Rosana Soares Campos - Escolhas Políticas, Decisões Econômicas, Consequências Sociais...

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Rosana Soares Campos - Escolhas Políticas, Decisões Econômicas, Consequências Sociais Trata de temas ligados ao neoliberalismo.

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  • ROSANA SOARES CAMPOS

    ESCOLHAS POLTICAS, DECISES ECONMICAS, CONSEQUNCIAS SOCIAIS

    Um estudo sobre os impactos da democracia procedimental e do neoliberalismo na Amrica Latina e no Brasil

    Porto Alegre, RS

    Janeiro de 2010

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS GRADUAAO EM CINCIA POLITICA

    ESCOLHAS POLTICAS, DECISES ECONMICAS, CONSEQUNCIAS SOCIAIS

    Um estudo sobre os impactos da democracia procedimental e do neoliberalismo na

    Amrica Latina e no Brasil

    Tese de doutorado apresentada por Rosana Soares Campos sob a

    orientao do professor doutor Cesar Marcello Baquero Jacome

    Porto Alegre, janeiro de 2010

  • Dedicatria

    A mame

    Diante da mquina de costura, j passando da meia noite, ela fazia planos para um futuro melhor s filhas. Por isso, de dia trabalhava numa dura jornada de trabalho assalariado e precrio, e noite cosia para complementar a renda. Mulher, viva, pobre, quatro filhas, chefe de famlia, escolaridade mediana e exercendo atividades mal remuneradas, ela ultrapassou obstculos, venceu batalhas e nos ensinou que a pobreza no uma condio natural para a humanidade. fruto de uma relao desigual, produzida e reproduzida por relaes humanas, que podem e devem ser mudadas. Sua trajetria de vida um exemplo de luta e superao dessa condio de pobreza humana.

    3

  • Agradecimentos

    Ao Programa de Ps Graduao em Cincia Poltica da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul pela possibilidade de desenvolver esta pesquisa atravs do apoio

    financeiro, via bolsa Capes.

    Ao meu orientador, professor doutor Marcelo Baquero, pelas contribuies terica

    e prtica, pela compreenso e pelo grande incentivo para que eu pudesse finalizar esta

    tese.

    A Christiane Campos, irm e amiga de todas as horas, pelas valiosas contribuies

    durante a elaborao da tese; inclusive nas infindveis noites que passamos discutindo,

    debatendo e escrevendo este trabalho.

    A Vagner Anabor, marido e companheiro, pelo incentivo e colaborao na

    finalizao emprica da tese.

    A Rosngela Campos, irm querida, pelo incentivo e colaborao na

    operacionalizao deste trabalho.

    A amiga Patrcia Cunha pela fora, incentivo e apoio para que eu pudesse

    terminar a tese, mesmo diante dos dos obstculos impostos pela vida.

    Aos amigos Gissel Briceo, Norma Leitte, Cristiano Silva, Marcelo Heleno,

    Leandro Resende, Eleyda Moreira, Karine Bertani, Joana Tereza, Lorena Madruga,

    Adriana Seixas e Miriam Lemos por me incentivarem nesta longa caminhada.

    Ao programa CLACO-CROP Estudios de Pobreza por me dar a oportunidade de

    conhecer outros modos de compreender e analisar os fenmenos sociais atravs de uma

    bolsa de pesquisa e dos cursos promovidos pelo Campus Virtual.

    A professora Snia Leguizamn, que me fez compreender que a pobreza um

    fenmeno social produzido e constantemente reproduzido pela ao humana.

    4

  • Resumo

    O objetivo desta tese mostrar como a democracia de procedimentos foi

    funcional para a implementao e a consolidao de polticas econmicas neoliberais

    que, por sua vez, acarretaram aumento do desemprego, expanso do mercado de trabalho

    informal e da pobreza na Amrica Latina, de um modo geral, e do Brasil,

    particularmente. Para cumprir o objetivo, analisou-se inicialmente a democracia sob a

    perspectiva liberal, com a pretenso de evidenciar o discurso e a prtica democrtica

    procedimental implementada na Amrica Latina, durante o processo de redemocratizao

    da regio, nos quais a democracia resumiu-se apenas a um mtodo poltico,

    negligenciando os aspectos sociais e econmicos do regime. Posteriormente, o

    neoliberalismo foi analisado como uma ideologia poltico-econmica cujo principal

    objetivo a expanso da acumulao capitalista. Em seguida, as conseqncias sociais da

    implementao do neoliberalismo na regio foram analisadas sob a perspectiva do mundo

    do trabalho e da pobreza, de forma a testar a hiptese de relao entre reformas

    econmicas neoliberais e desemprego e pobreza, a qual foi confirmada. Para finalizar, a

    tese foram apresentados os impactos dessas polticas econmicas no Brasil e mais

    detalhadamente nos trabalhadores do mercado de trabalho informal, utilizando como

    estudo de caso trabalhadoras do comrcio de rua (camels) de Porto Alegre/RS. Desse

    modo, a pretenso evidenciar que escolhas polticas, em particular a democracia

    procedimental, favoreceram determinadas decises econmicas, o neoliberalismo, que,

    por sua vez, acarretaram conseqncias sociais como o aumento do desemprego e da

    pobreza na regio latina.

    Palavras-chave: democracia procedimental, neoliberalismo, trabalho, pobreza, Amrica

    Latina e Brasil.

    5

  • Abstract

    This research shows as the procedural democracy was important to

    implementation of neoliberal economic politics, which caused more unemployment,

    underemployment and poverty in the Latin America and Brazil. Firstly, it analyses the

    democracy in the liberal perspective to show the procedural democratic speech and

    practice implemented in the Latin America during the democratization process. This kind

    of democracy is only a political method which carelessness economic and social aspects.

    Secondly, the neoliberal model is studied as a economic political ideology, whose main

    objective is the capitalism expansion. Thirdly, the social consequences of neoliberal

    economic policies in the region were analyzed through of the labor and poverty, to verify

    if there is a relationship between economic reforms, work and poverty. Finally, this thesis

    presented the impacts of these economic policies in Brazil. To exemplify, it was showed

    a case study about these impacts in workers of the informal labor market. In this way, this

    thesis intends to confirm that political chooses, like the procedural democracy, benefit

    certain economic decisions, as the neoliberalism, that caused drastic social consequences

    to the population; as more unemployment and poverty.

    Key words: procedural democracy, neoliberalism, labor, poverty, Latin America and

    Brazil.

    6

  • Resumen

    El objetivo de esta tese es evidenciar como la democracia de procedimientos fue

    funcional para la implementacin y consolidacin de las polticas econmicas

    neoliberais, que provocaron mas de desempleo, expansin de lo mercado de trabajo

    informal y de la pobreza en la Amrica Latina, en general, y en lo Brasil, en particular.

