiva indireta.’

Embora não esteja presente na ocorrência do fato gerador o substi-tuto está relacionado à obrigação tributária também por força de um nexo econômico entre ele e o substituído (atividades econômicas). Não há vín-culo de natureza tributária. A esse respeito, Leandro Paulsen161 afirma: “A obrigação já nasce para o substituído que, no entanto, tem de ter modo de reter ou exigir o montante do contribuinte, que é quem deve suportar o ônus econômico da tributação”. O substituído fica com o encargo de reali-zar o pagamento, mas não com o ônus econômico, sob pena, como já dito, de atingir o princípio da isonomia e do não confisco162. Por esse motivo, também há o direito de regresso do substituto ao substituído exercido na lida diária163, num primeiro momento dispensando processo e ação. O fundamento legal para a essa exigência do nexo econômico está no texto do art.128 do CTN ao mencionar a vinculação ao fato gerador como limite para a instituição da responsabilidade por substituição (e tam-bém por transferência, como dito na parte introdutória). A responsabilidade do substituto abrange obrigações principais e acessórias; se houver qualquer inadimplemento, não será o patrimônio do contribuinte que inicialmente o suportará, somente o do substituto. Este re-cebe inclusive a legitimidade para impugnar qualquer vício na constituição do crédito. O regime jurídico aplicável ao tributo a ser pago é o do substituído, porque nasce da realização de um fato gerador por ele implementado. Os aspectos materiais do tributo devem, por decorrência lógica, levar em conta seu respectivo fato gerador, não as características do substituto que provoca-riam alguma alteração nesses aspectos se esse viesse a ser contribuinte. Imu-nidade e isenções, originária de características pessoais, também pertencem ao substituído. Convém agora esclarecer a diferença entre substituição e tributação na fonte. Nesta o retentor tem o dever formal de reter e recolher o tributo de outrem. Naquela, o substituto, o dever de pagar tributo próprio. O reten-tor é considerado um agente de arrecadação, visto que tem o dinheiro do

161 PAULSEN, Leandro. Constituição Federal e Código Tributário Nacional à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado/ESMAFE. 9ª ed. 2007.162 Sobre esse aspecto, convém lembrar que a capacidade contributiva revelada pelo nascimento da obrigação tributária é a do contribuinte.163 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro cita: “o laticnista pagando ao produtor de leite o preço do mesmo diminuído do im-posto, que pagará como substituto, só para exemplificar.” p.384. op. cit.

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contribuinte a sua disposição de modo tal que o legislador considerou deve-ras eficiente lhe entregar o dever de reter a parcela relativa ao tributo. Caso não haja o recolhimento, haverá a responsabilização do retentor, que sofrerá a incidência de multa por sua mora. Aliás, também temos nessa circunstância a ocorrência de um ilícito penal, a apropriação indébita de tributo devido pela pessoa de quem se retém. A substituição tributária pode se dar de duas formas: “para trás” e “para a frente”.A coloquialidade dos termos disfarça o debate em torno dessas figuras, que se diferenciam basicamente quanto ao momento da ocor-rência do fato gerador, cujo tributo será devido pelo substituto. Na chamada substituição tributária para trás, o substituto paga por fato gerador já acontecido (há uma obrigação tributária válida). O ressarci-mento ocorre durante a cadeia econômica pela formação de preços. Esse é o caso do ICMS que é pago pelo adquirente, v.g., o frigorífico pelo fornecedor de aves. Caso haja o inadimplemento, aí o substituto se torna pessoalmente responsável pelo tributo. Antes do inadimplemento a responsabilidade é sub-sidiária. Já na substituição para a frente, o imposto a ser pago é calculado a partir de uma base de cálculo presumida, pois há apenas a expectativa de ocorrência de fato gerador. Presume-se que esse vá ocorrer e nessa condição que o substituto exige o ressarcimento do substituído. Esse é o caso da con-cessionária que recolhe o ICMS devido pela revendedora a quem vendeu os automóveis; tributo esse que seria recolhido somente no momento da venda ao consumidor final. Embora prevista na Constituição Federal no seu art.150, §7º (acres-cido pela Emenda Constitucional nº3/93), a substituição para frente não é isenta de críticas quanto a sua constitucionalidade. O STF já a declarou constitucional, porém, alguns autores não deixam de manifestar sua incon-formidade. Basicamente aduzem que há ofensa aos princípios da capacidade contributiva do contribuinte e da não-cumulatividade (compreendida como a proibição de incidência de imposto sobre o valor agregado em etapa pro-dutiva anterior, quando oportunamente já sofrera a tributação).

III.III -OUTRAS CLASSIFICAÇÕES

Além da classificação da responsabilidade pelos modos pelos quais nasce (por transferência e por substituição), temos a classificação que trata das diferentes naturezas do vínculo entre o responsável latu sensu e o contri-buinte. O responsável solidário está previsto no art.124 do CTN. É aquele

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que divide uma co-responsabilidade com o contribuinte, numa relação em que são todos os obrigados pelo todo sem beneficio de ordem. Além da possibilidade de nascer por imposição legal expressa (inciso I do art.124), o liame da solidariedade entre os ocupantes do pólo passivo de uma obrigação tributária pode se dar ainda em outro caso: quando as pessoas envolvidas com o fato gerador concreto têm um interesse comum (inciso I). Exemplo típico é a co-propriedade e o imposto predial e territorial urbano. Mais de uma pessoa é autora concreta do fato gerador ao “ser proprietária” de um mesmo imóvel (embora a hipótese da norma não exija a presença de uma coletividade para impor sua conseqüência). A posição de paridade jurídica entre um proprietário e outro caracteriza o interesse comum. O responsável subsidiário é aquele de quem o Fisco só pode exigir na impossibilidade de cobrança direta pelo contribuinte. Há um benefício de ordem, primeiro o sujeito passivo direito, depois o subsidiário. Na responsabilidade exclusiva, há uma obrigação que decorre de fato praticado pelo responsável e que é de sua exclusiva responsabilidade. Há o afastamento de outras pessoas porventura envolvidas.

Há mais uma classificação, citada por Leandro Paulsen164 :

O responsável originário é daquele por quem primeiro ocupa o pólo passivo. Esse é o contribuinte, que realiza o fato gerador, e o substituto, que é colocado imediatamente na posição de sujeito passivo com o dever de adimplemento da mesma natureza do contribuinte. O responsável derivado é aquele se assume a responsabilidade por transferência dos deveres do contribuinte. A responsa-bilidade se instaurou com o nascimento da obrigação tributária, foi em algum momento do contribuinte; posteriormente foi destinada a terceiro.

Com essa classificação, temos um resumo das espécies de responsa-bilidade (aqui entendida como sujeição do patrimônio) daqueles que ocu-pam o pólo passivo da obrigação tributária: o sujeito passivo direto, com a responsabilidade originária; o indireto, com a derivada.

164 PAULSEN, Leandro. Op. cit.

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III.IV -ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE POR TRANSFERÊN-CIA: DO ART.129 AO ART.135 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NA-CIONAL

Ao contrário do responsável por transferência, o CTN não des-creveu as principais espécies de substituto, mas também não esgotou as por transferência em rol taxativo. O art.128 estabeleceu os requisitos para sua fixação por leis ordinárias; nesse mesmo artigo, a expressão “a lei pode atri-buir” denota que todas as pessoas políticas podem criar na sua esfera de tri-butação lei que impute responsabilidade, tanto de um tipo como de outro. A primeira das que estão no CTN é a responsabilidade por sucessão. Está prevista no art.130, que trata de créditos tributários relativos a impostos, cujo fato gerador envolva propriedade, domínio útil, posse de bens imóveis, além das taxas de prestação de serviços referentes a tais bens e da contribui-ção de melhorias. Ocorrendo sucessão, os créditos sub-rogam na pessoa dos respectivos adquirentes165. Estes são os responsáveis, salvo se no título de transferência há prova de quitação. A certidão impede que se configure a responsabilidade tributária, impede que o adquirente sujeite seu patrimônio por débitos tidos por pagos. Havendo, porém, algum crédito que seja futuramente apurado é contra o contribuinte (proprietário anterior) que a Fazenda Pública se dirigirá. Sem a prova de quitação, os textos do art.129 e do 131 dão pesso-almente166 ao responsável os créditos constituídos ou não que decorram de fato gerador anterior a sucessão. O parágrafo único do art.130 se refere à arrematação, que tem o fito de proporcionar alguma vantagem ao arrematante, mediante a exclusão de quaisquer ônus pendentes. Esses serão satisfeitos até o limite do valor do preço arrematado. O art. 131 lista quem são os sucessores, indicando as espécies de sucessão (inter vivos, no inciso I e causa mortis, nos incisos II e III) e am-pliando a responsabilidade por sucessão a bens móveis:

Art. 131. São pessoalmente responsáveis: I - o adquirente ou remitente, pelos tributos relativos aos bens adquiridos ou remidos; II – o sucessor a qualquer título e o cônjuge meeiro, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da partilha ou adjudicação, limitada esta responsabili-

165 A sucessão tributária (do tributo ou dever formal) é conseqüência de uma hipótese, que é a ocorrência de sucessão “pa-trimonial”, seja este um imóvel ou bens corpóreos, seja bens incorpóreos, integrantes de um patrimônio de jure, como o “ser sócio”. Está prevista nos artigos 131,132 e 133 do CTN.166 Responsabilidade pessoal, segundo PAULSEN, Leandro op. cit.: “Tal responsabilidade (...) indica a responsabilidade daquele a quem se refere, com a exclusão de qualquer outro”.

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dade ao montante do quinhão, do legado ou da meação; III – o espólio, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da abertura da sucessão.

Sacha Calmon167 ressalta que o inciso III não trata propriamente de sucessão, afirmando que “as dívidas do espólio são próprias”. O espólio é um todo patrimonial, que abrange evidentemente um passivo. E como dito no próprio texto do art.131, o passivo tributário será saldado no limite do espólio/quinhão. O CTN no art. 132 também prevê a responsabilidade por sucessão em relação a empresas e sociedades em geral (fusão, transformação, incorpo-ração), e a norma do art. 133 se refere à aquisição de fundo de comércio ou estabelecimento. Hugo de Brito Machado168 esclarece sobre sucessão empresarial:

Fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades pra formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações (Lei n.6404, art.228). Transformação é a mudança de forma societária. É a operação pela qual uma sociedade passa, sem dissolução e liquidação, de um tipo para outro (Lei n.6404, art.220). Deixa de ser anônima e passa a ser li-mitada, ou deixa de ser limitada para ser anônima, ou em nome coletivo, ou de capital e indústria, ou outro tipo societário qualquer. A rigor, não há, nes-te caso, sucessão. A pessoa jurídica continua sendo a mesma, apenas adotando nova forma jurídica.Daí por que, no direito privado, recebe tratamento dife-rente ás operações de fusão, incorporação e cisão, como se pode verificar dos arts.222, 232,233 e 234 da vigente Lei das Sociedades por Ações.Pela cisão, a sociedade transfere parcelas de seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes. Extingue-se a sociedade cindida se houver versão de todo seu patrimônio, divide-se o seu capital (Lei n.6.404, art.229).

Embora o CTN não tenha mencionado a cisão (figura que foi pos-teriormente regulada pela Lei 6404/76), o art.132, no seu parágrafo único ressalta sua aplicação a outros “casos de extinção de pessoas jurídicas”. O art.133 ao tratar da alienação de fundo de comércio ou estabele-cimento prevê no seu inciso I a responsabilidade pessoal (pelo uso do termo “integralmente”) do adquirente se o alienante deixar de explorar a atividade

167 Op. Cit. p.399168 MACHADO, Hugo de Brito.Curso de direito tributário.São Paulo:Malheiros,2006. 27.ed. p173

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anteriormente exercida. Caso prossiga ou reinicie as atividades (ainda que em outro ramo de atividade ou sem a devida formalização), o alienante res-ponderá subsidiariamente ao adquirente. O art. 134 prevê a responsabilidade de terceiro, que responde na condição de subsidiário por obrigações não adimplidas pelo contribuinte. Aqui, o terceiro tem uma espécie de “dever de cuidado” sobre o contri-buinte, e responde pelos tributos não pagos ou pelos deveres formais não cumpridos decorrentes de seu comportamento omisso ou comissivo. Mizabel Derzi169 esclarece que a subsidiariedade desse artigo “de-pende da impossibilidade de pagar do contribuinte e da ação ou omissão, descumprimento de dever, legalmente previsto ou contratualmente nascido, daquele que devia providenciar o recolhimento ao tributo devido ou fisca-lizar o pagamento”.

Esse é o texto do art.134:

Art.134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: I –os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores; II - os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou cura-telados; III – os administradores de bens de terceiro, pelos tributos devidos por estes; IV – o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio; V – o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário; VI –os tabeliães, os escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão de seu ofí-cio; VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. Parágrafo único: O disposto neste artigo só se aplica, em matéria de penali-dades, ás de caráter moratório.

O art. 134 fala desse tipo de responsabilidade, ainda que o texto contenha a expressamente “solidariedade”; a referencia à impossibilidade do contribuinte em pagar assegura de que se trata de uma relação de subsidia-

169 Nota de atualização da obra Direito Tributário Brasileiro, de Aliomar Baleeiro elaborada por Mizabel Abreu Machado Derzi, citada por PAULSEN, Leandro, po. cit.

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riedade. Entretanto, as pessoas arroladas no art.134, podem ser solidárias se a legislação estabelecer desse modo. Temos o art.4º, §1° da Lei 6830/80 (Lei de Execução Fiscal) prevê a responsabilização solidária do inventariante que aliena ou dá em garantia bens do espólio antes de garantidos os créditos da Fazenda Pública. Nessa espécie o terceiro não ocupa o lugar do contribuinte. Há aqui um benefício de ordem: primeiro o contribuinte, após, o responsável. O res-ponsável é subsidiário pelas obrigações principais e acessórias e pelas multas de caráter exclusivamente moratório, respondendo por atos e omissões que permitiu ocorrer no exercício de sua responsabilidade. Dentre as hipóteses do art. 134, merece comentário a do inciso VII, que trata do sócio nos casos de liquidação da sociedade de pessoas. A juris-prudência construiu alguns critérios dentre os quais a exigência de que os sócios tenham exercido função de gerência e que o mero inadimplemento constituía infração. Atualmente o STJ exige que o inadimplemento seja re-vestido de intenção de fraude para autorizar o redirecionamento da cobran-ça do crédito. A responsabilidade pessoal de terceiro é tratada no art. 135. O res-ponsável age com excesso de poder ou contra lei, estatuto, ou contrato social, em direção contrária ao interesse por quem responde. Essa conduta permite o nascimento de obrigação tributária para os representados. Embora esses se-jam os sujeitos passivos diretos, o CTN os afasta do pólo passivo para que as pessoas listadas nos incisos I, II e III assumam os deveres daquela obrigação. A responsabilidade referida no art.135 não é objetiva, pressupondo intenção de fraudar consubstanciada nos atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contato social ou estatutos. Se apenas há a culpa, a responsabilidade é a do art.134 para as pessoas ali relacionadas e é subsidi-ária. A responsabilidade se dá apenas sobre obrigações principais (tributos), e dispensa a análise da insuficiência de patrimônio do sujeito passivo direto.

III.V -RESPONSABILIDADE POR INFRAÇÕES

Na primeira parte deste trabalho, foi tratado sobre o nascimento das relações obrigacionais tributárias mediante norma composta por uma descrição hipotética de um fato, que ocorrido, gera a relação tributária como conseqü-ência. A descrição hipotética também pode ter outro conteúdo: o compor-tamento de não adimplemento do objeto da relação tributária. Nesse caso, a conseqüência é o nascimento de outra relação obrigacional, cujo objeto é uma sanção.

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A previsão legal desse tipo de relação jurídica está nos artigos 136 a 138 do CTN sob o título “Responsabilidade por infrações”. O legislador o considerou como a última espécie de responsabilidade por transferência das que estão descritas no CTN. Entretanto, não é disso que se trata. O responsável por transferência ocupa o lugar de outro no dever de pagar o tributo ou cumprir dever acessó-rio. O responsável por infrações tem o dever de suportar uma sanção por ato próprio, que se traduz numa conduta omissiva ou comissiva contrária ao Direi-to (descumprimento tanto de obrigações principais como acessórias). Luciano Amaro170 esclarece:

Ora, nesse sentido, a responsabilidade tanto se aplica ao sujeito passivo indireto (responsável), como ao contribuinte (sujeito passivo direto), como, ainda, a outras pessoas que não são contribuintes, não são responsáveis, mas eventualmente des-cumprem algum dever acessório (obrigação acessória ou obrigação formal).

Não são quaisquer inadimplementos que são caracterizados por infra-ções tributárias. Temos que excluir as infrações que atingem de modo especial (mais gravoso) alguns bens jurídicos, e por isso estão tutelados por norma pe-nais (cujas sanções atingem o bem da liberdade do infrator). Nessas, temos o exame da vontade do infrator com elemento constitutivo (dolo ou culpa)171.O exame da vontade está limitado pelo art.136:

Art.136. Salvo disposição em lei em contrário, a responsabilidade por infra-ções da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza ou extensão dos efeitos dos atos.

Como regra geral, temos que a responsabilização independe do as-pecto volitivo, ou seja, é objetiva, bastando à violação a lei tributária para que haja a imposição da sanção prevista. Não é necessário que sequer haja prejuízo ao Fisco. O objetivo é evitar que a Fazenda Pública tenha o dever impossível de comprovar a existência do elemento volitivo como requisito para a constituição da infração. O CTN, porém, se afasta a análise do dolo, não impede a discussão sobre a culpa: é possível que o infrator apresente defesa requerendo a exclu-são de responsabilidade mediante comprovação de que a infração somente

170 AMARO, Luciano da Silva, Infrações Tributárias. Revista de Direito Tributário n°67. Malheiros, p 31/32 apud PAULSEN, Leandro, op.cit,171 A expressão Direito Penal Tributário refere-se a parte do Direito que se ocupa em tutelar o bem jurídico “crédito tributá-rio” (em sentido amplo, como prestação obrigacional). Não há, diferença substancial entre outros bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal a ponto de se formar um ramo independente do Direito. Outras críticas, ver em AMARO, Luciano op. cit. p.436172 Luciano Amaro cita um exemplo trazido por Sacha Calmon N.C. em que o preposto não realizou o pagamento porque, dirigindo-se ao banco para fazê-lo no dia do vencimento, sofreu acidente de trânsito e foi para um hospital. Op cit p.445

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ocorreu por força maior e imprevisível, por fato que fugiu de seu contro-le172. A expressão “Salvo disposição de lei em contrário” no art.136 au-toriza a criação legal que contenha a investigação da culpa. O próprio CTN inaugura essa possibilidade pelo art.112, III, que contém regras que permi-tem a análise subjetiva (a extensão do dano como critério para a aplicação das penalidades), e que são “atenuações interpretativas173” da regra geral de objetividade. A responsabilidade prevista no art 137 trata de três hipóteses em que a responsabilidade do infrator lhe é atribuída considerando aspectos volitivos. Presentes, excluem a responsabilidade de outras figuras, como o contribuinte ou substituto.

...a infração fiscal deve ser considerada objetivamente e não subjetivamente, como regra geral. Entretanto, três exceções são abertas ao princípio da objeti-vidade, determinando o caráter pessoal ou subjetivo da responsabilidade nas hipóteses em que essa personalização decorre da própria natureza da infração e das circunstâncias de sua prática174.

O art 137 põe no pólo passivo o executor da infração e que neces-sariamente o faz ao agir em nome de terceiro, que é sujeito passivo direto ou indireto. Não age em seu próprio nome, e exclui o terceiro de qualquer sujeição sancionadora (a responsabilidade é pessoal do infrator). O inciso I trata de “infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administra-ção, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito”. Aqui, a responsabilização a tributária não é excluída pela criminal, pela qual há a sujeição do terceiro à posição de réu em processo criminal por força de institutos penais (autor intelectual, mandante). O inciso II se refere a “infrações em cuja definição o dolo específico do agente seja elementar”. Tais infrações são as puramente tributárias, já que as criminais foram tratadas no inciso anterior.O inciso III, por fim, diz sobre “infrações que decorram direta e exclusi-vamente de dolo específico”. São aquelas praticadas pelos responsáveis do

173 TAVARES, Alexandre Macedo. Denúncia Espontânea no Direito Tributário. São Paulo: Dialética. 2002 p.64 e Coelho, Sacha Calmon Navarro op. cit.p.411 . Nessas obras, ambos autores assim se referem ao conteúdo do art.112.174 Walter Paldes Valério.Programa de Direito Tributário, Parte Geral, 10.ed. Sulina, 1991. p.88 apud PAULSEN, Leandro, op. cit.

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art.134 quanto revestidas de caráter doloso e em proveito próprio. Num primeiro momento os “representados” suportariam o ônus, mas pela aferição da vontade autorizada nesse inciso, a responsabilidade fica com os infratores materiais. Convém lembrar que o texto do art.136 faz referência a “agente” e a “responsável”. Essas duas figuras indicam que o infrator pode agir em seu próprio nome ou em nome de terceiro. A responsabilidade atinge tanto a um como a outro. Já o art.137 restringe sua aplicação ao que atua em nome de terceiro (os “representados” do art.134, citados no inciso III), que o faz visando vantagem estritamente pessoal. A responsabilidade por ato infracional pode ser afastada pela de-nuncia espontânea da infração. A finalidade é estimular o adimplemento da obrigação tributária pelo sujeito passivo.

IV -DENÚNCIA ESPONTÂNEA: REQUISITOS E EFEITOS

IV.I -CARACTERÍSTICAS GERAIS DA DENÚNCIA ESPONTÂ-NEA A denúncia espontânea consiste no comportamento voluntário do sujeito passivo da infração em informá-la à Fazenda Pública. É uma opção legislativa de premiar o infrator (sujeito passivo) de uma obrigação tributária sancionadora pelo afastamento do dever de pagar uma penalidade pecuni-ária (objeto). Afastada a sanção, subsiste apenas o dever de pagar o tributo e os respectivos juros moratórios. Pode ser tida por uma forma de anistia das penalidades. A apresentação da denúncia afasta os efeitos da norma cuja con-seqüência é a aplicação de uma sanção na forma de multa175. Não atinge o plano da existência da infração como ato jurídico, mas o da eficácia, traduzi-da na “extinção da pretensão punitiva do sujeito ativo das relações jurídicas decorrentes da não-prestação”. É dúplice a função da denúncia espontânea. Em primeiro lugar, torna “dispensável a atividade administrativa fiscal relativamente à infração tributária ou, sendo o caso, ao tributo ou à situação jurídica denunciada176”

175 TAVARES, Alexandre Macedo. Op. cit p.61 O autor cita outras sanções para punir ilícitos administrativos em matéria tributária: a apreensão de mercadorias, de documentos e dos veículos de transporte; perda de mercadorias; sujeição a regime especial de fiscalização e cassação de regime especial de recolhimento.176 MAIA FILHO, Napoleão Nunes. A Denúncia Espontânea de Infração Seguida do Pagamento do Tributo. Revista Dialética de Direito Tributário n°138. A denúncia significa desistir do “proveito” da infração. É uma oportunidade de corrigir um desvio dada pelo legislador com nítida carga valorativa, como opção de política de fiscalizatória.

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.Em segundo, favorece o contribuinte ao livrá-lo da conseqüência da infra-ção, a multa. Nesse sentido, o art.138 provoca o mesmo efeito daquilo que no direito penal chamamos de arrependimento eficaz177, que leva à diminui-ção da pena do agente que demonstra arrependimento e vontade inequívoca de reparar o dano.A denúncia está prevista no art.138 do Código Tributário Nacional:

Art.138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.

É tida por norma auto-executável, que contém um direito de na-tureza potestativa178. Sua eficácia depende exclusivamente do sujeito passivo em optar por exercer a faculdade de denunciar, de confessar espontanea-mente o cometimento de falta fiscal.Exercida o direito do art.138, temos o nascimento de um direito subjetivo à exclusão da responsabilidade por infrações.

IV.II -REQUISITOS PARA A DENÚNCIA ESPONTÂNEA

Da leitura do art.138 do CTN, extraem-se os seguintes requisitos que caracterizam a denúncia espontânea:

a)Ser apresentada antes do início de procedimento fiscalizatório; b)Ser acompanhada pelo pagamento dos tributos e juros, ou do depósito;

O primeiro requisito é a espontaneidade. Não se trata apenas de manifestar vontade. O CTN dá um limite objetivo-temporal a esse concei-to: é a inexistência de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização relativa ao tributo antes de ser denunciado. Não há limite sub-jetivo; não importa as razões pessoais que levam o sujeito passivo da sanção a denunciar (basta a manifestação de vontade de denunciar a despeito dos motivos que o levaram a isso). A exigência de fiscalização é específica a cada tributo individual-

177 Art.13 do Código Penal: “O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se prossiga, só respondendo pelos atos já praticados.”178 TAVARES, Alexandre Macedo. Op cit p.76

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mente. O fato de Administração estar investigando um tributo não impede a denúncia de outro que não esteja sob investigação. Por esse motivo temos que medidas de fiscalização imprecisas ou procedimentos administrativos genéricos não afastam a possibilidade de denunciar:

Inapelável, pois, que a desconfiguração da espontaneidade somente se posi-tiva no caso de providencias fazendárias direta e substancialmente relacionadas com a apuração de infrações tributárias concretas e predeterminadas, não bas-tando que a autoridade administrativa lavre simples e genérico termo de início de fiscalização, em livro destinado a ocorrências, sem a especificação do que está na mira da fiscalização179.

E o que caracteriza esse procedimento administrativo? Alexandre Macedo Tavares assim explica180:

(...) como conceito formal, a conotação de série de atos que integram a com-postura do rito-padrão da ação fiscalizatória, ou seja, seu modus faciendi (v.g., apreensões, assinatura de termos, emissão de documentos de arrecadação com acusação de débito proveniente de tributo declarado e não pago, etc), e, como conceito teleológico, o que se convencionou chamar de “processo administrativo tributário”, assim entendido como um complexo ordenado de atos e termos que visam à obtenção de um pronunciamento conclusivo por parte da autoridade competente, qual seja, a decisão administrativa.

Na legislação federal, o art.7° do Decreto nº70.235/72 define o início desse procedimento:

Art.7° O procedimento fiscal tem início com: I – o primeiro ato de ofício, escrito, praticado por servidor competente, cienti-ficando o sujeito passivo da obrigação tributária ou seu preposto; II – a apreensão de mercadorias, documentos ou livros; III – o começo do despacho aduaneiro de mercadoria importada. §1º O início do procedimento exclui a espontaneidade do sujeito passivo em relação a atos anteriores e, independentemente de intimação a dos demais envolvidos nas infrações verificadas.

179 TAVARES, Alexandre Macedo. Op.cit p.84. Nesse sentido, a notificação administrativa que afasta a espontaneidade é aquela que dá ciência de investigação especifica ao contribuinte.180 TAVARES, Alexandre Macedo. Ibidem p.81 (grifo original)

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§2° Para os efeitos do disposto no §1º, os atos referidos nos incisos I e II valerão pelo prazo de 60 (sessenta) dias, prorrogável, sucessivamente, por igual período com qualquer outro ato escrito que indique o procedimento dos traba-lhos.

O texto do art.138 também menciona o início das medidas de fis-calização como limite objetivo da espontaneidade. Podem ser entendidos, a partir do conteúdo do art.196, como atos ou série de atos (“diligências fisca-lizatórias”) adotados pela autoridade administrativa relativamente à verifica-ção das condutas praticadas pelo sujeito passivo (realização do fato gerador), o adimplemento das obrigações decorrente ou as causas de responsabiliza-ção, entre outras. Importa agora ressaltar o seguinte: há um caminho lógico; primeiro o nascimento da obrigação tributária, segundo; o inadimplemento. Como regra geral, a obrigação tributária se consuma no decorrer do tempo: ini-cia com a ocorrência do fato gerador até a constituição formal do crédito, incluindo a notificação do sujeito passivo. É somente a partir do inadimple-mento (infração) que inicia o período em que potencialmente a Fazenda Pública pode iniciar alguma medida de fiscalização ou procedimento admi-nistrativo. Isso significa dizer que denúncia espontânea é válida se o Fisco atingido não conhece (por medida fiscalizatória ou procedimento admi-nistrativo) o inadimplemento (infração) de uma obrigação a si pertinente. Esse requisito não inclui a ciência da existência de um tributo, que ocorre em momento distinto da infração. Aqui estamos falando daqueles créditos constituídos de duas maneiras: os por homologação (que se dão por atuação primeira do contribuinte, com a qual concorda o Fisco mediante o compor-tamento omisso de não revisar) e os por declaração (em que o contribuinte primeiramente informa os elementos para a elaboração do cálculo do valor, após o qual o Fisco irá notificá-lo para pagamento). O CTN não estabeleceu distinção entre a infração que atinge crédi-to assim constituído e os que o são por atuação administrativa exclusiva, de modo que em relação a ambas a denúncia surtirá o mesmo efeito de afastar a exigibilidade da multa. Nos tributos que exigem a declaração seguida do pagamento ante-cipado há duas obrigações, uma de natureza formal e outra, pecuniária. Do mesmo modo para aqueles tributos, cujo valor a ser pago é informado pelo

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contribuinte, que deixa de realizar o pagamento. Se uma das obrigações é atendida (a formal), não há impedimento para que seja possível denunciar a outra181 . Se assim não fosse, seria possível denunciar espontaneamente so-mente quando houvesse o descumprimento de ambas obrigações e não com o descumprimento de uma só. Esse raciocínio é contrário ao bom senso: seria mais vantajoso o descumprimento total do que o descumprimento parcial dos deveres. O art.138 não estabeleceu qualquer indicativo de forma pela qual a denúncia deva ocorrer. A lei não exige ato solene, mas isso não significa que se dará de modo automático, como, por exemplo, pelo mero pagamento extemporâneo182. Nesse sentido, temos que o mero pagamento por guia de recolhimento não é denúncia espontânea. A guia comprova o pagamento fora do vencimento, e só. Se não houver a denúncia por escrito, não há a manifestação da vontade de reparar a infração. A validade da denúncia espontânea depende de que ocorra median-te instrumento escrito. Embora se assemelhe a confissão (art.348 do Códi-go de Processo Civil) como forma de comunicar fato a Fazenda Pública, somente o documento escrito se presta para gerar os efeitos da denúncia. No entanto, quando falamos em instrumento escrito, não se pretende um comportamento específico não exigido pela legislação. Quer se ressaltar que a inexistência de regramento formal não exclui o sujeito passivo do dever de manifestar sua vontade de modo transparente e inequívoco, que traga todos os elementos necessários para a identificação da obrigação tributária não adimplida. Para tal fim, nada mais adequado que o protocolo de texto escri-to perante a autoridade fazendária ou por outro modo que o contribuinte julgue adequado para comprovar que denunciou. Qualquer infração pode ser denunciada183. A eficácia do art. 138 não demanda a anuência da Fazenda Pública; ao Fisco cabe verificar se estão atendidos os requisitos que caracterizam a denúncia como tal184. A denúncia deve estar acompanhada do pagamento do tributo. Pode

181 Não podemos confundir as duas classes de comportamento do contribuinte. Na há o cumprimento da obrigação de ve-rificar e apresentar ao Fisco todos os elementos do tributo. Não há o que denunciar relativamente a obrigação formal. Nesta hipótese, é cabível a denúncia do não pagamento, que ocorreu em momento anterior a auto-delação. Aqui sim há a intenção de reparo, motivada pela exclusão da sanção. Não devemos, portanto, tomar um pelo outro no caso de não recolhimento do tributo que foi anteriormente declarado pelo contribuinte.182 A não-exigência de formalidade não desobriga o infrator de declarar, de manifestar vontade, dever este presente no significado interno da palavra “denúncia”.183 A denúncia está prevista do CTN, norma tida com conteúdo de lei complementar. Dentro do sistema jurídico brasileiro, somente por outra lei da mesma hierarquia (ou superior) poderia afastar de alguma infração o benefício da denúncia.184 A denúncia espontânea é do trato Fisco-Contribuinte, que se processa através da estrutura administrativa. Somente cabe ao Poder Judiciário intervir reconhecendo o afastamento da multa se, presentes os requisitos, a Fazenda Pública se recusou a afastar.

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ser necessário que a Fazenda arbitre um valor para ser depositado até a apu-ração final do valor do tributo. Nesse caso, a responsabilidade é elidida desde o depósito. Se não é necessário o arbitramento, o art.138 pede o pagamen-to juntamente com a denúncia, porque com ele se extinguirá a obrigação. Observe-se que o texto se refere a pagamento em sentido lato, sem qualquer restrição ou especificação. A jurisprudência já vinha reconhecendo a possibilidade de que esse pagamento ocorresse de forma diferida no tempo. Porém, a edição da Lei Complementar nº104/01, que alterou o CTN incluindo o art.155-A, fez com que alguns julgassem afastado o parcelamento da denúncia espontâ-nea185. Diz a redação do art.155-A, em seu parágrafo 1º, que “salvo dispo-sição de lei em contrário, o parcelamento do crédito não exclui a incidên-cia de juros e multas”. Ressaltemos que o art.155-A trata do parcelamento como forma de extinção de obrigações de maneira genérica, enquanto o art.138 trata de uma forma especial de extinção. A finalidade da denúncia espontânea é estimular o adimplemento independentemente de iniciativa do Fisco. A legislação reconhece o parce-lamento como forma válida de extinção das obrigações tributárias. Nada impede que esse fim seja alcançado mediante o uso de outro elemento le-galmente previsto, como é o parcelamento, nem impedimento para que os dois benefícios (o parcelamento e a denúncia espontânea) se conjuguem relativamente a um mesmo tributo. Ademais, reconhecido do direito ao par-celamento pelo art.155-A do CTN, incoerente seria permiti-lo ao infrator alcançado pela fiscalização e negá-lo ao que opta livrar o fisco dessa tarefa através da denúncia. A interpretação que não reconhece o parcelamento afirma que este configuraria uma situação não isonômica perante o infrator que opta por pagar imediatamente o débito. A isonomia de tratamento, porém, é alcança-da pelo pagamento de juros até a última parcela.Napoleão Nunes Maia Filho186 comenta:

É preciso pôr em destaque que a exclusão da multa é efeito da

185 Veja esse entendimento ilustrado na decisão do TRF/5ªR. AC nº246509/CE.Rel.Des. Federal Luiz Alberto Gurgel de Farias, julgado em 12.6.2000. Revista Dialética de Direito Tributário, nº74, p.144-145 APUD MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao código tributário nacional, volume II. São Paulo: Atlas, 2004 p.653186 MAIA FILHO, Napoleão Nunes. A Denúncia Espontânea de Infração Seguida do Pagamento do Tributo. Revista Dia-lética de Direito Tributário n°138. p82. Grifo original.

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confissão espontânea praticada pelo contribuinte, e não do parcelamento, que é matéria estritamente financeira, relativa apenas à forma de pagamento do crédito já qualificado, e não à apuração do seu valor, ou seja, não é no parcelamento que se discute se haverá (ou não) a exclusão da multa, eis que a sede própria dessa discussão é a denúncia do contribuinte, para se perquirir se foi espontânea (ou não).

Por fim, o parcelamento, como forma de novação da dívida tribu-tária, é mecanismo de regularização de débitos que permite a continuidade das atividades produtivas das pessoas jurídicas inadimplentes. No caso de descumprimento, é imediatamente cabível a inscrição em dívida ativa do restante do tributo não pago e da multa originalmente afastada (esta em valor proporcional). Incluirá também a multa pelo descum-primento do parcelamento (outra infração). Nessa hipótese, temos a situação em que somente o Fisco restou beneficiado com a denúncia. Não há como manter seus efeitos sem o pagamento; se este não ocorre, inócua é a denún-cia. Em algumas situações, porém, nenhum pagamento é exigido do infrator. É caso de descumprimento das obrigações acessórias.Temos que é possível a denúncia espontânea desse tipo de infração. Isso se extrai da expressão “se for o caso, acompanhada de pagamento” do art.138. O texto também não faz restrição alguma quanto à natureza da infração afastável, se decorrente de descumprimento de obrigação principal, ou aces-sória. A infração de uma obrigação acessória é o descumprimento do dever formal que a compõe. Qualquer iniciativa do infrator em reparar sua omissão implica o cumprimento desse dever e o suportar uma sanção pelo inadimplemento. Ora, ocorrida a denúncia, está afastada a sanção; resta so-mente o dever de adimplir a obrigação. Não há, portanto, nenhum valor pe-cuniário a acompanhar a denúncia; apenas a comprovação de cumprimento do dever formal. Nesse momento podemos pensar que o infrator e o sujeito passivo da obrigação acessória terão, ao fim e ao cabo, o mesmo tratamento perante o Fisco. Cabe lembrar agora que a vantagem está no fato de o Fisco ter se libertado do ônus de fiscalizar e identificar a infração e ainda exigir o adim-plemento tardio. Embora aparentemente singela a questão da denúncia de descum-primento de dever acessório, temos escondido outro debate: a possibilida-

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de de reconhecer como denúncia a entrega fora do prazo de Declaração de Rendimentos e da Declaração de Contribuições e Tributos Federais (DCTF). A jurisprudência do STJ187 não aceita a denúncia nesses casos, embo-ra defensável no plano argumentativo, em função de um importante aspecto prático: o sujeito passivo passaria a entregar as declarações quando lhe fosse particularmente interessante, em prejuízo da Fazenda Pública. Reconhece a denúncia apenas quanto a deveres instrumentais não cumpridos vinculados a um fato gerador, como a emissão de notas fiscais e escrituração de livros contábeis.

IV.III -EFEITOS DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA

A denúncia espontânea afasta a exigência da penalidade pecuniária, cuja natureza também não foi prevista pelo CTN no art.138. Temos que abrange tanto a multa punitiva quanto a multa moratória, conforme enten-dimento pacificado pelos Tribunais Superiores:

“O Código Tributário Nacional não distingue entre multa punitiva e mul-ta simplesmente moratória; no respectivo sistema, a multa moratória constitui penalidade resultante de infração legal, sendo inexigível no caso de denúncia espontânea, por força do artigo 138. Recurso especial conhecido e provido.” (Resp 16.672-SP; Rel Min. Ari Pargendler, DJ em 4/3/1996)188

“O contribuinte do ISS, que denúncia espontaneamente ao Fisco o seu débito em atraso, recolhendo o montante devido, com juros de mora e corre-ção monetária, está exonerado da multa moratória, nos termos do art.138 do CTN. Recurso Extraordinário não conhecido”.(RE n°106.068-SP. RTJ 115/452)189 TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. MULTA MORA-TÓRIA. EXCLUSÃO. DISSÍDIO INTERPRETATIVO. DESSE-MELHANÇA FÁTICA. 1. Com a denúncia espontânea, fica afastada a multa moratória, até porque inexiste distinção entre esta e a multa punitiva. (...). (REsp 936414/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 21.06.2007, DJ 01.08.2007 p. 451)

187 MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções Administrativas Tributárias. São Paulo: Dialética,2004. (FURLAN, Ander-son e SAVARIS, José Antônio.A Denúncia Espontânea da Infração no Direito Tributário Brasileiro.p.15). p25188 ANDRADE FILHO, Edemar Oliveira.Infrações e Sanções Tributárias. São Paulo. Dialética:2003 p.149.189 ANDRADE FILHO, Edemar Oliveira, ibidem p.149.

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A multa, como sanção tributária, não pode ser aplicada com ou-tro objetivo senão o de punir uma conduta contrária ao direito (caráter repressivo-intimidativo das penalidades). A própria natureza das penalidades pecuniárias afasta a tese da Fazenda Pública de que a multa moratória seria “ressarcimento” do dever de pagar tributo no tempo exigido. Ora, esse é o papel dos juros (previstos no art.161, caput do CTN), que servem para re-compor o patrimônio lesado pelo inadimplemento. São a única indenização que pode ser exigida pelo Estado190.Assim considerando os juros, caso fosse possível a cobrança de multa inde-nizatória, a legislação estaria autorizando o bis in idem, que é figura evitada pelo sistema de direito brasileiro. Ademais, o posicionamento de que multas têm natureza punitiva e não indenizatória está inclusive fixado na Súmula 565 do STF: “A multa fis-cal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito ha-bilitado em falência” (Publicada em DJ de 3/1/1977, p. 3; DJ de 4/1/1977, p. 35; DJ de 5/1/1977, p. 59.)191. Quanto às multas, a única exigência que hoje o CTN faz é que sejam legalmente previstas; por omissão, afasta a diferenciação entre os tipos citados. Já a correção monetária é devida juntamente com os juros, pois sua finalidade é apenas evitar perdas decorridas da desvalorização da moeda pela inflação. O CTN também não concedeu efeitos diferenciados para as espé-cies de infração, tratando da mesma forma tanto as mais graves quanto as menos danosas. Como já dito, a infração é criminal se penalmente tipificada; por exclusão o restante compõe infrações somente tributárias. Para aquelas, a análise da vontade do infrator é elemento constitutivo da infração, nestas, essa análise é dispensável. Isso significa que a denúncia afasta os efeitos das infrações criminais. Ademais, se a denúncia é válida, temos uma obrigação tributária extinta; não subsiste qualquer obrigação sancionadora. Não é lógico impor a pena em âmbito mais gravoso, o criminal, se em âmbito menos gravoso, o tributário, a penalidade foi afastada.

190 A multa pressupõe um ilícito, a indenização, um dano. No caso, o dano é não ter o valor disponível no prazo fixado.]191 A divergência quanto à natureza das multas moratórias e punitivas é anterior a vigência do Código Tributário Nacional, de 1966. Antes, a jurisprudência apenas afastava a multa moratória, como se vê pelo teor das Súmulas 191 e 192 do STF, ambas aprovadas na mesma Sessão Plenária em 13/12/1963 e hoje bem revogadas: Súmula 192: Não se inclui no crédito ha-bilitado em falência a multa fiscal com efeito de pena administrativa. Súmula 191: Inclui-se no crédito habilitado em falência a multa fiscal simplesmente moratória.

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V -CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta inicial desta monografia é a análise do art. 138 do Códi-go Tributário Nacional, que prevê a denúncia espontânea da infração como forma de afastar a exigibilidade da multa devida pelo descumprimento da obrigação tributária. Verificamos que a espontaneidade somente é afastada pelo início de atividade fiscalizatória ou processo administrativo, quando devidamente notificado o infrator. Se não há nenhum desses procedimentos, é possível denunciar a infração acompanhada do pagamento do débito, e para isso a lei não exige nenhuma formalidade. No entanto, é necessário que a denúncia se dê de tal forma que seja possível identificar todos os elementos da obrigação não adimplida. A respeito do pagamento do tributo que é exigido simultaneamente à apresentação da denúncia, temos que é possível a forma parcelada. A legis-lação nos termos art.155-A do CTN autorizou o parcelamento de créditos tributários, não impondo nenhuma vedação aos créditos denunciados. Na hipótese de descumprimento do parcelamento, é imediata a inscrição em dívida ativa, que cobrará o tributo restante não pago, inclusive a multa afas-tada. A legislação também não estabelece limitações quanto a natureza da obrigação não cumprida, de modo que é possível concluir que a de-núncia também se presta às obrigações assessórias. Nessa hipótese, nenhum pagamento acompanhará a infração, apenas a comprovação de que o dever formal foi cumprido. A jurisprudência do STJ, no entanto, estabelece que a denúncia é cabível somente se o dever formal for relacionado diretamente a uma obrigação principal. A denúncia espontânea afasta a exigência da multa decorrente da infração. A jurisprudência dos Tribunais Superiores reconheceu, tanto na multa moratória, como na a multa punitiva o caráter de penalidade, de modo que ambas não podem ser exigidas se apresentada a denúncia. Somente juros podem ser cobrados com finalidade indenizatória, além da correção mone-tária para a recomposição do valor da moeda. Por fim, a denúncia espontânea também afasta os efeitos penais da infração. A denúncia válida é a acompanhada do adimplemento, pelo qual restará extinta a obrigação tributária, que, descumprida, configurou-se em infração penal.

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TITULARIDADE DO MUNICÍPIO PARA AÇÃO CIVIL PÚBLICA: POSSIBILIDADES DE

CONCRETIZAÇÃO DA TUTELA INIBITÓRIA DO DANO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO

PERMANENTE (APP)

Candida Silveira Saibert192*

*192 Procuradora do Município de Porto Alegre, Especialista em Direito Público Municipal pela PUCRS, membro da Comis-são Permanente de Acessibilidade de Porto Alegre.

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RESUMO O presente artigo aborda a legitimidade dos Municípios para pro-porem ação civil pública e utilizarem-se dos instrumentos legais e proces-suais previstos na Lei nº. 7.347/85, mediante análise das possibilidades de concretização da tutela inibitória e reparadora do dano ambiental em Áreas de Preservação Permanente, numa perspectiva pragmática e sob a ótica da experiência do Município de Porto Alegre.

SUMÁRIO I- Introdução II- Atuação judicial do Município na preservação das áreas de preservação permanente III- Da responsabilidade do causador do dano e do proprietário do imóvel: da solidariedade e litisconsórcio passivo necessário IV- Provimentos liminares, tutela preventiva, tutelas específicas e tutela inibidora ambiental V- Concretização dos fundamentos em pedidos liminares e definitivos na ação civil pública: A experiência do Município de Porto Alegre VI- Considerações Finais

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I-INTRODUÇÃO

O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito fundamen-tal de terceira dimensão, transindividual, necessário para a efetividade da garantia de uma sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. Ancorado no texto do artigo 225 da Constituição Federal, o meio ambiente é bem de uso comum do povo, distinto do direito individual de propriedade, cujo exercício exige a estrita observância das normas ambientais. Compete ao Poder Público e à sociedade em geral a obrigação de preservar e defender o meio ambiente, da qual resulta a necessidade de com-patibilização da exploração econômica dos recursos naturais com o interesse de preservação. Assim, a disciplina urbanística e ambiental da propriedade conferida pelo ordenamento jurídico deverá ser obedecida pelo particular, a fim de que o imóvel atenda à sua função social e ambiental. Dessa forma, resta aos proprietários e empreendedores darem aos seus imóveis destinação compatível com as normas de uso e ocupação do solo e com as normas am-bientais. Especialmente quando o imóvel está localizado em Área de Preser-vação Permanente nos termos da Lei nº. 4.771/65 e seus regulamentos, a conformação do direito de propriedade privada com o interesse difuso de preservação ambiental pode gerar impasses cuja solução exigirá a jurisdicio-nalização para a composição dos conflitos. Nesta seara, cumpre destacar a atuação judicial dos Municípios como ente legitimado para a propositura da ação civil pública por danos ambientais, verificando quais as alternativas processuais cabíveis para a inibi-ção da conduta lesiva e para a recomposição do dano. A partir daí, o presente trabalho busca trazer a lume aspectos pragmáticos na experiência do Muni-cípio de Porto Alegre, como forma de ilustrar a teoria veiculada.

II-ATUAÇÃO JUDICIAL DO MUNICÍPIO NA PRESERVAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE

Após a promulgação da Carta de 1988 as políticas públicas sobre o meio ambiente passaram por um intenso processo de descentralização, com o escopo de conferir-se maior efetividade ao sistema instituído pela Lei nº. 6.938/81, que criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente. Os Municípios passaram a ser competentes para o licenciamento ambiental da mesma forma que a União e Estados e a desempenhar papel relevante na formulação e execução da gestão ambiental.

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Em decorrência da competência constitucional para controle do uso e ocupação do solo urbano e para a execução das políticas de desenvol-vimento urbano, ao Município cumpre a aplicação integrada e sistematiza-da das normas ambientais e urbanísticas. Disso decorre que o exercício do poder de polícia ambiental pelo Município possa intervir na ação danosa de forma mais rápida e eficaz, inibindo a continuidade da conduta lesiva e buscando a reparação. A atuação municipal, entretanto, não se restringe ao âmbito administrativo, competindo-lhe a provocação do Judiciário sempre que as providências administrativas forem insuficientes para coibir os danos provocados pelos particulares, sejam em áreas púbicas, sejam em proprieda-des privadas. A legitimidade ativa do Município para propor ação civil pública por dano ambiental está abrigada no artigo 5º da Lei 7.347/85, que, confor-me Rodolfo de Camargo Mancuso , confere uma legitimação “concorrente e disjuntiva” entre os entes políticos e seus órgãos descentralizados, associa-ções constituídas há mais de um ano e o Ministério Público. O Código Florestal, Lei 4.771/65, conceitua Área de Preservação Permanente no artigo 1º, § 2º, II. O conceito estabelece que as APPs são áreas protegidas na forma dos artigos 2º e 3º daquele diploma legal e que de-sempenham uma função ambiental, estejam ou não cobertas por vegetação nativa. O parágrafo único do artigo 2º do Código Florestal agregou às áreas tipificadas no dispositivo as disposições normativas previstas nos planos dire-tores e leis de uso do solo urbano, nos Municípios, regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, gerando discussões acerca da competência municipal para disposição de normas menos restritivas. A par dessas discussões, a Resolução CONAMA 303, editada em 2002, redesenhou os parâmetros, os limites e as definições das Áreas de Pre-servação Permanente disciplinadas pelo Código Florestal, desvinculando-as da existência de vegetação protegida, introduzindo a definição de área urba-na consolidada e estabelecendo um diálogo com o ordenamento urbanístico. O rol estabelecido no artigo 3º da Resolução 303/02 expandiu o elenco es-tabelecido no artigo 2º da Lei nº. 4.771/65 definindo os espaços e ambien-tes especialmente protegidos, que desempenham uma determinada função ambiental194. Cumpre aos Municípios integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA – observar os parâmetros estabelecidos na Re-solução CONAMA 303/02195 na execução das políticas públicas municipais 194 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis, Visualbooks, 2003, p. 107.195 PRESTES, Vanêsca Buzelato. Parecer 1090/04. Disponível em < http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/pgm/usu_doc/P1090_04.pdf> Acesso em 15.04.07.

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e no exercício do poder de polícia ambiental. A proteção especial conferida pela legislação decorre da determi-nação constitucional expressa no artigo 225, § 1º, inciso III, que atribui ao Poder Público a competência para definição dos espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos. O próprio dispositivo cons-titucional veda a utilização da área protegida de forma que comprometa a integridade de seus atributos. Verificada a conduta lesiva, o Município, além da imposição das san-ções de natureza administrativa, poderá tomar compromisso de ajustamento de conduta do infrator, em instrumento com valor de título executivo extra-judicial, no qual ficam estabelecidos prazos e condições para a regularização da atividade ou construção às exigências legais, na forma preconizada pelo § 6º do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública – LACP. Descumpridas as obrigações pelo compromissário, o Município deverá ajuizar a competente ação executiva, requerendo de imediato a imposição de multa pelo descum-primento, com fundamento no artigo 645 do CPC. O dano ambiental provocado pela implantação de atividade ou obra em Área de Preservação Permanente deverá ser reparado, como determina a Constituição Federal no artigo 225, § 3º, independentemente da apuração da responsabilidade penal e administrativa. Paulo Affonso Leme Machado196 com propriedade comenta o dis-positivo constitucional, referindo que seu conteúdo importa na noção de reencontrar a dinâmica anteriormente existente: “A CF/88, com grande acuidade, agasalha os princípios da restauração, recuperação e reparação do meio ambiente no art. 225. Em seu § 1º, I, aponta a obrigação de “recuperar os processos ecológicos essenciais”. Discorre, ainda, o renomado jurista que dentre as penalidades cabí-veis aos degradadores das Áreas de Proteção Ambiental está a obrigação de reposição e reconstituição (art. 9º, § 2º, da Lei 6.902, de 27.4.1981), além da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados independente-mente de culpa (artigos 4º, VII e 14, § 1º, da Lei. 6.938/81)197. Vislumbra-se, portanto, que a responsabilidade dos degradadores é objetiva, razão pela qual o Município poderá ajuizar ação civil pública para compeli-los a recuperar a área lesada, bem como a indenizar pelo período em que houve o desequilíbrio ecológico. Nesse sentido Francisco José Mar-

196 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros, p. 339.197 Op. cit., p. 339.

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198 SAMPAIO, Francisco José Marques. Responsabilidade civil e reparação de danos ao meio ambiente. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 1998, p. 107.

ques Sampaio afirma que, se a recomposição do equilíbrio ecológico depen-der de lapso de tempo prolongado, “a coletividade tem direito subjetivo a ser indenizada pelo período que mediar entre a ocorrência do dano e a integral reposição da situação anterior198”. (grifamos). A ação civil pública deverá demandar a recuperação da morfologia natural da gleba, o reflorestamento, a recomposição da paisagem natural da Área de Preservação Permanente, e todas as medidas mitigadoras e compen-satórias necessárias para a instalação do empreendimento, quando este puder ser regularizado mediante o devido licenciamento ambiental e urbanístico, além da obrigatória compensação financeira ecológica, pelo período com-preendido entre o cometimento do dano ambiental e a efetiva recomposição do bem lesado, na forma preconizada no artigo 4º, VII, da Lei 6.938/81.

III-DA RESPONSABILIDADE DO CAUSADOR DO DANO E DO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL: DA SOLIDARIEDADE E LITIS-CONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO

Vigora no ordenamento pátrio a responsabilidade civil objetiva em matéria ambiental, em decorrência do disposto no artigo 225, § 3º da Carta Constitucional: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio am-biente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causa-dos”. A Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Am-biente, agasalha os princípios do usuário-pagador e do poluidor-pagador, pelos quais tanto o beneficiário da conduta lesiva ao meio ambiente, quanto o causador do dano, são obrigados a pagar pela degradação causada. A re-paração do dano deverá ser suportada, portanto, pelo empreendedor e pelo proprietário da gleba, quando se tratarem de pessoas distintas, eis que este é responsável em decorrência da titularidade do imóvel. Pode-se exemplificar essa hipótese nos casos de exploração de mi-nérios e implantação de loteamentos em APPs. A responsabilização exclusiva do empreendedor ou loteador representaria um enriquecimento ilegítimo do proprietário do imóvel, pois a atividade degradadora reverte direta ou indiretamente em seu benefício, na medida em que o empreendimento irá

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trazer retorno financeiro. A responsabilidade do proprietário, quando mais não seja, repousa na conduta omissiva em relação ao bem ambiental. A responsabilidade do proprietário do imóvel decorre do artigo 5°, XXII e XXIII, artigo 170, II, III e VI e artigo 225 da Magna Carta. A pro-priedade privada recebeu tratamento da Carta Constitucional em dois sen-tidos: como direito fundamental e como elemento da ordem econômica. Os dispositivos constitucionais atribuíram à propriedade uma função social e uma função ambiental, de maneira que os interesses particulares sejam compatibilizados com os interesses da Sociedade de preservação dos recursos ambientais199: O Código Civil de 2002, nessa linha, estabeleceu no § 1° do artigo 1.228 que o direito de propriedade deverá ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico. Estabelecida a obrigação do proprietário, conforma-se a prática do ato ilícito na forma dos artigos 186 e 187 do Código Civil200. Configura-se, dessarte, a responsabilidade do proprietário pelo dano ambiental decorrente da exploração econômica do seu imóvel, devendo, pois integrar a lide na qualidade de litisconsorte passivo necessário, com fulcro no artigo 942 e parágrafo único do Código Civil Brasileiro200. Em face desse fato, imperiosa a citação do proprietário do imóvel para que com-ponha o pólo passivo da demanda, respondendo solidariamente pelos danos ambientais causdso

IV-PROVIMENTOS LIMINARES, TUTELA PREVENTIVA, TUTE-LAS ESPECÍFICAS E TUTELA INIBITÓRIA AMBIENTAL

É grande a gama de provimentos liminares que poderão ser sus-citados na defesa dos interesses metaindividuais. Tratando-se de dano em Área de Preservação Permanente, o Município poderá requerer em caráter antecipatório tutela preventiva executiva para impedir a repetição do ilícito já cometido e para prevenir a implementação ou funcionamento do empre-endimento. Nesse caso, a tutela preventiva poderá ter por objeto o embargo da obra ou a interdição da atividade, além da ordem específica de proibição da conduta lesiva.

199 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.200 Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.

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A tutela preventiva executiva tem como função obstruir a prática do ilícito ou impedir a sua repetição, visando sua prevenção, independentemen-te de sua ocorrência anterior. Assim, mesmo quando o empreendimento não tenha sido implementado, os poluidores deverão ser condenados à obrigação de não-fazer, e essa obrigação poderá ser objeto da antecipação de tutela. Para garantir a futura recomposição do dano, o Município poderá requerer liminarmente a concessão de tutela específica com fundamento no artigo 461, § 5°, do CPC, para assegurar o patrimônio que responderá pela futura execução, mediante pedido para localização de bens e direitos em nome do empreendedor e do proprietário do imóvel, que possam vir a satisfazer o objeto da demanda, pedido de bloqueio ou arresto de bens sufi-cientes para a segurança do juízo, além daquelas ações materiais necessárias para inibir a conduta degradadora ou poluidora. O Município poderá requerer a expedição de ofício do juízo para todos os cartórios do Registro de Imóveis do Município, com determinação judicial para gravarem os bens de propriedade dos infratores e para se abste-rem de registrar a alienação a qualquer título daqueles imóveis até a decisão final. Poderá requerer também a expedição de ofício para a Receita Federal para que informe sobre a existência de bens em nome dos poluidores de-mandados. A documentação carreada com a inicial deverá compreender laudos do órgão ambiental, levantamentos fotográficos, análises químicas etc, além dos atos administrativos fiscalizatórios (notificações, autos de infrações, em-bargos, interdições). Dependendo da gravidade demonstrada, será necessária a execução de ações emergenciais, cujo custeio o Município buscará no pa-trimônio dos réus. Nessa hipótese, torna-se imprescindível o requerimento de tutela específica para garantir o patrimônio que responderá pela futura execução, mediante a quebra do sigilo bancário dos demandados, com vista ao bloqueio de eventual movimentação financeira que possa frustrar a exe-cução do provimento final, considerando que a execução será tanto mais efetiva quanto maior for a liquidez do patrimônio gravado. O Município poderá por esses fundamentos requerer que o juízo verifique no sistema BACEN-JUR informação sobre a existência de valores monetários em nome dos demandados, solicitando o bloqueio de eventuais depósitos e aplicações financeiras existentes. Além da remoção do ilícito e recomposição do dano, o Município deverá buscar a condenação dos poluidores-infratores na obrigação de não-fazer consistente na proibição de reincidência da conduta lesiva sobre a área

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objeto da ação, com o escopo de coibir infração à ordem urbano-ambiental e a reincidência do dano.

V-CONCRETIZAÇÃO DOS FUNDAMENTOS EM PEDIDOS LI-MINARES E DEFINITIVOS NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA: A EXPE-RIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

Feita a fundamentação para atuação judicial do Município em ação civil pública por dano ambiental em APPs, cumpre trazer hipóteses de con-cretização em pedidos liminares e definitivos. Selecionamos para os fins pragmáticos que permeiam o presente trabalho, um caso de dano ambiental provocado pela implantação de loteamento irregular em Área de Preserva-ção Permanente no Município de Porto Alegre. As infrações praticadas pelos réus causaram danos de várias ordens: 1) urbanística, pois em infração ao planejamento urbano concebido para a cidade pelo Plano Diretor de De-senvolvimento Urbano e Ambiental – LC nº 434/99; 2) ambiental, pois as obras preparatórias para implantação de loteamento em área de proteção do ambiente natural geraram derrubada e queimada de vegetação, movimenta-ção de terra inadequada e degradação do topo do morro; 3) paisagística, pela alteração da paisagem natural de Área de Preservação Permanente. Na inicial o Município requereu a concessão de liminar inaudita altera pars ante a gravidade da situação fática narrada, que revelava que a efe-tividade dos direitos que se pretendia assegurar por meio da demanda exigia providências urgentes para que a reparação dos danos causados encontrasse respaldo no patrimônio dos réus (loteadores e proprietários da gleba). Nesse sentido, fundamentado nos artigos 11 e 12 da Lei 7.347/85, c/c do artigo 461, § 5° do CPC, que autorizam os provimentos liminares a requeridos, o Município requereu tutelas específicas e assecuratórias, traduzidas nos se-guintes pedidos:1. a concessão de liminar que impeça os réus de removerem vegetação, de fazerem movimentação de terra no local e de efetuarem parcelamento do solo, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (Hum mil reais), em caso de descumprimento;2. a concessão de liminar que imponha aos réus a obrigação de impe-dir ocupações da área, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (Hum mil reais), em caso de descumprimento;3. a proibição imediata de parcelamento do solo e de alienação de lotes sobre a área objeto da ação, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00

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(Hum mil reais), em caso de descumprimento;4. a proibição imediata de alienação de imóveis existentes em nome dos réus;5. a expedição de ofício para todos os cartórios de Registro de Imó-veis de Porto Alegre, para que gravem os imóveis dos réus com a presente ação e para que se abstenham de registrar a alienação dos bens imóveis de sua propriedade;6. a concessão de liminar para que seja oficiada a Delegacia da Receita Federal, para que informe acerca da existência de bens em nome dos réus;7. a concessão de liminar que determine a quebra do sigilo bancário do réu XXX, pelo sistema BACEN-JUR, para que informe a existência de valores monetários e para que bloqueie as eventuais contas existentes em seu nome;8. a concessão de liminar para que seja oficiado ao DETRAN, solici-tando que este informe a existência de veículos em nome dos réus;9. sejam encaminhadas cópias do presente processo ao Ministério Pú-blico – Coordenadoria das Promotorias do Meio Ambiente, face aos ele-mentos que sugerem a prática de crimes ambientais;10. a intimação do Ministério Público para que integre o pólo ativo da presente ação;11. seja encaminhado ofício ao CRECI-RS para que tomem as devidas providências para apuração das infrações cometidas pelo réu XXX; No mérito o Município postulou a condenação dos réus nas obri-gações de fazer e não-fazer consistentes em tutelas reparatórias e inibitórias do dano, além da condenação a indenizar pelos danos ambientais causados pela execução das obras preparatórias para implantação do loteamento. Se-guem os pedidos: 1. condenar os réus a apresentarem e aprovarem perante os órgãos municipais projeto de remediação da área degradada, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 pelo descumprimento; 2. condenar os réus a executar todas as obras para recomposi-ção do dano ambiental e paisagem natural, em conformidade com os proje-tos aprovados pelo Município e com a legislação municipal, no prazo de 90 dias, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 pelo descumprimento; 3. condenar os réus a indenizar pelo dano ao meio ambiente, no valor que deverá ser apurado em liquidação de sentença e recolhido ao Fundo Municipal do Meio Ambiente;

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4. condenar os réus à obrigação de não-fazer consistente na vedação de execução de loteamento e de venda de lotes na área, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 pelo descumprimento; 5. condenar os réu a apresentarem relatórios de acompanha-mento da evolução das medidas reparadoras do dano ambiental, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 pelo descumprimento; 6. condenar os réus nas custas, honorários periciais e honorá-rios advocatícios. A ação, recentemente ajuizada, a exemplo de outras na mesma linha, pende de decisão em primeiro grau. Porém, o Poder Judiciário tem sido receptivo para deferimento dos pedidos liminares, especialmente contra o loteador-poluidor. Na ação civil pública nº. 001/1.05.2313185-6, diante da robusta prova carreada e da contumaz reincidência do loteador, o juiz de primeiro grau deferiu todos os pedidos liminares, inclusive a quebra do sigi-lo bancário.

VI-CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. O Município desempenha relevante papel na execução das políti-cas públicas de proteção do meio ambiente, não se restringindo sua atuação ao exercício do poder de polícia ambiental. Aqueles Municípios integrantes do SISNAMA deverão buscar tutela jurisdicional sempre que a atuação ad-ministrativa for insuficiente para a prevenção ou reparação do dano. 2. O Código Florestal disciplina o regime jurídico das APPs, tra-tando das áreas urbanas no parágrafo único do artigo 2º. A Resolução CO-NAMA 303/02 inseriu a definição de área urbana consolidada, competindo aos Municípios a observância de seus parâmetros, a par do disposto no Plano Diretor e leis de uso e ocupação do solo. 3. Constatada a ocorrência de dano ambiental em APPs, sem em-bargo da responsabilidade penal e administrativa do poluidor – infrator, o Município poderá tomar compromisso de ajustamento de conduta para re-composição do dano, ou ajuizar a ação civil pública na forma estatuída pelo artigo 5º e seu § 6º, da LACP. 4. Na ação civil pública o Município deverá requerer a citação do proprietário para compor a demanda na condição de litisconsorte passivo necessário. Poderá postular o provimento liminar de tutelas preventivas, es-pecíficas e inibitórias do dano ambiental, de remoção do ilícito e medidas

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assecuratórias do patrimônio para satisfação da ação executiva. 5. No mérito, deverá perseguir a recomposição integral da APP. Os pedidos poderão ter por objeto obrigações de fazer, não-fazer, reparatórias e inibitórias do dano, sem prejuízo da indenização a ser recolhida ao Fundo Municipal do Meio Ambiente pelo período em que a coletividade esteve privada do equilíbrio ecológico em decorrência da conduta danosa.

BIBLIOGRAFIA

CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis, Visualbooks, 2003.MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros.MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, patrimônio cultural e dos consumidores: Lei nº. 7.347/5 e legislação complementar. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.PRESTES, Vanêsca Buzelato. Parecer 1090/04. Disponível em <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/pgm/usu_doc/P1090_04.pdf> Acesso em 15.04.07.SAMPAIO, Francisco José Marques. Responsabilidade civil e repa-ração de danos ao meio ambiente. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 1998, p. 107.

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DELIMITAÇÃO DO CONCEITO DE MORADIA: O ATENDIMENTO AOS DESÍGNIOS DO

“MÍNIMO EXISTENCIAL” E A QUESTÃO DOS CUSTOS DE PRODUÇÃO HABITACIONAL EM

PORTO ALEGRE 202

Clarissa Cortes Fernandes Bohrer**Luiz Homero Cabistani

202 Clarissa Cortes Fernandes BOHRER, Procuradora do Município de Porto Alegre e Luiz Homero CABISTANI, Engenheiro Civil do Departamento Municipal de Habitação.

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SUMÁRIO 1) Introdução. 2) Direito Fundamental de Moradia. 3) A Práxis da Moradia em Porto Alegre. 4) Os Custos da Produção Habitacional em Porto Alegre. 4.1) Lotes urbanizados. 4.2) Verticalização. 4.3) Inovações tecnológi-cas. 4.4) Preço da terra. 5) O Conceito Jurídico da Moradia e sua Relação com o “Mínimo Existencial” e com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 6) O Conceito de Moradia na Ordem Urbanística. 7) Conclusão. 8) Referências Bibliográficas.

ABSTRACT This text faces the concept of fundamental right to the dwelling in order to establish an idea about what dwelling really attends to the “mi-nimum existential” principle.The right to the dwelling is the material base from which the others fundamental rights can be lead up to the citizens, and, by this reason, have central consequences in the development of the local public politics.Porto Alegre City presents an elevated dwelling deficit (qua-litative and quantitative) and the dwelling costs of al the conventional typo-logies, such as urbanized lots, high verticalization, etc., reports as the bigger obstacle to the attainment of the consign public politics of dwelling units like developed in this Town.By this way, in order to guarantee efficacy to the fundamental right to the dwelling, is indispensable, beyond the consequent utilization of wide financial resources, cogent enough local politicals in front fo the rules of the Estatuto da Cidade, with well structured habitational pro-grams and activities to the maintance of the beneficiary communities.

I -INTRODUÇÃO

Partindo da afirmação de que a moradia é direito fundamental que empresta substrato físico à maioria dos direitos fundamentais sociais assegu-rados pela Constituição Federal, na medida em que constitui a base material a partir da qual vários outros direitos fundamentais podem ser exigidos util-mente pelos cidadãos, é de central importância para a ordem jurídico-urba-nística a delimitação do conceito de moradia. A devida compreensão do conceito de moradia é indispensável no sentido de afirmar “qual é a moradia” que atende aos desígnios do mínimo existencial, em especial, naquilo que pertine à discussão entre a outorga de

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lotes urbanizados e/ou de unidades habitacionais e à verticalização das tipo-logias pelo Poder Público responsável pela gestão de políticas habitacionais, o que, necessariamente, passa pelo debate dos custos de produção habitacio-nal. A complexidade do conceito encetado inicia-se nas questões re-ferentes à disponibilidade de recursos públicos e termina nas dificuldades impostas pela burocracia registral, passando pelos problemas decorrentes do caráter multidisciplinar da matéria e de seu inegável cunho político, sendo desnecessário referir que essa complexidade cresce na medida em que cresce o déficit habitacional das cidades. A conceituação de moradia indigna pode ser facilmente extraída dos elementos insertos nos dados do déficit habitacional qualitativo. Contu-do, seu conceito inverso é bem mais tormentoso e exige um esforço inter-pretativo e conseqüente que leve em consideração os elementos jurídicos, sociais, culturais e financeiros ínsitos na ordem urbanística, vez que não basta à conflagrada realidade habitacional do país um conceito meramente jurídi-co de moradia. A necessidade de discussão do tema também guarda relação com as diretrizes para as políticas habitacionais lançadas pelo Ministério das Ci-dades, na medida em que a proposta Ministerial é em formato sistêmico, com a instituição do Sistema Nacional de Habitação, que conta com aporte financeiro do Fundo Nacional de Habitação, e com aporte operacional do Conselho Nacional das Cidades, Conselhos Estaduais e Conselhos Munici-pais (cada qual com seus fundos e sistemas de planejamento). A proposição federal é programática e organizacional, apresentando simetria com as delegações de competências trazidas pelas políticas públicas na área de saúde e de educação, vez que traça diretrizes nacionais genéricas e repassa aos demais entes federados a preparação e montagem de planos ha-bitacionais específicos que possam minimizar o déficit habitacional regional e local. Além disso, o enfoque nacional leva em consideração a constatação de que, não raras vezes, os recursos existem, mas não há capacidade técnica para sua correta captação ou para execução dos investimentos. Tendo em vista a falta de um critério unívoco para a construção do conceito de moradia e de seus limites, aliada à possibilidade de dilação ou restrição contida na idéia de sistema, quer-nos parecer absolutamente necessário o presente debate a fim de iniciar a construção de um conceito de moradia que não se encontre dissociado da realidade e que seja, além de justo, socialmente correto, economicamente viável e operacionalmente exe-

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qüível. Desta forma, a presente investigação busca, a partir de algumas in-formações da capital gaúcha, discutir um conceito de moradia compatível com as dificuldades financeiras da produção habitacional e com os ditames do postulado da “reserva do possível”, a fim de enfrentar a sempre palpitante discussão contida no binômio “possibilidade para o Poder Público e dever constitucional prestacional de outorga do direito de moradia”, a fim de al-cançar maior efetividade a esse direito.

II -O DIREITO FUNDAMENTAL DE MORADIA

A municipalização das políticas habitacionais, ínsita nos artigos 1°, 18, 23, IX, 24, I, 30, I, II, V e VIII, 182 da Constituição Federal, não deixa dúvidas de que a tarefa delegada aos governos locais reveste-se de alta com-plexidade, haja vista o fato de envolver a obrigação prestacional de direito fundamental que exige vultosos custos para sua consecução. É cediça a constatação de que o passivo de desigualdades em nosso País se corporifica nas diferentes formas de produção e apropriação da mo-radia e do ambiente urbano pelos diferentes grupos sociais, razão pela qual é imperioso o enfrentamento conseqüente do tema por parte dos órgãos pú-blicos que desenvolvem políticas habitacionais e de regularização fundiária, sob pena de se inviabilizar o desenvolvimento sustentável das cidades brasi-leiras e ter-se de arcar com os inevitáveis custos sociais advindos da ocupação predatória do espaço urbano. Em que pese algumas orientações doutrinárias em sentido contrá-rio, quer-nos parecer que resta vencida a discussão sobre a fundamentalidade ou não do direito de moradia haja vista sua especial proteção jurídica (re-velada tanto no ordenamento constitucional como no infraconstitucional) e suas vinculações com o mínimo existencial. O direito de moradia encontra-se na base da maioria dos demais di-reitos fundamentais sociais assegurados pela Constituição Federal. Em outras palavras, pode-se dizer (sem risco de analogias eventualmente positivistas) que se trata da base material, física, a partir da qual vários outros direitos fundamentais podem ser exigidos utilmente pelos cidadãos. Senão vejamos: a matrícula de crianças na escola, o atendimento em postos de saúde, a in-serção no mercado de trabalho e a inclusão em programas públicos de recre-

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ação e lazer, todos direitos sociais perfilhados no artigo 6º da Constituição Federal, passam, necessariamente, pela indicação do endereço residencial do beneficiário. Desta forma, tal direito tem central importância na consecução das políticas públicas locais, máxime naquilo que concerne ao exercício da própria cidadania e à dignidade das pessoas. Assim, afirmado o caráter de direito subjetivo fundamental da mo-radia, é preciso definir seu alcance e os limites de seu caráter obrigacional-prestacional para o Poder Público, a exemplo do que já vem ocorrendo com as demandas envolvendo questões de saúde e apresenta uma tendência de reprodução nas demandas judiciais e administrativas envolvendo questões habitacionais. Não se desconhece a cogência do direito invocado, nem, tampouco, a obrigação de o Poder Público (em especial, o Municipal) prover o direito fundamental de moradia. Entretanto, a par da propalada obrigação da Ad-ministração, alguns aspectos merecem ser ponderados a fim de que se possa avançar do formulismo “obrigação do Poder Público de prestar moradia à população socialmente vulnerável” para uma concepção mais realista da ati-vidade planejadora do uso e da ocupação do solo urbano. Igualmente, não se desconhece que a luta pelo espaço urbano, que, além das famigeradas ocupações e invasões, materializa-se nos processos de favelização, encortiçamento e periferização, onde prevalecem a irregularida-de a ilegalidade do acesso à terra. A habitação é processo que tem como base de sua lucratividade a apropriação dos benefícios gerados pela extrema diferenciação do espaço urbano em termo de equipamentos, serviços e amenidades, diferenças que são reproduzidas e aprofundadas pelo processo de produção. Percebe-se, pois, que a realidade social não admite mais um con-ceito de moradia que não venha informado por elementos da realidade (em especial, da realidade local regional e local) vez que o direito posto em causa não logrará qualquer efetividade se não for inserido e contextualizado nas práticas de produção habitacional levadas a efeito pelos gestores dessa políti-ca pública.

III -A PRAXIS DA MORADIA EM PORTO ALEGRE

A cidade irregular/informal pós-moderna (ou hipermoderna, como preferem alguns) apresenta estatísticas avassaladoras para o Poder Público,

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em especial para os órgãos públicos gestores das políticas habitacionais, não apenas os municipais, mas principalmente estes, razão pela qual merecem discussão os limites e possibilidades do caráter prestacional ou positivo do direito à moradia cuja garantia de eficácia é questão complexa do ponto de vista operacional, financeiro e urbanístico. Consoante informações do Ministério das Cidades, a necessidade quantitativa de moradia no país corresponde a 7,2 milhões, das quais 5,5 milhões nas áreas urbanas e 1,7 milhões nas áreas rurais203. As estatísticas nacionais são auto-explicativas e, a fim de evitar per-versa tautologia, permitimo-nos não discorrer sobre a envergadura dos pro-blemas sociais delas decorrentes. Porto Alegre não foge à regra do cenário nacional. Dados do Ministério das Cidades204 demonstram que na Região Metropolitana de Porto Alegre, há um déficit habitacional básico na área urbana de 72.746 domicílios, correspondente a um percentual de 6,8 do total dos domicílios em tais áreas. Cumpre registrar que esse déficit se refere à soma da coabitação familiar, dos domicílios improvisados e dos rústicos.Do norte ao extremo sul da cidade de Porto Alegre, incluindo as ilhas, en-contram-se núcleos consolidados de subabitações de toda espécie.Nenhum porto-alegrense desconhece a existência de casebres pendurados nos morros da cidade, como é o caso das Vilas Pedreira, Gaúcha, Morro Quente, Morro Alto, a extensão assustadora de algumas ocupações conso-lidadas como as das Vilas Tio Zeca-Areia, Bom Jesus, Mato Sampaio, Maria da Conceição, Amazônia, Santo Antônio, Tronco Neves, nem, tampouco, a situação abjeta de alguns núcleos como as Vilas Núcleo Esperança, Menino Deus, Rio Branco, Figueira e São Vicente Mártir. Vale registrar que o Programa de Regularização Fundiária desen-volvido pelo Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre possui 180 (cento e oitenta) vilas cadastradas para os procedimentos de regula-rização, sendo que, até a presente data, 10 (dez) vilas foram regularizadas mediante o ajuizamento de ações de usucapião e 3 (três) mediante firmatura de contratos de concessão de direito real de uso, sendo oportuno registrar que as dificuldades advindas da escassez de recursos aliada às da burocracia registral têm conduzido a processos de intervenções urbanas parciais. Os dados da cartografia social de Porto Alegre trazem os seguintes

203 - FONTE: Cadernos MCidades Habitação. Maio/2006.204 - FONTE: Déficit habitacional no Brasil / Fundação João Pinheiro, Centro de Estatísticas e Informações. 2. ed. – Reim-pressão – Brasília, 2006.

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demonstrativos geo-referenciados de habitação, aglomerados subnormais205 e de domicílios em situação de irregularidade fundiária206, com seus respec-tivos índices de vulnerabilidade social207:

IV -OS CUSTOS DA PRODUÇÃO HABITACIONAL EM PORTO ALEGRE

A questão dos custos da produção habitacional, notadamente nos projetos de interesse social, é complexa em função da falta de conhecimento de conceitos e de metodologias que permitam enfrentar adequadamente o problema, tendo em vista as especificidades dos projetos habitacionais de interesse social e das características do setor da construção. Os valores da produção habitacional, entendendo-se aqui não só o(s) edifício(s), mas também o seu entorno próximo, que abrange os servi-ços e equipamentos de infra-estrutura básica consistentes nas redes de água, de esgoto cloacal e de esgoto pluvial, pavimentação, e urbanização (praças, calçadas, arborização), demonstram que, atualmente, desde o ponto de vista orçamentário, é quase inviável para o Poder Público Municipal a sanação do problema habitacional. Sobreleva observar que, nesta capital, uma unidade habitacional apresenta um custo médio208 de R$ 24.600,00 (vinte e quatro mil e seiscen-tos reais), valor correspondente a uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, com área, em média, de 42 m² e acabamento de padrão aceitável para o clima da região, sendo exemplo de tal tipologia os sobrados instalados no Loteamento Pôr-do-Sol, localizado na Avenida A. J. Renner, 1280, não computada aí a infra-estrutura, que pode alcançar um valor médio de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Um menor custo pode ser obtido com as chama-das “casas-embrião”, que são aquelas unidades habitacionais que apresentam

205 Conforme definição do IBGE (Censo Demográfico 2000), o aglomerado subnormal é um conjunto constituído por um mínimo de 51 domicílios, ocupando ou tendo ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia – pública ou par-ticular – dispostos, em geral, de forma desordenada e densa, e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ou seja, invasões, loteamentos irregulares ou clandestinos.206 FONTE: Mapas da Inclusão e Exclusão Social de Porto Alegre. Porto Alegre : Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Gabinete do Prefeito/Secretaria do Planejamento Municipal, 2004.207 O Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) foi constituído com o objetivo de aprofundar a análise das condições de vida das dezesseis regiões do Orçamento Participativo. A vulnerabilidade habitacional, que é representada pela irregularidade fundiária e a moradia em locais de risco e sem infra-estrutura, é mais acentuada nas ROPs Nordeste, Cruzeiro e Glória. Nessas três regiões, 29,6%, 35,7% e 9,8% dos domicílios, respectivamente, estão localizados em aglomerados subnormais e 65,3%, 43,4% e 33,4%, respectivamente, são irregulares. 208 FONTE: Equipe de Orçamento do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB/SUPH/EOR. Valores atualizados pela variação do CUB-SINDUSCON/RS.

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a possibilidade de ampliação pelos moradores, contando apenas com sala-quarto, cozinha e banheiro, com área, em média, de 23 m² (são exemplos desta tipologia as unidades habitacionais instaladas no Loteamento Santa Paula), cujo custo médio é de R$ 12.800,00 (doze mil e oitocentos reais).

IV.I -LOTES URBANIZADOS

O custo médio da produção de lotes urbanizados (que são aqueles dotados de infra-estrutura mínima: rede de água esgoto, rede de esgoto plu-vial e que possuem testada/frente para via pública ou condominial) apresen-ta uma grande variação, porque a adequada instalação dos lotes depende da conjugação de várias condições técnicas (tais como: topografia da área, loca-lização de redes de infra-estrutura, geologia do terreno - para definição de fundações e contenções). Ademais, impende registrar que os procedimentos para execução de urbanização de lotes podem se dar de forma completa ou progressiva, hipótese em que a infra-estrutura vai sendo executada conforme as prioridades técnicas e disponibilização dos recursos. Em assim sendo, face à variabilidade das situações fáticas, opera-se, em termos estimados, com um custo máximo de R$ 17.000,00 (dezessete mil reais) e mínimo de 7.000,00 (sete mil reais). Via de regra, a área mínima do lote urbanizado é 125 m² (habitação de interesse social), contudo, em se tratando de gleba gravada com regime de AEIS (ou ZEIS) não há fixação de área mínima prevista em lei. As definições neste sentido partem das seguintes situações: (a) áreas ocupadas (gravame de “AEIS em área ocupada”): área média de 110m²; (b) áreas livres, hipótese em que são definidos novos índices urbanísticos e onde a metragem média fica em torno de 50m² (quando acompanhado de execução de unidade habita-cional) e 100m² (quando há somente a produção do lote)209.

IV.II -VERTICALIZAÇÃO

Outro elemento que merece um enfrentamento mais detido é o que diz respeito à verticalização das tipologias, que representa, em termos de custos médios, um acréscimo de cerca de 20% sobre o custo da unidade (va-lores estimados para edificações com quatro pavimentos). Cumpre registrar que tais valores podem ser bem mais significativos se a área não apresentar condições geológicas favoráveis.

