RevistaAbratef-V4-Pag-45-56 (1) Obesidade Na Infância e Interações Familiares

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 45 Obesidade na Infância e Interações Familiares: Uma Trama Complexa  V alér ia T assara 1  Resumo  Este estudo teve como objetivo aprofundar a compreensão das interações interpessoais das crianças obesas nos contextos familiar e social. Foi utilizada a metodologia qualitativa de pesquisa, adotando-se uma fundamentação teórico- metodológica apoiada na teoria sistêmica. Utilizou-se os seguintes instrumentos: entrevistas de aprofundamento; técnica do genograma e desenhos da imagem corporal. Os sujeitos da pesquisa foram crianças e seus familiares (pai, mãe e irmãos), atendidos pelo serviço de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais ( UFMG). Nos resultados evidenciou-se relevantes indicadores: os segredos familiares das histórias de origem das figuras  parentais; a relação emaranhada mãe/filhos que indicou certo distanciamen to dos  pais na relação com as crianças; os fenômenos transgeracion ais em seus aspectos biológicos e simbólicos da obesidade em três gerações dos grupos familiares estudados ; os mitos e as lealdades familiares, os quais apresentaram-se como um suporte da identidade pessoal e familiar no ser gordo. Esses sinalizadores foram fundamenta is para a compreensão das dificuldades do processo de diferenciação dessas crianças, ou seja, a possibilidade de o emagrecimento ser vivenciado como uma ameaça aos processos identitários do grupo familiar. Conclui-se que este estudo mostrou a importância de contextualizar a obesidade na infância, desfocando a criança da autorresponsabilidade pelo problema e ampliando para o contexto sociofamiliar. A prática desta pesquisa indicou outras possibilidades de intervenção, ressaltando a atuação interdisciplinar como postura profissional relevante no contexto do tratamento da obesidade na infância. Palavras-chave:  obesidade; criança; psicologia; família. Overweight in Childhood and Family Interactions:  A Comp lex Pattern  Abstract  This study aimed to understand obese children’s interpersonal interactions in family and social contexts. A qua litative methodology of research was used and the methodological and theoretical support was based on the systemic theory. 1 Coordenadora do Setor de Psicologia do Hospital São Camilo-MG. Especialista em Atendi- mento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais - IEC-PUC Minas e Mestre em Ciências da Saúde- UFMG. Revista Brasileira de Terapia de Família, 4(1), julho, 2012 (45-56)

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Artigo Infância

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    Obesidade na Infncia e Interaes Familiares: Uma Trama Complexa

    Valria Tassara1

    Resumo

    Este estudo teve como objetivo aprofundar a compreenso das interaes interpessoais das crianas obesas nos contextos familiar e social. Foi utilizada a metodologia qualitativa de pesquisa, adotando-se uma fundamentao terico-metodolgica apoiada na teoria sistmica. Utilizou-se os seguintes instrumentos: entrevistas de aprofundamento; tcnica do genograma e desenhos da imagem corporal. Os sujeitos da pesquisa foram crianas e seus familiares (pai, me e irmos), atendidos pelo servio de Nutrologia Peditrica do Hospital das Clnicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nos resultados evidenciou-se relevantes indicadores: os segredos familiares das histrias de origem das figuras parentais; a relao emaranhada me/filhos que indicou certo distanciamento dos pais na relao com as crianas; os fenmenos transgeracionais em seus aspectos biolgicos e simblicos da obesidade em trs geraes dos grupos familiares estudados; os mitos e as lealdades familiares, os quais apresentaram-se como um suporte da identidade pessoal e familiar no ser gordo. Esses sinalizadores foram fundamentais para a compreenso das dificuldades do processo de diferenciao dessas crianas, ou seja, a possibilidade de o emagrecimento ser vivenciado como uma ameaa aos processos identitrios do grupo familiar. Conclui-se que este estudo mostrou a importncia de contextualizar a obesidade na infncia, desfocando a criana da autorresponsabilidade pelo problema e ampliando para o contexto sociofamiliar. A prtica desta pesquisa indicou outras possibilidades de interveno, ressaltando a atuao interdisciplinar como postura profissional relevante no contexto do tratamento da obesidade na infncia.