    Para cumplir lo objetivo, se analiz, inicialmente, la democracia bajo la perspectiva

    liberal, con la pretensin de evidenciar lo discurso e la practica democrtica de

    procedimientos, implementados en la Amrica Latina durante lo proceso de

    redemocratizacin en la regin, en los cuales la democracia se resumi en un mtodo

    poltico, con negligencia a los aspectos econmicos e sociales de lo regime.

    Posteriormente, el neoliberalismo fue analizado como una ideologa poltico econmica

    con el objetivo de expandir la acumulacin capitalista en la regin. Enseguida, las

    consecuencias sociales de la implementacin de estas polticas fueron analizadas bajo la

    perspectiva de lo mundo del trabajo e da pobreza, para testar la hiptese de que ha una

    relacin entre reformas econmicas, desempleo e pobreza; que fue confirmada. Para

    finalizar, la tese present los impactos de estas polticas en el Brasil e con ms detalles en

    los trabajadores de el mercado de trabajo informal, utilizando como estudio de caso

    trabajadoras ambulantes de Porto Alegre/RS. De este modo, la pretensin es evidenciar

    que escojas polticas, el tipo de democracia de procedimientos, fueron funcionales para

    determinadas decisiones econmicas, la poltica neoliberal, que, por su vez, provocaron

    ms desempleo e ms pobreza en la regin.

    Palabras claves: democracia de procedimientos, neoliberalismo, trabajo, pobreza, Amrica Latina y Brasil

    7

  • Sumrio

    Introduo 12

    Captulo I escolhas polticas 221.1 Compreendendo a democracia liberal 241.1.1 Abordagens e tipos de democracia 281.1.2 Conceituando a democracia sob a tica procedimental 331.1.2.1 Definindo democracia para alm das eleies, mas apenas um regime poltico

    41

    1.1.3 As pessoas na democracia um prottipo das democracias industriais?

    46

    1.1.4 O conceito de democracia predominante na Amrica Latina 551.2 As compatibilidades entre democracia e capitalismo 621.2.1 Institucionalizao democrtica e estabilidade econmica 671.3. Algumas consideraes 73

    Captulo II Decises econmicas: implementao de polticas econmicas neoliberais

    77

    2.1- Compreendendo o neoliberalismo 792.2 O modelo de desenvolvimento dependente 932.3 O contexto latinoamericano: as dcadas que antecederam o decnio neoliberal

    99

    2.4 O Consenso de Washington 1082.5 Os governos democrticos e a dcada neoliberal na Amrica Latina 1102.5.1 O contexto neoliberal dos anos 1990 1152.6 Algumas consideraes 127

    Captulo III Consequncias sociais: desemprego/subemprego e pobreza

    130

    3.1 Trabalho: suas transformaes no perodo neoliberal 1313.2 Pobreza como uma produo social 1373.3 Comportamento do trabalho 1493.3.1 Trabalho: consequncias neoliberais na dcada de 1990 1563.4 Pobreza em nmeros 1663.5 A empiria confirmando as hipteses 172

    Captulo IV Governos democrticos e consequncias sociais do neoliberalismo no Brasil

    180

    4.1 O discricionarismo de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso na implementao de polticas econmicas de cunho neoliberal

    184

    4.2 Desemprego/subemprego e pobreza no Brasil dos anos 1990 1934.3 Mulheres camels: o retrato da pobreza e da precarizao do trabalho no Brasil

    208

    4.3.1 Os camels no contexto local 214

    8

  • 4.3.2 Quem so 2154.3.3 Trabalho e precarizao 2174.3.4 Habitao e Bens 2204.3.5 As subcategorias 2214.4 Democracia formal e desigualdade social: algumas consideraes 225

    Concluso 229

    Bibliografia238

    9

  • Lista de Grficos

    Grfico 1 - Porcentagem do crescimento dos PIBs regional e per capita 1980-88 na Amrica latina

    103

    Grfico 2 Evoluo em porcentagem do crescimento de setores econmicos na Amrica Latina

    104

    Grfico 3 Taxa de desemprego urbano na Amrica Latina 1980-88 106Grfico 4 Dvida externa latinoamericana 1970-1998 (em milhes de dlares) 116Grfico 5 Valor das privatizaes na Amrica Latina dcada de 1990 119Grfico 6 PIB da Amrica Latina 1991-1999 (regional e per capita) 120Grfico 7 Evoluo em porcentagem do crescimento de setores econmicos na Amrica Latina 1993/1996/1998

    121

    Grfico 8 Porcentagem da distribuio de renda na Amrica Latina 1990-1999

    124

    Grfico 9 Gasto pblico social por habitante na Amrica Latina 1990-91 e 1998-99 (em dlar)

    126

    Grfico 10 Comportamento do desemprego na Amrica Latina 1975-1999 151Grfico 11 Porcentagem dos trabalhadores empregados no mercado de trabalho informal na Amrica Latina 1980/1985/1990/1995/1999

    152

    Grfico 12 Estrutura do emprego por setor da economia na Amrica Latina 153Grfico 13 Remunerao mdia na Amrica Latina/valor de referncia $ 100,00 155Grfico 14 Taxa de desemprego aberto na Amrica Latina/ dcada de 1990 157Grfico 15 Taxa de desemprego por quintil de renda na Amrica Latina 1990-1999 158Grfico 16 Taxa de participao x taxa de ocupao da PEA Amrica Latina 1990 e 1999

    159

    Grfico 17 Salrio mnimo na Amrica Latina / dcada de 1990 valor referncia $ 100,00

    162

    Grfico 18 Evoluo da pobreza e da indigncia na Amrica Latina 1980/1986/1990/1994/1997/1999

    167

    Grfico 19 Coeficiente da brecha entre renda dos pobres e linha de pobreza na Amrica Latina 1990-1999

    168

    Grfico 20 Porcentagem de lares em situao de pobreza e indigncia na Amrica Latina 1980/1990/1994/1997/1999 169Grfico 21 ndice de reforma econmica na Amrica Latina dcada de 1990 173Grfico 22 Dvida externa brasileira: dcada de 1990 (em dlar) 189Grfico 23 PIB brasileiro dcada de 1990 194Grfico 24 Taxa de desemprego no Brasil dcada de 1990 196Grfico 25 Porcentagem de ocupados por setor da economia: agricultura/indstria/servios 1990/1995/1999 198Grfico 26 Porcentagem de pobres e indigentes no Brasil 1990/1996/1999 203Grfico 27 Subcategorias x faturamento x renda das mulheres camels em Porto Alegre 223

    10

  • Lista de tabelas

    Tabela 1 Pobreza e extrema pobreza na Amrica Latina em nmeros absolutos e relativos 1986e 1989 mdia dos pases

    107

    Tabela 2 ndice de Gini da Amrica Latina 1990-1999 123Tabela 3 Reformas e realidades na Amrica Latina 128Tabela 4 Estrutura do emprego urbano latinoamericano 1990/1995/1999 160Tabela 5 Porcentagem de trabalhadores ocupados em estratos produtivos

    por anos de estudos na Amrica Latina / 1990 e 1999163

    Tabela 6 Estrato produtivo por horas de trabalho semanal na Amrica Latina / 1990 e 1999