209 FONTE: Coordenação de Urbanismo do Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre.

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Porto Alegre, ao longo dos anos, vem utilizando as mais variadas tipologias de verticalização, das quais se pode citar como exemplos mais an-tigos a construção de grande parte do Bairro Restinga, o Conjunto Habita-cional Guapuruvu e, mais recentes, o Condomínio Amizade, o Condomínio dos Anjos, o Condomínio Boa Vontade e o Condomínio Princesa Isabel, entre outros. Note-se que a utilização da nomenclatura “condomínio” não corresponde à sua definição técnico-jurídica, mas, tão-somente, ao fato de haver em tais locais a utilização de áreas de uso comum, em regime de com-posse, com sistema de rateio das despesas. A principal vantagem da verticalização, por óbvio, é a possibilidade de implantação um maior número de unidades por metro quadrado de área de projeto, na seguinte proporção: em uma área de um hectare (10.000 m²) podem ser executados cerca de 42 (quarenta e dois lotes) de 125m², ao passo que, na hipótese de verticalização da mesma gleba, poderão ser executadas cerca de 130 (cento e trinta) unidades habitacionais. Entretanto, há que se ter em linha de consideração que a alta vanta-josidade da verticalização das tipologias se dá apenas em termos quantitati-vos, haja vista o fato de que, na maioria das vezes, as comunidades envolvidas não apresentam sustentabilidade cultural para a vida em espaços de uso co-mum cujas despesas são satisfeitas mediante sistema de rateio (a tendência é que não haja um recolhimento regular de tais valores). Neste sentido, é de central importância o desenvolvimento de atividades sócio-culturais com os beneficiários que garantam justas e equânimes relações de co-habitação e vizinhança, sob pena de inviabilizar o empreendimento habitacional e do retorno das comunidades à irregularidade.

V.III -SOBRADOS

Cumpre também registrar que em Porto Alegre também utiliza a tipologia de sobrado, executada em larga escala no “Programa Integrado Entrada da Cidade” – PIEC, e que possui como principal característica a possibilidade de construção de um número parecido com a verticalização, ou seja, cerca de 120 (cento e vinte) unidades por hectare, dotadas dos prin-cipais serviços de abastecimento de forma totalmente individualizada (entra-das individuais de água, de energia elétrica e de serviços de telefonia, além de um pequeno pátio com área de serviço). Nesta última hipótese, também incidem os problemas da sustentabilidade cultural das comunidades, mas de forma bem mais mitigada na medida em que há individualização completa da área física da moradia diminuindo, portanto, os problemas de vizinhança e compartilhamento das despesas de uso comum.

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IV.IV -INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS

Outra questão que merece debate é a que diz respeito às inovações tecnológicas na área da construção civil porquanto o aumento da compe-titividade e evolução tecnológica têm induzido o uso de tais inovações. Percebe-se certa escassez de ferramentas metodológicas que per-mitam a avaliação das inovações tecnológicas que proliferam no mercado da construção. Tais situações vêm sendo testadas e avaliadas de forma bas-tante amadora pelos Poderes Públicos responsáveis pelas políticas habita-cionais (Municípios, COHAB’s, CEF). Entretanto, tais iniciativas, a exemplo do que ocorre com todo o sistema público de produção habitacional, restam obstadas pela questão dos custos na medida em que as alternativas industriais não inseridas no mer-cado apresentam um custo ainda elevado para concorrer com o método artesanal de construção largamente empregado no País. Tal questão somen-te será viabilizada na eventual hipótese de o mercado da construção civil permitir a produção em escala das inovações o que, por óbvio, permitirá a redução de seus custos.

IV.V -O PREÇO DA TERRA

Na cidade de Porto Alegre, a variação do custo da terra é muito grande, sendo que o hectare parte de um valor de R$ 80.000 (oitenta mil reais) e pode chegar a mais de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), dependendo de sua localização, da infra-estrutura existente e do potencial construtivo do local. Desta forma, como decorrência da enorme varia-ção dos elementos, a produção de habitação de interesse social carece de estimativa precisa no que pertine à “quota-terra”, sendo necessária uma avaliação caso-a-caso que pondere a necessidade de trazer infra-estrutura de local afastado, a construção de equipamentos públicos, escolas, postos de saúde, equipamentos de lazer e de assistência social, etc.

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V -O CONCEITO JURÍDICO DA MORADIA E SUA RELAÇÃO COM O “MÍNIMO EXISTENCIAL” E COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

O agudo déficit habitacional demonstra que o constitucionalismo moderno não pode mais permitir (e a realidade brasileira não pode mais tolerar) que a eficácia do direito fundamental de moradia seja meramente programática.

Nossa realidade social já deu prova suficiente de que não basta a Constituição Federal afirmar tal direito como fundamental e, para além dis-so, não basta à realidade brasileira o repertório de artigos e livros editados pe-los doutrinadores do Direito Urbanístico tecendo largos elogios ao Estatuto da Cidade e festejando seus institutos como “a solução” para o problema habitacional brasileiro.

A força dos fatos não sufraga as teses e os conceitos.

Aliás, é interessante notar como muitas vezes os juristas e admi-nistradores vislumbram o Estatuto da Cidade como uma conquista em si, como se seu papel fosse desempenhado e se esgotasse apenas no mundo dos conceitos.

Sem desconhecer o caráter de vanguarda das disposições e diretrizes do Estatuto da Cidade, é preciso reconhecer que seus comandos não são su-ficientes para equacionar os problemas envolvidos na temática habitacional. É um raciocínio por demais singelo o de conceber um sistema jurídico que equacione as mazelas do déficit habitacional e da irregularidade fundiária que não seja fortemente cogente em relação à vontade política e à efetiva aplicação de recursos orçamentários para a consecução de seus desideratos. Todos parecem contestes ao afirmar a importância e grandeza dos institutos vinculados ao direito de moradia (e seu correlato direito à segu-rança jurídica da posse). Ninguém duvida que alcançar segurança jurídica à posse das comunidades socialmente vulneráveis é fator de crescimento social e de dignidade dos cidadãos face à vinculação do tema com o mínimo exis-tencial e com a dignidade da pessoa humana.

210 Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001, p.60.

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O mínimo existencial é decorrência do princípio de solidariedade social albergado pela Constituição da República (art. 3º, I) e, conforme ter-mos da mais abalizada doutrina constitucionalista210 pode ser assim defini-do: “um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais para uma vida saudável, além de propiciar e promo-ver sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. Além das considerações atinentes ao mínimo existencial, a Cons-tituição Federal elegeu, no inciso III do artigo 1°, como fundamento de nossa República, a dignidade da pessoa humana, que se constitui em núcleo essencial dos direitos fundamentais, a “fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais211”, “a fonte ética que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais212” , “o valor que atrai a realização dos direitos fundamentais213” , “el valor básico (Grun-dwert) fundamentador de los derechos humanos214” . Os postulados de dignidade erigidos à fundamento da República denota a centralidade dos direitos fundamentais em nosso sistema constitu-cional no sentido de que estes não possuem apenas uma dimensão subjetiva, mas, antes, são estruturas do Estado Constitucional. Conforme referido alhures, a CF entendeu a moradia como direito fundamental. Contudo, não lhe conferiu um conceito ou extensão precisos, daí porque é necessário alinhar as características básicas de uma “moradia” que atenda aos desígnios do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana e que seja exeqüível (operacional e financeiramente) para os gesto-res das políticas habitacionais.

VI -O CONCEITO DE MORADIA NA ORDEM URBANÍSTICA

Em que pese a vinculação (teorética) do direito de moradia com o mínimo existencial, é do senso comum a constatação de que as favelas, vilas,

211 FARIAS, Edilsom Pereira. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 54.212 - MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3ª ed. rev e atual. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991, p. 166/167.213 - SILVA, José Afonso da – Anais da XV Conferência Nacional da OAB, p. 549.214 - PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 3ª ed. Madrid: tecnos, 1990, p. 318.

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loteamentos populares irregulares e clandestinos das periferias urbanas, as ocupações coletivas nas áreas de proteção ambiental, os conjuntos habitacio-nais em condições precárias, os cortiços, enfim, os núcleos consolidados de subabitações, não atendem aos desígnios do mínimo existencial e, tampouco, guardam qualquer relação com postulados da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, é importante afirmar que são condições mínimas de habitabilidade, além da estrutura física do imóvel (lote urbanizado ou unida-de habitacional), a adequação das redes de abastecimento de água e esgoto, com sistema de recolhimento de lixo. Ademais, sobreleva destacar que a política habitacional não se esgota na pura e simples outorga de moradia, vez que envolve esforços sociais e econômicos com as comunidades atingidas para fins de sustentabilidade cultural e financeira dos equipamentos habita-cionais.

VII -CONCLUSÃO

O direito de moradia considerado em sua dupla fundamentalidade (formal e material) é eminentemente prestacional (positivo), ou seja, recla-ma, ab initio, a realização de políticas públicas para a sua outorga efetiva. Deve, portanto, ser objeto de concretização por parte do Estado, como decorrência inexorável do comando inserto no parágrafo primeiro do artigo 5° da Constituição Federal. Contudo, conforme demonstrado acima, a concreção desse direito depende, necessariamente, da alocação de recursos materiais e humanos para sua consecução, encontrando-se, pois, na direta dependência da disponibili-dade de recursos financeiros. Nesta senda, é oportuno observar que é sempre e apenas o Poder Legislativo quem possui competência e legitimidade para decidir sobre a afetação dos recursos públicos, como decorrência do postulado do princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária. Desta forma, o direito de moradia encontra-se inserto no seguinte paradoxo jurídico-político: a lei comanda sua fundamentalidade e a neces-sidade de sua máxima eficácia, obrigando o Poder Público à outorga de tal direito, entretanto, o gestor público (obrigado a esta prestação de alto valor econômico) não possui competência para determinar os valores necessários à consecução do direito. Esta é a realidade operacional do gestor de políticas públicas habita-cionais: a necessidade de outorga de moradia em eterna contraposição à falta

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de recursos (recursos estes, gize-se, que lhe são determinados pelo Poder Legislativo em sede de aprovação das leis orçamentárias). Além disso, insta observar que nenhum dos dois pólos desta rea-lidade pode ser relativizado. Não se pode minimizar a cogência do direito de moradia, tampouco retirar-lhe o caráter de direito subjetivo, e, por outro lado, não se pode sequer supor um sistema de aprovação de orçamento pú-blico que não seja o do Poder Legislativo. Resta, portanto, como única via exeqüível do ponto de vista jurí-dico-financeiro, a afirmação de um conceito de moradia que apresente o menor custo possível e que, por óbvio, possa alcançar um maior número de pessoas e, neste sentido, dentro do cenário de limitações do Poder Público, a outorga de lotes urbanizados satisfaz o comando legal de eficácia do direito de moradia, assim como as tipologias de verticalização satisfazem os desíg-nios quantitativos de efetividades desse direito. O fato de não haver recursos suficientes, que juridicamente vem consubstanciado no postulado da “reserva do possível” é o maior desafio e o maior entrave à máxima eficácia do direito fundamental de moradia e à consecução das funções sociais da propriedade e da cidade. Os valores praticados na construção civil demonstram que a miti-gação do problema habitacional é, a um só tempo, a mais simples e a mais complexa, qual seja: incremento orçamentário dos programas públicos diri-gidos para a habitação de interesse social. Todas as soluções que podem ser alinhadas para a problemática em comento convergem para a necessidade de aporte de recursos financeiros públicos para a habitação. Com uma simples operação aritmética que coteje as necessidades habitacionais de nossa capital com os orçamentos atualmente destinados ao cumprimento das políticas públicas habitacionais, chega-se à inexorável conclusão de que o problema é materialmente (ou financeiramente) insolú-vel, ao menos, no curto e médio prazo. Além da necessidade de aporte de vultosas cifras é necessária a im-plantação de programas habitacionais bem estruturados e planejados a fim de que a produção habitacional se faça acompanhar de atividades voltadas à sustentabilidade das comunidades beneficiadas com as políticas públicas habitacionais, o que somente poderá ser equacionado com programas de geração de trabalho e renda junto a tais populações. Também não se pode perder de vista os necessários investimentos na formação de pessoal técnico e nas condições materiais que viabilizem um trabalho especializado a fim de que a questão do déficit habitacional

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seja atacado com qualidade técnica, o que demanda, via de conseqüência, investimentos na área de Desenvolvimento Institucional dos Municípios.Por derradeiro, não é demais lembrar os deveres de solidariedade social (tão em voga nas discussões de reengenharia do Estado e da Sociedade) para que se possa suscitar a também presente possibilidade de convergência de esfor-ços e vontades (do Poder Público e da sociedade) para solucionar ou mini-mizar o problema do déficit habitacional do país. Ou seja, também incumbe ao Poder Público o desenvolvimento de mecanismos que viabilizem a pro-dução habitacional por parte da iniciativa privada, o que pode ser operado pelo estabelecimento de parcerias (privadas ou público-privadas). O “custo do direito” em debate decorre direta e imediatamente dos limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) do substantivo “moradia” previsto no artigo 6° da Constituição Federal. Neste sentido, vale lembrar a sempre precisa obser-vação de Canotilho215: “prima facie, também a constituição anda à procura de qualidades. No começo não está o verbo nem o substantivo, mas sim o adjectivo. A Constituição em si não diz nada. Precisa de um arrimo qualificativo.” Assim, este direito, tal como ocorre com própria Constituição ne-cessita de adjetivos para sua execução e fruição, e, mais do que isso e acima de tudo, tal adjetivação precisa ser realista para o gestor público que lhe dá consecução, sob pena de jamais conseguirmos superar os argumentos das dificuldades financeiras e operacionais.

215 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. O Estado Adjetivado e a Teoria da Constituição. Revista da Procuradoria-Geral do Estado, v. 25, n. 56 – 2002 – Porto Alegre, p. 28.

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BIBLIOGRAFIA1)BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constitui-ção: fundamentos de uma dogmática constitucional transformado-ra. São Paulo: Saraiva, 1996.2) LEAL, Rogério Gesta.Direito Urbanístico. Condições e Possibili-dades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.3) LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A Estrutura Normativa dos Direitos Fundamentais Sociais. Orientador: Luís Afonso Heck; Dissertação (Mes-trado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Porto Alegre, 2002.4) LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1997.5) Mapas da Inclusão e Exclusão Social de Porto Alegre. Porto Alegre : Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Gabinete do Prefeito/Secretaria do Planejamento Municipal, 2004.6) PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Madrid: Tecnos, 1990.7) SAULE JR., Nelson.Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Apli-cação e Eficácia do Plano Diretor.Porto Alegre: Sérgio Fabris editor, 1997.8) SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, n. 10, janeiro, 2002. Disponível na Internet: http://www.direitopublico.com.br.9) ___________ A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.10) __________. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamen-tais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advo-gado, 2001.11) SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais. In: Estatuto da Cidade. Org. Adilson Abreu Dallari e Sergio Ferraz. São Paulo: Malheiros, 2003. 12) TEPEDINO, Gustavo. Aspectos da Propriedade Privada na Ordem Constitucional, in Estudos Jurídicos, obra editada pelo Instituto de Estu-dos Jurídicos, Rio de Janeiro, 1991.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS NA LEGISLAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

Guilherme Dieckmann*

* Advogado da Caixa Econômica Federal. Pós-graduando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

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RESUMO

O presente trabalho pretende investigar a atuação do Município na implementação dos direitos fundamentais no âmbito legislativo. Para isso, elegeu-se como objeto de estudo a legislação complementar do Município de Porto Alegre. Após a apresentação de uma noção geral dos direitos funda-mentais, se fará uma breve exposição da classificação dos direitos fundamen-tais formulada por Robert Alexy, que servirá para subsidiar, ao cabo de uma explanação do papel exercido pelos Municípios no modelo de Federação preconizado pela Constituição Federal de 1988, as considerações finais a respeito das leis complementares do Município de Porto Alegre. Palavras chave: Direitos fundamentais. Município. Federação. Leis Complementares.

ABSTRACT

The present work intends to investigate the performance of the Municipal district in the implementation of the fundamental rights in the legislative extent. For that, it was chosen as study object the complemental legislation of the Municipal district of Porto Alegre. After the presentation of a general notion of the fundamental rights, it will be made a brief exhi-bition of the classification of the fundamental rights formulated by Robert Alexy, that will be to subsidize, after an explanation of the role exercised by the Municipal districts in the model of Federation extolled by the Federal Constitution of 1988, the final considerations regarding the complemental laws of the Municipal district of Porto Alegre. Key-words: Fundamental rights. Municipal district. Federation. Complemental Laws.

SUMÁRIO: I-Introdução; II- Noção geral de direitos funda-mentais; II.I-As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais; II.II- Classificação dos direitos fundamentais; II.III-A aplicabilidade ime-diata das normas definidoras de direitos fundamentais; III- Município como ente federativo e o princípio da subsidiariedade; III.I-O posicionamento do Município como componente da federação configurada pela Constituição Federal de 1988; III.II-O princípio da subsidiariedade como parâmetro para a definição das competências constitucionais municipais; III.III- As compe-tências municipais na Constituição Federal de 1988; IV-A lei complementar municipal, a lei orgânica municipal e os direitos fundamentais; IV.I-Autono-mia legislativa do município; IV.II- As leis complementares na Constituição Federal de 1988, na Constituição estadual de 1989 e na Lei Orgânica mu-nicipal de Porto Alegre; IV.III- Os direitos fundamentais e a legislação pós 1988 do Município de Porto Alegre; V- Conclusão; VI- Bibliografia.

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I-INTRODUÇÃO

O discurso jurídico, há tempo, já incorporou a noção a respeito da importância dos direitos fundamentais, da imprescindibilidade da sua consa-gração e asseguramento em favor dos particulares, e das múltiplas funções por eles desempenhada no ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito. Por ser assim, a norma que consagra um direito fundamental não é – ou não deveria ser – uma promessa vazia e inconseqüente, pois os valores nela contidos são por demais relevantes e acabam por serem positivados em textos dotados de vocação à rigidez, de modo a que o seu conteúdo escape de eventuais interesses de maiorias parlamentares ocasionais. A contrapartida dessa característica é a força normativa dos direitos fundamentais, no senti-do de que as respectivas normas consagram não apenas direitos subjetivos aos particulares em face do Estado, mas também impõem deveres a este em face daqueles, direitos e deveres cujo conteúdo varia em conformidade com múltiplos fatores, como a forma de positivação e a função desempenhada no ordenamento jurídico. Mais especificamente, num país como o nosso, no qual a Consti-tuição vigente distribui autonomias e competências a mais de uma entidade estatal (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), deve-se perquirir a qual ente incumbe o desempenho de determinada tarefa, que servirá, afinal, para promover um dado direito fundamental. Dos entes esta-tais que formam a República Federativa do Brasil, tal qual restou positivado na Constituição Federal de 1988216, pretendemos nos ocupar do Município, que é o ente mais próximo do indivíduo e, sobretudo, que tem uma história constitucional sem precedentes, tendo em vista as características que os textos constitucionais brasileiros emprestaram ao ente municipal. Assim, sabendo, de um lado - mesmo que precariamente, tendo em vista os limites de espaço - o que são direitos fundamentais (bem como algumas das suas implicações), e de outro qual a posição do Município na Federação configurada pela CF/88 (e algumas das questões daí decorrentes), quer-se saber como o Município tem

216 A eleição da lei complementar como objeto de investigação se deveu ao fato de que se trata de veículo legislativo ao qual a Constituição Federal (e a Constituição Estadual e a Lei Orgânica Municipal, por simetria e por decorrência) conferiu especial atenção pois se trata de um tipo de lei com matéria expressamente prevista no texto constitucional, e que para a sua aprovação depende da agregação de um tipo específico de quórum; isso permite concluir que a lei complementar trata de temas tidos como relevantes pelo constituinte, e é tendente a uma maior permanência no tempo, por estar a salvo de eventuais maiorias parlamentares. E os direitos fundamentais, por tudo o que se dirá oportunamente, parecem ser merece-dores de uma legislação que seja perene e tanto quanto possível imune a retrocessos legislativos. Por outro lado, a escolha do Município de Porto Alegre se deve em grande parte à proximidade, permitindo, ainda que indiretamente, a utilização da experiência de vida na comunidade que se entende, por vezes, como precursora na consagração de determinadas normas de direitos fundamentais.

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se comportado no plano legislativo para a promoção dos direitos fundamen-tais217. Nesse sentido, será estabelecida, ao final do presente trabalho, uma rela-ção entre a classificação dos direitos fundamentais formulada por Robert Alexy (e acolhida, entre nós, por Ingo W. Sarlet), que leva em consideração as múltiplas funções dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, com a legislação complementar do Município de Porto Alegre/RS, adotada após a promulga-ção da Constituição Federal de 1988 , o que permitirá a tomada de conclusões a respeito da atuação do Município no plano legislativo (complementar) em relação aos direitos fundamentais.

II-NOÇÃO GERAL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais (ou direitos humanos, se considerados em perspectiva desvinculada de uma positivação em determinada Constituição) constituem tema sobre o qual os juristas e filósofos têm se dedicado vivamente, sobretudo a partir do momento histórico que antecedeu as revoluções liberais do século XVIII218. Não por acaso – e sem exagero – é que já se disse que os direitos fundamentais são o “centro de gravidade do constitucionalismo contemporâneo” (MELLO, 2004, p. 125), dado que a sua proteção se integra ao conteúdo essencial do Estado democrático (SARLET, 2004, p. 63), i. é, “constitucionalmente, os di-reitos fundamentais têm função democrática; por sua vez, o Estado de direito democrático pressupõe e garante os direitos fundamentais” (CANOTILHO; MOREIRA, 1993, p. 107). Antes de ser um mero compartimento isolado dentro da Constituição, os direitos fundamentais fazem parte do conjunto da ordem constitucional e estão ligados organicamente aos outros domínios cons-

217 Desde já convém enfatizar que o presente espaço não comporta uma análise exaustiva dos temas propostos, de maneira que se optou pela utilização de noções sobre as quais já repousa confortável consenso (se nos é permitido dizer assim). Além disso, face à numerosa edição de leis complementares pelo Município de Porto Alegre, não foi objeto de consideração o aspecto qualitativo da legislação, isto é, a capacidade de determinada lei complementar efetivar o direito fundamental que lhe é atinente. Não nos cabe, aqui, portanto, perquirir a eficácia social das leis complementares municipais, bastando-nos a aferição do desempenho do Município de Porto Alegre em termos de editar leis complementares tendentes à implementação de direitos fundamentais, e verificar, se for o caso, a(s) categoria(s) de direito(s) fundamental(is) em que houve maior ou menor dedicação. 218 Nesse sentido, Norberto Bobbio ensina que os direitos do homem nascem quando o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens “ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências”, sendo que as primeiras são enfrentadas mediante demandas de delimitações do poder, e as se-gundas são viabilizadas através da exigência de intervenção protetora do Estado (2004, p. 26). Como se verá adiante, essa lição já antecipa a divisão entre, de um lado, os direitos de liberdade, ou direitos de defesa, nos quais se exige a omissão do Estado, e de outro lado, os direitos sociais, nos quais se exigem ações positivas do Estado (prestações), bem como explicita a historicidade dos direitos fundamentais (SILVA, 1991, p. 162).

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titucionais, na medida em que constituem um dos componentes essenciais da “decisão constituinte” referida especialmente no Preâmbulo (CANOTILHO; MOREIRA, 1993, p. 107) e nos arts. 1.º, III e 5.º, entre outros, da Constituição Federal de 1988.

II.I-AS DIMENSÕES OBJETIVA E SUBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais foram concebidos inicialmente como direitos subjetivos dos indivíduos em face do Estado, de modo que os primeiros seriam titulares de determinadas prerrogativas para exigir do segundo comportamen-tos ativos ou passivos; os direitos fundamentais seriam “destinados a salvaguardar esferas privadas de autonomia” (VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 55). A isso corresponde a noção de dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, geral-mente referida sob a veste tradicional de direito subjetivo, conforme a clássica formulação civilista (ALEXY, 1998, p. 185; SARLET, 2004, p. 161; VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 117). Mas, como é intuitivo, os direitos fundamentais não se resumem a isso, pois as normas de direitos fundamentais não podem ser pensadas exclusiva-mente sob o ponto de vista dos indivíduos (VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 115); a eles se atribui um caráter duplo, ou seja, além de uma dimensão (ou perspectiva) subjetiva, os direitos fundamentais também assumem uma dimen-são objetiva, o que permite compreender a importância e as funções exercidas pelos direitos fundamentais (SARLET, 2004, p. 151)219. Diz-se que na dimensão objetiva, os direitos fundamentais cor-respondem a “elementos fundamentais da ordem objetiva da coletividade” (HESSE, 1998, p. 228), e o seu reconhecimento se deu notadamente em face da Lei Fundamental de 1949 e da jurisprudência do Tribunal Consti-tucional Federal alemão, que consagrou o entendimento de que os direitos fundamentais “constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que for-necem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos” (SAR-

219 Pode-se dizer que existe uma relação de complemento e fortalecimento recíproco entre as dimensões subjetiva e objetiva (HESSE, 1998, p. 239), pois “a dimensão objectiva reforçaria (...) a imperatividade dos <<direitos>> individuais e alargaria a sua influência normativa no ordenamento jurídico e na vida da sociedade”, conforme Vieira de Andrade, “na medida em que se retiram dos preceitos constitucionais efeitos que não se reconduzem totalmente às posições jurídicas subjectivas que reconhecem, ou se estabelecem deveres e obrigações para o Estado, sem a correspondente atribuição de <<direitos>> aos indivíduos” (2004, p. 115). O jurista português considera, então, os direitos fundamentais na dimensão subjetiva como dimensão principal, que abrangeria todas as faculdades suscetíveis de referência individual, sendo que na dimensão objeti-va, por sua vez, teriam lugar os conteúdos normativos (garantias ou deveres) a que não correspondam direitos individuais (2004, p. 117). “É por isso”, conclui Ingo W. Sarlet, “que a doutrina costuma apontar para a perspectiva objetiva como repre-sentando também (...) uma espécie de mais-valia jurídica, no sentido de um reforço da juridicidade das normas de direitos fundamentais (VIEIRA DE ANDRADE, 143) (...)” (2004, p. 153).

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LET, 2004, p. 152)220. Dito isso, já se mostra evidente que os direitos fundamentais assumem múltiplas funções no ordenamento jurídico-constitucional, de maneira que, para subsidiar as considerações a serem oportunamente feitas em relação à legislação sobre direitos fundamentais do Município de Porto Alegre, se impõe operar uma classificação dos direitos fundamentais que tanto quanto possível leve em conta essa multifuncionalidade.

II.II-CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

II.II.I-CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Dentre as muitas classificações de direitos fundamentais que se pode encontrar em sede doutrinária, convém eleger uma que seja constitucionalmente adequada (i.é, e para os fins do presente trabalho, uma classificação que atente para os direitos fundamentais consagrados na CF/88221), e que leve em conta, da melhor maneira possível, a multifuncionalidade dos direitos fundamentais evi-denciada acima quando se tratou das perspectivas subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais222. E nesse sentido é que a classificação dos direitos fundamentais exposta, sumariamente, a seguir, será retomada quando for a hora de tratar da

220 Dentre os inúmeros desdobramentos comportados pela dimensão objetiva, para os fins do presente trabalho convém destacar o que Ingo W. Sarlet denomina como eficácia dirigente que os direitos fundamentais exercem sobre os órgãos esta-tais; “[n]este contexto é que se afirma conterem os direitos fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos fundamentais” (SARLET, 2004, p. 156). Além disso, os direitos fundamentais, na sua dimensão objetiva, assumem uma eficácia irradiante (conforme denominação da doutrina alemã referida por Sarlet), de modo que “na condição de direito objetivo fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpre-tação conforme aos direitos fundamentais (...)”, associada, ainda, à problemática da sua eficácia na esfera privada, também abordada sob a denominação de eficácia horizontal (SARLET, 2004, p. 157). Outro desdobramento importante é a figura das garantias institucionais, vinculada à noção de que existem normas definidoras de direitos fundamentais que, apesar de protegerem determinados bens jurídicos fundamentais reconduzíveis em maior ou menor medida ao valor da dignidade da pessoa humana, são insuscetíveis de subjetivação; assim é que “existem determinadas instituições (direito público) ou institutos (direito privado) que, por sua importância, devem estar protegidas contra a ação erosiva do legislador” (SARLET, 2004, p. 158). Ainda em atenção à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, reconhecem-se deveres de proteção do Estado, a quem incumbe zelar pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos em face dos poderes públicos e tam-bém contra agressões promovidas por particulares e mesmo por outros Estados, desembocando na “obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais”. Por fim, como último desdobramento da perspectiva objetiva que se poderia trazer aqui, encontra-se “a função outorgada aos direitos fundamentais sob o aspecto de parâmetros para a criação e constituição de organizações (ou instituições) estatais e para o procedimento. Neste sentido, sustenta-se que com base no conteúdo das normas de direitos fundamentais é possível se extrair conseqüências para a aplicação e interpretação das normas procedimentais, mas também para uma formatação do direito organizacional e procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos fundamentais, de modo a se evitarem os riscos de uma redução do significado do conteúdo material deles. Neste contexto, há que considerar a íntima vinculação entre direitos fundamentais, organização e procedimento, no sentido de que os direitos fundamentais são, ao mesmo tempo e de certa forma, dependentes da organização e do procedimento (no mínimo, sofrem uma influência da parte destes), mas simultaneamente também atuam sobre o direito procedimental e as estruturas organizacionais” (SARLET, 2004, p. 159-160).221 “(...) é preciso ter em vista que a Constituição de 1988 abrigou em seu catálogo (e fora deste) direitos fundamentais que exercem, em princípio, todas as funções referidas no item anterior, vinculadas à sua dupla perspectiva objetiva e subjetiva, utilizando-se, para tanto, das mais variadas técnicas de positivação” (SARLET, 2004, p. 170).222 Assim, “(...) por meio da classificação é possível obter não apenas uma visão global e sistemática sobre o conjunto dos direitos fundamentais, mas também parâmetros objetivos para sua interpretação, enquadramento funcional e até mesmo a determinação do regime jurídico aplicável” (SARLET, 2004, p. 170).

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legislação (complementar) municipal atinente aos direitos fundamentais. A classificação dos direitos fundamentais conforme o critério funcional, formulada por Robert Alexy, e divulgada e adaptada entre nós por Ingo W. Sarlet, é a que formará a base das considerações deste trabalho, pois (a) é abrangente e flexível o suficiente para se adaptar ao nosso direito constitucional positivo, e (b) propicia elementos seguros sobre as funções dos direitos fundamentais, auxiliando a tarefa hermenêutica, notadamente em relação a questão da eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais (SARLET, 2004, p. 174-175)223. Dito isso, já se pode avançar para finalmente estabelecer que as normas definidoras de direitos fundamentais classificam-se, inicialmente, formando dois grandes grupos: o dos direitos fundamentais como direitos de defesa e os direitos fundamentais como direitos a prestações (de natureza fática ou jurídica). Este gru-po dos direitos a prestações, por sua vez, divide-se entre os direitos a prestações em sentido amplo (aqui incluídos os direitos de proteção e os direitos à participação na organização e procedimento) e os direitos a prestações em sentido estrito (os chamados direitos a prestações materiais sociais) (SARLET, 2004, p. 179-180).

II.II.II-DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO DIREITOS DE DEFESA É tradicional e já desde sempre incorporada à noção de direitos funda-mentais a idéia de que estes exercem uma função de defesa dos indivíduos em face dos poderes públicos, sobretudo quando se constata que se tratam (ainda que não exclusivamente) dos direitos fundamentais de primeira geração (SARLET, 2004, p. 181)224.

223 Além disso, e ainda em sede preliminar, deve-se destacar que podem ser reunidas na mesma norma de direito fundamen-tal diferentes funções, “ainda que nem sempre e não todas ao mesmo tempo (...) sendo comum a própria convivência das perspectivas jurídico-subjetiva e jurídico-objetiva” (SARLET, 2004, p. 177). Dessa forma, não há que estranhar que várias das normas de direitos fundamentais eventualmente exerçam de forma simultânea duas ou mais funções, dado que a distinção entre as diversas funções por vezes não é perfeitamente clara e delimitada, de modo que o critério distintivo é o da predomi-nância do elemento defensivo ou prestacional (SARLET, 2004, p. 178-179; VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 172-173).224 Os direitos de defesa se identificam, em grande medida, com os direitos fundamentais de primeira geração, nomea-damente os direitos de liberdade e igualdade, ao lado dos direitos à vida e do direito de propriedade, e nesse sentido se pode exemplificar as chamadas liberdades fundamentais: de locomoção, de consciência, manifestação do pensamento, de imprensa, de associação, reunião, etc.. Os direitos de igualdade podem ser reconduzidos aos direitos de defesa dado que garantem a proteção de uma esfera de igualdade pessoal, pois o indivíduo não deve ser exposto arbitrariamente a ingerên-cias ocasionadas por uma espécie de tratamento discriminatório, “gerando, em conseqüência, um direito subjetivo de defesa contra toda e qualquer agressão ao princípio da igualdade” (SARLET, 2004, p. 181-182). Ingo Sarlet enfatiza que as posições jurídicas fundamentais que integram os direitos de defesa não se limitam às liberdades e igualdades, pois cuida-se aqui de garantir a livre manifestação da personalidade em todos os seus aspectos, bem como de assegurar uma esfera de autonomia do indivíduo; os direitos de defesa abrangem, pois, diversas outras posições jurídicas a serem protegidas pelos direitos fundamentais contra ingerências indevidas dos poderes públicos (e de entidades privadas, na hipótese de se estar diante da eficácia horizontal dos direitos fundamentais); assim, podem ser enquadrados entre os direitos de defesa a maior parte dos direitos políticos, das garantias fundamentais e até de parte dos direitos sociais (2004, p. 182). Em atenção à CF/88, convém registrar que os direitos individuais e coletivos constantes do art. 5.º e incisos (e mesmo outros direitos fundamentais fora desse rol) correspondem aos direitos de liberdade, exercendo primordialmente a função de direito de defesa, ainda que, conforme anota Ingo W. Sarlet, enriquecidos por novas liberdades e garantias; ademais, encontram-se, ainda, no próprio catálogo do art. 5.º “além de uma absoluta maioria de direitos de defesa, direitos individuais com acentuada dimensão social (como o direito de propriedade), e até direitos a prestações (art. 5º, XXXV). Por outro lado, grande parte dos direitos funda-mentais sociais e políticos de nossa Constituição constitui, na verdade, típicos direitos de defesa (...)” (2004, p. 186).

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Os direitos de defesa correspondem aos direitos a ações negativas (abstenções) por parte do Estado, e conforme Robert Alexy podem ser divi-didos em três grupos: (a) direitos ao não impedimento de ações, em relação aos quais os indivíduos são titulares de posições jurídicas em face do Estado para que este não impeça ou coloque obstáculos ao exercício dos direitos fundamentais; (b) direitos à não afetação de propriedades e situações (bens jurídicos), de maneira que ao Estado é vedado, v.g., afetar prejudicialmente o direito à vida (propriedade) ou a inviolabilidade do domicílio (situação); e (c) direitos a não eliminação de posições jurídicas, que corresponderia ao direito a que o Estado não derrogue determinadas normas (v.g., ser proprie-tário é uma posição jurídica complexa, que para ser praticável na vida jurídi-ca prescinde de uma configuração jurídica, i.é, mediante a edição de normas jurídicas, de tal modo que a garantia jurídico constitucional da instituição jurídica da propriedade exige a não eliminação de posições atinentes à cria-ção, à finalização e às conseqüências jurídicas da posição do proprietário) (ALEXY, 1997, pp. 186-194; CANOTILHO, [2003?], p. 1258-1259)225.

II.II.III-DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO DIREITOS A PRES-TAÇÕES

Os direitos fundamentais a prestações enquadram-se entre os di-reitos fundamentais de segunda geração (SARLET, 2004, p. 200), e a sua consagração (notadamente os denominados direitos sociais) nas constitui-ções do pós-guerra (STRECK, 2003, p. 171), movimento culminante das reivindicações sociais que davam conta do esgotamento do estado liberal e da insuficiência da garantia das liberdades formais próprias dos direitos civis e políticos, teve a finalidade de impor ao Estado a consecução de um estado ideal de coisas no qual as pessoas gozariam, para além da igualdade mera-mente formal, uma igualdade material, traduzida na promoção do bem-estar do homem em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana (VIEI-RA DE ANDRADE, 2004, p. 102; CANOTILHO, [2003?], p. 385). Assim, o Estado assumiu a incumbência de promover a realização de prestações (con-substanciadas, fundamentalmente, em direitos sociais) para diminuir, atenuar ou compensar as desigualdades de fato entre as pessoas (BARROSO, 2006, p.142; SARLET, 2004, p. 280; BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 63 e 64).

225 A função de direitos de defesa é cumprida, ainda, pelos direitos fundamentais, conforme lição de Gomes Canotilho, sob dupla perspectiva, dado que num plano jurídico-objetivo constituem normas de competência negativa para os poderes públicos, que restam proibidos de se imiscuir na esfera jurídica individual, e que num plano jurídico-subjetivo implicam o poder de exercer positivamente os direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos (liberdades positiva e negativa) ([2003?], p. 408).

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Esses direitos a prestações “abrangem um feixe complexo e não necessa-riamente uniforme de posições jurídicas, que podem variar quanto ao seu objeto, seu destinatário e mesmo quanto à sua estrutura jurídico-positiva, com reflexos na sua eficácia e efetivação” (SARLET, 2004, p. 202), e podem ser divididos, num primeiro momento, conforme o seu objeto, entre direitos a prestações jurídicas (ou normativas), i. é, à emissão de normas jurídicas, e direitos a prestações fáticas (ou materiais), i. é, à realização de atos concretos, e num segundo momento, entre direitos a prestações em sentido amplo (en-globando os direitos de proteção e os direitos à participação na organização e no procedimento, “que, de certa forma, podem ser reportados primordial-mente ao Estado de Direito na condição de garante da liberdade e igualdade do status negativus”)226, e os direitos a prestações em sentido estrito (direitos a prestações materiais sociais, “vinculados prioritariamente às funções do Estado social)” (SARLET, 2004, p. 202-203). Dentro dos direitos a prestações em sentido amplo se encontram os di-reitos a proteção, vinculados aos desdobramentos da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, que impõem ao Estado o dever de proteger o titular de um direito fundamental em face de intervenções de terceiros, i. é, “da garantia constitucional de um direito resulta o dever do Estado adoptar medidas positivas destinadas a proteger o exercício dos direitos fundamentais perante actividades perturbadoras ou lesivas dos mesmos praticadas por terceiros” (CANOTILHO, [2003?], p. 409). Essa proteção pode se dar de inúmeras formas (v.g., normas de direito penal, de direito processual, atos administrativos, etc.) e em relação a inúmeros bens considerados dignos de proteção sob perspectiva jusfundamental (v.g.¸ dignidade da pessoa humana, liberdade, família, propriedade, etc.). Robert Alexy enfatiza que por trás dessa variedade, o que se tem de comum é o fato de que os direitos a proteção são direitos subjetivos frente ao Estado para que este atue no plano normativo ou fático “que tienen como objeto la delimitación de las esferas de sujetos jurídicos de igual jerarquía como así también la imponibi-lidad y la imposición de esta demarcación” (1998, p. 436)227. Igualmente referíveis à dimensão jurídico-objetiva dos direitos funda-mentais são os direitos à participação na organização e procedimento, intimente

226 Os direitos a prestações em sentido amplo se reportam, ainda, às funções do Estado de Direito de matriz liberal, vez que são dirigidos fundamentalmente à proteção da liberdade e da igualdade na sua dimensão defensiva, e são realizados mediante prestações normativas por parte do Estado, seja na edição de normas jurídico-penais, seja na produção de normas de orga-nização e procedimento, de maneira que, conforme Ingo W. Sarlet, “a definição de direitos a prestações em sentido amplo possui natureza residual, abrangendo todas as posições fundamentais prestacionais não-fáticas, ao menos não enquanto estas puderem ser reconduzidas às funções típicas do Estado na condição de Estado social” (SARLET, 2004, p. 206)227. Em relação aos direitos a proteção, Ingo W. Sarlet, com apoio na doutrina germânica, faz a ressalva de que não haveria que se falar, em princípio, de um dever de agir específico por parte do Estado, pois “[a] forma como o Estado assume os seus deveres de proteção e os efetiva permanece, contudo (...) no âmbito de seu próprio arbítrio, levando-se em conta (...) a existência de diferentes alternativas de ação, a limitação dos meios disponíveis, a consideração de interesses colidentes e a necessidade de estabelecer prioridades (...)” (SARLET, 2004, p. 207), o que revela, pois, a importância da tarefa do legislador nesse sentido, que “al llevar a cabo las delimitaciones de las esferas individuales requeridas por los derechos a protección, configura una parte decisiva del orden jurídico y, con ello, una parte esencial de la vida social” (ALEXY, 1997, p. 442).

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vinculados à própria noção de direitos fundamentais (ALEXY, 1997, p. 454; SARLET, 2004, p. 208), pois estes “carecem da organiza-ção jurídica das condições de vida e âmbitos de vida que eles devem garantir” para tornarem-se eficazes228, sendo que essa organização é, primordialmente, ta-refa da legislação (HESSE, 1998, p. 247)229. Tomando em conta a pluralidade das formas e conteúdos dos direitos à participação na organização e procedimento, Alexy procede a uma divisão desses direitos em quatro grupos, pelo critério do objeto; assim, de forma bastante resumida (1997, pp. 467-482), diz-se que os (a) direitos a competências de direito privado são direitos em face do Estado para que este formule normas constitutivas para as ações jurídicas de direito privado, viabilizando a criação, modificação e eliminação de po-sições jurídicas de direito privado (v.g., as normas de direito dos contratos, de propriedade, do matrimônio, de sucessões, etc.)230 ; (b) os direitos a pro-cedimentos judiciais e administrativos são direitos a uma proteção jurídica efetiva, entendida esta como a que proporciona a garantia dos direitos mate-riais do respectivo titular de direitos; (c) os direitos à organização em sentido estrito visam à regulação da cooperação de numerosas pessoas orientadas a determinados fins, como ocorre com o direito universitário e o direito de radiodifusão: “[l]os derechos a organización en sentido estricto del individuo frente al legislador son derechos del individuo a que el legislador dicte normas de organización conformes al derecho fundamental conformes. Una organización legislativa conforme al derecho fundamental puede ser asegurada no sólo a través de derechos subjetivos sino también de mandatos y prohibiciones meramente objetivos” (1997, p. 474-475); (d) por fim, os direitos à formação da vontade estatal, através dos quais deve o Estado, por intermédio da legislação, facilitar procedimentos que possibili-tem a participação na vontade estatal, como é exemplo o direito ao voto. Finalmente, chega-se aos direitos fundamentais a prestações em sen-tido estrito, que se reportam mais especificamente à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social na consecução de um estado ideal de coisas que compense desigualdades sociais e na viabilização da liberdade e igualdade real e efetiva (BARROSO, 2006, p. 97; SARLET, 2004, p. 205-206), tendo como objeto o fornecimento, por parte do Estado aos indivídu-

228 “(...) a fruição de diversos direitos fundamentais não se revela possível ou, no mínimo, perde em efetividade, sem que sejam colocadas à disposição prestações estatais na esfera organizacional e procedimental (...)” (SARLET, 2004, p. 210).229 Robert Alexy averba que o objeto dos direitos à participação na organização e procedimento é muito amplo, abarcando desde os direitos a uma proteção jurídica efetiva (que na CF/88 pode ser reconduzida ao art. 5.º, XXXV - nesse sentido: DIE-CKMANN, 2007, p. 27 ss), até os direitos que se referem à composição de órgãos colegiados nas universidades, de modo que se poderia reconduzir tais direitos à idéia de procedimento (em sentido amplo) como sistema de regras e/ou princípios para a obtenção de um resultado (1997, p. 457).230 “Sin normas sobre la propiedad, no existe ninguna propidad en sentido jurídico, sin normas sobre el matrimonio, nin-gún matrimonio en sentido jurídico, etcétera (...) Un legislador que eliminase institutos jurídicos como los de la propiedad y el matrimonio privaría a los titulares de derechos fundamentales de algo a lo que tinenen un derecho subjetivo” (ALEXY, 1997, p. 470).

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os, de prestações materiais sociais (SARLET, 2004, p. 214). Na formulação de Robert Alexy, tratar-se-iam dos direitos do indivíduo perante o Estado a algo que o próprio indivíduo poderia obter junto aos outros particulares se dispusesse dos meios financeiros suficientes e encontrasse no mercado uma oferta suficiente (1997, p. 482).231 Convém, agora, centrar a análise na CF/88, mais especificamente no dispositivo que consagra o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, a fim de subsidiar conclusões nas de-mais partes do presente trabalho.

III.I - A APLICABILIDADE IMEDIATA DAS NORMAS DEFINI-DORAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O § 1.º do art. 5.º da CF/88, inserido no Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), dispõe que “[a]s normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. A noção de que todas as normas constitucionais são dotadas de certo grau de eficácia e aplicabilidade232 (SARLET, 2004, p. 260), não tem o condão de inutilizar a regra do § 1.º do art. 5.º (como se se tratasse de uma espécie de bis in idem), pois o preceito confere uma qualidade adicional, consistente num “plus agregado às normas definidoras de direitos funda-mentais” (2004, p. 265), com intuito de “evitar o esvaziamento dos direitos fundamentais” (2004, p. 256), de modo que para esse tipo de normas – defi-nidoras de direitos e garantias fundamentais – a regra geral é a aplicabilidade imediata e eficácia plena, admitindo-se exceções, devidamente justificadas, à luz do caso concreto “no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpreta-ção tópico-sistemática” (2004, p. 265).233

231 Já se disse que os direitos ao trabalho, à instrução e à saúde são os três direitos sociais fundamentais (BOBBIO, 2004, p. 86), mas a eles pode-se agregar, ainda, v.g. o direito à assistência social, à moradia; seja como for, o que se tem é que esses direitos implicam uma imposição ao legislador no sentido de dar efetividade (tornar efetivo) o exercício desses direitos “através da criação de condições materiais, como, por exemplo, o serviço nacional de saúde, o ensino básico, universal, obrigatório e gratuito, a rede nacional de assistência materno-infantil etc.), o que implica uma <<organização justa>> da economia” (CA-NOTILHO; MOREIRA, 1993, p. 108).232 Em decorrência do princípio da constitucionalidade.233 Como revela Vieira de Andrade, a aplicabilidade imediata não se esgota na reafirmação do princípio da constituciona-lidade, pois aquela “não visa apenas garantir a prevalência destes preceitos ao nível da validade, mas também ao nível da aplicação, incluindo, portanto, a sua eficácia imediata” (2004, p. 207). Decorrência disso é o encargo e o dever que recaem sobre os poderes públicos de “extrair das normas que os consagram (...) a maior eficácia possível (...) já que não há como desconsiderar a circunstância de que a presunção de aplicabilidade imediata e plena eficácia (...) constitui (...) um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição” (SARLET, 2004, p. 265).

III - MUNICÍPIO COMO ENTE FEDERATIVO E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

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Esse regime de aplicabilidade imediata e eficácia plena não é diverso quer se trate de direitos de defesa (também chamados de direitos civis e polí-ticos, direitos negativos, etc.), quer se cuide de direitos sociais, afinal, diversa-mente de outras constituições como a portuguesa (VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 391) e a espanhola, a CF/88, no dispositivo em tela, não promoveu distinção de regime jurídico entre categorias de direitos fundamentais, de modo que se encontram todas elas sujeitas ao mesmo regime de aplicabilidade imediata preconizado pelo § 1.º, art. 5.º (SARLET, 2004, p. 255; VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 385). Assim, na falta ou insuficiência de lei infraconsti-tucional234, dever-se-á presumir a sua “’perfeição’, isto é, a sua auto-suficiência baseada no carácter determinável do respectivo conteúdo de sentido”, recaindo sobre juízes e demais operadores do direito o dever de aplicarem tais preceitos constitucionais e a “autorização para com esse fim os concretizarem por via interpretativa” (VIEIRA DE ANDRADE, 2004, p. 208)235. Revela-se, pois, aqui a importância do papel a ser exercido pela legis-lação infraconstitucional na concretização das normas definidoras de direitos fundamentais, dado que se estas são diretamente aplicáveis no sentido de serem “imediatamente eficazes e actuais, por via directa da Constituição” (CANOTI-LHO, [2003?], p. 438), nem por isso há que se dispensar a tarefa do legislador no sentido de lhes configurar o conteúdo e o alcance, sempre respeitando o seu núcleo essencial (FREITAS, 2005, pp. 259-260 e 273).

III.II - O POSICIONAMENTO DO MUNICÍPIO COMO COMPO-NENTE DA FEDERAÇÃO CONFIGURADA PELA CONSTITUI-ÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988 reafirmou e tornou expressa a opção pela configuração – inédita no direito comparado - de um estado federal cons-

234 Apesar de que “os direitos fundamentais possuem, relativamente às demais normas constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia”, essa constatação “não significa que mesmo entre os direitos fundamentais não possam existir distinções no que concerne à graduação desta aplicabilidade e eficácia, dependendo da forma de positivação, do objeto e da função que cada preceito desempenha” (SARLET, 2004, p. 265-266), pois “a graduação da carga eficacial dos direitos fundamentais depende, em última análise, de sua densidade normativa, por sua vez igualmente vinculada à forma de proclamação no texto e à fun-ção precípua de cada direito fundamental” (2004, p. 268). Afinal, dizer-se que os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata não esclarece “de que forma se dá esta aplicabilidade e quais os diversos efeitos jurídicos que lhes são inerentes” (2004, p. 269). Da mesma forma, da aplicabilidade direta das normas de direitos fundamentais não decorre, sempre e ne-cessariamente, de forma automática, a transformação destes em direitos subjetivos, concretos e definitivos (CANOTILHO, [2003?], p. 438).235 Se essa conclusão não traz maiores problemas em relação aos direitos de defesa, os quais exigem fundamentalmente abstenções por parte do Estado, em relação aos direitos a prestações, por sua vez, tem-se que o alcance normativo da aplica-bilidade direta “está na deverosidade estrita da intervenção legislativa, que há-de assegurar, nas condições de normalidade de um Estado de Direito, a existência da legislação e a produção das demais actuações necessárias ao exercício dos direitos” (2004, p. 210).

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tituído pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, conforme intelecção conjugada dos artigos 1.º e 18. O caput do art. 1.º da CF/88236, inaugura o Título I (Dos Princípios Fundamentais) e estatui que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”; o caput do art. 18, por sua vez, inicia o Capítulo I (Da Organização Político-Administrativa) do Título III (Da Organização do Estado) dispondo que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compre-ende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. Essa noção, contudo, não é isenta de controvérsias. Juristas de grande renome não reconhecem ao Município a condição de ente federal: José Afonso da Silva, por exemplo, admite ter a CF/88 consagrado a tese de que o Municí-pio faz parte da Federação, mas objeta que o ente municipal não seria essencial ao conceito de federação brasileira: o que existe, segundo o constitucionalista, seria federação de Estados, e não federação de Municípios237. José Nilo de Cas-tro segue na mesma linha, isto é, num primeiro momento concedendo ao fato de que o Município é “entidade condômina de exercício de atribuições cons-titucionais”, possuindo, assim, “dignidade constitucional” e sendo “autônomo na Constituição de hoje quanto nas anteriores, desde 1934”, mas enfatizando expressamente que o ente municipal carece de “autonomia federativa238”. Essa dificuldade de dois notáveis constitucionalistas, aqui sumaria-mente exposta, de inserir o Município no quadro da federação configurada pela CF/88 parece ser fruto de uma tentativa de compatibilização dos já citados artigos 1.º e 18 da Carta com a tradicional noção de federação dual, isto é, aquela formada pela União e Estados-membros. Com efeito, é ine-gável a extraordinária dimensão alcançada pela autonomia municipal, em todos os seus aspectos (autonomia política, autonomia administrativa e auto-nomia financeira), sobretudo a partir da CF/88, bem como é inequívoco o intento do constituinte de 1988 de conceder aos Municípios competências administrativas e legislativas sem precedentes no direito constitucional pátrio para o desempenho, em conjunto com a União e os Estados-membros ou privativamente, de importantes tarefas constitucionais. E é essa realidade que impõe a superação de uma idéia de federação meramente dualista. Nesse sentido deve-se destacar que a organização do Estado em

236 “o mais importante da nossa ordem jurídica” (SALDANHA, 2006, p. 15).237 Em apertada síntese, para José Afonso da Silva “os Municípios continuam a ser divisões dos Estados” (1991, p. 408-409).238 O municipalista se reporta à já citada opinião de José Afonso da Silva, e sentencia, talvez de forma não muito esclarece-dora, que “(...) os Municípios não são entes federativos, a despeito de integrarem, como membros, a República. Integram a Federação, mas não a formam” (2006, p. 29-30).

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uma federação, cuja configuração inicial remonta à Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 (BERCOVICI, 2002, p. 15; DALLARI, 1998, p. 255), pressupõe, isto sim, descentralização do poder político autônomo, sendo esta uma de suas características fundamentais: “No Estado Federal as atribuições da União e as das unidades federadas são fixadas na Cons-tituição, por meio de uma distribuição de competências” (DALLARI, 1998, p. 258). Distribuição ou repartição de competências, pois, é uma expressão-chave desta forma de Estado: ao instituir o Estado Federal, a Constituição distribui as competências administrativas e legislativas aos entes federados, em regra sem hierarquia (DALLARI, 1998, p. 259)239.

Já se disse que “a organização do Estado Federal é tarefa de la-boriosa engenharia constitucional”, pois “o Estado Federal requer duplo ordenamento, desencadeando as normas e as regras próprias a cada um” (HORTA, 2003, p. 306), e na CF/88 essa repartição de competências ad-quiriu contornos bastante complexos, ao exigir a coexistência de várias ordens jurídicas parciais e atribuir aos entes federados competências para variados assuntos. Para agravar a situação, utilizou-se uma técnica pecu-liar para conferir, além das tradicionais competências legislativas concor-rentes, um plexo de competências administrativas comuns, que reúnem atribuições outorgadas a todos os entes federados em conjunto ou isola-damente.

E nesse sentido a CF/88 atribuiu diretamente aos Municípios o desempenho de importantes competências, bem como determinou a eles que se desincumbissem de relevantes tarefas constitucionais, muitas das quais diretamente vinculadas à proteção e desenvolvimento do prin-cípio da dignidade humana e de direitos fundamentais em geral240. É significativo, ademais, em termos de direitos fundamentais à prestações em sentido estrito, o disposto nos incisos VI e VII do art. 30, que estabele-cem a competência para, respectivamente, manter programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental, e prestar serviços de atendimento

239 “A decisão a respeito da repartição de competências condiciona a fisionomia do Estado Federal, para determinar os graus de centralização e de descentralização do poder federal” (HORTA, 2003, p. 308).240 Assim é que a Constituição determina a aplicação de certo percentual da arrecadação de determinados impostos munici-pais em ações e serviços públicos de saúde (art. 198, § 2.º, III) e na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212, caput) – em ambos os casos, sob pena de intervenção do Estado no Município, conforme art. 35, III.

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à saúde da população, bem como o estatuído no § 2.º do art. 211, que prescreve à comuna a atuação prioritária no ensino fundamental e na educação infantil241. O ente municipal, tanto quanto a União e os Estados-membros, deve promover a efetividade dos direitos fundamentais de defesa (não im-pedindo nem opondo obstáculos ao exercício dos direitos fundamentais: v.g., no Município de Porto Alegre, o poder público local não pode frustrar arbitrariamente uma reunião pacífica de pessoas na conhecida - e não por acaso denominada - “Esquina Democrática” na forma do art. 5.º, XVI da CF/88; não afetando indevidamente bens jurídicos fundamentais: eviden-temente que o Município não pode afetar prejudicialmente, v.g., o direito à vida; e não eliminando posições jurídicas: ao Município não é dado der-rogar injustificadamente normas que conformam o direito de propriedade previsto no art. 5.º, XXII da CF/88). O mesmo se pode dizer em relação aos direitos fundamentais a prestações, na medida em que a municipalidade deve proteger o titular de um direito fundamental em face de intervenções inde-vidas de terceiros (aqui se enquadrariam as normas municipais relativas ao poder de polícia, bem como determinadas normas de direito urbanístico e de direito ambiental – art. 30, VIII da CF/88), formular normas constitutivas para ações de direito privado, formular normas a respeito de procedimentos administrativos, e por fim facilitar a participação dos munícipes na formação da vontade estatal (art. 29, XII e XIII da CF/88).

III.III - O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE COMO PARÂME-TRO PARA A DEFINIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS CONSTITU-CIONAIS MUNICIPAIS Em sendo o Município, pois, destinatário de uma série de atribui-

241 A título de exemplo da relevância da atuação do Município no ensino fundamental e na educação infantil, pode-se trazer julgado do Supremo Tribunal Federal (RE-AgR 410715/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.2005, 2.ª Turma, DJ 03.02.2006), no qual se disse que “Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2.º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exer-cidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direi-to básico de índole social. – Embora resida, primariamente, os Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional”. Veja-se que o STF, em se verificando no caso concreto uma omissão inconstitucio-nal do Poder Público Municipal em relação a um direito fundamental à prestações sociais materiais, admite uma atuação judicial positiva para preencher a lacuna dos poderes ordinariamente legitimados para a formulação de políticas públicas. Trata-se de tema inquietante e de alta complexidade, mas que não comporta maiores digressões no presente espaço. Nesse sentido podem ser consultadas as obras de KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris. 2002, e ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 2.ªed. Madrid : Trotta, 2004.

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ções e competências conforme previstas na CF/88 (sumariamente referidas acima), revela-se a importância da sua atuação face ao princípio da subsi-diariedade, cujo assento constitucional é o art. 1.º, III, que consagra como fundamento do Estado Democrático de Direito constituído pela República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana; isso significa que se deve reconhecer a “prioridade das esferas sociais mais próximas do ser humano concreto, relativamente às esferas mais distantes”, ou seja, “os grupos ou en-tidades mais chegados ao ser humano são prioritários a grupos e entidades mais amplos”, decorrendo daí que o princípio da subsidiariedade nada mais é do que “a prioridade de tudo aquilo que estiver mais próximo do ser hu-mano concreto” (SALDANHA, 2006, p. 16). Enfatizando que o princípio da subsidiariedade trabalha com a rela-ção comunidade maior e comunidade menor, Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira propõe a formulação do princípio da seguinte forma: “Tudo que a comunidade local puder realizar por si, deve lhe caber, exceto se for im-prescindível a intervenção do município, cuja ação sempre será preferencial em relação à intervenção do Estado-membro e da União” (OLIVEIRA, 2006, p. 25)242. Cezar Saldanha propõe, então, com base nessa noção, uma reinter-pretação da federação em atenção ao princípio da subsidiariedade, de ma-neira que “nessa perspectiva o Município vem antes do Estado e da União. E o Estado, antes da União. A distribuição das competências deve seguir um caminho que sobe de fundamento, as pessoas e os municípios, para as instâncias mais elevadas e abstratas” (2006, p. 17). Afinal, “o papel da comu-nidade maior – do município em relação à comunidade local ou das demais entidades da federação em relação aos municípios – é sempre de promover, coordenar, estimular e auxiliar e não substituir-se nas ações que lhes são próprias” (OLIVEIRA, 2006, p. 25)243. Fácil de ver, pois, que sendo o princípio da dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, e sendo o Município o ente político mais próximo da pessoa, do que o Estado e a União, o princípio da subsidiariedade impõe uma interpretação que dê prioridade ao interesse local sobre o estadual e o nacional, e ao interesse

242 “A autonomia municipal (...) é tão antiga como a civilização, e corresponde (...) à imperiosa necessidade decorrente da própria natureza das coisas, de que os assuntos e problemas de cada cidade, de cada agrupamento comunal da população, sejam entregues ao próprio governo desta, à solução dos próprios interessados (vizinhos)” (MEIRELLES TEIXEIRA, 1991, p. 652).243 Raul Machado Horta encarece que “é na repartição de competências da Constituição Federal de 1988 que se localiza a forma mais avançada da inclusão da subsidiariedade em texto constitucional brasileiro” (2003, p. 527). 244 “Somente aquilo que não comporte bom equacionamento pelo nível do interesse local, deve ser passado para o nível do interesse estadual. E somente o que não puder ser bem resolvido no nível do interesse estadual pode e deve ser transferido para o nível do interesse estadual” (SALDANHA, 2006, p. 17).

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estadual sobre o nacional.244 A noção sobre os princípios, como normas que estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido ou resguardado por condutas adequadas, divulgada por Humberto Ávila (2004, p. 63), deve ser retida; para os fins do presente trabalho, pode-se dizer que o princípio da subsidiariedade estabe-lece um estado ideal de coisas a ser atingido ou resguardado por condutas idôneas do operador do direito, consistindo na atribuição de prioridade ao interesse da comunidade mais próxima da pessoa. Assim, havendo conflito entre os entes federados no exercício de determinada competência ou no desempenho de certa atribuição constitucional, a prevalência será, em regra, do interesse local sobre o estadual e federal, e do estadual sobre o federal; essa ordem deixa de valer quando se constatar que no caso concreto há prepon-derância do federal sobre o estadual e o local, e do estadual sobre o local.

III.IV - AS COMPETÊNCIAS MUNICIPAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

III.IV.I-DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NA CF/88 A repartição de competências é instrumento de atribuição de facul-dade para tomada de decisões sobre matéria própria outorgada pela Constitui-ção a cada ordenamento parcial (SILVA, 1991, p. 413); ao final, “a Constitui-ção Federal dirá onde começa e onde termina a competência da Federação” (HORTA, 2003, p. 342). José Afonso da Silva esclarece que “princípio geral que norteia a re-partição de competência entre as entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse” (1991, p. 412). Tendo em vista o que já se disse no item precedente, é lícito concluir que a maneira mais conforme com o princípio federativo e com o princípio da dignidade da pessoa humana de dividir o exercício dos serviços e atividades quando há possível sobreposição de competências (como no art. 23 da CF/88, sede das competências comuns, a serem referidas abaixo) é pelo princípio da subsidiariedade . Convém passar ao exame das competências especificamente em relação ao Município.245

245 “[a subsidiariedade] pode ser considerada critério [de divisão de competências] por excelência na Constituição de 1988, porque é adequado à distinção entre as três esferas de federação, ao contrário, por exemplo, do que ocorre na competência supletiva, cuja base é a aceitação de apenas duas esferas” (OLIVEIRA, 2006, p. 26).

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III.IV.II-A COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA COMUM

Para os fins do presente trabalho, importa enfatizar que o art. 23 é a sede constitucional das competências administrativas comuns da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios; aqui se “desenhou um campo de serviços e de atividades públicas, mormente nas áreas críticas do social, do meio ambiente e da cultura, em que os esforços dos três níveis devem ser combinados” (SALDANHA, 2006, p. 18), os quais constituem “obrigações e deveres indeclináveis do Poder Público” (HORTA, 2003, p. 354). Competência comum significa, pois, que a Constituição destacou um “campo de atuação comum às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida cumulativamente” (SILVA, 1991, p. 415).

III.IV.III-A COMPETÊNCIA PRIVATIVA SOBRE ASSUNTOS DE INTERESSE LOCAL A competência municipal de maior relevo é aquela prevista no art. 30, I da CF/88, cuja norma já é tradicional no nosso direito constitucional positivo, conforme visto sumariamente supra. Assim, ao ente municipal é dado “legislar sobre assuntos de interesse local”. A expressão “interesse local” é uma inovação da CF/88 em relação ao regime anterior, no qual desde a Constituição de 1891, como já visto, utilizava uma outra: “peculiar inte-resse”. Será dedicado espaço maior para desenvolvimento da competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local quando for o caso de refletir a respeito da autonomia legislativa do Município.

III.IV.IV-A COMPETÊNCIA PARA SUPLEMENTAR A LEGISLAÇÃO FEDERAL E A ESTADUAL NO QUE COUBER O inciso II do art. 30 da CF/88 é a sede de outra importante com-petência dos Municípios, qual seja a de “suplementar a legislação federal e estadual no que couber”. Discute-se a respeito do alcance a ser dado à com-petência suplementar dos Municípios. Por um lado defende-se que essa suplementação não prescindiria de prévia lei federal ou estadual a ser suplementada, i. é, em atenção ao seu interesse local é que determinado Município exerceria a competência supletiva para adaptar uma dada lei federal ou estadual já existente (CASTRO, 2006, p. 199).

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De outra banda, pode-se dizer que a competência suplementar inde-pende da existência de lei federal ou estadual, de modo que mesmo nos casos em que a União ou o Estado-membro não tenha legislado sobre determinada matéria, o Município poderia exercer plenamente a competência legislativa em função do que dispõe o art. 30, II. Parece-nos que esta última interpretação é plenamente defensável e é inclusive a que leva em conta em maior medida a autonomia municipal, sobre-tudo quando se tem em mente a complexidade e a heterogeneidade de tarefas a serem desincumbidas pelos Municípios em decorrência dos dispositivos consti-tucionais. Como se viu acima, além da competência para legislar sobre assuntos de interesse local, o ente municipal tem a incumbência de promover atividades administrativas no âmbito das competências comuns do art. 23 da CF/88, e seria um contra-senso excluir do Município a possibilidade de legislar sobre uma das matérias objeto dos incisos do art. 24 (obedecidas, evidentemente, as regras quanto à iniciativa do projeto de lei, entre outras), no exercício da sua competência suplementar, pois determinada questão eventualmente ainda não havia sido tratada por lei federal ou estadual a ser suplementada246. IV-A LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL, A LEI ORGÂNICA MU-NICIPAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

IV.I-AUTONOMIA LEGISLATIVA DO MUNICÍPIO

A autonomia municipal é assegurada nos textos constitucionais desde a Constituição de 1891, sendo que a partir daí sua evolução foi marcada por avanços e retrocessos247. Essa autonomia geralmente é explicitada pela doutrina e subdividida em autonomia política, autonomia administrativa e autonomia financeira. A autonomia política decorre da possibilidade de organizar e consti-tuir o seu próprio governo, mediante eleição direta do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores (CF/88, art. 29, I), bem como a viabilidade de promover a sua própria organização que tomará corpo na Lei Orgânica (art. 29, caput)248. A au-tonomia administrativa, por sua vez, diz respeito à possibilidade dos Municípios

246 Essa questão assume ainda maior dimensão quando se verifica que o Município restou excluído pelo constituinte ori-ginário dos entes federados titulares das competências concorrentes do art. 24, no qual se prevê que à União, aos Estados e ao Distrito Federal compete legislar concorrentemente sobre, v.g., direito tributário (inciso I), direito urbanístico (inciso I), florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (inciso VI), proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (inciso VII), pro-teção e defesa da saúde (inciso XII), proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência (inciso XIV), proteção à infância e à juventude (inciso XV). 247 J. H. Meirelles Teixeira já anotava que essa autonomia municipal, diferentemente do que ocorreria nos demais países (nos quais seria mera criação dos costumes ou de lei ordinária), constituiria verdadeira garantia constitucional, apresentando-se como instituição, de modo que “será inconstitucional [a legislação federal ou estadual] sempre que atinja, fira, prejudique, desconheça ou destrua a autonomia municipal, tal como estabelecida na Constituição” (1991, p. 652).

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de organizar e prestar os serviços de interesse local, conforme dispõe o art. 30, V da CF/88. A autonomia financeira, por fim, é de fundamental importância para que o Município tenha condições de desempenhar suas tarefas constitucionais, consistindo na possibilidade de instituir e arrecadar os tributos de sua compe-tência, e ainda aplicar suas rendas, conforme o disposto no inciso III do art. 30 da CF/88. Para os fins do presente trabalho, no entanto, é relevante a autonomia legislativa, compreendida na autonomia política (FERRARI, 2005, p. 91-92). A autonomia legislativa do Município, como é intuitivo, acompa-nhou os avanços e retrocessos da previsão da própria autonomia municipal nos textos constitucionais pátrios; nesse sentido, escrevendo sob o regime da Carta de 1946, Arruda Viana dizia que ao Estado-membro competia de-limitar o que se devia entender por “peculiar interesse” (1950, p. 69). Com a CF/88, como já referido oportunamente, o regime é outro, dado que o Município tem a competência para legislar sobre assuntos de interesse local (CF/88, art. 30, I) e para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (CF/88, art. 30, II). Além disso, a CF/88 determinou ao Município o desempenho de tarefas específicas, como a execução da política de desenvol-vimento urbano (art. 182) e até a atuação prioritária no ensino fundamental e na educação infantil (art. 211, § 2.º). Sabe-se que num Estado Democrático de Direito (CF/88, art. 1.º) o princípio da legalidade (CF/88, art. 5.º, II e art. 37, caput) tem fundamental importância para viabilizar o exercício das condutas estatais em atenção ao interesse público. Isso acaba por exigir uma intensa atividade legislativa de todos os entes federados249. Relativamente ao tema do presente trabalho, a lei serve tanto para o exercício das competências legislativas municipais como para fundamentar o exercício das competências administrativas do Município, já vistas sumariamente supra. O exercício regular da competência legislativa do Município deve obedecer, pois, ao critério do interesse local, que também serve para orien-

248 J. H. Meirelles Teixeira, face ao regime da Constituição de 1946, dizia que os Municípios possuíam uma autonomia frente aos Estados e à União “quase tão extensa quanto a dos Estados-membros, frente à União”, pois na vigência daquela Carta “os municípios não se organizam a si mesmos” (1991, p. 652-653); tendo em vista, agora, o disposto no caput do art. 29 é lícito retomar essa lição de Meirelles Teixeira para dizer que os Municípios têm autonomia em face dos Estados-membros e da União tão extensa quanto a dos Estados-membros frente à União. 249 Como escreveu Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “(...) essa multiplicação [das leis] é fruto da extensão do domínio em que o governante se intromete, em razão das novas concepções sobre a missão do Estado. A lei é hoje onipresente”, de maneira que “[n]ão há campo da atividade humana, não há setor da vida humana, onde não esteja o governo a ditar regras. Seja para garantir a liberdade artística contra a cegueira da censura, seja para fixar as dimensões dos armários postos à disposição do operário...” (1995, p. 12).

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tar a competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. É lícito entender que o interesse local é aquele que o poder público local considerou como relevante para fins de exercício das competências inerentes à autonomia municipal, diante da realidade que se verificou em dado Município, obedecidas as normas constitucionais que distribuem as competências dos entes federados. Como se viu supra, o princípio da subsi-diariedade ampara uma conclusão desse tipo.250 Do até agora exposto já se viu que os poderes públicos estão espe-cialmente incumbidos da tarefa de promover a implementação dos direitos fundamentais, especialmente quando se referiu brevemente as dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, e seus desdobramentos. Em seguida, verificou-se a posição do ente municipal na Federação configurada pela CF/88, deixando-se em evidência que foram outorgadas ao Município competências de natureza administrativa e legislativa para se desincumbir de relevantes tarefas em relação aos seus administrados. O presente trabalho é, pois, dedicado ao exame, ainda que sumário, das leis complementares do Município de Porto Alegre que, de uma forma ou outra, se reportam a di-reitos fundamentais. Assim, impõe-se, neste passo, esclarecer do que tratam as leis complementares e sua relação com as leis ordinárias.

250 Em relação ao Município de Porto Alegre, pode-se exemplificar com a LCM n.º 432/1999, que dispõe sobre o uso e permanência de cães-guia para pessoas portadoras de deficiência visual nos locais públicos e privados; é intuitivo que o interesse para estabelecer essa legislação não é exclusivo do Município de Porto Alegre, pois não é apenas os portadores de deficiência visual residentes no Município de Porto Alegre que podem encontrar dificuldades para se utilizar de cães-guia em locais públicos e privados, mas o poder público municipal entendeu que essa questão não estava adequadamente regu-lada no âmbito da legislação federal e estadual, e que merecia tratamento em face da realidade local. Não se visualiza, aqui, violação às competências dos demais entes federados. Diferentemente, ao Município de Porto Alegre não é dado ampliar, em favor dos portadores de deficiência visual, os prazos processuais (v.g., para contestar ou para recorrer, ou para ajuizar ação rescisória), pois a competência para legislar sobre direito processual é privativa da União (art. 22, I), não havendo que se falar, nesse caso, no interesse local.

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IV.II-AS LEIS COMPLEMENTARES NA CONSTITUIÇÃO FEDE-RAL DE 1988, NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DE 1989 E NA LEI ORGÂNICA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE

IV.II.I-NOÇÃO GERAL DE LEIS COMPLEMENTARES

Do processo legislativo cuida a Seção VIII, do Título IV (“Da Or-ganização dos Poderes”), da CF/88, nos seus arts. 59 a 69, sendo que no dispositivo inaugural constam as espécies legislativas. As leis complementares ingressaram no ordenamento constitucional brasileiro mediante a Emenda Constitucional n.º 4 à Constituição de 1946, “o chamado ato adicional, que estabeleceu o parlamentarismo”, e que no seu art. 22 permitiu “que se complementasse o sistema parlamentar de governo mediante leis, caracteri-zadas pela exigência da maioria absoluta, para a sua aprovação, nas duas casas do Congresso” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 236). Na CF/88 receberam tratamento lacônico (FERREIRA FILHO, 1995, p. 237), uma vez que o art. 69 dispôs, simplesmente, que a sua aprovação dependeria de maioria absoluta dos componentes da(s) Casa(s) Legislativa(s), sendo lícito concluir, pois, que quanto às fases do processo legislativo não há diferença em relação às leis ordinárias (exceto, evidentemente, em relação ao quórum de aprova-ção) (FERREIRA FILHO, 1995, p. 240; SILVA, 2006, 315)251. As matérias a serem veiculadas mediante leis complementares não são (ou não deveriam ser) deixadas ao arbítrio do legislador infraconstitucional; a Constituição é quem fez a opção pela via legislativa a ser empregada para o tratamento de determinada matéria. Assentado, pois, que esse tratamento diferenciado em relação às leis complementares se dá em decorrência do fato de que o constituinte con-siderou determinadas matérias, sob determinado aspecto, de tal relevância que seria inconveniente ou inoportuno deixá-las sem uma proteção maior em face das leis ordinárias, consistente na aprovação por maioria absoluta, convém repassar os textos constitucionais federal e estadual (do Rio Grande do Sul) e o texto da lei orgânica municipal (de Porto Alegre) para verificar a que matérias foram dedicadas pelos respectivos legisladores a via da lei complementar.

251 Entretanto, essa diferença entre leis ordinárias e leis complementares em relação ao quórum de aprovação é significativa, pois com isso se criou uma espécie de tertium genus entre as normas mais rígidas (isto é, que exigiriam o cumprimento de maiores requisitos para sua aprovação) que são as emendas constitucionais, e as menos rígidas (i. é, com requisitos mais elastecidos para aprovação) que são as leis ordinárias.

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IV.II.II-AS LEIS COMPLEMENTARES NA CONSTITUIÇÃO FEDE-RAL DE 1988 Numerosas são as passagens do texto de 1988 em que se exigiu o tratamento de determinada matéria mediante lei complementar252. Assim, verifica-se que em determinados casos de possível conflito entre os entes federados, ou nos quais os interesses em jogo transcendam aos interesses de um só ente federado – de maneira que a simples edição de uma lei ordinária federal poderia acarretar certo tipo de desequilíbrio federativo -, o consti-tuinte elegeu a via da lei complementar253. Também são objeto de lei com-plementar as leis orgânicas de determinadas carreiras públicas254; no mesmo sentido, para o tratamento de questões de servidores públicos é exigida a via da lei complementar255. O constituinte também previu que determinadas questões de segurança nacional seriam matéria para veiculação mediante lei complementar, como a competência da União prevista no art. 21, IV e art. 84, XXII. Em matéria de direitos fundamentais, exige-se lei complementar para proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa (que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos – art. 7.º I); para o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade, além dos previstos na CF/88, e os prazos de sua cessação (art. 14, § 9.º); para o pro-cedimento contraditório especial para o processo judicial de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária (art. 184, § 3.º); para a apli-cação de percentuais mínimos de recursos para as ações e serviços públicos de saúde (art. 198, §§ 2.º e 3.º); para os casos de ressalva à vedação de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social (art. 201, § 1.º); para a re-gulação do regime de previdência privada (art. 202, caput e §§); para os casos de relevante interesse público da União a respeito de atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 231, § 6.º).

251 O objeto do presente trabalho é as leis complementares (municipais) a respeito de direitos fundamentais, de modo que não há espaço aqui para um minucioso levantamento e agrupamento das leis complementares exigidas na CF/88; em que pese isso, sem a pretensão de formular um critério classificador, podemos de uma forma geral – e para os fins do presente estudo – referir alguns casos de matérias típicas de lei complementar.253 Como exemplo, podem ser citados (a) os §§ 2.º a 4.º do art. 18; (b) o parágrafo único do art. 21; (c) o parágrafo único do art. 23 (com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 53/2006); (d) o § 1.º do art. 43; (e) o art. 146. Convém destacar que em matéria tributária e financeiro-orçamentária o recurso à lei complementar foi grandemente realizado pelo legislador constituinte, conforme se depreende, além do art. 146, dos arts. 146-A; 148; 153, VII; 154, I; 155, § 1.º, III; 156, III e § 3.º; 161; 163; 165, § 9.º; 169, dentre outros.254 Como o Estatuto da Magistratura (art. 93); a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais (art. 121); o estatuto de cada Ministério Público (federal e estadual – § 5.º do art. 128); determinadas funções ins-titucionais do Ministério Público (art. 129, VI e VII); Advocacia-Geral da União (art. 131); Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios (§ 1.º do art. 134); Forças Armadas (§ 1.º do art. 142), etc.255 Conforme o art. 41, ª 1.º, III, o art. 40, § 4.º, e o art. 169, §§ 2.ª a 4.º.

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IV.II.III-AS LEIS COMPLEMENTARES NA CONSTITUIÇÃO ESTA-DUAL DE 1989

A CF/88 assegura aos Estados-membros a sua organização e regência pelas Constituições e leis que adotarem, desde que observados os princípios da própria Constituição Federal (art. 25, caput). Nessa medida, não há que es-tranhar o fato de muitas das disposições da Constituição Estadual de 1989 a respeito da exigência de tratamento de leis complementares sobre deter-minadas matérias ser simétrica às disposições da Constituição Federal. Assim se verifica em relação ao regime jurídico dos servidores públicos civis do Estado, das autarquias e das fundações públicas (art. 30); ao estatuto dos inte-grantes da Brigada Militar (art. 46); ao Estatuto da magistratura Estadual (art. 95, V, f); à organização, às atribuições e ao estatuto do Ministério Público (art. 108 e ss.); à organização da Advocacia do Estado (art. 114); ao estatuto dos Procuradores do Estado (art. 116); à organização da Defensoria Pública do Estado (art. 121), dentre outras carreiras públicas256.

IV.II.IV-AS LEIS COMPLEMENTARES NA LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

Na forma do caput do art. 29 da CF/88, a Lei Orgânica munici-pal deve atender aos princípios estabelecidos na própria Carta Magna e na Constituição Estadual. Mas em termos comparativos de quantidade de nor-mas, a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre (publicada no D.O.E. de 04.04.1990), dispõe sobre leis complementares em número muito menor de dispositivos257. Entretanto, o conteúdo desses dispositivos deixa espaço para uma quantidade expressiva de leis complementares, sobre variados assuntos. Significativo é o disposto no art. 76, segundo o qual “Serão obje-to de lei complementar os códigos, o estatuto dos funcionários públicos, as leis dos planos diretores, bem como outras matérias previstas nesta Lei

256 É exigida, ainda, lei complementar nos seguintes dispositivos da Constituição estadual: art. 38, §1.º; art. 164, parágrafo único; art. 167, § 3.º; art. 172; art. 201, § 3.º; art. 236, parágrafo único. 257 Exige-se, pois, lei complementar para (a) a criação de fundos para desenvolvimento de programas específicos (art. 27); (b) o estabelecimento do estatuto dos servidores da administração centralizada, das autarquias e fundações (art. 33); (c) o estabelecimento do número de Vereadores da Câmara Municipal (art. 50, § 1.º); (d) a forma como se efetivará a descentra-lização político-administrativa (art. 86); (e) a instituição e organização dos conselhos municipais (art. 101); (f) a integração do Município em região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião (art. 106); a definição dos casos nos quais se admite o abate, a poda ou o corte das árvores situadas no Município, bem como a definição de sanções para os casos de transgressão à vedação dos casos não ressalvados na lei complementar respectiva (art. 243, parágrafo único).

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Orgânica”. Pois os códigos (dos quais os projetos e respectivas exposições de motivos, antes de submetidos à discussão da Câmara Municipal, será dada divulgação mais ampla possível - § 1.º do art. 76) correspondem às leis complementares de significativa importância, como o Código Municipal de Limpeza Urbana (LCM n.º 234/1990), o Código de Edificações (LCM n.º 284/1992), o Código Municipal de Saúde (LCM n.º 395/1996), o Có-digo de Proteção contra Incêndio (LCM n.º 420/1998), de maneira que tais legislações - acrescidas das Leis Complementares n.ºs 7/1973 (institui e disciplina o imposto sobre serviços de qualquer natureza), 12/1975 (institui posturas), 133 (estabelece o Estatuto dos Funcionários Públicos), dentre ou-tras -, concentram boa parte da atividade da Câmara Municipal na edição de leis complementares (originárias ou derivadas).