    Palavras-chave: obesidade; criana; psicologia; famlia.

    Overweight in Childhood and Family Interactions: A Complex Pattern

    Abstract

    This study aimed to understand obese childrens interpersonal interactions in family and social contexts. A qualitative methodology of research was used and the methodological and theoretical support was based on the systemic theory.

    1 Coordenadora do Setor de Psicologia do Hospital So Camilo-MG. Especialista em Atendi-mento Sistmico de Famlias e Redes Sociais - IEC-PUC Minas e Mestre em Cincias da Sade-UFMG.

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    The following tools were applied: interviews, genogram technique and drawings regarding body image. The subjects of the research were children and their relatives (parents and siblings) attended by the Pediatric Nutrition Service at the Clinical Hospital of the Federal University of Minas Gerais (UFMG). The analysis showed the following relevant contents among childrens perceptions: family secrets regarding the stories of parental characters origins; distant relationship of the parents in relation to the children; transgenerational phenomena in their biologic and symbolic aspects of obesity in three generations of the studied family groups; family myths and loyalties, which supported the obesity identity in the family group. These indicators helped to understand the difficulties of the process of differentiation of these children, that is, the possibility that losing weight may be seen as a threat to their identity process in the family groups. This study shows the importance of contextualizing obesity in childhood, shifting the focus away from the childs self-responsibility and widening it to encompass the social/family context, highlighting the interdisciplinary action as a relevant professional approach to treat obesity in children.

    Keywords: obesity; child; psychology; family.

    Introduo

    O fenmeno da obesidade na infncia tem sido o principal tema de estudo desta autora, desde 1995, quando passou a integrar o Setor de Nutrologia Peditrica do Hospital das Clnicas da UFMG. Durante esses anos, a observao das dificuldades enfrentadas por diversos profissionais da rea de sade, por crianas e suas famlias para o sofrido emagrecimento, instigou-a a pesquisar esse fenmeno sob uma perspectiva sistmica.

    A proposta desse estudo fundamentado na teoria sistmica possibilita ampliar o foco da criana como autor responsvel pelo seu fracasso diante da obesidade para o contexto de relaes familiares e sociais, com vistas compreenso da complexidade de fatores biogenticos, familiares e psicossociais que se inter-relacionam na constituio da obesidade infantil.

    Este estudo ressalta a importncia de integrar as responsabilidades para a co-construo de intervenes em redes cooperativas e solidrias entre as famlias, os profissionais de sade, as instituies sociais e as polticas pblicas para a preveno e o tratamento da obesidade na infncia.

    Metodologia

    Baseia-se nos pressupostos da metodologia de pesquisa qualitativa, os quais se definem essencialmente pelos processos implicados na construo do conhecimento, pela forma de se produzir o conhecimento (Rey, 2002, p.

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    24). Considera-se uma perspectiva que leva em conta os aspectos sistmicos e complexos presentes no fenmeno estudado. Nessa direo, Esteves de Vasconcellos aduz que o olhar sistmico evidencia que:

    o mundo passa a ser pensado e descrito em termos de sistemas-conjunto de elementos em interao. O foco passa a estar nas relaes, no s as relaes entre os elementos do sistema, mas tambm as relaes entre o sistema e aquele que o descreve e trabalha com ele. Amplia-se o foco: do elemento (indivduo) para o sistema (a famlia, o grupo de trabalho, a escola), e para os sistemas de sistemas (2005, p. 78-79).

    Dessa maneira, enfatiza-se uma perspectiva contextual para tentar construir um conhecimento pertinente complexidade do fenmeno. Morin (1996) afirma o princpio da causalidade complexa, ou seja, da causalidade mtua inter-relacionada, em que a multidimensionalidade e as contradies so consideradas para a compreenso do fenmeno a ser investigado.

    Nessa perspectiva, a definio do problema a ser estudado, representa uma construo em processo (Rey, 2002, p. 72). Para isso, duas perguntas so norteadoras dessa construo: Como se estabelecem as relaes entre as crianas e seus familiares e at que ponto a posio que a criana ocupa no contexto sociofamiliar contribui para a constituio do fenmeno da obesidade na infncia?