    164

    Tabela 7 Estrato produtivo por cobertura da previdncia social na Amrica Latina / 1990 - 1999

    165

    Tabela 8 Incidncia da pobreza em algumas categorias profissionais na Amrica Latina 1990/1994/1997/1999

    170

    Tabela 9 Evoluo das reformas econmicas, desemprego e pobreza na Amrica Latina

    173

    Tabela 10 Estrutura do emprego urbano no Brasil 1990/1995/1999 199Tabela 11 - Distribuio de renda por estrato econmico 1990/1996/1999 204Tabela 12 Incidncia da pobreza em algumas categorias profissionais no

    Brasil 1990/1991/1997/1999 (zonas urbanas)207

    Tabela 13 Porcentagem de mulheres e homens por categoria de ocupao dcada de 1990

    210

    Lista de quadros

    Quadro 1 Definies de democracia com base em pesquisas sobre democratizao na terceira onda democrtica

    30

    Quadro 2 Resultado do teste estatstico entre as variveis reforma econmica e desemprego

    174

    Quadro 3 Coeficiente do aumento do desemprego a cada unidade de r. e. 175Quadro 4 Resultado do teste estatstico entre as variveis reforma econmica e pobreza 176Quadro 5 Coeficiente do aumento da pobreza a cada unidade de r. e. 176

    Lista de figuras

    Figura 1 Diagrama de disperso das variveis reforma econmica e desemprego

    175

    Figura 2 Diagrama de disperso das variveis reforma econmica e pobreza

    177

    Figura 3 Proporo da renda apropriada conforme estratos da sociedade 204Figura 4 Porcentagem de carga tributria, segundo dcimos de renda 1999 205

    11

  • Introduo

    Se Tocqueville observasse a Amrica Latina nos anos 1990 surpreender-se-ia com

    a desigualdade de condies. Um cenrio bem diferente do que ele encontrou na Amrica

    do fim do sculo XVIII. Nada me surpreendeu com mais fora do que a igualdade geral

    de condies do povo. (Tocqueville, 1987:33). Para ele, essa igualdade era a ferramenta

    bsica na construo da democracia, e, sem ela, o regime se mostrava insuficiente para

    superar as poderosas tendncias de desigualdade inerentes ao desenvolvimento do

    capitalismo. Conforme Tocqueville, a igualdade material levava a uma igualdade de

    sentimentos que, por sua vez, formava a base para o princpio da cidadania. O alicerce

    dessa igualdade material, de acordo com o autor, era a estrutura da propriedade uma

    excepcional estrutura econmica e social igualitria baseada em pequenos proprietrios

    de terra.

    Na Amrica Latina, pelo menos desde a sua colonizao, a igualdade de

    condies nunca foi um princpio. E orientando-nos pelas constataes de Tocqueville,

    acerca da relao entre igualdade e democracia, talvez possamos entender as fragilidades

    da democracia na Amrica Latina e sua incapacidade de possibilitar melhores condies

    de vida populao.

    A partir das constataes de Tocqueville, Terry Lynn Karl (2000) analisou as

    desigualdades na Amrica Latina, desde sua colonizao at os anos 1990, e observou

    que a estrutura da propriedade, ou o que ele chamou de padres de posse, produziu um

    ciclo vicioso de desigualdade e fracasso democrtico. Conforme o autor, a produo

    voltada para a exportao e sujeita a uma alta volatilidade do ambiente macroeconmico,

    reduo da taxa de crescimento no longo prazo, uma piora na distribuio de renda,

    concentrao de poder e riqueza contriburam para as enormes desigualdades, que

    forneceram a base social para regimes autoritrios excluidores, os quais adotaram

    modelos econmicos que desproporcionalmente beneficiaram os mais ricos e poderosos.

    (Karl, 2000: 153).

    A redemocratizao na Amrica Latina no final dos anos 1970, embora

    apregoasse a esperana de melhores condies de vida para a populao, trouxe em seu

    bojo uma concepo bem diferente do regime, construdo a partir de uma transio

    12

  • pactuada que contemplava os interesses das elites polticas. A democracia, por esse

    motivo, constituiu-se enquanto um regime eminentemente poltico, sem nenhuma

    preocupao com aspectos econmicos e sociais, com forte teor liberal, baseada em

    procedimentos e normas na qual a igualdade poltica se resumiu esfera eleitoral,

    cabendo ao povo apenas escolher quem determinaria os rumos polticos dos pases. Uma

    dimenso restrita de democracia que impediu a participao da sociedade na tomada de

    decises e foi extremamente funcional para a implementao de polticas de cunho

    neoliberal, favorecendo uma minoria em detrimento de uma maioria excluda do poder.

    Os novos padres da democracia latino-americana foram traados conforme os

    preceitos do mercado. O Consenso de Washington foi o marco econmico desse novo

    padro de democracia latino-americano, impondo aos pases regras que desmantelaram

    suas bases produtivas com as privatizaes, desregulaes financeiras e aberturas

    comerciais, deixando, desse modo, merc da inseguridade social milhes de pessoas

    que necessitavam dos servios pblicos e causando o empobrecimento de suas

    populaes. A justificativa usada pelos governos foi a de que as reformas econmicas

    eram a nica alternativa para sair da crise que assolava toda a regio no comeo dos anos

    1980. Nesse sentido, medida que as elites polticas democrticas ocupavam o poder, as

    polticas econmicas neoliberais ganhavam espaos e a igualdade por sua vez, ferramenta

    bsica para a construo democrtica, tornava-se apenas uma ornamentao do discurso

    democrtico-liberal.

    Para Karl, a situao de tamanha desigualdade em fins do sculo XX deveu-se

    forma como os pases da Amrica Latina foram governados. O autor chamou a ateno

    para esse enorme crescimento na distncia entre ricos e pobres durante as duas ltimas

    dcadas do sculo XX, que foi, segundo ele, provocado por polticas econmicas

    neoliberais; evidenciando uma poderosa tendncia do ciclo vicioso de

    desenvolvimento. Conforme ele, a distribuio de renda, que se tornou mais igual

    durante os anos 1970, na Amrica Latina, piorou consideravelmente na dcada de 1980 e

    permaneceu estagnada nos anos 1990.

    Governos eleitos democraticamente legitimaram polticas econmicas que

    causaram desemprego em massa, expanso do mercado de trabalho informal,

    precarizao do trabalho, alm de provocar extenso e intensidade da pobreza na regio.

    13

  • Isso s foi possvel porque o tipo de democracia implementado na regio teve como

    objetivo apenas proporcionar populao, por via do voto direto, a escolha do seu

    governante, sem questionar aspectos sociais e econmicos. E as reformas nos pases

    latinos pretendiam abrir espaos aos investimentos externos e expandir os investimentos

    internos privados, sem se preocupar com as consequncias sociais.