IV.III-OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A LEGISLAÇÃO PÓS 1988 DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

IV.III.I-A LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

Já se disse que a lei orgânica municipal é o traço mais marcante da autonomia política do Município (TAVARES, 2003, p. 822), uma vez que a CF/88 deferiu ao próprio ente municipal a sua elaboração e votação. A CF/88 exigiu que a lei orgânica seguisse determinados preceitos (incisos do art. 29), e deixou o restante ao encargo do legislador orgânico municipal, cuja tarefa restaria limitada apenas pelos estabelecidos na CF/88 e na Cons-tituição do respectivo Estado. Abriu-se espaço, assim, para que o Município tratasse das mais diversas matérias na sua lei orgânica, mais ou menos como se fez na própria CF/88 e na Constituição estadual. A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, dessa maneira, é uma legislação complexa258, e (para os fins do presente trabalho) contém diversas normas sobre direitos fundamentais que podem ser reconduzidas à classificação preconizada por Alexy e divulgada acima. Nesse sentido, pode-se citar (a) o inciso III do art. 6.º, que estabelece a participação popular nas

258 “Na Lei Orgânica deve estar prevista competência municipal para editar lei complementar e lei ordinária. Necessário se faz estabelecer processo legislativo para disciplinar matéria, que se exigindo quórum de maioria absoluta para aquelas, que devem tratar, dos códigos tributários, de obras e edificações, do plano diretor, da lei de ordenamento, uso e ocupação do solo, o estatuto do servidor público municipal, a divisão territorial do Município e de outras matérias de maior vulto” (COSTA, 2006, p. 134).

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decisões como um compromisso fundamental do Município (em atenção, pois, ao direito à formação da vontade estatal)259 ; (b) o art. 28, que veda a possibilidade de contratação, pela administração pública direta e indireta, de empresas que adotem práticas discriminatórias na admissão de mão-de-obra ou que veiculem propaganda discriminatória (veiculando, pois, um direito de proteção); (c) o art. 29, que impõe às secretarias, autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações mantidas pelo Município a manutenção de uma Central de Informações, destinada a colher recla-mações e prestar informações ao público (pode ser reconduzido ao direito a procedimentos administrativos); (d) o art. 31, que estabelece os direitos dos servidores do Município, como irredutibilidade de vencimentos e sa-lários, participação de representante sindical nas comissões de sindicância e inquérito que apurarem falta funcional, licença-maternidade e licença-paternidade, recusa de execução do trabalho quando não houver redução dos riscos a ele inerentes por meio de normas de saúde, higiene e segurança, ou no caso de não ser fornecido o equipamento de proteção individual, dentre outros (direitos de defesa); (e) o art. 88, que determina a instituição de serviço público de assistência jurídica a ser prestado gratuitamente às pessoas e entidades sem recursos para prover, por seus próprios meios, a defesa de seus direitos (direitos a prestações materiais); (f) o art. 111, ao dispor que “[s]empre que houver discrepância, em percentual a ser fixado em lei comple-mentar, entre períodos consecutivos de medição dos serviços cobertos por taxas ou tarifas, cabe ao Município o ônus de comprovar que o serviço foi efetivamente prestado ou colocado à disposição do usuário, inclusive quanto à correção das medições” (direitos de defesa); (g) o art. 126, que impõe a supremacia dos interesses da coletividade sobre os da iniciativa privada, e o art. 138, que condiciona o licenciamento para funcionamento de atividade comercial ou industrial ao preenchimento de requisitos essenciais de saúde, segurança, higiene e condições ambientais (direitos a competências de direi-to privado); (h) o art. 148, que impõe ao Município o não embaraçamento do funcionamento de cultos, igrejas e o exercício do direito de manifestação cultural coletiva (direitos de defesa); (i) o art. 147, que impõe ao Município a promoção dos direitos à cidadania, à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer,

259 A participação popular é também um dos princípios da administração pública direta e indireta, conforme art. 17, caput, além de ser assegurada nas decisões do Poder Executivo, conforme parágrafo único do art. 89. A Lei Orgânica expressa no art. 97 as formas de exercício da soberania popular.

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ao usufruto dos bens culturais, à segurança, à previdência social, à proteção da maternidade e da infância, à assistência aos desamparados, ao transporte, à habitação e ao meio ambiente equilibrado (direitos à prestações materiais sociais)260. Mas um dos dispositivos mais significativos para demonstrar a com-plexidade da Lei Orgânica e de sua disposição para implementar ao mesmo tempo mais de uma das categorias de direitos fundamentais (conforme a classificação de R. Alexy) é o art. 171. Essa norma trata da assistência social, e nesse sentido se enquadraria nos direitos a prestações em sentido estrito, mas os seus incisos tratam das competências do Município em sede de assis-tência social, e cada um deles parece implementar uma categoria diferente de direito fundamental. Assim,

Art. 171 – Compete ao Município:I – formular a política de assistência social em articulação com a política na-cional e estadual, resguardadas as especificidades locais; (direito a prestações em sentido estrito – formulação de política pública ativa em matéria de direitos sociais) II – coordenar e executar os programas de assistência social, através de órgão específico, a partir da realidade e das reivindicações da população; (direito a organização em sentido estrito) III – legislar e estabelecer normas sobre matérias de natureza financeira, po-lítica e programática da área de assistência social; (direito a competências de direito privado) IV – planejar, coordenar, executar, controlar, fiscalizar e avaliar a prestação de serviços e benefícios; (direito a organização em sentido estrito) V – gerir os recursos orçamentários próprios, bem como aqueles repassados por outra esfera de governo para a área de assistência social, respeitados os disposi-tivos legais vigentes; (direito a organização em sentido estrito) VI – instituir mecanismos de participação popular que propiciem a definição das prioridades e a fiscalização e o controle das ações desenvolvidas na área de assistência social. (direito à formação da vontade estatal)

260 Dentre outros inúmeros exemplos, a Lei Orgânica estabelece os direitos constitutivos da cidadania no seu art. 152, que contém tanto direitos de defesa como direitos a prestações (“[s]ão direitos constitutivos da cidadania: I – livre organização política para o exercício da soberania; II – liberdade de expressar e defender, individual ou coletivamente, opiniões e interes-ses; III – prerrogativa de tornar pública reivindicações mediante organização de manifestações populares em logradouros públicos e afixação de cartazes e reprodução de “consignas” em locais previamente destinados pelo Poder Público; IV – prer-rogativa de utilização gratuita dos próprios municipais para a realização de assembléias populares”).

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Nota-se, pois, que a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre assume um papel relevante na conformação das leis complementares muni-cipais, na medida em que incorpora e desenvolve o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais consagrados na CF/88, e dessa forma condiciona a atuação dos poderes públicos municipais.

IV.III.II-AS LEIS COMPLEMENTARES DO MUNICÍPIO DE POR-TO ALEGRE APÓS 05.10.1988 E AS MATÉRIAS MAIS RECORREN-TES

O Poder Legislativo do Município de Porto Alegre editou 388 leis complementares, desde 05.10.1988 (data da CF/88) até 29.03.2007 (data de corte para o início das pesquisas deste trabalho)261. Desse total, 143 leis complementares versaram sobre direito urbanístico, compreendendo desde a aprovação e o licenciamento de projetos arquitetônicos para construção e/ou reciclagem de prédios para Escolas de Educação Infantil e Instituições de Educação Infantil (LCM n.º 544/2006), até a autorização da transferên-cia do potencial construtivo de imóvel para fins de restauração de imóvel tombado (LCM n.º 435/1999), passando pelo próprio Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental – PDDUA (LCM n.º 434/2000). Não há que estranhar essa dedicação do legislador municipal às normas urbanís-ticas, sobretudo quando se sabe que a CF/88 outorgou ao Poder Público municipal, em conformidade com diretrizes gerais fixadas em lei (o Estatuto da Cidade – Lei federal n.º 10.257/2001) a execução da política de desen-volvimento urbano (art. 182)262. Após essas considerações iniciais, convém retomar a classificação dos direitos fundamentais promovida oportunamente, e verificar como se deu a distribuição das leis complementares em relação a cada uma das categorias oportunamente identificadas.

261 Para fins de comparação, foram editadas, no mesmo período, 3.874 leis ordinárias municipais.262 Outro grupo que agrega número significativo de leis complementares municipais é representado pelas normas de direito tributário: 85 leis complementares, que afinal decorrem do exercício da competência para instituir e arrecadar os tributos que lhe competem (art. 30, III)

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IV.III.III-AS LEIS COMPLEMENTARES MUNICIPAIS SOBRE DI-REITOS DE DEFESA

Viu-se que os direitos de defesa exigem condutas omissivas do Es-tado em face do titular de um direito fundamental. Assim, este tem em face daquele o direito ao não impedimento de ações, à não afetação de proprie-dades e situações e, por fim, à não eliminação de posições jurídicas. Por essa razão, parece-nos que não é significativa a atuação legislativa complementar do Município de Porto Alegre em relação aos direitos de defesa, pois con-tanto que o Município não impeça indevidamente as liberdades de locomo-ção (CF/88, art. 5.º, XV), de manifestação da fé (art. 5.º, VI) ou de expressão (art. 5.º, IV), não afete indevidamente a inviolabilidade do domicílio (art. 5.º, XI), e não elimine a configuração jurídica do direito de propriedade (art. 5.º, XXII), os respectivos titulares de direitos fundamentais estarão sendo respeitados.

IV.III.IV-AS LEIS COMPLEMENTARES MUNICIPAIS SOBRE DI-REITOS A PRESTAÇÕES

Os direitos a prestações dividem-se em direitos a prestações em sen-tido amplo e direitos a prestações em sentido estrito, e os primeiros dividem-se, ainda, em direitos de proteção e direitos à participação na organização e procedimento. Vejamos, então, como se passam as coisas em relação a cada uma dessas categorias de direitos fundamentais.

IV.III.IV.I-AS LEIS COMPLEMENTARES MUNICIPAIS SOBRE DIREITOS A PRESTAÇÕES EM SENTIDO AMPLO

Dentro da categoria dos direitos a prestações em sentido amplo, a legislação complementar do Município de Porto Alegre é especialmente dedicada aos direitos à participação na organização e procedimento (ao todo, são 110 leis complementares), nas suas quatro subdivisões. Desde logo se des-taca que muitas leis complementares podem ser referíveis ao mesmo tempo a mais de uma dessas categorias.

263 Conforme o art. 13 da Constituição Estadual de 1989, “é competência do Município, além da prevista na Constituição Federal e ressalvada a do Estado: I – exercer o poder de polícia administrativa nas matérias de interesse local, tais como proteção á saúde, aí incluídas a vigilância e a fiscalização sanitárias, e proteção ao meio-ambiente, ao sossego, à higiene e à funcionalidade, bem como dispor sobre as penalidades por infração às leis e regulamentos locais; (...)”.

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Os direitos a competências de direito privado são contemplados em 72 leis complementares, e isso provavelmente é decorrência da ativi-dade inerente ao poder de polícia, bem como de intervenção no domínio econômico263. Essa categoria de direitos fundamentais – mediante os quais é exigido do Estado a formulação de normas constitutivas para ações jurí-dicas de direito privado, como normas sobre atividades econômicas – é que está por trás de leis complementares como (a) a de n.º 565/2007 que altera dispositivos do Código de posturas do Município de Porto Alegre (LCM n.º 12/1975) para estabelecer regras para o leilão de animais como bovinos, ovinos e caprinos, dentre outros, e dispor sobre o leilão de eqüinos abando-nados nos logradouros públicos ou apreendidos por maus-tratos; (b) a de n.º 560/2007, que institui o programa de incentivos ao uso de energia solar nas edificações, com o objetivo de promover medidas necessárias ao fomento do uso e ao desenvolvimento tecnológico de sistemas de aproveitamento de energia solar para o aquecimento de água em imóveis e de conscientizar a população sobre os benefícios da energia solar; (c) a de n.º 546/2006, que altera o Código de posturas e proíbe espetáculos de feras e a exibição de quaisquer animais perigosos, excetuados aqueles mantidos em zoológicos ou destinados a pesquisas e/ou eventos científicos; (d) a de n.º 543/2006, que determina a construção de banheiros públicos destinados ao uso infantil nos centros comerciais e shopping centers, nos cinemas e teatros que atendam o público infantil, e nos estádios de futebol e ginásios cujas atividades des-portivas envolvam programas voltados a este público; (e) a de n.º 435/1999, que autoriza a transferência do potencial construtivo de imóvel para fins de restauração de imóvel tombado; (f) a de n.º 415/1998, que dispõe sobre a permissão de uso de recuo e do recuo e passeio público fronteiro a bares, restaurantes, lanchonetes e assemelhados para a colocação de toldos, mesas e cadeiras; e (g) a de n.º 242/1991, que disciplina a concessão de direito real de uso aos ocupantes de área do poder público municipal. A tônica desse tipo de regulação é a intervenção do poder público no domínio econômico, “através de seu ‘poder de polícia’, isto é, mediante leis e atos administrativos para executá-las, ‘como agente normativo e regu-lador da atividade econômica’” (MELLO, 2005, 731), pois no caso presente o Município estabelece regras e princípios a serem seguidos pelos particu-lares no desempenho de atividades econômicas privadas, isto é, o Município formula normas constitutivas para ações jurídicas de direito privado. Nesse sentido, é significativo o exemplo da LCM n.º 554/2006, que institui autori-zação para o funcionamento de atividades econômicas no Município, dispõe sobre sua aplicação, expedição, vigência, renovação e cancelamento.

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Os direitos a procedimentos judiciais e administrativos, por inter-médio dos quais se exige que o Estado edite normas que proporcionem a garantia dos direitos materiais (proteção jurídica efetiva), identificou-se a edição de duas leis complementares: (a) a de n.º 255/1991, que regula-menta o art. 111 da Lei Orgânica quanto à inconformidade do usuário em relação às taxas dos serviços medidos pela Prefeitura Municipal; e (b) a de n.º 534/2005, que cria e institucionaliza o Tribunal Administrativo de Re-cursos Tributários. Nesses casos, o Município de Porto Alegre disciplinou a possibilidade dos particulares de deduzirem pleitos administrativos com a finalidade de questionar as taxas de serviços municipais, bem como o acesso dos particulares aos procedimentos administrativos em questões tributárias. Quanto aos direitos à organização em sentido estrito, entendidos estes nos casos em que há a regulação da cooperação de numerosas pessoas orientadas a determinados fins, considerou-se as diversas leis complemen-tares que criam conselhos municipais. Nesse sentido, foram editadas 27 leis complementares, sendo que a mais recente (no período investigado para este trabalho) é a de n.º 563/2007, que organiza, no âmbito da administração centralizada da Prefeitura Municipal, o Sistema Municipal de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor (SMDC), institui o Serviço de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor (Procon/PMPA), o Conselho Mu-nicipal de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor (Condecon), e o Fundo Municipal dos Direitos Difusos (FMDD).264 Por fim, no que se refere aos direitos à participação na organização e procedimento, tem-se os direitos à formação da vontade estatal, por força dos quais o poder público deve facilitar pela legislação procedimentos que pos-sibilitem a participação na vontade estatal, como o direito ao voto. A CF/88 estabelece no art. 29, XIII, entre um dos preceitos a serem seguidos pelos Municípios, a “iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”. Os direitos à formação da vontade estatal são objeto de 10 leis complementares municipais, e parecem servir para

264 Foram criados, ainda, o Conselho Municipal de Entorpecentes (LCM n.º 241/1991), o Conselho Municipal de Trânsito (LCM n.º 247/1991), o Conselho Municipal de Educação (LCM n.º 248/1991), o Conselho Municipal de Saúde (LCM n.º 277/1992), o Conselho Municipal de Transportes Urbanos (LCM n.º 318/1994), o Conselho Municipal dos Direitos da Cidada-nia (LCM n.º 325/1994), o Conselho Municipal de Acesso a Terra e Habitação (LCM n.º 337/1995), o Conselho Municipal do Desporto (LCM n.º 340/1995), o Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia (LCM n.º 367/1996), o Conselho Municipal de Agricultura e Abastecimento (LCM n.º 370/ 1996), o Conselho Municipal do Meio Ambiente (LCM n.º 369/1996), o Conselho Municipal de Cultura (LCM n.º 399/1997), o Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundo e Manu-tenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (LCM n.º 421/1998), o Conselho Municipal de Desenvolvimento (LCM n.º 508/2004), para nomear apenas alguns mais destacados.

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tornar efetiva essa categoria de direitos fundamentais. Assim, (a) a LCM n.º 195/1988 (modificada pelas LCMs n.º 195A/1989 e n.º 353/1995) cria o sistema de participação do povo no Governo Municipal (conselho popular); (b) as LCMs n.º 282/1992, n.º 282ª/1993 e n.º 323/1994 instituem a con-sulta plebiscitária sobre assuntos de interesse do Município; (c) a LCM n.º 297/1993 dispõe sobre o assessoramento técnico pelo Município aos proje-tos de iniciativa popular; (d) a LCM n.º 382/1996 regulamenta o art. 103 da Lei Orgânica a respeito das audiências públicas; (e) a LCM n.º 487/2003 cria os Fóruns Municipais Regionais de Justiça e Segurança, além do Conselho Municipal de Justiça e Segurança e os Conselhos Comunitários de justiça e Segurança. As leis complementares que criam e organizam os diversos con-selhos municipais referidos acima também servem de exemplos de normas que implementam os direitos à formação da vontade estatal, na medida em que permitem o acesso dos administrados na composição desses órgãos que se ocupam de interesses locais relevantes265. Ao lado dos direitos à participação na organização e procedimen-to, e ainda dentro da categoria dos direitos a prestações em sentido amplo, existem os direitos de proteção, que impõem ao Estado a proteção de um titular de direito fundamental em face de intervenções indevidas de tercei-ros, mediante delimitação das esferas de atuação privada e a conseqüente imposição dessa demarcação. Essa proteção é produzida no exercício do que tradicionalmente os administrativistas chamam de poder de polícia266. O Município de Porto Alegre editou, no período compreendido nas presentes investigações, 30 leis complementares sobre os direitos de proteção.Como exemplo de lei complementar municipal que se ocupa de implemen-tar um direito fundamental à prestação consistente no direito à proteção do titular de um direito fundamental em face de intervenções de terceiros pode ser citada a LCM n.º 563/2007, que organiza, no âmbito da Administração Centralizada da Prefeitura de Porto Alegre, o Sistema Municipal de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor (SMDC), institui o Serviço de Pro-teção e Defesa dos Direitos do Consumidor (Procon/PMPA), o Conselho

265 Conforme o art. 101 da Lei Orgânica, “[o]s conselhos municipais são órgãos de participação direta da comunidade na administração pública, tendo por finalidade propor, fiscalizar e deliberar matérias referentes a cada setor da administração, nos termos de lei complementar”. 266 Conforme a lição consagrada de Hely Lopes Meirelles, “poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, bem benefício da coletividade ou do próprio Estado” (2001, p. 440). O jurista esclarece que se trata de um “mecanismo de frenagem de que dispõe a Ad-ministração Pública para conter os abusos do direito individual”, de modo que no exercício do poder de polícia “o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimen-to e à segurança nacional” (2001, p. 440).

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Municipal de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor (Condecon), e o Fundo Municipal dos Direitos Difusos (FMDD). O art. 5.º, XXXII da CF/88 impõe ao Estado a proteção do consumidor “na forma da lei”, e o Município de Porto Alegre, no exercício da sua competência suplementar (art. 30, II), editou a referida lei complementar para concretizar, em âmbito muni-cipal, a proteção do consumidor (titular do direito fundamental à proteção) em face de intervenções prejudiciais de terceiros (prestadores de serviços e forne-cedores de bens)267. É de notar que muitas das leis complementares ao mesmo tempo em que oferecem proteção ao titular de um direito fundamental, também estabe-lecem normas constitutivas para ações jurídicas de direito privado, de modo a implementarem tanto um direito de proteção como um direito à participação na organização e procedimento (ambos, como visto, dentro da categoria dos di-reitos a prestações em sentido amplo). Nesse sentido, pode-se citar a Lei Com-plementar municipal n.º 555/2006 que proíbe o uso de produtos fumígenos em recintos coletivos e em recintos de trabalho coletivo, exceto para as áreas destinadas exclusivamente a esse fim, desde que devidamente isoladas e com arejamento conveniente; tal legislação oferece proteção ao titular do direito fundamental à vida e à saúde, bem como estabelece norma restritiva do direito de propriedade em relação a recintos coletivos e recintos de trabalho coletivo, e, em última análise, o livre exercício de atividade econômica (art. 170, parágrafo único), se se tiver em consideração que boa parte dos recintos coletivos consis-tem em bares e restaurantes, por exemplo.

IV.III.IV.II-AS LEIS COMPLEMENTARES MUNICIPAIS SOBRE DI-REITOS A PRESTAÇÕES EM SENTIDO ESTRITO Os direitos a prestações em sentido estrito, como visto oportunamen-te, constituem na relevante categoria de direitos fundamentais que exigem do

267 Outras leis complementares municipais que podem ser citadas nesse sentido são (a) a LCM n.º 254/1991, que altera o Código de Posturas quanto às áreas para fumantes em estabelecimentos comerciais; (b) a LCM n.º 288/1993, que proíbe a revista de pessoas pelos estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços; (c) a LCM n.º 300/1993, que dispõe sobre a obrigatoriedade dos estabelecimentos varejistas afixarem em suas fachadas o preço da cesta básica; (d) a LCM n.º 322/1994, que proíbe o uso de soda cáustica ou substância ácida na limpeza de edificações; (e) a LCM n.º 493/2003, que dispõe sobre segurança em estabelecimentos comerciais e congêneres; (f) a LCM n.º 551/2006, que cria a compensação do crédito tributá-rio do imposto sobre propriedade territorial urbana (IPTU) com crédito de contribuinte municipal, líquido, certo e vencido, resultante de indenização por danos em seu bem imóvel localizado nos logradouros denominados “túneis verdes”

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Estado prestações materiais sociais, consistentes em saúde, educação, etc268. No Município de Porto Alegre pode-se dizer que foram editadas 40 leis comple-mentares sobre direitos a prestações em sentido estrito. Essas normas, em regra, dispõem sobre políticas públicas, de maneira que não efetivam diretamente os direitos sociais. Bem vistas as coisas, no entanto, é lícito concluir que não po-deria ser de outra maneira, em sede de leis complementares, tendo em vista as características que lhes são próprias e foram objeto das considerações mais acima. A tarefa de proporcionar diretamente a efetividade dos direitos sociais parece ser mais afeita às leis ordinárias (cujo processo legislativo é aparente-mente mais ágil sob o ponto de vista do quórum de aprovação) e, sobretudo, aos atos administrativos. Entretanto, nem as leis ordinárias, nem os atos ad-ministrativos, são viáveis se não houver uma política pública municipal que lhes empreste adequação, coerência, unidade, e, sobretudo, estabilidade no tempo. As políticas públicas sobre direitos sociais devem ser criadas e orga-nizadas de modo a viabilizar o desenvolvimento mediante atos legislativos e administrativos, e assim criar um estado de coisas a ser mantido em favor dos munícipes no qual os direitos sociais são promovidos e respeitados.269

V-CONCLUSÃO

Na forma preconizada pela CF/88, o Município detém competên-cia para atuar tanto no plano administrativo como no plano legislativo com a finalidade de implementar os direitos fundamentais. Pode-se dizer mais: em atenção ao princípio da subsidiariedade, e respeitadas as demais disposições constitucionais sobre a repartição de competências, o Município detém a primazia nessa tarefa. Afinal, para isso é que o ente municipal detém a com-

268 Uma das discussões mais sérias a respeito dos direitos fundamentais é a que se refere à possibilidade de o particular exigir em face do Estado uma prestação dessa espécie. Canotilho anota que as respostas às questões sobre os direitos sociais originários (i.é, se os particulares podem retirar da norma consagradora do direito à habitação, por exemplo, uma pretensão consistente no direito de exigir do Estado uma casa) e os direitos sociais derivados (i.é, se existe o direito de exigir, sob pena de omissão inconstitucional, uma atuação legislativa que concretiza as normas de direitos sociais, e também se existe o direito à participação igual nas prestações criadas pelo legislador), são discutíveis, por outro lado “é liquido que as normas consagradoras de direitos sociais, económicos e culturais (...) individualizam e impõem políticas públicas socialmente acti-vas” que conduzem à criação de instituições, serviços e fornecimento de prestações ([2003?], p. 408-409). 269 Nesse sentido, a LCM n.º 223/1990 cria projetos padrões para licenciamento de construção de casa popular, a LCM n.º 242A/1991 disciplina sobre as áreas de uso comum do povo para incorporação ao banco de terra, a LCM n.º 269/1992 disciplina o art. 216 da Lei Orgânica e institui o banco de terra, a LCM n.º 272/1992 reabre prazo para regularização de cons-truções clandestinas da Vila Farrapos, a LCM n.º 325/1994 institui a política municipal dos direitos da cidadania contra as discriminações e violência, a LCM n.º 346/1995 regulamenta o art. 17, III da Lei Orgânica, dispondo sobre reserva de cargos e empregos públicos destinados a pessoas portadoras de deficiência, a LCM n.º 352/1995 dispõe sobre a política de assistência social, a LCM n.º 355/1995 isenta do pagamento do IPTU e do ISSQN toda pessoa física que assumir oficialmente menores ou adolescentes abandonados ou desassistidos nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, a LCM n.º 362/1995 cria o passe livre no sistema de transporte coletivo, a LCM n.º 411/1998 dispõe sobre o processo de remoção de moradores de áreas de interesse público que oferecem risco de vida ou saúde à população, a LCM n.º 426/1999 regulamenta o art. 233, IV da Lei Orgânica instituindo o programa de assistência técnica do projeto e construção de moradia econômica a pessoas de baixa renda, a LCM n.º 530/2005 institui o programa municipal de apoio e promoção do esporte, dentre outras normas já citadas, como as que criam e organizam conselhos municipais – estes invariavelmente se ocupam de direitos sociais, e na medida em que são criados e organizados servem de alguma forma para implementar os respectivos direitos sociais.

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petência para legislar sobre assuntos de interesse local e para suplementar e legislação estadual e federal no que couber, sem prejuízo das inúmeras outras disposições especialmente dedicadas ao Município, como a que trata do de-senvolvimento da política urbana e a atuação prioritária no ensino primário e fundamental, por exemplo. Tendo isto em mente, é lícito concluir que a legislação complemen-tar do Município de Porto Alegre é qualificada no sentido de ser tendente a implementar um grande número de direitos fundamentais, abrangendo a integralidade da classificação proposta por Robert Alexy. Em relação aos direitos de defesa, que se cumprem mediante ações negativas, pode-se dizer que o estrito cumprimento das normas tributárias, urbanísticas e as decor-rentes do poder de polícia (notadamente na questão da intervenção no do-mínio econômico) proporciona o cumprimento dos direitos de defesa, pois somente uma atuação do Município em desrespeito a essas normas (ou no caso de normas eventualmente consideradas desproporcionais ou desarrazo-adas) é que poderia caracterizar uma violação aos direitos de defesa. Por sua vez, os direitos a prestações, de uma maneira ou de outra, são implementados por um número significativo de leis complementares municipais, e se teve a oportunidade de demonstrar que o Município de Porto Alegre concentrou esforço legislativo nos direitos a competências de direito privado (dentro dos direitos à participação na organização e procedimento) e nos direitos de pro-teção, muito em função das competências decorrentes do poder de polícia (de modo geral). Os direitos a participação em sentido estrito (vinculados aos direitos à participação na organização e procedimento) também foram objeto de diversas leis complementares municipais, sobretudo as que tinham por objeto a criação e organização de conselhos municipais. Os direitos à formação da vontade estatal tiveram notável atenção do legislador comple-mentar, sobretudo em atenção às diversas disposições sobre esses direitos de participação constantes da Lei Orgânica Municipal. Por fim, os direitos a prestações em sentido estrito (os direitos a prestações materiais sociais) também foram contemplados expressivamente na legislação complementar municipal, conquanto muitas vezes se tenham limitado à formulação de po-líticas públicas sociais (mas isso já é o tanto quanto se tem como exigível em face dos poderes públicos). Muito do que se viu da atuação do Município de Porto Alegre em relação às suas leis complementares sobre direitos fundamentais é devido à força normativa da Lei Orgânica Municipal, na medida em que esta parece ter expressado bem a idéia contida na Constituição Federal de 1988 de que os poderes públicos devem operar tendo como meta a realização ótima do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais em geral.

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LA RECONSTITUCIÓN DEL ESTADO

Joaquin Garcia-Huidobro 270

270 Licenciado em Ciencias Juridicas e Sociais pela Facultad de Derecho de la Universidad de Chile. Doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra. Professor de Teoria Política, Universidad de Los Andes, Chile. Advogado.

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Resumo: O estudo trata da mudança de configuração do Estado contem-porâneo - que, aos poucos, perde o monopólio da força e o protagonismo na iniciativa econômica - , e do trabalho de reorganização do Estado, a ser levado a cabo por toda a sociedade política. Afirma que tal reconstituição só obterá sucesso a partir de um fundamento moral, isto é, da adoção de deter-minados estilos de vida que tornem possível o funcionamento dos sistemas e estruturas.

Sumário: I. Introducción. Política y poder; II. Crisis del Estado moderno; III. Críticas al Estado de bienestar; IV. Estado y educación; V. Iniciativas com-partidas: medio ambiente, pobreza, horarios de trabajo; VI. El movimiento privatizador; VII. Estado y derechos fundamentales; VIII. El Estado ante la sociedad pluralista; IX. Descentralización; X. Los poderes neutros; XI. ¿Fin del Estado?; XII. La obediencia cívica; XIII. Conclusiones; La reconstitución del Estado

Introducción

En la segunda mitad del siglo XX la expresión ‘modernización del Estado’ ha significado dos cosas opuestas. Desde la posguerra hasta la década de los setenta la modernización del aparato estatal coincidió en la práctica con su crecimiento. Se trataba, en efecto de que los países subdesarrollados alcanzaran a las naciones industriales mediante una intensa actividad esta-tal272. Hoy, en cambio, una vez que el neoliberalismo ha reemplazado a las llamadas teorías del desarrollo o de la modernización, esa idea se asocia con la del Estado mínimo273. En estas líneas no se pretende explicar esta paradoja consistente en que en pocas décadas la nueva modernización con-

271 Pol. III 9, 1280b38-39272 Sobre esta corriente modernizadora y sus fundamentos: O. Muñoz, “Hacia el Estado regulador”, en id. (ed.) Después de las privatizaciones. Hacia el Estado regulador. Cieplan. Santiago de Chile. 1993, esp. 20-34 273 Cfr. Universidad Nacional Andrés Bello, La modernización del Estado. Un desafío pendiente. Santiago de Chile. 1994. pass. Para los aspectos políticos: H. E. Schamis, “Economía política conservadora en América Latina y Europa Occidental: los orígenes políticos de la privatización”, en O. Muñoz (ed), Después de las privatizaciones. Hacia el Estado regulador. Santiago de Chile. 1993, 51-71. Un amplio panorama de esta discusión se encuentra en el número monográfico de la Revista de Ciencia Política (Santiago de Chile) vol. XV.1-2 (1993), pass. Para la evolución histórica del papel del Estado en Chile: B. Bravo, “Del Estado modernizador al Estado subsidiario. Trayectoria institucional de Chile, 1891-1995”, en Revista de Estudios Histórico-Jurídicos 17 (1995) 193-247.

“La elección de la vida en común supone la amistad”(Aristóteles 271)

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sista precisamente en destruir la antigua. Más bien se intenta dar una visión general del Estado, tal como se presenta en la actualidad y de los diversos problemas que enfrenta. Muchos de ellos son muy serios y no parece que se resuelvan simplemente reduciendo su tamaño. Se buscará, por tanto, presen-tar algunos de los puntos en donde hoy se discute -educación, privatización de empresas estatales, desregulación de la actividad económica privada, papel del derecho penal, etc.- y mostrar una forma de concebirlos que permita ha-blar de un Estado legítimo. En definitiva, se intenta presentar una concepci-ón del Estado y el derecho que, aunque no es original, mantiene importantes diferencias con las concepciones liberales más difundidas sin perder de vista que ellas, aunque no las compartamos, determinan buena parte del lenguaje y las categorías mentales en las que nos movemos. Aunque este estudio no tiene un carácter histórico, ha parecido imprescindible hacer las referencias indispensables acerca del desarrollo del Estado moderno y la crítica que en las últimas décadas se ha dirigido contra algunas de sus manifestaciones, en particular el Estado de bienestar.

I. Política y poder

La teoría política moderna se centra en el problema del poder, en-tendido, al menos desde Maquiavelo, como una forma de dominio de unos hombres sobre otros. La política misma se comprende habitualmente como una técnica para alcanzarlo, mantenerlo y acrecentarlo. Incluso los intentos de controlar el poder dividiéndolo, parten de la base de que es infinito, ili-mitado. Es frecuente que en los manuales de derecho político se enseñe que el poder, o la soberanía, es indivisible e ilimitado y que lo que en realidad se divide o separa son sus funciones. Al mismo tiempo, como el poder se ejerce fundamentalmente en el Estado, éste ha pasado a ser el actor central de la política de los últimos siglos. Hoy nos parece muy difícil imaginar formas de organización políticas que no sean estatales. Incluso en los intentos actuales de reducir el Estado a su mínima expresión se mantiene presente la idea de que la política es ejercicio del poder y por tanto una forma más o menos reglamentada de dominio de unos hombres sobre otros. Habría mucho que decir respecto de la obsesión kratológica de la modernidad. Se hace necesario hacer ver su insuficiencia y mostrar todo aquello que, siendo político, está antes o más allá del Estado. Es decir, señalar, de una parte, que no toda política es estatal y, de otra, que antes y más allá del Estado no está sólo el individuo aislado sino diversas formas de existencia

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comunitaria. Tras estos problemas hay profundas cuestiones antropológicas, que no abordaremos. Ellas se vinculan con la manera de entender las re-laciones de unos hombres con otros. En particular, es necesario esclarecer la cuestión de si existe un poder racional, es decir, un poder que se ejerce sobre hombres libres274, o si todo poder es una forma de dominación275 . Si la respuesta es positiva, si hay un poder racional, que se ejercita en beneficio de los subordinados y éstos no pierden su identidad al obedecerlo, podemos hablar propiamente de poder político276. Esta cuestión se halla en la base de la discusión contemporánea acerca de la reducción del tamaño del Estado. Casi todos están de acuerdo en que hay que reducirlo, pero las diferencias llegan a ser dramáticas cuando se plantea el qué y cuánto hay que reducir.

II. Crisis del Estado moderno

Cualquiera de los muchos estudios acerca del surgimiento del Es-tado moderno nos mostrará que se trata de un fenómeno original en la historia, que conoce precedentes sólo muy lejanos en otras formas de or-ganización política, como la polis griega277 . Su nacimiento se sitúa hoy en la institucionalización del señorío real en la Edad Media y un hito especial en su desarrollo se asocia a la concentración de ciertos poderes alrededor del monarca -los llamados derechos de la majestad278 -, la reunión en torno suyo de una burocracia organizada, la mantención de un ejército estable y la fijación de un territorio sobre el que se ejerce el poder279 . El desarrollo de la Edad Moderna coincide con un crecimiento pa-

274 Esta cuestión ya está apuntada por Aristóteles y constituye la base de su Política (Pol. I, 7, 1255 b 16 ss.)275 Esta opinión es frecuente incluso en autores que adhieren a la democracia liberal: “El Estado, cualquiera que sea la defini-ción que de él se dé y cualquiera que sea la forma que éste presente, es una organización de poder (...). Se pueden trazar lími-tes al Estado, en cuanto Estado de Derecho: pero dentro de esos límites sigue siendo poder de dominación. El Estado puede ser democrático y fundar el poder público en la voluntad popular: el Estado sigue siendo poder de dominación y sólo queda sometido al principio democrático el modo de su constitución y de su ejercicio. El poder del Estado en cuanto tal en todas las constituciones es el mismo” (E. Forsthoff, “Problemas constitucionales del Estado Social”, en W. Abendroth, E. Forsthoff y K. Doehring, El Estado Social. Centro de Estudios Constitucionales. Madrid. 1986). En el mismo sentido pesimista ha señalado Vincenzo Vitiello que “La política es Maquiavelo y Hobbes; es inútil tratar de bautizarla. El bien del hombre pasa por otro lado” (“En el límite de la palabra”, entrevista de J. M. Poirier y J. E. Fernández, en Criterio 2188 (1996), 691. Pero hace ya siglos se han dado buenos argumentos para superar esta concepción de la política (Pol. IV (VII) 2, 1324b1-1325b10 276 R. Spaemann, Crítica de las utopías políticas. Eunsa. Pamplona. 1980, 191 ss.277 Cfr. A. d’Ors, “Sobre el no-estatismo en Roma”, en Ensayos de Teoría Política. Pamplona. 1979. El mérito de haber puesto de relieve la diferencia entre el Estado moderno y las formas pretéritas de organización corresponde Otto Brunner en los años treinta (Land und Herrschaft. Grundfragen der territoriales Verfassungsgeschichte Österreichs im Mittelalter. WBG.Viena. 1965, quinta edición); por tanto no corresponde aplicar categorías políticas modernas al mundo antiguo y medieval (cfr. A. M. Hespanha, “A historiografía jurídico-institucional e a ‘morte do estado’”, en Anuario de Filosofía del Derecho I. Madrid. 1986, 219).278 Cfr. los estudios de M. A. Huesbe al respecto, por ejemplo, “La teoría del poder y el derecho a dictar leyes”, en Revista de Estudios Histórico-Jurídicos, 3. (1978) y su reciente Historia de las Ideas Políticas en el Estado Moderno. Ediciones Uni-versitarias de Valparaíso. Valparaíso. 1997, 193 ss.279 Es decir, la noción resucitada de príncipe pasa a ser el sujeto de atributos institucionalizados 280 Diversos estudios sobre la formación del Estado han puesto el acento en la estatalización (que no debe confundirse con el estatismo. Así, W. Naef, Der geschichtliche Aufbau des modernen Staates (1930), recogido en id. Staat und Staatgedanke. Berna. 1935 (trad. castellana 1947); J. A. Maravall, Estado moderno y mentalidad social, 2 vols., Madrid. 1972, especialmente I, 215; M. García-Pelayo, “Hacia el surgimiento histórico del Estado Moderno”, en id. Idea de la política y otros escritos.

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ralelo del Estado y la estatalización de la vida280 . En la época contemporánea, esta organización alcanza una amplitud inédita, que coincide con su crisis, hasta el punto que no parece capaz de asegurar las funciones que todos están de acuerdo en reconocerle, como es la seguridad interna281 . El Estado, recar-gado de una multitud de tareas, parece hoy demasiado grande y costoso para satisfacer las necesidades más humanas. Se advierte, además, que otros pue-den ocuparse de ellas mucho mejor que él. En consecuencia, se potencian formas de organización regional, por sectores e intereses, y se rechaza toda uniformidad impuesta desde arriba. Al mismo tiempo, la escala internacional de muchos problemas hace que el Estado se quede demasiado pequeño para resolverlos, y que sean otro tipo de organizaciones las encargadas de hacerlo. Esto no es tarea fácil, puesto que estas organizaciones supraestatales carecen de modelos para organizarse, y la tendencia espontánea es reproducir a gran escala el modelo estatal, con una legislación uniforme y producida desde un órgano central, una burocracia considerable, moneda común, etc. Muchos piensan que ese modo de organización no hará más que volver a repetir las causas que originaron la actual crisis estatal.

III. Críticas al Estado de bienestar

Entre las tendencias que durante nuestro siglo se han opuesto al crecimiento desmesurado del aparato estatal, pueden señalarse dos líneas principales, sin perjuicio de las coincidencias que tengan. De una parte, se hallan quienes, siguiendo la tradición liberal más clásica, postulan la necesi-dad de un Estado mínimo. Ya en plena Guerra Mundial advertía Friedrich von Hayek que las democracias occidentales, en su lucha contra los totalita-rismos, corrían el riesgo de aumentar el tamaño y las funciones del Estado y, con esto, reducir la libertad individual en la misma proporción en que crece la organización estatal282 . De otro lado, unos años antes, la doctrina social cristiana había planteado la idea del Estado subsidiario, como alternativa

Madrid. 1973. Por su parte, W. Mayer, “Zur Entstehung des modernen Staatsbegriffs”, en Akademie der Wissenschaften und Literatur, Abhandlungen des Geistes und Sozialwissenschaftlichen Klasse n. 9. Maguncia. 1968, explica la trilogía poder-territorio-población, propia del Estado moderno, como resultado de la estatalización del cuerpo político. H. Schilling, “Stadt und Frühmodernen Territorialstaat. Stadtrepublikanismus versus Fürstensouveranität”, en M. Stolleis (ed.), Verfassungs- und Rechtgeschichtliche Probleme in Frühneuzeitlichen Stadt. Colonia-Viena. 1991, 95 281 Cfr. J. Freund, La Crisis del Estado y otros estudios. Instituto de Ciencia Política de la Universidad de Chile. Santiago. 1982, 13-53282 Cfr. F. A. Hayek, Camino de servidumbre. Alianza. Madrid. 1976, pass.283 Así, Pio XI, Quadragesimo anno, 79-80 y mucho antes, aunque sin utilizar esa terminología, León XIII, Rerum novarum, 26, 38, etc.

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frente a las diversas formas de socialismo, tanto marxista como socialdemó-crata, y al liberalismo extremo283 . La crítica liberal al Estado de bienestar utiliza argumentos de muy diversa índole: epistemológicos, políticos y de utilidad práctica. El Estado centralizado, dice el argumento epistemológico, supone una inteligencia central con una cantidad de información y una capacidad de previsión que exceden con mucho los límites humanos. No es casual, entonces, que ter-mine por ser ineficiente. Desde el punto de vista político, el crecimiento del Estado y su intervención en materia económica, recorta la capacidad de los individuos para decidir y, por tanto, constituye una amenaza en contra de la libertad personal. Por último, desde un punto de vista más práctico, sucede que la probabilidad de que se produzca riqueza, aparezcan inventos que beneficien a la humanidad y se realicen productos y servicios de calidad, es mayor en un régimen de libertad que allí donde la conducta económica de los individuos está predeterminada por el poder central284 . La crítica de inspiración socialcristiana al Estado de bienestar, reco-ge también el argumento de la libertad del individuo, pero tiene un cariz más antropológico, pues se apoya en la idea de dignidad humana y de la prioridad de la persona frente al Estado. Si el Estado se halla al servicio de la persona, entonces no tiene sentido que pretenda suplantarla. Por otra parte, la sociabilidad humana ha dado origen a numerosas organizaciones que se encuentran a medio camino entre el individuo y el Estado. A través de ellas, el hombre potencia sus capacidades y da satisfacción a diversas necesidades. La sociedad entera, entonces, se concibe no como una aglomeración de in-dividuos sino como compuesta por numerosas entidades menores que dan origen a ricas y variadas relaciones285 . Es decir, se trata de una comunidad. El funcionamiento de esta concepción organicista de la sociedad está regulado por el principio de subsidiariedad. En su faz “negativa286” , el principio señalado exige que las socie-dades supraordenadas no tomen sobre sí aquellas tareas que están en con-diciones de realizar las entidades menores. Así se asegura el protagonismo de la sociedad y la libertad de personas y agrupaciones para emprender y llevar a cabo iniciativas de toda índole. Al mismo tiempo, la pertenencia a

284 F. A. Hayek, Los fundamentos de la libertad. Unión Editorial. Madrid. 1975 (2 ed.), 45 ss.285 Sobre el origen y alcance de la contraposición Estado-sociedad: O Brunner, Land und Herrschaft. Grundfragen der ter-ritoriales Verfassungsgeschichte Österreichs im Mittelalter. WBG.Viena. 1965, quinta edición, esp. 115 ss; Th. Schieder, Staat und Gesellschaft im Wandel unserer Zeit. Munich. 1958. Una valiosa síntesis de la cuestión en M. A. Hespanha, Poder e instituicóes na Europa do Antigo regime. Lisboa. 1984, introducción. En nuestro país: B. Bravo, “Sociedad de clases y repre-sentación electoral en Chile, 1860-1924”, en Revista Chilena de derecho 18.1 (1991), 7-25 y la bibliografía que allí se señala.286 La terminología es de A. Millán Puelles, Persona humana y justicia social. Rialp. Madrid. 1976, donde se halla un buen resumen del principio de subsidiariedad, que hemos seguido de cerca.

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estas agrupaciones -organizaciones empresariales, sindicatos, confesiones re-ligiosas, asociaciones deportivas, etc.- lejos de quitar la libertad, asegura a los ciudadanos un ámbito de autonomía frente al poder central y potencia sus posibilidades de acción, al multiplicar sus fuerzas. En el fondo, tras la concep-ción subsidiaria del Estado yace la idea de la limitación de la política: no toda la vida humana es política, de ahí que haya muchos sectores de la misma que están fuera del Estado, y -al mismo tiempo- que no toda política sea estatal. En este sentido, parece muy coherente con el Estado subsidiario el que los ciudadanos decidan quienes ejercen el poder político y tengan la capacidad de cambiarlos en forma pacífica de acuerdo con las leyes que ellos mismos se han dado a través de sus representantes. A diferencia de ciertos liberalismos, en esta concepción los grupos intermedios son vistos como una manifes-tación de aquella sociabilidad que caracteriza al hombre y, por tanto, como un despliegue de su libertad. Así, la energía que mueve la sociedad no viene principalmente de arriba, sino desde la base. La calidad de la vida social de-pende entonces de la cantidad y diversidad de estas agrupaciones, porque en la medida en que éstas sean mayores más riqueza y pluralidad tendrá el bien que se consiga. Por tanto, el logro del bien colectivo -llamado bien común en esta tradición-, no es patrimonio exclusivo del Estado, ni tampoco de los individuos aislados. Esto supone la afirmación de que existe algo así como un bien común para toda la sociedad, cuestión que hoy muchos discuten y trataremos más adelante. Pero el principio de subsidiariedad tiene también una faz positiva, muchas veces olvidada, que se relaciona con la actuación del Estado. En efecto, éste no puede limitarse a no intervenir en materias que caen en la es-fera de acción privada, comunal y regional: sucede que en muchos países los privados, las comunas o regiones no pueden o no quieren tomar sobre sus hombros determinadas iniciativas. En este caso, corresponde al Estado pro-mover las condiciones para que los ciudadanos las lleven a cabo. La misma etimología de la palabra subsidiariedad sugiere la idea de ayuda (subsidium). De aquí derivan dos consecuencias importantes. En primer lugar, no basta para justificar, p. ej., una actividad empresarial del Estado el hecho de que no haya particulares capaces de llevarla a cabo. En estos casos, más que asumirla directamente, debe buscar el Estado otras vías intermedias, como pueden ser determinados incentivos, exenciones tributarias, etc. de modo que ante esas condiciones más favorables los particulares se vean estimulados a intervenir. En segundo lugar, si aún después de haber intentado esas medidas de estí-mulo no hay particulares interesados o capacitados para llevar adelante esas

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tareas, entonces se justifica una intervención estatal. La doctrina ha calificado esta situación como un caso de suplencia, pues se trata de tareas que de por sí pueden ser realizadas por los privados pero que de hecho no son cubiertas por ellos. Como se comprenderá, se trata de una situación excepcional, que exige de la autoridad una especial prudencia para que no se transforme en permanente. Así, para que se vuelva a la normalidad, habrá que adoptar las medidas que sean necesarias para que la sociedad sea capaz de realizar sus tareas, las cuales variarán según los casos. Es fácil comprender que la dimensión que alcanzarán las dos facetas del principio de subsidiariedad depende radicalmente de la sociedad de que se trate y del lugar que ocupen los sectores más calificados y emprendedo-res287 . Esto último es importante, porque a veces se sostiene que en los países menos desarrollados es necesaria per se una mayor intervención estatal, lo cual sólo podría ser acertado en la medida que los cuadros de la burocracia oficial tengan una mejor calificación que los sectores empresariales privados, lo que no siempre se cumple. La importancia del principio de subsidiariedad es análoga, y quizá más significativa desde el punto de vista de la libertad diaria de los individuos, a la del principio de separación de los poderes del Estado288 . Su fundamento antropológico es también más profundo, pues no reside sólo en la eficacia de un ingenioso mecanismo de contrabalance, sino en lo que es el centro de la comunidad política, el hombre y su dignidad, la cual se ve menoscabada si se lo deja en una perpetua minoría de edad, en la que la autoridad pretende realizar por él aquello que el individuo está en condiciones de hacer. Por otra parte, la inobservancia del principio de subsidiariedad, además de ser un atropello del gobierno a la comunidad, produce una indolencia en las fuerzas sociales, un aletargamiento de valiosas energías, que quedan atrofiadas por su desuso. La experiencia de aquellos países que han pasado de una economía centralmente planificada a una que tiene su centro en las decisiones indivi-duales muestra que tan pronto se deja espacio a la libertad surgen iniciativas insospechadas y fuerzas de enorme creatividad. Al cumplir con el principio de subsidiariedad, el Estado se pone en condiciones, además, de concentrar y especializar sus recursos materiales y humanos en aquellas tareas que sólo él está en condiciones de realizar y

287 También puede aplicarse a niveles muy distintos, como por ejemplo en las organizaciones supraestatales: P. L. Weihnacht, “Aktive und passive Subsidiarität: Prinzipien europäischer Gemeinschaftsbildung”, en Aus Politik und Zeitgeschichte, B 3-4/95. (1995), 33-39288 Cfr. A. Susterhenn, “Das Subsidiaritätsprinzip als Grundlage der vertikalen Gewaltenteilung”, en AA. VV. Festsch. Hans Nawiasky. Munich. 1956, 141-155

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que en la actualidad no suele ejecutar adecuadamente. Es muy posible que el “Estado guardián” del liberalismo sea insuficiente, pero no cabe duda de que lo mínimo que se puede pedir a un Estado es que sea buen guardián, es decir, que proteja a los ciudadanos de la violencia interna, previniendo y sancionando el delito289 . Si ni siquiera lleva a cabo esa tarea, entonces no está cumpliendo su función. Dicho en otras palabras: no parece razonable que el Estado asuma nuevas funciones allí donde no está en condiciones de cumplir con las que indiscutiblemente debe realizar.

IV. Estado y educación

La labor del Estado en diversos campos debe ajustarse a ciertos principios fundamentales, muchos de los cuales están recogidos en los tex-tos internacionales y constitucionales sobre derechos humanos. Entre estos principios está el de igualdad, que prohibe las discriminaciones arbitrarias. Es evidente que este criterio de igualdad adquiere especial significación en aquellos campos en que intervienen tanto el Estado como los particulares290 . Uno de ellos es la educación, cuya importancia justifica un tratamiento un poco más detenido. En principio, los primeros educadores son los padres. Esto es así tan-to por la razón de subsidiariedad dada más arriba, como porque la educación se vincula con la formación de la personalidad, tarea que requiere un espe-cial cuidado, atención y cercanía respecto del educando. Sin embargo, por razones explicables, los padres no están en condiciones de dar directamente los aspectos instructivos de la educación, de ahí que recurran a personas especializadas, no para que los reemplacen, sino para que complementen su tarea en los aspectos más técnicos de la misma. La vinculación entre educa-ción y paternidad se cumple más acabadamente allí donde los propios padres dan origen a centros educativos, para asegurar que sus hijos recibirán una formación coherente con sus convicciones. Sin embargo, en muchos lugares sucede que la posibilidad de iniciar centros educativos o de acceder a la edu-cación privada queda limitada a los ciudadanos que tienen los medios eco-nómicos para hacerlo, mientras que el resto se ve obligado a acudir a centros estatales en cuya dirección no puede influir y cuyos programas de estudio muchas veces están influidos por la postura ideológica del gobernante de

289 Quizá sería mejor utilizar la expresión “estado judicial”, más acorde con la tradición indiana.290 En este campo, como en otros, la actividad estatal tiene un carácter de suplencia: no debe ser nunca una suplantación. Los particulares, en cambio, actúan por derecho propio. De ahí que las condiciones para uno y otros deben ser al menos iguales y no corresponde discriminar en favor de la enseñanza estatal.

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turno, que no necesariamente refleja la de todos los ciudadanos. Se hace necesario entonces que, allí donde coexistan educación privada y estatal, no sean razones económicas las que lleven a los padres a decidir entre una y otra. Esto se logra en la mejor medida allí donde el Es-tado subsidia también los centros privados de enseñanza -cumplidas ciertas condiciones- o, mejor aún, instaura un sistema semejante al “cheque escolar” que permite que el interesado elija el lugar de estudio de sus hijos sin corta-pisas significativas de índole económica. De lo contrario tendremos que los ciudadanos que envían a sus hijos a centros privados de enseñanza están pa-gando doblemente por la educación de los mismos, pues no debe olvidarse que el Estado obtiene sus recursos por la vía impositiva (en este sentido, no es correcto decir que la educación estatal sea gratuita, ninguna puede serlo: lo que cambia es la forma de financiamiento). El hecho de que en muchos países la educación privada sea superior a la estatal, lejos de constituir un argumento en contra de un supuesto elitismo de la primera, muestra que el hecho de que buena parte de los ciudadanos deba recurrir forzosamente a centros educativos estatales da lugar a un mecanismo que perpetúa las desi-gualdades291 . Análogos criterios pueden aplicarse al campo de la educación superior. ¿Bajo qué condiciones se justifica la intervención del Estado en el terreno educativo? En primer lugar, a través de ciertos mecanismos de con-trol, cuya naturaleza e identidad variará según las circunstancias; en segundo término, hay razones de prudencia que aconsejan no producir un cambio radical en una materia tan delicada, sino más bien proceder con gradualidad, en aquellos países, como Chile, en donde existe una red amplia de centros estatales de enseñanza. Con todo, para que la educación estatal sea legítima debe reunir ciertas condiciones, aparte del ya mencionado principio de la igualdad, que prohibe hacerla objeto de privilegios especiales. Así, en esos centros de enseñanza debe asegurarse la presencia de la comunidad, es decir, la posibilidad de que los padres influyan en la marcha de los mismos. Esto incluye la posibilidad de que estos establecimientos presenten orientaciones

291 Como se sabe, hay otros países en donde la educación estatal es de calidad, especialmente en Europa. En estos casos no cabe aplicar el argumento anterior, aunque sí pueden ser válidas las razones doctrinales que ya se han dado. Hay que tener en cuenta, de todos modos, que se trata de una materia en donde no parece conveniente hacer cambios abruptos, atendido el riesgo que significa para las generaciones futuras la alteración de un sistema que cumple con holgura con ciertos objetivos mínimos. Quizá resulte más prudente dirigir las reformas en estos casos a fomentar la participación de los diversos actores del proceso educativo (especialmente los padres) en la gestión y orientación de los centros docentes.292 Algunos pretenden solucionar este problema señalando que los profesores de la educación estatal mantienen posturas ideológicas muy diversas, con lo que se asegura el pluralismo. Sin embargo, este criterio no parece fácilmente aplicable a la educación básica y media: de una parte, porque significa en el hecho una restricción del derecho de los padres a determinar la orientación de la educación que reciben sus hijos; de otra, porque las diversas materias requieren de una cierta integración en una visión del hombre, que es en definitiva el objeto último y razón del estudio, por lo que el supuesto pluralismo más bien desembocará en una información heterogénea, de discutible calidad o -lo que sucede muchas veces- será “integrada” en una visión relativista y escéptica, disfrazada de neutralidad, como lo ha mostrado C. S. Lewis en su The Abolition of Man. Oxford Unversity Press. Oxford. 1943, 17-18 y pass.

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doctrinales diferentes y no, bajo pretexto de neutralidad, únicamente la di-rección filosófica que le imponga el respectivo Ministerio292 . Entre las materias cuya adecuada solución requiere tener presente el principio de subsidiariedad, está la cuestión de la enseñanza religiosa en las escuelas públicas. Algunos sostienen que ella significa una discriminación en favor de ciertos grupos religiosos y una violación del principio de separaci-ón293 entre Iglesia y Estado. Sin embargo, debe tenerse presente que lo que los textos constitucionales y las declaraciones de derechos vigentes aseguran no es -al menos en primer lugar- la aludida separación , sino más bien el principio de la libertad religiosa. Esta libertad -como muchas otras- no se hará efectiva sin una labor positiva de los Estados en orden a remover los obstáculos que la disminuyen. Si se considera razonable que los colegios en-señen deporte o química es porque se piensa que esas materias constituyen factores relevantes en la formación de la persona y, además, porque se con-sidera que los padres están interesados en que sus hijos reciban instrucción en dichas materias. La llamada neutralidad religiosa, en cambio, supone al menos una de dos cosas: i) que la religión es un factor irrelevante en la for-mación de la persona, o, ii), que los padres carecen absolutamente de interés en que sus hijos reciban esa enseñanza en la escuela. No es necesario un análisis extenso para advertir la fragilidad de ambos supuestos 294.

V. Iniciativas compartidas: medio ambiente, pobreza, horarios de tra-bajo

Lo dicho hasta ahora no debe llevar a entender que la acción del Estado y la de los individuos tienen carácter excluyente. Muy por el con-trario, la experiencia de los últimos años parece mostrar que la retirada del poder estatal ha dejado el campo libre a numerosas iniciativas privadas. Pero, a la vez, éstas no pueden cumplir adecuadamente sus objetivos sin el apoyo del poder central. Dos campos son especialmente significativos para ilustrar la necesidad de una actuación conjunta: la defensa del medio ambiente y la lucha contra la extrema pobreza295 . Es notorio que la difusión de la sensibili-dad ecológica en los diversos países no se produjo por una acción concertada de los organismos estatales, sino de múltiples iniciativas de diversos grupos

293 Buena parte de los Estados contemporáneos son confesionales. Así el Reino Unido, los países nórdicos e islámicos, etc.294 El argumento de que la enseñanza religiosa puede impartirse de manera privada no parece válido, pues sería también aplicable para excluir muchas otras materias de la educación estatal.295 Otro tanto cabría decir de las tareas de investigación científica.

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de ciudadanos, las cuales, con el correr del tiempo, fueron en alguna medida incorporadas a los diversos programas políticos. Hay niveles más inmediatos en la protección del medio ambiente que quedan fuera de las posibilidades de control de los órganos oficiales y sería un error pretender resolver todos los aspectos de problemas tan complejos como los de la protección de la naturaleza centralizando las iniciativas en el aparato estatal. Sin embargo, parece insustituible su labor de coordinación, de elaboración de normas y sanción por su incumplimiento. En el caso de la extrema pobreza es, si cabe, aún mas necesaria la intervención de los sectores privados en su solución. Las causas de la misma son, con toda probabilidad, múltiples y no reducibles al solo aspecto económico296 . De ahí la necesidad de una acción muy dife-renciada, que tenga además la ventaja de la cercanía personal respecto de los afectados297 . Otro campo donde cabe intentar interesantes reformas desde la base es el de los horarios de trabajo. El neoliberalismo ha promovido una flexi-bilización de las relaciones laborales, lo que se traduce en facilitar a los em-presarios la contratación y despido de trabajadores, la posibilidad de acordar las remuneraciones por mutuo consenso, y de determinar contractualmente los horarios de trabajo. Este sistema tiene algunas ventajas importantes, es-pecialmente porque facilita la incorporación al mercado laboral de personas jóvenes sin especial preparación. Sabido es que estos grupos son los primeros en verse afectados por las alzas artificiales de salarios, que llevan a reducir el empleo de mano de obra y, en consecuencia, influyen en un aumento del desempleo. Sin embargo, la forma en que se lleva a cabo la competencia eco-nómica, especialmente en los sectores vinculados al comercio, se ha tradu-cido en la práctica en una desmesurada extensión de las jornadas de trabajo en días que tradicionalmente estaban destinados al descanso. No basta con otorgar, por ejemplo, días diferentes de reposo, distintos del domingo. Los ciudadanos que realizan esas labores normalmente han formado una familia y -aún prescindiendo de otras consideraciones- resulta claro que las relacio-nes familiares resultan alteradas cuando el padre o la madre deben permane-cer fuera del hogar precisamente en aquellos momentos en que es más fácil y

296 Un factor importante para salir de la pobreza es la estabilidad familiar: cfr. I. Irarrázaval, “Habilitación, pobreza y política social”, en Estudios Públicos, 59. (1995), 99-165, especialmente 159-161297 Además, al menos en el caso chileno, el manejo de recursos por parte de organizaciones no estatales (Mi Casa, Hogar de Cristo, Las Rosas, etc.) para atender las situaciones de marginalidad ha mostrado ser particularmente eficiente (cfr. C. Larroulet (ed.), Las tareas de hoy. Políticas sociales y economía para una sociedad libre. Zig-Zag. Santiago de Chile. 1994 y también id. (ed.) Soluciones privadas a problemas públicos. Instituto Libertad y Desarrollo. Santiago de Chile. 1991

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necesaria la convivencia con el resto de su familia. Una situación así es grave y sus repercusiones afectan, tarde o temprano, a toda la sociedad. No son los mismos los índices de fracaso escolar, de drogadicción o de violencia juvenil en aquellos hogares en donde los padres han podido tener una presencia activa que en aquéllos en donde esa convivencia se ha visto dificultada. Un medio para resguardar los intereses de la familia es promover una regulación legislativa más estricta del trabajo en los fines de semana. Sin embargo, da la impresión de que no se han explorado otras vías, como la de fomentar un consumo solidario. Hoy son muchos los ciudadanos que prefieren pagar un poco más y adquirir productos que no vayan en perjuicio del medio ambiente. Esto lo hacen en forma voluntaria, sin necesidad de coerciones legales, sino movidos sólo por una actitud responsable y solidaria. Esta tendencia ha ido repercutiendo sensiblemente en los productores, que han descubierto que los productos ecológicos son compatibles con el be-neficio económico. ¿No cabría hacer lo mismo con los hábitos de compra?, ¿no cabría preferir aquellos centros comerciales que mantienen sus puer-tas cerradas los días domingo? No parece excesivamente difícil hacer ver a nuestros conciudadanos que detrás de un dependiente o una cajera que nos atiende con una sonrisa cansada un domingo en la tarde hay una familia que está privada de su padre o madre. Y que esa situación es tan fácil de revertir como el proponernos ser más ordenados en nuestros hábitos de compra. El consumo solidario, entonces, lleva a preferir no necesariamente los precios más bajos, sino los lugares más humanos; a tener en cuenta que las relaciones comerciales se realizan entre personas. En suma, se trata de ejercer con res-ponsabilidad el poder económico que nos entrega el mercado. ¡No hace falta pedir la fuerza del Estado para producir aquellos cambios que quizá están al alcance de nuestra mano!

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VI. El movimiento privatizador

Tras la Gran Guerra y la crisis de 1929, se precipitó la actuación del Estado en la economía. En muchas naciones, su poder se acrecentó mediante un proceso expropiatorio de bienes de producción que hasta ese momento estaban en manos privadas. Paralelamente, este crecimiento del aparato estatal debió apoyarse en un aumento de la carga tributaria sobre el sector privado, el cual no sólo vio restringido su campo de acción -o al menos tuvo que enfrentar la competencia de empresas estatales cuyo origen y funcionamiento no estaba regido por las reglas del mercado- sino también mermadas sus fuerzas económicas.

El espíritu estatista fue alimentado por una serie de factores ideológicos y psicológicos que no es del caso analizar aquí. Dentro de ellos está un cierto nacionalismo que mira con desconfianza la inversión extranjera, y la creencia de que las empresas del Estado pertenecen y sirven a todos los ciudadanos. Esto último no es necesariamente así. No hay que creer que las empresas estatales por el sólo hecho de serlo gozan de una presunción de servicio a la comunidad, pues bien podía suceder que se transformen en centros de poder, manejados por funcionarios que no tengan en cuenta la subjetividad de la sociedad1. Por tanto, independientemente del régimen de propiedad de los medios de producción, debe atenderse a que ellos están destinados al servicio de la persona, centro último del quehacer económico.

Es posible que la justificación ética del proceso privatizador en las naciones en vías de desarrollo pueda buscarse no sólo en la dignidad de la persona humana, que mueve a que se le reconozca su iniciativa y protagonismo en la vida social, sino también en la necesidad de contar con importantes recursos para enfrentar la solución de la cuestión de la extrema pobreza. La lucha contra la miseria incluye cuantiosas inversiones en educación, salud, vivienda y otros bienes fundamentales. El financiamiento de las mismas debe salir de fuentes determinadas que, fundamentalmente, se reducen a un aumento de los impuestos, a la obtención de créditos o a la enajenación de bienes de producción de gran tamaño y valor que están en poder estatal y podrían ser adquiridos por el sector privado. Si es verdad que “los pobres no pueden esperar” (y ciertamente lo es), se hace necesario tomar una decisión al respecto. El aumento de la carga tributaria es una vía posible, pero debe ser utilizada con moderación, por las consecuencias

1 Esto fue puesto de relieve de modo muy especial por Juan Pablo II en la Laborem Exercens.(nn.14-15)

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negativas que traerá en la creación de riqueza y fuentes de trabajo por parte de los sectores privados2. El recurso a los créditos externos, por propia naturaleza, está limitado, además de que el destino de los mismos no será económicamente rentable, al menos en una primera etapa. En todo caso, los caminos señalados no parecen suficientes para conseguir una cantidad de recursos como los que se requieren para afrontar los aspectos económicos de la erradicación de la extrema pobreza. A menos que se planteen otras formas, parece que el único camino para conseguir recursos de esa envergadura es el de privatizar empresas estatales.

No hay que olvidar que la función social de la propiedad también afecta a las empresas estatales. Sobre la propiedad estatal también pesa, y muy especialmente, una hipoteca social. Y si por razones de utilidad social puede legitimarse, cumplidas ciertas condiciones, la privación de un bien que estaba en dominio privado, así también la imperiosa necesidad de hacer frente a la extrema pobreza puede ser un motivo más que razonable para proceder a la enajenación de muchas empresas estatales. El argumento de que es necesario defender los bienes “de todos” —supuesto que lo sean3— no puede ser entendido de modo tal que signifique en la práctica una dilación de las medidas que podrían paliar situaciones lesivas de la dignidad humana.

VII. Estado y derechos fundamentales

La tradición moderna de los derechos del hombre los entiende como derechos del individuo contra el Estado4. En efecto, el poder que adquirió esta institución con el correr de la Edad Moderna hizo que muy pronto se la percibiera como la principal amenaza en contra de la libertad de las personas y sus derechos. Basta examinar las primeras declaraciones de derechos del hombre para ver que los destinatarios de las obligaciones que llevan implícitas son el Estado y los gobiernos, y que, en general, se

2 A propósito del caso chileno, Mamalakis ha mostrado que en nuestro país la acción del estado en la economía mejoró la situación de la clase media, pero no la del proletariado, cfr. M. Mamalakis, “The Notion of the State in Chile. Six Topic”, en Historia 22 (1987), 107-1153 Detrás de estas materias hay interesantes problemas jurídicos y políticos. Un ejemplo: los servicios públicos, que son actividades de gran importancia social que están abiertas al público, pueden llevarse adelante tanto con bienes privados como con bienes estatales. Esto no ofrece dificultades a quien tenga presente que lo público es diferente a lo estatal. Sin embargo, en buena parte de la doctrina y legislación vigentes en décadas pasadas se entendió a los conceptos de ‘servicio público’, ‘obra pública’ y ‘bienes públicos’ con una perspectiva estatista, que hacía de lo público algo ajeno a la iniciativa y posibilidad privadas. Quizá en este terreno, más que distinguir entre lo ‘público’ y lo ‘privado’ (estatal), habrá que diferenciar entre lo ‘privado’ (de uno), lo ‘público’ (de todos) y lo ‘estatal’ (del Estado).4 Cfr. A. C. Pereira, Lecciones de teoría constitucional. Edersa. Madrid. 1987, cap. X. Téngase presente que la protec-ción de las personas se ha enfocado tanto desde el punto de vista de los bienes (vida, honra, propiedad, etc) como de los derechos subjetivos. El primero alcanzó un notable desarrollo en el derecho indiano; el segundo, en cambio es propio de la modernidad de cuño racionalista (cfr. B. Bravo, Poder y respeto a las personas en Iberoamérica. Siglos XVI a XX. Ediciones de la Universidad Católica de Valparaíso. Valparaíso. 1989).

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trata de imponerle al Estado el deber de no actuar en ciertos campos5. Sólo en nuestro siglo, con los llamados derechos económicos y sociales se exige en las declaraciones una intervención por parte del Estado, en orden a hacer posible el acceso de grandes masas de la población a ciertos bienes fundamentales, como la educación y la vivienda. Sin embargo, en el campo de los derechos civiles y políticos, se sigue pensando que esas prerrogativas del individuo están dirigidas a ponerlo a resguardo de intromisiones indebidas por parte de la autoridad en su vida privada.

A pesar de que el Estado puede constituirse en un agente perturbador del ejercicio de los derechos fundamentales, no debe perderse de vista que en la actualidad gran parte de las amenazas a la paz ciudadana no vienen de parte de los gobernantes, sino de individuos privados, como es el caso del terrorismo y la delincuencia. Por diversas razones, las grandes ciudades de las modernas sociedades de masas son especialmente conflictivas, de manera que una prescindencia de la potestad estatal puede desembocar en anarquía.

En los últimas décadas se ha abierto paso en Occidente una tendencia despenalizadora, que lleva a dejar impunes conductas que hasta entonces se consideraban delictivas. Con esta despenalización, muchas veces se pretende ampliar la libertad de los individuos y reforzar su esfera privada frente a intervenciones contraloras y punitivas de la potestad pública. Sin embargo, no resulta claro que efectivamente la tendencia despenalizadora así entendida signifique un crecimiento de la libertad individual. Hace ya tiempo se puso de relieve cómo en la sociedad coexisten, en una especie de ecuación inversamente proporcional, poderes represivos y opresivos, de modo que la disminución de los primeros lleva a un aumento de los segundos. Cuando se despenaliza, lo que muchas veces se está haciendo es aumentar el poder de disposición no de los individuos sobre sí mismos, sino de los más fuertes respecto de los más débiles. Así, la sola disminución de los poderes represivos, mediante la despenalización, no constituye un crecimiento de libertad si no se cuida que no vaya seguida de un crecimiento paralelo de los poderes opresivos que ejercen unos hombres sobre otros, basados en el predominio de la fuerza.

En la actualidad, el ejercicio del poder político busca apoyar su legitimidad en la teoría de los derechos humanos. Como ya lo decía la Declaración de Virginia, la base y fundamento de un gobierno es el resguardo

5 Los derechos humanos clásicos son, por lo general, “derechos negativos”: se satisfacen con una abstención de parte del Estado y del resto de los ciudadanos (sobre el paso de esta concepción a la que está detrás del Estado Providencia: Cfr. A. C. Pereira, Lecciones... 324-333).

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de los derechos fundamentales6. Al hacerse esta afirmación, se está, por una parte relativizando la noción moderna de soberanía, en términos de que el poder empieza a estar limitado no ya por el mero contrabalance de sus órganos, sino por la existencia de fronteras externas al mismo, a saber, la dignidad humana y sus prerrogativas o derechos. Con todo, no debe creerse que la teoría de los derechos humanos y los principios que recogen los mismos constituyen criterios neutros, de aplicación indisputada. Detrás de toda discusión acerca de derechos fundamentales se esconde una determinada concepción del hombre, a la luz de la cual se interpreta su libertad y sus pretensiones legítimas. En las discusiones contemporáneas las partes suelen invocar para justificar su actitud algún derecho humano (p. ej., en el caso del aborto, derecho a la vida del no nacido vs. derecho de la madre a disponer de su propio cuerpo). A menos de que se disponga de una determinada noción del hombre y la sociedad, no será posible solucionar estos conflictos, estableciendo los márgenes de cada derecho y distinguiendo los auténticos derechos fundamentales de lo que no son más que aspiraciones individuales, muchas veces ilegítimas. La pretensión de presentar los problemas de derechos humanos en forma absolutamente neutral puede esconder en definitiva un interés ideológico y llevar a que los problemas se resuelvan de igual forma a como se resolverían sin haber teoría alguna de los derechos humanos: mediante la fuerza física, política o económica7. Esto nos permite llegar al siguiente tema, el del Estado y los valores.

VIII. El Estado ante la sociedad pluralista

Desde hace siglos subsiste la discusión acerca de la finalidad del Estado, es decir, si el Estado tiene una finalidad propia o es simplemente un instrumento de organizar el poder. En todo caso, cualquiera sea la respuesta teórica al problema, lo cierto es que los gobernantes se ven enfrentados a la decisión de en qué dirección ejercerán el poder de que disponen, o sea, a quién protegerán, con qué criterios distribuirán las cargas y beneficios de la vida social, qué conductas injustas penalizarán, etc. Aún en el caso 6 Cfr. Preámbulo (en: J. Hervada-J. M. Zumaquero, Textos internacionales de derechos humanos.. Eunsa. Pamplona. 1978, n. 1)7 Uno de los mayores poderes de que se puede disponer es el de determinar quienes son titulares de derechos humanos y cuáles son los derechos que deben ser socialmente reconocidos. Previendo este peligro, el Art. 6 de la Declaración Universal de los Derechos Humanos establece que: “Todo ser humano tiene el derecho a que se le reconozca en todas partes su personalidad jurídica”. Sin embargo, en la ya citada discusión sobre el aborto se observa que estamos aún lejos de la equiparación entre individuo de la especie humana y persona (es decir, titular de derechos). No debe perderse de vista el poder del intérprete en estas delicadas cuestiones.

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de aquellos que dicen que el Estado tiene una finalidad propia, a saber, la búsqueda del bien común o cualquier otra meta semejante, sucede que en la sociedad actual coexisten grupos sociales que mantienen concepciones diametralmente opuestas acerca del cometido de la potestad pública y, en definitiva, del ideal de sociedad que se persigue y de la identidad del hombre que la conforma. A primera vista, lo dicho serviría de argumento para reducir aún más el tamaño y la intervención del Estado. En efecto, si no estamos de acuerdo en para qué sirve el Estado, cabe afirmar que lo más sensato sería reducir sus dimensiones a aquéllas que todos estamos de acuerdo que debe cumplir. Sin embargo, lo dicho más arriba en el sentido de que una menor intervención estatal en ciertos campos puede llevar a la opresión de unos hombres por otros exige ir con cuidado en estas afirmaciones.

Es probable que a estas alturas el lector esté albergando una severa crítica a la coherencia de lo que venimos exponiendo. En efecto, al comienzo de este trabajo, cuando se trataba de los temas económicos, se proponía la reducción del Estado, la libre iniciativa y la privatización de las empresas estatales. Sin embargo, en otros campos, como el control de la criminalidad, se propone un papel activo de la potestad pública. ¿Qué justificación tiene este doble patrón? ¿No sería más razonable tratar ambos tipos de materias con iguales principios, ya sea liberalizando ya aumentando la intervención estatal?

La objeción es importante y bien puede ser aplicada a ciertas políticas neoconservadoras que son liberales en lo económico y autoritarias en lo político, sin ocuparse de explicar las razones de esa diversidad. Pensamos que no se trata en realidad de patrones diversos en esta concepción societaria que venimos exponiendo. Esto puede ser comprendido con facilidad si se trae a colación el ya mencionado principio de subsidiariedad. En efecto, si se propone un papel activo del Estado en el control de la criminalidad, es porque -salvo en circunstancias excepcionales8- no está al alcance de los individuos la defensa inmediata de su integridad física e incluso de sus derechos sin caer en una situación de auto tutela que hace imposible la vida social. El Estado no puede replegarse de la seguridad ciudadana sin dejar indefensos a los más débiles, a menos que se desee la reaparición de formas de autoprotección o autodefensa, cosa que en muchas partes está sucediendo. Otro tanto sucede con la administración de la justicia que,

8 Es el caso de la legítima defensa, en el cual, por razones de hecho, la potestad pública no está en condiciones de amparar en ese momento a la persona agredida. Allí la ley autoriza, entonces, el uso de la fuerza para defenderse, cumpliendo ciertas condiciones.

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por definición, debe quedar siempre en manos de un tercero: un árbitro, elegido libremente por las partes, o un Tribunal, allí donde las partes no están de acuerdo en recurrir a un árbitro privado o se trata de un litigio sobre bienes que están más allá del poder de disposición de los individuos.

La necesidad de intervención del Estado para proteger a los más débiles tiene aplicación dondequiera que éstos no cuenten con las condiciones que les permitan participar en las relaciones sociales en un plano de razonable igualdad y mantener seguros su persona y bienes. Esto se aplica también en el campo económico. La posibilidad de explotación económica, por desgracia, está presente en todos los sistemas económicos. La diferencia está en que, en un régimen de propiedad estatal de los bienes de producción, el Estado es juez y parte, mientras que en un sistema de economía libre se favorece la imparcialidad de la potestad pública. Las manifestaciones de esta intervención del Estado, fundada en la mencionada faz activa del principio de subsidiariedad son variadas y abarcan desde la legislación antimonopolios hasta el establecimiento de ciertas reglas mínimas en materia de horario laboral. Con todo, debe procurarse que la acción protectora del Gobierno no se transforme en un pretexto para el intervencionismo. En este sentido, parece ser que el instrumento para realizar dicha protección debe ser la ley o los jueces, más que la discrecionalidad administrativa. Es decir, en el campo económico la acción estatal no coincide con una mayor actividad del poder ejecutivo, sino más bien de las funciones legislativa y judicial.

Probablemente, una de las mayores dificultades que enfrenta el Estado en la actualidad sea la de coexistir con una sociedad que no sólo es pluralista, sino que presenta una auténtica heterogeneidad en materia de aspiraciones de vida y concepciones morales. Los grandes teóricos de la democracia liberal, como Alexis de Tocqueville, advirtieron acerca de la necesidad de un sustrato moral común a los ciudadanos de las sociedades democráticas9. Sin ese fondo de virtudes cívicas se hace enormemente difícil el que los hombres se gobiernen a sí mismos y, lo que es peor, sin esas barreras de autocontención se hace una posibilidad muy cercana la dictadura de las mayorías sobre las minorías. En realidad, este no es un problema exclusivo de las democracias. Cualquier sistema político se hallará en dificultades si a los gobernantes y gobernados les falta aquel estilo de conducta que fomenta la ecuanimidad, el desprendimiento, la disposición a escuchar y otros hábitos semejantes10. Pero de hecho hoy, muchas veces, o falta ese 9 Cfr. De la democracia en América II, 910 No parece correcto atribuir a la democracia determinados defectos que son males de la época. Problemas como la cor-rupción o el aborto también se dan en países no democráticos, como China popular. Cosa distinta es que cierto democratismo ingenuo haya pensado que las solas reglas democráticas iban a ser suficientes para asegurar ciertos derechos o bienes fundamentales. No es esta,

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fundamento ético o -lo que quizá es más complicado- no hay un común reconocimiento acerca de lo bueno y lo malo, lo que incluye una falta de acuerdo acerca de lo que debe ser permitido y prohibido en la sociedad.

Algunos autores liberales, siguiendo las ideas ilustradas, piensan que la heterogeneidad de las concepciones morales no plantea un problema tan grave como podría parecer. Se pensaba en el siglo XVIII que era posible gobernar incluso una república de demonios, con tal de que estos fuesen razonables. Así, el liberalismo procura crear ciertas reglas mínimas del juego, sin intervenir en la estrategia que cada uno de los jugadores seguirá dentro de su ámbito propio. Pero este modo de pensar tiene importantes limitaciones. En primer lugar, las estructuras políticas, incluidas las de gobierno, funcionan sobre la base de personas, y los más refinados mecanismos de control difícilmente tendrán eficacia permanente si en los agentes no existen esos controles éticos. La república de los demonios razonables pone una condición muy difícil de lograr, a saber, que esa racionalidad será permanente y, además, que no será empleada de manera puramente calculadora. Se dice que los individuos se comportarán en forma correcta porque de esa manera los otros harán lo mismo y se obtendrá un beneficio mayor -a saber, la subsistencia de la sociedad- que si cada uno hace lo que le plazca. Sin embargo, siempre cabrá el que alguien busque aprovechar el buen comportamiento de los otros sin hacer él lo mismo por su parte. Es el antiguo problema del polizón, que viaja sin pagar. Es cierto que si nadie paga no habrá viaje, pero bien puede suceder que la mayoría pague y, en ese caso, la posición del polizón parece tener todas las ventajas y ninguno de los inconvenientes.

La pretensión liberal de que sólo se requiere en una sociedad democrática definir claramente las reglas del juego, dejando entregada al gusto personal la decisión acerca de la estrategia que se seguirá, es válida sólo parcialmente: no tiene en cuenta que ciertas estrategias, al difundirse, pueden terminar arruinando el juego mismo. La razón de este olvido es sencilla, y deriva del hecho de que el liberalismo cuenta inconscientemente con que un grupo considerable de los ciudadanos no actuará al filo de la legalidad, sino que dispone de resortes morales de autorregulación que lo llevan a no aprovecharse de todas las posibilidades que le brinda el juego. Una sociedad que funcione a un nivel puramente legal difícilmente podrá subsistir. Ahora bien, a posibilidad de que existan muchas personas cuya moralidad es más estricta que su legalidad y, por tanto, no están dispuestas a sin embargo, la convicción que trasunta la Declaración de Virginia, por citar uno de los textos fundacionales de la democracia moderna y contemporánea.

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hacer todo lo que la ley permite, está dada históricamente en Occidente por la pervivencia de las ideas de la tradición judeocristiana. Pero en la medida en que disminuya el apego de las personas por esas ideas éticas y religiosas, el liberalismo carecerá de uno de los supuestos en los que implícitamente se fundaba. El ideario político de la Ilustración funcionaba sobre una base moral implícita que él no había creado y que, con el correr del tiempo fue destruyendo. Hoy se ve que en ese pensamiento autosuficiente había una gran dosis de candor.