    Para compreender a produo do fenmeno biopsicossocial da obesidade na infncia, torna-se fundamental aprofundar o estudo desse processo interativo entre as histrias dos valores e crenas do aprendizado dos hbitos alimentares dos pais e as histrias que as crianas esto aprendendo a construir para elas mesmas, em relao ao significado da postura alimentar de comer muito, comer bem e de ser gordo na famlia.

    A escolha da amostra caracteriza-se por intencional (Campos, 2004; Marques, 2000) tendo como critrio os sujeitos mais significativos para o entendimento das interaes familiares tecidas em um emaranhamento (Minuchin,1982), evidenciado posteriormente nas entrevistas de forma recorrente.

    A casustica composta de quatro crianas e seus familiares (pai, me e irmo), dentre eles dois meninos e duas meninas com idades entre sete e 12 anos (ECA, 1990), atendidas pelo Setor de Nutrologia Peditrica do HCUFMG. O critrio inclusivo de que as crianas apresentassem diagnstico mdico de obesidade, tendo como critrio o ndice de massa corporal (IMC) com percentil acima de 95. As famlias so nucleares simples (composta por pai, me e filhos) e pertencem classe social de baixa renda (IBGE, 2005).

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    Os instrumentos de pesquisa utilizados foram entrevistas de aprofundamento com os pais e as mes; tcnica do genograma, retratando os aspectos transgeracionais biolgicos e simblicos da obesidade dos grupos familiares estudados; e desenhos da imagem corporal, como possibilidade de expresso das crianas quanto s vivncias em relao aos seus corpos no contexto sociofamiliar. As entrevistas com os pais, as crianas e os grupos familiares foram gravadas e transcritas posteriormente. As anlises e interpretaes foram calcadas na vertente sistmica.

    O estudo foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa da instituio. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado por ambos os pais. Para preservar a identidade das mes, pais e crianas entrevistadas, as falas foram identificadas com M para as mes, P para os pais e C para as crianas.

    Relaes familiares e obesidade na infncia

    No contexto dos grupos familiares estudados, as mes expressam vivncias sofridas em seu contexto familiar de origem, que se configuram, na perspectiva sistmica, como segredos familiares. Mason (1994) elucida que os segredos esto relacionados a eventos dolorosos de vida e ocorrem fora das normas sociais e culturais. As histrias dessas mes relacionadas a abuso sexual, gravidez antes do casamento e abandono produziram sentimentos de insegurana, medo, vergonha e fracasso que permaneceram ao longo da vida dessas pessoas como segredo de si mesmas (Roberto, 1994), ou seja, um sofrimento acautelado que se revela em uma relao fusionada com os filhos.

    As vivncias maternas de sofrimentos aprisionados puderam ser reeditadas na relao com os filhos sendo traduzidas em dependncia, superproteo e cuidados excessivos na alimentao, provocando, secundariamente, reduo das suas vidas ao contexto familiar. A restrio nas relaes interpessoais e sociais, segundo Sluzki (1997), leva a produo de um sofrimento gerador de adoecimento biopsicossocial, decorrente do processo de isolamento social.

    Na perspectiva sistmica, esse aprisionamento representa sofrimento para as crianas, dificultando a ampliao das suas relaes interpessoais em diversos contextos sociais, at mesmo na escola. H recorrncia de passividade manifestada, por exemplo, no tempo despendido diante da televiso, e ansiedade expressa em comer excessivamente (Fonseca, 2001). Por outro lado, as filhas e os filhos so vistos, pelas mes, como preguiosos, sem iniciativa para os cuidados dirios (tomar banho, trocar de roupa, fazer as refeies, etc.), como tambm desanimados para as atividades fsicas, de lazer e de orientao nutricional.

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    Pode-se considerar que a expresso de passividade e de ansiedade, bem como o comer excessivo dessas crianas representa a ponta de um iceberg em que a parte submersa representa o sofrimento delas amalgamado ao das mes, que tenta emergir e transparecer nos corpos obesos dessas crianas.

