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Revista Liberdades Edição Especial - Dezembro de 2011 ISSN 2175-5280

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Revista Liberdades - nº 8 - setembro-dezembro de 2011 2

EXPEDIENTEInstituto Brasileiro de Ciências Criminais

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RESENHAS

RESENHA DO LIVRO

O reconhecimento sócio-criminal do valor do feminino – pelo afastamento da vulnerabilidade da

mulher

Carla Pereira da Silva1

Sumário

1. Intróito à temática e à obra eleita – 2. A resenha da obra, no tom de uma vinculação jurídico-criminal – 3. Reflexões sustentadas na temática em destaque: 3.1 Estatísticas do quadro de perfil da posição da mulher; 3.2 Conjuntura brasileira e a temática da mulher – 4. Referências Bibliográficas

O Quarto Crescente:

A contestação feminina influenciando o progresso, de Ana Cristina Vargas, ditado por José Antônio, 2007.

“Lutar contra os homens era mais rápido e menos doloroso do que lutar com as idéias dos homens, essas monstruosas carcereiras de almas. Homens são seres circunscritos, materiais; idéias são o oposto. Um inimigo material ferido está fora da batalha; uma idéia atacada leva muito tempo até ser de fato erradicada e sofrer transformação. É um monstro invasor que se reproduz. Quando o julgamos morto, eis que ressuscita: apenas dormia em cantos escuros de almas ainda ignorantes, e a batalha recomeça. Enfrentá-lo exige reconhecer que há vitória na derrota, que é preciso saber perder para ganhar.

As futuras gerações recolhem o fruto da luta do homem do presente com as idéias humanas vigentes, com sua cultura, e nem sempre sabem reconhecer que eles foram regados com sangue e lágrimas daqueles que ousaram ser livres e fazerem de suas vidas anônimas alavancas do progresso. A tarefa de viver e fazer o necessário no campo do avanço das idéias muitas vezes é promover o escândalo”. (Vargas, Ana Cristina. O Quarto Crescente: A contestação feminina influenciando o progresso. Ditado por José Antônio, pp. 295-296).

A média de anos de estudo da mulher sabe-se em torno de 7,3, enquanto que

1 Bacharela em Direito pela Universidade de São Paulo.

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a média masculina sabe-se 7 anos.

O rendimento médio da mulher é, em média, 40,2% menor do que o rendimento masculino.

Apenas 14 mulheres no mundo ocupam os cargos de chefe de Estado ou chefe de Governo.

1. Intróito à temática e à obra eleita

A obra eleita para análise e vinculação com as temáticas atinentes ao sistema criminal tem por título a referência a uma das fases do ciclo de lunação: “O Quarto Crescente”, expressão cujo direcionamento literário particular apresenta-se no potente subtítulo: “A contestação feminina influenciando o progresso”. Trata-se de obra literária produzida no gênero romance cuja temática de fundo principal pode ser resumida na abordagem do elemento feminino, em suas especificidades, e das transmutações de seu posicionamento em sociedade.

Como um segundo elemento importante para elucidação nesta resenha, admite-se a colocação do fator da religiosidade em plano secundário, independentemente de as conclusões da obra se relacionarem a respostas direcionadas a perguntas tidas como fundamentalmente transcendentes. Apesar da adoção deste posicionamento, com o intuito de que se realize uma avaliação da temática em sua vinculação com o sistema de criminalização e de caracterização da vulnerabilidade, entende-se relevante a menção ao fato de que, na América Latina, seu sincretismo primordial, encarrega-se de sobrepujar grandes dificuldades no relacionamento entre sociedade e o transcendente. Inclusive, também calcado no fenômeno a que se fez menção, o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, em linhas bastante amplas, coloca um dos pilares de seu estudo da criminologia em sua perspectiva realista-marginal para acesso à estrutura e ao instrumental da criminologia da vulnerabilidade.

Antecipando a vinculação empreendida entre os universos literário e jurídico, revela-se assento na fundamentalidade da problemática suscitada pela obra em seu relacionamento com um dos que, é possível considerar, mais complexos desafios da sistemática penal. Tal óbice consiste no estabelecimento, em sede de funcionalidade sistêmico-multiagencial da criminalização, do ponto de equilíbrio entre a compatibilização da nova modelagem da visão do feminino, no caminhar histórico da humanidade, empoderando-a em seu posicionamento individual e social como agente atuante e transformador nas relações intra e intersubjetivas.

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Em contraposição à primeira face do desafio, ao mesmo tempo, preconiza-se um esforço pela realização da garantia de respeito às peculiaridades, por conseguinte, à diferença caracterizadora do Feminino, sem aprofundar a vulnerabilidade a ela associada tradicionalmente, conforme temática da obra eleita.