    Foi levando em conta este contexto de democracia procedimental, polticas

    econmicas de cunho neoliberal, de desemprego, pobreza e demais desigualdades sociais

    que propomos a tese de que a democracia de procedimentos foi funcional para a

    implementao e consolidao de polticas econmicas neoliberais na Amrica Latina

    devido:

    Hiptese 1: implementao, por parte dos governos eleitos democraticamente, da

    maioria das recomendaes do Consenso de Washington; e com essa tomada de deciso

    acreditamos que:

    Hiptese 2: a democracia procedimental colaborou com o aumento do desemprego e da

    pobreza na regio.

    A partir dessas hipteses pretende-se mostrar que escolhas polticas, em particular

    a democracia procedimental, favoreceram determinadas decises econmicas, o

    neoliberalismo, que, por sua vez, acarretaram consequncias sociais como o aumento do

    desemprego e da pobreza na regio latina.

    Esta tese tem como objeto de estudo os impactos da democracia procedimental e

    do neoliberalismo na Amrica Latina e no Brasil, visto que este tipo de democracia foi

    funcional para a implementao de polticas de cunho neoliberal na regio. Escolhemos

    dois dos mais graves impactos: desemprego/subemprego e pobreza, porque neste

    continente, de um modo geral, e no Brasil, mais especificamente, estas duas

    consequncias sociais se visibilizaram pela extenso e intensidade.

    O mercado de trabalho foi o locus mais afetado pelas polticas econmicas

    neoliberais causando desemprego em massa e expanso do mercado de trabalho informal,

    desestruturando ou piorando ainda mais a situao de uma grande parcela da populao

    com o aumento e intensidade da pobreza, contrariando as promessas das reformas

    neoliberais de melhorias nos indicadores scio-econmicos da regio (Casanova, 2002;

    Estenssoro, 2003). A quantidade de pobres na Amrica Latina reflete bem o que na

    14

  • verdade as polticas neoliberais representaram para a maioria da populao latina. Em

    1980 a pobreza incidia sobre 135 milhes de pessoas e ao final da dcada de 1990 j

    eram 211 milhes de pessoas vivendo em situao de pobreza.

    A dcada de 1990 o perodo de anlise desta tese porque foi o espao temporal

    de consolidao da democracia de procedimentos, de auge e declnio das polticas

    econmicas neoliberais nos pases da Amrica Latina e de acirramento das suas

    consequncias sociais. A consolidao da democracia de procedimentos, na dcada de

    1990, foi proposta no texto The decline of illiberal democracy, de Adrian Nycky

    (1999), no qual o autor descreve atravs do survey da Freedom House, de 1998, a

    emergncia e o fortalecimento da democracia eleitoral como uma das formas

    predominantes de governo no mundo, citando, inclusive, os pases da Amrica Latina.

    Para o autor, coordenador do survey, a emergncia de democracias eleitorais era o melhor

    indicador do progresso poltico na regio.

    Por sua vez, o texto As metamorfoses do Estado brasileiro no final do sculo

    XX, de Braslio Salum Jr (2003), descreve a dcada de 1990 como o perodo de

    implementao de polticas neoliberais, o qual pode ser inferido para a Amrica Latina,

    devido ao avano do liberalismo econmico, em contrapartida s instabilidades polticas

    e econmicas. O autor caracterizou o Estado neste perodo como liberal devido s

    orientaes econmicas voltadas ao mercado como desregulamentao de atividades

    econmicas e a privatizao das companhias estatais que no estivessem protegidas pela

    lei, aumento da competitividade industrial, reduo das barreiras comerciais, privilgio

    da esfera financeira sobre a produo, flexibilizao das leis trabalhistas, reduo do

    controle do Estado sobre a economia, etc.

    Conforme o autor, no incio do sculo XXI a implementao de uma vertente

    liberal desenvolvimentista representou um recuo do governo frente s polticas

    econmicas liberalizantes e ajustes fiscais recomendados pelo FMI. A desvalorizao da

    moeda, a reduo do crescimento do PIB, o aumento do desemprego so alguns dos

    fatores que motivaram mudanas nas relaes do Estado com o setor econmico, que

    resultaram em um controle maior do governo sobre a economia e mais incentivo

    governamental para as atividades produtivas. Em funo dessa mudana no papel do

    Estado, tanto no Brasil quanto em outros pases da regio nos ltimos anos, que se

    15

  • decidiu analisar somente a dcada de 1990 quando o neoliberalismo dominou a poltica

    econmica, ainda que se mantenham muitas recomendaes do consenso de Washington.

    Com relao s consequncias sociais, os dados da Comisso Econmica para

    Amrica Latina e Caribe (CEPAL/2000) apontam o aumento do desemprego e da pobreza

    na dcada de 1990 na Amrica Latina e o aumento do desemprego e a permanncia da

    pobreza em patamares elevados no Brasil, onde cerca de 35% da populao vivia nesta

    situao no pas.

    O mtodo utilizado como base lgica da investigao foi o hipottico-dedutivo,

    definido por Karl Popper (1975) como um mtodo que procura uma soluo atravs de

    tentativas e eliminao de erros. Popper prope trs etapas na aplicao deste mtodo que

    podem ser visualizadas neste trabalho:

    o problema - A democracia procedimental foi funcional para a implementao de

    polticas neoliberais e, por conseguinte, acarretou o aumento do desemprego e da pobreza

    na dcada de 1990 na Amrica Latina, em geral, e no Brasil, em particular?;

    a soluo (que o autor denominou de deduo das consequncias na esfera das

    proposies) o aumento do desemprego e a expanso e intensidade da pobreza na

    Amrica Latina;

    teste de falseamento (descrito por Popper como a tentativa de refutao ou aceitao da

    hiptese) confirmao da hiptese de que a democracia procedimental foi funcional

    para o neoliberalismo, e de que este acarretou mais desemprego e pobreza na Amrica

    Latina e no Brasil provocou aumento do desemprego e a manuteno da pobreza em um

    patamar elevado, 35% da populao.

    Com relao aos mtodos que indicam os meios tcnicos da investigao foram

    utilizados o mtodo estatstico, anlise de dados secundrios e o mtodo monogrfico,

    que parte do princpio de que o estudo de um caso em profundidade pode ser considerado

    representativo de muitos outros. Foram analisados dados secundrios de organismos

    internacionais como a CEPAL, OIT (Organizao Internacional do Trabalho), PNUD

    (Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento) e de organismos nacionais como

    o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica) e o IPEA (Instituto de Pesquisas

    Econmicas e Aplicadas). No mtodo estatstico foram utilizados testes de correlao e

    regresso com dados secundrios da CEPAL. No mtodo monogrfico foi utilizada uma

    16

  • pesquisa emprica desenvolvida por esta pesquisadora para descrever como as polticas

    neoliberais impactaram na vida dos trabalhadores no Brasil, a partir de um survey

    realizado com cem mulheres camels em Porto Alegre.