    Essas experincias familiares demonstraram que determinados segredos, associados s trajetrias de sofrimento propiciaram aprisionamentos nas relaes me-filho que se caracterizam como emaranhadas (Minuchin, 1982), ou seja, por uma indiferenciao das fronteiras do subsistema familiar me-filho.

    Nesses contextos familiares estudados, a famlia em que o segredo familiar relacionava-se ao abuso sexual sofrido pela me na sua famlia de origem, no subsistema me-filha, a me expressou sentir-se cuidada e protegida pela filha, ao relatar: Na gravidez do meu filho (mais novo) passei bastante mal. Ento, ela tinha que cuidar de mim. Teve um dia que desmaiei, me deu remdio. Ela fica com medo. A, do mesmo jeito que fico preocupada com ela, ela sente preocupao comigo (M) (sic). Nessa famlia, a relao emaranhada me-filha revela-se nessa inverso de papis, em que a filha exerce o papel materno de cuidadora e protetora na relao com a prpria me. Assim, os fios desse emaranhamento entrelaam-se invisivelmente. Ou seja, a vivncia de medo e de insegurana que a me carrega em sua histria enlaa a vivncia de medo na relao com a filha, de que algum perigo eminente possa acontecer. Esse medo oculto que ronda a vida da me aprisiona-a vida da filha.

    Nesse caso, torna-se importante ressaltar que, em decorrncia da histria de abuso sexual sofrido pela me em sua famlia de origem, o emaranhamento teceu-se de tal maneira que a indiferenciao das fronteiras ocorreu em vrios subsistemas da famlia, como o conjugal, o parental e o fraternal, no se restringindo dade me-filha. Em relao a isso, Furniss (2002), em seu estudo sobre famlias que sofrem abuso sexual, constata a ocorrncia de indiscriminao de papis familiares; ou seja, a ocupao dos lugares de pai, me e filho/filha se estabelece de forma difusa no sistema familiar.

    Essas complexas tramas familiares pesquisadas apresentaram outros elementos intercorrentes; ou seja, a fuso me-filho contribui para certo distanciamento do pai na relao com o filho. Sendo assim, essas dinmicas familiares geraram implicaes para a sade dessas famlias representadas pela obesidade das crianas. Nesse aspecto, Miermont et al. salientam:

    Um subsistema me-filho altamente emaranhado (que perpetue os primeiros tempos simbiticos da relao) costuma excluir o pai, que se desliga ao extremo. A autonomia dos filhos , ento, diminuda, o que pode se transformar em um importante fator de desenvolvimento de sintomas (1994, p. 287).

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    Torna-se importante destacar que o termo simbiose vem do grego symbosis, associao e entendimento ntimo entre duas pessoas (Houaiss, 2001). Quer dizer, na relao me-filho/filha ocorre uma fuso que faz parte do desenvolvimento da relao. No entanto, nessas famlias a simbiose configura-se como prejudicial relao familiar, j que o prolongamento dessa fuso me-filho/filha propicia de alguma forma, o afastamento do pai na relao com o filho e filha bem como restringe o movimento ativo das crianas na vida, como brincar na rua e tomar iniciativas para realizar atividades cotidianas, culminando em experincias de sofrimento. Nesse aspecto, Minuchin (1982) elucida que nos subsistemas familiares emaranhados desenvolvem-se fronteiras excessivamente rgidas que dificultam o intercmbio com o mundo exterior, assim como, desencorajam a autonomia da criana para lidar com situaes da vida e, tambm, inibem suas habilidades cognitivo-afetivas.