Preconiza-se, em última instância, portanto, o aprofundamento do liame entre a sistemática criminal e suas arquiteturas constitutiva, funcional e institucional e o Pilar Feminino na Sociedade e na História da Humanidade, para o qual se faz imprescindível, ainda, grande esforço de empoderamento, dadas a Culpa e a Submissão advindas de uma Moralidade Unissexista no sentido escalonal/hierarquizador, que tradicionalmente se atribui a uma pretensa natureza da Mulher. O discurso aqui empreendido encontra sentido no momento em que se admite como pressuposto o fato de que a operacionalidade dos sistemas e de suas instituições é conduzida por seres humanos, prática esta, portanto, responsável pela suscitação das dificuldades e desdobramentos das dificuldades e conflitos ínsitos aos vínculos intra e intersubjetivos.

A fertilidade da imaginação humana é uma benção ou uma maldição, tudo depende de como é usada. Pode reproduzir maravilhas a serviço da inteligência equilibrada, mas pode, também, produzir da loucura às mais sórdidas intrigas. E uma das mais tristes peças que ela prega em seu desavisado possuidor é a crença naquilo que imaginou. Para ele, o fruto da imaginação é realidade, transferida com grande facilidade para o domínio das suas certezas. Triste domínio que fecha as portas do crescimento, da discussão, do questionamento, do intercâmbio e mesmo da necessária divergência. Quando o sujeito se acha imbuído de certezas, sua visão mental é limitada, seu aprendizado é quase nulo. Por isso, é fundamental que saibamos conhecer e dominar a ação de nossa mente, reconhecendo o poder da imaginação de tornar real ao seu detentor que é uma miragem. Essa distorção da visão dos acontecimentos, dos fatos, e até dos conhecimentos que a imaginação opera, é a maior razão para que se busque conhecer esse poder da imaginação de que somos dotados, fazendo todos os esforços no sentido de dominá-las e dar-lhe boa direção, para que não venhamos a crer em nossas próprias miragens e mentiras (Vargas, Ana Cristina. O Quarto Crescente: A contestação feminina influenciando o progresso. Ditado por José Antônio, p. 327).

2. A resenha da obra, no tom de uma vinculação jurídico-criminal

No que toca ao cenário da obra resenhada, sabe-se como a Espanha

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muçulmana no período histórico conhecido como Alta Idade Média. A Idade Média é considerada como uma Era da história da humanidade, perdurando entre os séculos V e XV, com início estabelecido pelas invasões dos povos bárbaros ao Império Romano, fragmentando-o em estruturações sociais diversificadas, segundo a organização do povo predominante na região. Em grande parte do território europeu, a invasão germânica culminou na formação de feudos – circunscrições territoriais dotadas de condições particulares de estruturação sócio-político-econômica – gestando a quase generalização de tais características o que fora denominado pelos estudiosos da História de sistema feudal.

Todavia, de maneira mais próxima ao que se refere ao livro aqui analisado, é a Europa islâmica o cenário da obra, ou seja, a porção deste continente que presenciara o estabelecimento do povo árabe como predominante determinador da estrutura fundamental de operação sócio-político-econômica da região da península ibérica, tendo tal povo exercido o domínio desta região por aproximadamente oitocentos anos, entre os séculos VIII (ano 711 d.c.) ao ano de 1492. Neste fatídico ano, foram consideradas finalizadas as lutas de Reconquista nas Cruzadas empreendidas pelos cristãos em face dos árabes estabelecidos na região.

O período da Alta Idade Média estende-se dos séculos V (ano de 476 d.c.) ao X e sabe-se inserida neste intervalo a história de Layla e sua família muçulmana em meio às lutas na Península Ibérica, entre as correntes sunita e xiita de gerenciamento e interpretação dos preceitos islâmicos, especialmente na Espanha, denominada pelos árabes de Al Andaluz. Layla, a nascida à noite, irmã gêmea de Karim, o precioso, é filha de Farah e do emir Nasser Al Gassim (dotado de um título de nobreza), e recebe educação privilegiada em diversos ramos do conhecimento humano, assim como, em sua família, encontra um espaço de liberdade para desenvolver suas reflexões e comportar-se de acordo com os direcionamentos que estas ofereciam. Diferentemente, por conseguinte, da grande maioria das mulheres muçulmanas da época, seu ambiente familiar peculiar lhe oferece a oportunidade de dialogar e questionar fundamentos tradicionalmente aceitos em seu contexto, especialmente no que se refere à posição do gênero feminino na sociedade e nas decisões a serem tomadas.

Em virtude esta ambientação favorável a suas indagações filosóficas sobre a existência, as formas de relacionamento humano e intergênero, comunica-se com diversas pessoas, dotadas de diferentes pensamentos, posições e, inclusive, sexo e religião, situação bastante rara à época no que atina a uma mulher, especialmente no esplendor de sua juventude, como Layla. Em

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acréscimo às peculiaridades de sua criação, pode-se sustentar o intenso contato com seu primo, Zafir, que lhe transmite diversos conhecimentos que possui em variados âmbitos, culminando na abertura para o acesso de Layla de uma gama de informações ocultadas das mulheres da época, em particular, conhecimentos de filosofia, astronomia, trato com aves e cavalos, assim como técnicas de luta.