Asimismo, cuando se dice que cada uno puede hacer lo que le parezca en su ámbito personal, y que el Estado no puede intervenir allí, se está suponiendo que las esferas privadas están delimitadas, pero ¿acudiendo a qué criterios? A menos que se piense que el estado de cosas existente es perfectamente justo (cosa que pondría a los individuos menos favorecidos en una situación difícil), o que a todos le corresponde exactamente lo mismo, sucede que toda repartición requiere de algunos criterios de distribución, que distan de ser neutrales. Esto es válido incluso para los casos en que se adopten fórmulas igualitaristas. En definitiva, hay que reconocer que la fragmentación de las ideas éticas que se observa en muchas sociedades occidentales constituye una seria dificultad para el funcionamiento y legitimidad del Estado. También vale la pena recordar que la delimitación misma entre lo público y lo privado sólo se da en ciertas sociedades11 y dentro de ellas cambia a lo largo de la historia. Además, los criterios para realizar tal distinción no son neutrales. Algo tan grave desde el punto de vista de nuestro sistema penal actual como la auto defensa (Fehde), era en otras épocas una práctica normal. La pena de los delitos, que hoy la impone el Estado no siempre fue pública12. Los caminos y puentes han sido privados o públicos según las épocas. La beneficencia y la educación fueron siempre privadas, hasta que en el siglo XIX se hicieron estatales13. La razón de la diferencia de tratamiento está en el traslado de esa actividad desde la órbita privada a la pública, que, a su vez, depende de las concepciones filosófico políticas que están detrás del surgimiento del Estado territorial.

Dice Aristóteles que la polis surgió por las necesidades de la vida pero subsiste para vivir bien14, porque no sólo consiste en una organización 11 Se comete un eurocentrismo al proyectar la distinción entre lo público y lo privado a todos los tiempos y lugares. Esta distinción es propia del derecho común y tiene antecedentes romanos.12 Hasta hoy subsiste la distinción entre delitos de acción pública y privada, pero ella se aplica sólo a la acción y no a la pena.13 Los ejemplos podrían multiplicarse: el matrimonio está situado en el centro mismo de las Siete Partidas porque sin él nada subsiste (cfr. Cuarta Partida, Prólogo). Aunque hoy algunos lo consideren un hecho privado, en el derecho común, reflejado en las Partidas, era lo más público que cabía imaginar (cfr. B. Bravo, “Vigencia de las Siete Partidas en Chile”, en Revista de Estudios Histórico-Jurídicos 10 (1985), 43-105).14 Pol. I, 2, 1252b 30

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que permite satisfacer las carencias materiales de modo más adecuados que las otras estructuras que la componen, sino que permite una comunicación de bienes más altos, en definitiva, la práctica de la virtud15. Con el Estado bien podría suceder algo semejante, en el sentido que es una organización que permite cubrir necesidades elementales como la defensa, pero también hace posible el buen funcionamiento del mercado, facilita la constitución de núcleos poblacionales más numerosos y un intercambio que hace que las aspiraciones y necesidades del hombre se vayan refinando y cultivando. Sin embargo, en la medida en que se pierden los objetivos comunes y desaparece la amistad cívica, fruto de la concentración de los individuos en su esfera más inmediata y sensorial -cosa típica de una existencia hedonista- en ese caso se decae a una vida sub-política, en el que los hombres se limitan a coexistir, y no aprovechan los beneficios de la polis. Al no existir una finalidad común, el Estado se transforma en un conjunto de estructuras16. Sólo interesa de las personas que cumplan las funciones sociales que cabe aguardar de ellas, y la autoridad se ocupa simplemente de velar porque exista el espacio suficiente para que cada uno desarrolle su plan de vida personal sin interferencias externas.

Además, muchas veces se desatiende la enorme importancia que desempeña la solidaridad privada en nuestras sociedades. Buena parte de las tareas que hacen nuestra vida más humana son desempeñadas en forma voluntaria, por personas que no están obligadas y no reciben remuneración -o por lo menos una remuneración proporcionada a su esfuerzo- por lo que hacen. Piénsese en las organizaciones del voluntariado en materia de atención a los enfermos u otras personas en situación desmedrada; los bomberos; maestros rurales; o la tarea de las dueñas de casa17. La razón por la que se desatiende esta labor del voluntariado es, como lo ha señalado Llano18, la importancia decisiva que se da en nuestras sociedades a criterios como el dinero, la influencia y el poder, que parecen ser las claves del ascenso social. Puesto que las actividades señaladas no son relevantes en términos de esos criterios, entonces adquieren una escasa consideración, no obstante ser decisivas para la subsistencia y buen funcionamiento del

15 Cfr. Pol. III, 516 El problema de la identificación de las personas con macro-estructuras es muy difícil. En algunos casos históricos se resolvió por la exaltación del nacionalismo, monopolizado por el gobierno de turno, lo que evidentemente es reprochable. No sucede lo mismo con las comunidades intermedias, en las que el hombre se siente fácilmente en lo propio y experimenta un reconocimiento que no puede encontrar en la burocracia estatal.17 Este último tema merecería un estudio especial, a saber, el de la rentabilidad social de tareas que, como la de dueña de casa, tienen enormes consecuencias de largo plazo en la educación de los ciudadanos, la prevención del delito, la formación de adecuados hábitos alimentarios, el apoyo psicológico a los menores en una etapa que resulta decisiva en la constitución de su futura estabilidad emocional, etc.18 Cfr. A. Llano, La nueva sensibilidad. Espasa-Calpe. Madrid. 1988, pass.

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sistema social. Así, cualquier programa de reforma del Estado debe tomar en consideración cuánto depende su éxito del buen funcionamiento de estos factores no políticos.

IX. Descentralización

La discusión acerca del grado de poder de que debe disponer el Estado, se matiza un poco en la medida en que el poder estatal no se hace sinónimo de poder central. En la medida en que, a través de procesos descentralizadores, se traspasan atribuciones desde el órgano central hacia núcleos de índole regional, en donde el contacto con los funcionarios del Estado es más personal y las posibilidades de control social mayores, cabe pensar que la necesidad del poder se hará más visible y la obediencia al mismo más aceptable. En resumen, el poder estatal puede manifestarse no sólo como poder central sino también como poder local19. Parece razonable, entonces, que -en el equilibrio entre ambos- este poder local tenga las mayores competencias que sea posible reconocerle. Esto permite, a su vez, una legítima diversidad entre las diversas regiones y hace que la orientación ideológica del gobierno central no sea tan decisiva para la vida diaria de los ciudadanos, con lo que la lucha política misma pierde conflictividad. La política se traslada a las cuestiones que afectan a la vida diaria de las personas, se hace más concreta.

Si bien el disponer de estructuras estatales de carácter federal podría facilitar un proceso de esa índole, debe tenerse en cuenta que allí donde existe un sistema unitario es posible proceder gradualmente a un traslado de competencias sin alterar los principios básicos del sistema. En cuanto al régimen jurídico, más que pretender legislaciones especiales para las diversas regiones, es suficiente que los tribunales locales de justicia, por la vía de la interpretación, vayan adecuando la ley nacional a las peculiaridades y requerimientos propios de cada lugar. Sí es necesaria, en cambio, una mayor autonomía en materias como la inversión de los fondos públicos, las

19 Hoy es habitual que los administrativistas atribuyan un carácter estatal a las Municipalidades. No sucedía lo mismo con el Estado indiano, que incluia sólo el territorio y los corregimientos. El nivel local o municipal, en cambio, era extraño al Estado. En esto se aprecia la diferencia entre la visión judicial del gobierno, predominante el la época indiana y aquella que es propia de la Ilustración. La primera es orgánica y comprende al reino como compuesto de partes que tienen una competencia propia y una autono-mía que hoy sería inconcebible (las cárceles, p. ej. dependían de los cabildos, la justicia de primera instancia no correspondía al rey). En la visión ilustrada, en cambio, quienes gestionan cosas comunes son instrumentos del poder central y deben seguir las órdenes que reciben de la capital. Refiriéndose a Francia, Alexis de Tocqueville describió las consecuencias políticas de este proceso: “Pero apartad las ruinas y percibiréis un poder central inmenso, que ha atraído y absorbido en su unidad todas las partículas de autoridad y de influen-cia que estaban antes dispersas en una gran cantidad de poderes secundarios, de órdenes, clases, profesiones, familias e individuos, y como esparcidas por todo el cuerpo social. No se había visto en el mundo un poder semejante desde la caída del Imperio Romano. La revolución ha creado ese nuevo poder, o mejor dicho, este poder surgió espontáneamente de las ruinas que forjó la Revolución” (A. de Tocqueville, L’Ancien Régime et la Révolution, I, 2. Robert Laffont. Paris. 1986, 957).

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prioridades en la conservación del medio ambiente e incluso las cuestiones relacionadas con la educación20.

La descentralización se ve dificultada en muchos países por la forma que toma la relación entre población y poder en una sociedad democrática. La distribución demográfica de muchas naciones del llamado Tercer Mundo se caracteriza por la existencia de grandes y crecientes concentraciones de población en unas pocas ciudades, normalmente las capitales. Como en una democracia representativa la permanencia en el poder depende del apoyo popular expresado en las elecciones, sucede que el triunfo en una elección presidencial o la conformación de una mayoría en la Cámara Baja (aquella de representación poblacional) coincide en la práctica con la obtención de una alta votación en las megápolis. Y difícilmente se logrará este apoyo si no se muestra que las políticas estatales irán en favor de aquellos sectores urbanos de mayor concentración poblacional, cuyas necesidades son objetivamente numerosas. Así, el gobierno de la mayoría pasa a tomar la forma de un gobierno centralista, que, independientemente de las orientaciones ideológicas de quienes lo ejerzan, adopta de una perspectiva “urbana” de administración del Estado. Esta situación se retroalimenta: los ciudadanos que viven fuera de los centros urbanos que concentran el poder perciben que no podrán mejorar sus condiciones de vida a menos que emigren hacia las grandes ciudades, lo que lleva a consolidar aún más ese centralismo urbano que, repetimos, marca a todas las corrientes políticas21.

Así las cosas, se requiere de un gran valor cívico para que los gobernantes tomen medidas en favor de esas zonas menos favorecidas. Los recursos disponibles son escasos y al dirigirlos a esas regiones de menor población pueden estar hipotecando el futuro apoyo político en las grandes ciudades, que les será necesario para continuar en sus funciones. ¿Qué hacer? Por una parte es necesario mantener y acrecentar mecanismos de representación política de carácter territorial, que vengan a asegurar el respeto a las minorías, propio por lo demás de una democracia. De otra parte, es necesario practicar una suerte de templanza política, que lleve a los ciudadanos de los centros más pobladas a ver con buenos ojos la pérdida de poder que para ellos traerá consigo la ayuda a las regiones menos pobladas y, por tanto, menos poderosas. Naturalmente, esto supone argumentar, convencer y, en definitiva, pensar que la política y las personas pueden 20 Aunque se haya dado en un sistema federal, es interesante la experiencia alemana en materia educativa, pues hubo Länder, como Baviera, que pudieron mantener los modelos tradicionales de educación, sin seguir la corriente general, que llevaba a una completa modificación de los métodos y contenidos de la enseñanza, con consecuencias que no todos calificarán de positivas.21 Sólo el deterioro del medio ambiente en las grandes ciudades produce un fenómeno inverso, en cuanto lleva a algunas personas a buscar una vida mejor en zonas más apartadas. Pero ambos fenómenos migratorios no presentan magnitudes compara-bles.

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ser razonables. Es decir, que son capaces de ir más allá de sus intereses inmediatos si se les entrega un motivo suficientemente noble como para hacerlo. En algunas materias, como el cuidado del medio ambiente, se han realizado avances que años atrás serían inimaginables, y así hoy son muchos los ciudadanos que se privan de ciertos productos o cambian sus hábitos de consumo por respeto a las generaciones futuras. Se trata, entonces, de ejercitar una actitud semejante en otros campos de la vida social.

X. Los poderes neutros

En su versión primitiva, la teoría de los tres poderes del Estado pretendía ser un freno a los excesos de cualquier gobierno. Sin embargo, la experiencia ha mostrado que, aunque útil, este mecanismo requiere de algunos complementos, además de ciertas buenas disposiciones en quienes gobiernan. En las últimas décadas se ha llamado la atención acerca de otros poderes que, a diferencia de los tradicionales, no tienen un carácter activo, sino más bien contralor. Esta idea se remonta a Benjamin Constant, un autor liberal francés del siglo XIX, que parece haber sido el primero en hablar de los poderes neutros22.

Entre estos poderes neutros cabe citar al Tribunal Constitucional, la Contraloría General de la República y el Banco Central. Como es natural, resulta indispensable que estos órganos gocen de una amplia autonomía y que la conformación de los mismos no quede entregada a mayorías políticas circunstanciales. Precisamente ellos velan para que el ideal democrático de gobierno de la mayoría no vaya en desmedro del respeto de las minorías. El caso del Banco Central es especialmente interesante, si se atiende a que su existencia autónoma viene a matizar uno de los derechos de la majestad -el de acuñar monedas-, que aparecieron en el origen del Estado moderno. El Banco Central es una institución estatal, pero que no está directamente sujeta a la influencia del gobierno. Esto porque el dinero está muy relacionado con la fe pública y no se puede disponer de él arbitrariamente sin defraudar la confianza de los ciudadanos. El dinero, en efecto, es uno de los medios ordinarios a través de los cuales se vinculan los hombres. Si el valor del dinero no corresponde a lo que se espera, se produce un falseamiento de las relaciones humanas, análoga a lo que en el terreno del lenguaje representa 22 En Chile, T. Ribera ha realizado numerosas referencias al poder neutro, con ocasión de sus estudios acerca del Tribunal Constitucional. Así, T. Ribera, “Función y composición del Tribunal Constitucional de 1980”, en Estudios Públicos 27 (1987), 77-112

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la mentira. Detrás de la autonomía del Banco Central, entonces, no sólo se halla el deseo de evitar un manejo económico deficiente, sino la convicción de que el poder de un gobierno que quiera ser legítimo no llega hasta ser capaz de alterar los medios de comunicación entre los hombres.

En el campo económico tienen un relieve especial los organismos de control de calidad y protección de los derechos del consumidor. Ellos aseguran la transparencia del mercado y permiten que se dé una forma de confianza que, aunque elemental, también repercute sobre la vida social. Dependiendo de las peculiaridades de cada país, es posible que en este campo exista un amplio margen para la acción de organismos técnicos de carácter privado, aunque la acción contralora de la autoridad se hace necesaria para reducir el riesgo de abusos.

XI. ¿Fin del Estado?

El fracaso de los socialismos reales y la difusión de las corrientes económicas de corte neoliberal han hecho que se difunda una mentalidad antiestatista, inversa a la que predominó en nuestros países hace unas décadas. De modo especial en el llamado mundo latino se observa una actitud negativa frente al Estado, un escaso apego al cumplimiento de la ley, una falta de cuidado por los bienes que son comunes y un desinterés por el servicio público23. Esto no se debe sólo a una diferencia de temperamento respecto del mundo anglosajón, sino a una realidad percibida por los ciudadanos, a saber, que la preocupación por las cosas del Estado no significa un servicio a uno mismo y a quienes lo rodean. No existe la convicción de que el Estado es, de hecho, el garante del bien de la colectividad24.

Por otra parte, ante la difundida convicción de que el Estado, en su forma actual, es incapaz de cumplir con los objetivos más elementales que cabe esperar de él (control de la criminalidad, administración eficiente

23 Es cierto que en algunos países anglosajones también se observa un aparente desinterés por la política. El ejemplo más claro es la baja participación electoral en los Estados Unidos de Norteamérica. Pero esa abstención electoral puede ser compatible en ese caso con una gran confianza en el sistema político y su estabilidad, con el cumplimiento escrupuloso de la ley y con el cuidado de los bienes comunes.24 Esto tiene una estrecha relación con la idea de libertad que existe en América desde la Época Indiana. Ella no se entien-de al modo de los esclavos o los oprimidos, es decir como un liberarse de ataduras, sino como franquicia: la posibilidad de disponer de lo propio. Esto lo mostró con claridad Andrés Bello hace más de siglo y medio: “Nuestras vidas, nuestro honor, nuestras propiedades forman los intereses más caros, cuya conservación esperamos en una sociedad constituida. El expedito ejercicio de los derechos políticos no satisface sino necesidades muy secundarias, que podemos considerar nulas o muy poco urgentes si el interés individual, que es el resorte más poderoso del corazón humano, no nos mueve a contribuir eficazmente a la observancia de nuestras instituciones fundamentales” (cit. en B. Bravo, Poder y respeto a las personas en Iberoamérica. Siglos XVI a XX. Ediciones de la Universidad Católica de Valparaíso. Valparaíso. 1989, 65; en el mismo texto, Bravo hace un análisis de las consecuencias de estas ideas de Bello, cfr. 63-68). Por otra parte, el desinterés por el servicio público al que se alude en el texto se refiere, naturalmente, tan solo a aquéllos que están más calificados para ejercerlo.

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de justicia, etc.), se piensa que la modernización del Estado consiste en la reducción de su tamaño. En esto hay buena parte de verdad. El Estado, como ya lo dijimos, no cumple sus tareas, entre otras razones, porque desde la década del 30 ha venido haciendo demasiadas cosas.

¿Significa el fracaso de los socialismos reales y, en buena medida, del Estado de bienestar, que hay que propender a un Estado mínimo o incluso a la desaparición del Estado? Sería sorprendente que el viejo sueño marxista de la desaparición del Estado fuera fruto precisamente de la muerte del marxismo. Pero no es necesario ni quizá razonable llegar a esos extremos. Como todas las instituciones, el Estado significa una potenciación de las fuerzas humanas. Sus organismos y reglas permiten acumular experiencia y resolver de modo relativamente eficiente cuestiones que de otro modo conllevarían un considerable gasto de tiempo y energías. La existencia misma de una burocracia estatal hace posible que el resto de los ciudadanos pueda dedicarse a sus propios asuntos y acentúa aún más la división del trabajo, con todas las ventajas que ella conlleva. El funcionamiento mismo del mercado necesita de un árbitro y de reglas claras para impedir los monopolios, facilitar la difusión de la información y sancionar a quienes incurren en prácticas desleales.

Atendido el grado de estatalización en que se desenvuelve la vida actual, deben evitarse cambios bruscos; las necesarias reformas exigen procesos graduales, en los que sea posible aprender de los errores y efectuar correcciones antes de que los males sean irremediables. La reforma del Estado exige paciencia y tacto. Particularmente en el ámbito del derecho penal, es necesario preguntarse en cada caso si la “liberalización” o despenalización de una conducta significa realmente un crecimiento de la libertad personal o es más bien la instauración de un poder de disposición privada de unos hombres sobre otros. Si toda potestad pública tiene, entre sus papeles primordiales, el de evitar el ejercicio de la violencia privada dentro de la sociedad, el Estado lo tiene de modo particular, atendido el desarrollo que a partir del Renacimiento experimentaron los medios de destrucción. No es casual que el crecimiento del Estado moderno haya sido, en buena parte, una respuesta de la sociedad ante el problema de la guerra.

Pero, así como se hizo necesario suprimir los ejércitos privados y concentrar el uso de la fuerza física en un solo órgano, la existencia actual de medios masivos de destrucción y la perenne posibilidad de extensión de cualquier conflicto a nivel mundial, hacen que la misma estructura estatal

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se revele como insuficiente para cumplir con estas tareas. La paz externa progresivamente está dejando de ser un problema que cada país resuelve a su modo, sino que constituye la misión de complejos acuerdos, acciones y organizaciones internacionales. Otro tanto puede suceder -en menor medida- con la paz interna, pues el combate del terrorismo y de ciertas formas organizadas de criminalidad internacional tampoco parecen ser posibles de resolver con el solo recurso a las fuerzas policiales de carácter nacional.

Es así como -al igual que en su momento la polis- el Estado está dejando cada vez más claramente de ser una sociedad autosuficiente, o sea, una sociedad en la que sus miembros encuentran todos los medios que necesitan para cumplir su fin temporal. En las últimas décadas -y con grandes deficiencias- se tiende a dar lugar a organizaciones supraestatales frente a las cuales ya no se puede hablar, en forma estricta, de soberanía en el sentido que esta expresión tenía en siglos pasados25.

Pero hay además otros factores que acentúan el carácter limitado que el Estado tiene a los ojos de nuestros contemporáneos. El primero es que, al menos en Europa, la formación del Estado moderno se hizo a costa de una uniformidad y centralismo que no tomó en consideración, e incluso combatió, las peculiaridades históricas de las diversas naciones que pasaron a formar la población del Estado. No es extraño, entonces, que advertidos los primeros síntomas de crisis en el poder estatal, hayan surgido diversos regionalismos, que tienden a cuestionar las formas vigentes de organización política. En segundo lugar, sucede que el buen funcionamiento de la política y el Estado requiere de un fundamento ético en quienes desempeñan un papel en ellos y ese fundamento no lo puede aportar el Estado mismo, al menos en la medida e intensidad que se requiere. Al comienzo de nuestra era, con el surgimiento del cristianismo, se vio con claridad que el hombre no podía estar sometido por completo a la potestad política, puesto que hay dimensiones de gran importancia -como la del sentido último de la existencia- que no quedan cubiertas por la política, sino que son tarea de la sociedad religiosa26. En la actualidad se observa -ya lo había notado Tocqueville- que incluso en el terreno mismo de la política el Estado no es autosuficiente, y que los teóricos del Estado moderno habían olvidado que los sistemas que ellos diseñaron podían funcionar sólo en la medida en que subsista un determinado ethos social27. Diluido ese ethos -y es lo 25 Cfr. M. Salazar, “La soberanía en la historia de las ideas políticas”, en Ars Iuris 14 (1995), 183-21226 Por eso puede decir Tomás de Aquino que “el hombre no está ordenado a la sociedad política con todo su ser y todo lo que hay en él” (S. Th. I-II 41, 4 ad 3)27 Así lo reconocía la Declaración de Virginia, de 1776, cuando señalaba: “Que ni el gobierno libre, ni las bendiciones

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que sucede en el proceso de secularización que hemos vivido- las bases mismas de la política se resienten. De ahí el clamor de diversos autores (como Kolakowski), que señalan las consecuencias que ha tenido para la sociedad el abandono de la trascendencia aportada por el cristianismo. Es un clamor especialmente trágico, pues se da en personas que no tienen una fe religiosa -al menos en términos tradicionales- pero consideran necesario una revitalización moral, la cual no parece que pueda llegar a las masas de no mediar la religión, que pasa a ser entonces una suerte de religión civil, semejante a lo que postulaba Rousseau

28 29.Otro elemento que tiende a reducir el poder estatal es el llamado

proceso de internacionalización de los derechos humanos, en virtud del cual, ciertos principios recogidos en documentos internacionales de derechos humanos pasan a ser vinculantes para el Estado, incluso en términos de forzar a una modificación de disposiciones legales que se estiman lesivas de los mismos. Este proceso va de la mano con el reconocimiento de ciertas jurisdicciones de carácter internacional, a las cuales queda sometido el propio Estado no sólo en caso de disputas interestatales sino en conflictos con sus propios ciudadanos. Con esto se limitan otros derechos de aquellos iura majestatis que parecían inseparables del Estado moderno, a saber, el de dictar leyes y nombrar magistrados30. Este fenómeno es positivo en cuanto refuerza una vez más la idea de que el poder estatal no es ilimitado y le da a los ciudadanos la posibilidad de alcanzar justicia incluso en casos en que todo el aparato estatal está en su contra. Sin embargo, debe tenerse presente que la sola inclusión de las disposiciones internacionales de derechos humanos dentro del derecho interno, aunque pueda ser beneficiosa, no asegura un pleno respeto de los mismos, aun en el caso de que los tribunales les den plena aplicación. En efecto, esos documentos, como toda obra humana, tienen deficiencias y son perfectibles, de modo que una aplicación excesivamente literal de los mismos puede perder de vista la posibilidad de violaciones de derechos humanos que no estén contempladas en esos Pactos y que sin embargo los Tribunales deben ocuparse de reparar31. de la libertad, pueden ser preservados para un pueblo, sin una firme adhesión a la justicia, la moderación, la templanza, la frugalidad, y la virtud, y sin un frecuente retorno a los principios fundamentales” (sección 15), en: J. Hervada-J. M. Zumaquero, Textos internacio-nales de derechos humanos. Eunsa. Pamplona. 1978, n. 16. En qué medida la falta de estos supuestos afecta al régimen constitucional lo muestra: A. C. Pereira Menaut, “Constitución y comunicación”, en Revista de Derecho Público (Santiago de Chile) 43-44 (1988), 67-6628 29 Es interesante hacer ver que en muchas posturas conservadoras, la valoración de la religión tiene un fundamento es-trictamente pragmático, como medio de mantener una moral social que se estima necesaria para el funcionamiento de la sociedad (tal parece haber sido, por ejemplo, el caso del thatcherismo británico). 30 Cfr. M. A. Huesbe, “El Estado Territorial y el derecho a nombrar magistrados”, en Revista de Estudios Histórico-Jurídicos, n. 5 (1980), 199-23531 Además existe siempre el riesgo de incurrir en etnocentrismo en la elaboración, interpretación y aplicación de esos textos.

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Por otra parte, como ya se dijo, los textos internacionales, como todas las normas, deben ser interpretados a la luz, implícita o explícita, de una determinada concepción del hombre y la sociedad, que no será nunca neutral. De tal manera, es posible que una concepción reduccionista de lo que es el hombre lleve a una interpretación equivocada de los mismos y sirva para justificar lesiones significativas de las prerrogativas más básicas de la dignidad humana32. Las declaraciones de derechos constituyen un esfuerzo por explicitar las exigencias más fundamentales de la dignidad del hombre, pero, como todo lenguaje, no logran agotarla totalmente y, por otra parte, deben ser interpretadas a la luz de la realidad que pretenden expresar.

XII. La obediencia cívica

La secularización de la política ocurrida en la Edad Moderna pudo haber conducido a una pérdida de la disposición de los ciudadanos a obedecer a los gobiernos. En efecto, el viejo problema de por qué hay que obedecer a la ley se hace más relevante cuando quien dicta las normas es uno de nosotros, a quien nosotros hemos elegido y cuyo mandato, por tanto, estamos en condiciones de revocar. Sin embargo, la teoría política moderna logró forjar algunos conceptos que vinieran a reemplazar a las antiguas ideas que hacían provenir el poder de Dios. En vez de la divinidad, se recurrió a entidades como la soberanía nacional, la voluntad popular o incluso -en el caso de ciertos totalitarismos- a la exaltación de una clase o de la raza.

En la actualidad, parece que esos conceptos forjados por la modernidad para justificar el poder no resultan suficientes como para exigir la obediencia a los que gobiernan. Las concepciones mismas de la democracia como gobierno del pueblo ceden lugar a otras visiones menos 32 Especialmente delicado es el problema del aborto, materia sobre la cual existe un apasionado debate, y con razón. En efecto, si los no nacidos constituyen individuos de la especie humana, la legalización del aborto significa que se permite la realización colectiva de un exterminio aún mayor que los que realizaron los regímenes totalitarios. Si, además, a esta legalización se le da el rango de un derecho subjetivo (el llamado derecho de la mujer a disponer de su propio cuerpo), entonces estamos en presencia de una negación del núcleo mismo de la teoría de los derechos humanos, cuyo impulso originario era precisamente la protección de los débiles contra los fuertes y la convicción de que los hombres no deben ser tratados ni deben tratarse a sí mismos como cosas. Si, por último, estas actividades se realizan con fondos y en centros estatales, entonces resulta claro que “el Estado deja de ser la ‘casa común’ donde todos pueden vivir según los principios de igualdad fundamental, y se transforma en Estado tirano, que presume de poder disponer de la vida de los más débiles e indefensos, desde el niño aún no nacido hasta el anciano, en nombre de una utilidad pública que no es otra cosa, en realidad, que el interés de algunos” (Juan Pablo II, Evangelium vitae, n. 20). Así las cosas, “el ideal democrático, que es verdaderamente tal cuando reconoce y tutela la dignidad de toda persona humana, es traicionado en sus mismas bases” (ibid.) y se degrada la libertad humana a la condición de un poder absoluto sobre los demás y contra los demás (cfr. ibid.). Alguno podría pensar que las cosas no pueden ser de esta manera porque en ese caso gran parte de las democracias actuales —de cuyos logros todos nos enorgullecemos— estarían afectadas por una gravísima crisis de legitimidad. Por desgracia hay muy sólidas razones para pensar que esto es así y que, por tanto, es necesario utilizar todos los medios pacíficos a nuestro alcance para revertir esta situación..

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ambiciosas, que explican la democracia simplemente como un sistema que permite deshacerse de los malos gobiernos sin derramamiento de sangre33. Si a esto se agrega la preocupante difusión del fenómeno de la corrupción política y la apatía de los ciudadanos ante la cosa pública, el panorama se presenta inquietante.

Parece ser que la posibilidad de volver a mover a los ciudadanos para la realización de tareas colectivas depende de la capacidad de los políticos por mostrar una preocupación por los problemas más inmediatos y transmitir la convicción de que su labor es efectivamente un servicio público, que merece ser apoyado. Esto es impensable sin determinados estilos de conducta, como la sobriedad y la veracidad, que confirmen esa convicción. Con todo, el momento actual, sin desconocer las dificultades que presenta, parece ser especialmente propicio para intentarlo, tanto por el declive de las ideologías totalitarias como por la racionalización del debate político en términos de una notoria reducción de la demagogia y la ideologización. Esto parece permitir un espacio suficiente para un estilo sobrio y equilibrado de hacer política, si se logran superar dos obstáculos que pasamos a reseñar.

En primer término, aunque en muchos países la demagogia tradicional no parece ser en este momento el modo más adecuado para conseguir votos, el acceso al Parlamento o al poder ejecutivo depende en forma muy relevante de la capacidad de invertir cuantiosos recursos en publicidad política; esto plantea el delicado problema del financiamiento de las campañas electorales, que parece oscilar entre la utilización de fondos públicos (es decir, dinero que proviene de impuestos) para tales efectos, lo que es más que discutible, y el dejar el financiamiento a quienes disponen del poder económico, lo que parece restar independencia futura a los gobernantes. Atendidos los inconvenientes económicos y políticos de ambas soluciones, cabe explorar la posibilidad de establecer límites más estrictos a la propaganda política, tal como hoy se entiende, teniendo en cuenta también el hecho de que, en su forma actual, esta propaganda no parece apelar a la racionalidad de los electores, sino que sigue más bien los cánones utilizados con éxito en otras formas de publicidad, válidas en su terreno para promover productos que no tienen gran vinculación con las decisiones básicas de la vida34. 33 Cfr. K. R. Popper, “Un repaso de mi teoría de la democracia”, en Política n. 18. Santiago de Chile. 1988, 43-5334 “Estoy firmemente convencido de que sería relativamente fácil superar las dificultades tecnológicas que obstruyen el camino hacia metas tales como la conducción de las campañas electorales mediante la apelación, no a las pasiones, sino a la razón. No veo ninguna razón, por ejemplo, para que no se imponga un tamaño, aspecto, etc. uniforme a los panfletos electorales, eliminándose todo cartel. (Esto no tiene por qué hacer peligrar la libertad, así como no la perjudican, sino más bien la benefician, las limitaciones razonables impuestas a los litigantes ante un tribunal de justicia). Los actuales métodos de propaganda constituyen un insulto al

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El segundo obstáculo consiste en la dificultad de movilizar a los ciudadanos en el logro de ciertas tareas comunes, como puede ser la lucha contra la extrema pobreza, la difusión de ciertas expresiones culturales, las iniciativas en favor de la paz o el cuidado del medio ambiente. La extensión de un modo de vida hedonista ha llevado a muchos ciudadanos a recluirse en su ámbito más inmediato, lo que produce una dedicación de grandes energías al mero goce sensorial e insensibiliza su espíritu para atender las necesidades de sus semejantes. Para superar esta inercia y apatía políticas no hay soluciones preestablecidas, pero cabe pensar que un cambio de hábitos en los sectores dirigentes puede tener una repercusión positiva. Para que vuelva a ser un honor el servir a la sociedad a través de la actividad política, no se puede prescindir de la imagen que los propios políticos dan de su actividad. Uno de los puntos en que pueden influir poderosamente en la opinión pública es precisamente el ya señalado de la obediencia a la ley, lo que significa aprender a rechazar cualquier situación que pueda llevar a los políticos a transformarse en un grupo privilegiado.

La reforma del Estado nos lleva así, en último término, a una cuestión antropológica, la reforma de los hombres que ocupan funciones en él. Al menos desde Maquiavelo se observa una preocupación enfermiza por el poder, como si la política consistiera únicamente en una técnica para alcanzarlo, acrecentarlo y mantenerse en él. El poder mismo se concibe como el modo de doblegar las voluntades de los demás hombres a través de la fuerza. Pero mirado con atención, ésto es una desgracia no sólo para quienes sufren los dictados de un poder de esta naturaleza, sino también para quienes lo ejercen, que, al tratar a los demás hombres como simples medios, se envilecen también a sí mismos. Porque si la esencia del poder reside en la fuerza, la única razón para obedecerlo sería el carecer de la misma, lo que no parece ser un título muy acorde con la dignidad del hombre. En ese caso, la organización estatal entera apenas se distinguiría de otras organizaciones como la Mafia o una banda de delincuentes que se imponen en un barrio de una ciudad populosa. Es una desgracia especialmente cruel el que la difusión del ideal democrático se haya dado sobre un terreno tan poco propicio, como es esa concepción de la política como mera técnica de dominio, cuando lo que caracteriza al gobierno político respecto del despótico es ser un gobierno sobre hombres libres, en

público y también a los candidatos. Jamás debiera utilizarse una propaganda apta quizá para vender jabón, pero no para cuestiones de tal magnitud” (K. R. Popper, La sociedad abierta y sus enemigos. Barcelona. 1982, 625 nt. 27 (traducción de la segunda edición revisada: Londres. 1945). Independientemente del juicio que merezcan sus propuestas, parece razonable reconocer que puede haber formas de limitar la forma de la propaganda política sin afectar, si no más bien favoreciendo, una legítima lucha por ganar el favor del electorado.

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el que el ejercicio del poder se concibe como servicio. Quizá en la raíz de las dificultades que experimentan las democracias contemporáneas y en la renuencia de los gobernantes a renunciar a cuotas importantes de poder, para dejarlos en manos de la comunidad, se halle esa concepción errada de la política, que en definitiva no es más que una idea errada de lo que es el hombre y su dignidad, que hace preferir el dominar al servir, el vencer al convencer y el imponer al escuchar.

XIII. Conclusiones. La reconstitución del Estado

El Estado moderno surgió cuando cesaron los poderes superiores a él (Papa, Emperador) y pudo absorber o al menos controlar a los inferiores. Parecía esencial que no hubiese poderes sobre él y que los que quedasen bajo él estuviesen sometidos a su acción. Hoy, sin embargo, esta situación ha cambiado. Para gran parte de los Estados, la subordinación a organizaciones políticas y económicas que escapan a su control es materia de cada día. Por otra parte, de buen grado o por la fuerza la organización estatal ha debido resignarse a perder el monopolio de la fuerza, el protagonismo en la iniciativa económica e incluso algo que aparecía tan fundamental como el no poder ser juzgado por nadie. Estos cambio se producen en un momento poco propicio para la salud estatal, minada por la disolución del ethos que proporcionaba razones para respetar sus normas y trabajar por el bien común, y afectada por la corrupción de parte no despreciable de la clase política y por la ineficacia de muchos procedimientos de administración.

La reconstitución del Estado significa una difícil tarea que lleva a reasignar sus funciones. No se trata simplemente de ampliarlas o restringirlas, pues, como se ha visto en las páginas precedentes, hay que distinguir de acuerdo con los sectores de actividad, sin perder de vista las posibilidades, talante e iniciativa de cada comunidad. Proceder a un desmantelamiento del Estado sin más justificación que los aires de la época puede llevar a situaciones particularmente opresivas que difícilmente pueden justificarse.

Pero la labor de reorganizar el Estado presenta dos dificultades dignas de ser consideradas. En primer lugar, supone una idea de qué es lo que le corresponde por sí mismo, por razones de suplencia o en atención a peculiares circunstancias históricas que no pueden modificarse sin grave daño. Sin embargo, detrás de un juicio de tal naturaleza se hallan delicadas cuestiones filosóficas e incluso una imagen del hombre. Es decir, habrá que

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reconocer que toda política se acompaña de una antropología, al menos implícita. Las teorías que pretenden estudiar la política en forma neutral, prescindiendo de valoraciones, no logran su propósito, simplemente postergan una discusión que hoy se ve como especialmente necesaria. Así, ¿cómo podrían interpretarse y aplicarse las declaraciones de derechos contenidas en las constituciones o en los textos internacionales sin mantener una cierta idea del hombre a la luz de la cual tengan sentido? Otro tanto puede decirse de los intentos de reforma del Estado. La alternativa, entonces, no se da entre un planteamiento técnico, éticamente neutral y supuestamente aceptable por todos en una sociedad pluralista, y otros que están cargados de valoraciones. Más bien se trata de reconocer que las valoraciones son inevitables y que, por tanto, en una sociedad pluralista todos deben fundamentar sus afirmaciones, sin que quepa escudarse en que la propia postura responde a los criterios que da la técnica o constituye el mínimo aceptable a todos los que debaten.

En segundo lugar, la reconstitución del Estado no se puede lograr sin un fundamento moral, es decir, sin determinados estilos de vida que hagan posible el funcionamiento de los sistemas y estructuras. Pero estos modos de actuar se adquieren básicamente en la vida de las diversas comunidades. Estas organizaciones fueron sistemáticamente desatendidas, cuando no mal tratadas en la ya extensa historia del Estado moderno. Hoy, cuando se descubre que la política requiere de un terreno pre-político para desarrollarse bien, nos encontramos con que algunas de esas comunidades, como la familia, están seriamente debilitadas, y su restauración no es, al menos primariamente, una tarea que pueda llevarse a cabo desde el poder. Así llegamos a constatar una interesante paradoja: la teoría política moderna nació obsesionada por el poder, pero hoy la pervivencia misma de una política humana no depende del poder, que está inerme y es incapaz de asegurar las condiciones para su recto ejercicio. Quizá esa conciencia de debilidad sea un paso importante para su reconstitución.

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O PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTáRIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Léa Marilda Dornelles Viero35

Anelise Coelho Nunes36

Resumo: Isonomia e Estado Democrático de Direito. Isonomia material e formal. Natureza dúplice da isonomia: proibição e dever de discriminar. Critério de aplicação da isonomia: a capacidade contributiva. O postulado da proporcionalidade. Isonomia e justiça.

Abstract: Equality before the law (Isonomy) and the Democratic Rule of Law. Material and formal isonomy. The double nature of isonomy: prohibition and obligation to discriminate. Isonomy application criteria: the tax-paying capacity. The postulate of proportionality. Isonomy and justice.

As relações que o Estado desenvolve com os particulares, no uso de seu poder de soberania, mais especificamente no que incide sobre o patrimônio dos cidadãos, estão expressamente previstas na Constituição Federal de 1988. E, dentre essas relações, uma que pautua e delimita a atuação do Estado está consubstanciada no Princípio da Isonomia.

O Princípio da Isonomia é um dos três grandes Princípios Constitucionais Tributários, bem como a Segurança Jurídica e a Capacidade Contributiva, que, insculpidos no Estado Democrático de Direito brasileiro, revelam a necessidade de evolução, a partir de uma ótica meramente protetiva do ordenamento jurídico tributário, para uma relação Estado-indivíduo que congrega liberdade, participação e cidadania37.35 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Metodista IPA. Assistente Administrativa lotada na PDA – Procuradoria da Dívida Ativa.36 Advogada, Especialista e Mestre em Direito (PUCRS), Professora do Centro Universitário Metodista IPA37 Nesse sentido, MACHADO, Hugo de Brito, Curso de Direito Tributário, p. 33: “Tais princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do Poder. Em face do elemento teleológico, portanto, o intérprete, que tem consciência dessa finalidade, busca nesses princípios a efetiva proteção do contribuinte.”

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Diante disso, tais princípios consagrados como direitos fundamentais, ou, conexos aos direitos fundamentais38, consistem em elemento essencial à democracia39 e, juntamente com a juridicidade e a constitucionalidade, embasam os três pilares do Estado Democrático de Direito.40

Nesse contexto, o princípio da isonomia, também denominado de princípio da igualdade tributária, ressalta importância significativa, no ensinamento de Bonavides:

O centro medular do Estado Social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta, compõe um eixo ao redor do qual toda a concepção estrutural do Estado Democrático contemporâneo. (...) De todos os direitos fundamentais, a igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia de deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado Social. (...) 41

No que se refere à historicidade, imprescindível o magistério de Ferreira Filho:

O princípio da igualdade, ou melhor, o princípio da igualdade perante a lei, isonomia, é o segundo dos princípios do Estado de Direito. Foi ele uma das principais reivindicações a que atenderam a Revolução Francesa e outras evoluções liberais. Convém lembrar, com efeito, que antes delas - no Ancièn Regime – não era uno o estatuto jurídico dos indivíduos. Na França – que se pode tomar por referência – diferenciavam-se três “estados”, segundo a condição jurídica de que gozavam os indivíduos. Os que estavam submetidos ao direito comum

38 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: Sistema Tributário, p.168: “são princípios expressos na Constituição da República, em matéria tributária, conexos aos direitos fundamentais, os seguintes: (...); princípio da isonomia tributária (arts. 5º, I e 150, II), (...).39 NUNES, Anelise Coelho. A titularidade dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 2240 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 359 e ss41 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 376

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compunham o terceiro estado – o povo. Privilégios de variada ordem favoreciam os componentes do segundo estado – a nobreza. Outros privilégios caracterizavam o primeiro estado – o clero. Este clero, portanto, e a nobreza eram classes privilegiadas relativamente ao povo. (... ) A primeira decorrência, portanto, do princípio da igualdade é exatamente a abolição, e mais do que isso, a proibição dos privilégios. Não podem ser abertas exceções à lei que favoreçam (privilegiem) indivíduos, ou grupos. Isto presume a uniformidade, ou a igualdade, do direito, a unidade do estatuto jurídico que é o mesmo para todos. 42

E, quanto ao aspecto de o princípio da isonomia fundamentar-se em dispositivo da Carta Magna, Sacha Calmon Navarro Coelho afirma que, “quando o princípio é constitucional, a sua aplicação é obrigatória. Deve o legislador acatá-lo, e, o juiz, adaptar a lei ao princípio em caso desrespeito legislativo.”43

Sob essa perspectiva do texto constitucional, o princípio da isonomia encontra guarida na norma do artigo 150, II da Carta Magna, e tem sua proclamação, no Brasil, atribuída a Rui Barbosa: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”44.

A isonomia pode ser analisada em sentido material e em sentido formal. Em sentido material, revela o conteúdo próprio da norma constitucional que traduz o princípio, inclusive desigualando situações distintas, em virtude da capacidade contributiva de cada um, enquanto que, em sentido formal, demonstra a generalização da igualdade perante a lei.

José Afonso da Silva esclarece:Nossas constituições, desde o império,

inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciando que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal , no sentido de que a lei e sua aplicação trata a todos igualmente, sem

42 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais, pp. 106, 113 e 11443 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro, p. 9544 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Clássicos Brasileiros. Ed. Tecnoprint S.A., RJ, 1990.

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levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, [...] com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social. Considera-los como isonomia formal para diferencia-lo da isonomia material, traduzido no art.7º XXX e XXXI, [...].

A constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, a medida que não se limitara ao simples enunciado da igualdade perante a lei; menciona também igualdade entre homens e mulheres e acrescenta vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação.45

E, no entender de José Souto Maior Borges:

A isonomia não está restrita apenas ao enunciado do art. 5º, caput e item I da Constituição. Se não manipularmos irresponsavelmente as palavras, veremos que não é por acaso que a Constituição Federal, dos 77 itens em que se desdobram os direitos e garantias fundamentais do art. 5º, faz menção à isonomia do caput do dispositivo: todos são iguais perante a lei: ou como diria Kelsen: a isonomia formal é ali garantida. Mas esta instituiu logo em seguida, no primeiro item, a isonomia no sentido substancial, a isonomia material: homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, nos termos da Constituição. A igualdade é aí a matéria da Constituição.46

Em vista disso, a igualdade, conforme Alexandra Giacomet Pezzi, tem “natureza dúplice”47, verificada diante do ensinamento de Carrazza:

45 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 19546 BORGES, José Souto Maior. A isonomia Tributária na Constituição de 1988. pp.12 - 1347 “Natureza dúplice” é expressão utilizada com propriedade por PEZZI, Alexandra Cristina Giacomet. O mínimo existencial como limite à tributação. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre: CEDIM – Centro de Estudos de Direito Muni-cipal, dezembro, n. 19, 2005, pp. 17-32

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o princípio da igualdade exige que a lei, tanto em sua edição como em sua aplicação, não deve discriminar os contribuintes que se encontrem em situação jurídica equivalente e que “discrimine, na medida de suas desigualdades, os contribuintes que não se encontram em situação jurídica equivalente.”48

Portanto, o princípio tanto veda a discriminação, segundo a disposição da norma constitucional do art. 150, II49, bem como a estatui, de acordo com a disposição da norma constitucional do art. 145, parágrafo 1º50.

Assim, conforme Cassone, seguindo a ótica de Rui Barbosa, “é esse o critério que deve orientar o intérprete, para solução dos casos concretos, onde a expressão `situação equivalente´, constante no art. 150, II, CF, não admite distinção tributária. Por outro lado, toda a vez que a situação não for equivalente, em face de significativo detalhe, a tributação diferenciada poderá ser admitida”. 51

Sob essa ótica, a doutrina52 considera como critério de aplicação do princípio da isonomia, no âmbito do Direito Tributário, a capacidade contributiva, uma vez que as discriminações obrigatórias podem se dar em função da capacidade contributiva ou por razões extra-fiscais que estejam alicerçadas no interesse público53.

Historicamente, a capacidade contributiva teve fundamento na Declaração de 1789, a partir da abolição de privilégios apregoada pela Revolução Francesa, na norma de seu artigo 6º: “Todos os cidadãos são iguais a seus olhos (da lei) e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”54, e é fator a ser verificado, uma vez que “aquele que tem maior capacidade contributiva deve pagar imposto maior, pois só assim estará sendo igualmente tributado”.55

Leandro Paulsen leciona no sentido de que a capacidade contributiva restringe-se em relação à dignidade humana, no que se refere 48 CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 5749 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:II – instituir tratamento desigual entre os contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.50 Art. 145. § 1º: Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.51 CASSONE, Victtorio. Direito Tributário: fundamentos constitucionais da tributação, definição de tributos e suas espécies, conceito e classificação dos impostos, doutrina, prática e jurisprudência, p.16852 CARRAZZA, Roque Antônio. Op. cit., p.6853 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência, p. 21354 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 11355 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 56

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ao exercício de direitos fundamentais, à preservação do mínimo vital e à vedação de confisco:

A previsão da graduação dos impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte constitui positivação do princípio da capacidade contributiva, suscitando inúmeros questionamentos, principalmente quanto à sua extensão. A maior parte da doutrina diz tratar-se de um princípio de sobredireito ou metajurídico, que deve orientar o exercício da tributação independentemente de constar expressamente da Constituição. Decorre deste princípio, basicamente, que o Estado deve exigir que as pessoas contribuam para as despesas públicas na medida da sua capacidade para contribuir, de maneira que nada deva ser exigido de quem só tem para sua própria subsistência, a carga tributária deve variar segundo as demonstrações de riqueza e, independentemente disso, a tributação não pode implicar em confisco para ninguém. Os extremos desta formulação (preservação do mínimo vital e vedação de confisco), aplicam-se a todas as espécies tributárias. Entretanto, a possibilidade de graduação do tributo (e.g., alíquota maior para base de cálculo maior) depende de que se cuide de uma hipótese de incidência efetivamente reveladora de capacidade contributiva.56

Sacha Calmon Navarro Coelho, por sua vez, difere a capacidade contributiva em subjetiva e objetiva:

A capacidade contributiva é a possibilidade econômica de pagar tributos (ability to pay). E subjetiva quando leva em conta a pessoa (capacidade econômica real). E objetiva quando toma em consideração manifestações objetivas da pessoa (ter casa, carro do ano, sítio numa área valorizada, etc.). Aí temos ̀ signos presuntivos de capacidade contributiva`.57

56 PAULSEN, Leandro. Op. cit., p. 6957 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 84

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Então, a capacidade contributiva, como critério de aplicação da isonomia, será avaliada, ponderada e limitada objetiva e subjetivamente.

Ademais, a capacidade econômica dos cidadãos foi fixada, pela Carta Magna, como elemento principal de discrímen para a isonomia tributária. Assim, a sociedade deve repartir os encargos do Estado proporcionalmente às possibilidades econômicas de cada um.

Outro aspecto importante a ser considerado no exame da isonomia tributária constitui o postulado da proporcionalidade. Em verdade, a proporcionalidade deverá se fazer presente quando da caracterização da capacidade contributiva.

De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a exigência da proporcionalidade deriva do princípio do Estado de Direito (norma constitucional do art. 1º) e dos direitos fundamentais (norma constitucional do art. 5º)58, e tem grande significado nas decisões desse Tribunal como mandamento constitucional, segundo Humberto Ávila, o qual ressalta também que “o postulado da proporcionalidade tem significado ambíguo, visto que ele normalmente é confundido com as exigências de razoabilidade, racionalidade, aplicação conforme à lei, não-excessividade e equivalência”59.

Na lição de Maren Taborda, a proporcionalidade pode ser deduzida a partir da igualdade, entre meios e fins:

[...] vale dizer, ainda , que atualmente no Direito Alemão e Português, além da proibição de arbitrariedade, agrega-se à aplicação do Princípio da Igualdade a exigência da proporcionalidade, isto é, de adequação, necessidade, ponderação e proibição do excesso – medida de valor a partir da qual se procede a uma ponderação60.

Taborda refere, ainda, a análise de Jorge Miranda: “O juízo de proporcionalidade é um juízo jurídico, ancorado na correta interpretação e aplicação das normas e na adesão aos valores que lhes sub-jazem; não é um juízo meramente cognoscitivo; com ele cura-se de uma funcionalidade 58 Supremo Tribunal Federal: Recurso de Mandado de Segurança n. 13.140, Rel. Min. Luiz Gallotti (DJ 16.12.64, p. 04649); Repre-sentação n. 930-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cordeiro Guerra (DJ 02.07.77); Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 855-2, Rel. Min. Sepúlveda Pertence (DJU 01.10.93).59 AVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 39860 TABORDA, Maren Guimarães. O princípio da Igualdade em Perspectiva Histórica: conteúdo, alcance e direções. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre. nº 12.setembro 1998. p.103 - referindo-se à MIRANDA, Jorge. Nota 1, p.216; HECK, L. A. Nota 83, p.176/177 e p.226.

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teleológica , não de qualquer funcionalidade lógica ou semântica” 61. Portanto, uma necessária ponderação axiológica é imprescindível

diante da análise do juízo de proporcionalidade, além do aprimoramento de uma função finalística.

Humberto Ávila define a proporcionalidade lembrando que a noção do instituto - a idéia de proporção - perpassa pelas mais variadas áreas do Direito, sem limites ou critérios, e que não é desse senso a adequada compreensão do postulado :

O postulado da proporcionalidade não se confurnde com a idéia de proporção em suas mais variadas manifestações. Ele se aplica a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).62

Assim, importante a distinção entre igualdade e proporcionalidade, apresentada por Suzana de Toledo Barros:

O Princípio da igualdade e o princípio da proporcionalidade têm estrutura diversa. Enquanto que o primeiro atua separando e individualizando, o segundo funciona harmonizando e conciliando. (...) Ocorre que ambos possuem zona de interseção; melhor esclarecendo: para aferir-se a validade de uma norma legal frente ao princípio da isonomia, necessita-se da idéia de proporcionalidade ou de razoabilidade.63

61 In TABORDA, Maren. Op. cit., p.21962 AVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 10463 BARROS. Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle da Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, p.188

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A isonomia na tributação é atendida pela proporcionalidade, almejando atingir a justiça social.

A isonomia tributária apresenta limitações que visam a assegurar os direitos dos contribuintes, refletindo em estabilidade, coerência e segurança do sistema, respeitando a capacidade contributiva e a proporcionalidade, na busca pelo justo.

De acordo com Humberto Ávila,

o dever de coerência exige que exista uma principial relação de tensão entre a competência do Poder Legislativo para instituir tributos e a dignidade humana e os direitos fundamentais de liberdade de os sujeitos passivos desenvolverem sua propriedade privada e sua iniciativa privada, em virtude da qual deve ser encontrada uma harmonia entre interesses privados e públicos na determinação da carga tributária64.

E é justamente nessas limitações à aplicação do princípio que são assegurados os direitos fundamentais dos contribuintes, como titulares desses direitos, enquanto que, o Estado, constitui o destinatário65.

Os direitos fundamentais, como “exigência e concretizações do princípio da dignidade humana”66, não podem ser lesados por uma incidência tributária que comprometa seu exercício, pelo primado da justiça.

No ensino de Maren Taborda, referindo-se à Castanheira Neves e Canaris, a igualdade é expressão do princípio da justiça:

ser este princípio fundante e estruturador de toda a ordem jurídica ou sistema jurídico, pois um sistema é o que for sua unidade ou não só a constitui, como também instaura (ou pretende instaurar) uma estabilidade e uma continuidade. Esta unidade e ausência de contradição, que implica coerência, é para o Direito uma exigência normativa, postulado pelo Princípio da Igualdade: assegura-se com a unidade e a ausência de contradição da lei, a igualdade de sua aplicação, e isto está diretamente ligado com os valores

64 AVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 318 65 NUNES, Anelise Coelho. Op. cit., pp. 41 e seguintes66 SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, pp. 86-87

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certeza e segurança. O Princípio da Igualdade é por assim dizer a expressão do Princípio da Justiça e a afirmação da idéia de Direito, exigindo a racionalidade de uma ordem com a “unidade de não contradição normativa”. Nestes termos, da regra de justiça – princípio da igualdade – resulta o sistema jurídico, que é nada mais que o ordenamento axiológico e teleológico dos princípios gerais do direito, no sentido de realização destes valores concretizados em diferentes níveis.67

E, para Cassone:A isonomia tributária, tal como prevista no

art. 150, II, da CF constitui-se em um desdobramento da isonomia genérica (art.5º, caput), que por sua vez nos conduz à idéia de justiça social. Este dispositivo deve ser interpretado em sintonia com o art. 3º, I, da CF, o qual expressa que um dos objetivos fundamentais da República é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.68

Assim, como objetivo do Estado, a justiça social também norteia a

interpretação da Constituição.Em vista disso, no intuito de promovermos considerações finais,

podemos estabelecer que:1) O princípio da isonomia tributária, como direito fundamental,

é elemento essencial de estabilização do Estado Democrático de Direito.2) A isonomia tributária em sentido material compreende o

conteúdo próprio do princípio, como parte integrante do sistema jurídico e assim interpretado, enquanto que a isonomia em sentido formal constitui a igualdade perante a lei, diante da literalidade do enunciado.

3) A natureza dúplice do princípio da isonomia tributária congrega ora a proibição, ora o dever de discriminar, segundo os enunciados das normas constitucionais dos artigos 150, II e 145, parágrafo 1º, na adequação da aplicação da justiça em nosso sistema.

4) A capacidade contributiva é critério de aplicação, a partir do patrimônio, do princípio da isonomia tributária, e está prevista na norma

67 TABORDA, Maren. Op. cit., p. 10968 CASSONE, Victtorio. Op. cit., p. 170

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constitucional do art. 145, parágrafo 1º, em que, “desigualando os desiguais”, busca-se a justiça tributária. A preservação do mínimo vital e a vedação do confisco, quando da aferição da capacidade contributiva, resgatam a proteção às condições mínimas de existência da pessoa e satisfazem as necessidades humanas primordiais íncitas à dignidade humana.

5) O postulado da proporcionalidade enuncia a consecução de um juízo o qual considera a adequação, a necessidade, a ponderação e a proibição de excesso quanto ao exercício das atividades de tributação pelo Estado. Então, trata-se de limitação ao exercício da atividade estatal tributária.

6) A isonomia tributária, como princípio e norma constitucional, está alçada à categoria dos institutos jurídicos imprescindíveis ao funcionamento do sistema jurídico, bem como fundamento do Estado Democrático de Direito.

BIBLIOGRAFIA

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PASSEANDO PELA EUROPA DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Vasco Pereira da Silva69

69 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Cátolica Portuguesa.

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Resumo:O artigo versa sobre a feição atual do Direito Adminstrativo na Europa, e afirma que o Direito Europeu só se realiza através do Direito Administrativo, uma vez que as políticas públicas europeias correspondem ao exercício da função administrativa e a a concretização do Direito Europeu acaba por ser realizada por normas, instituições e formas de actuação de Direito Administrativo, ao nível de cada um dos Estados que integram a União. Verifica-se que está em curso uma aproximação crescente dos direitos administrativos dos Estados-membros, na tripla perspectiva: substantiva, procedimental e processual.

Sumário: Introdução; I- O Direito Administrativo no Divã da Europa; II- A Europa e as modernas transformações da noção de acto administrativo; III- A Europa e as modernas transformações da contratação administrativa.

Introdução

Objectivo do presente texto69 é o de encetar convosco uma “peregrinação intelectual”, um “passeio pela Europa do Direito Administrativo”. Proponho-vos, para tanto, um “roteiro de viagem”, que passa por três paragens obrigatórias, por três visitas a locais que, de uma “perspectiva jurídica transfronteiriça”, me parecem ser os mais importantes (e interessantes) no moderno Direito Administrativo, a saber:

uma primeira “visita” de natureza histórica, de enquadramento a) do Direito Administrativo no âmbito do Direito Europeu, em que se procurará “fazer sentar” o Direito e o Contencioso Administrativos “no divã da Europa”. Pois, da minha perspectiva, é imperioso proceder à “psicanálise cultural” dos nossos ramos de direito em razão da História, da Constituição e da Europa, de modo a permitir a superação dos “acontecimentos traumáticos” dos respectivos passados e possibilitar que

70 O texto que agora se apresenta constitui uma versão actualizada e adaptada de um estudo antes publicado (em Portugal) com o título «Viagem pela Europa do Direito Administrativo», in «Cadernos de Justiça Administrativa», n.º 58, Julho / Agosto 2006, páginas 60 e seguintes.

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eles estejam em condições de lidar “saudavelmente” com as realidades e os desafios do presente (como, de resto, procuro fazer num dos meus livros mais recentes70); uma segunda “visita” à noção de acto administrativo, de forma b) a analisar as actuais transformações sofridas por essa forma de actuação administrativa (outrora “central” e, hoje ainda, muito importante) nos domínios jurídicos interno e europeu, uma terceira “visita” ao universo da contratação administrativa, c) a fim de apreciar as evoluções sofridas por essa forma de actuação administrativa bilateral, também aqui, nos contextos nacional e europeu.

I. O Direito Administrativo no Divã da Europa

Verifica-se, em nossos dias, um fenómeno de crescente europeização do Direito Administrativo, que decorre de duas realidades: por um lado, há cada vez mais fontes jurídicas europeias relevantes em matéria de Direito e de Processo Administrativos (v.g. matérias como a dos serviços públicos, da contratação administrativa, das providências cautelares encontram-se reguladas em normas comunitárias); por outro lado, assiste-se a uma intensificação da integração jurídica horizontal, que resulta nomeadamente da adopção de políticas comuns, do efeito unificador da jurisprudência europeia, e da perspectiva comparatista adoptada pela legislação e pela doutrina nacionais, o que tem como consequência a aproximação das legislações dos diferentes países da Comunidade. Veja-se, a título de exemplo, «aquilo que se passou, em praticamente todos os países europeus, nos finais do século XX e inícios do século XXI, com as reformas do Contencioso Administrativo, que “espalharam por toda a Europa” um Processo Administrativo que supera divergências históricas entre modelos antagónicos [a saber: francês, germânico e anglo-saxónico] e converge para um “modelo comum europeu” (sem que isso signifique a perda de individualidade própria de cada um dos sistemas nacionais) 71. Assiste-se, assim, ao desaparecimento da ligação necessária do Direito Administrativo ao Estado, tão característica dos primórdios do nosso ramo de direito, não só do ponto de vista interno como, agora também, do europeu e mesmo do internacional72. Pois, do ponto de vista 71 VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», Almedina, Coimbra, 2005.

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interno, para além da actividade administrativa já, de há muito, ter deixado de ser meramente estadual, passando a ser realizada por uma multiplicidade de entidades, de natureza pública e privada (ao ponto de se poder dizer, como NIGRO73, que em vez de “Administração” se deve passar a usar a expressão “administrações”, utilizando o plural), assiste-se também agora, do ponto de vista externo, ao surgimento de uma dimensão internacional de realização da função administrativa (nomeadamente, no âmbito de organizações internacionais), que leva a falar num Direito Administrativo Global, assente na ideia de “governança” (“governance”)74. Mas é, sobretudo, no domínio do Direito Europeu, que se realiza esta dimensão transfronteiriça do Direito Administrativo, posto que só ao nível da União Europeia (e diferentemente do que sucede no âmbito internacional) é que se verificou a criação de uma verdadeira ordem jurídica, simultaneamente própria e comum, que resulta da conjugação de fontes comunitárias com fontes nacionais e que vigora automaticamente na esfera dos Estados membros (através dos mecanismos do “efeito directo” e da “primazia” do Direito Europeu). Uma União europeia que, entre os seus objectivos fundamentais, visa a prossecução de políticas públicas ao nível europeu, através das administrações dos Estados-membros, que assim são “transformadas” em administrações europeias (ao lado das – relativamente reduzidas - administrações comunitárias, propriamente ditas) para a realização dessas tarefas administrativas75.

72 VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., pp. 114 e 115 (sobre o objecto e o alcance das referidas reformas do Contencioso Administrativo em França, Alemanha, Espanha, Itália e Reino Unido, vide pp. 115 e ss.)73 Neste sentido, vide entre outros SABINO CASSESE, «Diritto Amministrativo Comunitario e Diritti Amministrativi Naziona-li», in CHITI / GRECO (coordenação) «Trattato di Diritto Amministrativo Europeo», Giuffrè, Milano, 1997, páginas 3 e seguintes; «Le Basi Costituzionali», in SABINO CASSESE, «Trattato di Diritto Amministrativo – Dirittto Amministrativo Generale», vol. I, Giuffrè, Milano, 2000, páginas 159 e seguintes; «Trattato di Diritto Amministrativo – Diritto Amministrativo Generale», volumes I e II, Giuffrè, Milano, 2000; MARIO CHITI, «Diritto Amministrativo Europeo», Giuffrè, Milano, 1999; «Monismo o Du-alismo in Diritto Amministrativo: Vero o Falso Dilemma?», in «Rivista Trimestrale di Diritto Amministrativo», n.º 2, 2000, páginas 301 e seguintes; MARIO CHITI / GUIDO GRECO, «Trattato di Diritto Amministrativo Europeo», Giuffrè, Milano, 1997. 74 MARIO NIGRO, «Trasformazioni dell’ Amministrazioni e Tutela Giurisdizionale Difeferenziata», in «Rivista di Diritto e Procedura Civile», Março de 1980, n.º 1, página 22. 75 DOUGLAS LEWIS, «Law and Governance», Cavendish, London / Sydney, 2001; ARNIM VON BOGDANDY «Democrakratie, Globalisierung, Zukunft des Völkesrechts – eine Bestandsaufnahme», in «Zeitschrift für Ausländisches öffentliches Rechts und Völkesrecht», n.º 853, 2002 páginas 63 e seguintes, SABINO CASSESE, «Global Standards for National Administrative Proce-dure», 2005 http://law.duke.edu/journals/lcp .76 Conforme escreve CASSESE, «a ideia dos fundadores da Comunidade europeia era a de instituir um ordenamento jurídico supra-nacional que se sobrepusesse ao dos Estados, mas que não interferisse com as administrações dos mesmos, das quais se deveria antes servir» (SABINO CASSESE, «Le Basi C.», in SABINO CASSESE, «Trattato di D. A.» - «Diritto A. G.», t. I, , cit., p. 172). Mas esta “indiferença” inicial pela “organização administrativa” cedo vai ser alterada, em razão do alargamento das tarefas (administrativas) comunitárias e da necessidade da sua maior eficácia, conduzindo à actual «integração das administrações nacionais

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Surge, portanto, uma “função administrativa europeia”, enquanto ento essencial da “constituição material europeia”76, que vai implicar a “integração” das fontes e das instituições administrativas europeias e dos Estados-membros, originando uma «progressiva comunitarização dos modelos administrativos nacionais», em razão do “corte” das tradicionais “amarras” do Direito Administrativo relativamente ao Estado e o seu «ancoramento na Comunidade [europeia]» (“il disancoraggio del diritto amministrativo dallo Stato e l’ ancoraggio nella Comunità”)»

com a administração comunitária», que é realizada «através de três princípios fundamentais: o que decorre da integração normativa, a proibição de discriminação, o princípio da cooperação» ((SABINO CASSESE, «Le Basi C.», in SABINO CASSESE, «Trattato di D. A.» - «Diritto A. G.», t. I, , cit., pp. 174 e 175).Assim, em primeiro lugar, «as administrações nacionais, com base na concepção monística da integração normativa, aplicam quer o direito administrativo nacional quer o direito administrativo comunitário». Em segundo lugar, a proibição de discriminação (entre sujeitos “nacionais” e de outros Estados-membros), aplicável às administrações nacionais, constitui «um dos principais factores de integração», «sem o qual não existiria liberdade de circulação de pessoas, de mercadorias, de serviços e de capitais». Em terceiro lugar, «o Tribunal de Justiça ampliou o princípio da cooperação [artigo 10º do Tratado], incluindo nele, entre outros, o dever das administra-ções nacionais consultarem a Comissão, o dever de fornecer informações, o dever de cooperar com a Administração de outros Estados» (SABINO CASSESE, «Le Basi C.», in SABINO CASSESE, «Trattato di D. A.» - «Diritto A. G.», t. I, , cit., p. 175).77 Da minha perspectiva – e sem que seja este o momento adequado para aprofundar a questão – o próprio poder constituinte que, nos primórdios do liberalismo, estava indissociavelmente ligado ao Estado, tem assumido também uma dimensão internacional, como su-cede no âmbito da União Europeia, em que a existência de regras e de princípios fundamentais acerca da “repartição de poderes” (tanto entre as próprias instituições comunitárias, umas relativamente às outras, como entre aquelas e as instituições dos Estados-membros), assim como relativos à garantia dos direitos fundamentais (vide “A Carta Europeia dos Direitos Fundamentais”), configura uma verdadeira “Constituição Europeia” (pelo menos, em sentido material), sem que se possa (ou deva) falar de um “Estado Europeu” (neste sentido, FRANCISCO LUCAS PIRES, «Introdução ao Direito Constitucional Europeu», Almedina, Coimbra, 1997; FAUS-TO DE QUADROS, «Direito da União Europeia», Almedina, Coimbra, 2004; ANA MARIA MARTINS, «Introdução ao Direito Constitucional da União Europeia», Almedina, Coimbra, 2004; PETER FISCHER / H. B. KOECK / M. M. KAROLLUS, «Eu-roparecht – Recht der EU/EG, des Europarates und der wichtigsten anderen europäischen Organisationen», 4.ª edição, Linde Verlag, Wien, 2002, páginas 314 e seguintes; KOEN LENAERTS / PIET VAN NUFFEL, «Constitutional Law of the European Union», 2.ª edição, Sweet and Maxwell, London, 2005).

Daí que, a meu ver, grande parte da polémica, tanto em Portugal como noutros países europeus, instalada à volta do anterior projecto de “Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa”, agora substituído pelo “Tratado Reformador da União Europeia” ou “Tratado de Lisboa” (que, para “fugir à controvérsia”, abandona a denominação de “constituição” ou de “tratado consti-tucional”), não esteja bem colocada. Pois, a questão não é a de saber se a Europa deve ou não ter uma constituição europeia – coisa que, de facto, já possui, e há muito tempo -, mas sim a de saber se deve ou não ser aprovada uma “revisão constitucional”, com o conteúdo proposto pela anterior “constituição europeia” ou pelo actual “tratado reformador”, ou se, pelo contrário, é preferível manter-se a cons-tituição tal como está (nomeadamente, com a configuração adoptada pelo Tratado de Nice). Mas essa é “outra história”...Sobre os traços gerais da discussão jurídica acerca do projecto de Constituição Europeia, em Portugal, vide: ALEXANDRA ARAGÃO, «A Governância na Constituição Europeia», in «Colóquio Ibérico: Constituição Europeia. Homenagem ao Doutor Francisco Lucas Pires», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, páginas 105 e se-guintes; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, «Precisará a Teoria da Constituição Europeia de uma Teoria do Estado?», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 665 e ss; PAULO F. DA CUNHA, «A Revolução Constitucional Europeia – Reflexões sobre a Génese, Sentido Histórico e Contexto Jurídico de um Novo Paradigma Juspolíti-co», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 279 e ss.; ANA MARIA MARTINS, «Alguns Tópicos de Reflexão sobre a Constituição Europeia», in «Política Internacional», Primavera/ Verão, 2002, páginas 240 e seguintes; «O Projecto de Constituição Europeia. Contribuição para o Debate sobre o Futuro da União», Almedina, Coimbra, 2004; «Os Valores da União na Constituição Europeia», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 497 e ss.; AFONSO DE OLIVEIRA MARTINS, «O Processo Constituinte Europeu e o Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 485 e ss.; GUILHERME DE OLIVEIRA MARTINS, «O Novo Tratado Constitucional Europeu. Da Convenção à CIG», Gradiva, Lisboa, 2004; MARGARIDA SALEMA DE OLIVEIRA MARTINS, «a Repartição de Competências entre a União e os Estados Membros – As Competências Exclusivas e as Competências Partilhadas», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 529 e ss.; JORGE MIRANDA, «A Constituição Europeia e a Ordem Jurídica Portuguesa», in «O Direito», n.º 134/135, 2002/2003, pági-nas 9 e seguintes; «A “Constituição Europeia” e a Ordem Jurídica Portuguesa», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 537 e ss; JOSÉ CASALTA NABAIS, «Consituição Europeia e Fiscalidade», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 569 e ss; PAULO DE PITTA E CUNHA, «A Constituição Europeia. Um Olhar Crítico sobre o Projecto», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004; «Reservas À Constituição Europeia», Almedina, Coimbra, 2005; MANUEL PORTO, «A Lógica de Intervenção nas Economias: do Tratado de Roma à Constituição Europeia», in «Coló-quio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 635 e ss; MARTA REBELO, «Constituição e Legitimidade Social da União Europeia», Almedina, Coimbra, 2005; MANUEL AFONSO VAZ, «O Sistema de Fontes de Direito no Tratado da Constituição Europeia», in «Colóquio I.: C. E.. H. ao D. F. L. P.», Boletim da F. de D. da U. de C., cit., pp. 651 e ss.

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(CASSESE)77. Desta forma, a União Europeia pode ser considerada como «uma

comunidade de Direito Administrativo», para usar a sugestiva formulação de SCHWARZE78, visto que os respectivos objectivos e tarefas são, em grande medida, de natureza administrativa, como administrativa (em sentido material) é também a função concretizadora das políticas públicas europeias, como administrativas (em sentido orgânico) são ainda as “administrações europeias” que desempenham essa função, quer se trate de instituições comunitárias quer de nacionais. Uma tal dimensão europeia do Direito Administrativo, contudo, para usar de novo a metáfora psicanalítica, se é já hoje uma realidade ao nível do inconsciente – pois todos os publicistas, mesmo sem o saber, aplicam quotidianamente fontes europeias, inserindo-se assim num processo continuado de interacção entre Direito Europeu e Direito Administrativo –, o que é facto é que ainda não se verifica ao nível do consciente, ao nível da doutrina e da jurisprudência, não existindo ainda a necessária verbalização ou a suficiente consciencialização dessa realidade. O que origina, «com frequência, fenómenos patológicos de apreensão da realidade, que tornam imperioso “fazer sentar” o Direito e o Processo Administrativos no “divã da Europa”, de modo a facilitar a saudável conciliação entre as respectivas “facetas” interna e europeia»79. Tão forte é este fenómeno de europeização, «na sua dupla vertente de criação de um Direito Administrativo ao nível europeu e de convergência dos sistemas administrativos dos Estados-membros da União» que, à semelhança do entendimento do «Direito Administrativo como Direito Constitucional Concretizado» (FRITZ WERNER)80, me atrevo a propor «que se passe a entender também o Direito Administrativo como Direito Europeu concretizado»81. Aforismo que necessita, também ele, de ser entendido no duplo sentido (explicitado por HAEBERLE82, no que respeita às relações entre Direito Constitucional e Administrativo, mas que, em minha opinião, é igualmente de estender às ligações entre Direito Europeu e Direito Administrativo) de:

78 SABINO CASSESE, «Le Basi C.», cit., in SABINO CASSESE, «Trattato di D. A. - D. A. G.», cit., p. 180.79 JUERGEN SCHWARZE, «Europäisches Verwaltungsrecht – Entstehen und Entwicklung im Rahmen der Europäischen Gemeinschaft», 1.º volume, 1.ª edição, Nomos, Baden-Baden , 1988, página 3. 80 VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., p. 103.81 FRITZ WERNER, «Verwaltungsrecht als konkretiziertes Verfassungsrecht», in FRITZ WERNER, «Recht und Gericht unser Zeit», Carl Heymanns Verlag, Koeln/ Berlin / Bonn/ Muenchen, 1971, páginas 212 e seguintes. 82 VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., pp. 103 e 104.83 Vide PETER HAEBERLE, «Auf dem Weg. Zum Allgemeinen Verwaltungsrecht», in «Bayerischen Verwaltungsblätter», n.º 24, 15 de Dezembro de 1977, páginas 745 e 746..

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“dependência administrativa do Direito Europeu”. Pois, o a) Direito Europeu só se realiza através do Direito Administrativo, já que, por um lado, as políticas públicas europeias correspondem ao exercício da função administrativa, tal como administrativa é também a natureza das normas que as estabelecem, ao nível europeu, por outro lado, a concretização do Direito Europeu é realizada por normas, instituições e formas de actuação de Direito Administrativo, ao nível de cada um dos Estados que integram a União; “dependência europeia do Direito Administrativo” Pois, o b) Direito Administrativo é cada vez mais Direito Europeu, quer pela multiplicidade de fontes europeias relevantes no domínio jurídico-administrativo, criando uma situação de “pluralismo normativo” no quadro dos ordenamentos nacionais83, quer pela convergência crescente dos ordenamentos nacionais neste domínio, que tem conduzido a uma aproximação crescente dos direitos administrativos dos Estados-membros, na tripla perspectiva: substantiva, procedimental e processual.

O Direito Administrativo transformou-se, assim, num «direito mestiço», segundo a feliz expressão de MARIO CHITTI 84, dotado de princípios, de normas, de noções, de institutos, de correntes doutrinárias ou jurisprudenciais, tanto de proveniência nacional como comunitária, que se combinam e interagem num processo continuado no tempo e no espaço. O que é particularmente notório, designadamente, em domínios como o da noção de Administração Pública, que se transformou numa noção de “geometria variável”, mudando consoante as realidades e os sectores a regular; o das formas de actuação administrativa, em especial no que respeita ao acto administrativo e à contratação pública, como se verá já de seguida; o do Processo Administrativo, em especial no que respeita às questões do âmbito da jurisdição, (da plenitude) dos poderes do juiz e das providências cautelares.

84 De acordo com MARIO CHITI, o «pluralismo jurídico» consiste na «presença simultânea, em todos os ordenamentos, de múltiplas fontes de direito e variedade de direito substancial». Mas esse «fenómeno é particularmente evidente na União europeia, onde os Es-tados membros aplicam, ao mesmo tempo, o Direito Internacional geral, o Direito Internacional “regional”, como seja o decorrente do Conselho da Europa e de outras organizações internacionais europeias, o Direito da União europeia (...), e o Direito nacional» (MARIO CHITI, «Monismo o D. in D. A.: V. o F. D.», cit., in «Rivista T. di D. P.», cit., p. 305). 85 MARIO CHITI, «Monismo o Dualismo in Diritto Amministrativo: Vero o Falso Dilemma?», in «Rivista Trimestrale di Diritto Amministrativo», n.º 2, 2000, páginas 305.

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II. A Europa e as modernas transformações da noção de acto administrativo

Feito o enquadramento do problema, cabe agora analisar algumas das suas mais importantes configurações, designadamente no que respeita às formas de actuação administrativa, pelo que a segunda etapa da nossa viagem consiste na “revisitação” da noção de acto administrativo. Também aqui, a europeização se, por um lado, vai dar continuidade às transformações sofridas pela noção de acto administrativo decorrentes da passagem da Administração Agressiva (“Eingriffsverwaltung”) do Estado Liberal para a Administração Prestadora (“Leistungsverwaltung”85) do Estado Social e para a Administração Infra-estrutural (“InfrastrukturVerwaltung” - FABER86) do Estado Pós-Social, e que conduziram à superação dos “traumas” da sua “infância difícil”, por outro lado, vai introduzir nessa forma de actuação administrativa novas dimensões conceptuais “mestiças”, decorrentes da integração jurídica europeia.

Desde logo, a noção autoritária de acto administrativo como “expressão máxima” do poder estadual, que correspondeu à filosofia da Administração Agressiva do Estado Liberal – e que deu origem às grandes concepções clássicas como a da “decisão executória” de HAURIOU87, a da “definição do direito imposta aos súbditos” de MAYER88, ou a do “acto definitivo e executório” de MARCELLO CAETANO89 –, não faz mais qualquer sentido em nossos dias. Pois, o advento do Estado Social trouxe consigo o novo paradigma do “acto favorável” praticado no âmbito de uma Administração Prestadora, o que significou, por um lado, a perda do carácter “central” do acto administrativo, que passou a ter de ser considerado em “concorrência” com outras formas de actuação administrativa, e integrado no âmbito do procedimento e da relação jurídica, por outro lado, fez deslocar a tónica conceptual dos elementos autoritários para os materiais da criação de direitos e da prestação de bens e serviços aos particulares. Assim como o Estado Pós-social, com a sua nova dimensão de

86 Sobre o sentido e os limites da contraposição entre Administração Agressiva e Prestadora vide OTTO BACHOF, Die Dogmatik des Verwaltungsrechts vor den Gegenwartsaufgaben der Verwaltung», in «Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer», n.º 30, Walter de Gruyter, Berlin, 1972, páginas 193 e seguintes.87 HEIKO FABER, «Vorbemerkungen zu einer Theorie des Verwaltungsrechts in der nachindustriellen Gesellschaft», in «Auf einer Dritten Weg – Festschrift für Helmut Ridder zum siebzigsten Geburtstag», Luchterland, 1989, páginas 291 e seguin-tes; «Verwaltungsrecht», 3ª edição, 1992, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tuebingen, páginas 336 e seguintes.88 MAURICE HAURIOU, «Précis Élèmentaire de Droit Administratif », 5.ª edição (com a colaboração de A. HAURIOU), Sirey, Paris, 1943, página 340.89 OTTO MAYER, «Deutsches Verwaltungsrecht», I volume, 6.ª edição (reimpressão de 3.ª edição, de 1924), Von Duncker & Humblot, Berlin, 1969, página 93. 90 MARCELO CAETANO, «Manual de Direito Administrativo», 10ª edição (reimpressão), volumes I e II, Almedina, Coimbra, 1980, maxime páginas 463 e seguintes.

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Administração Infra-estrutural, trouxe consigo o acto multilateral, produtor de efeitos relativamente a uma multiplicidade de destinatários, noção esta que se encontra já muito distante do paradigma originário clássico do acto administrativo90.

Todas estas transformações do conceito de acto administrativo não apenas são confirmadas como também acentuadas pela europeização, a qual vai contribuir para a consolidação de uma noção aberta desta forma de actuação, correspondente mais ao desempenho da função do que ao exercício do poder administrativo (como outrora). Assim, o efeito da europeização manifesta-se, entre outros, nos seguintes aspectos:

perda da dimensão estatutária do acto administrativo, - decorrente do facto do Direito Europeu regular as actuações administrativas em razão da função que elas realizam e não por corresponderem ao exercício de um qualquer poder, ou de serem provenientes de determinadas entidades. Isto, porque o Direito Europeu se destina a ser aplicado em países com tradições e sistemas jurídicos distintos, valendo tanto para os países de tradição francesa, em que existe uma determinada concepção do acto administrativo, como os de tradição anglo-saxónica, onde tal conceito é desconhecido. Daí que o Direito Europeu, não podendo privilegiar nenhuma das tradições jurídicas em detrimento da(s) outra(s), tenha de procurar um conceito “mestiço”, reconstruindo (em termos “neutros”) a noção de acto administrativo em razão da natureza da actividade que está a ser desempenhada, independentemente de saber se ele é praticado por entidades públicas ou privadas, ou de saber se aquelas se encontram a exercer poderes públicos ou no uso de poderes privados. Verifica-se, assim, um fenómeno de “dessubjectivação” (CASSESE91) do acto administrativo ao nível europeu, uma vez que ele deixa de estar dependente da natureza pública ou privada da entidade que o praticou, ou do estatuto jurídico que ela possua. Esta perda do carácter estatutário do acto administrativo (e, mais genericamente, também do próprio Direito Administrativo), que é determinada pela europeização, corresponde, nomeadamente, à solução

91 Sobre a evolução conceptual da noção de acto administrativo, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em Busca do Acto Adminis-trativo Perdido», Almedina, Coimbra, 1996; «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., pp. 304 e ss.. 92 SABINO CASSESE, «Le Basi C.», in SABINO CASSESE, «Trattato di Diritto A. – D. A. G.», vol. I, cit., pp. 159 e ss..