    A tese se fundamenta em quatro categorias de anlise: democracia,

    neoliberalismo, o mundo do trabalho (emprego/desemprego/subemprego) e pobreza. A

    democracia discutida sob o ponto de vista liberal, no perodo de redemocratizao na

    Amrica Latina, o qual Samuel Huntington1 (1991) caracterizou como terceira onda

    democrtica. O neoliberalismo analisado como uma ideologia poltico-econmica que

    prega o livre mercado e a liberdade individual. O mundo do trabalho visto sob as

    perspectivas do emprego, desemprego, subemprego, mercado de trabalho, informalidade

    e precarizao do trabalho. E, por fim, a pobreza analisada como um fenmeno social

    produzido e reproduzido atravs de relaes entre pessoas em lugares e espaos

    definidos.

    Este trabalho se justifica na medida em que busca suprir uma lacuna existente nos

    estudos e pesquisas sobre democracia e economia de mercado, mais especificamente o

    neoliberalismo, com o objetivo de agrupar em um s trabalho pesquisa normativa e

    emprica. Do ponto de vista poltico, h muitos estudos sobre a relao entre democracia

    e economia de mercado/capitalismo/neoliberalismo. Porm estes estudos, quase na sua

    totalidade, se mostram normativos e formais.

    Na Amrica Latina, Atlio Born (1995, 2004) uma das referncias em

    pesquisas sobre o tema, porm numa perspectiva apenas normativa. O autor argumenta

    que o capitalismo na periferia da economia mundial no reproduziu instituies polticas

    democrticas, como nos pases em que se desenvolveu originalmente. E no v aliana

    nenhuma entre mercado e democracia. Ao contrrio, diz ele: En realidad el

    neoliberalismo remonta en un dilema mucho ms grave y, tal vez por eso, mucho menos

    explicitado: mercado o democracia. La democracia es el verdadero enemigo, aquello que

    est en el fondo de la crtica antiestatalista del neoliberalismo. No es al Estado a quien se

    combate, seno al Estado democrtico. (Born, 2004:100).

    1 Para Huntington (1991), houve trs ondas de democratizao na histria do mundo moderno. Primeira onda: 1820 a 1926 com 29 democracias. Segunda onda:depois da II Guerra Mundial, com o auge em 1962 com 36 pases governados democraticamente. Terceira onda: 1974 a 1990.

    17

  • Para Born, essa coincidncia entre democracia e capitalismo uma novidade de

    nosso sculo, que s foi possvel porque a primeira foi rebaixada a apenas regras

    procedimentais, coexistindo assim sem muitos conflitos ou represses. E mesmo os

    avanos democrticos, conforme o autor, no foram obras da burguesia no Estado. Foi

    resultado de mobilizao poltica das classes subalternas, que com protestos e

    reivindicaes, partidos e sindicatos foraram a democratizao do estado liberal. O que

    as revolues burguesas criaram, segundo o autor, foi um Estado liberal, fundado em uma

    base eleitoral estreita que as lutas populares obrigaram a expandir. Um Estado que

    assegura o predomnio das classes dominantes de dois modos: atravs do aparato estatal e

    de recrutamento de quadros dirigentes, e de mecanismos que possibilitem a produo,

    distribuio e o consumo estarem nas mos da burguesia. Born lana hipteses,

    proposies e expe problemas que ele tenta resolver do ponto de vista formal, sem a

    preocupao de test-los.

    A americana Ellen Wood (2003) tambm examina esta temtica no livro

    Democracia contra capitalismo a renovao do materialismo histrico, argumentando

    e propondo atravs da normatividade os prejuzos do capitalismo democracia. Segundo

    ela, o capitalismo estritamente antittico democracia no somente pela razo bvia de

    que nunca houve uma sociedade capitalista em que a riqueza no tivesse acesso

    privilegiado ao poder, mas tambm, e, principalmente, porque a condio insupervel de

    existncia do capitalismo o fato de a mais bsica das condies de vida, as exigncias

    bsicas de reproduo social, terem de se submeter aos ditames da acumulao do capital

    e s leis do mercado (Wood, 2003:08).

    Em mbito nacional Renato Boschi (2004) esboa a relao entre democracia e as

    reformas econmicas neoliberais e seus consequentes impactos na populao brasileira.

    O autor afirma que as reformas institucionais realizadas pelo Estado a partir da

    redemocratizao intensificaram o convvio da democracia representativa com altos

    graus de excluso social. Porm, como os demais autores j citados, aborda o assunto sob

    a perspectiva normativa, sem o intuito de testar hipteses lanadas.

    A produo de teses e dissertaes no Brasil sobre esta temtica ou do nfase

    democracia ou economia de mercado. No h teses que evidenciem a funcionalidade da

    democracia procedimental para a implementao de polticas neoliberais que, por sua

    18

  • vez, acarretaram desemprego e pobreza. Um trabalho mais prximo desta temtica,

    porm sem abordar o tema democracia, a pesquisa de Luiz Estenssoro (2003),

    Capitalismo, Desigualdade e Pobreza na Amrica Latina, na qual o autor defende a tese

    de que a pobreza e a desigualdade, no sendo exclusivas do capitalismo, persistem e

    crescem neste modo de produo devido a dois processos: crescimento econmico

    capitalista e superexplorao dos trabalhadores.

    Muitos poderiam citar o estudo de Adam Przeworski (1989) Capitalismo e

    social-democracia como exemplo dessa temtica. verdade, Przeworski analisa a

    democracia como um regime funcional ao capitalismo. Porm numa perspectiva

    institucionalista e normativa.

    Do ponto de vista econmico grande o volume de pesquisas que mostram as

    consequncias neoliberais na regio latina e tambm no Brasil sob a perspectiva emprica

    (Toni, 2004; Cacciamalli, 2003; Pochmann, 2001; Pamplona, 2001, anurios da

    CEPAL,1999,2000,2001) Mas o tipo de democracia implementado na regio no um

    tema vinculado s polticas neoliberais e seus desajustes sociais. Portanto, esta tese a

    tentativa de suprir a lacuna entre as dimenses politica e econmica, normativa e

    emprica, sob a anlise da funcionalidade da democracia de procedimentos para a

    implementao de polticas econmicas neoliberais, que, por sua vez, acarretaram

    drsticas consequncias sociais para a populao em geral.

    Esta tese est dividida em quatro captulos. No primeiro captulo, diferentemente

    de grande parte dos trabalhos sobre democracia, apresentamos este conceito sob o ponto

    de vista apenas liberal e suas inclinaes. O objetivo apresentar os discursos sobre

    democracia que influenciaram a concepo desse regime na Amrica Latina. E o discurso

    predominante na academia a partir do incio desta terceira onda democrtica o de uma

    democracia eminentemente voltada a um sentido poltico, formal, com suas atenes

    concentradas na elite poltica, suas decises e estratgias. So inmeras as tentativas de

    conceituar, classificar e institucionaliz-la, objetivando separar a democracia poltica de

    sua face econmica e social. Neste sentido, analisa-se o conceito de democracia liberal

    para compreender o conceito de democracia predominante na terceira onda democrtica.