    Quanto a isso, pode-se verificar que nessa trama familiar, o pai atribui me e sua histria de abuso sexual a obesidade da filha: Sempre em casa, me no deixava ela brincar com os outros meninos. At hoje. Parece que tem alguma coisa que perturba ela. Ento, aquilo agita a menina, fica ansiosa, comea a comer mais (P) (sic). Contraditoriamente, ele revela uma relao paterna de permissividade alimentar com a filha: alimentao sempre dando arroz, feijo, verdura para ela com. Tinha que d pra ela cresc. Ela comia de tudo. Achava bonitinho que ela tava gordinha. Alis, as coisas que engorda quem compra eu (P) (sic). Nessa trama familiar, o pai sustenta a obesidade da filha, apoiado na crena alimentar em que o comer de tudo apresenta-se como elemento importante para o crescimento da criana, e se desliga de seu papel de autoridade para colocar limite alimentao excessiva. Ele atribui esse papel esposa: criao dos filhos com ela (P) (sic), e ao mesmo tempo, coloca-a no lugar de incapaz: desde que ns casamos ... tudo eu que fao, controle de dinheiro, tudo eu. Ela no tem controle nenhum (P.) (sic). O pai, por sua vez, na relao com a filha, permite que ela aprenda a fazer compras e a lidar com dinheiro: Eu levo ela comigo pra fazer sacolo. T aprendendo a olhar onde t mais barato (sic).

    Essa dinmica relacional evidencia um emaranhamento de conflitos compartilhados entre pai, me e filha que se mostra visvel no excesso de peso da criana, e que armazena uma sobrecarga psicolgica invisvel tal como o segredo familiar. Contudo, na vivncia da criana, esses pesos estabelecem conexes, j que a expresso do sofrimento psquico aparece na postura do comer mais, revelando ingerir essa mistura de sofrimentos e conflitos familiares, como pode ser visto na fala da criana dessa famlia: O que eu acho mais difcil essa parte do bolo. Se eu ver perto, eu fao um furaco. Mas a, eu falei assim: Vou para com isso. S que eu descontrolei. Minha mente come o bolo, come o bolo. A, eu falei assim: Quando minha me fizer um bolo, eu vou encher minha boca de algodo ou, ento, vou passar uma fita crepe (C) (sic).

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    Desta maneira, a conduta do comer excessivo pela criana se expressa como um sintoma-comunicao (Sudbrack, 2003), em que ela tenta comunicar pelo ato de comer que, simbolicamente, ingere conflitos e sofrimentos do sistema familiar dada a dificuldade de express-los e compreend-los.

    Essas questes psicolgicas, familiares e sociais articulam-se aos fatores biogenticos na constituio da obesidade na infncia. Essa conexo pode ser evidenciada pelo fenmeno transgeracional, ou seja, a reedio da obesidade em trs geraes, no que diz respeito aos aspectos identitrios dessas crianas em seus grupos familiares.

    Fenmeno transgeracional e reedio da obesidade

    Na perspectiva sistmica, o fenmeno transgeracional trata de valores e crenas que so compartilhados com as geraes posteriores das famlias, apoiando-se em mitos familiares que configuram as histrias dos grupos estudados. Nesse aspecto, Neuburger (1999) elucida que o mito representa um elemento organizador do grupo familiar, define crenas, regras e papis familiares, postula sua forma de funcionamento, como tambm proporciona aos membros do seu grupo um sentido de identidade. No entanto, cada famlia constri sua mitologia com base nas singularidades genticas, culturais e histricas (Miermont et al, 1994).

    Dessa forma, os relatos dos pais, mes e crianas sobre as relaes afetivas estabelecidas em torno da alimentao, seus aprendizados dos valores, crenas, gostos e saberes alimentares, as formas de se alimentar, as receitas culinrias das avs, as comemoraes, assim como a retratao dos familiares obesos, possibilitam reportar reedio do sentido de ser gordo em suas famlias. Essa recorrncia intergeracional aponta para os mitos familiares, como por exemplo, nessa famlia, o pai estabelece uma identificao entre sua me, ele e a filha no ser gordo: Eu sempre fui gordinho. Toda vida fui gordinho, desde pequeno. Minha me era gorda. Ela (filha) puxou minha famlia (P) (sic). E a criana confirma essa identificao, ao expressar: Quando eu t comendo, meu pai fala assim: Nossa! Voc segura o garfo igual sua av. o mesmo jeito da sua av. assim. A, eu puxei ela (C) (sic). E prosseguiu: Meu pai quer me ver bem fortinha (sic).

    Observa-se que esses aspectos intergeracionais na constituio da identidade familiar dos sujeitos no ser gordo - so sustentados por mitos, bem como, por lealdades familiares. Segundo Aun (2007), as lealdades representam as expectativas que cada membro tem a respeito dos demais e da relao familiar, depositadas nas geraes posteriores.