O contato com as pessoas, apesar de restrito, em grau muito inferior ao nível de limitações usualmente impostas, confere-lhe oportunidades de descobrir-se e revelar suas convicções e visão sobre a vida e as relações humanas. Em uma das ocasiões em que seu pai estabelecia contatos negociais, Munir Al Jerrari desenvolve uma fixação por Layla e realiza um pedido de casamento que por ela não é aceito quando da consulta de seu pai. O resultado é o estabelecimento de uma trama por Munir para raptar Layla, dado o seu inconformismo com a dispensa por parte da jovem e de sua família. Uma vez raptada, Layla, segundo a tradição do povo árabe, presumidamente haveria consumado as núpcias e, portanto, lhe restava a aceitação da união em casamento ou um pedido de apedrejamento por parte de seus familiares.

O sucesso do rapto não se prolonga por muito tempo, considerando que as técnicas de luta bem lhe serviram, empreendendo uma fuga que resulta na chegada a uma pequena igreja cristã com uma construção singela a ela acoplada, sendo recebida por Irmão Leon, um eclesiástico pertencente à ordem franciscana, que, intensamente, lhe concede o contato com aspectos comuns de sua religião cristã e os preceitos filosóficos da religião muçulmana. Layla toma contato, durante o tempo em que se isola naquela igreja, perdida do destino de seu lar, com questões fundamentais de todo ser humano.

Durante este mesmo período, paralelamente, a residência luxuosa e praiana de Layla na cidade de Cádiz Al Gassin é invadida por muçulmanos xiitas do norte da África, liderados militarmente por xeique Omar Almustadi, matando seu pai, grande parte das pessoas que lá estavam no momento e estabelecendo um ponto de apoio na guerra travada. Quando Layla é reencontrada por Kierám Simsons, um mercenário cristão que realiza serviços aos emires árabes estabelecidos na Espanha, escolhe ser levada para a base de apoio de guerra de seu povo, onde se encontram seu irmão, Karim, e o Califa de Córdoba, Jamal Al Hussain, na tentativa de arquitetar um plano de reconquista do território sunita.

Inicialmente disfarçada em trajes masculinos, revela-se como Layla, propondo auxílio na retomada no território perdido, sendo oferecida como escrava ao Sultão Kaleb – líder político invasor – sofrendo diversas espécies de abusos e tratada com violência ímpar e violadora do íntimo do Feminino. Após um tempo de convivência interna nos domínios xiitas, local que antes era seu lar, oferece

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informações e apoio decisivos na retomada pelos sunitas, matando o sultão e retornando junto aos seus.

Independentemente do triunfo de Layla, sua condição de escrava permanece, obtendo a liberdade apenas em decorrência da aceitação de casamento com o Califa de Córdoba. Em sua mudança para a nova vida convive com outras esposas do califa, observando o quanto cada uma daquelas mulheres esforça-se para, na atenção dada por seu marido, destacar-se como esteio reprodutor de uma casa. Seu comportamento distinto, dada sua personalidade desafiadora, inspira curiosidade e sentimentos negativos, todavia, seu maior desafio é autorização necessária de procedimento extremamente doloroso e violento para a retirada de uma criança morta do ventre de uma das demais esposas do Califa – Zahara – com o intuito de salvá-la, pois seria a sua única oportunidade de vida.

Neste episódio, percebe que são complexos os sentimentos e as forças que movem os seres humanos e, portanto, seus conflitos, podendo os mesmos gerarem vida e morte. Após um tempo, estabelece-se naquela nova vida, colocando-se como Mulher – jovem, sábia, mãe, esposa – valorizando-se através da exposição e da vivência de sua visão de vida.

3. Reflexões sustentadas na temática em destaque

O direito à diferença é uma ampliação, no interior da cultura do direito, da afirmação de forma de luta pelo reconhecimento. A ampliação elástica do conceito de direito, para abranger também a idéia de um direito à diferença, consolida a ambição de diferenciação, dentro de sociedades (...) que tendem a produzir homogeneização e padronização. É de modo reativo, portanto, que a luta pela diferença se inscreve, dialeticamente, ao lado de uma luta não interrompida pela igualdade.

Por isso, o direito à diferença se distingue do direito à igualdade. Percebe-se que o mero decreto de igualdade de todos perante a lei não salvaguarda a possibilidade de realização do reconhecimento pleno, na vida social. Percebe-se, também, que esta versão da igualdade está falseada pelo pressuposto literal de que a justiça como igualdade de direito é suficiente para provocar um equilíbrio nas relações intersubjetivas (Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Reconhecimento e Direito à Diferença: Teoria Crítica, Diversidade e a Cultura dos Direitos Humanos. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, jun./dez. 2009, p. 553).