    A seguir, enfocam-se tipos de conceitos de democracia mais utilizados nos estudos da

    onda democrtica. Seguindo esta linha, abordamos algumas das principais teorizaes

    19

  • que convergem para uma democracia formal na Amrica Latina sob esta perspectiva, e,

    por fim, so observadas as anlises de alguns autores sobre as compatibilidades entre

    democracia e capitalismo. Busca-se, portanto, examinar a formao do discurso sobre

    democracia nesta perspectiva procedimental, implementado na Amrica Latina, apesar de

    existirem controvrsias e outras alternativas que atendiam mais s demandas populares.

    No segundo captulo o objetivo compreender o neoliberalismo enquanto um

    processo, analisando o surgimento deste como ideologia e depois como uma prtica

    poltico-econmica, evidenciando o contexto latino-americano que favoreceu estas

    polticas de cunho neoliberal. O intuito mostrar como e porqu a Amrica Latina foi se

    tornando uma regio neoliberal. Este captulo apresenta as consequncias neoliberais de

    uma forma geral, comparando o comportamento econmico e social da Amrica Latina

    nos anos 1980 e 1990.

    J no terceiro captulo, o cerne desta pesquisa j que nele que confirmamos

    nossa hiptese, evidenciamos a aguda realidade produzida e reproduzida pelas polticas

    neoliberais a partir de duas de suas mais graves consequncias: o

    desemprego/subemprego e a pobreza. Enfocamos a questo do trabalho e da pobreza sob

    uma perspectiva terica e, posteriormente, demonstramos atravs de dados secundrios o

    quo intensas foram essas consequncias para a populao latina. Para finalizar o captulo

    verifica-se a hiptese de que as reformas econmicas neoliberais tm forte relao

    estatstica com o aumento do desemprego e da pobreza na Amrica Latina.

    Por fim, no quarto captulo discute-se a funcionalidade da democracia

    procedimental estabelecida no Brasil para a implementao das polticas neoliberais,

    atravs dos governos Collor e FHC. Objetivamos mostrar como essa teoria materializou-

    se em prticas que fortaleceram o modelo scio-econmico neoliberal no Brasil.

    Posteriormente, evidenciamos as duas principais consequncias dessas polticas, no

    entender da pesquisadora, o aumento do desemprego/subemprego e a constante pobreza,

    que na dcada de 1990 se manteve no patamar dos 35% no pas, considerado, na poca, a

    oitava economia mundial. Para concluir este captulo, apresentamos um estudo de caso

    sobre mulheres trabalhadoras do mercado de trabalho informal, com o propsito de

    avaliar como as polticas neoliberais atingiram a classe trabalhadora no pas,

    particularmente a parcela da populao que mais empobrecida; como o caso das

    20

  • mulheres. Este estudo de caso foi realizado em 2007 com cem mulheres camels em

    Porto Alegre a partir de um survey, cujo objetivo era verificar o impacto das polticas

    neoliberais na trabalhadora informal.

    Desse modo, observamos que se a igualdade a base da democracia, como

    afirmou Tocqueville, o contexto neoliberal na Amrica Latina foi o cenrio menos

    propcio para uma construo democrtica, uma vez que as polticas neoliberais foram

    geradoras de enormes desigualdades sociais. Nesse sentido, a relao harmnica entre

    democracia e neoliberalismo, na dcada de 1990, s foi possvel graas ao rebaixamento

    da democracia a meros procedimentos, como sugeriu Atlio Born (2004).

    Portanto, a anlise desse perodo histrico na Amrica Latina, em geral, e no

    Brasil, em particular, revela que as escolhas polticas, ou seja, a democracia

    procedimental, esto relacionadas com decises econmicas, neste caso a implementao

    de polticas de cunho neoliberal que, por sua vez, produziram graves consequncias no

    campo social.

    Desse modo, acreditamos que a contribuio desse estudo para a Cincia Poltica

    consiste na proposio de ampliar a viso da democracia para alm de normas e

    procedimentos, resgatando a estreita relao entre a poltica e as dimenses econmica e

    social, que caracterizam a obra de importantes autores da Cincia Poltica, como

    Tocqueville. E, nesse sentido, podemos dizer que a contribuio desta tese, para o debate

    contemporneo sobre o tema, est em trazer discusso a concepo de que no a

    democracia por si mesma que pode gerar desenvolvimento, reduzir a desigualdade,

    produzir igualdade de oportunidades e condies s pessoas. Estes fatores dependem

    muito do tipo de democracia implementado e esta, por sua vez, para sua consolidao, do

    modelo econmico estabelecido.

    21

  • Captulo I

    1.- Escolhas Polticas

    O conflito histrico entre poltica e economia ainda gera muitas polmicas sobre o

    poder e a importncia de ambos na estrutura da sociedade. Nesta tese objetiva-se

    sobrepor as tomadas de decises polticas sobre as econmicas, na medida em que

    escolhas polticas levam implementao de determinadas polticas econmicas. Na

    Amrica Latina, de uma forma geral, e no Brasil, mais particularmente, o tipo de

    democracia implementada, no que Samuel Huntington2 (1991) chamou de terceira onda

    democrtica, propiciou espaos amplos para a implantao de polticas econmicas de

    cunho liberal.

    A democracia na Amrica Latina foi se constituindo enquanto regime

    eminentemente poltico, sob uma forte base terica liberal, que dominou os debates e

    tornou-se hegemnica na formulao do pensamento democrtico latino. O discurso

    pautou-se na separao da esfera poltica dos problemas econmico e social. A poltica

    tornou-se o campo de uma democracia esvaziada de contexto, e vista apenas como um

    mtodo, procedimento de deciso no espao de poder. A igualdade poltica se resumiu

    esfera eleitoral, onde o povo escolhia quem iria determinar os rumos polticos dos pases.

    Desse modo, muitas transies foram pactuadas, permanecendo a elite na esfera das

    decises, onde definitivamente era o espao do poder, e o povo apenas no espao

    eleitoral. Esse arranjo poltico permitiu a implementao de polticas econmicas que

    favoreceram uma minoria em detrimento de uma maioria excluda da tomada de deciso.