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consagrada, em Portugal, no art. 4.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, alargando o âmbito da jurisdição administrativa à actuação de sujeitos privados que praticam “actos em sentido europeu”, pois colaboram no exercício da função administrativa, ficando por isso submetidos a um regime jurídico-público (tanto substantivo como processual);

esbatimento do carácter regulador do acto administrativo - (que era um elemento característico das noções clássicas, que surge agora desvalorizado no quadro europeu). Um tal efeito da europeização é visível a dois níveis: por um lado, os procedimentos administrativos são cada vez mais complexos e faseados (nomeadamente, nos domínios económico e ambiental, v.g. os casos de licenciamento da actividade económica ou da avaliação de impacto e de licenciamento ambientais), pelo que o aspecto decisório da regulação tende a diluir-se e a prolongar-se no tempo, sendo partilhado por distintas entidades públicas e construído com a participação de privados; por outro lado, cada vez mais as formas de actuação administrativa do Direito Europeu assumem uma configuração combinatória (afastando-se da respectiva “pureza originária”), nomeadamente misturando elementos unilaterais e contratuais, dimensões sancionatórias com tentativas de aliciamento e de influência (dos consumidores, do mercado), originando actos administrativos sui generis (v.g. os casos da eco-etiqueta, ou da eco-gestão no Direito do Ambiente)92. O que obriga a pôr em causa as fronteiras conceptuais tradicionais (como as que distinguem actos definitivos e de procedimento, actos em sentido estrito e em sentido amplo, actos principais e instrumentais, auxiliares ou acessórios) e convida à adopção de noções amplas e abertas de acto administrativo (à semelhança, de resto, do que já faz o legislador português do Código de Procedimento Administrativo, no artigo 120º);

proliferação de actos administrativos provenientes de - autoridades administrativas independentes, que necessitam

93 Sobre as referidas formas de actuação administrativa ambiental vide VASCO PEREIRA DA SILVA, «Verde Cor de Direito – Li-ções de Direito do Ambiente», Almedina, Coimbra, 2002, páginas 173 e seguintes.

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de ser acompanhados de sistemas de controlo judicial mais eficaz e adequado. Originárias dos sistemas anglo-saxónicos, as autoridades administrativas independentes tendem a generalizar-se em todos os países europeus, tanto em fontes comunitárias como nacionais. Ora, é preciso não esquecer que, mesmo no sistema britânico, em que tradicionalmente se considera que estas autoridades independentes (“tribunals”) desempenham, em simultâneo, funções administrativas e jurisdicionais, vigora o princípio – imposto tanto pelo Direito Constitucional como pelo Direito Europeu, como é expressamente reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina britânicas - segundo o qual os actos praticados por tais entidades se encontram sempre submetidos (para além dos específicos controlos administrativos) a controlo judicial - mediante “judicial review”, que é um meio processual “específico” do Contencioso Administrativo, a correr perante um tribunal (“Queen’s Bench of the High Court”) que, na prática, é de competência especializada em questões administrativas, embora no quadro de uma jurisdição única93. Assim, se é de saudar o surgimento destas entidades administrativas independentes, em sistemas como o português, por efeito da europeização, torna-se igualmente necessário garantir o adequado e eficaz controlo das respectivas decisões (“mestiças”) perante os tribunais competentes, que devem ser, entre nós, os da jurisdição administrativa (à luz dos artigos 212.º, n.º 2, e 268.º, n.º 4, da Constituição e do artigo 4.º do ETAF). Não faz, por isso, qualquer sentido (e pode mesmo originar problemas de inconstitucionalidade) que o legislador português tenha estabelecido, em numerosos casos, que o controlo judicial dos actos administrativos praticados por autoridades administrativas independentes esteja a cargo dos tribunais judiciais (v.g. as decisões da Autoridade da Concorrência, que

94 Sobre a evolução histórica e a actualidade do Direito Administrativo na Grã-Bretanha, vide STEPHEN LEGOMSKY, «Specialized Justice – Courts, Administrative Tribunals, and a Cross-National Theory of Specialization», Clarendon Press – Oxford, Oxford / New York, 1990; MICHAEL HARRIS / MARTIN PARTINGTON, «Administrative Justice in the 21st. Century», Hart Publishing, Oxford, Portland / Oregon, 1999; HOOD PHILIPS/ PAUL JACKSON / PATRICIA LEOPOLD, «Constitutional and Administrative Law», Sweet & Maxwell, London, 2001; PETER LEYLAND / TERRY WOODS, «Textbook on Administrative Law», 4.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2002; HILAIRE BARNETT, «Constitutional and Administrative Law», Cavendish Publishing, London / Sidney, 2002; BRADLEY / EWING, «Constitucional and Administrative Law», 13ª edição, Longman, London / New York, 2003; WADE / FORSYTH «Administrative Law», 9.ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2004; NEIL PARPWORTH, «Constitutional and Administrative Law», Oxford University Press, Oxford / New York, 2006; VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., pp. 56 e ss..

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são fiscalizadas pelos tribunais de comércio), os quais, por não serem especializados em matérias administrativas, não estão em condições de proceder a uma fiscalização tão adequada e eficaz como a que deveria ser realizada pelos tribunais administrativos (à semelhança, de resto, do que tende a suceder em países que, como nós, adoptam a dualidade de jurisdições, nomeadamente a França e a Alemanha).

III. A Europa e as modernas transformações da contratação administrativa

A última paragem desta nossa brevíssima viagem pela Europa das formas de actuação administrativa diz respeito à contratação pública. Trata-se de um domínio historicamente marcado por uma dualidade esquizofrénica, que remonta aos tempos da “infância difícil” do Contencioso Administrativo de tipo francês, quando o Conselho de Estado não era ainda um Tribunal, mas um órgão da Administração, e os “privilégios de foro” relativos aos actos administrativos vão ser também estendidos a certos contratos considerados mais importantes (v.g. por razões de ordem económica ou política). Surge, então, «no Contencioso Administrativo, a primeira manifestação da dicotomia “esquizofrénica” ao nível dos contratos celebrados pela Administração Pública, que leva a distinguir, de “entre os iguais”, aqueles que “eram mais iguais do que os outros”, de modo a lhes poder ser atribuído um “foro especial”, privativo da Administração, enquanto que os demais ficavam submetidos aos tribunais judiciais, como os acordos celebrados entre simples particulares»»94.

Só que essa primeira dualidade de natureza processual vai transformar-se, depois, também numa esquizofrenia de tipo substantivo, em razão da teoria francesa do contrato administrativo. Segundo essa perspectiva, os “contratos administrativos” são distintos dos “contratos de direito privado da Administração”, pois corresponderiam a “privilégios exorbitantes” ou a poderes administrativos “especiais”, enquanto que os segundos corresponderiam a acordos celebrados por entidades públicas mas actuando como simples privados, “desprovidas de poderes de autoridade”. Ora, esta noção de contrato assentava, ela própria, «numa dualidade “esquizofrénica”. Pois, o contrato administrativo é – simultânea

95 VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., pp. 437 e 438.

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e contraditoriamente – visto como um acordo de vontades, ou como um negócio jurídico bilateral, celebrado entre a Administração e os particulares, e como o exercício de poderes unilaterais exorbitantes ou autoritários, por parte das autoridades públicas. O contrato administrativo é, pois, um conceito bifronte – à semelhança de um “monstro de duas caras” -, que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral, consenso de vontades e supremacia (ou submissão) de uma parte em face da outra, instrumento de cooperação e mecanismo de sujeição»95.

Ora, a generalização da contratação administrativa em todos os domínios de actuação pública, decorrentes da passagem do Estado Liberal para o Social e deste para o Pós-Social, vai começar a pôr em causa os fundamentos doutrinários desta visão dualista, originando um «movimento de sentido convergente, através do qual se tem vindo a reconhecer que, nem o “contrato administrativo” é tão exorbitante quanto isso, nem os contratos privados da Administração são exactamente iguais aos contratos celebrados entre particulares, o que reflecte, desde logo, uma eventual aproximação entre todos os contratos da Administração» (MARIA JOÃO ESTORNINHO)96.

A nova tendência, no sentido da “unidade” de tratamento de toda a actividade contratual da Administração pública é, por um lado, acção de certos sectores da doutrina, por outro lado, do Direito Europeu. No domínio europeu, as exigências da construção de uma união económica e monetária vão dar origem ao estabelecimento de um regime comum da contratação pública, incluindo regras substantivas, de procedimento e de processo. Surge assim uma noção “mestiça” unitária de contrato público, que “salta por cima das fronteiras jurídicas nacionais” - do “contrato administrativo” francês, do “contrato de direito público” alemão ou do “contrato comum” (igual aos demais) anglo-saxónico -, estabelecendo um regime comum para determinados contratos correspondentes ao exercício da função administrativa. Superam-se, assim, clássicas dualidades esquizofrénicas no domínio da contratação pública com a ajuda do “divã” da Europa, mediante a criação de um regime jurídico comum europeu para certos tipos de contratos, ou para certos domínios de actividade, por se considerar que eles correspondem ao exercício da função administrativa, independentemente das questões de qualificação jurídica específicas dos Estados.

Neste momento, o Direito Europeu da contratação administrativa 96 VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso A. no D. da P. – E. sobre as A. no N. P. A.», cit., pp. 438 e 439.97 MARIA JOÃO ESTORNINHO, «Requiem pelo Contrato Administrativo». Almedina, Coimbra, 1990, página 15.

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é regulado pelas recentes Directivas de 2004, que ainda não se encontram transpostas na ordem jurídica portuguesa, a saber: a Directiva 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à “coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, fornecimento público e serviços”; e a Directiva 2004/17/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à “coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços públicos”. Está, no entanto, em preparação, em Portugal, um projecto legislativo de Código da Contratação Pública, em relação ao qual eu faço, daqui, votos para que seja capaz de proceder à actualização do direito nacional, mediante a adequada concretização das Directivas comunitárias, de modo a permitir abrir caminho para a superação de clássicas dualidades esquizofrénicas (ainda persistentes, nomeadamente no Código de Procedimento Administrativo) mediante a unificação do regime jurídico da contratação administrativa (à semelhança do já sucedido com a presente reforma do Contencioso Administrativo).

É tempo de terminar este passeio pela Europa do Direito Administrativo, mas ainda fica muita coisa por visitar, muito caminho por trilhar. E se, como diz o poeta, “o caminho se faz a caminhar”, no caso do Direito Administrativo Europeu, o caminho é para ser percorrido em conjunto por todos os países membros, construindo um direito que vai para além das fronteiras jurídicas nacionais, mas que não dispensa os contributos dos Estados nem a necessária interacção entre fontes jurídicas comunitárias e estaduais.

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PARECERES

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RECONHECIMENTO ADMINISTRATIVO DE PRESCRIÇÃO EX OFFICIO

PARECER Nº 202/2006PROCESSO Nº 1.024733.06.7.000INTERESSADO: Procuradoria-Geral do MunicípioASSUNTO: Reconhecimento Administrativo de Prescrição ex

officio EMENTA: A PRESCRIÇÃO EM MATÉRIA

TRIBUTÁRIA TEM OS MESMOS EFEITOS DA DECADÊNCIA PORQUE EXTINGUE A OBRIGAÇÃO PRINCIPAL. NA SISTEMÁTICA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002, A PRESCRIÇÃO FICOU SUBMETIDA AO REGIME DAS OBJEÇÕES SUBSTANCIAIS E, POR ISSO, PODE SER DECLARADA EX OFFICIO PELA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. ENTENDIMENTO REFORÇADO PELA LEI PROCESSUAL. SE A ADMINISTRAÇÃO TEM COMO FINALIDADE ÚLTIMA A REALIZAÇÃO DA IDÉIA MATERIAL DE DIREITO QUE CARACTERIZA AS FUNÇÕES LEGISLATIVA E JUDICIAL E CONCRETIZA NORMAS JURÍDICAS NO MESMO PLANO DO JUDICIÁRIO, PODE DECIDIR, POR CONTA PRÓPRIA, PROBLEMAS DE FUNDAMENTAÇÃO E APLICAÇÃO DE NORMAS. ALTERNATIVIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO RELATIVAMENTE AO PROCESSO JUDICIAL. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO ADMINISTRATIVO DE PRESCRIÇÃO EX OFFICIO POR RAZÕES DE EFICIÊNCIA E MORALIDADE.

A questão dos efeitos do reconhecimento da prescrição em direito tributário não é nova, tendo sido objeto de inúmeros trabalhos doutrinários, decisões judiciais e, inclusive, de regulamentação específica, como é o caso da Portaria 250/80, vigente na esfera federal e da Instrução Normativa nº 03/98, do Município de Porto Alegre.97 A conclusão de toda a controvérsia pode ser assim resumida: a prescrição em matéria tributária 98 Instrução Normativa nº 03/98, da Secretaria Municipal da Fazenda.

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acaba por alcançar o direito e esta pode ser declarada pela Autoridade Administrativa se houver provocação.

No Parecer Coletivo nº 188/1998, da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, o relator, Procurador Gamaliel Valdovino Borges, concluiu no sentido de que “ocorrendo a prescrição de crédito tributário, seja a mesma declarada pela autoridade administrativa, para o fim de excluir o débito da dívida ativa, em razão de sua extinção, com o fornecimento de Certidão Negativa, desde que haja pedido, para tanto, do prescribente, vedado o reconhecimento de ofício, e, desde que seja analisado pela autoridade, caso a caso, a inexistência de causas interruptivas ou suspensivas da prescrição, que possam afastar a sua declaração, permitindo, assim, a propositura da competente Execução Fiscal, sob pena de responsabilidade funcional. Decisão esta que sempre deverá ser submetida ao reexame necessário do Eg. Conselho Municipal de Contribuintes.”.

Os tribunais brasileiros já vinham firmando posição neste sentido, e com a recente promulgação da Lei 11.051, de 29.12.04 e Lei 11.280, de 16.02.06, passou-se a admitir, no ordenamento jurídico brasileiro, a proclamação de ofício da prescrição na via judicial.

Considerando que tais dispositivos legais modificam, em parte, a tese do Parecer Coletivo 188/98, é necessário apreciar novamente a questão à luz da indagação que surge, imediatamente, da nova situação que se apresenta, a saber: se a prescrição pode ser declarada de ofício pelo Juiz da execução fiscal, por que a Administração Fiscal não pode fazê-lo, no âmbito de um processo administrativo? Para responder tal questão e orientar a atuação da Administração Fazendária, foi aberto o presente expediente (de ordem da Procuradora-Geral) e a mim distribuído para parecer. É o sucinto relatório.

Para responder à indagação posta, primeiramente, deve ser verificado o tratamento dogmático que vem sendo dado à prescrição em matéria civil e tributária, no Brasil (I). Após este exame, há que se considerar os modos pelos quais o ordenamento jurídico se concretiza, para então, fundamentar-se a possibilidade de declaração de prescrição ex officio na via administrativa (II).

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I – PRESCRIÇÃO EM MATÉRIA CIVIL E EM MATÉRIA TRIBUTáRIA

Através do cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico, uma definição, qualquer que seja a lei que a enuncie, vale para todo o direito, de modo que toda norma jurídica tem a mesma estrutura lógica e atuação dinâmica (regra, fattispecie e efeitos da incidência: a relação jurídica e seu conteúdo - direito e dever, pretensão e obrigação, ação e sujeição). 98 Sendo assim, para o correto enfrentamento da questão, é essencial fazer-se a abordagem sistemático-conceitual do direito válido (de seus conceitos fundamentais), das construções jurídicas e a investigação da estrutura do sistema jurídico e da fundamentação sobre a base dos direitos. Daí necessária a distinção entre prescrição e decadência(a), a verificação da natureza jurídica das relações obrigacionais tributárias (b) e do significado da prescrição em matéria tributária (c). Finalmente, há que se fixar qual é a compreensão dos Tribunais e da legislação no que diz respeito à prescrição em matéria tributária, de modo a verificar, no plano empírico, o que é positivamente válido no País (d)

A. Considerações a respeito da distinção entre prescrição e decadência

A tradição doutrinária do direito civil brasileiro, assente no direito romano, entende que prescrição é juridicamente exceção, e como tal, é faculdade que assiste a quem aproveita.99 Sendo “exceção”, diz respeito à eficácia do direito, da pretensão ou da ação, ou, no dizer de Pontes de Miranda,100 é “contradireito”, na medida em que encobre, paralisa o direito,

99 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, pp. 110 e ss. 100 A relação obrigacional é um vínculo ideal, formado de dois elementos - dever (schuld) e responsabilidade/sujeição (haf-tung) - polarizada pela satisfação do interesse do credor. O crédito (fordenung) é diferente da relação de obrigação (schuldverhältnis). O conteúdo da relação obrigacional pode ser o crédito singular como o dever correlativo (aspectos passivos e ativos) ou decorrente de uma relação total, de que brotam direitos singulares de crédito, como a relação de serviços, etc. A relação se dirige a uma pessoa determinada ou determinável e, nisso, se distingue da relação real. O dever do obrigado (devedor) se dirige a uma ação ou omissão, isto é, a uma prestação. É da essência do crédito que ele se extinga quando o interesse do credor está satisfeito por qualquer maneira. O devedor está obrigado mediante sua força de trabalho e o seu patrimônio (poder jurídico) a servir ao interesse do credor. O crédito outorga ao credor o direito de exigir a prestação e obriga o devedor a fazê-lo. Se o devedor não cumprir a prestação, o credor tem direito a dirigir-se contra o seu patrimônio, mediante o auxílio da autoridade. O direito de crédito, por sua vez, é protegido por uma ação (processual) - execução forçada. As obrigações imperfeitas são aquelas em que, por razões especiais, se negam a ação e a execu-ção forçada. São obrigações sem ação mas não sem sujeição (material), e nisso são diferentes das obrigações naturais romanas. “Não obstante, são verdadeiros créditos, pois podem ser cumpridos. O pagamento efetuado, conhecendo a circunstância de não poder ser executado forçosamente, não constitui doação, e o pagamento feito, (...) não pode ser repetido sob pena de enriquecimento injusto,’’ assevera Ennecerus. Para as considerações seguintes, ver COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo, passim; ENNECE-RUS, Ludwig. Derecho de Obligaciones. V. I. Barcelona: Bosch, 1954, pp. 2 a 13, 286 e 302 e ss; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo 6, p. 42 e ss.

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ação ou pretensão. No direito brasileiro, prescrição é exceção (fato jurídico da prescrição) “que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”.101 A prescrição, então, diz respeito à paz e segurança públicas, para que se limite temporalmente a eficácia das pretensões ou ações. Via de regra, a prescrição não atinge só a ação: atinge também a pretensão, encobrindo-lhe a eficácia, de modo que, como assevera Pontes de Miranda, “quando se diz que “prescreveu o direito”, emprega-se elipse reprovável, porque em verdade se quis dizer que “o direito teve prescrita a pretensão (ou a ação), que dêle se irradiava, ou teve prescritas tôdas as pretensões (ou ações) que dêle se irradiavam”. Quando se diz “dívida prescrita” elipticamente se exprime “dívida com pretensão (ou ação) prescrita”, portanto dívida com pretensão encobrível (ou já encoberta) por exceção de prescrição.”102 O que a prescrição atinge, por conseguinte, é a eficácia de pretensões e ações e não aos direitos. Daí o crédito prescrito ser um crédito acionável toda vez que, se não se opõe a exceção de prescrição, tem por conseqüência a condenação do devedor. Se o devedor alega prescrição, mesmo que a ação seja ineficaz, subsistem certos efeitos do crédito. Assim, no caso de dívida prescrita, exclui-se a repetição enquanto, e se, a exceção não for acolhida, de modo que “o destinatário da pretensão desprovido de ação é obrigado; tratando-se de pretensão do direito das obrigações, é devedor e está sujeito a pagar.”103

Considerando ainda o aspecto da extinção das obrigações, o certo é que só se extinguem com o cumprimento (solutio), isto é, com a realização do mandato dirigido ao devedor: a realização do conteúdo da obrigação pelo devedor, e enquanto tal não tem o caráter de negócio jurídico. A solutio exige também a realização de uma prestação que seja conforme à obrigação, de modo que a prestação não se pode dar sem uma declaração de aceitação do credor. Este deverá aceitar com finalidade de cumprimento.104

Em síntese, para haver prescrição é necessário que exista direito material da parte a uma prestação a ser cumprida a seu tempo, por meio de ação ou omissão do devedor; que ocorra violação desse direito material por parte do obrigado, configurando o inadimplemento da prestação devida; que surja a pretensão como conseqüência da violação do direito

101 Cf.PONTES DE MIRANDA, cit., p. 110.102 Cf.PONTES DE MIRANDA, cit., p. 103.103 PONTES DE MIRANDA, cit., p. 46.104 Cf. ENNECERUS, cit., pp. 302 e ss.

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subjetivo (actio nata) e se verifique a inércia do titular da pretensão em fazê-lo exercitar durante o prazo extintivo fixado em lei. 105

Mesmo que existam dificuldades de distinguir prescrição de decadência, alguns pontos são pacíficos, principalmente o entendimento de que é a ação e não o direito que prescreve. O direito está sujeito à decadência, cujos efeitos atingem a ação somente por via reflexa. O critério é, porém, falho e inadequado, pois carece de base científica.106

Nos termos da construção de Agnelo Filho, uma classificação a priori tem que partir da noção de Chiovenda, de direitos potestativos: a) direitos subjetivos que têm por finalidade um bem da vida, a conseguir-se mediante uma prestação (reais e pessoais): há sempre um sujeito passivo obrigado a uma prestação positiva (pessoal) ou negativa (direito real); b) a segunda categoria é a dos direitos subjetivos potestativos: aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem sobre situações jurídicas de outras, mediante uma declaração de vontade unilateral (estado de sujeição): “a sujeição é um estado jurídico que dispensa o concurso da vontade do sujeito, ou qualquer atitude dele.”107 São exemplos desses direitos: o direito que têm o mandante e o doador de revogarem o mandato ou a doação; o poder que tem o cônjuge de promover o divórcio; o poder que tem o herdeiro de aceitar ou renunciar à herança; o poder que têm os interessados de promover a invalidação dos atos nulos ou anuláveis; poder que tem o sócio de promover a dissolução da sociedade; o poder que tem o contratante de promover a rescisão do contrato por inadimplemento, etc. Com isso, afirma-se que são direitos insuscetíveis de violação, e a eles não corresponde uma prestação.

De outra parte, há várias categorias de direitos potestativos: a) os que se exercitam e atuam mediante simples declaração de vontade de seu titular, independentemente da via judicial e sem o concurso da vontade daquele que sofre a sujeição: direito de revogação de mandato, aceitação da oferta, etc; b) os direitos potestativos que podem ser exercitados mediante simples declaração de vontade do titular, sem apelo à via judicial mas com o concurso da vontade do que sofre a sujeição: direito do condômino de exigir a divisão de coisa comum, o que tem o doador de revogar a doação;

105 Cf. CÂMARA LEAL, Antonio Luiz. Da Prescrição e da Decadência., 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 25.106 FILHO, Agnelo Amorim. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações im-prescritíveis. Revista dos Tribunais. Ano 49. Vol. 300. São Paulo, 1960, pp.7 a 37. Referindo-se ao Código Civil de 1916, Agnelo Filho asseverou que o diploma legislativo não diferenciou prescrição e decadência de forma inequívoca, englobando, “indiscriminadamente, os prazos de uma e de outra.” Conquanto o Código Civil de 2002 não tenha igualmente feito uma rigorosa distinção entre prescrição e decadência, continuam sendo pertinentes as conclusões do referido trabalho, que é um clássico da doutrina civilista brasileira. ao lado do texto de Câmara Leal,.107 Chiovenda, apud AGNELO FILHO, cit., p. 11.

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c) na terceira categoria estão os direitos potestativos que só podem ser exercidos por meio de ação, como por exemplo, aqueles direitos potestativos que dizem respeito ao estado civil das pessoas.108 Relativamente às ações por meio das quais são exercidos os direitos potestativos da segunda e da terceira categorias, o autor não pleiteia do réu qualquer prestação: o que ele visa é a criação, modificação ou extinção de determinada situação jurídica, sofrendo o réu uma sujeição. São as ações constitutivas e, por isso, diz-se que os direitos potestativos são, por definição, sem pretensão. Nas ações condenatórias, ao contrário, pretende-se obter do réu uma determinada prestação (positiva ou negativa), de modo que são meio de proteção daqueles direitos suscetíveis de uma violação.

Seguindo estes critérios, verifica-se que é a lesão do direito que dá origem a uma ação e à possibilidade de propositura desta, com a intenção de reclamar uma prestação. Daí só as ações condenatórias poderem prescrever, pois elas são as únicas ações por meio das quais se protegem direitos sucestíveis de lesão. Por outro lado, também por razões de segurança jurídica e tranqüilidade social, fundamento dos institutos que tratam da incidência do tempo nas relações jurídicas (prescrição e decadência), há a necessidade de se estabelecer prazo para o exercício de alguns direitos potestativos. Nestes casos, o decurso do prazo sem o exercício do direito implica extinção deste, de modo que, se a lei fixa prazo para o exercício de um direito postestativo, o que ela tem em vista é a extinção desse direito e não da ação: esta se extingue pela via indireta. Então, se fala em decadência e não, em prescrição. Em resumo: as ações constitutivas, porque não são ações de prestação nem estão ligadas a um direito suscetível de lesão, não podem ficar subordinadas a um prazo prescricional, pois prescrição e lesão do direito são conceitos correlatos e inseparáveis (causa e efeito). Por isso, quando o legislador subordina uma ação constitutiva a prazo extintivo, tal prazo só pode ser de decadência. Em conclusão, estão sujeitas a prescrição todas as ações condenatórias; estão sujeitas a decadência as ações constitutivas que têm o prazo especial fixado em lei; são perpétuas (imprescritíveis) as ações constitutivas que não têm o prazo especial fixado em lei, e todas as ações declaratórias.

B. A relação obrigacional tributária

Na atualidade, a tarefa de formação e conservação da unidade política109 é do Estado - atuação e atividade dos poderes que se constituem sobre a base da unidade sempre a ser formada, conservada e continuando a 108 AGNELO FILHO, cit., p. 15.109 Unidade política é “unidade de ação possibilitada e produzida por acordo ou compromisso, por aprovação tácita ou mera aceitação e respeito, eventualmente, até por coação exercida exitosamente, portanto, uma unidade funcional. Esta é pressuposto para isto, que no interior de um determinado território, decisões obrigatórias possam ser tomadas e sejam cumpridas, que, portanto, exista “Estado” e não anarquia ou guerra cvil”, diz HESSE, in: Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alema-nha. Tradução da 20a. ed. alemã de Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, por Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998, p. 30.

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formar - . Como o nascimento da unidade política é um processo permanente, necessita de uma colaboração organizada, ordenada procedimentalmente, isto é, de uma ordem jurídica que garanta “o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais.”110 No direito brasileiro, como de resto em todas as democracias ocidentais contemporâneas, o centro do sistema jurídico é a Constituição - a ordem jurídica fundamental da coletividade, pois ela determina os princípios retores da formação da unidade política e das tarefas estatais, regulando os procedimentos de vencimento de conflitos no interior da coletividade e fundamentando competências.

A relação constitucional do Estado é uma atividade contínua relacionada ao bem comum e se sustenta e se alimenta ‘da inteligência e vontade do homem’, cuja ‘energia dinâmica’ – “capacidade de agir (poder ou força natural e racional) dos indivíduos humanos criadores do Estado” – gera dois campos de força equilibrados e em sentido contrário: o feixe de deveres centrípetos – a relação tributária – e o feixe de direitos centrífugos – a relação administrativa. Os deveres centrípetos são aqueles que o direito tributário define e disciplina; os direitos centrífugos são definidos e disciplinados pelo direito administrativo, de modo que os indivíduos, pólos da relação constitucional, contribuirão para a Receita e participarão dos frutos da Despesa. Então, o Estado, na relação jurídica111 de administração, figura no pólo negativo, e os indivíduos, no pólo positivo; ao contrário, na relação jurídica de tributação, quem está no pólo negativo são os indivíduos e, no pólo positivo, o Estado. Ora, a relação tributária nada mais é do que uma relação obrigacional, polarizada pelo interesse do Estado (credor) e pelo interesse público. Contribuinte é quem tem uma relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato jurídico tributário. Posta a questão neste termos, tem-se que a relação jurídico-tributária é uma relação obrigacional– pessoal112-, sendo seu objeto a renda, o patrimônio ou o consumo de 110 HESSE, cit., p. 35.111 Consoante Paulo de Barros Carvalho, “relação jurídica é definida como aquele vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação.” In: Curso de Direito Tributário. 8ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 194. 112 Aqui não é o caso de se fazer a discussão sobre a natureza “real” de certos tributos, como o imposto sobre propriedade territorial urbana ou rural. A afirmação destacada acima parte, resumidamente, do seguinte ponto de vista: aplicar aos tributos a distinção “direito real”/’direito pessoal”, é uma incompreensão do ordenamento jurídico atual, mas, uma vez que isso tem sido repetido à exaustão, com base em um argumento de autoridade e em uma equivocada interpretação do direito romano, cabe esclarecer definitivamente a questão com base nos próprios argumentos utilizados pelo Ministtro Moreira Alves (RE ), julgador do leading case que firmou a posição do STF no sentido de ser o IPTU um imposto “real”. È impossível aceitar a distinção impostos reais/impostos pessoais porque estas categorias, herdadas do direito romano e conservadas pelo direito romano-germânico até nossos dias, correspondem à contraposição existente no direito romano primitivo entre actio e vindicatio ou entre actiones in rem e actiones in personam, isto é, a formas diversas, porém equivalentes, de tutela judicial. A partir da época republicana, obligatio passa a ser um termo jurídico conhecido com o mesmo significado de obligare (atar), usado em relação às coisas (obligare rem - atar a uma coisa, dá-la em garantia) e pessoas (obligare perso-nam - impor um dever a uma pessoa). Este uso, porém, não descaracterizava a natureza do vínculo, de modo que, no direito justinianeu, pode-se falar em obrigações pessoais e obrigações reais. Daí não se poder aproximar a obrigação tributária às chamadas obrigações propter ou ob rem, (categoria moderna) porque estas, em que pese nascerem de um direito real do devedor sobre determinada coisa (a que aderem), serem transmissíveis (se o direito de que se origina é transmitido, a obrigação o segue, qualquer que seja o título transla-tivo) e constituírem uma exceção ao princípio da determinação dos sujeitos da relação obrigacional, continuam sendo, em substância, um vínculo jurídico obrigacional. A distinção para com as obrigações stricto sensu é tão-somente o fato de as denominadas obrigações propter rem admitirem, por sua própria natureza, a substituição do sujeito passivo que, assim, se determina mediatamente. Pode-se, inclusive, dizer que tais obrigações, por sua vinculação ao bem, têm seqüela. Por fim, a despeito de ser predominante no direito brasi-leiro a tese da realidade das obrigações propter rem, é irrecusável que constituem um vínculo jurídico pelo qual uma pessoa, embora

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determinado sujeito.A relação obrigacional tributária é constituída pelo fato gerador

e perfectibilizada pelo lançamento porque é dever jurídico significado pelo art. 113 do CTN. Aqui se impõe uma precisão de conceitos, muitas vezes confundidos, ou seja, a distinção entre dever e obrigação: dever é uma categoria formal, não se vincula a um determinado direito positivo. Obrigação é categoria material, jurídico-positiva, isto é, é definida em seus contornos pelo direito positivo. É pacífico o entendimento de que o dever comporta modais deônticos (autorização, proibição e obrigatoriedade) e de que há dever jurídico quando a conduta é prescrita e de observância obrigatória. Com isso, nas relações jurídico-tributárias, observa-se a existência de vínculos com substância patrimonial (regra matriz de incidência) e aqueles que tornam possível a operatividade da instituição tributária, qual seja, os deveres instrumentais e formais. Só aos primeiros vínculos se pode dar, propriamente o nome de ‘obrigação’, na medida em que as outras relações, cujo objeto é um fazer ou um não fazer, “não apresentam o elemento caracterizador dos laços obrigacionais, inexistindo nelas prestação passível de transformação em termos pecuniários”.113 Daí a relação obrigacional tributária corresponder, na linguagem do CTN, à obrigação principal (dar); à relação jurídico-tributária, corresponde àquela relação de caráter instrumental e preparatório denominada, impropriamente, na lei tributária, de obrigação acessória. 114 substituível, fica adstrita a satisfazer uma prestação no interesse de outra. Não consiste em fazer de algo uma coisa nossa e, como nos direitos reais, tais obrigações obedecem ao princípio do numerus clausus, não existindo outros tipos além dos configurados em lei. 113 CARVALHO, Paulo de Barros, cit., p. 198.114 Cf. SOUTO MAIOR BORGES. Obrigação Tributária (uma introdução metodológica). 2ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999pp. 31 e ss. Na teoria geral do Direito, tecnicamente, sanção, em sentido amplo, é a conseqüência atribuída a determinados atos que a ordem jurídica tem por relevantes, isto é, que são suporte fático - hipótese de incidência, fato gerador, fattispecie - de regra jurídica, segundo a terminologia kelseniana e de Pontes de Miranda. As sanções, via de regra, podem ser negativas ou positivas, isto é, inibem ou premiam comportamentos. Daí que a sanção negativa, com a finalidade de inibir certas condutas, implica a retirada ou limitação de bens que são valiosos para aquele que se conduz contrariamente ao preceito estabelecido no padrão de comportamento (comando da norma). A san-ção negativa, mais propriamente denominada pena, impõe-se ao sujeito mesmo contra sua vontade, afetando sua propriedade e/ou sua liberdade. No caso das execuções forçadas (limitações ao direito de propriedade), têm-se as chamadas sanções negativas civis. Quando a restrição afeta a liberdade, tem-se a pena stricto sensu. Assim, em última instância e de modo geral, sanções são conseqüências dos atos ilícitos, criadas pelas regras jurídicas, para os reprovar, ou “(...) o dever preestabelecido por uma regra jurídica que o Estado utiliza como instrumento jurídico para impedir ou desestimular, diretamente, um ato ou fato que a ordem jurídica proíbe”, porque ao criar uma prestação jurídica, concomitantemente, o legislador cria uma providência ao não-cumprimento do referido dever. No campo do direito tributário, a regra sancionatória descreve um fato que se consubstancia no descumprimento de um dever estipulado na regra-matriz de incidência, ou “a não- prestação do objeto da relação jurídica tributária.” Tal conduta é que se denomina ilícito ou infração tributária. De um ponto de vista rigorosamente formal, há que se salientar, neste particular, que as infrações tributárias constituem uma espécie de infração da ordem jurídica de natureza idêntica às incorporadas no Código Penal e nas leis penais especiais, uma vez que as normas que definem infrações e estabelecem sanções negativas são de natureza jurídico-penal, independentemente do texto positivo em que se encontram incorporadas. Relação jurídica sancionatória é, então, aquele vínculo entre o autor da conduta ilícita e o titular do direito violado e, no caso de penalidades pecuniárias ou multas fiscais, o liame é obrigacional, uma vez que tem substrato econômico, e , daí, o pagamento da quantia estabelecida ser promovido a título de sanção. Tratando-se de outro tipo de sanção, modifica-se apenas o objeto da prestação, que pode ser um fazer ou um não-fazer. Em matéria tributária, o ilícito advém, ou da não-prestação do tributo (da importância pecuniária), ou do não cumprimento de deveres instrumentais ou formais. Infração tributária, é, assim, conforme lição de Paulo de Barros Carvalho, “toda ação ou omissão que, direta ou indiretamente, represente o descumprimento dos deveres jurídicos estatuídos em leis fiscais”.Isto posto, tem-se que sanção tributária é a relação jurídica que se estabelece, por força da prática de um ato ilícito, entre o titular do direito violado – o Fisco – e o agente da infração – o contribuinte - , de forma que obrigação é o dever jurídico cometido ao sujeito passivo e sanção “a importância devida ao sujeito ativo, a título de penalidade ou de indenização, bem

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Embora o legislador tributário tenha sido impreciso quando separa

“obrigação” de “crédito”, pode-se assimilar a linguagem do CTN, no final do §1º do art. 113, que, ocorrido o fato jurídico tributário, instaura-se a relação obrigacional, com o crédito para o sujeito ativo e o débito para o sujeito passivo. Na medida em que tal crédito (e seu correlato débito) nem sempre são imediatamente determinados, certos e líquidos, faz-se necessário um ato administrativo, conhecido por lançamento tributário. Nos termos do CTN, o lançamento é concreção ou individualização de norma tributária.115 Quer dizer, para aplicação das normas tributárias, impõe-se verificar se ocorreu determinado fato - o fato jurídico tributário (tatbestand, fattispecie, fato gerador, suporte fático), e isto é, em parte, “a função concretizadora da norma individual posta pelo ato administrativo de lançamento”.116 Assim, “à verificação da ocorrência do fato jurídico tributário (CTN, art. 113, § 1º), segue-se um ato administrativo concreto – o lançamento (CTN, art. 141, caput)”.117 À autoridade administrativa compete, privativamente, constituir o crédito tributário pelo lançamento. Desta forma, a Administração Fazendária deve: a) verificar a ocorrência do fato gerador; b) determinar a matéria tributável; c) calcular o montante do tributo devido; d) identificar o sujeito passivo e, e)propor a aplicação da penalidade cabível, quando for o caso.

C. Extinção da obrigação tributária

A relação jurídica tributária, como nexo abstrato que é, nasce com a ocorrência do fato gerador e, após haver realizado seus objetivos reguladores de conduta ou por razões que o Direito estipula, extingue-se. Desaparecendo os elementos integrativos da relação obrigacional (sujeito ativo, sujeito passivo, objeto, direito subjetivo de que é titular o sujeito pretensor - desaparecimento do crédito - e dever jurídico cometido ao sujeito passivo - desaparecimento do débito), decompõe-se a figura obrigacional. Afora o desaparecimento do objeto prestacional estritamente considerado, o CTN contempla todos os demais casos de desaparecimento dos nexos que compõem a obrigação. como os deveres de fazer ou não-fazer, impostos sob o mesmo pretexto.” Tal relação jurídica (sancionatória) pode assumir caráter obrigacional stricto sensu, quando se tratar de penalidades pecuniárias, multas de mora ou juros de mora, ou veiculadora de deveres de fazer ou não-fazer, sem conteúdo patrimonial (obrigação lato sensu). Destarte, existem várias modalidades de sanções que o legislador brasileiro associa aos ilícitos tributários que elege.115 Que a obrigação tributária surja com o fato gerador (tese declaratória do lançamento) é posição assente na doutrina e acolhida pelo CTN.116 Cf. SOUTO MAIOR BORGES, José. Lançamento Tributário. 2a. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.82. 117 SOUTO MAIOR BORGES, idem, ibidem.

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O artigo 156 do Código Tributário Nacional dispõe textualmente que a ocorrência de prescrição ou de decadência “extingue o crédito tributário” e tem sido interpretação corrente que, equiparados os dois institutos, quando ocorrer prescrição, “por via reflexa”, extingue-se o direito material, isto é, opera-se também a decadência. Independentemente da impropriedade de tal redação, os autores nacionais têm-se esforçado para chegar a um acordo no que diz respeito aos efeitos de prescrição e da decadência no direito tributário. Dado que decadência e prescrição são “mecanismos de estabilização do direito, que garantem a segurança de sua estrutura”, no direito tributário, estas operam sobre as fontes de produção de normas individuais e concretas, “interrompendo o processo de positivação do direito tributário.” 118. Aplicando-se a regra da decadência, extingue-se o direito de constituir o ato administrativo de lançamento tributário, o direito ao crédito e o direito de pleitear o débito do Fisco; com a aplicação da regra de prescrição, extingue-se “o direito à ação executiva fiscal, à ação de repetição do débito do Fisco ou ao crédito.” Assim, as hipóteses elencandas no art. 174 da lei tributária orientam-se para a extinção do direito de ação do Fisco; a constante do art. 156, V, para a extinção do próprio crédito tributário. Com isso, ocorrendo constituição do crédito pelo lançamento do Fisco e conduta omissiva deste no fluxo de cinco anos contados da data em que o contribuinte foi regularmente notificado (fato prescricional), configura-se a impossibilidade de o Fisco exercer o seu direito de ação e, por via reflexa, extingue-se o seu direito ao crédito constituído pelo lançamento ou por ato de formalização do particular.

Na redação do dispositivo legal comentado, ou o legislador tributário errou mudando o conceito de prescrição, ou “o CTN editou norma própria, específica, no que concerne aos efeitos da prescrição”119, pois, mesmo que a lei diga que a prescrição atinge o direito material, isto não faz com que, repentinamente, prescrição e decadência sejam uma e mesma coisa. Ocorrendo a prescrição, permanece o direito e, daí, no caso das obrigações tributárias, mesmo que o débito seja excluído da dívida ativa, não dever ser eliminado dos demais registros porque, com isso, estar-se-ia extinguindo o direito e o correlativo dever: a prescrição faz desaparecer a exigibilidade, mas não o direito e o correlativo dever. O único modo de assim considerar é entender que o CTN chama de “prescrição” é, na verdade, decadência, pois só esta tem a natureza 118 SANTI, Eurico Marcos Diniz. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2ª. Ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 143.119 BORGES, Gamaliel Valdovino. Parecer Coletivo nº 188/98, fl. 09 deste expediente.

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jurídica de extinguir o direito protegido por ação: a obrigação principal. Ou seja, o instituto da prescrição, quando aplicado ao direito tributário produz efeitos diversos daqueles produzidos no direito civil. Nas palavras do relator do Parecer Coletivo 188/98, “a prescrição em tema tributário tem uma conformação completamente diversa daquela, tendo como criadora dessa nova e diferente roupagem a Lei Complementar, na qual se traduz o Código Tributário Nacional.”

D. Prescrição em matéria tributária (plano empírico)

Na ocasião em que foi produzido o Parecer Coletivo ora comentado (1998), o relator já apontava que o entendimento acima estava sendo delineado pelos tribunais do Estado do Rio Grande do Sul. Passados oito anos, esta posição acabou consagrada, e hoje a jurisprudência dos tribunais brasileiros, de modo geral, e a do Estado, de modo particular, é torrencial no sentido de que a prescrição, em matéria tributária, “atinge o direito em toda a sua inteireza, retirando do Estado qualquer possibilidade de exigir, de receber o crédito tributário após ocorrida a prescrição” 120

De fato, a compreensão que os Tribunais brasileiros emprestam ao CTN é exatamente a de que “ante o que dispõe o art. 156, V, do Código Tributário Nacional, a prescrição não tem o condão apenas de extinguir o direito de ação para a cobrança do crédito constituído. Vai além, pois extingue o próprio crédito, ou seja, tem-se por extinta a própria relação material tributária. Em termos práticos, tem o mesmo efeito da decadência.121 O relator do Parecer Coletivo 188/98 já fizera essa reflexão, mas na época, esta era uma tendência, que só recentemente tomou corpo e se consolidou na Jurisprudência pátria. E justamente porque, em matéria tributária, a prescrição tem os mesmos efeitos da decadência, é que se pode falar em reconhecimento ex officio de prescrição.

O argumento dos Tribunais, antes da edição da Lei Federal 11.280/06, foi sempre no sentido de que a prescrição, ao extinguir a própria relação material de direito tributário, poderia ser declarada de ofício, na medida em que o Fisco perde a legitimidade para cobrar o crédito. Esse entendimento, contudo, não era pacífico, muito antes pelo contrário: a pesquisa da Jurisprudência interna comparada, colacionada neste expediente, bem demonstra que a maioria das decisões não admitia

120 BORGES, idem, fls. 13. 121 APELAÇÃO CÍVEL 70001436607. 1ª. Cãmara Cível do TJRGS. Relator Henrique Osvaldo Poeta Roenick, que se baseia no entendimento predominante do STJ. Todas as decisões juntadas no presente expediente administrativo vão na mesma direção.

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a possibilidade de decretação ex officio de prescrição nas execuções fiscais, antes do advento da comentada lei.

Em que pesem as inúmeras discussões doutrinárias a respeito da falta de técnica na redação do art. 3º da Lei 11.280/06, o fato é que a mesma sepultou a discussão: doravante, os juízes podem - e devem - decretar ex officio a ocorrência da prescrição no curso de um processo fiscal. Nas palavras de Humberto Teodoro Júnior, 122 o Código Civil de 2002, já quebrara “a clássica distinção entre os casos de objeção e exceção,” fazendo com que a prescrição ficasse submetida ao regime da decadência - da objeção - , pois não paralisa a pretensão, mas a elimina ou extingue totalmente. Daí o juiz poder apreciá-la de ofício, uma vez que “a caducidade representa o desaparecimento completo do direito potestativo de alguém. Se não existe mais direito subjetivo, não pode evidentemente o juiz tutelá-lo”.123

Nesta perspectiva, cabe ao jurista reconhecer que o legislador, talvez atento aos aspectos práticos e preocupado com a justiça das decisões, tornou irrelevante a clássica distinção teórica entre exceção e objeção substancial, aplicando à prescrição, em alguns casos, o regime processual da decadência. Como assevera Theodoro Júnior, “é sempre bom ter presente que o legislador não fica jungido às construções teóricas do doutrinador, quando busca disciplinar concretamente as relações sociais por meio do direito positivo. Ao jurista é que cabe conformar suas teorias à nova ordem jurídica imposta pelo legislador.” (grifei)

Remanesce, contudo, a questão da possibilidade de a Administração declarar de ofício a prescrição, hipótese que o relator do Parecer Coletivo 188/98 rechaçou, entendendo-a vedada pelo sistema constitucional tributário nacional (fls. 181). É precisamente este posicionamento que a signatária quer discutir: se a Administração Fazendária pode, por si própria, verificar que o seu direito de lançar decaiu, por que não poderá, diante da verificação da ocorrência de eventos prescricionais (que, repete-se, operam os mesmos efeitos dos fatos decadenciais), auto inibir-se de prosseguir em uma demanda executiva que, ao final, será extinta pelo Judiciário? A resposta a esta indagação passa necessariamente pela compreensão de que, materialmente, o exercício da Função Administrativa não é muito diferente do exercício da Função Jurisdicional. Se o ordenamento jurídico é uma estrutura escalonada de normas, a Constituição é o grau superior, o plano fundamental; a legislação ordinária, o seu grau primário, e a Administração

122 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Novo Código Civil e as Regras Heterotópicas de natureza processual. Colhido em http://americajuridica.com.br, acessado em 01/06/2006. 123 THEODORO JÚNIOR, idem, p. 3.

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e a Jurisdição o seu grau secundário, com idênticas tarefas de criar normas individuais, concretas, com fundamento nas normas do grau primário. O meio pelos quais fazem esta concreção é diverso, mas a concreção é a mesma.124 Por isso, cabe fazer uma apreciação mais minudente desta tese.

II - A CONCREÇÃO DO ORDENAMENTO OPERADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PELO JUDICIáRIO

A. A Função Administrativa

Com o advento do Estado Social de Direito e do Estado Democrático de Direito, houve uma alteração global das relações entre sociedade e Estado, convertendo-se o Estado em Estado econômico, que provê as condições essenciais de vida ao cidadão, através de dirigismo e planificação, com a prestação de bens, serviços e infra-estrutura materiais, sem os quais, aliás, o exercício dos direitos fundamentais não passa de uma possibilidade teórica, e a liberdade, de uma ficção. Surgiram, então, os direitos fundamentais sociais, diluíram-se as fronteiras entre a lei e a administração, incrementaram-se as funções não jurídicas da Administração, o Poder Executivo passou a ter uma certa prevalência sobre o Legislativo, culminando com o reconhecimento dos mecanismos de democracia política como o último quadro capaz de permitir o desenvolvimento de um processo de efetiva socialização do Estado. 125

124 Grau superior é o plano fundamental, corresponde às normas no topo da pirâmide, criadas pelo Poder Constituinte e que formam a Constituição do Estado; grau primário é o Legislativo, o plano das normas gerais, criadas pelos órgãos autorizados pela Constituição a elaborar as leis, que têm, na Constituição, seu fundamento de validade, condicionando, por sua vez, as normas da base do ordena-mento; finalmente, o grau secundário é composto por normas individuais criadas em nível concreto, via processo judicial (decisões ju-diciais) e via procedimentos administrativos (resoluções administrativas), com fundamento nas normas de nível primário. Cf. SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. Direito Constitucional, Direito ordinário e direito judiciário. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nº 3, mar.2005, pp. 07 e ss. 125 Não é o caso de fazer aqui todo o apanhado da problemática do Estado Social. Apenas para a compreensão do que se está a tratar, cabe fazer referência ao Estado Social (Estado de bem-estar ou Estado-providência; Estado-de-partidos ou Estado-de-associações), modelo surgido da crítica reformista ao direito formal burguês em um quadro de profundas transformações da sociedade e do Estado, na Europa do séc. XIX, palco de intensas lutas sociais, decorrentes, basicamente, do extremo estado de penúria das classes trabalha-doras e de sua conseqüente organização política. A feição do Estado, antes “liberal”, no qual os direitos fundamentais de liberdade pessoal, política e econômica constituíam um limite à intervenção estatal, mudou para sempre: surgem os direitos sociais como conse-qüência direta das lutas dos trabalhadores, representando direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza social. A gradual integração do Estado com a sociedade civil acabou por alterar a sua forma jurídica, os processos de legitimação e a estrutura da Administração. O pluralismo democrático, a redefinição do papel dos parlamentos e a adoção da fidelidade partidária, bem como a adoção de novos direitos fundamentais que, ao lado das liberdades públicas, asseguram um quadro de valores mínimos a serem perse-guidos (bem-estar social e distribuição mais eqüitativa da riqueza), são as principais características desta nova forma estatal. A tutela fundamental não é mais a propriedade privada e sim a dignidade da pessoa humana como centro invariável da esfera da autonomia individual que se procura garantir através da limitação jurídica do Estado. Exige-se agora do Estado uma intervenção positiva, para criar as condições de uma real vivência e desenvolvimento da liberdade e personalidade individuais. O que é problemático, no caso brasileiro, é que este modelo sequer chegou a se implementar totalmente, de modo que fica difícil falar de uma “crise” de algo que não chegou a existir como realidade substancial: o Estado de Direito existe como uma estrutura formal e não real. Contudo, na medida em que “somos, ao mesmo tempo, pós-modernos e pré-modernos, sem nunca termos sido modernos,” como acentua Judith Martins-Costa, a crise do modelo do Estado Social tem que ser, ao menos, referida por causa de suas conseqüências, que, no Brasil, foi (e está sendo) a implementação de uma reforma do aparelho do Estado, em direção ao seu “enxugamento”. Ver MARTINS-COSTA, Judith.

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Afora a realização de fins mediatos, há se que considerar ainda a finalidade última da Administração, qual seja, a realização da idéia material de direito que caracteriza as funções legislativa e judicial e que está consubstanciada na Constituição, isto é, a realização do bem da pessoa (a dignidade da pessoa humana) e do bem comum (bem de todos).

Considerando a estrutura peculiar da formação da vontade do Estado em diferentes estágios, a vontade formada pela legislação (edição de normas gerais) é relativamente livre, e a que se forma pela execução (administração e jurisdição) é vinculada. Isso é assim porque, segundo a pré-compreensão que está sendo exposta, só é possível distinguir duas funções estatais, (ainda que tal distinção não seja absoluta, por força do “princípio dinâmico”): toda criação é execução, toda execução é criação, com as duas exceções-limite: a norma fundamental e a execução de sentença. Assim, legislação é a atividade de criação de normas gerais, praticada preponderantemente pelo Legislativo, e Execução (latu sensu), a aplicação das normas gerais a um caso concreto (criação ou constituição da “norma concreta”), praticada preponderantemente ou pelo Executivo, via atos administrativos, ou pelo Judiciário, via atos judiciais.

De um ponto de vista material, todos os atos que aparecem nesta estrutura escalonada como ‘formuladores de direito’ são condicionantes, os que aparecem como ‘execução do direito’ são condicionados. No ápice da pirâmide hierárquica, têm-se atos de pura competência (só se manifesta o aspecto formulador); na base, atos de pura execução, ou obrigação. Vista a estrutura de cima para baixo, os atos intermediários apresentam caráter de formuladores (leis, decretos, sentenças judiciais); ao contrário, de baixo para cima, tais atos intermediários apresentam duplo caráter - formulação e execução.

No entanto não é tão simples a distinção material entre Administração e Jurisdição, na medida em que qualquer tentativa de definição esbarra em questões de fundo que não podem ser desconhecidas. A primeira controvérsia concerne à consideração de jurisdição como

‘Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos’, in: Fundamentos do Estado de Direito. Estudos em Homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. ÁVILA, Humberto (org.) et alii. São Paulo: Malheiros, 2005. É bastante extensa a bibliografia sobre o assunto, mas boas sínteses podem ser encontradas em: SOUZA JÚNIOR, Cézar Saldanha. Consensus e Tipos de Estado no Ocidente. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002 HABERMAS, J. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Tradução brasileira de Strukturwandel des Öffentlichkeit Flávio Kothe, Rio de Janeiro: Tempo Brasilei-ro, 1984 e HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução brasileira Faztizitat um Geltung. Beitr”age zur Diskustheorie des Rechts und des demokratischen Reschtsstaats. 4a. ed. Flávio Beno Siebenneichler Rio de Janeiro, 1997, v. 2.; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra, 1996, v. 4; CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.; NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Coimbra: Coimbra, 1987; FLEINER, F., Les Principes Généraux du Droit Administratif Allemand. Paris: Delagrave, 1933; FORSTHOFF, Ernst. Tratado de Derecho Administrativo. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1958; JELLINECK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1970 e HELLER, Hermann. Teoria del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1955.

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função estatal, reduzindo a primeira e mais fundamental experiência jurídica a uma abstração que termina por estreitar uma visão unitária do ordenamento jurídico. Conforme Satta, mesmo que seja correto do ponto de vista histórico conceber a jurisdição como poder do Estado (emanação de sua soberania ante todas as jurisdições particulares), afirmar que a mesma, juntamente com a Administração e a Legislação, são exaustivas de toda a complexidade e poder do Estado é um grave erro ou, no mínimo, uma visão parcial, pois parte de uma premissa moderna, qual seja, de que o Estado é uma ‘pessoa’ ou um ‘ente’. Por isso, Satta assevera ser Jurisdição a concreção da ordem jurídica ou afirmação da ordem jurídica no caso concreto, de modo que este resta subjetivado no mecanismo da Jurisdição: um sujeito que postula a eficácia do ordenamento em relação a outro sujeito. A postulação pelo ordenamento comporta uma fundamental conseqüência, que gera o que se chama ‘processo’: postular o ordenamento significa postular o juízo, e o juízo é essencialmente processo (processus iudicii), actus trium personarum, em cujo desenvolvimento estão vinculadas as partes e o juiz. Ação, jurisdição e processo são três faces de uma única realidade. Walter Baethgen (...) tem uma posição semelhabte: “A justiça, ou defesa privada – como considerada nos tempos primitivos – constituindo o modo normal de execução dos direitos, é sem dúvida o ponto de partida de uma lenta evolução que culmina na atual idéia de justiça monopólio do Estado político e juridicamente organizado”. Para ele, a resolução de conflitos intersubjetivos – supondo-se seja esta a finalidade da jurisdição – envolve a necessidade de visualizar-se o problema sob dois aspectos: a) o plano abstrato, que é o plano da norma jurídica (atividade legislativa ou de outras fontes), propondo uma solução de comportamento futuro, e b) o plano da concreção da norma abstrata, em que a sentença realiza a “norma do caso”, da mesma forma que também o fazem o “negócio jurídico privado” e o “ato administrativo”.

A segunda observação a ser feita diz respeito a uma concepção geral das funções estatais através dos processos pelos quais elas se desenvolvem no tempo - processo legislativo, processo jurisdicional e processo administrativo – de modo que este desempenha, em relação à função, “o papel de forma externa, no sentido de sua manifestação sensível”.126 126 Ver: MERKL, Adolf. Teoría General del Derecho Administrativo. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1935, p. 228; KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 267 a 374. Tradução brasileira do original inglês General Theory of Law and State, por Luís Carlos Borges; SATTA, Salvatore. Enciclopedia del Diritto. Vol. XIX. Milão: Giuffrè, 1964, verbete “Giurisdizione (nozione generali)”; BAETHGEN, Walter. Teoria Geral do Processo: a Função Jurisdicional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1982, pp. 34/36 e XAVIER, Alberto. Do Procedimento Administrativo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p.27. Tratei dessa discussão in: A delimitação da Função Administrativa na ordem estatal. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2000.

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A Administração se organiza burocraticamente e age de forma vinculada, sujeita ao Princípio da Legalidade. Esta burocracia e sua estrutura hierárquica garantem o respeito e a vinculação à vontade do povo manifestada na legislação. Mais do que isso, da burocracia depende a imparcialidade da Administração, já que ela é titular de interesses coletivos que não podem ser bloqueados por pressão de grupos ou de quaisquer outros interesses. De fato, a Administração deve tratar todos de forma impessoal (corolário do princípio da igualdade) e não se pode valer do aparato administrativo para obter proveito pessoal ou de outrem. Para além disso, deve “proceder com objetividade na escolha dos meios necessários para a satisfação do bem comum”,127 ser imparcial quando pratica atos que afetam interesses privados e ser neutra, no sentido de impedir que seus agentes sobreponham as suas convicções aos interesses que são de todos.

Na medida em que a Administração se programa a si mesma, acaba tendo que abandonar a neutralidade no trato com as normas e assumir algumas das tarefas do legislador, devendo decidir, por conta própria, problemas de fundamentação e aplicação de normas. Tais questões já não podem mais ser decididas sob o ponto de vista da eficácia e exigem uma abordagem racional: na moderna administração de prestações, a solução dos problemas exige o “escalonamento dos bens coletivos, a escolha entre fins concorrentes e a avaliação normativa de casos particulares”,128 bem como discursos envolvendo a fundamentação e a aplicação de normas. Assim, nos casos em que a Administração decide guiada apenas por pontos de vista de eficiência, é necessário buscar a legitimação, desenvolvendo-se através de formas de comunicação e de procedimento. Com isso, torna-se importante adotar processos análogos aos judiciais para a tomada de decisões, isto é, “processos destinados à legitimação de decisões, eficazes ex ante, os quais, julgados de acordo com seu conteúdo normativo, substituem atos da legislação ou da jurisdição.”129

127 ÁVILA, Ana Paula de Oliveira. O Principio da Impessoalidade na Administração Pública. Por uma Administração Imparcial. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Editora Renovar, 2004, p. 26. “Bem comum” é o que edifica a sociedade humana e o que lhe orienta no plano temporal e natural: é a busca da felicidade. Considerada a pessoa humana como centro da ordem política, o bem comum passa a significar as condições de vida social relativas ao seu desenvolvimento integral, isto é, a finalidade do Estado e o fundamento último do Direito. Distinto do bem individual e do bem público (bem de todos por estarem unidos), o bem comum “é um valor que os indivíduos podem perseguir somente em conjunto, na concórdia”. Assim, o bem comum representa a tentativa de realizar a integração social pelo consenso e não se deixa descrever como o somatório dos bens individuais: se é o bem da pessoa na comunidade, depende de vários outros bens que são partilhados. Na prática, isso significa que, sendo impossível definir empiricamente quem seria o “intérprete do bem comum”, os cidadãos entram em conflito e disputam diferentes interpretações do que venha a ser o bem comum (ou de qual seja a finalidade da sociedade humana. Com isso, há necessidade de um debate racional (deliberativo) no âmbito das comunidades políticas, a fim de determinar o seu conteúdo e a sua partilha. Para isso, ver, entre outros: MATTEUCCI, Nicola. In: Dicionário de Política.., cit., pp. 206/207, verbete: “Bem Comum”; BARZOTTO, Luís Fernando. A Democracia na Constituição. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, pp. 34/35. 128 Cf. HABERMAS, Direito e Democracia.., cit., p. 184.129 HABERMAS, idem, ibidem.

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B. A Processualização da Administração: submissão a pautas formais

“Processo” é administração em movimento, é a sua “forma”, ou a expressão dinâmica da função,130 e a extensão das formas processuais à função administrativa marcou justamente a passagem de uma concepção subjetivística (“manifestação da vontade da Administração”) para outra mais objetiva, de modo que, “pelo enfoque da função, entre a norma que atribui o poder e o ato administrativo, coloca-se a função e não a autoridade com sua vontade; o ato administrativo é visto, portanto, como produto da função e não como manifestação pré-constituída de um sujeito privilegiado”.131

Dado que a função administrativa também se exterioriza na “relação de administração”, quando esta se desenvolve segundo um esquema seqüencial em que há contraditório, ela pode ser qualificada como “relação processual administrativa”. Se a relação jurídica é um ‘conceito-quadro’ que permite explicar fenômenos que vão além do ato administrativo como os de participação – dos particulares ou outras autoridades públicas - no procedimento, uma vez que este “constitui uma das modalidades de relação jurídica”, a noção do que seja ‘processo administrativo’ é assimilada à de relação jurídica, na medida em que aquele é um instrumento de regulação dessas relações, “cujos intervenientes são chamados a actuar para a defesa de suas posições jurídicas substantivas.”132

Ademais, os direitos subjetivos dos indivíduos e dos grupos têm uma dimensão procedimental cada vez mais importante na Administração moderna (conformadora de infra-estruturas), pois estes têm faculdades de intervenção e oportunidades de influência no processo administrativo. Essa dimensão procedimental dos direitos subjetivos, que fez nascer um verdadeiro status activus processualis,133 acabou por constituir-se em um

130 A expressão é de BENVENUTI, Feliciano. Funzione amministrativa, procedimento, processo. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1952, pp. 188 e ss. Para o autor, entre o poder e o ato há um hiato que tem que ser preenchido pela noção dinâmica de função, cuja forma sensível é o procedimento: a função é um momento da concretização do poder em ato. 131 MEDAUAR,Odete. A processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: RT,1993,p. 60.132 Cf. PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coimbra: Almedina, 1996, p. 161.133 Tentando conciliar a teoria do status de Jellineck às novas realidades constitucionais e ampliando o sentido democrático-proce-dimental na participação no processo, estendendo-os aos direitos a prestações sociais em geral, Haberle considera a configuração de um status activus processualis, segundo a qual os direitos fundamentais não podem ser vistos em uma perspectiva exclusivamente material, pois implicam uma dimensão procedimental. Habermas considera que essa formulação “sobrecarrega do direito processual, transformando-o no substituto de uma teoria da democracia” ser o mérito dessa formulação, embora admita que ela teve o mérito de chamar a atenção “para o nexo interno entre autonomia privada e pública”. Com isso, independentemente das críticas, tanto a teoria de Jellineck quanto à “correção” proposta por Haberle podem ser aceitas porque são bastante explicativas a respeito das relações dos cidadãos com o Estado. Para isso, ver: JELLINECK, Georg.Diritti Pubblici Subbiettivi. Milano: Società Editrice Libraria. 1912. Tradução italiana da 2ª. Edição alemã, por Gaetano Vitagliano, todo o tempo e especialmente, pp. 96 e ss; HESSE, cit., p. 230; ALE-XY, Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução castelhana da 1ª. Edição de Theorie der Grundrechte Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,pp. 263 a 266; HABERMAS, Direito e Democracia…, cit. p. 150 e PEREIRA DA SILVA, cit., p. 332.

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“princípio estruturador da Administração jurídico-constitutiva”, adquirindo diferentes configurações segundo a legislação, a jurisprudência e a doutrina administrativa, conforme suas especificidades próprias.

Transferindo o centro da atenção do ato administrativo em sentido estrito (provvedimento) para o procedimento, a perspectiva, antes jurisdicional – o procedimento explicava a formação da decisão final da Administração, como um instrumento a serviço do ato – foi deslocada para o procedimento, visto de uma forma autônoma. Isso é assim porque, se a Administração, cada vez mais, “privatiza a sua actividade, ou a contratualiza, o valor publicístico dessa actividade não pode mais ser encontrado no seu regime substancial, mas deve ser procurado para além dela e dos seus resultados, isto é, na sua organização.”134

Dada a progressiva aproximação entre a Administração e o cidadão, o procedimento deixa de ‘pertencer’ à Administração, para tornar-se uma “espécie de “condomínio”, no qual particulares e autoridades administrativas se tornam “cúmplices” da realização das tarefas administrativas”.135 Assim, o procedimento acabou por alterar o ‘tipo burocrático’ de administração delineado por Weber, o qual surge hoje profundamente transformado pela participação, implicando uma “verdadeira e própria repartição do poder (“potestade”) administrativo entre o titular burocrático formal e a pluralidade dos intervenientes”.136

Por procedimento não se entende somente uma seqüência ordenada de atos em vista de uma medida, mas, sobretudo, um modo e um método de ordenar os múltiplos interesses e objetivos públicos que são relevantes para diferentes centros de poder. Com isto, o centro de gravidade do direito administrativo se desloca do ato administrativo e sua concepção clássica de resultado conclusivo da atividade de preparação e de elaboração da decisão para o caminho – o iter – mesmo de formação da decisão. 137

134 NIGRO, Mario. Procedimento Amministrativo e Tutela Giurisdizionale contro la Pubblica Amministrazione (Il probleme di una Legge Generale sul Procedimento Amministrativo) in: Rivista di Diritto Processuale. Nº 2, aprile-giugno 1980, p. 274, .135 PEREIRA DA SILVA, cit., p. 304.136 NIGRO, cit., idem.137 Consoante Giannini, na Itália, a questão de saber se o ato administrativo devia ser concebido ao modo de uma sentença ou negócio jurídico ficou superada pelo estudo do procedimento administrativo, principalmente pela obra de um grupo mais recente de juristas, “que transferiram o centro de sua atenção do ato em sentido estrito ao procedimento administrativo”. De acordo com a corrente doutrinária italiana mais significativa (Cassesse e Nigro), a nova perspectiva acerca do procedimento apresenta duas vantagens em relação à tradicional doutrina do ato administrativo como centro de gravidade da atuação administrativa, a saber: a) a uniformização do tratamento dogmático da atividade administrativa porque o procedimento constitui um fenômeno comum a todos os domínios da Administração e faz a ponte entre a atuação de gestão pública e gestão privada; b) permite compreender a integralidade da ação administrativa e seu relacionamento com os privados, “ao longo do tempo”. A perspectiva é, então, como afirma Nigro, de “técnica de diluição do poder e método de coordenação de organizações”. A teoria austríaca e a alemã diferem um pouco da teoria italiana no sen-tido de que, para os germânicos, o procedimento é condicionante da decisão final (teoria da decisão). Os italianos integram a decisão no procedimento e, por isso, enxergam no procedimento “o novo conceito central da dogmática administrativista”, isto é, a nova realidade reconduz tanto “a actuação das autoridades administrativas como dos particulares a esquemas procedimentais, e preconizando a “ob-jectivização” do Direito Administrativo, dado que todos esses sujeitos se encontram a realizar em conjunto a função administrativa”. Já a doutrina germânica considera a ‘relação jurídica’ como o novo conceito central da dogmática administrativista, e, relativamente ao

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A extensão das formas processuais à atuação da Administração aconteceu em um quadro teórico que procurou explicar o seu novo funcionamento. Em que pese a noção de ato administrativo ainda ocupar um lugar central na formação do direito administrativo de cada país, o fato é que as insuficiências e limitações da doutrina clássica fizeram com que essa noção não pudesse mais ser o centro de gravidade da Administração, pois domínios inteiros estão subtraídos da atividade administrativa autoritária e unilateral, de modo que o ato administrativo foi absorvido por formas de atividade cada vez mais complexas e articuladas. A resposta a este problema foi dada pela doutrina italiana, através da revalorização do procedimento, que supera o clássico dilema de saber se o ato administrativo deveria ser concebido à maneira de uma sentença ou negócio jurídico, isto é, uma das ‘formas de comunicação entre o poder público e os particulares’, ao lado da sentença e da lei. A doutrina italiana seguiu, neste passo, o caminho traçado pelo positivismo jurídico da Escola de Viena, cujos expoentes foram Kelsen e Merkl.

Com efeito, a aproximação da função administrativa com a função jurisdicional enquanto funções executivas “lançou os fundamentos teóricos da idéia de alternatividade do procedimento administrativo relativamente ao processo judicial.”138

Até a década de 20 do séc. XX, entre administrativistas, e a década de 40, entre processualistas, a idéia de ‘processo’ vinculava-se exclusivamente à função jurisdicional do Estado 139 e, entre os administrativistas, a fim de evitar a confusão entre o modo de atuar da Administração e o modo de atuação do Judiciário, reservou-se para o âmbito administrativo o vocábulo ‘procedimento’. Tais posturas podem ser justificadas pela precedência histórica e pela força da construção processual ligada à Jurisdição, pela idéia,

procedimento, “caminha no sentido da radical “subjectivização” deste, procedendo ao equilíbrio das posições relativas dos particulares e das autoridades administrativas.” Ver: GIANNINI, Massimo Severo. Enciclopedia del Diritto.Vol. IV. Milão: Giuffrè, 1988, verbete “Atto Amministrativo”, p.162 e PEREIRA DA SILVA, cit., pp. 302 e ss. 138 Cf. PEREIRA DA SILVA, cit, p. 320. Odete Medauar aponta que, na doutrina estrangeira, é atribuído a Merkl o pioneirismo no tratamento da processualidade no direito administrativo, através da obra publicada em 1927; outro momento doutrinário expressivo foi com a obra de Sandulli, editada pela primeira vez em 1940. Também é de 1940 a obra do espanhol Vilar y Romero. Em 1952, Feliciano Benvenutti, vincula a processualidade à função, como sua manifestação sensível. Em 1968, surge na França o livro de Guy Isaac, em que ele defende a visão global do fenômeno processual jurídico, admitindo a processualidade administrativa. Alberto Xavier, em 1976, na esteira de Benvenuti, publica, no Brasil, a obra Do Procedimento Administrativo, em que advoga a noção ampla de processo como expressão de uma vontade funcional. Na doutrina italiana, a obra de Mario Nigro, desde 1953, dedicou-se ao procedimento adminis-trativo e, em suas obras posteriores, principalmente nos anos 80, o tema foi acentuado e aprimorado. Gergio Berti, em 1986, realizou estudo sobre o processo, “vinculando a função e ressaltando que processo não é necessariamente ligado à jurisdição, no sentido de que a atividade jurisdicional não tem a exclusividade do processo”. In: A Processualidade.,.cit., pp. 18 e ss139 A partir dos anos 50 e 60, aumentaram os estudos a respeito do tema (processualidade dos poderes estatais), até se che-gar, nos anos 70 e 80, à idéia, compartilhada por administrativistas e processualistas, de que o processo é um “conjunto de princípios, institutos e normas estruturados para o exercício do poder segundo determinados objetivos”, para a qual muito contribuiu a obra de Niklas Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, que dá um tratamento unitário, “sob o enfoque da sociologia do direito, aos proce-dimentos juridicamente regulados, com base em formas de procedimento que adquiriram importância especial, inclusive os processos de decisão administrativa”. Cf.MEDAUAR, A processualidade..., p. 12.

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presente durante longo tempo, de que a administração é atividade livre, incompatível com atuações cujo parâmetro seja o ‘processo’, bem como pela preocupação com o termo final da decisão - o ato administrativo - “sem que a atenção se voltasse para os momentos que precedem o resultado final. Ligado a este aspecto, está o zelo doutrinário e jurisprudencial com a garantia a posteriori dos direitos dos administrados, representada pelo controle jurisdicional”.140 Odete Medauar prefere denominar ‘processo’ ao procedimento administrativo, explicando que o receio de confusão com o processo jurisdicional deixa de ter razão de ser quando se adota a idéia de ‘processualidade ampla’, isto é, “a processualidade associada ao exercício de qualquer poder estatal”.141

O processo tende a ser um instrumento para a realização da atividade administrativa, pois acaba definindo a própria forma desta, a teor do que ocorre com a função judicial através do processo ou com a função legislativa, por meio do processo legislativo. Daí decorrem, duas conseqüências: a primeira, de o procedimento jurisdicizar a atuação administrativa, “submetendo-a a regra ou pautas formais”, e a segunda, de o procedimento permitir “aos cidadãos conhecer, anteriormente, o desenvolvimento da atuação administrativa, garantindo assim a defesa de seus direitos e interesses frente a ela”.142

Ante essas considerações, pode-se relacionar a processualização da Administração com um movimento em direção à sua legitimação e moralização 143 e, com isso, pensar como viável a declaração de prescrição ex officio pela Administração Fazendária.

C. Pressupostos da declaração de prescrição ex officio na via administrativa

Em 1998, por ocasião da discussão do Parecer Coletivo nº 188/98, o então Procurador-Geral do Município já alertara para os aspectos de moralidade e economicidade (eficiência) de não executar-se dívida ativa prescrita, “com retardamento das demais execuções e conseqüente prejuízo aos cofres públicos.” 144 Igualmente por razões de moralidade e eficiência, em fevereiro de 2004, a PGM mudou o entendimento no que 140 MEDAUAR, A processualidade...cit, , p. 14. 141 MEDAUAR, A processualidade.., p. 41.142 BARACHO, Teoria Geral...cit., p. 53.143 CF. GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa- fé da Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 250 e ss. No texto, o autor afirma que “toda a principiologia da LPA vai ao encontro do que se pode chamar de “moralização” (...) da Administração”, e que vai na esteira do entendimento da doutrina italiana que só uma lei geral sobre procedimento administra-tivo é capaz de moralizar a Administração e torná-la mais eficiente e imparcial. 144 Ata de Reunião do Conselho Superior da PGM, de 26 de maio de 1998.

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diz respeito ao início da contagem do prazo prescricional, adequando a prática da Administração Fazendária à orientação dominante do STJ, no sentido de que o dies a quo da contagem do mesmo deva ser a data da constituição definitiva do crédito tributário, e não a data em que este se torna exigível.145 Com isso, mediante pedidos formulados judicialmente pela PGM, inúmeras execuções fiscais irremediavelmente atingidas pela prescrição do crédito tributário foram extintas. A Secretaria Municipal da Fazenda, a partir da nova orientação do órgão consultivo, passou a observar idêntico critério em seus procedimentos administrativos de inscrição e cobrança da Dívida Ativa. De lá para cá, ainda que as execuções de dívida prescrita tenham diminuído consideravelmente, mantém-se um alto custo com a execução de dívida prescrita. Atualmente, de um universo de 123 mil execuções fiscais, estima-se que mais de 45 mil ações versam sobre crédito tributário parcial ou integralmente prescrito.

Pelo princípio da proteção à confiança, que compõe a moralidade administrativa,146 não pode a Administração Pública modificar, em casos concretos, orientações firmadas para fins de sancionar, agravar a situação dos administrados ou denegar-lhes pretensões. Isto é assim porque os valores da lealdade, da honestidade e da moralidade aplicam-se necessariamente às relações entre a Administração e os administrados.

Se a Administração não pode exercer seu poder, de forma a atender a confiança daquele com quem se relaciona, tampouco o administrado pode atuar em observância às exigências éticas. A aplicação do princípio da proteção à confiança, sua absorção por determinada realidade jurídica, permite ao administrado recobrar a certeza (confiança de que não lhe será imposta uma prestação que só superando dificuldades extraordinárias poderá ser cumprida) de que a Administração não adotará uma conduta confusa e equívoca que mais tarde lhe permita tergiversar sobre suas obrigações nem exigir do administrado mais do que seja estritamente necessário para a realização dos fins públicos perseguidos.147 Daí o referido princípio visar à conservação de estados obtidos e se dirigir contra modificações jurídicas posteriores.

Assim, pode-se afirmar, em relação à aplicação do princípio, que a Administração Pública e o administrado hão de adotar um comportamento leal em todas as fases de constituição das relações até o aperfeiçoamento do 145 Parecer nº 1091/2004, da lavra do Procurador Cesar Emílio Sulzbach, juntado ao presente expediente. 146 De acordo com José Guilherme Giacomuzzi, o princípio da moralidade abrange três dimensões, a saber: a) a “boa-fé”, que no direito público se traduz pela tutela da confiança; b)a probidade administrativa (deveres de honestidade e lealdade) e c) a razoabilidade (expectativa de conduta civilizada, do homem comum, da parte do agente público).147 Cf. GONZALES PEREZ, Jesus. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. Civitas, Madrid, 1983, passim.

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ato e das possíveis conformações ao que haja nascido defeituoso. A lealdade no comportamento das partes na fase prévia de constituição das relações obriga a uma conduta clara, inequívoca, veraz, pelo que se rechaça qualquer pretensão que se baseie em uma conduta confusa, equívoca e maliciosa. Através do princípio da proteção à confiança, presume-se iuris tantum que os órgãos administrativos exercerão suas potestades de acordo com o Direito, presunção que não pode ser destruída por simples conjecturas.

Resulta disso que a moralidade - na modalidade proteção à confiança - abrange deveres e formula a exigência de comportamentos justificados por parte da Administração, com várias conseqüências que vão, desde a proibição ao venire contra factum proprium e a proibição à inação inexplicável e desarrazoada, vinculada ao exercício de direito, que gera legítima confiança da outra parte envolvida, até o dever de sinceridade objetiva e dever de informação, isto é de não omitir qualquer dado que seja relevante na descrição da questão controversa e/ou que possa auxiliar na sua resolução.148 Por demais evidente que, se a prescrição, em matéria tributária, atinge o direito, fazendo-o desaparecer, a Administração Pública, não pode, em nome do princípio da moralidade (modalidade proteção à confiança) ajuizar dívida prescrita.

Ademais de um juízo de moralidade, há que se fazer um juízo de eficiência para fundamentar a possibilidade de a Administração Fazendária declarar, ex officio, a prescrição de dívida tributária, já que esta tem o efeito da decadência (objeção substancial) e prescinde de provocação.

A eficiência é realização eficaz de fins pré-dados, modo de realização ótima dos fins (noção formal que se traduz em uma relação meios-fins) e exigência de celeridade. A Constituição de 1998, antes da Emenda 19/98, já consagrava a exigência de eficiência para a Administração Pública, como no caso do art. 74, inciso II e § 7º, que determina aos Poderes Públicos a obrigatoriedade de manter, de forma integrada, um sistema de controle interno com a finalidade de “comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial de seus órgãos” e a necessidade de lei para disciplinar “a organização e funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”. A Emenda Constitucional nº 42/03 introduziu, a seu turno, novas disposições de conteúdo para a exigência de eficiência da Administração Tributária,

148 Cf. GIACOMUZZI, A Moralidade Administrativa..., cit., p. 275, aceitando a tese de Egon Bockman Moreira a respeito do telos do princípio da moralidade no art. 37 da CF, in Processo Administrativo. Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999. 2ª Edição, revista e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2003, PP. 108/109.

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ao determinar que as administrações tributárias da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, “atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e informações fiscais, na forma de lei ou de convênio” (inciso XXII do art. 37), além de dispor que compete privativamente ao Senado Federal a avaliação periódica da funcionalidade do “Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 52, inciso XV).

Historicamente essa disposição pode remontar à Constituição Italiana, de 1948, que, de forma pioneira, introduziu em seu texto a garantia do bom andamento da Administração, “com vistas à efetiva realização do conceito de buona amministrazione”, que, aperfeiçoado pela Constituição Espanhola e inscrito na Constituição Brasileira em 1998, ganhou o nome de eficiência. 149

Quando a Constituição da República fala em “Princípio da Eficiência”, segundo o STJ, refere-se ao fato de que “a atividade administrativa deva orientar-se para alcançar resultado de interesse público” (STJ – 6a. T – RMS nº 5.590/95). A doutrina brasileira, ao discutir o conteúdo do referido princípio, consubstanciou duas posições. A primeira é a de que a eficiência é nada mais do que manter de forma integrada sistema de controle interno com a finalidade de comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência da gestão orçamentária, financeira e patrimonial dos órgãos da administração em geral (aí incluídos os do Poder Judiciário, do Legislativo e das entidades públicas). Significa dizer que nem precisaria estar explícito na Constituição porque a eficiência não é um princípio, mas uma finalidade da Administração. Neste sentido, todos os princípios que regem a atividade da Administração devem ser conjugados com o da boa administração (eficiência) que exige o exercício da função administrativa de forma eficiente e congruente. Daí que, segundo esta corrente, o princípio da eficiência só veio a explicitar o que sempre foi finalidade da Administração: garantir qualidade na atividade pública e na prestação dos serviços.

A segunda corrente reconhece a eficiência como “princípio” autônomo, cujo conteúdo é o de que o administrador deve laborar para produzir o efeito desejado, isto é, aquele que dá bom resultado, exercendo sua atividade sob o manto da igualdade, velando pela objetividade e imparcialidade. Se é assim, o referido princípio impõe à Administração a 149 Cf. MOREIRA NETO, Diogo F. , In: Fundamentos do Direito do Estado. Estudos em homenagem ao Prof. Almiro do Couto e Silva., cit., pp. 101/102.

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persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção de critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir a maior rentabilidade social. Assim, o princípio da eficiência dirige-se para a razão maior e fim do Estado, a prestação dos serviços sociais essenciais à população, visando a adoção de todos os meios legais e morais possíveis para a satisfação do bem comum. A conseqüência disso é que a eficiência “se soma aos demais princípios impostos à Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente o da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança e ao próprio Estado de Direito.”150

A posição doutrinária mais forte é a segunda, que entende ser a eficiência um princípio autônomo, que se estrutura como um dever da Administração, qual seja, aquele dever que estrutura “o modo como a Administração deve atingir seus fins e qual deve ser a intensidade da relação entre as medidas que ela adota e os fins que ela persegue.”151

Mas isso, por si só, não diz muito a respeito do conteúdo da eficiência, porque nem sempre, por exemplo, cabe escolher, dentre as várias alternativas possíveis, a menos dispendiosa: o que a eficiência determina é que opção menos custosa deva ser adotada somente se as vantagens proporcionadas por outras opções não superarem o benefício financeiro. Dito de outro modo, a Administração tem o dever de escolher o meio mais econômico somente se restarem inalteradas a restrição dos direitos dos administrados e o grau de realização dos fins administrativos, mas este é o primeiro aspecto da eficiência. O segundo, diz respeito ao dever de promover o fim de modo satisfatório: mais do que adequação, a eficiência da Administração diz respeito à promoção, de forma satisfatória, dos fins em termos quantitativos, qualitativos e probabilísticos.152 Advém daí que escolher um meio para promover um fim, mas promover esse fim “de modo insignificante, com muitos efeitos negativos paralelos ou com pouca certeza, é violar o dever de eficiência administrativa”, diz Humberto Ávila153 e, por isso, se pode compreender por eficiência administrativa pela exigência de promover satisfatoriamente os fins, considerando “promoção satisfatória” aquela minimamente intensa e certa do fim.150 DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 10a. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 73/74. 151 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004., p. 428. 152 “Em termos quantitativos, um meio pode promover menos, igualmente ou mais o fim do que outro meio. Em termos qualitativos, um meio pode promover pior, igualmente ou melhor o fim que outro meio. Em termos probabilísticos, um meio pode promover com menos, igual ou mais certeza o fim do que outro meio”, assevera Humberto Ávila, in: Sistema, cit., p. 428. 153 In: Sistema, cit., p. 430.