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    Nessa trama familiar, essa identidade familiar sustenta-se pela lealdade invisvel (Marques, 2000), que se configura na transmisso camuflada da posio da av materna de controle e unio da famlia ao filho e neta, tal como fora retratado pelo pai, ao referenciar a memria da famlia, ao lembrar que sua me: ... fazia bastante comida. A casa era sempre cheia. Eu gostava de comer na panela (P) (sic). E expressou com lgrimas nos olhos: Franguinho com quiabo era especial! (P) (sic). Em seguida, comentou: Quando tava minha me, eu ficava preocupado em reunir a famlia, meus irmos. Depois que perdi minha me, eu larguei de lado. Esse negcio de unio, mesmo, de famlia. Eu preocupo muito com ela (filha). Levo e busco na escola, at hoje (P) (sic). Observa-se, que nessa trama, o sentido de ser gordo representa-se pela posio que a av paterna ocupa na famlia, de forma a simbolizar a unio da famlia. Dessa maneira, nota-se que essa memria familiar conserva-se na relao do pai com a filha.

    A expectativa de cumprimento do acordo tcito confere criana uma posio que a aprisiona na identificao familiar paterna que, por sua vez, ancora-se no mito da famlia pensada (Szymanski, 1992), como evidenciado em uma das falas do pai: Quando tava minha me, eu ficava preocupado em reunir a famlia, meus irmos... (P) (sic). Assim, impossibilita, de alguma maneira, a diferenciao da criana, at mesmo de identificar-se com a famlia materna e com a me. Contudo, essa identificao j encontra-se comprometida, uma vez que a me ocupa na famlia o lugar de incapaz; ou seja, apresenta-se como identidade negativa para a filha (Erikson,1987).

    A identificao com o ser gordo torna-se um modelo homogeneizador, dificultando o processo de diferenciao (Silva, 2004), isto , de possibilidades de identificaes com outras pessoas significativas da famlia. Agregado a isso, essas crianas deparam-se com um padro normativo corporal-magro caracterstico da sociedade ps-moderna (Stenzel, 2003). Diante disso, evidenciam-se vivncias de conflitos em relao identidade pr-escrita ser gordo e a possibilidade de emagrecer, ou seja, diferenciar-se tornar-se magro.

    Imagem corporal e obesidade na infncia

    As vivncias conflituosas das crianas em relao identidade ser gordo e a possibilidade de emagrecer, diferenciar-se, so expressas em seus desenhos da imagem corporal (Shilder, 1980). Quanto a isso, tem-se como exemplo a expresso de uma das crianas em relao ao seu desenho da imagem corporal: Eu sempre fui gordinha (C) (sic).

    Porm, desenha-se magra, diferente de como ela fala sobre si mesma e distinta do que os familiares afirmam para ela. Assim, ela diz: Eles acham natural eu engord (C) (sic).

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    Dessa forma, a criana indica imaginar-se de outra maneira, diversa do preestabelecido no seu contexto familiar. No entanto, mostra que se sente aceita e reconhecida. Refere-se a isso falando sobre os apelidos: Na famlia, s apelido de rir. Apelido que eu j conheo. Eu no fico ofendida (C) (sic). Porm, no mbito social, em relao aos apelidos que os colegas colocam, ela expressa: Me d uma raiva! (sic).

    Essas crianas ao se desenharem magras, demonstram desejo de emagrecer como possibilidade de diferenciar-se desse aspecto identitrio familiar - ser gordo, com a possibilidade de identificar-se com outras pessoas significativas dos contextos familiar e social. Torna-se importante ressaltar que o desejo de emagrecer (Tassara, 2012) dessas crianas no retrata a desvalorizao da identidade familiar, porm, evidencia dificuldades emocionais (sentimentos de medo e culpa) em relao ao processo de emagrecimento de diferenciao se tornar uma ameaa ao sentimento de pertencimento familiar e a identidade ser gordo.