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O conjunto de eventos narrados é relevante para o estabelecimento de vinculação com um sistema de sanções mais graves ao ser humano em sua versão normatizada atual – o sistema criminal – em decorrência do pressuposto adotado de que, em última instância, a linguagem jurídica, especialmente a empregada na operacionalidade criminal, é determinada em grande instância como culminância do perfil de comportamento dos operadores selecionados por suas agências e, também, da(s) categoria(s) de pessoas selecionadas pela intervenção penal. No fundo, em outras palavras, ocorre, com relevância ímpar e inquestionável, a análise dos padrões de comportamento humano e, ainda no mundo hodierno, a diferenciação realizada entre os gêneros feminino e masculino, pois são estes importantes critérios na função penal.

No ponto referido, reside o liame entre a prática criminal, a posição do Feminino, temática eleita como protagonista nesta resenha crítica, e a imprescindibilidade do reconhecimento da Diferença em associação a uma interpretação revisitada da visualização e da operacionalização do conceito de igualdade juridicamente disposto. O equilíbrio da atuação criminal preconiza-se, dadas as variantes do reconhecimento do quadro comportamental modificado das Mulheres na sociedade hoje, assim como a compreensão do papel de vulnerabilidade atribuído erroneamente ao gênero feminino, em uma associação desmedida de culpa à mulher por fenômenos aos quais não é a ela conferido poder de ingerência algum ou suficiente.

O quadro estatístico da situação precária da mulher no mundo atual, século XXI, coloca-se como demonstração da vulnerabilidade a que é relegada a mulher, independentemente de ocorrer, de forma paralela, seu empoderamento decorrente de um esforço histórico, salientando que a relevância e a repercussão conferida à posição da mulher na sociedade resulta, exatamente, desse fenômeno de assunção de responsabilidades e posições de decisão, mundialmente, por parte das mulheres.

Embora haja configurado um direcionamento rumo à transformação da posição de vulnerabilidade atribuída ao Feminino e ao que ele representa em prol de uma racionalidade científica, objetiva, neutra e imparcial, a discussão coloca-se ainda hoje sobre a atuação do sistema criminal em relação às mulheres, dado o crescimento fático de sua seleção criminal, em conjunto com o fato da construção do aparato prático-jurídico do maquinário criminal datar de tempos distantes, em que não se estabelecera, em grau bastante menor/ínfimo, o direito ao Feminino.

3.1 Estatísticas do quadro de perfil da posição da mulher

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O 4º Relatório Nacional de Direitos Humanos – NEV-USP (2010)2 – esboça, dentre suas preocupações principais, diante do diagnóstico realizado no que atine ao quadro de efetivação dos direitos humanos no Brasil, a questão da vulnerabilidade que atinge as Mulheres. A realidade do quadro estatístico tem apresentado, ao longo dos levantamentos realizados pelos relatórios da série mencionada, que continuam a ser observadas carências graves no que se refere à problemática, como, por exemplo, pode-se aduzir do fato de que as mulheres compõem 43,7% da população economicamente ativa no país, no conjunto da população com idade de 15 anos ou mais, sendo a média de anos de estudo dos homens igual a 7 anos, enquanto que a média feminina constitui 7,3 anos, ao mesmo tempo que se observa que o rendimento médio mensal da população feminina economicamente ativa chega a um valor 40,2% menor que a mesma variável masculina.

Conjuntamente aos dados revelados precedentemente, fora lançado, no ano de 2010, um Relatório compilado pela Organização das Nações Unidas – ONU – intitulado As mulheres do mundo de 2010: Tendências e Estatísticas, responsável por apresentar uma gama bastante significativa a respeito do quadro de caracterização da posição da Mulher no mundo atual. Para ilustração, menciona-se os temas seguintes:

1. Quanto ao Poder e à Tomada de decisões, observou-se que se tornar chefe de estado ou de governo se mantém difícil para as mulheres, reconhecendo-se que somente 14 mulheres no mundo atualmente ocupam tal posição. Além desse dado, este gênero é muito mal representado em postos privados e públicos de comando ao redor do mundo, pois somente 1 em cada 6 gabinetes ministeriais são ocupados por mulheres, assim como somente 13 das 500 maiores corporações do mundo possuem como chefe executiva uma mulher. Por fim, apenas em 23 países ao redor do mundo as mulheres representam uma massa crítica no parlamento, ou seja, compõem, ao menos 30% do total de integrantes.