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Muito bem, de toda esta discussão conclui-se que a Administração Fazendária, poderá, em nome da eficiência administrativa, declarar ex officio a prescrição de crédito tributário, por várias razões. A primeira delas diz respeito ao enorme custo que o ajuizamento e manutenção de executivos fiscais prescritos implica, a começar pelo tempo gasto para preparar tais execuções, passando pela intensa mobilização de recursos humanos, para se chegar a um resultado zero. Daí, declarar-se administrativamente que ocorreu a prescrição de crédito tributário significa reduzir o custo, além de liberar a Administração Fazendária para atuar com mais eficiência para cobrar a dívida não prescrita. A segunda razão diz respeito à inalterabilidade das posições jurídicas dos administrados com a escolha desta alternativa, porque, se a prescrição produz os mesmos efeitos da decadência em matéria tributária (atinge o direito), o direito a ver a mesma reconhecida já integra o seu patrimônio, não sendo necessária a sua provocação na via administrativa. Finalmente, no que diz respeito ao terceiro juízo de eficiência, a declaração ex officio da prescrição na via administrativa, otimiza o fim da Administração Fazendária, qual seja, arrecadar a maior quantidade de créditos tributários no menor tempo possível.

Assim sendo, em termos quantitativos, a declaração ex officio de ocorrência de prescrição promove mais o fim da Administração Fazendária do que a declaração provocada, porque, ao reduzir, de plano, o universo de ações ajuizadas, gasta menos tempo e dinheiro para cobrar o crédito “bom” (não prescrito). Em termos qualitativos, essa alternativa promove melhor a finalidade da arrecadação, porque, ao prescindir da provocação administrativa do interessado, aquela poderá mobilizar os seus esforços para resolver uma grande quantidade de situações pendentes, com os recursos materiais e humanos de que dispõe e efetuar melhor o controle de legalidade destas decisões. Em termos probabilísticos, o meio escolhido - declaração administrativa ex officio de prescrição de crédito tributário - promove com igual certeza o fim (incrementar a arrecadação e garantir o respeito às posições subjetivas dos contribuintes), uma vez que, a partir de tais declarações, a Administração Fiscal se libera do custo de manter a cobrança de crédito prescrito e dirige os seus esforços para cobrar os créditos íntegros. O respeito aos direitos dos contribuintes se dá com a mesma certeza que as declarações provocadas, porque tais declarações também deverão constar, necessariamente, de processos administrativos submetidos ao controle do Tribunal Administrativo de Recursos Tributários (TART) .

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Diante desse quadro, a aceitar-se a tese aqui exposta, cabe fazer uma apreciação do procedimento administrativo necessário para a operacionalidade das declarações administrativas de prescrição. São várias as hipóteses em que, a meu ver, isso pode ocorrer. A primeira hipótese poderá ocorrer quando a Secretaria Municipal da Fazenda, por ocasião da preparação dos documentos que instruirão a execução fiscal, a ser ajuizada pela PGM, verificar a não ocorrência de causa suspensiva ou interruptiva do curso do prazo prescricional. Constatada tal situação, o próprio órgão responsável declarará prescrito o crédito, em expediente aberto com este fim, fundamentando-se neste Parecer, sujeitando tal decisão à apreciação do Secretário Municipal da Fazenda.

A segunda hipótese é aquela em é constatada, pela SMF ou pela PGM, a ilegitimidade do sujeito passivo da execução. Nesta situação, deverá ser adotado o procedimento descrito na Informação nº 08/2006, da lavra do Procurador Gamaliel Valdovino Borges, nos seguintes termos: a SMF emitirá nova CDA, substituindo o sujeito passivo, para fins de ajuizamento de nova execução fiscal, contemplando somente os lançamentos hígidos, isto é, aqueles não alcançados pela prescrição, ao mesmo tempo em que dará baixa àquele executivo .

O terceiro caso é aquele em que há a declaração judicial de nulidade da CDA, por vícios formais. Nesta situação, deverá haver o mesmo juízo descrito na primeira hipótese, qual seja: a SMF verifica se o crédito permanece ou não hígido. No caso do crédito em questão já ter sido fulminado pela prescrição, adotar-se-ão os procedimentos para cancelamento administrativo do crédito.

No caso de ação executiva em curso, não havendo arguição de prescrição pela parte e o juiz, atendendo ao disposto na lei processual, determinar a manifestação da Fazenda Pública, poderá o procurador responsável concordar com a extinção do processo, desde que verificada a ocorrência de prescrição e a impossibilidade de ajuizar-se nova execução. Ressalte-se que esta hipótese não constitui qualquer reconhecimento administrativo de prescrição ex officio, e sim anuência da Administração com a extinção do processo, uma vez que a ocorrência da prescrição do crédito será declarada pelo Judiciário.

Quando a declaração administrativa de prescrição implicar o cancelamento de lançamento, cujo valor esteja inscrito em Dívida Ativa, o órgão superior - a Secretaria Municipal da Fazenda -, deverá recorrer, de ofício, ao TART, nos termos do art. 67, da LCM 07/73, cuja redação

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foi alterada pela LCM 482/2002. Nestas condições, todas as manifestações dos órgãos internos da Administração ficam sujeitas à discussão em um procedimento formal e ao controle interno de legalidade.

Em conclusão, opino pela possibilidade de reconhecimento ex officio de prescrição na via administrativa, nas hipóteses acima elencadas e desde que observados os procedimentos administrativos cabíveis.

Na medida em que este posicionamento contraria, em parte, o entendimento consubstanciado no Parecer Coletivo nº 188/98, cujo relator foi o colega, Procurador Gamaliel Valdovino Borges, a tese aqui veiculada deve ser submetida à apreciação do Conselho Superior da Procuradoria Geral do Município, para que se modifique (ou não) aquele entendimento.

É como opino, s.m.j. À Consideração Superior. Porto Alegre, 06 de setembro de 2006.

Maren Guimarães Taborda(Procuradora Municipal ASSEALI/PGM)

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HOMOLOGAÇÃO

Homologo o Parecer Coletivo n°202/2006, da lavra da Procuradora Maren Guimarães Taborda que altera o entendimento expresso no parecer coletivo n°188/89, concluindo pela possibilidade de reconhecimento administrativo de prescrição ex officio, por razões de eficiência e moralidade, e nos termos das Leis Civil e Processual vigente.

Registre-se. Encaminhese cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de Assuntos Fiscais, à Procuradoria da Dívida Ativa, à Procuradoria de Defesa Tributária e à Secretaria Municipal da Fazenda, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 13 de outubro de 2006.

Mercedes Maria de Moraes RodriguesProcuradora-Geral do Município

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CONSELHO MUNICIPAL DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL

Parecer nº1122/2005Processo nº 1.040614.05.0Interessado: Luiz Osvaldo Leite - Secretaria Municipal de

Educação

EMENTA: CONSELHO MUNICIPAL DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL – COMPAHC. COMPOSIÇÃO DO CONSELHO. NOMEAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL APOSENTADO. POSSIBILIDADE.

Dra. Procuradora-Geral do Município de PortoAlegre:O presente expediente é apresentado em forma de consulta pela

Sra. Presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural em vista de ofício remetido pela Sra. Secretária Municipal da Educação que indica como seu representante, para integrar o Conselho, o Sr. Luiz Osvaldo Leite, servidor municipal aposentado. Foi anexada identificação do indicado.

Foi encaminhada a consulta sobre a possibilidade de indicação de servidor inativo a esta Equipe de Pessoal Estatutário da Procuradoria-Geral do Município.

Portanto o questionamento central é o seguinte:

Pode ser nomeado para o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC, como representante da Secretaria Municipal da Educação, servidor público municipal inativo?

É o breve relato.

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1) Da participação política na gestão pública local

Na gestão pública, termo pelo qual designa-se a estrutura político-burocrática do Estado de forma ampla, há um staff dirigente e executor das decisões públicas. Também a gestão pública municipal envolve a existência desse staff dirigente e executor em nível local.

Em regra, a participação das pessoas da comunidade local na gestão pública municipal, no sentido estrito acima descrito, concentra-se na escolha do staff dirigente por eleições154, como no caso do chefe do Poder Executivo e representantes de Poder Legislativo, e, de outro lado, estes encarregam-se da elaboração da legislação relativa à seleção dos demais integrantes do staff, como, por exemplo, pelas regras do concurso público.

Todavia, se essa é a regra, interroga-se sobre outras formas de participação em sentido estrito na gestão pública, que pode então ter dois sentidos:

O primeiro sentido da participação é interno à própria gestão pública, entre os níveis internos de decisão, isto é, interior à gestão pública na relação entre os membros do staff. Pode-se implementar a participação por órgãos colegiados cujo objetivo é descentralizar as decisões e permitir maior participação dos membros do staff.

O segundo sentido é externo à gestão pública, na participação da comunidade municipal com pessoas, não integrantes do staff, escolhidas para opinar em certas situações, que é o caso de órgãos colegiados com a participação de membros da comunidade: os conselhos municipais.

Os conselhos municipais, portanto, são órgãos colegiados integrantes da estrutura administrativa de gestão pública municipal, integrado exclusivamente por membros da Administração Municipal ou também integrado por membros da comunidade.

Daí, no presente caso, fica evidente a idéia de que o objetivo dos conselhos municipais, como o COMPAHC, é a participação na gestão pública local.

154 Refira-se sobre as eleições locais, a lição de BRICCHI, Adhemar Heriberto. Problemas del regimen y Gobierno Municipal. In: MÁRQUEZ, Daniel Alberto e PICONE, Francisco Humberto (Coord.). Temas de Derecho Municipal. Buenos Aires: Pensamiento Jurídico Editora, 1991, p. 32 em que “La manifestación más cabal de la soberanía del pueblo se encuentra en la elección de su propio gobierno local”.

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2) Função dos conselhos municipais

A fim de implementar a participação política, devem ser vistos os conselhos municipais como órgãos de deliberação, que nesse ponto é entendida em sentido amplo, como discussão e debate, e não necessariamente como possibilidade de tomada de decisões.

Há quatro critérios para uma deliberação155 adequada ou, em outras palavras, as qualidades de uma deliberação: 1) informação precisa e razoável sobre os fatos, para possibilitar conclusões adequadas e precisas; 2) completude dialógica, que se relaciona à extensão com que os argumentos são apresentados, contraditos e reapresentados, o que difere da propaganda feita para persuadir, que omite estrategicamente parte das informações; 3) diversidade de pontos de vista, que exige um consenso mínimo e que difere das discordâncias na sociedade que não podem ser deliberadas; 4) participação consciente, sem visar fins pré-determinados, mas com objetivo de debater e ter sua opinião levada em conta para as políticas públicas.

Esses critérios deverão ser tomados na deliberação dos conselhos municipais, como forma de adequação à finalidade da participação política. Isso exige uma proximidade com a Administração Municipal para fins de troca de informações e de diálogo, bem como uma consciência da finalidade da comunidade municipal por parte dos membros do conselho municipal.

Os conselhos municipais têm essencialmente essa função deliberativa em sentido amplo, pois é da natureza de sua existência o debate e a discussão. Em relação à função dos conselhos municipais, mais importante que colocar sugestões, é discutir os problemas. Deve-se partir da idéia de que os cidadãos têm condições de identificar os problemas que mais os afligem, dentre vários, e discuti-los, como tentativa de busca de soluções156. Em relação à natureza de suas decisões – opinativa, deliberativa ou de controle, dependerá da legislação aplicável a cada conselho.

No caso do COMPAHC, a função deliberativa também deve ser implementada da forma mais ampla possível, atendendo-se especialmente aos dois últimos critérios para uma deliberação adequada antes mencionados: diversidade de pontos de vista e participação consciente no que tange à escolha de seus representantes pela Sra. Secretária Municipal da Educação.

155 Conforme FISHKIN, James S. Deliberative Polling and Public Consultation. no site <www.essex.acuk/ECPR/events/jointses-sion/paperarchieve/turin/ws24/fishkin.pdf > Acessado em 09 dez. 2004156 É nesse sentido a idéia de que: “Ya sostuvo Ortega y Gasset, que el deber del hombre no es poseer, sea cómo sea, soluciones, sino aceptar, sea cómo sean, los problemas. Y éstos, son siempre los actuales, son el destino de cada generación (papeles III, 562)”, conforme DEL VECCHIO, Norberto Roque. La moderna concepción de la autonomía municipal. In: MÁRQUEZ, Daniel Alberto e PICONE, Francisco Humberto (Coord.). Temas de Derecho Municipal. Buenos Aires: Pensamiento Jurídico Editora, 1991, p. 190.

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3) Autonomia para configuração dos conselhos pelo próprio município

A realidade dos municípios deve ser levada em conta na instituição de um conselho municipal em vários âmbitos, conforme Orlando Alves dos Santos Jr157:

“Os conselhos foram amplamente difundidos a partir da Constituição Brasileira de 1988, e constituem canais de participação e representação das organizações sociais na gestão de políticas públicas específicas. Obrigatórios por lei federal em diversos setores (saúde, educação, criança e adolescente, assistência social e trabalho), os conselhos se diferenciam de acordo com o município: (I) pelo poder de decisão, deliberativo ou consultivo; (II) pelos critérios de representação dos diferentes segmentos sociais, amplos ou restritos; e (III) pela dinâmica e pelas condições de seu funcionamento, isto é, os instrumentos e a estrutura à sua disposição. Nesse sentido, entendemos que os conselhos municipais são a maior expressão da instituição, pelo menos no plano legal, do modelo de governança democrática no âmbito local.”

Portanto, os municípios devem, ainda que sob pressão de necessidades financeiras e por exigência de legislação federal ou estadual, por exemplo, na instituição de conselhos municipais, procurar manter ao máximo a liberdade de conformação dos conselhos municipais. Senão, o município perderá a noção da necessidade de desenvolver a participação política em âmbito local a fim de melhor alcançar a finalidade do bem comum. Veja-se que a exigência de legislação federal ou estadual não tem fundamento constitucional eis que não há determinação de superioridade hierárquica em relação à legislação local158.

Daí porque, na análise do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural, deve-se examinar a sua legislação municipal de instituição minuciosamente e interpretá-la de acordo com as necessidades locais, sem ingerências de legislação federal ou estadual que venha a obstar a autonomia municipal.

4) Fundamento da participação e dos conselhos na legislação municipal

Há dispositivo expresso na Lei Orgânica do Município de Porto 157 SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos. Democracia e governo local: dilemas da reforma municipal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 95-96. 158 Conforme FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. União, Estado e Município na Constituição Federal: competências e limites. Cadernos FUNDAP. São Paulo. Ano 8, nº 15, abr/1988, p.42-47.

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Alegre que fundamenta a existência de mecanismos de participação política nas decisões do Poder Executivo:

Art. 89 – O Poder Executivo é exercido pelo Prefeito, auxiliado pelo Vice-Prefeito, pelos Secretários e Diretores, e os demais responsáveis pelos órgãos da administração direta e indireta.

Parágrafo único – É assegurada a participação popular nas decisões do Poder Executivo.

De acordo com a lei Orgânica do município de Porto Alegre, de 03.04.1990, é possível distinguir duas espécies de conselhos: os conselhos municipais e os conselhos populares.

Os conselhos municipais são órgãos de participação da comunidade na Administração Pública, senso seu conceito dado pelo art. 101 da Lei Orgânica:

Art. 101 – Os Conselhos municipais são órgãos de participação direta da comunidade na administração pública, tendo por finalidade propor, fiscalizar e deliberar matérias referentes a cada setor da administração, nos termos de Lei complementar.

Parágrafo único – Os conselhos municipais são compostos por número impar de membros, observada a representatividade das entidades comunitárias de moradores, entidades de classe e da administração municipal.

De outro lado, os conselhos populares são conselhos regionais previstos no art. 102 da Lei Orgânica:

Art. 102 - O Poder Público reconhecerá a existência de conselhos populares regionais, autônomos, não subordinados à administração municipal.

Parágrafo único – Os Conselhos municipais são instâncias regionais de discussão e elaboração de políticas municipais, formados a partir de entidades representativas de todos os segmentos sociais da região.

Ambos os conceitos legais se configuram em sentido mais

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estrito que o de conselho municipal no sentido de órgão colegiado, ligado à Administração Municipal. Os conselhos populares não foram regulamentados por lei específica, inexistindo algum conselho que pudesse enquadrar-se nesse perfil.

Os conselhos municipais, após a edição da Lei Orgânica atual, ficaram regulamentados159, por meio da lei 267/92160, que, em resumo, trouxe como características a composição tripartite dos conselhos, revogabilidade dos mandatos, pagamento de jetons aos conselheiros, caráter deliberativo das decisões e monopólio da representação comunitária pelas Associações de Moradores161. A competência destes Conselhos está disciplinada no art. 2º da Lei Complementar 267/92162.

O Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC, portanto, é Conselho Municipal cujo fundamento de existência hoje está na Lei Orgânica Municipal e na Lei Complementar 267/92.

5) DO CONSELHO MUNICIPAL DE PATRIMONIO HISTÓRICO E CULTURAL – COMPAHC

O Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural - COMPAHC – foi criado originariamente pela Lei 4139 de 14 de julho de 1976, e vige com as alterações da Lei 267/ 92, já mencionada.

Os principais Decretos que regulamentam a sua composição foram os seguintes: Decreto nº 5645/76, Decreto nº 5807/76, Decreto nº 8508/84 e Decreto 11.130/94.

O COMPAHC tem como competência auxiliar a administração em todos os assuntos de patrimônio histórico e cultural163.

159 LC 267/92 – Regulamenta os Conselhos criados pelo artigo 101 da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, bem como pela posterior LC 293/93.160 “Art. 1º da LC 267/92: Os Conselhos Municipais são órgãos de participação direta da comunidade na administração pública, tendo por finalidade propor, fiscalizar e deliberar matérias referentes a cada setor.”161 São as características apontadas como mais relevantes por FEDOZZI, Luciano. O Poder da Aldeia. Gênese e história do Orçamen-to Participativo de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo editorial, 2000, p.57 e 58.162 “Competência dos Conselhos: art. 2º da LC 267/92- Compete aos Conselhos Municipais:I - Atuar nas formulações e controle da execução da política setorial da Administração Municipal que lhe afeta; II – Estabelecer as diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos e programa de ação setoriais no âmbito municipal; III – Deliberar sobre políticas , planos e programas referentes à política setorial.”163 São atribuições do Conselho: Art 1º: O art. 1º do Decreto nº 5645, de 21 de setembro de 1976, com a redação dada pelo artigo 1º do Decreto nº 5807, de 27 de dezembro de 1976, alterado pelo Decreto 11.130/94, passa a vigorar com a seguinte redação - : O Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPAHC), criado pela Lei nº 4139, de 09 de julho de 1976, como órgão de cooperação governamental, com a finalidade de assessorar a Administração Municipal em todos os assuntos relacionados com o patrimônio histórico e cultural, funcionará com a organização e composição estabelecida neste Decreto competindo-lhe: I - assessorar a Administração Municipal nos assuntos pertinentes ao Patrimônio Histórico e Cultural do município; II - estabelecer critérios para o enquadramento dos valores históricos e culturais, representados por peças, prédios e espaços a serem preservados mediante tombamen-to, desapropriação, inventário, registros, vigilância ou qualquer outra forma de acautelamento; III - apreciar as propostas de inclusão no patrimônio histórico e cultural do Município de bens considerados de valor histórico e cultural; IV - deliberar sobre as propostas de revisão ou inadequação de processos de tombamento; V - apreciar as propostas de instituição ou revogação de Áreas de Interesse Paisagístico e Cultural; VI - manifestar-se sobre os projetos ou planos de conservação, reparação, restauração, adaptação ou demolição em bens imóveis que integrem o Patrimônio Histórico e Cultural do município; VII - manifestar-se sobre os pedidos de licença para

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A composição do COMPAHC é de 15 (quinze) membros, sendo 8 (oito) representantes membros da Prefeitura Municipal e 7 (sete) membros, sem qualquer vinculação com a Prefeitura Municipal, nos termos dado pela redação do art. 2º do Decreto 11130/94, pois a Lei de instituição delegou ao Decreto fixar a composição da representação no Conselho.

Veja-se, por relevante na matéria de análise, o dispositivo:

Art. 3º - O Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural será composto por 15 (quinze) membros, designados pelo Prefeito com renovação bienal do terço e escolhidos de acordo com os seguintes critérios: I - 8 (oito) representantes da Prefeitura, representantes de cada um dos seguintes setores:

Secretaria Municipal de Cultura - SMC;a) Secretaria Municipal do Meio Ambiente– b)

SMAM;Secretaria do Planejamento Municipal - SPM; c) Gabinete do Prefeito – GP; d) Secretaria Municipal de Obras e Viação – e)

SMOV;Secretaria Municipal de Educação – SMED; f) Secretaria Municipal da Produção, Indústria e g)

Comércio – SMIC;Procuradoria-Geral do Município – PGM . h)

II –7 (sete) membros, sem qualquer vinculação com a Prefeitura Municipal, constituídos de um representantes de cada uma das seguintes entidades; a) Instituto Histórico e Geográfico do RGS – IHGRGS; b) Instituto dos Arquitetos do Brasil, Seção do RGS- IAB; c) Sociedade de Engenharia do RGS – SERGS; d) Associação Riograndense de Imprensa-

funcionamento de atividades industriais, comerciais ou prestadoras de serviço em imóveis que integrem o Patrimônio Histórico e Cultural do município ou estejam situados em local definido como Área de Preservação Cultural e de Proteção da Paisagem Urbana, ouvindo o órgão municipal expedidor da referida licença; VIII - promover a preservação e a valorização de ambientes e espaços históricos e culturais importantes para a manutenção da qualidade ambiental e garantia da Memória do município de Porto Alegre; IX - manifestar-se sobre a conservação, restauração, reparação, depósito, guarda, exposição e ambientação de bens móveis que integram o Patrimônio Histórico e Cultural do município; X - manifestar-se sobre planos, projetos e propostas de qualquer espécie que interfiram na preservação de Bens Históricos e Culturais; XI - propor diretrizes a serem consideradas na política de preservação e valorização de Bens Culturais; XII - propor diretrizes à estratégia de fiscalização da preservação de uso de bens tombados; XIII - manter permanente contato com organismos públicos e privados, nacionais e internacionais, visando a obtenção de recursos, cooperação técnica e cultural para planejamento da preservação e revitalização de Bens Históricos e Culturais; XIV - promover, por todos os meios ao seu alcance, a preservação do Patrimônio Histórico e Cultural do município. Parágrafo único – O COMPAHC manifestar-se-á, ainda, sempre que solicitado pelo Chefe do Executivo, pelos Secretários Municipais ou Titulares de Autarquias Municipais.

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ARI; e) Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural- IBPC; f) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – IPHAE; g) Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

§1º - Para a designação dos membros a que alude o inciso I, o Titular de cada setor fará a escolha do representante e respectivo suplente.

§ 2º Para a designação dos membros referidos no inciso II, o Prefeito solicitará ÁS Entidades listas tríplices, fazendo a escolha dos respectivos titulares e dos suplentes, estes na proporção de um para cada titular.

§ 3º - Para efeitos de renovação bienal, os membros do COMPAHC serão assim agrupados: a) primeiro terço: representantes da SMAM, SMIC, ARI e OAB; b) segundo terço: representantes da SPM, SMED, SMIC, IHGRGS, SERGS e IPHAE; c) terceiro terço: representantes do GP, SMOV, PGM, IAB e IBPC.(grifo nosso)

Daí já se percebe a dupla composição, cuja diferença principal está em ser representante como membro da Prefeitura ou não ter vínculo com a Prefeitura. Os termos utilizados pelo Decreto são amplos no sentido de que importa é ser ou não membro da Prefeitura, sem distinção acerca do órgão municipal de origem e nem acerca da natureza do vínculo.

Sendo assim, qualquer que seja o órgão municipal: administração centralizada, autarquias, fundações, sociedade de economia mista ou outro órgão que possa estar ligado à Administração Municipal poderá o indicado manter vínculo. Também, qualquer que seja a natureza do vínculo poderá estar de acordo com a expressão “membro da Prefeitura”, como por exemplo, servidor estatutário, detentor de cargo em comissão, aposentado, conselheiro tutelar e muitos outros.

Veja-se que a indicação do Conselheiro é para representação, no caso em tela, previsto na alínea f do inciso I, da Secretaria Municipal de Educação. A idéia é de que os membros da Prefeitura sejam representantes da respectiva Secretaria. Assim, justifica-se a extensa interpretação da expressão “membros da Prefeitura Municipal” não apenas por si própria, mas pela necessidade de ampliar as possibilidades de escolha de representante pela Sra. Secretária, que não ficaria adstrita apenas a servidores efetivos da própria Secretaria.

Entretanto, refira-se, ainda que não questionado no presente

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expediente, que também o inciso II deve ser interpretado de forma ampla, sendo impedidos os indicados que possuam qualquer vínculo com a Prefeitura Municipal.

CONCLUSÃO

Portanto a conclusão do questionamento é no seguinte sentido:

Pode ser nomeado para o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC, como representante da Secretaria Municipal da Educação, servidor público municipal inativo?

SIM, poderá ser nomeado para o COMPAHC servidor inativo como representante fundado no inciso I do art. 3º do Decreto 11.130/94.

ISSO POSTO, OPINO pela possibilidade de indicação do Sr. Luiz Osvaldo Leite para integrar o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC.

Porto Alegre, 13 de outubro de 2005.

Cristiane Catarina Fagundes de OliveiraProcuradora-chefe da EAPE - PGM

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HOMOLOGAÇÃO

APROVO o parecer n°1122/2005, da lavra da Procuradora Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira, que versa acerca da possibilidade de nomeação de servidor público inativo como representante de Secretaria ou órgão público em conselhos municipais.

Registre-se. Encaminhe-se cópia da homologação à Equipe de Assuntos de Pessoal Estatuário, á Secretaria Municipal da Educação e ao Conselho Municipal do patrimônio Histórico Cultural, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 13 de outubro de 2005.

Mercedes RodriguesProcuradora-Geral do Município

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SISTEMA FUNERáRIO MUNICIPAL

Parecer nº 1135/07Processo nº 001.049072.05.6 001.017395.04.6Interessado: Secretaria Municipal da Produção, Indústria e

Comércio.Assunto: Consulta SMIC

CONSULTA SMIC. SISTEMA FUNERÁRIO MUNICIPAL. POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DO SISTEMA DE RODÍZIO PARA INDICAÇÃO DE EMPRESA FUNERÁRIA PELA CENTRAL DE ATENDIMENTO FUNERÁRIO NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. OBSERVÂNCIA DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS E AUSÊNCIA DE PREFERÊNCIA. FORMA DE NORMATIZAÇÃO.

Trata-se de consulta proveniente da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio – SMIC, acerca da possibilidade de ser adotado o sistema de rodízio para indicação de empresa funerária às famílias que compareçam à Central de Atendimento Funerário – CAF, e manifestem não possuir preferência de escolha da funerária para prestar os serviços pertinentes.

Tal solicitação foi feita à Comissão Municipal de Serviços Funerários pelo Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços Funerários do RS.

A assessoria jurídica da SMIC analisou previamente o pedido, emitindo parecer favorável ao rodízio, o que consta a fls. 05 e 05-verso.

Foram anexados descritivos de como se operacionalizaria o sistema

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na forma informatizada, bem como foi anexada a Normativa proposta pela Comissão Municipal de Serviços Funerários.

Após tais procedimentos, foi o presente encaminhado a esta Procuradoria para exame, juntamente com o processo administrativo 001.017395.04.6, em que constou solicitação de rodízio entre as empresas funerárias para atendimento no Município de Porto Alegre e que restou indeferido à época.

É o breve relatório.

DA COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO

Primeiramente cumpre referir a questão da competência do Município para regular a matéria. Conforme art. 30, incisos I e V da Constituição Federal, o Município está legitimado a regular a questão, já que os serviços funerários realizados dentro do âmbito municipal são considerados de interesse local.

Trata-se aqui de serviço público e como tal deve ser organizado e prestado, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, consoante inciso V do artigo 30 referido, verbis:

“Art.30. Compete aos Municípios:I – legislar sobre assuntos de interesse local;...V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de

concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

...”Fartas são as decisões judiciais nesse mesmo

sentido, ou seja, de que possui a municipalidade competência para disciplinar os serviços funerários, podendo-se citar parte da fundamentação do acórdão relativo ao Agravo de Instrumento nº 70002379220, julgado pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS:

“...Depreende-se da Constituição Federal que os serviços

funerários são de interesse local e considerados de natureza

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essencial. Assim dispõe o art. 30, I e V, verbis:‘Art. 30. Compete aos Municípios:I – legislar sobre assuntos de interesse

local;...V – organizar e prestar, diretamente ou

sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

Logo, por ser da competência do Município legislar acerca da matéria, cabe a ele disciplina-la, o que foi feito através da Lei (municipal) nº 8.413/99 que, em seu art. 3º estabelece que a delegação do serviço se dará mediante licitação, em obediência à própria Constituição Federal.

...”

E segue pacífico o entendimento relativo à competência, pelo que não é necessário discorrer mais a respeito, não sendo diferente a disposição expressa na Lei Orgânica do Município de Porto Alegre:

“Art. 9º – Compete ao Município, no exercício de sua autonomia:

I – organizar-se administrativamente, observadas as legislações federal e estadual;

II – prover a tudo quanto concerne ao interesse local, tendo como objetivo o pleno desenvolvimento de suas funções sociais, promovendo o bem-estar de seus habitantes;

III – estabelecer suas leis, decretos e atos relativos aos assuntos de interesse local;

...”

DA LEGITIMIDADE PARA O PLEITO

Passa-se agora à análise da legitimidade do Sindicato proponente: Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços Funerários do Rio Grande do Sul.

Conforme consta no parágrafo 1º do art. 3º do Decreto nº 12.657/00, que regulamenta a Lei nº 8.413/99 que criou o Sistema Funerário Municipal, “para proceder a administração e o funcionamento da

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Central de Atendimento Funerário, o Poder Público Municipal firmará convênio com o Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços Funerários do Rio Grande do Sul”.

Portanto, o próprio Decreto municipal que regulamenta a forma de funcionamento do Sistema Funerário Municipal refere a formalização de convênio com o Sindicato em questão para administração e funcionamento da Central de Atendimento Funerário – CAF.

A presente solicitação é referente exatamente à forma de prestação dos serviços junto à mencionada Central, onde seria implementado efetivamente o rodízio ora proposto.

Assim, legitimado está o Sindicato a pleitear e propor em relação à administração e funcionamento da CAF.

DA LEGISLAÇÃO APLICáVEL E DECISÕES JUDICIAIS

Resta-nos enfrentar a possibilidade legal do pedido, ou seja, analisar a legislação municipal que rege a matéria e as decisões judiciais existentes.

No âmbito do Município de Porto Alegre, a respeito do assunto, possuímos farta e completa legislação.

A Lei Complementar nº 373/96, dispõe sobre o serviço funerário no âmbito do Município de Porto Alegre. Em seu art. 4º, “Fica autorizado o Poder Executivo Municipal a criar uma Comissão de Serviço Funerário, como órgão fiscalizador dos serviços funerários no Município de Porto Alegre.”

Já em seu art. 5º, refere as atribuições cabíveis ao órgão fiscalizador.

Portanto, cabe à Comissão, fiscalizar todo e qualquer serviço funerário, zelando pelo cumprimento da legislação, daí porque o presente expediente possuiu a análise da Comissão criada e em plena atividade no Município, a qual minutou a normativa para o pleito ora em análise.

O art. 8º, I da LC, refere:

“Art. 8º - É vedado às empresas funerárias:

I – efetuar, acobertar ou remunerar o agenciamento de funerais e de cadáveres, bem como manter plantão e

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oferecer serviços em hospitais, casas de saúde, delegacias de polícia e Instituto Médico Legal, até o perímetro de 500m, por si ou por pessoas interpostas, ou através de funcionários de quaisquer instituições públicas ou privadas, incluindo-se nesta proibição os atos de contratação, quaisquer que sejam suas extensões, devendo tais procedimentos terem curso nas empresas, diretamente e por livre escolha dos interessados na sua contratação.”

Este inciso justamente está a tratar da proibição do agenciamento de funerais e de cadáveres pelas empresas funerárias, proibindo a prática, para garantir tranqüilidade aos familiares, como já referido no parecer da assessoria jurídica

Os procedimentos relativos aos funerais devem se dar nas empresas e por livre escolha dos interessados na contratação das respectivas empresas, ou seja, nenhum familiar pode ser coagido a escolher determinada empresa e isto está vedado pela legislação municipal.

Entretanto, a legislação municipal não veda a indicação de empresa prestadora de serviços funerários àqueles familiares que expressamente informarem não possuírem preferência de empresa e pedirem a indicação.

A escolha continuará sendo livre, a meu ver, ainda que ocorra a sugestão de empresa para prestar o serviço nestes casos. A família pode ou não aceitar a indicação.

Na prática o que ocorre e está a justificar o pedido do Sindicato, é justamente que a solicitação por indicação junto à CAF, quando não há preferência de empresa, é recorrente, ficando, hoje, o funcionário ou atendente impossibilitado de fazer a indicação, pelo menos de uma forma equânime e igualitária.

A implementação do rodízio, havendo permissivo legal, viria sanar essa dificuldade, podendo ser prestado um serviço mais eficiente à população, o que é um dos fins do serviço público e princípio da Administração Pública constitucionalmente previsto no art. 37, e possível no entendimento que ora se expõe.

Não existe a proibição legal e a prática não fere qualquer dos princípios ou normativas conhecidas.

O Decreto nº 11.513/96, que regulamenta a LC 373/96, estabelece as competências da Comissão de Serviço Funerário em seu art. 5º, ali constando que deve fiscalizar o cumprimento da LC 373/96 e

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demais normas que regulem a matéria.Já o art. 13, I do mesmo Decreto praticamente reprisa o inciso I

do art. 8º da LC 373/96, acrescentando o regramento da distância de 500m dos locais ali referidos, a ser observada pelas empresas funerárias.

A Lei 8413/99, cria o Sistema Funerário Municipal e refere expressamente que empresas funerárias com sede em outros municípios podem habilitar-se para a execução esporádica de serviços em Porto Alegre, mediante processo licitatório (art. 5º). A proposta de rodízio em nada fere esse dispositivo, que continua vigendo conforme seu regramento.

O art. 6º do mesmo diploma legal deve ser sempre observado, verbis:

“Art. 6º - Será garantida à família enlutada a livre escolha da empresa funerária devendo, entretanto, a empresa escolhida ser permissionária do serviço municipal ou habilitada pelo Município de Porto Alegre, por seu órgão competente, para prestar o atendimento, quando a sede da empresa for localizada em outro município.”

Ou seja, a livre escolha, preceito basilar da legislação que aqui se analisa, deve permanecer inalterada: a família possui o direito de escolher a empresa que quer para prestar os serviços funerários de que necessita. E o Sistema Funerário vigente em Porto Alegre, garante expressamente esse direito.

O pedido aqui sob análise se presta a indicações de empresas pela CAF, mediante rodízio, quando a família não possui preferência de empresa e solicita a indicação no órgão. Portanto, o direito de escolha permanece livre e a implementação do rodízio, s.m.j., só vem corroborar a intenção do legislador e administrador municipal de evitar o agenciamento de funerais e de cadáveres justamente dessas famílias que não possuem preferência, assessorando-as em um momento difícil.

O art. 12 da mesma lei, novamente ratifica a competência da Comissão Municipal de Serviço Funerário para a fiscalização do cumprimento das disposições legais.

Por fim, o Decreto nº 12.657/00, alterado em parte pelos Decretos 12.753/00 e 12.861/00, regulamenta a Lei 8413/99.

O art. 3º do Decreto 12.657/00 estabelece em seus incisos as competências da Central de Atendimento Funerário:

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“Art. 3º - Compete à Central de Atendimento Funerário:

I – organizar as ações do Sistema Funerário Municipal;

II – prestar informações sobre o Serviço Funerário Municipal às famílias enlutadas;

III – propiciar à família enlutada a livre escolha da empresa funerária permissionária que prestará o serviço;

IV – informar aos familiares atendidos sobre a existência dos modelos e valores dos padrões de serviço funerários, obrigatórios para todas as empresas funerárias, conforme estipula a Lei Complementar nº 373/96, parágrafo 1º do artigo 3º;

V – emitir Guia de Autorização para Liberação e Sepultamento de Corpos, em número de vias necessárias, conforme parágrafo 2º do artigo 7º da Lei nº 8413/99;

VI – manter banco de dados dos atendimentos efetuados, em sistema de informática que permita o repasse eletrônico dos dados coletados para o Sistema de informações sobre Mortalidade, gerenciado pela Secretaria Municipal de Saúde;

VII – encaminhar mensalmente, para a Comissão Municipal de Serviço Funerário da PMPA, relatório de atendimentos prestados;

VIII – manter atendimento ininterrupto nas vinte e quatro horas do dia, inclusive sábados, domingos e feriados;

IX – proceder o atendimento de famílias carentes e dos indigentes para o sepultamento gratuito, diretamente pelas permissionárias ou através de convênio;

X – executar tarefas afins.§ 1º - Para proceder a administração e o

funcionamento da Central de Atendimento Funerário, o Poder Público Municipal firmará convênio com o Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços Funerários do Rio Grande do Sul.

§ 2º - O atendimento de famílias carentes de que trata o inc. IX deste artigo será demandado pela Central de Atendimento Funerário, em sistema de rodízio entre as

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empresas funerárias permissionárias, ou mediante convênio entre os prestadores e outras entidades.”

Como se pode verificar as atribuições da CAF estão bem delimitadas e abrangem o necessário para a adoção do rodízio em questão.

É a CAF quem deve prestar informações sobre o serviço funerário, propiciando à família enlutada a livre escolha da empresa funerária permissionária. Portanto, é a CAF quem pode organizar o rodízio, mantendo banco de dados com as informações necessárias para tal implementação. Inclusive a forma está demonstrada no presente.

A obrigação de encaminhar relatórios mensais sobre os atendimentos prestados à Comissão de Serviço Funerário, propicia a necessária fiscalização pelo poder público. O que segue expresso também no art. 4º, quando estabelece que a Comissão, responsável pela fiscalização dos serviços (art. 10), terá livre acesso ao banco de dados e instalações da CAF.

Novamente no parágrafo primeiro ratifica-se o gerenciamento, mediante convênio, pelo Sindicato proponente.

Salienta-se também que uma forma de rodízio já é existente e permitida por lei para atendimento das famílias carentes (parágrafo 2º). Estaria se ampliando a possibilidade de rodízio.

E, finalmente, com relação à tutela jurisdicional eventualmente exercida em relação à legislação ora em comento, as decisões pesquisadas são no sentido da legalidade.

No julgamento da ação ordinária nº 1.05.2170860, o nobre magistrado, enfrentando a legislação municipal sobre serviços funerários, assim coloca:

“Sem razão os demandantes.Não há dúvida de que a municipalidade pode regular

os serviços funerários, dentro dos limites de competência que lhe são atribuídos pelo artigo 30, V, da CF, tendo em vista que incumbe à municipalidade regular tal serviço, observado o interesse local, serviço este que podes ser delegado a terceiros, mediante licitação, permanecendo a municipalidade com a respectiva fiscalização dos mesmos, consoante magistério de Hely Lopes Meirelles, na obra Direito Municipal Brasileiro, pp. 328/329, 6ª ed. Malheiros, São Paulo, 1993.

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Isto foi feito pela LC 373/96, regulamentada pelo Decreto nº 11.513/96 e a Lei nº 8.413/99, regulamentada pelo Decreto nº 12.657/00, alterado pelos Decretos nºs 12.753/00 de 12.861/00, onde a municipalidade criou a comissão de serviços funerários como órgão fiscalizador de tais serviços na municipalidade, composta de comissão, traçando exigências para o funcionamento das mesmas, com cominação de penalidades, em caso de descumprimento, permitindo o artigo 5º da Lei 8413/99, que empresas sediadas em outros municípios habilitem-se na cidade de Porto Alegre para prestação esporádica de serviços funerários, com limite máximo de 24 sepultamentos por ano para caracterização de execução temporária de serviço.

…De outra parte, não se discute que os familiares

da pessoa falecida tenham o direito de escolher a respectiva funerária que prestará tais serviços, devendo, contudo, escolherem uma das funerárias legalmente habilitadas para trabalharem na capital, que preencherem os requisitos legais exigidos pela municipalidade, dentro dos limites de competência desta, mantida a liberdade de escolha do consumidor, bem como a livre concorrência.”

Ao julgar o Agravo de Instrumento nº 70001831874, decorrente do indeferimento na ação antes citada, o Tribunal de Justiça do RS, por meio de sua relatora, Desa. Liselena Schifino Robles Ribeiro, refere:

“Portanto, em princípio, não há qualquer ilegalidade nas exigências preestabelecidas, pertinentes à Lei Complementar nº 373/96, à Lei nº 8413/99 e ao decreto regulamentador.

Não se questiona nem se impede o exercício das atividades comerciais das agravantes e, muito menos, que os familiares da pessoa falecida escolham a funerária que prestará seus serviços, o que não significa que qualquer funerária possa atuar em Porto Alegre, sem atender à disciplina e requisitos mínimos e indispensáveis ao bom funcionamento dos serviços funerários, editados pelo município, de conformidade com a

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legislação pertinente.Não têm, pois, direito as agravantes à antecipação

de tutela requerida, para atuar livremente na capital, sem as restrições impostas.”

Referido acórdão restou ementado nesse sentido de forma unânime pela 21ª Câmara Cível.

E mais recentemente, vale citar decisão que refere a possibilidade de indicação aos clientes da empresa os serviços funerários prestados por empresas de seu grupo econômico:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA. CREMATÓRIO METROPOLITANO SÃO JOSÉ. PEDIDO DE RECONHECIMENTO JUDICIAL DA POSSIBILIDADE DE INDICAÇÃO DE CLIENTES À PRESTADORA DE SERVIÇOS FUNERÁRIOS PERTENCENTE AO GRUPO ECONÔMICO. TUTELA ANTECIPADA. AUSÊNCIA DE PERIGO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. NEGATIVA DE SEGUIMENTO LIMINAR AO AGRAVO DE INSTRUMENTO, NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC. Não estando a agravante ¿ empresa administradora do Crematório Metropolitano São José - sofrendo qualquer ato, imputável ao Município agravado, no sentido de obstar a agravante de indicar aos seus clientes os serviços funerários prestados por empresa pertencente ao seu grupo econômico, inexiste qualquer risco de dano irreparável ou de difícil reparação a justificar a concessão da antecipação de tutela. Inteligência do art. 273, I, do CPC. Recurso manifestamente improcedente. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, FORMA LIMINAR. (Agravo de Instrumento Nº 70017536988, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Henrique Osvaldo Poeta Roenick, Julgado em 07/11/2006).

Portanto, tanto pela legislação municipal vigente a respeito da

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matéria, quanto pelas decisões judiciais, reiteradas, acerca da legalidade e outras possibilidades, não vislumbro óbice à implementação de rodízio junto à Central de Atendimento Funerário, para indicação de empresa funerária permissionária às famílias enlutadas que não possuam preferência por prestadora do serviço.

Tal situação vai ao encontro da legislação ao coibir ainda mais a possibilidade de agenciamento de cadáveres e funerais, além de facilitar a prestação do serviço público, bem atendendo ao cidadão com eficiência e preservando a livre escolha e concorrência nos demais casos, cabendo à Comissão Municipal de Serviços Funerários a competente fiscalização.

DA FORMA DE NORMATIZAÇÃO

Como largamente enfrentado no presente parecer, o Poder Público Municipal possui competência para legislar e regular a matéria.

A forma de implementação do rodízio ora proposto, deve se dar por Decreto autorizador do Sr. Prefeito, Chefe do Poder Executivo Municipal, conforme também já esboçado pela assessoria jurídica da SMIC no presente processo.

A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, assim determina:

“Art. 94 – Compete privativamente ao Prefeito:...II – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, e

expedir decretos e regulamentos para sua execução;...”

Como ato normativo que é, o Decreto a ser elaborado e proposto pela SMIC/Comissão à apreciação do Sr. Prefeito, deve observar às disposições legais da Lei Complementar Federal 95/98, que “Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”, e alteração feita pela LC 107/2001.

A minuta de Normativa apresentada pela Comissão Municipal de Serviços Funerários, anexada ao presente, no meu entendimento, que vai ao encontro do referido também pela SMIC a fls. do presente, deve ser na

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forma de Resolução da Comissão que deve ser publicada como Anexo do Decreto autorizador a ser publicado pelo Sr. Prefeito.

Quanto à Resolução em si, deve apresentar a relação de todas as empresas funerárias permissionárias do serviço no Município de Porto Alegre, esboçando a forma como ser dará o serviço de rodízio via sistema informatizado, nos termos minutados, com a possibilidade de inclusão ou exclusão de empresas de acordo com as permissões concedidas pelo Poder Público municipal.

O Decreto deve expressamente referir que se aplica àquelas famílias sem preferência de empresa funerária para prestar o serviço, observada a livre escolha, e com a fiscalização competente da Comissão Municipal de Serviços Funerários, entre outros regramentos pertinentes.

É este o Parecer que submeto à superior consideração e homologação, acompanhado da legislação aqui citada.

PGM/PSP, 12 de março de 2007.

Cristiane da Costa NeryProcuradora Municipal PSP/PGM

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HOMOLOGAÇÃO

Homologo o parecer n° 1135/2007, da lavra da Procuradora Cristiane da Costa Nery, que versa acerca da possibilidade de adoção do sistema de rodízio para indicação de empresa funerária pela Central de Atendimento Funerário no âmbito do Município de Porto Alegre, observando os pressupostos legais e a ausência da preferência, bem como estabelece forma de normatização do referido sistema.

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de Pessoal, Contratos e Serviços Públicos; à Procuradoria de Serviços Públicos e à Secretaria Municipal da Indústria e Comércio, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos semelhantes.

PGM, 13 de abril de 2007

João Batista Linck FigueiraProcurador-Geral do Município, em exercício

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ABONO PERMANÊNCIA

Parecer Nº 1125/06Processo: 001.028605.04.7Interessado: Secretaria Municipal de Administração e Departamento Municipal de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Porto Alegre - PREVIMPAAssunto: Abono de Permanência.

ABONO DE PERMANÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA.

VIGÊNCIA. ISENÇÃO PREVIDENCIÁRIA

A Sra. Diretora-Geral do Departamento Municipal de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Porto Alegre – PREVIMPA, através do Of. 472/GDG encaminha questionamento a esta Procuradoria-Geral quanto ao procedimento a ser aplicado em relação aos servidores ativos que se encontram ao abrigo dos arts. 3º, §1º e 8º § 5º da Emenda Constitucional 20/98.

Encaminhado o questionamento à Equipe Estatutária redundou no seguinte posicionamento:

“O presente expediente foi remetido para

manifestação acerca do pagamento do abono de permanência instituído pela Emenda Constitucional 41/03 em substituição a isenção de contribuição previdenciária instituída pela Emenda Constitucional 20/98.

Foi feita referência à legislação federal quanto à data do início do pagamento.

Preliminarmente, parece evidente que o pagamento do abono de permanência é devido desde a vigência da Emenda 41/03 e que desde então os dispositivos da emenda 20/04 deixaram de ter vigência.

Além disso, a legislação federal que determina a data de início da implantação do abono de permanência em âmbito dos servidores federais não se aplica aos servidores municipais. Evidentemente que o pagamento do abono de

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permanência dependerá de decisão no âmbito municipal, em vista das exigências legais e orçamentárias cabíveis.

Desta forma, parece claro que: 1) desde a vigência da Emenda 41/03 o abono de permanência é devido, 2) a implantação do abono no âmbito dos servidores públicos municipais dependerá de decisão no âmbito do Município. Diante disso poderá ser questionada a forma de tal decisão: será decisão administrativa ou deverá ser aprovada lei municipal por meio de projeto encaminhado pelo executivo?

Em vista da amplitude da consulta, portanto, solicito orientação quanto aos aspectos específicos a serem abordados na manifestação definitiva da signatária.”

Após esta manifestação a Secretaria Municipal de Administração, através do seu Secretário, remeteu consulta com questionamentos semelhantes, divididos em seis itens:

qual a natureza jurídica do instituto?1. é o Município o responsável por arcar 2.

com o ônus da concessão do abono de permanência, repassando ao PREVIMPA tanto a parte do servidor como a patronal?

em quais situações o abono de 3. permanência deverá ser concedido apenas a partir de 16/04/2004?

em relação aos servidores que 4. implementaram as condições para a aposentadoria voluntária, a partir de 01.01.04 deverá de imediato ser concedido o abono de permanência?

em relação aos servidores que já estão 5. usufruindo da isenção previdenciária, a partir de 01.01.04 deverá ser concedido o abono previdenciário?

em relação aos servidores que 6. implementaram os requisitos para a aposentadoria

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voluntária ou integral, anteriormente a 01.01.04, e somente a isenção previdenciária ser concedida retroativamente à data da implementação dos requisitos, e a partir de 01.01.04 ser concedido o abono de permanência, também de forma retroativa?

Esta previsto na Emenda Constitucional 41/03: Art. 1º A Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes

alterações:“Art. 40.§ 19. O servidor de que trata este artigo que

tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no § 1º, III, a, e que opte por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no § 1º, II.

Art. 2º Observado o disposto no art. 4º da Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, é assegurado o direito de opção pela aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, §§ 3º e 17, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação daquela Emenda, quando o servidor, cumulativamente:

I – tiver cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito de idade, se mulher;

II – tiver cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria;

III – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

trinta e cinco anos, se homem, e trinta a) anos, se mulher;e

um período adicional de contribuição b) equivalente a vinte por cento do tempo que, na data de publicação daquela Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea a deste inciso.

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§ 5º O servidor de que trata este artigo, que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no caput, e que opte por permanecer em atividade, fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no art. 40, § 1º, II, da Constituição Federal.

Art. 3º É assegurada a concessão, a qualquer tempo, de aposentadoria aos servidores públicos, bem como pensão aos seus dependentes, que, até a data de publicação desta Emenda, tenham cumprido todos os requisitos para obtenção desses benefícios, como base nos critérios da legislação então vigente.

§ 1º O servidor de que trata este artigo que opte por permanecer em atividade tendo completado as exigências para aposentadoria voluntária e que conte com, no mínimo, vinte e cinco anos de contribuição, se mulher, ou trinta anos de contribuição, se homem, fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no art. 4, § 1º, II, da Constituição Federal.”

Os questionamentos iniciais foram respondidos em informação

jurídica datada de dezembro de 2004, a qual se acrescenta uma análise doutrinária e jurisprudencial do aspecto tributário da isenção prevista na Emenda Constitucional nº 20/98, conforme solicitação do Previmpa.

Enquanto tramitava o presente processo foram pagos os abonos de permanência aos servidores que faziam jus ao seu recebimento, restando impagos outros pedidos administrativos.

Quanto às questões da SMA, acima arroladas, algumas já foram atendidas pela concessão do benefício, restando algumas dúvidas, sanadas na informação anterior, que são:

Primeiramente, a natureza jurídica do abono é de indenização, e sobre ele não deve incidir a contribuição previdenciária.

Na segunda questão a resposta é sim, a Centralizada, a Administração

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Indireta e a CMPA devem arcar com o ônus do abono de permanência e devem repassar ao PREVIMPA a contribuição previdenciária descontada do servidor mais a sua contribuição, nos moldes da legislação vigente.

Nos itens três e quatro, o abono de permanência é devido desde 01.01.04 ou a partir da data em que o servidor implementou as condições necessárias para recebimento, desde que posterior a esta data.

Em resposta ao item 05, remeto à manifestação da Dra. Cristiane, acima reproduzida, ressalvando que a isenção como benefício previdenciário afasta o recebimento do abono, ou melhor, o recebimento do abono afasta a isenção. Assim, o servidor quando implementa as condições de recebimento do abono de permanência deve passar a recebê-lo, cessando automaticamente o recebimento da isenção.

Ainda, se o servidor estiver usufruindo o benefício da isenção e implementa as condições suficientes para fazer jus ao abono de permanência deve interromper a isenção, passando a contribuir para previdência e deverá receber o abono de permanência.

Os servidores que implementaram os requisitos para receber o abono de permanência em 01.01.04 e anteriormente se enquadraram nas condições de isenção da contribuição previdenciária e somente agora solicitaram o benefício de isenção de pagamento de contribuição previdenciária, não fazem jus ao recebimento dos valores descontados a título de contribuição previdenciária anteriormente a 01.01.04, pois, neste caso, a isenção inicia a partir do pedido.

Deverá ser editado decreto regulamentando as situações possíveis e a forma de pagamento do abono de permanência e isenção prevendo as instruções da Orientação normativa nº 03 do Instituto Nacional do Seguro Social, que diz:

“CAPÍTULO V DO ABONO DE PERMANÊNCIA”

Art. 67. O segurado ativo que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas nos art. 49, 51 e 55 e que opte por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contida no art. 48.

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§ 1º O abono previsto no caput será concedido, nas mesmas condições, ao servidor que, até 31 de dezembro de 2003, tenha cumprido todos os requisitos para obtenção da aposentadoria voluntária, com proventos integrais ou proporcionais, com base nos critérios da legislação então vigente, como previsto no art. 66, desde que conte com, no mínimo, vinte e cinco anos de contribuição, se mulher, ou trinta anos, se homem.

§ 2º O recebimento do abono de permanência pelo servidor que cumpriu todos os requisitos para obtenção da aposentadoria voluntária, com proventos integrais ou proporcionais em qualquer das regras previstas nos arts. 49, 51, 55 e 66, conforme previsto no caput e § 1º, não constitui impedimento à concessão do benefício de acordo com outra regra, inclusive prevista no art. 56, desde que cumpridos os requisitos previstos para a hipótese.

§ 3º O valor do abono de permanência será equivalente ao valor da contribuição efetivamente descontada do servidor, ou recolhida por este, relativamente a cada competência.

§ 4º O pagamento do abono de permanência é de responsabilidade do respectivo, ente federativo e será devido a partir do cumprimento dos requisitos para obtenção do benefício conforme disposto no caput e § 1º, mediante opção expressa pela permanência em atividade.”

Por fim, quanto ao fato da Emenda Constitucional ter suprimido a

isenção da contribuição previdenciária, fato questionado pelo PREVIMPA, fl. 03, da qual se retira o seguinte trecho:

“De outro lado não se pode esquecer que as contribuições sociais as quais se inclui a previdenciária, possuem natureza jurídica tributária, submetendo-se, por conseqüência, às regras aplicáveis aos tributos, aqui incluídas as que versam sobre a isenção e sua revogabilidade.

Discorrendo sobre a revogabilidade das isenções

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anteriores à Constituição Federal Sacha Calmon Navarro Coelho (Manual de Direito Tributário, Forense, 2ª ed., 2003), ensina que as isenções concedidas com prazo certo ou sob condição prevalecem até que se exaura o prazo previsto em lei ou seja desatendida a condição, afirmando que “nesses casos há direito adquirido incorporado ao patrimônio jurídico do contribuinte”.

De fato, o art. 178 do CTN reza que “a isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo”.

Questionando, então, qual “o procedimento a ser aplicado em

relação aos servidores ativos que se encontram ao abrigo dos arts. 3º,§ 1º e 8º § 5º da Emenda Constitucional nº 20/98”.

A Emenda Constitucional nº 20/98, previu em seu art. 3º,§ 1º e 8º § 5º que o servidor ao permanecer em atividade mesmo estando apto a ser aposentado (aposentadoria integral) estará isento da contribuição previdenciária, até completar 35 anos de contribuição e 60 anos de idade se homem e 30 anos de contribuição e 55 anos de idade se mulher.

Ora, a isenção prevista na Emenda Constitucional nº 20/98 deixou de existir com a edição da Emenda Constitucional nº 41/03, que prevê a incidência da contribuição previdenciária para todos os servidores públicos, ativos e inativos, com a criação do dito “abono de permanência”.

A isenção decorre de lei, seja ela conceituada como exclusão do crédito tributário ou como dispensa do pagamento do tributo o certo é que ela opera no plano da norma e não no plano fático, no dizer de Alfredo Augusto Becker:

“ISENÇÃO TRIBUTÁRIA – Poderia parecer

que a regra jurídica tributária, que estabelece a isenção do tributo, estaria estruturada com rega desjuridicizante total, isto é, haveria uma anterior relação jurídica tributária atribuindo ao sujeito passivo a obrigação de pagar o tributo; a incidência da regra jurídica de isenção teria como conseqüência o desfazimento daquela preexistente relação jurídica tributária. Aliás, este é o entendimento de grande parte da doutrina tributária, a qual costuma conceituar

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a isenção do seguinte modo: “Na isenção, o tributo é devido, porque existe a obrigação, mas a lei dispensa o seu pagamento; por conseguinte a isenção pressupõe a incidência, porque é claro que só se pode dispensar o pagamento de um tributo que seja efetivamente devido”. A lógica desta definição estará certa apenas no plano pré-jurídico da Política Fiscal quando o legislador raciocina para criar a regra jurídica de isenção.

A realização da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, faz com que esta regra jurídica incida justamente para negar a existência de relação jurídica tributária. Por sua vez, as hipóteses não enquadráveis dentro da hipótese de incidência da regra jurídica explicita de isenção tributária, são precisamente as hipóteses de incidência de regras jurídicas implícitas de tributação.” (Becker, Alfredo Augusto, Teoria Geral do Direito Tributário, Editora Saraiva, 1963, São Paulo, p. 276 e 277)

Questiona o Previmpa sobre a aplicação do art. 178 do Código

Tributário Nacional. No entanto, a isenção em tela não se enquadra nos casuísmos legais. Além disso, é preciso lembrar a lição Ruy Barbosa Nogueira de que a isenção é sempre concedida tendo em vista o interesse público:

“A isenção é concedida por lei tendo em vista não o interesse individual, mas o interesse público. Assim, a isenção outorgada às pessoas como aos bens é concedida em função da situação em que essas pessoas ou esses bens se encontram em relação ao interesse público, exigindo ou justificando um tratamento isencional.

Isso quer dizer que é a própria lei que descreve objetivamente essas situações e considera que essas pessoas ou bens enquadrados dentro delas estão numa situação diferente das demais e por isso devem ter também um tratamento diferente, em atenção mesmo ao princípio de isonomia ou igualdade.”(Nogueira, Ruy Barbosa, Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, São Paulo, 1995, p. 172)

Neste sentido, o interesse público deve prevalecer sobre o dos particulares (princípio implícito da supremacia do interesse público), como prega Paulo de Barros Carvalho:

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“Como criatura da lei que a isenção e, a qualquer momento, ao alvedrio do legislador, pode ser ab-rogada ou revogada parcialmente (derrogada), o que implica sua modificação redutiva. Visa o art. 178 a preservar aquelas que foram concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições, ressalvando-se dessa prerrogativa de liberdade legiferante de que os Parlamentos são portadores, dentro dos limites constitucionais. Tais isenções, de conformidade com o texto escrito do Código Tributário Nacional, estariam a salvo de abrogações ou derrogações da lei. Apesar disso, temos para nós, que, havendo a justa indenização advindo dos prejuízos do inadimplemento contratual, também as concedidas por prazo certo e mediante condições podem ser revogadas totalmente (ab-rogação) ou de forma parcial (derrogação). O interesse público deve prevalecer sobre o dos particulares (princípio implícito da supremacia do interesse público).” (Carvalho, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, São Paulo, 1993, p. 336)

Outro aspecto que deve ser repisado é o fato que essa isenção não se enquadra nas hipóteses do artigo 178 do Código Tributário Nacional, tendo em vista às circunstâncias e a redação dada pela Emenda Constitucional, que, apesar de prever a quem é dirigida à isenção, é dada a título gracioso, sem que o servidor público retribui com prestação diferenciada, na lição de Bernardo Ribeiro de Moraes:

“b) a norma de isenção tributária deve ser instituída pelas vias admitidas pelo ordenamento constitucional, respeitando os princípios constitucionais, v.g, da isonomia tributária, e o direito adquirido do contribuinte. A revogação de uma isenção equivale a criação de tributo, pois haverá o nascimento do crédito tributário para o contribuinte isento.” p. 361

“A extinção da isenção tributária ou revogabilidade da isenção pode ocorrer por diversas formas, todas elas indicativas da sua supressão do sistema jurídico: supressão do tributo; derrogação da norma jurídica; modificação do fato gerador da obrigação tributária; transcurso do tempo para o qual foi concedida. A perda da isenção, por sua vez, ocorre pelo desaparecimento das circunstâncias exigidas em lei, pela caducidade do prazo para solicitá-la ou renova-la ou pela infração de deveres exigidos. Em todos esses casos, o efeito desagravatório da isenção deixa de produzir-se”.p. 363

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Conforme o art. 178 do Código Tributário Nacional admite-se dois tipos de isenção fiscal, a saber:

condicionadas (também referidas como a) “bilaterais”, “contratuais”), quando previstas em lei como retribuição de uma prestação pelo beneficiário, que funciona como causa ou motivo determinante da isenção tributária. Ao tribunais americanos denominam tal isenção como concedidas for causae ou for consideration. Tais isenções são também denominadas onerosas,

incondicionadas (também referidas como b) “unilaterais”, “não contratuais”), quando previstas em lei por mera liberalidade, graciosamente. Conforme pondera o eminente Secretário Jurídico da Prefeitura de Manaus, Dr. Paulo Afonso de Lima Santos, neste tipo de isenção “o contribuinte nata tem a fazer senão locupletar-se dela em prejuízo dos interesses públicos”.

“...Na lição de Francisco Campos, “quando a isenção tributária é concedida graciosamente, ou de modo incondicional, por não corresponder a uma contraprestação prometida pelo beneficiário, ela pode ser revogada pelo mesmo poder que a conceder”. Tal revogação é ad nutum. No mesmo sentido é o pensamento de Aliomar Baleeiro, ao examinar o art. 178 do CTN: “ Sem dúvida, em princípio, a regra deve ser a revogabilidade ou a redutibilidade da isenção em qualquer tempo em que o Estado entenda que ela já não corresponde ao interesse público do qual promanou”. (de Morais, Bernardo Ribeiro, Compêndio de Direito Tributário, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1993, p. 364)

Por todas essas razões resta evidente que a isenção prevista

no art. 3º e 5º da Emenda Constitucional nº 20/98 não mais existe, ou melhor, o incentivo para que o servidor permanecesse no serviço público foi substituído pelo “abono de permanência” previsto na Emenda Constitucional nº 41/03.

A questão da natureza jurídica da contribuição previdenciária e da argüição do direito adquirido foi amplamente debatida no Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da Ação Direito de Inconstitucionalidade

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3.105-8-Distrito Federal, que resultou na seguinte Ementa: EMENTAS: 1. Inconstitucionalidade. Seguridade social. Servidor

público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Ofensa a direito adquirido no ato de aposentadoria. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Emenda Constitucional nº 41/2003 (art. 4º, caput). Regra retroativa. Incidência sobre fatos geradores ocorridos depois do início de sua vigência. Precedentes da corte. Inteligência dos arts.5º XXXVI, 146, 149, 150, I e III, 194 e 195, caput, II e § 6º, da CF, e art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. No ordenamento jurídico vigente, não há norma, expressa nem sistemática, que atribua à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público o efeito de lhe gerar direito subjetivo como o de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos e pensões à incidência de lei tributária que, anterior ou ulterior, os submeta à incidência de contribuição previdencial. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento.

2. Inconstitucionalidade. Ação direta. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária, por força de Emenda Constitucional. Ofensa a outros direitos e garantias individuais. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza não retroativa. Instrumento de atuação do Estado na área da previdência social. Obediência aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento. Ação julgada improcedente em relação ao art. 4º caput, da EC nº 41/2003. Votos Vencidos. Aplicação dos arts. 149, caput, 150, I e III, 194, 195, caput II e § 6º, e 201, caput, da CF. Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 12003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações.”

3. Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional

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(EC nº 41/2003, art. 4º § único, I e II). Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Bases de cálculo diferenciadas. Arbitrariedade. Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas da União, de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de outro. Ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade. Ação julgada procedente para declarar inconstitucionais as expressões “cinqüenta por cento do” e “sessenta por cento do”, constante do art. 4º, § único, I e II, da EC nº 41/2003. Aplicação dos arts. 145, § 1º, e 150, II, cc art. 5º, caput e § 1º, e 60,§ 4º, IV, da CF, com restabelecimento do caráter geral da regra do art. 40, § 18. São inconstitucionais as expressões “cinqüenta por cento do” e “sessenta por cento do”, constantes do § único, incisos I e II, do art. 4º da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, e tal pronúncia restabelece o caráter geral da regra do art. 40, § 8º, da Constituição da República, com redação dada por essa mesma Ementa. (ADIN nº 3.105-8- DF, Rel. para o Acórdão, Min. Cezar Peluso, D.J. 18.02.2005, Ementário nº 2180-2)

Do corpo do v. Acórdão se retiram os seguintes trechos que se encaixam perfeitamente na matéria que está sendo analisada neste parecer, por exemplo, do voto do Relator Des. Cezar Peluso , pode-se encontrar as referências necessárias para análise da natureza jurídica da contribuição previdenciária e do alegado direito adquirido frente a norma constitucional:

“A Emenda Constitucional n. 41/2003, no alterar

o alcance do art. 40, entrando a exigir contribuição aos servidores inativos (art. 4.), retira seu fundamento de validade à previsão do art. 195, II, alargando seu raio de incidência por meio da contribuição destinada à previdência social.

Institui-se aí contribuição previdenciária, pertencente à classe das contribuições para a seguridade social, que, seria bom insistir, têm natureza tributária incontroversa, não obstante submissas a particular regime jurídico-constitucional. Aliás, admitida e adotada pelos requerentes mesmos (fls. 5 e ss), bem como pelos ilustres signatários dos pareceres que instruem a inicial (fls. 68,69 e ss).

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Como tributos, que são, não há como nem por onde opor-lhes no caso, a garantia constitucional outorgada ao “direito adquirido (art. 5., XXXVI), para fundar pretensão de se eximir ao pagamento devido por incidência da norma sobre fatos posteriores ao início de sua vigência.

O art. 5., XXXVI, ao prescrever que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, protege, em homenagem ao princípio fundamental de resguardo da confiança dos cidadãos perante a legislação, enquanto postulado do Estado de Direito, os titulares dessas situações jurídico-subjetivas consolidadas contra a produção de efeitos normativos gravosos que, não fosse tal garantia, poderiam advir-lhes da aplicação da lei nova sobre fatos jurídicos de todo realizados antes do seu início de vigência.

Mas o direito adquirido ou exaurido, não precisaria dizê-lo, só se caracteriza como situação tutelada, invulnerável à eficácia de lei nova, quando haja norma jurídica que o contemple como tal no segundo membro de sua estrutura lingüística (proposição normativa), como conseqüência jurídica da perfeita realização histórica (fattispecie concreta) do fato hipotético previsto, como tipo (fattispecie abstrata), no primeiro membro da proposição normativa.

Talvez conviesse recordar ao propósito, conquanto em esquema simplificado, que toda norma jurídica prática, cuja vocação está em induzir comportamento, prevê, na primeira cláusula de sua formulação lingüística, enunciados em termos típicos mas complexos, fato ou fatos de possível ocorrência histórica (fattispecie abstrata), e liga à sua realização completa no mundo físico (fattispecie concreta), por imputação ideal (causalidade normativa), na segunda cláusula, a produção de certo efeito ou efeitos jurídicos, redutíveis, de regra, às categorias conceituais de obrigações ou de direito subjetivos.

De modo que, reproduzido na realidade, em toda a sua inteireza, com a ocorrência do fato, o modelo ou

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tipo normativo, descrito como hipotético na primeira cláusula, dá-se, no mundo jurídico, o fenômeno chamado de incidência da norma sobre o fato (ou subsunção do fato à norma), mediante o qual o fato realizado se jurisdiciza e, fazendo-se jurídico, dá origem, por suposição, ao nascimento de direito subjetivo, isto é, direito reconhecido a titular ou titulares personalizados (com adjetivo possessivo). Daí afirmar-se:

“Inexiste direito subjetivo sem norma incidente sobre fato do homem ou sobre o homem como fato: sobre seu mero existir ou sobre conduta sua. O direito subjetivo é efeito de fato jurídico, ou de fato que se jurisdicizou: situa-se no lado da relação, que é efeito. Isso quer nos direitos subjetivos absolutos, privados ou públicos, quer nos direitos subjetivos relativos.”

Ora, e isso é observação radical e decisiva, não se manifesta, intui, nem descobre, expressa ou sistemática, nenhuma norma jurídica que, no segundo membro de sua proposição, impute, associado, ou não, a outra circunstância típica elementar, ao ato e à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público, o efeito pontual de lhe gerar direito subjetivo como poder subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos à incidência de lei tributária ulterior ou anterior. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito. Donde, tampouco poderia encontrar-se, com esse alcance, direito subjetivo que, adquirido no ato de aposentamento do servidor público, o alforriasse à exigência constitucional de contribuição social incidente sobre os proventos da inatividade.Que condição de aposentadoria, ou inatividade, represente situação jurídico-subjetiva sedimentada, que, regulando-se

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por normas jurídicas vigentes à data de sua perfeição, não pode atingida, no núcleo substantivo desse estado pessoal, por lei superveniente, incapaz de prejudicar os correspondentes direito adquiridos, é coisa óbvia, que ninguém discute. Mas não menos óbvio, posto que alguns, é que, no rol dos direito adquiridos inerentes à situação de servidor inativo, não consta o de imunidade tributário absoluta dos proventos correlatos.

Nem se pode desconsiderar que, em matéria tributária, por expressa disposição constitucional, a norma que institua ou majore tributo somente pode incidir sobre fatos posteriores à sua entrada em vigor. Logo, fatos que, ajustando-se ao modelo normativo, poderiam ser tidos por geradores, mas que precederam à data de início de vigência da EC n. 41, não são por esta alcançados, não apenas em virtude daquela garantia genérica de direito intertemporal, mas também por obra da irretroatividade específica da lei tributária objeto da norma do art. 150, III, a, da Constituição da República, e de referência do art. 149, caput:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras

garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)III – cobrar tributos:

em relação a fatos geradores a) ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.” Na espécie, o fato gerador da contribuição

previdenciária dos inativos é a percepção de “proventos de aposentadorias e pensões”, conforme dispõe o art. 4., § único, da EC n. 41/2003. Mas, alegando estarem sob o pálio da garantia constitucional do direito adquirido, os requerentes pretendem que esse cânone da Emenda não se aplique tampouco aos fatos geradores futuros.

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Não lhes vale nem aproveita, no entanto, a garantia que invocam. É que, reduzida sua pretensão à última significação jurídica, podem o reconhecimento de autêntica imunidade tributária absoluta, pelo só fato de já estarem aposentados à data de início de vigência da EC n. 41/2003.

Ora, vista como fato jurídico, a aposentadoria não guarda de per si tal virtude, pois imunidade tributária depende sempre de previsão constitucional, que com essa latitude não existe para o caso. Antes, a EC n. 41/2003 subjugou, às claras, os proventos dos servidores inativos ao âmbito de incidência da contribuição previdencial.

A relação jurídico-tributária baseia-se no poder de império do Estado e legitima-se pela compet6encia que a este, em qualquer das três encarnações federativas, lhe atribui a Constituição. Em terminologia clássica é relação jurídica ex lege e, como tal, sua instituição e modificação 9majoração, extinção, etc) dependem da existência da lei, que seja reverente aos estritos desígnios e limites constitucionais.

O art. 150, III, a, da Constituição da República, como se viu, prescreve que a lei tributária que institui tributo só pode apanhar fatos geradores ocorridos após seu início de vigência. Donde, e esta é conseqüência também oriunda do princípio constitucional da legalidade administrativa 9art. 37, caput), uma vez dado o fato nela previsto como hipótese, exsurge ipso facto o poder jurídico de lhe exigir o pagamento, ou, em termos invertidos, a obrigação de o pagar, por força da subsunção do fato `norma, ou, o que dá no mesmo, da incidência desta sobre aquela, salvos os casos expressamente excluídos do âmbito de tal efeito, por força da previsão de imunidade ou de isenção, por exemplo.

Exercida a competência, dentro dos limites constitucionais a pessoa cuja condição é alcançada pela norma instituidora torna-se sujeito passivo na situação jurídico-tributária, sem que desta posição obrigacional o livre situação jurídica anterior. A lei tributária aplica-se

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aos fatos jurídicos ocorridos sob seu império (art. 105 do Código Tributário Nacional), observado o princípio da anterioridade (art. 150, III, b e c, e art. 195, § 6°, da Constituição da República), cujo período, no caso, é de 90 dias.”

A Emenda Constitucional deixou de prever a isenção de

contribuição aos servidores ativos que atingissem certos requisitos. Além disso, a Emenda torna obrigatório o regime contributivo – tanto para os ativos quanto para os inativos -, não se podendo falar de direito adquirido à isenção ou supremacia da Lei Tributária sobre normas constitucionais., conforme a lição do Ministro Cezar Peluso.

Eram as respostas e considerações aos questionamentos feitos pela Sra. Diretora-Geral do PREVIMPA e pelo Sr. Secretário Municipal de Administração.

Em 03 de fevereiro de 2006.

Heron Nunes EstrellaProcurador Municipal PPE/PGM

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HOMOLOGAÇÃO

Aprovo o parecer n° 1125/06, da lavra do procurador Heron Nunes Estrella, que versa sobre o pagamento do abono de permanência instituído pela Emenda Constitucional 41/03 em substituição a isenção de contribuição previdenciária instituída pela EC n° 20/98; estabelecendo sua natureza jurídica, a vigência e a competência para o pagamento.

Registre-se. Encaminhe-se cópia da homologação à Equipe de Assuntos de Pessoal Estatuário, à Secretaria Municipal de Administração, ao Previmpa, estabelecendo- se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 02 de março de 2006

João Batista Linck FigueiraProcurador-Geral do Município de Porto Alegre, em exercício

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ALTERAÇÃO DO VALOR DO CONTRATO ADMINISTRATIVO. LIMITES E POSSIBILIDADES

Parecer nº 1131/2006Processo nº 001.011596.05.8Interessado: Secretário da Secretaria Municipal de Gestão e Acompanhamento EstratégicoAssunto: Alteração do valor do contrato administrativo

ALTERAÇÃO DO VALOR DO CONTRATO ADMINISTRATIVO. LIMITES E POSSIBILIDADES. UNICIDADE INTERPRETATIVA QUANTO A NORMA CONTIDA NOS DISPOSITIVOS DOS §1º E §2°, DO ART. 65, DA LEI DE LICITAÇÕES (LEI Nº 8.666/93), EM COTEJO COM OS DISPOSITIVOS DE DECRETO-LEI 2.300/86 QUE TRATAM DA MATÉRIA. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS CONTÍNUOS E CONTRATAÇÃO POR EMPREITADA, VALOR ESTIMADO, SERVIÇO MEDIDO E PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA – PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS PARA A EXCEPCIONALIDADE DE ALTERAÇÃO DE VALOR CONTRATUAL ACIMA DOS LIMITES LITERAIS PREVISTOS NO 65, DO ESTATUTO LICITATÓRIO PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E DA ECONOMICIDADE. CONSENSUALIDADE. PRINCÍPIOS ONRÇAMENTÁRIOS DA ESPECIALIDADE, DA TRANSPARÊNCIA E DA PROGRAMAÇÃO.

I - INTRODUÇÃO

Vem a esta procuradoria-Geral do Município, por solicitação do Senhor Secretário as Secretaria Municipal de Gestão e Acompanhamento Estratégico, a didática manifestação egressa de sua Assessoria Jurídica, a

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qual oferece importante contribuição para o enfrentamento de situações relacionadas à execução dos contratos administrativos no seio desta Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

Trata-se de resposta à consulta formulada pela Coordenação de Comunicação Social da PMPA, acerca da possibilidade de utilização dos recursos orçamentários disponíveis nas rubricas de publicidade, conforme a LOA de 2006, dentro dos contratos já firmados, numa ampliação do valor contratual superior ao tradicional limite de 25%.

A partir de uma cuidadosa resenha dos elementos fáticos do caso que enfrenta, o seu texto, cumpre registrar com o merecido destaque, produz tese que responde de forma convincente à consulta que lhe foi formulada. Apoiado nas noções de contrato e contrato administrativo, e prestando especial atenção às exigências constantes da Lei de Licitação para com a definição do objeto das contratações públicas, a peça formula conclusão que indica a possibilidade de admitir um contrato administrativo com cláusula de preço definida em um valor estimado.

A partir daí, traça considerações quanto à possibilidade de se admitir a alteração deste valor segundo as variações ano a ano, da lei de meios da Administração Pública (lei orçamentária), em virtude do fato do referido valor estimado ser definido em função de uma relação concreta e objetiva com a peça orçamentária.

Expondo posições doutrinárias quanto à correta compreensão das possibilidades de alteração dos contratos administrativos, em especial apoiada no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, bem como do Tribunal de Contas da União, firma a necessidade da vinculação da viabilidade da hipótese de alteração de contratos administrativos, além dos limites previstos no art, 65, da lei 8.666/93, à verificação da ameaça ao interesse público primário. Além disso, expressa o condicionamento da possibilidade à observância de alguns princípios que situam finalidades centrais da lei de licitações: o direito do contratado à preservação do objeto original do contrato (e conseqüente necessidade de consensualidade de alterações que desbordem deste quadro), o respeito à isonomia dos administrados e à interdição a fraude na licitação.

Conclui com o cotejo da possibilidade de alteração contratual referida com as prescrições derivadas de princípios de direito público incidente sobre a hipótese, para lançar seu parecer em sentido favorável à possibilidade de utilização dos recursos orçamentários disponíveis nas rubricas de publicidade, conforme a LOA de 2006, dentro dos contratos já firmados.

É o relatório

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II - QUANTO À HIPÓTESE DE ALTERAÇÃO CONTRATUAL

No tocante a eventual alteração contratual, tratando-se de possibilidade de transbordar os limites insculpidos nos §§ 1º e 2º, do art. 65 da lei nº 8.666/93, deverá sempre estar presente que a mesma é condicional e limitada, dependendo da verificação das circunstâncias práticas que irão confirmar a regra ou derrogá-la.

Ao exame de hipóteses de alterações de contratos administrativos há algo que se deve ter presente: o limite legal de 25% (vinte e cinco por cento) para extensões contratuais, examinado à luz de sua ratio, constitui regra geral, que comporta exceções. Essa é a abalizada posição referendada por ANTONIO CARLOS CINTRA DO AMARAL164 para quem a decisão de ultrapassar esse limite, em casos excepcionais contem-se na margem de discricionariedade do agente público, a quem cabe valorar os fatos e adotar a decisão que considere mais compatível com o interesse coletivo primário a atender.

O autor sustenta essa opinião por meio de um interessante comparativo entre o regime atualmente estatuído pela lei de Licitações e o pretérito regime do decreto Lei n° 2.300/86165, em especial quanto ao contido no § 4°, do art. 55, do citado Decreto, registrando que as diferenças existentes entre os dois diplomas expressam, na verdade, um mesmo sentido.

Afirma o autor166: “Entendo que o tratamento dado aos

limites referentes às extensões contratuais é, na Lei 8.666/93, igual ao contido no Decreto-Lei 2.300/86, apesar de, em sua literalidade, as respectivas normas parecerem parcialmente contrárias”.

(...)A questão que se colocou desde o início da

164 “ Ato administrativo, licitação e contrato administrativo”, São Paulo, Malheiros Editores, 1995, p.132165 o mencionado Decreto-lei 2.300/86, que foi sucedido pela lei n° 8.666/93, ora em vigor, dispunha em seu artigo 55, que é o correspondente atual do 65, o seguinte:”art.55: os contratos regidos por este Decreto-lei poderão ser alterados nos seguintes casos:(...)§1°- O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% do valor inicial do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% para os seus acréscimos.(...)§4°- No caso de acréscimo de obras, serviços ou compras, os aditamentos contratuais poderão ultrapassar os limites previstos no §1° deste artigo, desde que não haja alteração do objeto do contrato.”

166 3 in loc. E ob cit., p.123/126

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vigência do Decreto-lei 2.300/86 foi a de saber como conciliar uma norma que estabelecia limites para a Administração (§1°) com outra que, pelo menos aparentemente, retirava esses limites (§4°).

(...)Meu entendimento era – e continua sendo

– o de que, apesar da literalidade do §4° ensejar uma interpretação mais ampla, a ratio iuris conduzia a restringi-la. Os limites legais somente podiam ser ultrapassados em situações supervenientes, imprevisíveis e excepcionais.

Vale lembrar a lição de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7ª ed., Rio/São Paulo, Livraria Freitas Bastos, 1961, p. 172/173): ‘Não raro, à primeira vista duas expressões se contradizem; porém, se as examinarmos atentamente (subtili animo), descobriremos o nexo oculto que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico, descobrir a correlação entre regras aparentemente antinômicas’.

‘Sempre que descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si, presumir que não compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório. Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para harmonizar os textos; a este esforço ou arte os estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, denominavam – terapêutica Jurídica.’

E acrescenta ele (ob. Cit., p. 173): ‘Apure o intérprete se é possível considerar um texto como afirmador de princípio, regra geral; o outro, como dispositivo de exceção; o que estritamente não cabe neste, deixa-se para a esfera de domínio daquele.’

A lei 8.666/93 disciplinou a matéria de maneira aparentemente diversa. O §1° de seu art. 65 é quase idêntico ao §1° do art. 55 do Decreto-lei 2.300/86. Já o §2° contém uma proibição enquanto o §4° do art. 55 do Decreto-lei 2.300/86 continha um poder.