    Quanto a isso, a criana da famlia referendada anteriormente, expressa: Eu queria ser do mesmo peso, s que sem nenhuma barriga ... que eu queria ser. No que eu queria ser reta. Eu queria assim (C) (sic). Diante disso, torna-se interessante notar que esse conflito da criana revela sua vivncia de temor e culpa em relao ao no cumprimento das lealdades (Miermont et al., 1994), no seu caso, com a identidade familiar paterna.

    Esses pais, mes e crianas precisam ser retratados em suas vivncias, j que emaranhados em seus sofrimentos, no encontram outras maneiras para relacionar com seus filhos e filhas, e, ocultamente, reeditam essas vivncias conflituosas nas suas histrias atuais.

    Portanto, evidencia-se a importncia de considerar o contexto sociofamiliar no tratamento da obesidade na infncia, ampliando o foco da criana como autor-responsvel para o contexto das responsabilidades compartilhadas entre profissionais de sade, famlias e polticas pblicas.

    Consideraes finais

    No contexto da obesidade na infncia torna-se fundamental a atuao interdisciplinar apoiada na perspectiva sistmica em que a criana representa a parte de um todo, no se configurando como elemento isolado do grupo familiar. Portanto, as interaes que se estabelecem entre pais, mes, filhos e filhas no que se refere s relaes emaranhadas e de identidade familiar, necessitam ser includas e articuladas s questes nutricionais que envolvem o processo de mudanas de estilo de vida das famlias.

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    Acolher e respeitar as famlias em suas histrias constituem estratgias facilitadoras da relao entre a famlia e o profissional, na tentativa de que a interveno no se torne uma ameaa identidade do grupo familiar. Ao contrrio, que possibilite envolvimento e participao das famlias no processo de mudanas. O trabalho no se reduz a cuidar da mudana de hbitos alimentares, j que inclui a vida das pessoas, seus vnculos afetivos familiares e sociais, valores, dores e conflitos. Representa um processo dinmico e reconstrutivo de um novo estilo de vida familiar.

    Nessa perspectiva, no se deposita o fracasso gerado pela dificuldade do processo de emagrecimento aos filhos e s filhas, mas se reconfigura para um contextual relacional mais amplo, discutindo representaes constitutivas dos grupos familiares, assim como, estabelecem-se trocas afetivas entre os participantes, ajudando-os a ampliar as suas relaes familiares, e, por conseguinte, o desenvolvimento da autonomia das crianas no processo.

    Tratar crianas obesas implica consider-las em seus contextos familiares e sociais. No sentido de (trans)ver, acolh-las com um olhar que v alm da sua gordura e peso. Portanto, respeit-las nas suas histrias familiares, nos seus sofrimentos, nas suas alegrias, nos seus saberes e nas suas curiosidades.

    A responsabilidade pelo cuidado das crianas deve ser compartilhada entre os profissionais da sade, as famlias e instituies sociais, sendo necessrio criar possibilidades de dilogos e atuaes entre eles, com o intuito de gerar complementaridade entre os saberes.

    Para tal, torna-se necessrio adotar trabalhos construdos em redes cooperativas e solidrias, com vistas ao fortalecimento dos vnculos familiares, sociais, profissionais e institucionais e de polticas pblicas, no intuito de ampliar a compreenso do problema e possibilitar intervenes mais efetivas diante da complexidade do fenmeno da obesidade na infncia.

    Referncias

    Aun, J. G. (2007). A transmisso transgeracional da contabilidade familiar. In J. G. Aun; M. J. Esteves de Vasconcellos; S. V. Coelho, Atendimento sistmico de famlias e redes sociais. (Vol. 2). O processo de atendimento sistmico. Tomo II (1. ed., pp. 368-433). Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa. Campos, M. F. F. de (2004). Os sentidos atribudos a um processo de adoecimento crnico: o diabetes como situao-limite. Dissertao de mestrado. Mestrado em Psicologia Social. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais.

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    Endereo para correspondncia

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    Enviado em 25/04/2012 1 reviso em 11/06/2012 2 reviso em 17/06/2012 Aceito em 18/06/2012

    Obesidade na Infncia e Interaes Familiares V. Tassara

    Revista Brasileira de Terapia de Famlia, 4(1), julho, 2012 (45-56)