2. Quanto à Educação, 2/3 dos 774 milhões de adultos iletrados ao redor do mundo são mulheres, a mesma proporção por aproximadamente 20 anos. 72 milhões de crianças na idade de escola primária não a frequentavam, e, deste total, 39 milhões, ou seja, 54%, são meninas. Um quarto dos pesquisadores científicos no mundo são mulheres, número que, apesar de baixo, representa um aumento quando comparado a dados precedentes.

3. Quanto ao trabalho, ainda são detectadas segregação ocupacional e

2 Para consulta completa do Relatório, observar endereço: http://www.nevusp.org/portugues/.

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lacunas no salário por gênero em todas as regiões analisadas do mundo. As mulheres passam, ao menos, 2 vezes mais tempo do que os homens no trabalho doméstico, assim como, se considerada toda espécie de trabalho – pago ou não – as mulheres trabalham mais horas do que os homens. Apenas metade dos países do mundo observa a duração mínima recomendada para a licença-maternidade.

4. Quanto à violência, trata-se a violência contra a mulher de um fenômeno mundial, em suas diferentes formas – física, sexual, psicológica e econômica – fora e dentro de casa. Ainda considerada a evolução na obtenção de estatísticas, são fortemente limitados os empreendimentos de quadros sobre a situação, uma vez que definições e classificações estatísticas ao redor do mundo exigem, atualmente, um maior trabalho de construção e harmonização. Um dos elementos mais surpreendentes dentre as considerações a este respeito consiste na informação de que, em muitas regiões do mundo, tradições históricas longínquas pressionam consideravelmente as mulheres a aceitar abusos.

5. Quanto à pobreza, as estatísticas demonstram que lares formados por mães solteiras e suas crianças possuem maior probabilidade de serem pobres do que aqueles nos quais há pais solteiros. No grupo de pessoas de baixa renda em idade avançada, há uma participação imensa por parte das mulheres. Menos mulheres do que homens possuem salários nos países menos desenvolvidos e, além desse dado, complementa-se com o fato de que uma porção significativa de mulheres casadas não possuem influência na forma como são empregados os recursos da casa.

3.2 Conjuntura brasileira e a temática da mulher

No que está atinente ao contexto brasileiro, o texto do Código Penal iniciara sua vigência para a determinação jurídica do ambiente criminal no ano de 1940, como decorrência do Decreto-lei 2.848, contando, consequentemente, em maior intensidade na época, com a informação de um espírito anterior aos resultados de uma grande efervescência feminista nas décadas de 60 e 70 daquele século (XX). O que se pretende salientar é a importância da consciência sobre a introjeção de um paradigma conservador no que se refere às mulheres na estruturação do sistema de criminalização, apenas paulatinamente alterado ao longo dos anos de vigência do referido diploma penal.

A conscientização do paradigma estruturador do Código Penal, mesmo

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considerando as alterações de sua Parte Geral em 1984, pode auxiliar ainda hoje na identificação de categorias retrógradas, superadas e na materialização jurídico-normativa das transformações, substratos e consequências, concomitantemente, de novas atitudes no plano fático. O sistema paradigmático-típico em que se baseou a construção do maquinário de criminalização envolve um contexto no qual muitas das discussões a respeito da posição da mulher eram desconsideradas.

O desembargador gaúcho amilton Bueno de CarValho aponta, por exemplo, a jurisprudência estabelecida até pouco tempo sobre a violência em face da mulher, especialmente aquelas ocorridas no âmbito do lar. No universo jurisprudencial, calcado nas categorias normativas incorporadas pelo Código Penal, revela-se uma tolerância da existência de abusos de toda sorte dentro do âmbito familiar, ou melhor, perpetrados pelo marido em face de sua esposa, exatamente porque, segundo orientação modificada apenas em meados da década de 90 do século XX, em um primeiro momento, o julgo masculino sobre a mulher considerava-se exercício regular de direito e, em segundo, aos depoimentos da mulher não se creditavam veracidade no sentido da prova da violência.3 A instituição da família patriarcal era tida como passível de tutela em detrimento do reconhecimento de abusos perpetrados contra a mulher, ocultados pela intimidade caracterizadora da família.

Somente, e este aspecto é de impronunciável relevância, no ano de 2005, com a Lei 11.106, foram empreendidas modificações estruturais na nomenclatura de importantes tipos penais quanto à concepção valorativa de que eram eivados seus elementos normativos, mudança esta apenas consolidada no âmbito normativo em decorrência da Lei 12.015, no ano de 2009. No que se refere às modificações referidas, mencionam-se os principais aspectos de transformação atinentes à temática presentemente tratada nos artigos do Código Penal de números 107, 215, 217 e 219.