    Neste contexto, os novos padres da democracia latino-americana foram traados

    segundo os preceitos do mercado. O Consenso de Washington3 foi o marco econmico 2 Para Huntington (1991), houve trs ondas de democratizao na histria do mundo moderno. Primeira onda: 1820 a 1926 com 29 democracias. Segunda onda:depois da II Guerra Mundial, com o auge em 1962 com 36 pases governados democraticamente. Terceira onda: 1974 a 1990. 3 O Consenso de Washington uma expresso utilizada para se referir a uma srie de orientaes de poltica econmica e social destinadas a reformas institucionais a serem implementadas na Amrica Latina. Essas orientaes foram elaboradas em meados dos anos 80, no Institute for Intenational Economics, de Washington, visando um novo crescimento econmico para a regio, com base em 10 pontos. 1) incremento da poupana mediante uma forte disciplina fiscal; 2) reorientao do gasto pblico para programas sociais bem elaborados (focalizao); 3)reforma do sistema tributrio para ampliar a base impositiva; 4) consolidao da superviso do Banco Central; 5) manuteno de tipo de cmbio competitivo; 6) liberalizao do comrcio intra-regional; 7) criao de uma economia de mercado altamente competitiva

    22

  • desse novo padro de democracia latino-americano, impondo aos pases regras que

    desmantelaram suas bases produtivas com as privatizaes, desregulaes financeiras e

    aberturas comerciais, deixaram merc milhes de pessoas que necessitavam dos

    servios pblicos e causaram o empobrecimento de suas populaes. Nesse novo cenrio,

    a democracia, enquanto regime de governo, adquiriu uma concepo minimalista,

    baseada em regras e procedimentos.

    A dcada de 1990, perodo de anlise da pesquisa, foi simultaneamente o espao

    temporal de auge e declnio deste tipo de democracia com base em procedimentos. A

    fora do discurso democrtico-neoliberal do comeo da dcada, como o nico e

    inevitvel caminho para as democracias (re)nascentes da Amrica Latina, tornou-se um

    pesado fardo para a maior parte da populao da regio no fim dos anos 1990.

    Desemprego, pobreza, trabalho informal, fome, descontentamento da populao foram

    algumas das consequncias desse regime poltico-econmico.

    Com base nessas observaes, este captulo apresenta os discursos sobre

    democracia que influenciaram a concepo desse regime na Amrica Latina. E o discurso

    predominante na academia a partir do incio desta terceira onda democrtica o de uma

    democracia eminentemente voltada a um sentido poltico, formal, com suas atenes

    concentradas na elite poltica, suas decises e estratgias. So inmeras as tentativas de

    conceituar, classificar e institucionaliz-la, objetivando separar a democracia poltica de

    sua face econmica e social. Neste sentido, inicialmente se examina o conceito de

    democracia liberal para compreender o conceito de democracia predominante na terceira

    onda democrtica. Aps essa explanao, vamos enfocar os tipos de conceitos de

    democracia mais utilizados nos estudos desta onda democrtica. Seguindo esta linha, so

    analisadas algumas das principais teorizaes que convergem para uma democracia de

    procedimentos, em seguida, analisa-se o conceito de democracia na Amrica Latina sob

    esta perspectiva, e, por fim, as anlises de alguns autores sobre as compatibilidades e/ou

    incompatibilidades entre democracia e capitalismo. Busca-se, assim, avaliar a formao

    do discurso sobre democracia nesta perspectiva procedimental/formal, implementado na

    mediante privatizao e liberalizao de todos os mercados de bens e servios, com especial nfase na desregulao do mercado de trabalho; 8) garantia ao conjunto da sociedade os direitos de propriedade; 9) criao de um banco central autnomo, poder judicirio independente e incorruptvel, e entidades que promovam a produtividade; 10) incremento do gasto pblico educativo no ensino primrio e secundrio.

    23

  • Amrica Latina, apesar de existirem controvrsias e outras alternativas que atendiam

    mais s demandas populares.

    muito importante essa passagem pela teoria para que possamos entender que s

    foi possvel a implementao de polticas neoliberais de forma legitimada e to ampla

    devido ao tipo de democracia implementado na regio. Uma democracia de

    procedimentos, na qual a grande preocupao era garantir direitos polticos e civis

    populao. Porm, sem a garantia de condies de acesso e oportunidades a todos, do

    ponto de vista econmico e social. Ou seja, a preocupao por condies econmicas e

    sociais foi deixada de lado no processo de redemocratizao, atendendo a um jogo de

    interesses organizado pela elite poltica que ocupava o poder e procurava garantir a

    participao popular na poltica atravs do voto sem mudar as estruturas econmicas e

    sociais at ento vigentes.

    nesse sentido que esta tese pretende demonstrar que a democracia de

    procedimentos foi funcional para a consolidao de polticas econmicas neoliberais. A

    implementao dessas polticas por parte dos governos eleitos democraticamente sugere

    que este tipo de regime negligenciou o bem-estar da populao, e, por isso mesmo, tomou

    decises que colaboraram com o aumento do desemprego e da pobreza na regio.

    1.1 - Compreendendo a democracia liberal

    Nosso foco de estudo a democracia na Amrica Latina no contexto da terceira

    onda democrtica. A anlise do tema democracia, portanto, muda o seu foco, pois j no

    h o debate polarizado entre democratas e no democratas. As preocupaes giram em

    torno das complexidades do prprio regime e suas adaptaes nos diversos contextos em

    que est sendo implementado. Porm, apesar da mudana na direo dos estudos e

    anlises, a maioria das pesquisas e caracterizaes da democracia nesta terceira onda tem

    em sua essncia os elementos da democracia liberal, surgida no sculo XIX como um

    modelo de governo baseado em liberdades individuais e pouca ou nenhuma interveno

    do Estado na esfera econmica. Entretanto, o modelo apresenta perspectivas de anlise

    diferentes. Nesse sentido, faz-se necessrio conhecer que abordagens da democracia

    liberal e autores, mais especificamente, influenciaram o modelo de democracia

    24

  • predominante. Examina-se para este propsito o estudo de C. B. Macpherson sobre a

    democracia liberal e suas vertentes.

    Em seu clssico estudo A democracia liberal origens e evoluo, Macpherson

    (1978) analisa a democracia liberal como um conceito matriz, e no como um conceito

    rival-concorrente, dentro do qual se inserem diferentes modelos como democracia

    protetora, democracia desenvolvimentista, democracia de

    equilbrio(elitista/pluralista/eleitoral) e democracia participativa. E esse conceito-matriz

    carrega em si um paradoxo, significando, por um lado, a democracia de uma sociedade de

    mercado e, por outro, a democracia de uma sociedade empenhada em garantir que todos

    os seus membros sejam igualmente livres para concretizar suas capacidades.

    Conforme Macpherson (1978:10), essas duas noes de democracia liberal

    estiveram desde ento incomodamente interligadas, cada qual com seus altos e baixos.

    Porm, de acordo com ele, a perspectiva de mercado tem prevalecido. Mas ele acredita

    que a continuidade da democracia liberal depende de uma diminuio gradual dos

    pressupostos do mercado e uma ascenso gradual do direito igual de desenvolvimento do

    indivduo.

    At o sculo XIX, conforme Macpherson (1978), a democracia, enquanto teoria,

    era pensada dentro de uma sociedade sem classes ou de classe nica, com base na posse

    da propriedade. Seus defensores (Rousseau, More, Thomas Jepherson) acreditavam que

    s se poderia viver democraticamente se todos os homens fossem iguais, com suas

    propriedades ou totalmente sem. Mas era uma democracia limitada a quem fosse cidado.