A divergência é, porém, aparente. O “sentido”

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das normas das duas leis é o mesmo. O intérprete deve buscar esse “sentido” sem se ater à literalidade das normas. A interpretação com base na literalidade da norma jurídica está ultrapassada.

(...)O exame da ratio iuris do §4° do art. 55

do Decreto-lei 2.300/86 e do §2° do art. 65 da lei 8.666/93 conduz à conclusão de que ambos dizem a mesma coisa, embora com palavras diferentes, Considerando-se, como acima foi dito, que não há limite quando o agente público se depara com situações supervenientes, imprevisíveis e excepcionais, o §4° do art. 55 do Decreto-lei 2.300/86 devia ser entendido, em seu “sentido”, como expressando a fórmula “pode, desde que...” enquanto o §2° do art. 65 da lei 8.666/93 deve ser entendido como dizendo “não pode, salvo se...”. O resultado é o mesmo. Referindo-me a um dos textos de Carlos Maximiliano, acima citados: a norma que estabelece limites para extensões contratuais é princípio, regra geral, que comporta exceções.”

O mesmo entendimento é defendido por CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO 167, nos seguintes termos:

“Consoante nos parecia já ao tempo do decreto-lei n° 2.300 e continua a nos parecer sob o império do atual regramento –nunca houve (nem mesmo no passado) permissão absoluta, assim como não há, no presente, vedação absoluta, a que se superem os limites de valor de 25% ou 50%, conforme o caso.

Dantes, como hoje, tal ultrapassagem só pode ser feita perante circunstâncias invulgares que a justifiquem, mas, na ocorrência delas, descaberia opor-lhe ritualísticas objeções. Como sempre, em questões jurídicas, é necessário buscar a racionalidade que inspira as normas e interpretá-las nesta conformidade, com atenção centrada firmemente no espírito que as

167 in “A extensão das alterações dos contratos administrativos: a questão dos 25%” Revista Diálogo Jurídico, www.direitopublico.com.br

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anima. Dessarte, as mesmas razões que nos levavam a contender, sob o império do decreto-lei 2.300, irrestrita liberdade para Administração e contratados, de comum acordo, excederem os limites que pareciam, em tal caso, livremente franqueados pela dicção normativa, concorrem com a mesma força para considerá-los superáveis quando presentes os fatores que outrora e atualmente os fariam justificáveis.”

O traçado da evolução normativa esposado pelos autores mencionados,confirma a precisão da peça elaborada pela ASSEJUR/SMGAE, que contém correta apreciação do conjunto dos elementos que instruem os autos e um pertinente cotejo dos mesmos para com o Ordenamento Jurídico.

Saliente-se que a informação sob exame toma por base as razões expostas na consulta que lhe deu origem, que representam o ato de valoração dos fatos em direção ao interesse coletivo primário a atender. O exame técnico jurídico da hipótese, cinge-se ao enfrentamento de sua conformidade ou não com o direito, sem invasão da seara administrativa da motivação técnica expendida pela Coordenação de Comunicação Social do Município.

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LICITAÇÃO DE SERVIÇOES CONTÍNUOS OU LICITAÇÃO POR EMPREITADA

No caso concreto, segundo o itinerário proposto na informação sob comento, é fundamental se destacar a distinção realizada entre licitação de serviços contínuo e licitação por empreitada, tradução possível no âmbito jurídico da oposição proposta entre licitação por “job” e licitação por “conta”, consoante expressões empregada na consulta da Coordenação de Comunicação Social.

A opção da Administração por uma contratação global no formato da prestação dos serviços de publicidade como serviços contínuos (a licitação por “conta de publicidade”), agregada ao projeto de constituição de um Sistema de Comunicação Social na PMPA, traz toda a legitimidade da fixação do objeto da contratação nos moldes em que se efetivou.

Para o caso, resta configurada de forma dúplice a vantajosidade da extensão dos contratos firmados, como foi pretendida.

Duas seriam as alternativas à extensão contratual: a disponibilidade das reservas orçamentárias excedentes em licitações pontuais, empreitada à empreitada, conforme necessidades pontuais da Administração Pública, ou a rescisão dos contratos em vigor para o empreendimento de nova licitação.

Ambas revelar-se-iam extremamente danosas ao interesse público.A primeira alternativa implica frustrar o objetivo da obtenção

de uma desejada continuidade e uniformidade de prestação dos serviços, que perderia a identidade conceitual já formada a partir da execução dos contratos em vigor. Mais do que conveniente para o serviço público, a manutenção do sistema é uma necessidade segundo o projeto definido nos atos preparatórios da licitação.

Além desse ponto que pode ser considerado um aspecto técnico, ressaltamos a vantagem econômica derivada do ambiente de uma licitação de ampla concorrência que resultou na oferta de grandes descontos por serviços, especialmente se comparado com as ofertas que se colheria de uma licitação Por empreitada (por “job”).

Quanto à hipótese de realização de novas licitações, assim se manifestou a Coordenação de Comunicação Social.

...“a maior dificuldade que enfrentaríamos seria a descontinuidade de uma linha de trabalho. A perda da “identidade” da PMPA, decorrente da contratação de

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agências diferentes para a realização das divulgações e produções de materiais do Município. Em síntese, da política de comunicação já implementada.

Claro está para o setor de comunicação social que, a abertura de processos licitatórios paralelos significará ônus real para a Prefeitura.

Além dos custos da realização das novas licitações, também, durante as realizações dos serviços de publicidade, não teríamos os descontos nos honorários ofertados pelas agências vencedoras d Concorrência 01/2005. Apenas no caso de custos internos (tabela), isto significaria um aumento de 100% nos valores gastos dentro dos contratos hoje em vigor”

A hipótese de alteração contratual contempla, portanto, o atendimento ao Princípio da Eficiência, valor normativo de acepção ampla, que estabelece relação com resultados buscados pela Administração Pública. Compreende-se também a matiz mais objetiva consagrada pelo Princípio da Economicidade, cuja dimensão consigna a preocupação com a melhor e menor relação de custos da Administração para a obtenção dos bens necessários ao desenvolvimento de sua atividade.

Para além desses aspectos, o contrato em questão traz como resultado a obtenção da regularização administrativa de todo um conjunto de atividades necessários ao desenvolvimento das funções públicas. Previne os desacertos burocráticos que resultam na deletéria multiplicação de procedimentos de indenização administrativa nesta área, movidos de regra pela urgência que caracteriza a necessidade de tal prestação.

Ademais, estamos a tratar de uma definição de objeto certo e determinado, ou pelo menos determinável, segundo uma relação objetiva com a peça orçamentária. A situação em nada difere da realidade de contratos com valores estimados e serviços medidos, a exemplo do que acontece com os contratos mantidos com os Correios para a postagem de documentos, ou com as empresa de telefonia, cujos custos são medidos em “pulsos”.

Nessas circunstâncias, como na presente, opera-se momento a momento, ponto a ponto, em medições do serviço executado, que são remunerados segundo uma tabela de valores previamente definida.

Em outras oportunidades já admitimos a extrapolação dos limites

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do art. 65, § 1°, da Lei de Licitações, sob a consideração de que o custo anual do contrato previsto na cláusula específica seria apenas um custo estimado, situação em que a alteração de previsão orçamentária em valor substancialmente maior que o inicialmente previsto não importaria em contratação de serviços extras.

Toda argumentação expendida na bem lançada informação de fls. 1769/1793 só vem confirmar o acerto destas decisões anteriores, ampliando a base técnica de sua sustentação.

CONSENSUALIDADE DA ALTERAÇÃO CONTRATUAL

Cabe, no entanto, uma advertência: embora decorrente do próprio escopo contratual, a alteração pretendida não pode ser imposta unilateralmente, demandando consenso do contratado. A salvaguarda se impõe para prevenção de futuros litígios, bem como para garantia do devido processo administrativo.

PRINCÍPIOS ORÇAMENTáRIOS

Em linha de conclusão, resta deixar consignado que a contratação em tela representa, em verdade, uma evolução na disciplina da relação contratual da Administração Pública com agências de publicidade. Tal fato possui importância invulgar no momento em que, desgraçadamente, verifica-se no cenário político nacional a reprodução de uma série de práticas censuráveis neste tipo de relação contratual.

Além de contemplar a licitação como princípio, o presente procedimento alcança o atendimento aos princípios orçamentários da Especialidade, da Transparência Orçamentária e da Programação.

Segundo o Princípio Orçamentário da Especialidade, também chamado de especificação ou da quantificação dos créditos orçamentários, os créditos destinados a cada órgão deverão ser discriminados no orçamento anual, que deverá estabelecer, ainda, o prazo para efetivação das despesas. Ele se confunde com a própria questão da legalidade da despesa pública e é a razão de ser da lei orçamentária, prescrevendo que a autorização legislativa se refira a despesas específicas e não a dotações globais. O princípio da especialidade abrange tanto o aspecto qualitativo dos créditos

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orçamentários quanto o quantitativo, vedando a concessão de créditos ilimitados e determinado a fixação do montante dos gastos 168.

O Princípio da Transparência Orçamentária, também chamado de princípio da clareza orçamentária, recomenda que o orçamento deve trazer com fidelidade e transparência ingressos e gastos públicos, nada devendo ficar encoberto ou dissimulado nas questões orçamentárias 169.

O Princípio da Programação Orçamentária, por fim, integra-se num sistema de programação mais amplo como elemento da estrutura de planejamento. Por sua vez, o conceito de programação possui dois elementos básicos, intimamente relacionados: os objetivos e os meios (ações e recursos), que dão lugar a outros níveis de programação. Objetivo é cada bem ou serviço que as entidades públicas se propõem a colocar a disposição da comunidade no cumprimento de suas finalidades para satisfazer as necessidades coletivas. Meios são os serviços que a entidade presta a si mesma para servir de apoio à produção de bens ou serviços em favor da coletividade 170 .

Na hipótese dos autos, temos na licitação um desdobramento quase automático das definições da Lei Orçamentária Anual para com publicidade oficial. Os contratos de que se trata, bem atendem ao princípio da especialização na medida em que representam a sua eficácia enquanto realização concreta do que foi planejado. O modo concentrado de execução dos gastos nesta seara vem em atendimento ao Princípio da Transparência, pois expõe de forma clara a sistemática de seu implemento, facilitando os mecanismos de controle. O Princípio da Programação é realizado plenamente no intuito de planejamento que permeia todo o projeto da Coordenação de Comunicação Social.

Resta assim, respeitado o Princípio da Legalidade não apenas numa estrita correspondência com ditames formalmente expressos em lei, mas como uma relação de pertinência a todo o bloco de legalidade formado pelo Ordenamento Jurídico, que impõe o dever de buscar a máxima realização de seus valores no ato de aplicação do Direito.

168 petter, Lafayete Josué “Direito financeiro” Porto Alegre, 2006, ed. Verbo Jurídico, p.53169 idem, p. 54/55.170 Mileski, Helio Saul “O controle da gestão pública “São Paulo, ed. RT, 2003, p.47.

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III - CONCLUSÃO

Diante do exposto, concluímos favoravelmente à possibilidade de utilização dos vínculos contratuais em vigor, como meio de execução de uma política específica da Administração Municipal: a Política de Comunicação. Nossa conclusão tomou em consideração que:

a) tratando-se de hipótese de alteração contratual consensual, qualitativa e excepcionalíssima, é facultado à Administração ultrapassar os limites literais do art. 65, da Lei 8.666/93, possibilidade que deriva de exame à luz da ratio da norma, a qual constitui regra geral, que comporta exceções.

b) a verificação da possibilidade, in casu, está condicionada à realidade da contratação de serviços contínuos, permanentemente medidos, instrumentalizada por vínculo contratual com cláusula de valor estimado, características a que se agrega o advento de alteração específica na lei orçamentária anual. Tais pressupostos são de observância obrigatória para admissão da possibilidade de alteração contratual em hipótese análogas;

c) em vista de seus motivos determinantes, conforme a manifestação da Coordenação de Comunicação Social da PMPA, os fins eleitos na hipótese de alteração contratual sob análise são lícitos, não vulneram o Princípio da Moralidade, nem os princípios específicos das licitações (em especial o da isonomia entre os licitantes ), senão que os realizam.

João Batista Linck FigueiraProcurador-Geral Adjunto/Procuradoria de Contratos e

Serviços Públicos (PGA -PCSP)

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HOMOLOGAÇÃO

HOMOLOGO o Parecer n° 1131/2006, da lavra da Procurador-Geral Adjunto de Pessoal, Contratos e Serviços Públicos, João Batista Linck Figueira que versa acerca dos limites e possibilidades de alteração do contrato administrativo, em situações que caracterizem serviços contínuos permanentemente medidos, com cláusula de preço em valor estimado, bem como dos pressupostos necessários para a excepcionalidade de alteração de valor contratual acima dos limites literais da lei, e quanto à adequação da hipótese de que trata aos princípios orçamentários da especialidade, da transparência e da programação.

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de Pessoal, Contratos e Serviços Públicos; à Procuradoria de Licitações e Contratos e à Secretaria Municipal de Gestão e Acompanhamento Estratégico, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 10 de julho de 2006.

Mercedes Maria de Moraes RodriguesProcuradora-Geral do Município

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OBRAS DE SANEAMENTO NA VILA ASA BRANCA

Parecer PGM Nº 1136Processo Nº 001.015433.06.4Interessado: Vila Asa Branca (obras do DMAE a serem licenciadas ambientalmente)Assunto: Obras de saneamento na Vila Asa Branca

OBRAS DE SANEAMENTO NA VILA ASA BRANCA. NECESSIDADE DO ÓRGÃO AMBIENTAL LICENCIADOR EXAMINAR O PROJETO TÉCNICO APRESENTADO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. NECESSIDADE DE ATUAÇÃO MUNICIPAL VISANDO AO TRATAMENTO DOS PROBLEMAS DA VILA ASA BRANCA, EM RAZÃO DAS CONDIÇÕES INSALUBRES APONTADAS QUE GERAM SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA. REGISTRO DE SURTO DE HEPATITE E OUTRAS DOENÇAS DECORRENTES DA FALTA DE SANEAMENTO. PASSIVO AMBIENTAL QUE PRECISA SER ENFRENTADO PELA MUNICIPALIDADE. .EXISTÊNCIA DE AÇÕES MUNICIPAIS VISANDO AO TRATAMENTO DOS PROBLEMAS DA VILA NA SUA INTEGRALIDADE. SUGESTÃO DE PROCEDIMENTO QUE PRECEDE AO LICENCIAMENTO AMBIENTAL. POSSIBILIDADE DE ELABORAÇÃO DE TERMO DE COOPERAÇÃO ENTRE OS ÓRGÃOS MUNICIPAIS VISANDO EXPLICITAR AS ATRIBUIÇÕES DE CADA UM NA ATUAÇÃO DA ÁREA. POSSIBILIDADE DE PROSSEGUIR COM O LICENCIAMENTO AMBIENTAL. INEXISTÊNCIA DE OBSTÁCULOS JURÍDICOS

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AS OBRAS DE SANEAMENTO

O presente expediente foi enviado à Procuradoria do Município

pelo Departamento Municipal de Águas e Esgotos – DMAE -, visando à manifestação desta Casa acerca da possibilidade de realizar obras para a implantação da rede de esgotos na Vila Asa Branca. O exame jurídico da questão se faz necessário, na medida em que a Secretaria Municipal do Meio Ambiente se manifestou contrariamente à implantação respectiva. Assim sendo, pretende o DMAE que seja examinada a questão, na medida em que os dados fáticos dão conta de uma situação emergencial naquele local, sendo que a vigilância sanitária municipal aponta a existência de reiterados casos de hepatite A e outras doenças decorrentes das precárias condições de salubridade a que estão submetidos os moradores do local. Considerando que obras de saneamento estão ao encargo da autarquia municipal consulente em nosso Município, questionam se podem realizar as obras dada a situação de emergência relatada nos autos. Anexam parecer jurídico sustentando esta posição.

O DMAE aponta que pretende realizar a implantação de sistema de esgotamento sanitário. Esclarece que não se trata apenas de execução de redes coletoras, mas de um sistema completo com redes coletoras, estação elevatória e posteriormente uma estação de tratamento que atenderá parte de zona norte da capital171.

A SMAM - órgão licenciador ambiental municipal - , por sua vez, sustenta que o tipo de solo existente e a forma como foi ocupada a área, implica na necessidade da Vila Asa Branca passar por um processo de urbanização e saneamento que compreendesse desde a reconstrução das casas em solo melhorado, o reassentamento das famílias localizadas próximas aos canais, a execução de um sistema de drenagem abrangendo a construção de um canal e o melhoramento da casa de bombas nº 10, redes de esgoto cloacal e pluvial172.

Esclarece-se que a manifestação da SMAM ocorreu no curso do processo de licenciamento ambiental em expediente que visa ao licenciamento ambiental de obras de esgotamento sanitário e macrodrenagem na Vila Asa Branca. Neste mesmo expediente consta a alusão a estudos já realizados pelo Município ao longo dos anos, sendo que a dificuldade para proceder ao licenciamento ambiental de obras de infra-estrutura tal como 171 Fl. 36 frente e verso172 Fls. 07 e 08 dos autos

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o esgotamento, reside na necessidade apontada pelo órgão ambiental de tratamento de todos problemas apontados pela Secretaria, desde 2002.

A partir dos apontamentos da SMAM e considerando a necessidade de incidir na realidade fática, pois cerca de 950 famílias residem no local, várias iniciativas já foram realizadas e outras que serão feitas estão relatadas nos autos, sobressaindo-se às obras a serem executadas por DMAE/DEP, a atuação da SMS que encontrou focos vários e graves de hepatite e outras doenças que têm por maior causa as condições de salubridade do local onde vivem as pessoas.

Para incidir sobre a questão foi formado Grupo de Trabalho173 envolvendo diversas Secretarias, visando à minimização dos graves problemas da Vila Asa Branca, bem como a adoção de medidas no âmbito de cada Secretaria para atuação na área.

Desta atuação conjunta é que decorreu a destinação orçamentária para realização das obras de saneamento ora objeto de exame, sendo que as demais Secretarias também estão trabalhando neste sentido, ao que consta na manifestação do Diretor do DMAE.

A negativa do Sr. Secretário da SMAM em proceder ao licenciamento ambiental decorre dos seguintes argumentos: a)existência de parcelamento em área inapropriada, insalubre e geotecnicamente inadequada, à luz da Lei Orgânica Municipal e do Código Estadual do Meio Ambiente; b) pareceres técnicos constantes nos autos que não recomendam a autorização para obras de infra-estrutura dado as condições do solo da região.

O DMAE em recurso aponta a gravíssima situação de saúde pública decorrente da falta de saneamento da área, o que gera poder/dever da municipalidade em agir, bem como indica duas alternativas para realização de obras, o que aparentemente não foi analisado pela SMAM, por apontar a necessidade de visualização como um todo da irregularidade da Vila.

A avaliação geotécnica da área foi realizada pela ECOGEO, empresa contratada para esta finalidade. A empresa aponta duas alternativas técnicas para realização das obras respectivas, sendo que a partir destas é que o DMAE requer o licenciamento ambiental respectivo para as obras de sua responsabilidade, que nos termos apontados na informação de fl. 36 são as mais urgentes, em face dos seus efeitos diretos à saúde da população moradora da área.

Fica claro nos autos que o licenciamento ambiental pretendido cinge-se a obra de competência do DMAE, que inicia as obras de melhoria

173 DOPA de 24 de maio de 2005, p. 37 autos

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das condições daquele local.No caso dos autos há evidentemente dois bens juridicamente

tutelados da mesma forma, reclamando solução da Administração Pública Municipal. Na forma como exporemos a seguir, entendemos que há um falso dilema entre meio ambiente e necessidade de saneamento, na medida em que as pessoas integram este meio e não estão fora dele. Assim a regularização fundiária é um enorme passivo ambiental das cidades brasileiras que precisa ser enfrentado pelas municipalidades. No caso dos autos, a iniciativa do DMAE integra o esforço municipal para a atuação de forma global, não sendo a solução em si, mas dando início a um processo no qual esta é possivelmente a parte que envolve a maior parte de investimento público.

Destarte, o que está em jogo nos autos são dois bens juridicamente tutelados da mesma forma na Constituição Federal como direitos fundamentais que são meio ambiente e condições de saúde da população decorrente da insalubridade que precisa ser minimizada, que se resolve a nosso ver a partir da ponderação de interesses, aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade estrito senso na seara do que vem fazendo o STF em recentes decisões.

I – DO PASSIVO AMBIENTAL DAS CIDADES BRASILEIRAS

Estudos urbanos têm demonstrado a íntima relação entre a ocupação do território, a exclusão social e os impactos ambientais decorrentes do processo de urbanificação174 . Edesio Fernandes175 assim descreve este fenômeno:

“Na maioria dos casos, a exclusão social tem correspondido também a um processo de segregação territorial, já que os indivíduos e grupos excluídos da economia urbana formal são forçados a viver nas precárias periferias das grandes cidades, ou mesmo em áreas centrais que não

174 Neste sentido FERNANDES, Edesio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil: uma Introdução. In Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000,a saber: ¨No Brasil, a urbanização intensiva já transformou estrutural-mente a ordem socioeconômica e redesenhou a ocupação do território nacional, tendo provocado impactos ambientais comparáveis aos efeitos de grandes catástrofes naturais. Cerca de 80% da população brasileira – de um total de 165 milhões – vive atualmente nas cidades, sobretudo nas áreas metropolitanas¨.175 FERNANDES, Edesio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil: uma Introdução. In Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

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são devidamente urbanizadas. Dentre outros indicadores da poderosa combinação entre exclusão social e segregação territorial – mortalidade infantil; incidência de doenças; grau de escolaridade; acesso a serviços, infra-estrutura urbana e equipamentos coletivos; existência de áreas verdes, etc. - , dados recentes indicam que cerca de 600 milhões de pessoas nos países em desenvolvimento vivem atualmente em situações insalubres e perigosas. Exclusão social e segregação territorial têm determinado a baixa qualidade de vida nas cidades, bem como contribuído diretamente para a degradação ambiental e para o aumento da pobreza na sociedade urbana.”

Este é um dos motivos que estão gerando os esforços para atuação em regularização fundiária no país, com vultosos recursos públicos tendo sido investidos.

As normas de proteção ambiental muitas vezes têm sido colocadas como óbice legal e constitucional aos processos de regularização fundiária. Isto porque muitas áreas ambientalmente sensíveis estão irregularmente ocupadas, sendo no momento em que a regularização é desencadeada há manifestações contrárias, tendo por fundamento as normas ambientais.

O meio ambiente no espaço urbano pressupõe a presença do homem. Não é possível ignorar esta realidade, sob pena de deixar à margem elemento fundamental de análise. O espaço construído não prepondera sobre o ambiente natural, porém é parte integrante de um mesmo contexto. As decisões urbano-ambientais a serem tomadas precisam avaliar esta universalidade, a interação entre os objetos.

De outra parte não é ambientalmente mais adequado identificar o que ainda é possível proteger e no restante investir em urbanização (tratamento esgoto, medidas para conter impermeabilização, controle das edificações, etc.) para minimizar os impactos decorrentes da ocupação? Veja-se que não estamos tratando de situações individuais, localizadas, mas de um contexto que prepondera na maior parte das cidades brasileiras de portes médio e grande.

Neste sentido, entendemos que a regularização fundiária é um enorme passivo ambiental das cidades brasileiras que precisa ser enfrentado. O conceito passivo ambiental tem origem na economia, podendo ser assim definido: “Valor monetário, composto basicamente de três conjunto de itens: o

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primeiro, composto das multas, dívidas, ações jurídicas (existentes ou possíveis), taxas e impostos pagos devidos à inobservância de requisitos legais; o segundo, composto dos custos de implantação de procedimentos e tecnologias que possibilitem o atendimento às não conformidades; o terceiro, dos dispêndios necessários à recuperação de área degradada e indenização à população afetada. Importante notar que este conceito embute os custos citados acima mesmo que eles não sejam ainda conhecidos; e, pesquisadores estudam como incluir no passivo ambiental os riscos existentes, isto é, não apenas o que já ocorreu, mas também o que poderá ocorrer”176.

A irregularidade urbana, expressa pelas ocupações irregulares, pelos loteamentos clandestinos realizados à margem da lei, pelos assentamentos auto produzidos que não respeitam regras e limites físico- territoriais, mas se configuram a partir do local e da organização dos próprios ocupantes, são uma realidade cotidiana das cidades brasileiras. Negar a existência ou enfrentar o problema a partir da ótica poder ou não continuar morando neste local, enxergando a situação a partir dela mesma e sem considerar se há outro local mais apropriado para aquelas pessoas residirem ou se há possibilidade de relocalização, bem como sem identificar quem paga os custos de eventual relocalização, é perpetuar conceitos cuja decorrência hoje estamos sofrendo. Ignorar esta situação fática é uma das características do risco da entropia, apontado por Ost177. É necessário romper com o paradigma compartimentalizado das análises, superar a avaliação urbana a partir do imóvel ou da gleba, tendo a dimensão do espaço que está inserido, criando diretrizes de sustentabilidade urbano-ambientais, considerando as ocupações irregulares como uma realidade que precisa ser enfrentada.

Temos “cidades” dentro da cidade que foram erigidas ao longo do tempo sobre áreas inadequadas. O que fazer? Seguir acreditando que é possível retirar toda a população de áreas ambientalmente sensíveis? Não seria ambientalmente mais adequado tratar os problemas ambientais decorrentes da ocupação tais como esgoto, deposição de resíduos a céu aberto, esgotamento das águas pluviais de modo a efetivamente tratar estas questões?

Em se tratando de passivo ambiental a ser enfrentado pelas municipalidades, a regularização fundiária deve melhorar as condições urbano- ambientais da população moradora do local. Assim, se o projeto desenvolvido implicar em melhoria das condições ambientais da área, enfrentando a questão como verdadeiro passivo ambiental e minimizando os

176 Dicionário Brasileiro de Ciências Ambientais. Thex Editora, 1999. Pedro Paulo de Lima e Silva, Antonio Guerra, Patrícia Mou-sinho, Cecília Bueno, Flávio de Almeida, Telma Malheiros e Álvaro Bezerra de Souza Jr.177 Eternidade, entropia, determinismo, discronia: quatro patologias temporais apontadas por OST, ob, citada

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problemas decorrentes da ocupação, não vejo óbice jurídico a sua efetivação. Isto tem sentido porque outros valores ambientais serão protegidos, com o tratamento do esgoto, o recolhimento e o destino dos resíduos sólidos urbanos, o desassoreamento dos cursos d`água, a maior permeabilidade do solo, entre outros elementos que podem ser trabalhados no caso concreto. Isto porque é necessário reconhecer e tratar deste passivo, de modo que a qualidade de vida nas cidades possa ser melhorada.

A regularização fundiária atualmente é uma política pública, porque a dimensão da irregularidade urbana é de tal monta que deixa de ser um problema individual para ser um problema difuso, que afeta toda a coletividade. Por isso a necessidade de ponderar todos os aspectos, verificando como enfrentá-los, de forma a minimizá-los e melhorando as condições urbano-ambientais da coletividade.

Lembremos que tratar o problema na sua dimensão ampla não é novidade, em se tratando de direito ambiental. Um dos pilares da lei dos recursos hídricos é identificar os usos e a qualidade da água dentro da bacia hidrográfica, propondo metas para atingir, a partir desta constatação. Há um reconhecimento que existem locais em que o nível de poluição é 4 e que vai permanecer neste nível. Há um planejamento dos usos com compensação para outras áreas. Isto faz parte de uma política ambiental propositiva, de planejamento, que não trabalha somente nas conseqüências, mas que atinge as causas, a partir de uma análise ampla do problema. No ambiente urbano precisamos atuar de forma similar, atacando os problemas, fazendo compensações ambientais e estabelecendo limites para ocupação daquelas áreas que ainda restam e são necessárias à proteção dos ecossistemas.

No caso em exame estamos diante de um verdadeiro passivo ambiental. O projeto de intervenção para permitir o saneamento, nos termos do que consta nos autos, não foi analisado pela SMAM, por entender que precisaria tratar do todo. Todavia, todo e parte são integrantes de uma integralidade maior. De alguma forma faz-se necessário iniciar o processo de intervenção na área. Na hipótese em análise, estamos diante de uma situação do que inicia primeiro. Porém, a atuação municipal urge iniciar.

II – DOS ÓBICES JURÍDICOS APONTADOS PELA SMAM

A SMAM utiliza dois argumentos básicos para opor óbice ao licenciamento. O primeiro é a existência de risco geotécnico e o

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segundo impossibilidade jurídica por três argumentos, a saber: a) art. 192, parágrafo único do Código Estadual do Meio Ambiente; b) existência de parcelamento irregular do solo e c) art. 212 da Lei Orgânica Municipal. Analisemos primeiramente os argumentos jurídicos. O art. 192 do Código Estadual do Meio Ambiente178 utilizado como fundamento para a negativa da SMAM, regula os requisitos e condicionantes para o parcelamento do solo. Todavia, o caso dos autos não se trata de parcelamento do solo, mas de ocupação irregular não produzida pelos proprietários do solo ou pelo Poder Público. A estas situações aplica-se as regras decorrentes das ocupações auto-produzidas. As regras do capítulo IX do Código Estadual do Meio Ambiente aplicam-se às hipóteses de novos parcelamentos e não ocupações consolidadas como é o caso. Este é o mesmo raciocínio utilizado para aplicação da Lei Federal 6766/79, que regula o parcelamento do solo urbano. Evidentemente não cabe à aplicação para situações de ocupação que foram feitas à margem da lei.179 Com argumentos similares, porém aplicado a situação distinta decorrente de parcelamento irregular do solo, mas que denota a necessidade de tratar de forma diferenciada situações diferentes como expressão do princípio da igualdade, temos o Provimento More Legal da Corregedoria Geral da Justiça do RS, que visa a promoção da regularização fundiária dos parcelamentos irregulares. Para estes não se aplica os dispositivos do Código Estadual do Meio Ambiente e da própria 6766/79 mencionados pela SMAM. Concretamente, considerando que as pessoas já vivem no local, faz-se necessário examinar como é possível minimizar os impactos, inclusive decorrentes do risco geológico e de inundação apontados por todos como um problema da Vila. A obra proposta atende, mesmo que em parte, porque integra um processo de regularização,

178 Art. 192 – “Os parcelamentos urbanos ficam sujeitos, dentre outros, aos seguintes quesitos:I – adoção de medidas para o tratamento de esgotos sanitários para lançamento no solo ou nos cursos d água, visando à compatibili-zação de suas características com a classificação do corpo receptor;II – proteção das áreas de mananciais, assim como suas áreas de contribuição imediata, observando características urbanísticas apro-priadas;III - que o município disponha de um plano municipal de saneamento básico aprovado pelo órgão ambiental competente, dentro de prazos e requisitos a serem definidos em regulamento;IV – o parcelamento do solo será permitido somente sob prévia garantia hipotecária, dada ao município, de 60% (sessenta por cento) da área total de terras sobre o qual tenha sido o plano urbanístico projetado.Parágrafo único - Não poderão ser parceladas:I – as áreas sujeitas à inundação;II – as áreas alagadiças, antes de tomadas providências para assegurar-lhes o escoamento das águas e minimização dos impactos ambientais;III – as áreas que tenham sido aterradas com materiais nocivos à saúde pública sem que sejam previamente sanadas;IV – as áreas com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento) sem que sejam atendidas exigências específicas das autori-dades competentes;V – as áreas cujas condições geológicas e hidrológicas não aconselhem edificação;VI – as áreas de preservação permanente, instituídas por lei;VII – as áreas próximas a locais onde a poluição gere conflito de uso;VIII – as áreas onde a poluição impeça condições sanitárias adequadas”.179

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o saneamento do problema?Destarte, nos termos supra mencionados refuta-se os dois primeiros

argumentos jurídicos apontados pela SMAM.Já o terceiro motivo cita o art. 212180 , incisos e alíneas deste

mesmo artigo. Todavia o citado artigo não se refere ao assunto em comento. Possivelmente a alusão é ao artigo 211, que está assim grafado:

“Art. 211 – O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano é peça fundamental da gestão do Município e tem por objetivo definir diretrizes para a execução de programas que visem à redução da segregação das funções urbanas e ao acesso da população ao solo, à habitação e aos serviços públicos, observados os seguintes princípios:

I – determinação dos limites físicos, em todo o território municipal, das áreas urbanas, de expansão urbana e rurais e das reservas ambientais, com as seguintes medidas:

a) delimitação das áreas impróprias à ocupação urbana, por suas características geológicas;

Conforme se constata o artigo em epígrafe refere-se ao Plano Diretor. Não consta que a área em questão tenha sido delimitada pelo PDDUA, Lei Complementar 434/99, como área imprópria à habitação.

Assim sendo, os argumentos jurídicos mencionados pela SMAM não subsistem a uma análise mais profunda, sendo que evidentemente a área necessita de obras para minimização dos problemas geológicos e de inundação existentes. Mas é isto que é pretendido com o início do processo de regularização que tem nas obras de saneamento o seu início.

III – PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE DAS DECISÕES ADMINISTRATIVAS

Segundo Suzana Toledo de Barros181 o germe do princípio da proporcionalidade foi a idéia de dar garantia à liberdade individual em face dos interesses da administração, sendo um instrumento de controle de controle 180 Art. 212 – “Incorpora-se à legislação urbanística municipal o conceito de solo criado, entendido como excedente do índice de aproveitamento dos terrenos urbanos com relação a um nível pré-estabelecido em lei”.181 BARROS, Suzana Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis restritivas de Direitos Fundamentais. 3ª. Ed. Brasília Jurídica, 2003.

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do excesso de poder.Sem adentrar nas diferenças teóricas entre proporcionalidade e

razoabilidade, tem-se que a razoabilidade é utilizada pelos americanos. Segundo a mesma autora, enseja a idéia de adequação, idoneidade, aceitabilidade, logicidade, eqüidade, traduz aquilo que não é absurdo. Tão somente o que é admissível. Já a proporcionalidade foi utilizada pelos alemães , sendo também conhecida como proibição de excesso, sendo uma forma de controle da constitucionalidade da aplicação das leis.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal não faz muita distinção. Vem acolhendo a proporcionalidade, sendo que a primeira decisão a aludi-lo está assim ementada:

ADI-MC 855/PR Relator: Min. Sepúlveda PertenceData de Julgamento: 01-07-1993EMENTA - Gás liquefeito de petróleo:

lei estadual que determina a pesagem de botijões entregues ou recebidos para substituição a vista do consumidor, com pagamento imediato de eventual diferença a menor: argüição de inconstitucionalidade fundada nos arts. 22, IV e VI (energia e metrologia), 24 e PARS., 25, PAR. 2., 238, além de violação ao princípio de proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos: plausibilidade jurídica da argüição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugnada, a fim de evitar danos irreparáveis a economia do setor, no caso de vir a declarar-se a inconstitucionalidade: liminar deferida.

Veja-se que foi afastada a incidência de lei, sob o argumento do princípio da proporcionalidade.

Outro case envolvendo a proporcionalidade se deu na decisão relativa aos denominados procedimentos decorrentes do “apagão” em nosso país. A decisão está assim ementada:

ADIN-MC 2473/DF Assunto: MP 2152-2/2001 / proporcionalidade

e razoabilidade das medidas tomadas em face da crise

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de energia elétrica / realização de licitação em prazo inferior em decorrência da urgência / perda de objedo de medidas cautelares das ADINs em face ao decidido na ADC / ausência de relevância jurídica em tese de inconstitucionalidade / aplicabilidade do CDC / suspensão cautelar da expressão “e com as decisões da GCE” / interpretação conforme à Constituição Federal, para excluir de sua incidência o potencial de energia hidráulica / plausibilidade jurídica da tese de inconstitucionalidade por aparente ofensa ao art. 246 da CF / suspensão da determinação da citação da União e da ANEEL como litisconsortes das ações referentes ao racionamento de energia / no mérito, constitucionalidade dos arts. 14 e 18 da MP (questões conexas: ADC 9, julgada em 13-12-2001, citada infra; ADIN 2468 e ADIN 2470, no mesmo julgamento)

Relator: Min. Néri da SilveiraData de Julgamento: 29-06-2001Julgando pedido de medida liminar em ação

declaratória de constitucionalidade promovida pelo Presidente da República que tem por objeto os artigos 14 a 18 da Medida Provisória 2.152-2, de 1º.6.2001 — que cria e instala a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, do Conselho de Governo - GCE, estabelece diretrizes para programas de enfrentamento da crise de energia elétrica e dá outras providências —, preliminarmente, o Tribunal conheceu da ação por estar comprovada a existência de controvérsia judicial em torno da legitimidade constitucional das normas em questão. Em seguida, o Tribunal assentou estarem atendidos os requisitos de urgência e relevância para a edição de medida provisória (CF, art. 62). Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, deferiu a medida cautelar na ação declaratória para suspender, com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos artigos 14 a 18 da

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Medida Provisória 2.152-2 de 1º/6/2001 — que estabelecem metas de consumo de energia elétrica, prevendo a suspensão do fornecimento em caso de descumprimento e a cobrança de tarifa especial aos consumidores que ultrapassem suas metas. À primeira vista, o Tribunal entendeu demonstrada, em face da crise de energia elétrica, a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas, salientando que a tarifa é preço público de natureza política, permitindo, por conseguinte, a adoção de um regime especial de tarifação com vistas a desestimular o consumo de energia, nos termos do art. 175, parágrafo único, IV, da CF (“Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: ... III - política tarifária;”). Vencidos os Ministros Néri da Silveira, relator, e Marco Aurélio, que indeferiam a liminar por entenderem que a tarifa especial não tem caráter de contraprestação do serviço de energia elétrica, mas sim de composição de reserva para remunerar terceiros beneficiários do bônus, consubstanciando, assim, ou um novo tributo que só poderia ser instituído por lei complementar, ou uma sanção pecuniária por descumprimento de determinação administrativa, inadmissível de ser imposta por medida provisória haja vista seu caráter penal, cujos valores seriam desproporcionais e irrazoáveis. O Min. Marco Aurélio, destacou, ainda, que a tarifa especial consubstancia um verdadeiro empréstimo compulsório, instituído sem lei complementar e sem previsão para devolução. Julgado o mérito da ação declaratória de constitucionalidade promovida pelo Presidente da República (13/12), o Tribunal, por maioria, adotando como razão de decidir os fundamentos do acórdão proferido na medida liminar, declarou a constitucionalidade dos artigos 14 a 18 da referida Medida Provisória, atualmente sob o número 2.198-5, de 24.8.2001, que estabelecem metas de consumo de

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energia elétrica, prevendo a suspensão do fornecimento em caso de descumprimento e a cobrança de tarifa especial aos consumidores que ultrapassem suas metas. Vencidos os Ministros Néri da Silveira, relator, e Marco Aurélio, que julgavam improcedente a ação. ADCMC 9-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 28.6.2001.(ADC-9) (13/12)

O Tribunal, apreciando o pedido de medida liminar na ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido Social Liberal - PSL, também contra a Medida Provisória 2.152-2/2001 acima mencionada, julgou prejudicado o pedido de suspensão dos artigos 14 a 18, já examinados na ADC 9-DF e, por via de conseqüência, do art. 20 (que diz respeito ao aproveitamento do que foi arrecadado da sobretarifa), ante o que decidido na medida cautelar na ADC 9-DF. Em seguida, o Tribunal, por maioria, indeferiu a liminar relativamente aos artigos 21, 22, caput, inciso II e § 1º, e 23 e parágrafo único — que dispõem sobre a forma da suspensão do fornecimento de energia, atribuindo à GCE a definição dos prazos e procedimentos para sua execução —, por serem desdobramentos dos artigos 16 e 17, já considerados, à primeira vista, constitucionais, na apreciação da medida cautelar na ADC 9-DF. Vencido o Min. Marco Aurélio, que deferia a liminar por entender que tais dispositivos, apesar de estabelecerem regras para o corte de energia, delegam à própria GCE a possibilidade de alterar esses mesmos parâmetros, ofendendo a CF, que não permite a delegação, a não ser nos casos nela previstos. O Tribunal, também por maioria, indeferiu a liminar quanto a expressões contidas nos incisos VII e IX do art. 2º e quanto ao inciso V do art. 5º — que atribuem à GCE a competência para estabelecer a suspensão ou interrupção individual ou coletiva do fornecimento de energia e para fixar regimes especiais de tarifação ao consumidor —, por entender ausente a relevância jurídica da argüição de inconstitucionalidade sustentada pelo autor da ação, em

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face da decisão tomada na ADC 9-DF. Vencido o Min. Marco Aurélio, por entender caracterizada a aparente violação ao princípio da legalidade, haja vista que a GCE passa a ter o poder de fixar parâmetros estranhos à própria Medida Provisória. ADInMC 2.468-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 29.6.2001.(ADI-2468)

Quanto ao pedido de medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos - CNTM, o Tribunal declarou prejudicado o pedido ante o que decidido na ADInMC 2.468-DF, acima mencionada. ADInMC 2.470-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 29.6.2001.(ADI-2470)

Julgado o pedido de medida liminar na ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores - PT, Partido Comunista do Brasil - PC do B, Partido Democrático Trabalhista - PDT e pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB, contra a citada Medida Provisória 2.152-2/2001. O Tribunal, preliminarmente, declarou prejudicado o pedido de concessão de medida liminar quanto a vários artigos impugnados, ante o que decidido na medida cautelar na ADC 9-DF e na ADInMC 2.468-DF. Relativamente ao § 1º do art. 7º da MP 2.152-2/2001 (“Não se aplicam, nas hipóteses deste artigo, o prazo máximo de cento e oitenta dias para a conclusão das obras e serviços e a vedação de prorrogação estabelecidos no inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993”), o Tribunal indeferiu a liminar por considerar que, em situação de emergência, é admissível que se reduzam os prazos para a realização de licitação. Quanto aos §§ 2º e 3º do art. 8º, que prevêem a redução do prazo dos procedimentos de licenciamento ambiental dos empreendimentos relacionados à energia, o Tribunal também indeferiu a medida cautelar requerida porquanto não há a dispensa de formalidades de cuidado com o meio-ambiente, mas apenas se está exigindo maior rapidez nos pronunciamentos dos órgãos competentes. Com referência ao art. 25 da

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MP impugnada (“Às relações decorrentes desta Medida Provisória entre pessoas jurídicas ou consumidores não-residenciais e concessionárias aplicam-se as disposições do Código Civil e do Código de Processo Civil.”), o Tribunal indeferiu o pedido de suspensão cautelar pela ausência de relevância jurídica da tese de inconstitucionalidade — em que se sustentava que essa norma estaria afastando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor — uma vez que tal dispositivo não impede a aplicação de outras normas do ordenamento jurídico, nem mesmo do Código de Defesa do Consumidor. Prosseguindo no julgamento da mesma ação acima mencionada, o Tribunal deferiu a suspensão cautelar, no art. 26 (“Não se aplicam as Leis nºs 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e 9.427, de 26 de dezembro de 1996, no que conflitarem com esta Medida Provisória e com as decisões da GCE.”), da expressão “e com as decisões da GCE”, conferindo ao restante do preceito interpretação conforme a Constituição Federal, para excluir de sua incidência o potencial de energia hidráulica. O Tribunal, à primeira vista, reconheceu a plausibilidade jurídica da tese de inconstitucionalidade por aparente ofensa ao art. 246 da CF — que veda a adoção de medidas provisórias na regulamentação de artigos da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995 — porquanto ambas as Leis mencionadas são vinculadas à aplicação da EC 6/95, que alterou o § 1º do art. 176 da CF, e pela circunstância de que as decisões administrativas da GCE não podem sobrepor-se a qualquer lei, em face da hierarquia das normas. Quanto ao art. 24 da MP 2.152-2/2001 — que determina a citação da União e da ANEEL como litisconsortes passivos em todas as ações judiciais em que se pretenda obstar ou impedir a suspensão ou interrupção do fornecimento de energia elétrica, a cobrança de tarifas ou a aquisição de energia ao preço praticado no MAE —, os Ministros Néri da Silveira, relator, Ellen Gracie, Maurício Corrêa, Carlos Velloso

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e Marco Aurélio votaram no sentido do deferimento da suspensão cautelar do dispositivo por entenderem que a competência da Justiça Federal está prevista na Constituição Federal, não cabendo à lei ordinária, tampouco à medida provisória, dispor sobre o tema. De outra parte, os Ministros Nelson Jobim, Sydney Sanches e Moreira Alves proferiram voto pelo indeferimento do pedido por considerarem ausentes a relevância jurídica do pedido e o periculum in mora. Após, o julgamento foi adiado para aguardar-se o quorum legal de decisão (maioria absoluta dos membros da Corte). Prosseguindo no julgamento, adiado para aguardar-se o quorum legal de decisão, o Tribunal, por maioria, deferiu a suspensão cautelar de eficácia do art. 24 da MP 2.152-2/2001 — que determina a citação da União e da ANEEL como litisconsortes passivos em todas as ações judiciais em que se pretenda obstar ou impedir a suspensão ou interrupção do fornecimento de energia elétrica, a cobrança de tarifas ou a aquisição de energia ao preço praticado no MAE —, por entender que a competência da Justiça Federal está prevista na Constituição Federal, não cabendo à lei ordinária, tampouco à medida provisória, dispor sobre o tema. O Min. Ilmar Galvão também deferiu o pedido mas por fundamento diverso, qual seja, a impossibilidade de medida provisória dispor sobre matéria processual. Vencidos os Ministros Nelson Jobim e Moreira Alves, que indeferiam o pedido por considerarem ausentes a relevância jurídica do pedido e o periculum in mora. Retificou seu voto o Min. Sydney Sanches. ADInMC 2.473-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 29.6.2001.(ADI-2473)

O princípio da proporcionalidade também vem sendo utilizado pelo STF para decisão nas hipóteses de conflito entre direitos fundamentais. As decisões abaixo colacionadas dão conta da ponderação que é feita pelos julgadores ao decidirem aplicando este princípio

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Rcl-QO 2040/DFAssunto: caso Glória Trevi: colisão de direitos e

princípio da proporcionalidadeRelator: Min. Néri da SilveiraData de Julgamento: 21-02-2002O Tribunal, por maioria, conheceu como

reclamação o pedido formulado contra a decisão do juízo federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal que autorizara a coleta da placenta de extraditanda grávida, após o parto, para a realização de exame de DNA com a finalidade de instruir inquérito policial instaurado para a investigação dos fatos correlacionados com a origem da gravidez da mesma, que teve início quando a extraditanda já se encontrava recolhida à carceragem da Polícia Federal, em que estariam envolvidos servidores responsáveis por sua custódia. Considerou-se que, estando a extraditanda em hospital público sob a autorização do STF, e havendo a mesma manifestado-se expressamente contra a coleta de qualquer material recolhido de seu parto, vinculando-se a fatos constantes dos autos da Extradição (queixa da extraditanda de que teria sofrido “gravidez não consentida” e “estupro carcerário”), a autorização só poderia ser dada pelo próprio STF. Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão, Celso de Mello e Marco Aurélio, que não conheciam do pedido como reclamação por entenderem não caracterizada, na espécie, a usurpação da competência do STF, uma vez que o fato de a extraditanda estar presa à disposição do STF não impede o curso paralelo de outros procedimentos penais no Brasil. No mérito, o Tribunal julgou procedente a reclamação e, avocando a apreciação da matéria de fundo, deferiu a realização do exame de DNA com a utilização do material biológico da placenta retirada da extraditanda, cabendo ao juízo federal da 10ª Vara do Distrito Federal adotar as providências necessárias para tanto. Fazendo a ponderação dos valores constitucionais contrapostos,

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quais sejam, o direito à intimidade e à vida privada da extraditanda, e o direito à honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal como instituição — atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgada pelos meios de comunicação —, o Tribunal afirmou a prevalência do esclarecimento da verdade quanto à participação dos policiais federais na alegada violência sexual, levando em conta, ainda, que o exame de DNA acontecerá sem invasão da integridade física da extraditanda ou de seu filho. Vencido nesse ponto o Min. Marco Aurélio, que indeferia a realização do exame de DNA. O Tribunal, no entanto, indeferiu o acesso ao prontuário médico da extraditanda porquanto, com o deferimento da realização do exame de DNA, restou sem justificativa tal pretensão. RCL 2.040-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 21.2.2002.

EMENTA: - Reclamação. Reclamante submetida ao processo de Extradição n.º 783, à disposição do STF. 2. Coleta de material biológico da placenta, com propósito de se fazer exame de DNA, para averigüação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. 3. Invocação dos incisos X e XLIX do art. 5º, da CF/88. 4. Ofício do Secretário de Saúde do DF sobre comunicação do Juiz Federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do DF ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte - HRAN, autorizando a coleta e entrega de placenta para fins de exame de DNA e fornecimento de cópia do prontuário médico da parturiente. 5. Extraditanda à disposição desta Corte, nos termos da Lei n.º 6.815/80. Competência do STF, para processar e julgar eventual pedido de autorização de coleta e exame de material genético, para os fins pretendidos pela Polícia Federal. 6. Decisão do Juiz Federal da 10ª Vara do Distrito Federal, no ponto em que autoriza a entrega da placenta, para fins de realização de exame de DNA, suspensa, em parte, na liminar

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concedida na Reclamação. Mantida a determinação ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte, quanto à realização da coleta da placenta do filho da extraditanda. Suspenso também o despacho do Juiz Federal da 10ª Vara, na parte relativa ao fornecimento de cópia integral do prontuário médico da parturiente. 7. Bens jurídicos constitucionais como “moralidade administrativa”, “persecução penal pública” e “segurança pública” que se acrescem, - como bens da comunidade, na expressão de Canotilho, - ao direito fundamental à honra (CF, art. 5°, X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federais acusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direito à imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho. 8. Pedido conhecido como reclamação e julgado procedente para avocar o julgamento do pleito do Ministério Público Federal, feito perante o Juízo Federal da 10ª Vara do Distrito Federal. 9. Mérito do pedido do Ministério Público Federal julgado, desde logo, e deferido, em parte, para autorizar a realização do exame de DNA do filho da reclamante, com a utilização da placenta recolhida, sendo, entretanto, indeferida a súplica de entrega à Polícia Federal do “prontuário médico” da reclamante.

MS-MC 24832/DF (liminar citada pela relevância da matéria)

Assunto: CPI: Colisão de Direitos Fundamentais (imagem x informação)

Relator: Min. Cezar PelusoData de Julgamento: 18-03-2004Negado referendo à decisão liminar proferida

pelo Min. Cezar Peluso, relator, nos autos de mandado de segurança preventivo impetrado contra ato do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI da Pirataria, pela qual se impedira o acesso de câmeras de televisão, particulares, concessionárias, públicas, inclusive

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da TV Câmara, ou de qualquer outro meio de gravação ou transmissão, às dependências do recinto onde seria realizada sessão parlamentar para a qual o impetrante fora convocado para prestar esclarecimentos. No caso concreto, houve, ainda, pedido de reconsideração da mencionada decisão, formulado pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e da referida CPI, sob a alegação de que a mesma, ao restringir a publicidade de sessão, teria usurpado a competência constitucional do Poder Legislativo, interferindo em assunto interna corporis, passível de limitação apenas por meio de normas fixadas pela própria Câmara dos Deputados. Alegava-se, ademais, contrariedade à garantia constitucional que assegura o direito à informação, além de cerceamento do livre exercício de atividade de comunicação (CF, art. 5º, XIV e IX).

Em seguida, o Tribunal, também em preliminar, afastou a prejudicialidade do writ, vencidos, no ponto, os Ministros Ellen Gracie, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa que o julgavam prejudicado, por perda de objeto, em razão da citada informação de que o impetrante, naquele momento, encontrava-se prestando depoimento perante a CPI, com a veiculação de sua imagem. Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, embora afastando a alegação de que a matéria em causa consubstanciaria ato interna corporis insusceptível de controle jurisdicional - haja vista a alegação de ofensa a direitos individuais assegurados pela CF que estariam na iminência de serem transgredidos -, e tendo em conta, ainda, o fato de que as reuniões das comissões são públicas, negou referendo à decisão proferida pelo Min Cezar Peluso, por considerar prevalecente, na espécie, o direito à liberdade de informação (CF, artigos 5º, IX, e 220). Entendeu-se não demonstrada circunstância que justificasse, de forma concreta, a necessidade de que a referida sessão se desse com publicidade limitada, salientando-se, ademais, o fato de que eventual violação a direito individual, que

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não pode ser presumida, é passível de reparação por meio de ação de responsabilidade (CF, art. 5º, X). O Min. Sepúlveda Pertence, em seu voto, ressaltou, ainda, o fato de que o impetrante, em outro mandamus, teve assegurado o direito de permanecer em silêncio ao prestar depoimento perante a CPI, na eventual hipótese de auto-incriminação. Precedentes citados: MS 22503/DF (RTJ 169/181), MS 21754 AgR/DF (DJU de 21.2.97), MS 1959/DF (DJU de 13.8.53), MS 23452/RJ (DJU de 12.5.2000) e HC 71193/SP (DJU de 23.3.2001).

S/ EMENTA

Em matéria ambiental, o STF também já utlizou o princípio da proporcionalidade, ao decidir acerca da constitucionalidade da Resolução Conama sobre áreas de preservação permanente publicada sob o n. 369. Nesta hipótese, afirmou o meio ambiente como direito fundamental e estabeleceu a ponderação entre os princípios constitucionais, em especial do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.

ADI-MC 3540/DF Relator: Min. Celso de MelloData de Julgamento: 01-09-2005EMENTA: MEIO AMBIENTE - DIREITO

À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS

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SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e

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futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA

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ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. - A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4o do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativo em questão. - Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na

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estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III).

Assim, não é novidade a adoção deste princípio no Brasil. Para tanto três elementos precisam ser analisados, posto que integram a proporcionalidade: a) a adequação, b) a necessidade, c) a proporcionalidade em sentido estrito, que muitos entendem ser a razoabilidade. Para verificação da adequação deve-se indagar : o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido? Já para verificação da necessidade é preciso perquirir se o meio utilizado é o mais idôneo, apontando a menor restrição possível ao direito fundamental examinado182. Na necessidade impõe-se que a medida restritiva seja indispensável para a conservação do direito fundamental em jogo ou de outro direito fundamental.

No caso em exame, entendemos que não há colisão de direitos fundamentais, pois o direito constitucional à moradia e ao saneamento são correlatos do direito fundamental ao meio ambiente, considerando que a irregularidade urbana que pretende ser enfrentada no caso concreto pelo Município constitui-se em passivo ambiental das cidades brasileiras, na forma já sustentada neste parecer.

Mas, para efeito de digressão teórica, supondo que pode haver colisão de direitos, vamos aplicar do princípio da proporcionalidade. No caso em exame a área é assumidamente inadequada para moradia porque alagadiça, com esgoto a céu aberto e com instabilidade geológica. O município pretende iniciar o processo de regularização fundiária com obras de saneamento que constitui-se no maior problema para a população do local. Os óbices apontados pela SMAM dão conta da necessidade de um projeto mais amplo, motivo pelo qual não querem licenciar a obra de saneamento. Diante disto, pergunta-se: será que a medida é adequada 182 Übermass und Verfassungsrecht, Apud Barros Suzana Toledo Barros, a saber: “dentre vários instrumentos possíveis, ou seja, adequados para a obtenção de um fim, só caberia escolher aquele que comporta conseqüências menos gravosas”Já a pro-porcionalidade significaria que “a aplicação de um determinado instrumento poderia não ser inadequada para a consecução de um determinado fim”.

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para o fim pretendido? O fim de ambos é o atendimento das necessidades da população, ao que parece, porém a negativa em sequer examinar o projeto técnico apresentado pelo DMAE, sob o argumento de que precisa tratar, mesmo que bem intencionado, parece desvirtuar-se de sua finalidade precípua, não subsistindo à adequação. O mesmo se diga quanto a necessidade e a proporcionalidade estrito senso. Isto porque a negativa até em examinar inviabiliza as obras. Ademais, há a hipótese de retirada das pessoas daquele local. Será que é a solução menos gravosa ao problema, nos termos do que exige a adequação?

Assim sendo, temos que mesmo na eventual hipótese de colisão de direitos fundamentais que entendemos não ser o caso, o direito fundamental à moradia183 e ao saneamento, em um juízo de ponderação, preponderam sobre o direito ao meio ambiente no presente caso, pois além do homem integrá-lo, as obras de infra-estrutura que se iniciam com o saneamento constituem-se nos requisitos para a utilização adequada daquela área, não se tratando daquelas hipóteses em que devem ser conservadas, recuperadas ou protegidas em função das suas características intrínsicas. Destarte, também por este fundamento, o tema deve retornar à SMAM para dar prosseguimento ao licenciamento das obra, examinando o respectivo projeto técnico.

IV – DA POSSIBILIDADE DE REVISÃO DO ATO QUE INDEFERIU O LICENCIAMENTO AMBIENTAL – DA SUGESTÃO DE TERMO DE COOPERAÇÃO ENTRE OS

ÓRGÃOS MUNICIPAIS

O despacho do Sr. Secretário da SMAM foi em tese e não examinou o projeto apresentado pelo DMAE. Por isso, juridicamente não é considerado definitivo, até porque não encerrou a etapa do licenciamento ambiental. Outrossim, o projeto apresentado pela autarquia apresenta duas possibilidades técnicas para realização das obras que não foram examinadas pelo órgão ambiental. Este exame necessita ser efetuado para encerramento da etapa administrativa, tendo sempre em vista que esta obra dá início a um processo de regularização fundiária que está sendo desencadeado na Vila Asa Branca , a partir da atuação conjunta de órgãos municipais determinada pelo Sr. Prefeito. Não é a regularização em si.

Nos autos do processo administrativo No. 001.021790.05.1 que tramita em conjunto com o de número citado em epígrafe, estão relatadas

183 Art. 6º , CF

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as seguintes iniciativas, além de outras de campo decorrentes de ações no âmbito da saúde: a) remanejamento das casas que estão impedindo a abertura da rua que encurtará o acesso à creche; b) ampliação do Posto de Saúde; c) estudo de alternativas para a coleta do esgoto cloacal e drenagem da área. O objeto do licenciamento ambiental são os estudos para a realização das obras que atendem ao item “c” anteriormente citado, demonstrando a existência de outras iniciativas de atribuição de órgãos distintos da Administração para atuação integrada na Vila Asa Branca.

Considerando este aspecto, os argumentos apresentados pelo DMAE, a necessidade de atuação municipal na questão, o princípio da proporcionalidade que autoriza dizer que mesmo na hipótese de colisão de direitos fundamentais (que entendemos não ser o caso), haveria argumentos para ponderação com a opção em realizar as obras de saneamento a partir de diretrizes técnicas apresentadas, em face da situação de calamidade que vivem aqueles pessoas, bem como da intenção da SMAM em tratar o tema com a universalidade que merece, sugerimos seja elaborado um Termo de Cooperação entre os órgãos municipais, apontando a atribuição de cada um para minimizar os problemas da Vila Asa Branca, no âmbito de sua competência. A partir deste Termo, a SMAM – órgão licenciador ambiental – daria seguimento a análise do licenciamento específico das obras para construção do sistema de rede de esgoto proposto pela autarquia municipal.

Com estas considerações, salientando que a omissão da Administração em tratar a questão pode resultar em responsabilização ora não analisada por extrapolar o exame pretendido neste expediente, entendemos que o processo deva retornar à SMAM para análise do projeto técnico apresentado pelo DMAE, a fim de dar início ao processo de regularização da área, salientando que não se trata da regularização em si, mas do início de um processo iniciado pela Administração Municipal que congrega ações de diversas Secretarias. Outrossim, alertamos para o argumento do DMAE não examinado pela SMAM, que se trata da implantação de um sistema completo de esgotamento sanitário. com redes coletoras, estação elevatória e posteriormente uma estação de tratamento que atenderá parte de zona norte da capital e não somente de execução de redes coletoras.

A sua consideração.Em, 13 de junho de 2007.

Vanêsca Buzelato PrestesProcuradora Municipal – PUMARF/PGM

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HOMOLOGAÇÃO

Homologo parecer n°1136/2007, da lavra da Procuradora Vanêsca Bruzelato Prestes, que versa acerca da aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para realização de obras em áreas com condições insalubres, que geram situações de emergência decorrentes da falta de saneamento.

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradora-Geral Adjunta de Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente; Procuradoria de Urbanismo, Meio Ambiente e Regularização Fundiária; ao Departamento Municiál de Águas e Esgotos e à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 16 de julho de 2007.

Mercedes Maria de Moraes RodriguesProcuradora-Geral do Município

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MUNICÍPIO EM JUÍZO

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IMPROCEDÊNCIA DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS

Bethania Regina Pederneiras Flach

A Autora ajuizou a ação ordinária, contra o Município de Porto Alegre e o Condomínio Edifício Porto Esperança, pleiteando indenização pelos danos materiais e morais em razão de haver sofrido uma queda no passeio público em frente ao condomínio demandado, localizado na rua Miguel Tostes, n° 336. Postulou ressarcimento dos valores despendidos com o tratamento médico, inclusive despesas com transporte, além de indenização por danos morais, totalizando o valor da causa o montante e R$ 10.000,00 (dez mil reais).

A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido, condenando ambos réus o pagamento de danos morais, no valor de 15 salários mínimos, e danos matérias a serem apurados em liquidação de sente, além de custas processuais e honorários advocatícios de 15% sobre o valor total da condenação.

A autora apelou pleiteando a majoração da verba indenizatória e honorária.

O condomínio apelou sustentando ser exclusivamente do Município de Porto Alegre a responsabilidade pelos danos resultantes do acidente, alegando que a queda da autora ocorreu pela ausência de tampo do bueiro e não problemas com a conservação ou limpeza da calçada existente na frente ao prédio.

De seu turno, o Município de Porto Alegre apelou reiterando o descabimento da pretensão indenizatória e a responsabilidade exclusiva do condomínio co-demandado pela manutenção do passeio público, por força do art. 28 da Lei Complementar Municipal n° 15/75, que atribui aos proprietários de terrenos a pavimentação, manutenção, conservação e limpeza dos passeis em frente a seus imóveis.

No julgamento a Apelação Cível n° 700138659, ocorrido em 15/12/2006, a 6° Câmara Cível do TJRS proveu o apelo do Município de Porto Alegre, para afastara responsabilidade exclusiva do Condomínio pela queda da autora.

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A decisão está assim ementada:

“Apelação cível. Ação de indenização por danos morais e materiais contra o Município de Porto Alegre e condomínio. Acidente de transeunte acarreta a quebra do pé direito em decorrência de buraco em passeio público. Responsabilidade do Município de Porto Alegre não configurada. Responsabilidade do condomínio configurada em vista da desídia na preservação da calçada. Preliminar de intempestividade recursal afastada, porque em nossa Corte houve recesso no mês de janeiro de 2005. Sentença reformada para excluir da lide o Poder Público, majorar honorários advocatícios do patrono da autora e fixar a condenação em reais, com juros e correção monetária. Preliminar rejeitada. Apelo da autora provido em parte. Apelo do município-réu provido. Apelos do condomínio-réu desprovido.” (AC 70013084959, 6ª Câmara Cível TJRS, rel. Dr. Ney Wiedemann Neto, j. 15/12/2006).

Constou no voto do Relator, Dês. Ney Weidann Neto, que:

“ Não se pode perder de vista que o Poder Público deve fiscalizara cidade como um todo e não há como fiscalizar todas as ruas todos os dias. Ademais, conforme consta nos autos, a Prefeitura era assídua na área. E, se houve desídia, esta não se deu por parte do Poder Público, pois se o condomínio tivesse feito contato com os técnicos ou tivesse consertado as pedras soltas na sua calçada, o acidente à autora não teria acontecido”.

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Processo nº 112898714Autora: Alda Mar ia da Motta PoesterRéu: Município de Porto Alegre e OutroObjeto: Contestação

O MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE , por sua procuradora signatár ia, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, nos autos da ação ordinár ia que lhe move ALDA MARIA DA MOTTA POESTER , processada sob o nº 112898714, oferecer CONTESTAÇÃO , pelos f atos e fundamentos que passa a expor :

I - DOS FATOS

A autora ajuizou a presente ação, pleiteando indenização pelos danos mater iais e morais em razão de haver sofr ido uma queda na calçada em frente ao Condomínio Edifício Por to Esperança, localizado na rua Miguel Tostes, nº 336.

Alega que, por volta das 19h e 30min., do dia 11 de março do cor rente ano, caminhava em direção a sua residência, quando, em frente ao Condomínio demandado, caiu em um buraco existente no passeio público, causando-lhe lesões no pé direito. Postula ressarcimento dos valores despendidos com o tratamento médico, inclusive despesas com transpor te, além de indenização por danos morais, totalizando o valor da causa o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

A pretensão deduzida na presente ação, todavia, não encontra supor te fático e fundamento jurídico que lhe dê amparo, do que decor re a sua inar redável improcedência.

II - DO DIREITO

Como se demonstrará, não há, no presente caso, l iame subjetivo interligando o dano exper imentado pela autora e a ação ou omissão, no caso, do agente da administração. Conseqüentemente, não há que se f alar em qualquer responsabilidade do ente público.

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Segundo o mestre Hely Lopes Meirelles, em sua obra “Direito Administrativo Brasi leiro”, a reparação de danos pressupõe os seguintes requisitos:

“Para obter indenização, basta que o lesado acione a Fazenda Pública e demonstre o nexo causal entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) e o dano, bem como o seu montante.” (MEIRELLES, Hely Lopes, ob. c i t . , p. 555-556).

Explicando a abrangência do nexo de causalidade como pressuposto da responsabilidade civil , Yussed Said Cahali diz o seguinte:

“A Administração atua, na es fera que lhe é própr ia, através de seus órgãos; estes, por sua vez, uti l izam-se de pessoas f ís i cas como t i tulares de seus diversos setores ou para ser virem de seus agentes; em condições tais, a responsabi l idade da pessoa colet iva é sempre resultante da atuação de indivíduos que agem em seu nome ou como seus representantes.

Estabelec ido o l iame causal, a decor rência do dano à causa da atividade ou omissão da Administração Pública, ou de seus agentes, exsurge daí o dever de indenizar.” (Responsabilidade Civil do Estado. Malheiros Ed., 2a. ed. SP, 1996, p. 95)

Mais adiante, aborda sobre a forma do nexo de causalidade:

“Ora, em nosso s is tema jurídico, como resulta do disposto no ar t. 1.060 do Código Civi l, a teor ia adotada quanto ao nexo de causal idade é a teor ia do dano direto e imediato, também denominada teor ia da inter rupção do nexo causal.

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Não obstante aquele disposi t ivo da codi f i cação c ivi l diga respeito à impropr iamente denominada responsabi l idade contratual, apl i ca-se ele também à responsabi l idade extracontratual, inc lusivo a objet iva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjet iva, afasta os inconvenientes das outras duas teor ias existentes: a da equivalência das condições e a da causal idade adequada. Essa teor ia, como bem demonstra Agost inho Alvim (Da Inexecução das Obr igações, 5ª.ed., n. 226, p. 370), só admite o nexo de causal idade quando o dano é efe i to necessár io de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre, e, por vezes, o dano indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucess iva.” (ob. Cit. , p. 96/97).

Neste sentido, aliás, é pacífica a or ientação jur isprudencial, verbis:

“Responsabi l idade Civi l do Estado. Inexistência de nexo causal. Não se demonstrando no processo qualquer ação, ou omissão, de agente do Estado que se re lac iona com os danos sofr idos pela autor, não se estrutura a responsabi l idade objet iva do Estado. Apelação improvida”. (TJRGS, apc nº 597068378, j. 22.09.97, Pr imeira Câmara Cível, Relator Tupinambá Miguel Castro do Nascimento).

Ainda:“Reparação de dano. Nexo causal. Culpa

exc lusiva da vit ima. Ante a inexistência da prova do nexo de causal idade entre o dano e a conduta culposa da ré, não pode esta ser responsabi l izada pelo evento danoso. Ademais, a culpa exclusiva da vítima, que restou demonstrada nos autos, é uma excludente de responsabilidade do agente. Apelo

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desprovido”.(TJRGS, APC nº 597160472, j. 04.12.97, Quinta Câmara Cível, Relator Carlos Alber to Bencke)

II. a. DA RESPONSABILIDADE DO PROPRIETáRIO PELA MANUTENÇÃO DO PASSEIO

O Código de Posturas do Município (Lei Complementar nº 12/75), em seu ar tigo 28, estabelece ser de responsabilidade dos propr ietár ios de ter renos a pavimentação, manutenção, conservação e l impeza dos passeios em frente aos seus imóveis:

“Art. 28 - Os proprietários de terrenos, edificados ou não, localizados em logradouros que possuam meio-fio, são obrigados a executar a pavimentação do passeio fronteiro a seus imóveis dentro dos padrões estabelecidos pelo município e mantê-los em bom estado de conservação e limpeza.”

Inexiste responsabilidade do Município de Por to Alegre pela ocor rência do f ato danoso, porquanto, segundo a clara e precisa locução do dispositivo legal acima transcr ito, compete ao propr ietár io o dever de pavimentar, manter, conservar e l impar a calçada existente em frente ao imóvel de sua propr iedade.

Assim, a pretensão deduzida na presente ação mostra-se absolutamente descabida, na medida em que, de acordo com a leg islação municipal, cabe ao Condomínio demandado a responsabilidade pela conservação da pavimentação do passeio ali existente.

Ademais, a autora, segundo a inicial, reside a uma quadra e meia do local onde sofreu a queda, sendo lícito presumir que costuma caminhar pelo local e, por tanto, é, ou dever ia ser, f amiliar izada com as peculiar idades do caminho que costuma percor rer. Relata a autora, ainda, que o f ato ocor reu à noite,

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quando o cuidado dever ia ser redobrado. Disso se conclui ter havido, no mínimo, descuido por par te da autora, circunstância que afasta ou, ao menos, minimiza a responsabilidade pelo ocor r ido.

Configurada está, por tanto, uma das excludentes da responsabilidade extracontratual do Estado: a culpa da vítima ou de terceiro, que afasta o liame subjetivo que interliga o dano exper imentado à ação ou omissão, no caso, do agente da administração. E, não havendo nexo de causalidade, não há que se f alar em responsabilidade do ente público.

Neste sentido, aliás, é pacífica a or ientação jur isprudencial, verbis:

“Responsabi l idade Civi l do Estado. Inexistência de nexo causal. Não se demonstrando no processo qualquer ação, ou omissão, de agente do Estado que se re lac iona com os danos sofr idos pelo autor, não se estrutura a responsabi l idade objet iva do Estado. Apelação improvida”.

(TJRGS, apc nº 597068378, j . 22.09.97, Pr imeira Câmara Cível, Relator Tupinambá Miguel Castro do Nascimento).

Assim, não pode ser atr ibuída ao Estado a responsabilidade civil por danos para os quais não concor reu diretamente. A falta do serviço, o que hipoteticamente se considera para argumentação, não gera dever de indenizar, pois não é possível pretender que o ente público exerça um poder de vig ilância ir real e impraticável - de estar sempre em todos os lugares. Disso resulta a improcedência do pedido.

II. b. DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR OMISSÃO

Ainda que não houvesse disposição legal atr ibuindo ao par ticular a responsabilidade pela pavimentação e conservação da calçada, como no caso, a pretensão da autora não poder ia

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ser acolhida, diante da ausência de nexo de causalidade. A descr ição dos f atos, na inicial, por si só, rompe com

o nexo de causalidade entre os danos alegadamente sofr idos e a atuação do ente público, pois o pedido de indenização está fundamentado na omissão da administração no dever de f is cal izar , hipótese em que a responsabilidade é subjetiva.

A omissão, para ser entendida como uma das formas de conduta que pode configurar pressuposto para existência, ou não, de responsabilidade estatal, é a condição sem a qual não ocor rer ia o resultado danoso. A omissão não é apenas um “não-fazer”, mas um “não-fazer”, quando dever ia ter sido feito. Justamente por isso, a responsabilidade por omissão é sempre de caráter i l ícito, pois acober ta um descumpr imento de dever legal. É a omissão i legal .

É, pois, imprescindível o exame da conduta omissiva diante do ordenamento jurídico, ou seja, se o Estado não ag iu para impedir o dano, embora estivesse jur idicamente obr igado a obstá-lo ou se, tendo ag ido, atuou insuficientemente, por tanto, abaixo dos padrões a que estava, jur idicamente, compelido. É nesse sentido que a omissão é entendida como lesiva ou injusta. E, feita a análise da conduta omissiva a par tir do dever legal descumpr ido, se no dispositivo legal que prescrever o dever, não houver sido expressa a modalidade culposa, não se poderá configurar a responsabilidade diante da omissão culposa, apenas dolosa.

É sob o pr isma da responsabilidade subjetiva, por tanto, que deve ser analisada a presente pretensão.

Segundo a inicial, eventual responsabilização do ente público municipal estar ia assentada na culpa, na medida em que o direito à indenização fundamenta-se na f alta de “f iscal ização do passeio públi co, exigindo do propr ietár ios a tomada de providências a chamar a atenção dos transeuntes, para evitar ac identes” (sic - f l . 05), o que caracter izar ia uma conduta omissiva do poder público, sendo imprescindível a demonstração da culpa.

No presente caso, por tanto, não havendo culpa, não há nexo de causalidade vinculando o alegado dano à conduta da Administração, pressuposto da responsabilidade civil .

A propósito, preleciona Carlos Rober to Gonçalves:

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“Quando o compor tamento les ivo é omissivo, os danos não são causados pelo Estado, mas por evento alheio a ele. A omissão é condição do dano, porque propic ia sua ocor rência. Condição é o evento cuja ausência enseja o surgimento do dano. No caso de dano por comportamento omissivo, a responsabilidade do Estado é subjetiva. Responsabi l idade subjet iva é aquela cuja i r rupção depende do procedimento contrár io ao direi to, doloso ou culposo.” (in “ Responsabilidade Civil” , p. 140, 5ª edição, Editora Saraiva, 1994). - g r ifo nosso.

No mesmo sentido, a mag istral l ição de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a responsabilidade estatal diante da conduta omissiva da Administração, situação a qual reclama análise com base na teor ia subjetiva:

“Quando o dano foi possível em decor rência de uma omissão do Estado (o ser viço não funcionou, funcionou tardia ou inef i c ientemente) é de se apl i car a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efei to, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser e le o autor do dano. E se não foi o autor só cabe responsabi l izá-lo caso esteja obr igado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumprir dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo. Deveras, caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as conseqüências da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente subjetiva, pois

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não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa), ou então, del iberado propósito de violar a norma que const i tua em dada obr igação (dolo). Culpa e dolo são justamente as modalidades de responsabi l idade subjet iva.”(apud Rui Stoco, “Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jur isprudencial, Editora RT, 2ª edição, p. 315/316). - g r ifo nosso.

Diante disso, tem-se que, em sede de responsabilidade subjetiva, somente mediante prova da culpa do ente público na produção do evento danoso poderá ser pleiteada indenização, ônus que compete à autora.

Não demonstrada a culpa do Município de Por to Alegre, no presente caso, improcede o pedido.

Assim, não há prova nos autos que cor robore as alegações da autora, notadamente quanto ao local onde ocor reu a sua queda.

II. c. DOS DANOS ALEGADOS

A título de dano mater ial, a Autora pleiteia ressarcimento das despesas decor rentes do tratamento médico, aí incluídos medicamentos e transpor te.

Ver ifica-se, pelo boletim de atendimento de fl . 09/10 que a autora recebeu atendimento no Hospital Ernesto Dornelles, através de convênio. Embora não se saiba exatamente qual o convênio, sabe-se que o Hospital Ernesto Dornelles é credenciado do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul.

De qualquer forma, todo o tratamento médico a que se submeteu a autora poder ia ter sido realizado pela da rede pública de saúde. Tivesse a autora procurado o Hospital de Pronto Socor ro logo após a queda – hospital modelo e muito mais próximo à residência da autora do que o HED – receber ia

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o tratamento necessár ia de forma imediata e sem qualquer custo.

Mas, em que pese as for tes dores que alega ter sentido após a queda, caminhou por mais uma quadra e meia, somente procurando o serviço médico no dia seguinte, circunstância que, cer tamente, ag ravou o seu quadro clínico.

Ressalta-se não haver qualquer comprovação nos autos das alegadas despesas com transpor te e com medicamentos, sendo, pois, indevidos os valores pleiteados a esses títulos. Por outro lado, o documento de fl . 24 não constitui recibo de pagamento de serviços médicos, tratando-se, apenas, de um car tão de marcação de consulta que não se presta para comprovar o dispêndio de qualquer valor.

O pedido relativo aos danos morais igualmente improcede. Trata-se de meras alegações absolutamente desprovidas de comprovação.

Consoante doutr ina e jur isprudência atualizada e uniforme, a ver ificação e quantificação do dano moral estão subordinadas a cr itér ios definidores, tais como a extensão do dano exper imentado, a repressão e a prevenção dos atos que o ensejaram. Ver ificados estes três elementos, há, ainda, a respeitar o repúdio de todo ordenamento jurídico ao enr iquecimento sem causa para o lesado, como também um exagerado apenamento para aquele que tiver de supor tá-lo.

Em ar tigo publicado no jornal Zero Hora de 10 de outubro de 1998, sob o título “A INDÚSTRIA DO DANO MORAL”, o Ilustre Desembargador Décio Antônio Erpen teceu considerações acerca do pedido indenizatór io formulado, de natureza repetitiva nas mais diver sas demandas:

“ .. .Tenho que um sistema jurídico ( legal e

judic iár io ) deve assumir sua responsabi l idade histór i ca, viabi l izando a boa convivência no planeta. O direi to não pode ser visto apenas como um instrumento de legí t ima defesa, quando deve ser um referencial de ordem e cresc imento. Os

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economistas devem se restr ingir à viabi l ização da manutenção mater ial da humanidade. Mas não como seus condutores soc iais. A perversa global ização, com a injust i ça soc ial que acar retou, demonstra a iniqüidade dos resultados. A instabi l idade da economia, pela fal ta de previs ibi l idade, deixou a humanidade sem um rumo def inido.

De outro lado, a seara jurídica fomenta, hoje, um inst i tuto que, igualmente, instabiliza o próprio direito. Refiro-me à indústr ia do dano moral.

Sem uma def inição c ientí f i ca do que seja, realmente, o dano moral, sem uma norma estabelecendo as áreas de abrangência e, sem parâmetros legais para sua quanti f i cação, permite o per igoso e imprevis ível subjet ivismo do plei to, colocando o juiz numa posição de desconfor to. Ele que deve ser o executivo da norma, passou a personalizá-la.

A permanecer o inst i tuto sem cr i tér ios legais def inidos, os prof iss ionais, em especial os prestadores de ser viços, exercerão seu mister com sobressalto; os produtores não res is t i rão às indenizações de valores imprevis íveis. Sequer as seguradoras assumirão a cober tura ante a ausência de um referencial para a elaboração dos cálculos. Enfim, toda a soc iedade estará submetida ao subjet ivismo, o que conspira contra um valor supremo do direi to, a segurança jurídica.

A cor rente belicosa, se vitor iosa, gerará uma sociedade intolerante, na qual se promoverá o ódio, a r ivalidade, a busca de vantagens sobre outrem ou até a exaltação ao narcisismo. A promissora indústr ia do dano levará a tr iste quadro.

No fenômeno do sócio-jurídico do dano e da cor respondente reparação, o infrator e o juiz não podem er rar sucess ivamente. Isso acontecer ia

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quando o pr imeiro causasse um mal injusto a outrem, o segundo, o juiz, não t ivesse um referencial para adequar a punição. A sociedade amer icana nos dá exemplo palpitante ao adotar o inst i tuto da punit ive damages, onde os prof iss ionais e produtores vivem em sobressaltos. For ram-se, todavia, as seguradoras.

Se pretendemos uma sociedade pací f i ca, devemos def inir, de modo inequívoco e c ienti f i camente, o chamado dano moral, para evitar que a suposta reparação passe a ser outra modalidade de desagregação social. Tão ou maior que o própr io dano or iginár io”.

A jur isprudência, aliás, nesse aspecto refere: “o dano moral e seu ressarc imento não podem dar ensejo a uma verdadeira indústr ia do dano moral, incentivando a colet ividade a ingressar com pedidos indenizatór ios quando incabíveis ou emendáveis extrajudic ialmente, através de s imples bom senso” (Apc 596185181, 6ª Câmara Cível do TJRGS).

Também o Super ior Tr ibunal de Justiça já se manifestou neste sentido:

“DIREITO CIVIL. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. VALOR. FIXAÇÃO. ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA/STJ. AGRAVO DESPROVIDO.

I.É de repudiar-se a pretensão dos que postulam exorbitâncias inadmissíveis com ar r imo no dano moral, que não tem por escopo favorecer o enr iquecimento indevido.” (STJ, AGA n. 108.923-SP, 4ª. T., DJU 29.10.96, p. 41666, rel. min. Sálvio de Figueiredo Teixeira)

A mensuração, pois, do dano moral dependerá efetivamente do que for provado pela Autora, considerando a lesão sofr ida e a contr ibuição para o evento por par te do demandado.

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A Autora, na inicial, não demonstrou qualquer indício que evidenciasse o abalo moral necessár io para fundamentar o pedido de ressarcimento. O fato em si, a queda, pode ter ocor r ido em qualquer lugar e, por si só, não enseja reparação por dano moral.

Como bem acentua Antônio Chaves (Tratado de Direi to Civi l , vol. III, 3a. ed., São Paulo, RT, 1985, p. 637) não será todo e qualquer melindre, toda suscetibil idade exacerbada, toda exaltação do amor própr io pretensamente fer ido que merecerá ressarcimento. Necessár io para o acolhimento do pedido de indenização a prova da i l icitude da conduta do agente e a g ravidade da lesão supor tada pela vítima, o que não restou demonstrado no presente caso.

Por fim, deve-se considerar que as alegações da inicial é que estabelecem os l imites da l ide, sendo vedado ao Juiz profer ir decisão de natureza diver sa da pedida, bem como condenar o Réu em quantidade super ior ou em objeto diver so do que lhe foi demandado, consoante enuncia o ar t. 460, CPC.