Em um primeiro bloco de evolução jurídico-normativa, pode-se dizer que os artigos 215, 217 e 219, sobrevivente destes, após 2005, apenas o artigo 215, sendo descriminalizada a conduta constante do tipo responsável pelo tratamento da Sedução. Nos três dispositivos, a ideia tutelada neste conjunto de normas – relacionada ao título à época denominado por Crimes contra os Costumes – revelava-se pela reiteração das expressões “mulher honesta” e “mulher virgem” como elementos normativos do tipo. Tais utilizações são demonstrações da visão e, consequentemente, do papel da mulher, protegidos na época por via do sistema criminal. O Feminino era tutelado em uma versão que pode ser entendida como

3 Carvalho, Amilton Bueno de. Direito Alternativo – Teoria e Prática. 5ª edição, 2004, pp. 104-114.

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simplista, redutivista, uma vez que limitava a proteção da mulher a determinados atributos associados à adequação de conduta sexual.

Em outras palavras, havia uma saliência à eleição de comportamentos atinentes ao campo sexual particular da mulher que a caracterizavam para efeitos de tutela jurídica. Caso, por conseguinte, fosse constatada a incompatibilidade entre a atitude feminina considerada penalmente correta, tal mulher não comporia o seleto grupo de pessoas passíveis de merecerem a atuação criminal a seu favor. Elegiam-se, a priori, parâmetros específicos de emprego dos atributos e desdobramentos do Feminino passíveis de dignificarem, portanto, uma mulher, em detrimento de quaisquer outras opções de comportamento.

Há significativamente pouco tempo, as modificações foram realizadas de forma consolidada no Código Penal brasileiro, especialmente quando se compreende o tempo histórico. Embora, entretanto, considere-se que o processo de adaptação das concepções originárias do referido diploma penal se iniciou anteriormente às mencionadas transformações – por iniciativas doutrinárias e jurisprudenciais, conforme ilustração posterior – a transmutação paradigmática entre os ideários valorativos relacionados ao Feminino, em decorrência do pouco tempo histórico referido, encontra-se em pleno andamento, para incentivo do qual o presente texto se coloca.

Em um segundo bloco de modificações, aponta-se o casamento da mulher vítima de violência com seu agressor ou com terceiro como modalidade de extinção da punibilidade. Essa supressão implica a saliência do contexto de violência em detrimento da importância do casamento da mulher, mesmo desvirtuada dos valores eleitos como aceitos.

Na análise, empreendida nesta sede, a respeito dos desdobramentos oriundos da temática da mulher e de sua posição no universo das relações sociais e sua forma de incorporação normativa, especialmente, de cunho jurídico, a saliência é conferida precisamente para um elemento também ressaltado por Amilton Bueno em sua reflexão sobre o posicionamento da jurisprudência. O relevo realizado encontra-se no vínculo entre a atribuição de fragilidade e vulnerabilidade às características do Feminino, especialmente, apesar de equivocadamente pela pureza excessiva da afirmação, dissociadas de uma pretensa racionalidade, atributo de legitimidade, hodiernamente.

O atributo da Vulnerabilidade, relacionado ao Feminino, constitui-se argumento para a realização de uma tutela da mulher, uma vez considerada sua inabilidade social, desprovida de características imprescindíveis à autodefesa, introjetando o conjunto de elementos femininos no rol de fragilidades. É possível legitimar

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categorias que associam a mulher à materialização do objeto de direitos, longínqua da consciência necessária à assunção da posição de sujeito de direitos, ativa, portanto, nas relações em que se envolve.

A obra utilizada como substrato literário à discussão sobre a Posição do Feminino na sociedade e, consequentemente, no âmbito criminal intenta potencializar a mulher em seu papel de sujeito de direitos, e, portanto, salientando as responsabilidades que assume, considerando o pressuposto da mulher como sujeito criativo, pensante, reflexivo, passível de posicionar-se como ser humano, indivíduo e agente social, em contornos especiais, como decorrência dos elementos que caracterizam a sua feminilidade. Não há desonra em colocar-se como Mulher e na perspectiva feminina diante do mundo, assumindo responsabilidades de forma equilibrada, razoável, empoderando-se, concomitantemente, à identificação dos obstáculos existentes à assunção da posição referida.

Não se trata de assumir o Feminino em sua Vulnerabilidade. O que se destaca é o fato de que este é um papel à mulher atribuído historicamente, e que os elementos que compõe, segundo análises típicas, uma gama de características femininas não a colocam em posição de fragilidade. Em continuidade, a conflituosidade interna considera-se algo associado à condição humana e, portanto, não se restringe ao universo feminino, salientadas as perguntas fundamentais relacionadas ao modo humano de estar no mundo, conforme aponta Eugenio Raúl Zaffaroni, destacando a relação mais harmoniosa da América Latina com tal problemática.4

O título do livro eleito – “O Quarto Crescente” – revela exatamente a temática da mudança, da transformação. Na realidade, mais profundamente, como se observou até o momento, relaciona-se à tomada de consciência de que a Mulher exerce um papel a ela designado por tradições consolidadas historicamente, mas que, paradoxalmente, não se trata de identificações racionais, científicas, de tendências femininas. O desafio consiste no encontro do ponto de virada de perspectiva por parte da sociedade, compreendendo o fato de que o quadro de condições mundialmente conhecidas do Feminino não deslegitimam seu potencial, mas derivam de reiterações de comportamentos opressivos, sustentados pela conformação do ponto de vista do Masculino, que invariavelmente contaram, até pouco tempo, especialmente dentro de referências históricas, a história da humanidade.

Em complementação, menciona-se algo de importância cabal inclusive na explanação do porquê do prolongamento histórico da condição de 4 Zaffaroni, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen, 1988, pp. 89-90.

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vulnerabilidade da Mulher. Consolidou-se a disseminação de um fenômeno que pode ser explanado como autocolocação da mulher em posição de fragilidade, em outras e melhores palavras, o direcionamento do bem-estar e do sucesso, historicamente ensinou-se como sendo associado a atributos exclusivamente, apesar de ilusoriamente, masculinos.

À mulher, foram reduzidas as fontes de autoconhecimento e de potencialização de seus atributos, paralelamente, recompensando-a por comportamentos ajustados a padrões conservadores de referência masculina e distanciando-a da perscrutação de seu interior para abertura do acesso a seus elementos de caracterização, tudo o que modula a perspectiva de vida de um ser humano em sua interação interna e externa, individual e socialmente.

Para o empreendimento do processo de empoderamento do Feminino e da consciência de suas potencialidades e da coexistência harmônica e paritária com o Masculino, não são excluídas as análises das condições em que se encontra a mulher hodiernamente, ao contrário, tal enquadramento entende-se fundamental, na medida em que concretiza os fenômenos de imposição da vulnerabilidade aqui abstratamente referidos.

A Mulher conquista, paulatinamente, um espaço como ser humano, sujeito de direitos, na sociedade e em seu próprio conceito. Suas responsabilidades com sua feminilidade podem ser assumidas, entretanto, concomitantemente, para uma modificação efetiva do quadro de vulnerabilização. Faz-se imprescindível o conhecimento do Feminino e de suas condições caracterizadoras e impostas.

O tratamento igualitário entre Mulheres e Homens implica o reconhecimento da necessidade de modificação das estratégias e modos de abordagem da Mulher em sede jurídica, especialmente aquela empreendida pelo sistema jurídico-criminal, como se sabe no momento atual da compreensão de conceitos, mas quer-se deixar claro. A exposição da violência sofrida não pode ser tomada por agentes do sistema criminal como confirmações de um perfil frágil sem que se saliente o quadro de abuso, de imposição a que sua personalidade dignamente humana dá direito.

A percepção da gravidade e da ausência de legitimidade do tratamento da mulher com base na violência mostra-se historicamente recente. Na sociedade atual, segundo os números de uma pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão no ano de 2002, a violência contra a mulher dentro e fora do seio familiar coloca-se como a principal preocupação relacionada à mulher, com 30% das escolhas realizadas. Nesta e em outras pesquisas, realiza-se um apontamento de extrema relevância para a questão da modificação do quadro de abuso em face

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da mulher: o acesso dos filhos a um contexto dentro e fora de casa caracterizado pela violência, pelas agressões como forma de abordagem de questões.5

A relevância da preocupação, no que se refere a esta problemática, reside na compreensão de que a violência é algo que se aprende e o contato frequente, dentro ou fora do lar, dos jovens com tal atitude mostra a banalização de um comportamento corriqueiro, repetido, habitual, passível, portanto, em provocar uma dificuldade na identificação de contextos de abuso, acrescentando a informação de que, em 35% das histórias de mulheres que sofrem violência, ocorre o início deste cenário cruel até que elas completem 19 anos, dados de uma pesquisa do DataSenado do ano de 2007.6 Resultantes, por fim, também desta pesquisa foram os dados alarmantes sobre o fenômeno disseminado da sensação de desrespeito que possui grande parte da população feminina no país.

Nesta toada, é fundamental fazer referência a instrumentos utilizados por políticas públicas de tratamento da problemática da violência contra a mulher que são os centros de referência ou de atendimento: Serviços de Saúde especiais, como, por exemplo, o Programa Bem-me-quer na cidade de São Paulo, para oferecimento de ambiente e elementos de cuidado à saúde, específicos ao contexto de violência sofrida pela mulher e pelas crianças de ambos os sexos;7 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs; Defensorias Públicas da Mulher; Casas-abrigo; projetos de lei, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06).