Neste sentido, a ausência de demonstração do pedido - dos valores reclamados - impede o Réu de atender ao disposto no ar t. 302, CPC, que determina ao réu manifestar-se precisamente sobre os f atos nar rados na inicial, f icando ser iamente prejudicado seu direito de defesa.

Assim, mesmo que os demonstrativos dos prejuízos porventura exper imentados venham a ser apresentados durante a instrução, não poderão ser considerados pela sentença, sob pena de nulidade, uma vez que não sofreram o contraditór io. Desse modo, restará absolutamente inócua a instrução do presente feito.

Dessa forma, conclui-se ser imprescindível a efetiva comprovação dos danos alegados, não se admitindo a mera alegação ou mesmo presunção. Ademais a questão, como já se ressaltou, deve ser analisada sob o pr isma da responsabilidade subjetiva, por se tratar de conduta omissiva atr ibuída ao Poder Público como causadora do infor túnio. De qualquer modo, não havendo demonstração do nexo de causalidade entre a omissão atr ibuída à Administração e o alegado dano, não há que se f alar em dever de indenizar.

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III. REQUERIMENTO

DIANTE DO EXPOSTO, o Município de Por to Alegre requer digne-se Vossa Excelência julgar improcedente a presente ação, condenando-se a Autora nos ônus sucumbenciais.

Requer, outrossim, a produção de todo o gênero de provas em direito admitidos.

Nestes termos,

Pede defer imento.

Por to Alegre, 04 de julho de 2003.

Bethania Regina Pederneiras Flach,Procuradora do Município

OAB/RS nº 46.724

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INTERNAÇÃO EM FAZENDAS TERAPÊUTICAS PARA TRATAMENTO DE DEPENDENTES QUÍMICOS

Cristiane da Costa Nery

Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada em favor do adolescente P.V.M., com pedido de antecipação de tutela contra o Município de Porto Alegre, pleiteando internação do menor na Fazenda Terapêutica Cidade de Refúgio, enquanto necessário, eis que usuário de substâncias psicoativas, com mudanças de comportamento e dificuldades para se manter em abstinência.

A tutela antecipada foi deferida para que o Município providenciasse a internação do menor em 48h em Fazenda Terapêutica indicada, sob pena de bloqueio do valor necessário na conta corrente doente público.

O Município agravou da decisão que deferiu a tutela antecipada, informando a inviabilidade do atendimento nos termos da decisão, ante a inexistência de convênio com Fazendas Terapêuticas por parte da municipalidade em decorrência da irregularidade de tais instituições junto a ANVISA, o que não permite legalmente qualquer repasse de verba por ente público. Além disso, sustentada a ausência de comprovação de urgência.

O feito foi contestado, sem sentença prolatada até a presente data.O Agravo de Instrumento foi contra-arrazoado e julgado, sendo

provido à unanimidade, com a seguinte ementa:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERNAÇÃO EM FAZENDA TERAPÊUTICA. Tendo o Município optado pela gestão plena do sistema de saúde, cabe a ele providenciar no tratamento psiquiátrico e, se for o caso, de promover a internação hospitalar do adolescente usuário de substância psicoativa. 2. No caso, o adolescente já esteve em atendimento ambulatorial e, inclusive recebeu internação hospitalar, sendo que o Município se propõe a disponibilizar nova internação, se for recomendável pela nova avaliação a ser feita. 3. É inexigível, no entanto, que o Município providencie na internação em ‘fazenda terapêutica’, que constitui forma alternativa de tratamento, que é realizado em entidade particular, não é regular perante a ANVISA e não é conveniada com o SUS. Recurso provido.”

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Importante citar o trecho da fundamentação do bem lançado acórdão, ao encontro das teses sustentadas pelo Município de Porto Alegre:

“No entanto, devem ser observados os critérios que regulam o funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS – definindo quais os serviços e quais os medicamentos que devem ser fornecidos pelos entes públicos que integram o sistema, assegurando a efetividade das políticas públicas na área da saúde, visando atender toda a população.

Por essa razão, para tornar possível e saudável o sistema de saúde pública é que se impõe respeito aos critérios estabelecidos, pois a partir deles evidentemente é que são elaborados os orçamentos e são feitas as previsões de recursos para o fornecimento dos serviços e para o abastecimento das farmácias públicas.

O Município de PORTO ALEGRE optou pela gestão plena do sistema de saúde, cabendo a ele providenciar no tratamento psiquiátrico e, se for o caso, de promover a internação hospitalar do adolescente usuário de substância psicoativa.

No caso, cumpre destacar que o adolescente já esteve em atendimento ambulatorial e, inclusive recebeu internação hospitalar, sendo que o Município se propõe a disponibilizar nova internação, se for recomendável pela nova avaliação a ser feita.

Diante disso, tenho que é inexigível que o município providencie na internação em ‘fazenda terapêutica’, que constitui uma forma alternativa de tratamento, que é realizado através de entidade particular, que não é regular perante a ANVISA e não é conveniada com o SUS.

Portanto, ainda que possa ser útil ao adolescente ser internado em ‘fazenda terapêutica’, penso que esse encargo não pode ser imposto ao ente público, pois as verbas públicas destinadas à saúde devem ser geridas dentro das previsões orçamentárias e com a destinação prevista no sistema de saúde, sob pena de haver desvirtuamento no pretendido acesso universal à saúde.

Tenho, portanto, que o jovem deverá se submeter ao tratamento médico-psiquiátrico que é fornecido pelos órgãos públicos.

ISTO POSTO,dou provimento ao recurso.”

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COLENDA CÂMARA

EMINENTE RELATOR

Agravante: Município de Porto AlegreProcesso de origem 1744101 – 2ª VIJ

RAZÕES DO AGRAVANTE

I -DOS FATOS

O agravado ajuizou ação civil pública, com pedido de tutela antecipada, por intermédio do Ministério Público, pleiteando a sua internação em fazenda terapêutica para tratamento, eis que usuário de substâncias psicoativas, com mudanças importantes em seu comportamento e dificuldades de se manter em abstinência.

Deferida a tutela antecipada para que o Município providenciasse a internação do menor em 48h em Fazenda Terapêutica indicada, sob pena de bloqueio do valor necessário na conta corrente.

Entretanto, inviável o atendimento, face a inexistência de convênio com Fazendas Terapêuticas por parte do município em decorrência da irregularidade de tais instituições junto a ANVISA, o que não permite legalmente qualquer repasse de verba por ente público. Além disso não provada a urgência alegada.

O agravante requer, desde já, seja atribuído efeito suspensivo, com vistas à revogação do provimento antecipatório, pelas razões a seguir expostas.

II -DA ATUAÇÃO DA SMS/SUS

O SUS, no Município de Porto Alegre, oferece tratamento psiquiátrico em duas modalidades: internação hospitalar, para casos em que não é possível o controle ambulatorial dos sintomas, e tratamento ambulatorial em Equipes de Saúde Mental localizadas nos Postos de Saúde do Município. A internação psiquiátrica depende diretamente da capacidade dos hospitais em receber o paciente, e não está vinculada ao

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tratamento ambulatorial oferecido nos postos.O Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul - PACS, antigo

PAM-3, oferece um serviço de pronto atendimento psiquiátrico como uma especialidade inserida dentro de um contexto geral do PACS. O atendimento psiquiátrico é realizado por uma equipe multidisciplinar e conta com dez leitos, para internação breve de até 72 horas, destinados a pacientes que possam, neste período, reverter a situação de crise, evitando, assim, a internação hospitalar.

DO ATENDIMENTO PRESTADO - DA IMPOSSIBILIDADE LEGAL E JURÍDICA PARA

ATENDIMENTO DO PEDIDO DA INICIAL E DA AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR E DE URGÊNCIA

III- DO ATENDIMENTO PRESTADO E DA IMPOSSIBILIDADE DE ATENDER NOS MOLDES

PLEITEADOS

Conforme consta no boletim de atendimento PACS/SAÚDE MENTAL a fls. 17, o menor possuía indicação de internação no atendimento realizado em janeiro do corrente, porém não há qualquer referência a URGÊNCIA.

O menor já possui reiteradas internações, as quais não foram exitosas no sentido de manter o autor sem o uso de drogas ao término do tratamento.

Em informações prestadas por ofício nos autos, a Secretaria Municipal da Saúde – SMS, informa que o menor já fora internado na Clínica São José em 03/01/07, conforme solicitado pelo Plantão de Atendimento de Saúde Mental – PACS, o que foi referido acima (fls. 17), permanecendo internado por 30 dias.

Portanto, houve a imediata disponibilização de atendimento ao menor, nos moldes em que era legalmente possível à municipalidade atender, ou seja, na Clínica São José, ante a falta de leitos pelo SUS, integralmente custeado pela municipalidade, o que foi bastante oneroso aos cofres municipais.

A médica que atendeu o menor junto ao PACS sugeriu a internação

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em Fazenda Terapêutica após a alta hospitalar, como via complementar ao tratamento.

Porém, ainda não existe qualquer convênio entre o Município e as Fazendas Terapêuticas, o que inviabiliza legal e juridicamente a possibilidade de qualquer manutenção de internações pelo SUS nesses locais por ora.

Assim, o Município está impossibilitado, por questões legais, de internar em comunidades terapêuticas, prestando o atendimento na área de psiquiatria e tratamento de dependência química, na forma que hoje lhe é possível.

Não houve, portanto, qualquer negativa do gestor municipal do SUS em atendê-lo.

IV-DA AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR E DE URGÊNCIA

Além disso não foi negado o tratamento ao adolescente. Muito pelo contrário, foi disponibilizada nova internação, desde que realizada nova avaliação junto ao PACS, a fim de comprovar necessidade de desintoxicação, conforme informado em juízo por ofício pela SMS, antes da decisão que deferiu a tutela antecipada (fls. 43).

Não há comprovação de qualquer resistência à demanda, possuindo avaliação médica e atendimento do PACS, internação feita por agendamento do PACS e disponibilização da continuidade do tratamento também pelo SUS.

De toda a documentação que instrui o pedido, não se viu, em momento algum, recusa por parte do Município de Porto Alegre, ao serviço pleiteado.

O que de fato existe hoje é um impedimento legal e jurídico para internação pelo gestor municipal do SUS em fazendas terapêuticas, como antes citado.

Mais. Também no boletim de atendimento do PACS, no qual se baseou a decisão que deferiu a antecipação de tutela pleiteada, não há qualquer referência à urgência na internação.

Sobre o interesse de agir, como condição da ação, a Profª. Ada Pellegrini Grinover e outros, em seu livro “TEORIA GERAL DO

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PROCESSO”, conferem a seguinte definição:

“Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para manter a paz e a ordem da sociedade), não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada. Repousa a necessidade da tutela jurisdicional na impossibilidade do Estado (ou porque a parte contrária se nega a fazê-lo, sendo vedado ao autor o uso da autotutela, ou porque a própria lei exige que determinados direitos, só possam ser exercidos mediante prévia declaração judicial - são as chamadas ações constitutivas necessária nos processo civil , e a ação penal condenatória, no processo penal).” (ob. cit, Ed. RT, SP, 1979, 2a. ed., p. 222).

Com efeito, o interesse processual decorre da resistência da pretensão deduzida, não havendo demonstração nos autos da recusa por parte do SUS ou da urgência alegada.

A jurisprudência tem consolidado entendimento no sentido de que sem a comprovação da pretensão resistida não existe interesse de agir, e o processo deve ser extinto por carência de ação. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul assim decidiu, recentemente, ao julgar a apelação cível nº 70001820547, de relatoria do Desembargador PERCIANO DE CASTILHOS BERTOLUCI, cuja ementa está assim redigida:

“ C O N S T I T U C I O N A L . ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. MEDICAMENTOS. CARÊNCIA DE AÇÃO. INTERESSE DE AGIR. AUSÊNCIA. A ação foi ajuizada sem que antes fosse reformulado o pedido na via administrativa, após a readequação da receita médica nos termos da informação prestada pela Secretaria Municipal da Saúde. Não houve negativa da administração, pelo contrário, foi informado

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à requerente que o medicamento encontrava-se disponível, porém em dosagem inferior ao receitado, necessitando para o seu fornecimento de readequação da prescrição médica. Após tal readequação, não houve reiteração do pedido administrativo. Apelação provida. Processo extinto sem julgamento do mérito. Prejudicado o reexame necessário.” (não grifado no original).

Não se trata de esgotar a via administrativa, cuja prescindibilidade não se discute. Trata-se, na realidade, de absoluta ausência de resistência à pretensão deduzida, o que afasta uma das condições da ação, na medida em que lhe retira o interesse de agir.

Por todo o exposto falta interesse de agir no presente caso, considerando a inexistência de pretensão resistida por parte do gestor municipal que autorizasse a propositura da presente demanda, o que autoriza a extinção sem julgamento do mérito, nos termos do disposto no artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil.

V-DO MÉRITO

Pelo novo sistema de saúde instalado no país, a gestão é compartilhada em face dos diferentes níveis de competência, atendendo à programação de regionalização e hierarquização das ações e serviços de saúde executados pelo SUS, na conformidade do artigo 198 da Constituição Federal, que diz o seguinte:

“ Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.”

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Desta forma, a Lei Orgânica da Saúde - Lei nº 8.080/90 - estabeleceu que a gestão do sistema se dá, em nível federal, pelo Ministério da Saúde, e, em nível estadual e municipal, através das respectivas Secretarias de Saúde dos Estados e Municípios. É o que está contido no artigo 9º da Lei nº 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde):

“ Art. 9º - A direção do Sistema Único de Saúde - SUS é única, de acordo com o Inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:

I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;II - no âmbito dos estados e do Distrito Federal,

pela respectiva secretaria de saúde ou órgão equivalente.III - no âmbito dos municípios, pela respectiva

secretaria de saúde ou órgão equivalente. ”

A decisão judicial que determina o cumprimento de serviço ou atendimento pelo gestor do SUS, não havendo prova da resistência da pretensão ora deduzida, HAVENDO POSSIBILIDADE DE INTERNAÇÃO DIFERENTE DA PLEITEDA, ou de forma totalmente irregular, como o presente caso em que o SUS estará custeando tratamento em local não conveniado, em desobediência à sistemática estabelecida, configura interferência na independência e autonomia do Poder Executivo, em ofensa ao art. 2º da Constituição Federal, bem com desorganiza o Sistema, violando o disposto no art. 198 da Carta Magna.

José Afonso da Silva, em seu “CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO”, conceitua a independência dos poderes constitucionalmente assegurada:

“ A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam a sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais” (ob. cit., Ed. Malheiros, SP, 1997, 14a. ed., p. 111)

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A prestação de serviços de saúde tem sido considerada, pelo próprio Judiciário, como de competência dos órgãos Executivos dos entes da federação. As formas desenvolvidas por estes entes públicos para a efetivação do serviço são de competência exclusiva do Poder Executivo, que representa a Administração Pública. A interferência nesta atuação, por qualquer dos outros Poderes do Estado, configura ofensa ao princípio da separação dos Poderes, assegurado pelo artigo 2ºº da Constituição Federal, e afeta a independência do Poder Executivo em área de competência exclusiva.

Diante do princípio da separação dos Poderes do Estado, descabe ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo Municipal, mesmo que em atendimento ao caráter de urgência do pedido, a prestação de serviço de saúde fora da possibilidade de absorção pelo SUS ou contrário à estrutura administrativa pactuada para a prestação do serviço pleiteado, afrontando, assim, os princípios da necessidade e conveniência dos atos pela Administração Pública e o art. 198 da CF.

Por isso, tais decisões judiciais não podem ser proferidas apartadas de todas as questões e dificuldades enfrentadas na efetivação da gestão municipal do SUS, sob pena de ser mero ato interventor por parte do Poder Judiciário devendo, como tal, ser combatido por relativizar um dos fundamentos do Estado Federativo Brasileiro, em flagrante ofensa ao art. 2º da Carta Magna e os próprios artigos 196 e 198 que garantem o acesso igualitário e universal à prestação de serviços de saúde, criando para tal o SUS, cuja organização estabelecida deve ser respeitada, sob pena de inviabilizar a prestação efetiva dos serviços de saúde constitucionalmente assegurados.

VI-DA NECESSIDADE DE RECEBIMENTO DO PRESENTE COMO AGRAVO DE INSTRUMENTO

Em observância à nova legislação referente ao cabimento do recurso de agravo, nos termos do art. 522 e 527, II, ambos do CPC, o não recebimento do presente como agravo de instrumento com efeito suspensivo, pode ocasionar lesão grave e de difícil reparação, tendo em vista o Município estar obrigado ao cumprimento da tutela antecipada e estar custeando o tratamento na forma como deferido.

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O orçamento público está sendo comprometido com um tratamento não autorizado à municipalidade, havendo diversas demandas de importância crucial na área de saúde pública, como é público e notório, e que necessitam ser atendidas também, garantindo o acesso universal e igualitário previsto constitucionalmente para o Sistema, nos artigos 196 e 198 da CF.

o município está impossibilitado legalmente de atender o pedido na forma como requerido ou a decisão na forma em que deferiu a tutela antecipada pleiteada, já que não existe fazenda terapêutica conveniada pelo sus, a fim de que a secretaria de saúde municipal, ente da administração direta, centralizada do municipio réu, efetue o atendimento pleiteado. é fato.

VII-REQUERIMENTO

DIANTE DO EXPOSTO, tendo instruído o recurso com as peças obrigatórias previstas no art. 525 do CPC, salientando serem os advogados públicos, portanto, sem procuração nos autos, o Município de Porto Alegre requer, com base na argumentação antes expendida, seja, liminarmente, agregado efeito suspensivo ao presente recurso com o seu recebimento na forma de instrumento, e, ao final, seja dado provimento ao agravo, para o efeito de cassar a decisão concessiva de antecipação de tutela.

Termos em quePede deferimento.

Porto Alegre, 04 de maio de 2007.

Cristiane da Costa Nery,Procuradora do Município

OAB/RS nº 40.463

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CONTRIBUIÇÃO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA (CIP) – CONSTITUCIONALIDADE DA EC 39/02 E DA LEI

MUNICIPAL 9.903/05

Eduardo Gomes Tedesco e Cristiano Silvestrin de Souza

Em maio de 2006, foi impetrado contra o Sr. Prefeito Municipal e contra o Secretário Municipal da Fazenda, pelo Sindicado dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre (SINDILOJAS), Mandado de Segurança Coletivo contra a instituição da Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública (CIP), visando à obtenção de ordem para que os impetrados se abstivessem de realizar a cobrança da aludida contribuição de si e de seus associados.

As alegações formuladas pela parte autora podem ser assim sintetizadas: a Emenda Constitucional nº 39/02 modificou a repartição das competências tributárias, criando tributo novo de competência dos municípios, o que violou, via reflexa, o art. 60, § 4º da Constituição Federal. Não poderia ter sido criada contribuição para o custeio de finalidade estranha àquelas fixadas rigidamente pelo legislador constituinte originário, envolvendo competências tributárias exclusivas da União Federal. Neste passo, a emenda constitucional autorizadora recaiu em inconstitucionalidade.

Além disso, a CIP instituída pela Municipalidade pela Lei 9.329/03, alterada pela Lei 9.903/05, não se amolda aos preceitos da Carta Magna uma vez adotar critério material sem respeitar o âmbito da competência conferida. O impetrante ainda fixou sua argumentação na inexistência de relação lógico-jurídica entre o critério material e a base de cálculo eleita criticando a utilização de base de cálculo fixa. Por fim, disse inexistir relação lógico-jurídica entre o universo dos contribuintes da CIP e os beneficiários diretos do serviço público relacionado à finalidade da contribuição.

O Município, por meio das autoridades apontadas como coatoras, prestou esclarecimentos ao Juízo, aduzindo, basicamente que: a instituição e cobrança da CIP está autorizada pela Emenda Constitucional nº 39/2002, que deu ao artigo 149-A da Constituição Federal a seguinte redação: “Art. 149-A. Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição,

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na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica.” Essa emenda constitucional não apresenta vícios de ordem formal ou material, e não viola quaisquer cláusulas pétreas da Constituição, sendo ínfimas as probabilidades de que venha a ser declarada inconstitucional pelo STF, gozando, até eventual controle abstrato, de presunção de legitimidade e de constitucionalidade.

O argumento da ofensa reflexa ao artigo 60, § 4 da Constituição Federal foi refutado sob a consideração de que a federação brasileira não restou maculada com a criação da CIP, não só em razão da ausência de prejuízo à arrecadação de outros entes federativos, mas também da existência de motivo sério para a instituição desse tributo, a saber, o custeio do serviço de iluminação pública de incumbência dos municípios. Por outro lado, a tese de violação de direitos e garantias individuais demandaria a análise dos efeitos possivelmente causados indiretamente a determinado número de pessoas pela instituição do tributo, o que não foi feito no caso concreto. A criação de tributos por meio de Emenda Constitucional pode ser feita tanto em relação a tributos de competência da União quanto a tributos de competência dos Estados e Municípios. Conforme doutrina de peso, o perfil constitucional do tributo não constitui cláusula pétrea. Nem a materialidade, nem a finalidade do tributo significam valores fundamentais dos contribuintes. Portanto, o Congresso pode, por meio de emenda, prever novas incidências, novas finalidades, extinguir tributos e ainda modificar o destinatário constitucional conforme a necessidade de adequação à realidade social, respeitada sempre o tratamento isonômico entre os entes federativos.

No Brasil, que consagra o município como entidade federativa, a indigitada imodificabilidade de competências tributárias não afastou a ocorrência de grande número de emendas constitucionais válidas e eficazes de acordo com o entendimento do STF, por intermédio das quais o constituinte derivado alterou e ampliou a moldura inicial de distribuição do poder de instituir tributos realizada pelo constituinte originário, sem desencadearem o rompimento dos vínculos que estruturam a federação. Nesse sentido, dentre tantas outras, pode-se citar: EC 20/1998, EC 42/2003, EC 44/2004.

Não houve ruptura no sistema constitucional de competências tributárias com a criação da EC 39/02, pois nunca houve a limitação

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constitucional à criação de novas contribuições pelo legislador originário, tampouco é verdade que as contribuições são reserva legal exclusiva da União. O Art. 149, § 1º já consagrava a possibilidade dos Estados, Municípios e Distrito Federal criarem contribuições com o intuito de custeio de seus regimes previdenciários. Se o artigo 154, I, da Constituição Federal dispõe que somente a União pode criar outros impostos não previstos na Constituição, mediante Lei Complementar, ou seja, independentemente de qualquer Emenda Constitucional, havendo Emenda Constitucional, o tributo passa a estar previsto na Constituição, podendo o Município instituí-lo e cobrá-lo.

A explanação elaborada com a assessoria da PGM, quanto ao aspecto material da regra matriz de incidência da CIP, ressaltou que o fato gerador “possuir ligação de energia elétrica” vem expressamente sugerido pelo próprio Constituinte no parágrafo único do artigo 149-A, de modo que não há que se falar em desrespeito à competência conferida. Cabe exclusivamente aos Municípios a instituição da CIP na forma de sua “lei local”. Eis aí sugeridos constitucionalmente os contornos e os elementos da regra matriz do tributo, pois somente aqueles que possuam ligação à rede pública de fornecimento de energia poderão ver a cobrança efetuada na fatura de consumo, e, igualmente, a figura do contribuinte, utilizada em todas as legislações municipais que instituíram a CIP após a EC 39/02.

As autoridades coatoras esclareceram ainda que não há que se falar em necessidade de relação lógico-jurídica entre o critério material e a base de cálculo, em primeiro lugar, porque as contribuições não se definem apenas pela estrutura da hipótese de incidência 184, e, em segundo lugar, por trata-se de tributo fixo, ou seja, não há base de cálculo. Apontaram, ainda, que o constituinte originário ao instituir as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas em nenhum momento previu a necessidade de guardar-se relação lógico-jurídica entre o universo de contribuintes e os beneficiários dos serviços custeados. Neste sentido, o brilhante voto proferido pelo Min. Franciulli Netto, no RESP 489.267-SC, no qual examinou as contribuições de intervenção do domínio econômico para o SESC e SENAC.

Foi proferida sentença de improcedência, na qual a julgadora fez

184 ALBERTO XAVIER, em seus Temas de Direito Tributário, salienta que a Constituição procedeu a “uma tipologia de tributos, definindo uns por características atinentes à estrutura (impostos, taxas), outros por características ligadas à função (contribui-ções), outros por traço referentes simultaneamente a um ou outro dos citados aspectos (contribuições de melhoria) e outros ainda por aspectos de regime jurídico alheios quer à estrutura, quer à função, como é o caso dos empréstimos compulsórios.”, conforme citação de PAULSEN, obra citada, p. 372.

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referência à comprovação efetuada no processo acerca da razoabilidade dos valores exigidos pela capital gaúcha.

O SINDILOJAS apelou. Na sessão ocorrida no último dia 22/08/07, a Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação Cível nº 70019729029, declarou que é constitucional e está em consonância com o artigo 149-A da Constituição Federal a Contribuição de Iluminação Pública do Município de Porto Alegre, instituída pela Lei nº 9.903/05.

O Desembargador Relator LUIS FELIPE SILVEIRA DIFINI afirmou em seu voto que, “a par da impossibilidade da cobrança de iluminação pública se dar por intermédio de taxa, o legislador constitucional derivado tratou de dar solução ao impasse gerado, através da promulgação da EC nº 39/02, que incluiu ao texto constitucional o arti. 149-A, possibilitando aos Municípios e ao Distrito Federal a instituição da Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (CIP).” Destacou que “para a contribuição não se exige a divisibilidade do serviço, como para a taxa, mas apenas que a contribuição seja destinada para um fim específico. No caso, o fim específico da iluminação pública é expressamente previsto na Constituição por força de emenda constitucional.” Nesse ponto, transcreveu excerto de precedente de lavra do Desembargador Irineu Mariani no sentido de que “O direito de o intérprete criticar a sua instituição não lhe dá o direito de lhe negar validade, visto estar prevista na Constituição.”

O relator reportou-se ainda a decisões monocráticas do STF que suspenderam liminares concedidas com o fito de impedir a cobrança da contribuição de iluminação pública, assim fundamentadas: “A manutenção da medida concorreria para o não-cumprimento dos investimentos necessários ao custeio da iluminação de vias, logradouros e demais bens públicos, bem como à instalação, à manutenção, à melhoria e à expansão da rede elétrica municipal, necessários à segurança e ao bem-estar da população”, constantes na Suspensão de SEgurança nº 2908/PB, Min. Ellen Gracie, j. 31.03.06, DJU 10.04.06. Quanto ao fato gerador e à base de cálculo, adotou as razões de decidir de primeira instância, em especial que “o legislador do Município de Porto Alegre, ao estabelecer como fato gerador da COSIP a ligação de energia elétrica regular

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ao sistema de fornecimento do município obedeceu o critério de que o contribuinte deve estar vinculado ao território da pessoa política onde se encontra estabelecido” e que “a expressa disposição legal (art. 7º) de que todos os valores recolhidos serão repassados ao Fundo Municipal de Iluminação Pública para o custeio dos referidos serviços preenche igualmente o requisito constitucional da sua destinação específica.”

Acompanhou o voto do Relator o Desembargador IRINEU MARIANI, tendo votado vencido o Desembargador HENRIQUE OSVALDO POETA ROENICK, para quem a própria EC 39/02 é inconstitucional por ferir a matriz paratributária assentada no art. 149 da CF. Como se trata de mandado de segurança e não tendo havido reforma da decisão de primeira instância, prospectivamente pode-se dizer que não será cabível a interposição do recurso de Embargos Infringentes perante o Tribunal de Justiça, de modo que eventual irresignação recursal terá de ser direcionada ao STF.

A ementa da primeira decisão do Tribunal a examinar a CIP da capital gaúcha ficou assim redigida:”APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO E FISCAL. CONTRIBUIÇÃO PARA CUSTEIO DA ILUMINAÇÃO PÚBLICA (CIP). POSSIBILIDADE. EC Nº 39/02. PRECEDENTES DO STF NO SENTIDO DE CASSAR AS LIMINARES DEFERIDAS PARA SUSPENSÃO DA COBRANÇA.

A partir da Emenda Constitucional nº 39/02, restaram autorizados os Municípios e o Distrito Federal a instituírem a Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (CIP), de modo que não há falar em inconstitucionalidade da Lei Municipal, ora impugnada, eis que promulgada em consonância com a referida emenda. APELAÇÃO IMPROVIDA, POR MAIORIA.”

Essa decisão inaugura importante precedente em favor da legitimidade da cobrança da CIP, receita imprescindível para que o Município possa, sem prejuízo de suas diversas atribuições, custear a iluminação pública da cidade, que mensalmente ultrapassa 1,5 milhões de reais em Porto Alegre.Assessoraram judicialmente o Secretário Municipal da Fazenda e o Prefeito Municipal de Porto Alegre, respectivamente, os Procuradores da Procuradoria Tributária, Eduardo Gomes Tedesco e Cristiano Silvestrin de Souza. As contra-razões à apelação ficaram a cargo da Procuradora Maren Guimarães Taborda.

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DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. OBRAS DE INFRA-ESTRUTURA REALIZADAS PELO MUNICÍPIO

Jacqueline Maria de Oliveira do Couto e Silva

No ano de 2003 a empresa Irmãos Soster e Cia ingressou com ação de indenização por desapropriação indireta alegando que a partir da edição de decreto expropriatório de área de sua propriedade sita na Av.Assis Brasil, com aproximadamente 100.800m², foram se estabelecendo no local famílias de baixa renda.

Em contestação apresentou-se a defesa do Município com base na tese de que a edição de decreto expropriatório de per si não gera ao expropriado direito a indenização. A declaração de utilidade pública tem efeito declaratório, não pode gerar efeitos sobre o direito de propriedade, que permanece intacto, em especial o direito de dispor e de defender a propriedade. Permanece o proprietário adstrito aos ditames do Código de Posturas, ou seja, tem o dever de cuidar de sua propriedade, cercando-a e mantendo-a limpa, para resguardar de possíveis invasões. Também se demonstrou que as condições geológicas instáveis do terreno inviabilizariam eventual assentamento de famílias, o que levou o ente público a desistir do processo de desapropriação.

Foi realizada instrução do processo através da oitiva de testemunhas.

O parecer do Ministério Público foi favorável a tese municipal, pugnando a improcedência do pleito com fundamento de que o direito a indenização não nasce pela simples edição de decreto de utilidade pública, etapa em que o bem não sofre nenhuma restrição dominial, porquanto, pode a desapropriação não se efetivar.

Mas, a sentença de mérito julgou procedente a ação condenando o Município ao pagamento de indenização pela área objeto do decreto expropriatório, em valor a ser apurado em perícia.

Apelou o Município, alegando que havia prova de ocupação popular em data anterior a expedição do decreto. No recurso reiterou a tese de defesa, destacando entendimento do prof. Hely Lopes Meirelles relativo aos efeitos da declaração expropriatória, que não pode impedir a normal utilização do bem ou sua disponibilidade. Também colacionou

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jurisprudência sobre a matéria. A quarta câmara cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,

julgou procedente, a unanimidade, o recurso interposto pelo Município de Porto Alegre, apelação nº 70015508245, acórdão publicado em 08 de junho do corrente ano, cuja ementa é a seguinte:

DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INEXISTENCIA DE PROVA DE QUE A OCUPAÇÃO IRREGULAR TENHA SIDO PATROCINADA PELO PODER PÚBLICO. OBRAS DE INFRA-ESTRUTURA REALIZADAS PELO MUNICÍPIO PARA PROPORCIONAR MINIMAS CONDIÇÕES DE MORADIA AOS OCUPANTES NÃO CARACTERIZA O DESAPOSSAMENTO DO PROPRIETÁRIO. A SIMPLES EDIÇÃO DE DECRETO QUE DECLAROU DE UTILIDADE PÚBLICA A ÁREA PARTICULAR TAMBÉM NÃO CARACTERIZA DESAPROPRIAÇÃO, QUE É PROCEDIMENTO IMPRESCINDÍVEL À EFETIVA TRANSFERENCIA DO BEM PARA O DOMINIO EXPROPRIANTE – DIREITO DA AUTORA EM PROCURAR REVERTER A SITUAÇÃO QUE ENVOLVE SUA PROPRIEDADE, MAS QUE NÃO PASSA PELA INDENIZAÇÃO PLEITEADA NOS AUTOS – PRECEDENTES SOBRE O TEMA.

O voto do desembargador relator João Carlos Branco Cardoso, destacou que a alegação de inércia da autora por parte da demandada foi efetivamente a causa, pelo transcurso do tempo, da consolidação da situação de fato e da necessidade de concretização das obras de infra-estrutura, ainda que tenha havido o mencionado decreto. Também afirmou que o transcurso do tempo determinou não só a consolidação do quadro existente, como a imperiosa necessidade do Município realizar obras de infra-estrutura, que não caracterizam ocupação a gerar a obrigação de indenização por desapropriação indireta.

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PROIBIÇÃO DE VENDA OU PROMESSA DE VENDA DE PARCELA DE LOTEAMENTO CLANDESTINO

Simone Santos Moretto e Simone Somensi

A Procuradoria-Geral do Município obteve importante vitória no deferimento de efeito suspensivo ativo em Agravo de Instrumento interposto contra decisão proferida em Ação Civil Púbica, em virtude da implantação e loteamento clandestino na Estrada Retiro da Ponta Grossa.

O loteamento teve início em 1997, ocasião em que foi ajuizada Ação Civil Pública contra o proprietário e loteador, sendo concedida liminar ao Município, no sentido de: a) impedir a alienação de novos lotes ou frações ideais bem como impedir novas ocupações; b) oficiar os cartórios de Registro de Imóveis para proibir a alienação de imóveis de propriedade do réu relativos à área objeto da demanda e c) quanto aos demais imóveis, determinar o registro da citação na ACP, a fim de dar ciência a eventuais adquirentes de que os imóveis responderão pela reparação de eventuais danos.

Entretanto, o responsável técnico contratado para regularizar o loteamento, que recebeu em pagamento parte de área, vendeu sua parte em lotes entre aos anos de 1999 a 2005, firmando contratos de promessa de compra e venda na qualidade de “legítimo proprietário e pleno possuidor do imóvel descrito e caracterizado, livre e desembaraçado de quaisquer ônus reais, fiscais ou convencionais, ... em pagamento de honorários”., o que levou o Município a ajuizar nova Ação Civil Pública, desta feita com o responsável técnico.

Nesta ação, o Município fez pedido específico para que, em antecipação de tutela, fosse determinado ao demandado que “apresente, em consonância com o Decreto Municipal 12.715/200, levantamento planialtimétrico com o intuito de verificação de quais lotes serão passíveis ou não de regularização” . Porém, este pedido não foi concedido. O deferimento parcial da liminar deu-se por entender a Magistrada que o demandado recebeu a fração de terras do proprietário em pagamento de honorários e não se trata de proprietário alienante.

Com o devido acatamento, o Município entendeu que esta condição, ou seja, ter recebido lotes como pagamento de honorários, não o ilide de cumprir as normas legais e vender lotes somente após aprovação e

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registro do loteamento, razão pela qual interpôs agravo de instrumento.Entre outros argumentos, aduziu-se que como responsável técnico,

o demandado era conhecedor das formalidades legais previstas na Lei n.º 6.766/79 e na legislação municipal, eis que trabalha diuturnamente com projetos desta natureza perante o Município.

Mais grave ainda é o fato do demandado saber que a gleba não era propícia para parcelamento do solo, pois se encontra no zoneamento das áreas inundáveis da Bacia do Arroio do Salso e que aproximadamente 95% da área do imóvel encontra-se em Zona de Restrição. Esta informação consta no parecer datado de 2002, do Departamento de Esgotos Pluviais – DEP do Município de Porto Alegre, onde são indicadas diretrizes para parcelamento do solo, referindo que as águas do morro e da estrada são encaminhadas através de valas para o banhado existente neste imóvel e noutros lindeiros.

Há recente manifestação do DEP referindo que é possível a manutenção das moradias no local, desde que sejam realizados alguns condicionantes de drenagem que permitirão a ocupação. Entretanto, somente com apresentação de levantamento topográfico planialtimétrico será possível averiguar a altimetria das residências e constatar o atendimento aos requisitos técnicos necessários para evitar o alagamento.

No local moram idosos que não possuem água, luz e esgoto. Por isso, o ajuizamento das ações civis públicas objetivando a regularização, o que permitirá o saneamento destas graves questões urbanísticas. Neste contexto, o TJRS entendeu pertinente a apresentação do levantamento topográfico planialtimétrico em antecipação de tutela, conforme se verifica na íntegra da decisão:

“Vistos.Infere-se dos autos recursais que, inicialmente, o

Município de Porto Alegre ajuizou ação civil pública em face de Assis Valdir Hoffmann em virtude de implantação de loteamento clandestino na Estrada Retiro da Ponta Grossa nº 3.909.

Naquela ação, em junho de 1997, foi concedida liminar no sentido de: a) impedir a alienação de novos lotes ou frações ideais bem como impedir novas ocupações; b) oficiar os cartórios de Registro de Imóveis para proibir a alienação de imóveis de propriedade do réu Assis relativos à área objeto da demanda e c) quanto aos demais imóveis, determinar o

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registro da citação na ACP a fim de dar ciência a eventuais adquirentes de que os imóveis responderão pela reparação de eventuais danos (fl. 36).

Não obstante isso, como comprovam os documentos de fls. 41/43 e 53/75, o Agravado vem firmando contratos de promessa de compra e venda relativamente a frações do terreno objeto daquela ação civil pública na qualidade de “legítimo proprietário e pleno possuidor do imóvel descrito e caracterizado, livre e desembaraçado de quaisquer ônus reais, fiscais ou convencionais, havido de ASSIS VALDIR HOFFMANN em pagamento de honorários”.

Tais honorários seriam devidos ao Agravado justamente por ter sido contratado como arquiteto do Sr. Assis para providenciar na regularização do loteamento junto à Prefeitura.

Tal regularização, contudo, ainda não se efetivou. Como se observa às fls. 76/86, o agravado, na qualidade de responsável técnico do proprietário da gleba, compareceu à Gerência de Regularização de Loteamento em maio e junho deste ano e comprometeu-se a firmar Termo de Ajustamento de Conduta (fls. 82/86) visando à regularização da área, mas não mais apareceu para assinar o documento

Como se vê, através do agravado, continuou sendo realizado loteamento sem a observância das formalidades legais, uma vez que ainda não procedido o registro do loteamento no ofício imobiliário e junto à Municipalidade local, obrigações previstas na Lei nº 6.766/79. Conforme o art. 37 desse diploma legal, é vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado, conduta, aliás, tipificada criminalmente pela mesma lei, art. 50.

Neste contexto, é de ser deferido igualmente o item 1.2 do pedido de antecipação de tutela, visto que desde 2003 o agravado vem vendendo lotes sem providenciar na regularização do loteamento. Conforme documento à fl. 99, alguns compradores moram sem qualquer infraestrutura (sem água ou luz) e têm receio

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de realizar melhorias face à incerteza se vão poder ou não permanecer no local.

Portanto, deve o agravado ser intimado a apresentar, no prazo de 30 dias, levantamento planialtimétrico nos termos do Decreto Municipal 12.715/2000, verificando-se quais lotes são passíveis ou não de regularização. Não o fazendo, incidirá multa diária de hum mil reais.

Por outro lado, quanto ao pedido de proibição de alienação pelo agravado de imóveis existentes em seu nome, determino tão-somente a expedição de ofício aos cartórios de Registros de Imóveis de Porto Alegre para que averbem, nas matrículas dos imóveis porventura existentes em nome do agravado, a existência da presente demanda, a fim de cientificar eventuais adquirentes da existência de ação reparatória contra o agravado.

Note-se que não se trata de ação real ou reipersecutória, únicas que viabilizam o registro da respectiva citação, conforme o art. 167, I, inc. 21, da lei dos Registros Públicos.

Ante o exposto, agrego parcial efeito suspensivo ativo.

Intimem-se.Comunique-se.Após, vista ao Ministério Público.Porto Alegre, 07 de agosto de

2007.

Dr.Pedro Luiz PozzaRelator

DISTRIBUIÇÃO DE URGÊNCIA

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“No exercício de sua sagrada missão, o juiz não é mero aplicador do texto frio da lei, mas protagonista da Justiça, de quem se exige o mais elevado espírito público e requintada sensibilidade para perceber as mutações da sociedade contemporânea, principalmente numa questão que tão de perto diz com a qualidade de vida e o interesse dos presentes e futuras gerações.”

Édis Milaré

O MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, pessoa jurídica de

direito público, com sede na Av. Siqueira Campos, 1300, nesta Capital, por suas procuradoras signatárias, vem à presença de Vossa Excelência, com base nos artigos 524 e seguintes do Código de Processo Civil, interpor

AGRAVO DE INSTRUMENTO,com pedido de antecipação de tutela,

contra a decisão de fls. 75/76 proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 001/1.07.0143478-7, que move a GILBERTO BEXIGA, com endereço para intimação na Travessa Pedra Redonda, n. 45, Bairro Ipanema, nesta Capital, prolatada pela Excelentíssima Juíza de Direito da 5º Vara da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre, fazendo-o com fundamento nas razões de fato e de direito abaixo declinadas.

Registra, para atendimento dos requisitos formais do presente, que junta cópia integral da Ação Civil Pública, cópias autênticas, portanto.

Informa que tomou ciência da decisão agravada em 25/07/2007 – fl. 78 dos autos.

Como o réu não foi citado, deixa-se de juntar a respectiva procuração.

I - DOS FATOS

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O Município de Porto Alegre ajuizou perante a 5a Vara da Fazenda Pública desta Capital Ação Civil Pública contra o ora agravado, em razão do loteamento clandestino situado na Estrada Retiro da Ponta Grossa, nº 3941, cuja gleba encontra-se registrada no Cartório de Imóveis da 3ª Zona desta Capital, sob o n. 79.106 (fls. 27/28).

Com fulcro nos artigos 11 e 12 da Lei 7.347/85 c/c art. 461, § 5º do CPC, foram requeridos pedidos de antecipação de tutela, nos seguintes termos:

“1.1. Seja determinado ao demandado que se abstenha de comercializar lotes e de permitir que terceiros os comercializem, seja por intermédio de publicidade ou oferta direta de lotes ou contrato na área acima referida, até que seja realizada a regularização exigida em lei, sob pena de multa diária a ser fixada pelo Juízo;

1.2. seja determinado ao demandado que apresente, em consonância com o Decreto Municipal 12.715/200, levantamento planialtimétrico com o intuito de verificação de quais lotes serão passíveis ou não de regularização;

1.3. proibição imediata de alienação pelo réu de imóveis existentes em seu nome;

1.4. a expedição de ofícios para todos os Cartórios de Registro de Imóveis de Porto Alegre, para que gravem os imóveis do réu com a presente ação e para que se abstenham de registrar a alienação dos bens de propriedade do réu;

1.5. sejam encaminhadas cópias do presente processo ao Ministério Público – Coordenadoria das Promotorias Criminais e Coordenadoria das Promotorias do Meio Ambiente, face aos elementos que sugerem a prática do crime previsto no art. 50 da Lei 6.766/79;

1.6. publicação do edital, nos termos do art. 94 da Lei 8.078/91, para que os interessados, querendo, possam intervir como litisconsortes ativos.”

O pedido foi parcialmente deferido, conforme abaixo transcrito:

“Vistos os autos.O Município de Porto Alegre propôs ação civil pública contra Gilberto Bexiga noticiando

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ajuizamento anterior de ação civil pública contra Assis Valdir Hoffmann, processo n.1052209787-5, requerendo a regularização de loteamento clandestino e dizendo que o objeto desta ação civil pública localiza-se na Estrada Retiro da Ponta Grossa n.3941. Aduz que, diante da solicitação de extensão de rede de água para o endereço mencionado, a Procuradoria Geral do Município tomou conhecimento da aquisição de lote vendido pelo ora demandado, sendo a área objeto da ação civil pública anteriormente ajuizada. A documentação acostada aos autos respalda a assertiva contida na inicial, uma vez que se trata da mesma área objeto de ‘loteamento clandestino’ descrita nos autos da ação civil pública antes ajuizada e que se encontra ainda sem solução definitiva, mas com liminar obstativa da alienação do imóvel de propriedade do réu Assis Valdir Hoffmann. No caso, verifica-se que o ora requerido firmou Instrumento Particular de Contrato de Promessa de Compra e Venda Quitada, juntado nas fls.29 a 32, onde consta que a fração de área foi havida pelo promitente vendedor por quitação de honorários de Assis Valdir Hoffmann e está localizada junto da Estrada Retiro da Ponta Grossa. Portanto, tendo em vista que no caso específico o demandado recebeu a fração de área de terras em pagamento de honorários e não se trata do proprietário alienante dos lotes, como é o caso do requerido Assis Hoffmann, DEFIRO em parte a tutela antecipada, determinando as diligências para cumprimento dos pedidos formulados às fls. 09/10, ou seja, de intimação do demandado de proibição na comercialização dos lotes, sob pena de multa fixada em R$ 1.000,00 por dia, devendo ser intimado do contido nos itens 1.1 e 1.3. Determino que seja oficiado ao Registro de Imóveis para ciência da proibição de venda de imóvel do requerido relativo à área objeto desta ação. Cite-se o requerido. Expeça-se edital requer o autor, no item 1.6.aguarda preparo de condução para mandado pelo autor.”

O deferimento parcial do pedido, conforme prolatado na decisão ora atacada, deu-se por entender a MM. Magistrada a quo que o agravado recebeu a fração de terras do proprietário em pagamento de honorários e

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não se trata de proprietário alienante.Com o devido acatamento, o Município agravante entende que esta

condição, ou seja, ter recebido lotes como pagamento de honorários, não o ilide de cumprir as normas legais e vender lotes somente após aprovação e registro do loteamento, razão pela qual, inconformado, interpõe o presente recurso de agravo de instrumento.

II - DO CABIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO

Inicialmente, vem afirmar o cabimento do presente agravo mediante formação de instrumento, tendo em vista que a decisão agravada gera significativo risco de causar ao Município agravante e aos moradores do loteamento clandestino lesão grave e de difícil reparação.

Primeiro, porque os moradores do loteamento clandestino e o próprio Município agravante necessitam saber quais lotes poderão ser regularizados e quais deverão ser desocupados e esta definição depende da realização do levantamento topográfico planialtimétrico requerido no item 1.2 da exordial.

Segundo, porque é necessário garantir a efetividade do inequívoco provimento da Ação Civil Pública, ou seja, se a verossímel condenação do agravado for confirmada, somente terá condições de cumprir a sentença se deferidos os pedidos acautelatórios constantes nos itens 1.3 e 1.4.

Sabe-se que a atual sistemática do agravo de instrumento admite tal recurso apenas quando a decisão recorrida for “suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação”. Certamente nem sempre tal exigência pode ser facilmente aferível e caracterizada, e a louvável intenção do legislador processual, estabelecendo necessários limites ao uso do recurso e valorizando e prestigiando as decisões dos Juízos monocráticos de Primeiro Grau, não pode servir para que pretensões nitidamente merecedoras de tutela – inclusive de urgência - sequer sejam analisadas. Certamente há casos (e este é um deles) em que o agravo em sua forma retida não pode ser o único recurso posto à disposição da parte, porque o direito postulado afigura-se por demais evidente. A lição de Ovídio Baptista da Silva é adequada ao caso em foco:

“É necessário ter presente –

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como uma verdade elementar – que o julgador nada poderá oferecer a uma das partes, senão à custa do sacrifício do adversário. Em primeiro lugar, porque o Juiz não faz milagres, extraindo do nada as provisões que outorgam vantagens processuais a qualquer das partes; em segundo lugar, não as concede como simples liberalidades pessoais, ou que pudessem ser concedidas aos litigantes a custo zero.

A natureza do processo é infensa a uma suposição a tal ponto superficial e ingênua que não veja, por exemplo, que a rejeição de uma liminar – ou a consagração da ordinariedade – ao recusar ao autor algum benefício provisional, implicará automaticamente a concessão ao demandado de um benefício inverso da mesma qualidade e de idêntica grandeza, conservando, para seu desfrute, durante a litispendência, o statu quo ante; (...).”185 [Sublinhou-se]

III - DAS RAZÕES DE REFORMA DA DECISÃO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA DEFERIDA PARCIALMENTE

Os contratos de compra e venda de fls 41/63 demonstram

claramente que o agravado comercializou - ou melhor - vendeu lotes como se proprietário fosse da área que recebeu como pagamento de honorários do proprietário Assis Valdir Hoffman, no loteamento clandestino por este iniciado no ano de 1997, objeto da Ação Civil Pública n. 1.05.2209787-5.

Os documentos juntados aos autos também comprovam que não

185 Processo de Conhecimento e Procedimentos Especiais, conferência proferida em 1992, inserta na Revista da Ajuris 57/5.

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houve projeto aprovado para implantação de loteamento no local. Como referido, o agravado foi contratado pelo proprietário para elaboração de projetos para parcelamento do solo e recebeu em pagamento parte da área que foi clandestinamente loteada.

Como se não bastasse o envolvimento do agravado como responsável técnico de um loteamento clandestino, ainda teve a audácia de fracionar e vender a parte da área que recebeu em pagamento, firmando contratos de compra e venda de lotes no período de 2003 a 2006, muito embora a proibição decorrente da Ação Civil Pública ajuizada contra o proprietário, onde foi concedida liminar para impedir a alienação de novos lotes ou frações ideais em 23/06/1997 (fl. 26).

Ora, Excelências, por ter formação em arquitetura e urbanismo e trabalhar freqüentemente em projetos de parcelamento do solo, não pode alegar desconhecimento das normas constantes na Lei Federal n. 6766/79, mormente aquela que refere que é vedado efetuar a venda dos lotes sem a devida matrícula individualizada.

Ademais, o agravado agiu como se proprietário fosse, ao firmar cláusulas nos contratos de compra e venda referindo ser o legítimo proprietário e pleno possuidor do imóvel comercializado, como se constata na simples leitura das cláusulas dos contratos de fls. 41/63, abaixo transcrita:

“CLÁUSULA PRIMEIRA: o VENDEDOR é legítimo proprietário e pleno possuidor do imóvel descrito e caracterizado, livre e desembaraçado de quaisquer ônus reais, fiscais ou convencionais, havido de ASSIS VALDIR HOFFMANN em pagamento de honorários.”

Além do mais, o art. 37 da Lei 6.766/79 dispõe que é vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado, ou seja, a norma legal proíbe a venda de frações seja por parte do vendedor proprietário ou de terceiros, como se verifica no caso em lume.

Logo, como se justificam as vendas realizadas pelo agravado durante os anos de 2003, 2004, 2005 e 2006? Será que o agravado, apenas por não ser o proprietário formal, não praticou o crime previsto no art. 50 da lei 6.766/79? Ademais, certamente o agravado já foi pago para a realizar o trabalho de regularização do loteamento. Se não fosse assim, não teria vendido os lotes e após comparecido na Gerência de Regularização de Loteamentos com o proprietário da área, o qual ficaria surpreso quando foram questionadas tais vendas, o que não foi o caso.

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Mais grave ainda, eméritos Desembargadores, é o fato do agravado saber que a gleba não era propícia para parcelamento do solo, pois se encontra no zoneamento das áreas inundáveis da Bacia do Arroio do Salso e que aproximadamente 95% da área do imóvel encontra-se em Zona de Restrição.

Esta informação consta no parecer datado de 2002, constante no Expediente Único n. 002.290542.00.6 – doc. 01, do Departamento de Esgotos Pluviais – DEP do Município de Porto Alegre, onde são indicadas diretrizes para parcelamento do solo, referindo que as águas do morro e da estrada são encaminhadas através de valas para o banhado existente neste imóvel e noutros lindeiros.

Gize-se que este Expediente Único foi aberto pelo próprio agravado em 20.10.1997, ocasião em que o proprietário da gleba forneceu autorização para o agravado requerer a Declaração Municipal e este, na qualidade de responsável técnico pelo projeto, não realizou os encaminhamentos devidos, apenas adotando providências singelas, quais sejam:

solicitação de DM em 18.03.99 (1) quase dois anos após a autorização concedida pelo proprietário);apresentação do Estudo de Viabilidade Urbanística - 2) EVU em 26.08.99, que restou indeferido em 2003 por não apresentar os requisitos para aprovação;requerimento para desarquivamento para nova 3) apreciação do EVU em 23.06.2003, o qual foi novamente indeferido em 01.08.2003, novamente indeferido por não atender os requisitos para aprovação.

Há recente manifestação do DEP referindo que é possível a manutenção das moradias no local, desde que sejam realizados alguns condicionantes de drenagem que permitirão a ocupação (fls. 65/66). Entretanto, somente com apresentação de levantamento topográfico planialtimétrico será possível averiguar a altimetria das residências e constatar o atendimento aos requisitos técnicos necessários para evitar o alagamento.

E este pedido, Excelências, foi indeferido pela MM. Magistrada a quo.

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IV - DO PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA NO AGRAVO DE INSTRUMENTO

Diante da gravidade dos fatos supra relatados, o Município agravante requer seja apreciado liminarmente o pedido de concessão dos pedidos antecipatórios constantes na exordial e que foram indeferidos pelo MM. Juízo do Primeiro Grau, pois entende que neste caso está caracterizada a lesão grave e de difícil reparação.

A “ordinarização” do processo atua no campo oposto ao da efetividade. E é em nome dessa efetividade que o Município entende não apenas que sua pretensão é plenamente viável, mas também que é merecedora da tutela de urgência que ora se postula. Pode-se inverter o ponto de vista, questionando: quem ganhará se o levantamento topográfico planialtimétrico (documento que inicia o processo de regularização), que já foi pago pelo proprietário ao agravado, não for realizado em antecipação de tutela?

Além disso, conforme comprovado na inicial, na data de 28.05.2007, o Sr. Assis e o Arq. Gilberto Bexiga compareceram na Gerência de Regularização de Loteamentos do Município e o segundo confirmou que ainda é responsável técnico pelo loteamento. Contudo, após 2003, quando o Estudo de Viabilidade Urbanística foi indeferido, não houve providência alguma de sua parte no sentido de providenciar a regularização. Ao contrário, vendeu algo que sabia não estava aprovado e mais, com a grande possibilidade de alguns lotes não terem como vir a ser regularizados em razão do problema de drenagem constante no parecer do DEP.

Assim, nada mais justo do que se pedir a antecipação de tutela para que este apresente o levantamento topográfico planialtimétrico. De posse deste, pode-se saber de plano quais os adquirentes poderão vir a ter seus lotes regularizados.

A urgência deste provimento justifica-se, ainda, pela mais importante proteção do bem da vida que a Ação Civil Pública pretende proteger: a proteção aos adquirentes dos lotes que diuturnamente procuram o Município para saber se o seu lote poderá ser regularizado e se poderão continuar morando no local.

Os moradores/adquirentes dos lotes, ao saberem que o levantamento topográfico planilatimétrico não fora concedido liminarmente, imediatamente procuraram o Município para demonstrar sua irresignação,

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uma vez que não sabem se podem fazer benfeitorias em suas moradias, já que não tem nenhuma segurança de que ali poderão permanecer. Em razão deste acontecimento foi agendada reunião com os moradores cuja ata ora acostamos – doc. 02.

No local moram idosos que não possuem água, luz e esgoto. Infelizmente, o Município não pode intervir em área particular, provendo-a de infra-estrutura, pois sofre o risco de ajuizamento de ação de desapropriação indireta, pois estes loteadores inescrupulosos fazem de tudo para obter lucro. Por isso o ajuizamento das ações civis públicas objetivando a regularização, o que permitirá o saneamento destas graves questões urbanísticas.

Tais fatos demonstram um tensionamento existente entre a comunidade e o agravado. Vejam que estamos nos deparando com um bem maior: o direito à moradia. A Constituição Federal Brasileira prevê entre direitos sociais, o direito à moradia, o qual está intimamente ligado à realização da dignidade humana. A regularização fundiária de loteamentos clandestinos é, sem dúvida, uma forma de alcançar moradia digna à população.

Não é justo que os adquirentes de boa fé aguardem toda a instrução do processo e, conseqüentemente, a execução de sentença, para que os que habitem nos lotes passíveis de regularização venham realizar benfeitorias em sua moradia.

Por fim, necessário registrar a importância da concessão de tutela dos itens 1.3 e 1.4 da exordial, ou seja, a expedição de ofícios para todos o s Registros de Imóveis para que o agravado se abstenha de registrar alienação de todos os bens de sua propriedade, assim, se condenado for, terá condições de cumprir a sentença. Não basta gravar o imóvel objeto do loteamento, pois este já foi comercializado.

V - DOS REQUERIMENTOS

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Por todo o exposto, requer o agravante:a) o recebimento do presente agravo de instrumento, tempestivamente interposto;b) a antecipação de tutela a que se refere o artigo 527, inciso III, do CPC, para fins de que seja reformada, de plano e provisoriamente, a decisão agravada, concedendo-se ao Município os pedidos de tutela antecipada constantes na exordial; c) a intimação do agravado para que responda ao presente recurso;d) o acolhimento, ao final, das razões recursais, com o julgamento de procedência do presente agravo.

Termos em que,pede deferimento.Porto Alegre, 1º de agosto de 2007.

Simone Moretto Simone SomensiProcuradora do Município Procuradora do Município OAB/RS 33.815 OAB/RS 46.444

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REGULARIZAÇÃO DE LOTEAMENTO CLANDESTINO CAUSADOR DE DANO AMBIENTAL

Simone Somensi

No início de 2001 o Município tomou conhecimento da existência de um parcelamento do solo implementado sem projeto aprovado, com remoção de vegetação, numa área de cerca de 20.000 m² que possui três proprietários, em condomínio indivisível, o que redundou em autuação pelo órgão ambiental municipal.

Após autuado, o proprietário que deu início ao loteamento clandestino compareceu perante a Secretaria do Meio Ambiente e declarou que não tinha conhecimento dos procedimentos legais para parcelamento do solo, ocasião em que se comprometeu a paralisar toda e qualquer atividade de venda de lotes, bem como recebeu orientação de como proceder para regularizar o loteamento.

Entretanto, não apresentou projeto de regularização, o que ensejou a lavratura de notificação e novo auto de infração, desta feita pela Secretaria Municipal de Obras e Viação.

Em 2003 o Município autor, através da Secretaria de Planejamento Municipal (SPM), realizou vistoria no local e vislumbrou a existência de uma via de aproximadamente 500 metros, com cerca de 25 casas construídas ao longo da via, sem qualquer instalação de equipamentos públicos e com infraestrutura precária: encanamento de esgoto é feito somente na frente dos lotes em que há residências, nos demais só tem valetas, o esgoto é a céu aberto, a rede de água não existe (os moradores coletam água de poços artesianos) e a de luz é clandestina. Também foi comprovada a comercialização de 50 lotes, através de contratos de compra e venda firmados por um dos casais proprietários da área

O loteador compareceu perante o Município, após receber aviso para prestar esclarecimentos e declarou que há cerca de 5 (cinco) anos parcelou e vendeu lotes na área e que não teria condições de contratar responsável técnico para a execução dos projetos necessários à regularização do loteamento. Os demais proprietários da área também receberam aviso para prestar esclarecimentos, sendo que somente um deles compareceu e declarou que “na sua parte da área não existe loteamento”.

Vários foram os esforços do Município demandante em obter compromisso do loteador na regularização e eventual desocupação da área

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imprópria para moradia, mas não foi possível objetivá-lo.Os danos oriundos do parcelamento e ocupação do solo são

evidentes, seja no aspecto ambiental, urbanístico ou de lesão ao direito do consumidor, pois o desenvolvimento urbano submete-se a regramentos previstos em lei - Lei Federal 6766/79 e Plano Diretor do Município – PDDUA – Lei Complementar 434/99. A coletividade tem direito de ver observados os padrões legais de urbanismo. Por outro lado, é dever constitucional do órgão federado defender o meio-ambiente, bem de uso comum do povo. A lesão a ordem urbanística e ao meio ambiente autorizam o Município a buscar judicialmente a reparação aos mesmos, nos termos do artigo 5° c/c artigo 1º, I e IV, da Lei Federal 7.347/85.

A legitimidade passiva restou evidenciada a partir da enunciação dos fatos. Loteador é o proprietário/vendedor da área a ser loteada. O primeiro e a segunda demandada, proprietários de uma área em condomínio indivisível com os demais demandados venderam pequenos lotes de um todo maior, como demonstram os contratos de compra e venda.

Os demais demandados constam como proprietários do imóvel na matrícula. Muito embora não tenha prova da comercialização de lotes em seus nomes, são responsáveis pelo parcelamento na medida em que perdura documentalmente a indivisibilidade do patrimônio imóvel objeto desta ação e o conseqüente dever de zelar pela imutabilidade da área ou, caso desejassem realizar parcelamento, que procedessem na forma da lei.

Ademais, qualquer procedimento a ser adotado para fins de regularização do parcelamento dependerá da regularidade registral, cuja matrícula está em nome dos demandados.

No caso em análise, os demandados procederam ao parcelamento da área em questão sem observar previamente os critérios urbanísticos, em total desacordo com o disposto na Lei n.º 6.766/79, no PDDUA de Porto Alegre e na legislação urbanística e ambiental municipal.

Conforme parecer juntado aos autos, sobre a gleba objeto do loteamento clandestino o regime urbanístico está dividido em duas partes:

a) nos primeiros 200 metros a densidade é 37 (10 hab/hab e 03 economias/hab, a atividade é 25 (corredor agro-industrial para indústria vinculada a produção rural e apoio a produção agro-industrial), o aproveitamento é de 0,5/0,00 de quota ideal e a volumetria é 23 (altura máxima de 9,00m/ocupação

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50%);b) no segmento seguinte é caracterizada por

densidade 31 (02 hab/hab e 0,5 economias/hab), a atividade é 23 (área de produção primária relacionadas ao lazer e ao ecoturismo vinculada à produção primária e extrativa e vinculada à produção rural por propriedade), o aproveitamento é de 0,1/20.000 m² de quota ideal e a volumetria é 21 (altura máxima de 9,00m/ocupação 20%).

Enfim, para área em questão, o Plano Diretor não tinha previsto ocupação por residências unifamiliares, em razão de o ordenamento urbanístico prever para o local a produção predominante primária e baixo potencial construtivo. Tanto é que na área de produção primária a testada mínima dos lotes é de 50 metros e a área mínima do quarteirão é de 20 hectares. Já na área de corredor agro-industrial o fracionamento prevê área mínima de lote de 5.000 metros quadrados e testada de 25 metros.

A responsabilidade do parcelador advém da Lei n. 6.766/79, ao dispor que lhe cabe a regularização do loteamento e a reparação dos prejuízos causados aos compradores de lotes e ao Poder Público (artigos 38 e 47), porque ofenderam normas de ordem pública e atingiram o patrimônio de terceiros de boa-fé, praticando, inclusive, o delito previsto no artigo 50, inciso I, da Lei n.º 6.766/79.

Os demandados têm o dever de submeter aos órgãos municipais projetos de loteamento que obedeçam aos ditames legais e, em o mesmo sendo aprovado, implementá-lo, com todas as obras/equipamentos necessários. Gize-se, por oportuno, que somente ocorrerá regularização deste loteamento se for instituída área especial de interesse social – AEIS II, instrumento trazido pelo Estatuto da Cidade que possibilita a regularização de áreas objeto de loteamentos irregulares ou clandestinos.

Logo, a ação civil pública tem por finalidade compelir os loteadores e proprietários a proceder a regularização da parte da área compatível com a ocupação, bem como sejam realocados os lotes localizados em áreas impróprias para moradia, caso existentes. E, nas áreas em que houve danos ambientais, sejam estes devidamente compensados e reparados.

Importante referir, ainda, que o agir comportamental dos demandados, mais do que implementar loteamento clandestino, lesou o direito da coletividade a um desenvolvimento urbanístico regular. Esse

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dano ambiental, ocupação desordenada do solo, falta de destinação de equipamentos e áreas públicas, destruição do planejamento ambiental, arquitetônico e urbanístico, etc., afrontando a lei, mesmo que de difícil valorização, deve ser indenizado.

A recomposição/indenização dos danos causados a coletividade, danos que não puderem ser regularizados/sanados pelos demandados, deverá ser realizada por compensação econômica, a ser fixada pelo prudente critério do julgador, destinado o valor arbitrado ao Fundo Municipal Pró-Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, criado pela Lei Complementar Municipal 369/96, cuja finalidade é “prestar apoio financeiro em caráter suplementar a projetos, planos, obras e serviços necessários à manutenção e preservação dos espaços públicos urbanos e do ambiente natural do Município.”.

A seguir, estão expostos os pedidos constantes na exordial da Ação Civil Pública. Destacam-se os pedidos constantes nos itens 2.1 e 2.2 – apresentação de levantamento topográfico e dos projetos complementares – em antecipação de tutela. Com seu deferimento, é possível dar início ao processo de regularização desde logo.

DOS PEDIDOS

Diante do exposto, o MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE requer:

Em antecipação de tutela, liminarmente, 1. ante a gravidade da situação fática narrada, que revela que a efetividade dos direitos que se pretende assegurar por meio da presente demanda requer providências urgentes, para que a reparação dos danos causados encontre respaldo no patrimônio do réu. Nesse sentido, os artigos 11 e 12 da Lei 7.347/85, c/c do artigo 461, § 5°, do CPC autorizam os provimentos liminares a seguir requeridos:

seja determinado que os demandados se 1.1 abstenham de comercializar lotes e de permitir que terceiros os comercializem, seja por intermédio de publicidade ou oferta direta de lotes, sob pena de multa diária de R$1.000,00 (um mil reais), em caso de descumprimento;

proibição imediata de parcelamento do solo e 1.2 de alienação de lotes sobre as áreas de sua propriedade, sob

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pena de multa diária de R$1.000,00 (um mil reais), em caso de descumprimento;

proibição imediata de alienação pelos 1.3 demandados de imóveis existentes em seus nomes;

a expedição de ofício para todos os cartórios 1.4 de Registros de Imóveis de Porto Alegre, para que gravem os imóveis dos demandados com a presente ação e para que se abstenham de registrar a alienação dos bens de sua propriedade;

Ainda em sede de tutela antecipada, sejam os 2. demandados obrigados a iniciarem o processo de regularização dos loteamentos já consolidados, como forma de barrar as expansões existentes, nos seguintes termos:

sejam obrigados a apresentarem levantamento 2.1 topográfico da área objeto a matrícula incidente no loteamento clandestino, num prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), em caso de descumprimento;

após fixação das diretrizes para regularização 2.2 a serem especificadas pelo Município, a fim de adequá-los às exigências normativas cabíveis à espécie, sejam apresentados os projetos complementares e prestadas as garantias previstas no art. 147, da Lei Complementar Municipal 434/99, num prazo de 3 (três) meses, sob pena de multa diária de R$1.000,00 (um mil reais), em caso de descumprimento.

a publicação do edital, nos termos do art. 94 3. da Lei 8.078/91, para que os interessados, querendo, possam intervir como litisconsortes ativos.

Em caráter definitivo, REQUER o 4. demandante:

sejam os réus citados para responder, querendo, 4.1 a todos os termos da presente ação, sob pena de ser aplicada a pena de confissão e declarada a revelia;

a produção de provas por todos os meios em 4.2 direito admitidos, especialmente a prova pericial, o depoimento pessoal e a oitiva de testemunhas, que, oportunamente, serão arroladas;

ao final, seja julgada 4.3 procedente a ação para

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condenar os demandados, solidariamente:à obrigação de fazer consistente em, 4.3.1

acolhida a pretensão deduzida no item “2”, outorgar as pertinentes escrituras públicas dos lotes aos adquirentes que tenham integralizado o pagamento das prestações ajustadas nos instrumentos negociais, consolidando a propriedade dos atuais posseiros; com ajuizamento de ação para registro individual dos lotes que compõem os loteamentos, na forma do Provimento n.º 28/2004 da CGJ – “Projeto More Legal III”, num prazo 6 (seis) meses, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais), em caso de descumprimento;

à obrigação de fazer consistente em 4.3.2 remover e reassentar os moradores dos lotes que se encontrem em áreas eventualmente irregularizáveis, com cominação de multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais), em caso de descumprimento;

à obrigação de fazer consistente em 4.3.3 realizar as obras de infraestrutura indispensáveis à urbanização dos lotes, em conformidade com a legislação municipal e com o projeto aprovado pelo Município, no prazo máximo de 01 (um) ano, a contar do registro do mesmo, nos termos do art. 146, da Lei Complementar 434/995, com cominação de multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais), em caso de descumprimento;

apresentar e aprovar perante os órgãos 4.3.4 municipais projeto de remediação da área degradada, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) pelo descumprimento;

executar todas as obras para 4.3.5 recomposição do dano ambiental e paisagem natural, em conformidade com os projetos aprovados pelo Município e com a legislação municipal, no prazo de 90 dias, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) pelo descumprimento;

apresentar relatórios de 4.3.6 acompanhamento da evolução das medidas reparadoras do dano ambiental, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) pelo descumprimento;

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indenizar pelo dano ao meio ambiente, 4.3.7 no valor que deverá ser apurado em liquidação de sentença e recolhido ao Fundo Municipal do Meio Ambiente;

pagamento das custas e honorários 1.4. advocatícios.

Por fim, REQUER a intimação do órgão do Ministério Público, para que acompanhe todos os atos do presente.”

Houve o deferimento do pedido liminar de antecipação de tutela, determinando que os responsáveis pelo loteamento iniciem desde logo os procedimentos de regularização, o que agiliza sobremaneira o processo regularizatório. Abaixo, segue íntegra da decisão judicial:

“Vistos, etc., I.Trata-se de ação civil pública promovida pelo Município de Porto Alegre contra proprietários do imóvel matriculado sob o n.79943, da 3a.Zona de Imóveis da Capital, a pretexto de promoção de loteamento irregular, danos ambientais e inobservância dos critérios urbanísticos, violando, destarte, os preceitos legais precursores da matéria. Pede a final, concessão de liminar, em foro de antecipação de tutela para o fim de determinar que os demandados se abstenham de continuar a comercialização e venda de lotes, pena de multa diária; II.Em verdade, bom gizar, os documentos evidenciam, ao menos por ora, que o demandado que está a providenciar a venda e transmissão irregular da propriedade, era o falecido AROLDO GOMES DOS SANTOS, já falecido, o qual, inclusive, confessou o ocorrido, conforme declaração de fl.15. Quanto aos demais réus, malgrado legitimados passivos, nada de concreto e documental foi coligido aos autos, cuja participação se justifica pela co-propriedade; III.Os documentos carreados à inicial infirmam, quantum satis que efetivamente o primeiro demandado, enquanto vivo, iniciou a implementação de loteamento clandestino e irregular, sem qualquer orientação profissional e assistência do Município, completamente ilegal e danoso; IV.Com efeito, a concessão da antecipação de tutela é decorrência natural e impositiva; V.POSTO ISSO, defiro o pedido de antecipação de tutela, ex vi do art.273 do CPC para o fim de determinar que os réus se abstenham

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de promoverem a venda, alienação ou transferência da propriedade e posse fracionada do imóvel descrito na matrícula n.79943 (fl.39), a quem quer que seja, sob pena de multa diária de R$500,00 (...) ut art.461 do CPC, incidente em caso de descumprimento. Expeça-se o ofício requerido no item 1.4, bem como publique-se o édito preconizado no art.94 da Lei Federal n.8078/91. Ainda, intimem-se, por mandado, todos os adquirentes, constantes da listagem de fls.03/05 da exordial, ratificada em fls.41/42, para que não transfiram os lotes adquiridos, a qualquer título, bem como manifestem-se nos autos,se quiserem, malgrado a natureza coletiva da actio. Citem-se. Intimem-se. Dil. Legais”

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Enunciados aprovados no IV

Congresso de Procuradores das

Capitais Brasileiras, realizado no Rio

de Janeiro de 20 a 24 de Novembro

de 2007

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áREA DE INTERESSE I – URBANISMO E MEIO AMBIENTE

ENUNCIADO 84 (AI I): È cabível a argüição do princípio da reserva do possível em sede de execução de sentença, ainda que não tenha sido argüido no processo de conhecimento, por se tratar de matéria fática superveniente não sujeita à preclusão.

ENUNCIADO 85 (AI I): A reparação por ato ilícito praticado contra o direito fundamental a um ambiente (natural, cultural, histórico ou urbano) ecologicamente equilibrado (Art. 225, caput, da CF) deve incluir a indenização do dano moral difuso, que resulta dos impactos negativos suportados diretamente pela sociedade, forçada a viver num meio degradado e com menor habilidade de prover os serviços ecológicos essenciais a uma sadia qualidade de vida para todos. A reparação do dano moral difuso deve ser arbitrada judicialmente, considerando, dentre outros fatores, a importância do bem afetado para o interesse comum, a possibilidade de sua recuperação completa e o tempo necessário à total regeneração do meio.

ENUNCIADO 86 (AI I): Cabe aos Municípios, no exercício de sua competência material exclusiva de gerenciamento da ocupação do solo urbano, exigir das concessionárias de serviços públicos o cumprimento das normas que asseguram a acessibilidade universal, na implantação de equipamentos em logradouros.

ENUNCIADO 87 (AI I): Durante tramitação de processo legislativo que preveja alteração de normas urbano-ambientais poderá o Município suspender a emissão de licenças, por período de tempo razoável e motivadamente, para evitar lesão irreparável à nova ordem jurídica proposta, em defesa da supremacia do interesse público, aplicando-se o princípio da precaução e assegurando-se as funções sócio-ambientais das cidades.

ENUNCIADO 88 (AI I): O Plano Diretor é lei de ordem pública, cogente, de aplicação imediata, não sendo recomendável a utilização de regras de transição que possam ser interpretadas como prorrogação do regime jurídico revogado.

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áREA DE INTERESSE II – PESSOAL

Enunciado 89 (AI II): ESTáGIO PROBATÓRIO. CUMPRIMENTO NA ATIVIDADE PRINCIPAL. O servidor público somente adquirirá estabilidade se aprovado no estágio probatório, a ser realizado na atividade-núcleo do cargo de provimento efetivo.

Enunciado 90 (AI II): PAGAMENTO A MAIOR. CRITÉRIOS PARA DEVOLUÇÃO. I – Na hipótese de pagamento indevido a servidor público, a devolução do valor se impõe, observado o prazo prescricional. A boa-fé, por si só, não afasta o dever de restituição. II – A devolução deverá ser, necessariamente, precedida do competente processo administrativo, assegurados o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF). (Aprovado)

Enunciado 91 (AI II): ABONO DE PERMANÊNCIA. REQUISITOS E TRIBUTAÇÃO. O abono de permanência é vantagem pecuniária, de caráter temporário, devida ao servidor que reuniu condições de se aposentar e continua em atividade (§19º, art. 40, CF/88). Portanto, tal vantagem tem natureza remuneratória e constitui base de cálculo para a incidência do Imposto de Renda.

Enunciado 92 (AI II): READAPTAÇÃO. POSSIBILIDADE DE REVERSÃO. A readaptação do servidor efetivo deverá ser realizada em cargo afim ao originário. Na hipótese de cessarem as causas que resultaram na limitação física ou mental do servidor, aplicar-se-á analogicamente a regra da reversão alusiva aos casos de aposentadoria por invalidez, conforme previsão legal disposta no estatuto do servidor do ente municipal.

Enunciado 93 (AI II): CARGOS EM COMISSÃO. SUBSTITUIÇÃO DE CARGO DE PROVIMENTO EFETIVO. ILEGALIDADE. Os cargos em comissão constituem exceção ao princípio constitucional do concurso público (art. 37, II, CF/88) destinam-se somente às funções de direção, chefia e assessoramento, devendo ser entendidas de forma restrita, não podendo abranger atribuições próprias de cargos efetivos. A existência de aprovados em concurso público e de vagas a serem preenchidas, obriga o administrador a provê-las e, conseqüentemente, exonerar os titulares de cargo em comissão que exerçam as funções dos cargos efetivos.

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áREA DE INTERESSE III – LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

Enunciado 94 (AI III): Contratação de pessoa física para ministrar cursos de aperfeiçoamento e treinamento de pessoal. Para a contratação com fundamento no inciso II do art. 25 c/c o inciso VI do art. 13 da Lei nº 8.666/93, não basta a notoriedade do profissional; há que ser caracterizada também a singularidade do objeto, independentemente do valor da contratação. Não estando presente algum dos requisitos mencionados, impõe-se a realização do procedimento licitatório, salvo a dispensa em razão do valor (art. 24, II, da Lei nº 8.666/93).

Enunciado 95 (AI III): São auto-aplicáveis os dispositivos da LC 123/06, no tocante às regras de licitação que dizem respeito às microempresas e empresas de pequeno porte, por serem normas gerais de competência da União.

Enunciado 96 (AI III): É recomendável a licitação do gerenciamento da folha de pagamento dos municípios, admitida a participação de entidades públicas e privadas, através da modalidade pregão, maior lance, haja vista a igualdade de regime jurídico, nos termos do art. 173, § 1º, II, da CF/88, e de não se tratar de disponibilidade de caixa do ente público (art. 164, § 3º, da CF/88).

Enunciado 97 (AI III): A possibilidade de contratação direta com fundamento no art. 24, XIII, da Lei nº 8.666/93, pressupõe, além do cumprimento dos requisitos legais, a necessidade do nexo causal entre as atividades do mencionado dispositivo (ensino, pesquisa ou desenvolvimento institucional), a natureza da instituição e o objeto do contrato.

Enunciado 98 (AI III): Nos contratos vencidos, cuja execução se prorrogue para além do prazo contratado, sem solicitação tempestiva ou possibilidade legal de prorrogação, recomenda-se que o eventual pagamento do período sem cobertura contratual seja efetuado a título de indenização administrativa, com fundamento no art. 884 do CCB e art. 59, § único, da Lei nº 8.666/93, não obstante a necessidade de sindicância, com a recomendação de que seja prévia quando houver fortes indícios de que esta situação seja imputável à contratada.

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áREA DE INTERESSE IV – TRIBUTáRIA

Enunciado 99 (AI IV): A imunidade tributária recíproca, prevista no art. 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988, impede a exigência do ICMS e do IPI com relação aos bens e serviços adquiridos pelos Municípios, submetidos à incidência dos referidos impostos. Trata-se de impostos indiretos indevidamente suportados pelos Municípios, que são parte integrante da relação jurídica tributária, de acordo com o art. 166 do CTN. A transferência de encargos tributários da União e dos Estados-membros para os Municípios, vulnera o equilíbrio financeiro almejado pela repartição constitucional de receitas e competências, arrostando, da mesma forma, a vertente jurídico-financeira da imunidade tributária recíproca.

Enunciado 100 (AI IV): O valor de alçada, previsto no art. 34 da LEF, no montante de 50 ORTN’s, corresponde a R$ 328,27, a partir de janeiro de 2001, conforme assentado pelo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no Recurso Especial nº 607.930/DF, julgado em 06.04.2004, DJ 17.05.2004 p. 206.

Enunciado 101 (AI IV): A prescrição em matéria tributária tem os mesmos efeitos da decadência porque extingue a obrigação principal. Possibilidade de reconhecimento administrativo de prescrição ex officio por razões de eficiência e moralidade, respeitado o procedimento administrativo próprio.

Enunciado 102 (AI IV): Por se tratar de órgão diverso daquele que realiza o ato administrativo de lançamento, cabe à Procuradoria do Município, exercendo o controle de legalidade, inscrever o crédito em dívida ativa municipal, para fins de cobrança amigável ou judicial.

áREA DE INTERESSE V – COMPETÊNCIA E OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Enunciado 103 (AI V): O Termo de Ajustamento de Conduta, sem prejuízo da análise técnica dos órgãos responsáveis pelo seu cumprimento, deve ser precedido de exame do procurador municipal, que não deverá aquiescer com disposições que restrinjam a autonomia do Município.

Enunciado 104 (AI V): O Município, na qualidade de gestor da saúde pública, não é obrigado a custear perícias médicas determinadas judicialmente nos processos em que não figure como parte, por não se tratar de atribuição do Sistema Único de Saúde.

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Enunciado 105 (AI V): O direito à saúde é matéria de competência comum, cabendo ao Município a função de legislar, no que disser respeito a interesse local, a fim de efetivar de forma eficaz as diretrizes estabelecidas pelo art. 198 da Constituição Federal.

áREA DE INTERESSE VI – GESTÃO LEGAL DAS CIDADES

Enunciado 106 (AI VI): A Constituição Federal, no artigo 37, XI, compreende também a carreira do Procurador do Município. Contudo, é importante a sua referência expressa no artigo 132 da Constituição Federal, para compatibilizar o texto constitucional.

Enunciado 107 (AI VI): De acordo com o artigo 37, XI, da Constituição Federal, o teto remuneratório do Procurador do Município é o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça.

Enunciado 108 (AI VI): É obrigatória a apreciação das minutas de leis e decretos do Poder Executivo pelo Procurador do Município, em razão do controle da legalidade dos atos da administração.

Enunciado 109 (AI VI): É inconstitucional a contratação de advogado ou escritório de advocacia para prestação de serviços jurídicos de qualquer espécie, uma vez que tais serviços se inserem dentre as atividades essenciais ao funcionamento do Estado, que são de competência privativa do Procurador do Município.

Indicativos:Nº 1 (AI IV): Organizar movimento para que as Procuradorias

do Município impetrarem as ações, baseadas no enunciado n. 1, ao mesmo tempo.

Nº 2 (AI IV): Foi aprovada moção dirigida ao Fórum dos Procuradores Gerais das Capitais, tendo em vista a necessidade de monitoramento, exercido pelas Procuradorias, dos trabalhos da Reforma Tributária Constitucional, que será redigida pelo Procurador Flávio Bernardes, de Belo Horizonte.

Nº 3 (AI IV): Monitoramento das conseqüências das inscrições em cadastro de proteção ao crédito por parte da União e demais entes federativos, a fim de servir de subsídio para a discussão no próximo Congresso de Procuradores das Capitais.

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