Apenas 8% das mulheres entrevistadas sentem-se tratadas com respeito, enquanto que 42,3% e 49,6% se dizem, respectivamente, respeitadas às vezes ou não respeitadas. Em complementação, os dados demonstram que a sociedade, com 38,3%, é o ambiente no qual se sentem mais desrespeitadas as mulheres, seguido por 31,6% na família e por 16,7% no trabalho. Por fim, 44,5% das mulheres ainda não veem as leis brasileiras como passíveis de proteção às mulheres, embora reconheçam o estímulo a denúncias, com 36% das entrevistadas entendendo que elas são os mecanismos mais eficientes de coibição da violência, associado, segundo 21% do mesmo grupo, ao incremento de campanhas pelos direitos das mulheres.

Em conclusão ao que fora abordado no presente texto, entende-se complexa a

5 Observar, para maiores detalhes e aprofundamento da pesquisa, o site: http://copodeleite.rits.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/noticias.shtml?x=83.

6 Observar, para maiores detalhes, a mesma referência anterior.

7 Para maiores informações sobre a estrutura do projeto e sobre dados estatísticoss recolhidos, consultar: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=200107&c=560.

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composição dos elementos, a princípio, antagônicos, para o avanço na construção paulatina do Direito à Diferença da Mulher, em sua luta por reconhecimento e valorização como Sujeito de Direito em suas peculiaridades. Observar a história da humanidade para identificar a perspectiva através da qual fora contada, assim como os pressupostos de condicionamento da mulher, colocada na posição de vítima vulnerável, elucida a limitação aos potenciais particulares do Feminino em prol de padrões exógenos, deturpadores e, portanto, opressores de caminhos específicos.

Não se intenta apontar a impossibilidade de compatibilização entre o Feminino e o Masculino, ao contrário, a construção humana do direito ao reconhecimento da própria multifacetária humanidade perpassa esta base de sustentação. Todavia, compreende-se que somente por via da compreensão da posição de submissão de atributos a uma construção-paradigma de adaptação a ser historicamente empreendida pelas mulheres é que será possível as empoderar no sentido de se mostrarem na defesa do que nelas há de Feminino.

“Uma sociedade socializada com estas preocupações cultiva o espírito necessário para o exercício de um pluralismo democrático, superador do homogeneísmo moderno, ordenador, e totalitário, para o qual vale a equação mortífera de Auschwitz como lugar de conversão do inconversível (...).

Onde não há espírito tolerante, compreensão e diálogo, há imposição, castração, limitação, restrição, determinação. Os resultados deste processo somente podem ser o ódio, a competição, a rebelião, a eliminação, a opressão, e o totalitarismo”. (Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Reconhecimento e Direito à Diferença: Teoria Crítica, Diversidade e a Cultura dos Direitos Humanos. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, jun./dez. 2009, p. 561).

Diante da perspectiva adotada neste trabalho, pode-se mencionar o fato de que o sistema penal, sua existência e prática, trabalha com a eleição de valores, consubstanciados, na linguagem dogmática específica, na expressão bens jurídicos, e, consequentemente, as valorações realizadas no âmbito jurídico-normativo são inerentes à sistemática criminalizadora. O mote de atuação defendido pelo presente texto leva em consideração o intrínseco relacionamento entre eleição de valores fundamentais pela sociedade e atuação criminal, dentro de uma perspectiva garantista, ao menos enquanto o sistema penal ainda sobreviver, e pressuposta tal opção pela sociedade preconiza a importância da consideração nevrálgica do direito à diferença, no âmbito da luta pelo reconhecimento do valor fundamental da Mulher do que há de Feminino em todo o ser humano, independentemente de determinado parâmetro de comportamento historicamente determinado como adequado.

O reconhecimento do Feminino, por conseguinte, pressupõe, imprescindivelmente, para que seja efetivo, a identificação e a compreensão das condições de vitimização e vulnerabilização, não inerentes, mas que

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historicamente foram atribuídas ao Feminino, como papel socialmente aceito, inclusive sendo pontuado, dentre o quadro estatístico expresso neste texto, o fato de que em muitas regiões do mundo a Mulher é pressionada a aceitar e a aderir a papéis de submissão para, assim, sentir-se pertencente à normalidade, ao comum agregado social. Por fim, clama-se por um sistema de criminalização pautado nas questões mencionadas, em um empreendimento intenso de valorização do Feminino e de suas peculiaridades sem que, com isto, seja vitimizada ou vulnerabilizada a tal conjunto de atributos – a Mulher – dada a consideração de que se constituem as posições de fragilidade papéis social e historicamente atribuídos ao Feminino.

4. Referências Bibliográficas

Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Reconhecimento e Direito à Diferença: Teoria Crítica, Diversidade e a Cultura dos Direitos Humanos. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, jun./dez. 2009.

CarValho, Amilton Bueno de. Direito Alternativo – Teoria e Prática. 5ª edição, 2004.

Vargas, Ana Cristina. O Quarto Crescente: A contestação feminina influenciando o progresso. Ditado por José Antônio. São Paulo: Boanova, 2005.

Zaffaroni, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen, 1988.