    Mulheres, por exemplo, estavam excludas. A partir do sculo XIX, com a presena da

    burguesia no poder poltico e a fora do capitalismo, enquanto modo de produo e de

    relaes sociais, criaram as condies para que a democracia fosse pensada dentro de

    uma sociedade de classes, com interesses antagnicos.

    No sistema capitalista, a democracia foi sendo pensada como uma forma de

    governar, dentro dos parmetros do mercado. O liberalismo, enquanto ideologia, foi o

    alicerce desse tipo de sistema democrtico, em que as leis eram as da oferta e procura, em

    que o mercado reinava supremo, sem a interferncia do Estado, e o homem deveria ser

    livre para tomar todas as suas decises, independentemente se essas afetariam

    negativamente outros seres humanos. Assim nasceu a democracia liberal. A concepo

    25

  • predominante da democracia liberal tinha em vista um homem maximizador de utilidades

    e uma sociedade como o conjunto de indivduos com interesses conflitantes.

    Macpherson observou dentro da teoria democrtica liberal quatro modelos, que

    ora se superavam, ora se interpunham, mas tinham um veio em comum: a predominncia

    da classe mais abastada no poder.

    O primeiro modelo, a democracia protetora, teve como principais representantes

    Jeremias Bentham e James Mill. Este modelo partia do pressuposto dos interesses

    burgueses, onde a segurana dos proprietrios deveria estar acima da igualdade de todos.

    Os autores defendiam a importncia da produtividade do sistema, da apropriao

    ilimitada e o desejo ilimitado. A democracia deveria proteger os que estavam no poder.

    No havia nenhuma noo de que ela pudesse ser uma fora transformadora do ponto de

    vista moral, ela nada mais era do que uma exigncia lgica para o governo de indivduos,

    inerentemente conflitando nos prprios interesses. A defesa dessa democracia repousa

    na proposta de que o homem um consumidor ao infinito, que sua motivao

    preponderante a maximizao de suas satisfaes ou utilidades, obtendo-as da

    sociedade para si mesmo, na qual essa sociedade nacional nada mais do que um

    conjunto desses indivduos4.

    Nessa linha de anlise, Bentham (apud Macpherson) via com naturalidade e

    inevitabilidade a massa de indigentes numa sociedade economicamente avanada. Da

    mesma maneira, para James Mill, o governo era assunto de ricos, obtido por meios

    condenveis ou bons. Ambos autores defendiam que para cada homem um voto, com

    objetivo de apaziguar uma classe trabalhadora que mostrava indcios de tornar-se

    articulada politicamente. Desse modo, o regime democrtico era um tipo de proteo aos

    burgueses, no qual as razes em favor da democracia eram de natureza puramente

    protetora aos seus interesses.

    O segundo modelo, o desenvolvimentista, divergia um pouco do modelo protetor

    em relao ao conceito do homem no apenas como um consumidor/ um utilitarista, mas

    de valor moral, com possibilidade de autodesenvolvimento do indivduo. Seu maior

    defensor foi John Stuart Mill, que tinha em mente, segundo Macpherson, um modelo de

    democracia com uma viso moral e de uma sociedade livre e igual, ainda inatingvel.

    4 Macpherson, C.B. Democracia Liberal origens e evolues. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p.47.

    26

  • Para Mill, a democracia era um meio necessrio para a possibilidade de aperfeioamento

    humano, embora o autor aceitasse as leis do mercado, e acreditasse que a injusta

    distribuio do produto do trabalho fosse acaso histrico e no um princpio capitalista. O

    voto, para ele, deveria ser plural, ou seja, as classes sociais com menor nmero de

    representantes deveriam ter mais votos, para impedir uma legislao classista. Alm

    disso, pobres e analfabetos estavam excludos do direito ao voto. Em suma, este modelo,

    de acordo com Macpherson, consistia em relaes capitalistas de mercado com a

    possibilidade de igualdade de autodesenvolvimento individual e o afastamento da

    imagem do homem como consumidor maximizante.

    J no terceiro modelo, o de equilbrio, ou elitista pluralista, a democracia era vista

    como um simples mecanismo para escolher e autorizar governos, e no uma sociedade

    com fins morais. O mecanismo desse modelo de democracia liberal consistia em uma

    competio entre dois ou mais grupos escolhidos de polticos ou agrupados em partidos.

    Era um modelo que esvaziava o contedo moral da democracia proposto no modelo

    desenvolvimentista. Seu precursor, Joseph Schumpeter (1984), caracterizava a

    democracia apenas como um mtodo poltico e via neste cenrio uma compatibilidade

    com a economia, onde os votantes eram os consumidores e os polticos, os empresrios.

    A participao deveria ser algo limitado, pois poderia por em risco a estabilidade do

    sistema. Essa afirmao motivou Macpherson a questionar as contradies deste modelo

    baseado na extrema desigualdade.

    Antony Downs (1999), adepto a esse modelo, em Teoria Econmica da

    Democracia, apresenta um modelo de racionalidade poltica da democracia sob um

    ponto de vista econmico, onde h consumidores e fornecedores. Para Downs, numa

    sociedade democrtica, o principal objetivo do governo a reeleio e, portanto, a funo

    poltica das eleies numa democracia selecionar um governo. Nesse sentido que

    Downs entende racionalidade por uma ao que eficientemente planejada para

    alcanar os fins econmicos ou polticos conscientemente selecionados do ator. Nessa

    concepo, tudo se move pelo interesse pessoal/ individual. Conforme Downs (1999:63),

    os homens racionais no esto interessados nas polticas per se, mas em suas prprias

    rendas de utilidade. Se suas rendas de utilidades presentes so muito baixas a seus

    prprios olhos, eles podem acreditar que quase qualquer mudana a ser feita aumentar

    27

  • suas rendas. A racionalidade poltica de Downs a racionalidade econmica do mercado

    e seu mais fiel arcabouo terico da democracia liberal.

    O ltimo modelo, o participativo, consiste em dois fundamentos incompatveis

    com o capitalismo, modo de produo em que se alicera esta democracia: 1)uma grande

    mudana da conscincia do povo e 2)uma significativa diminuio da desigualdade. um

    modelo que mescla a democracia direta na base com a representativa no topo.

    Macpherson justifica classificar a democracia participativa como democracia liberal ao

    retomar os pressupostos do modelo desenvolvimentista, com senso de valor do princpio

    tico, ou seja, direitos iguais ao pleno desenvolvimento e ao emprego de suas

    capacidades.

    Com a apresentao desses quatro modelos de democracia liberal, descritos por

    Macpherson, pode-se distinguir e compreender a origem do tipo de democracia

    implementado na Amrica Latina, com o processo de redemocratizao, a partir de 1979.

    A democracia de equilbrio foi o cerne do tipo do regime democrtico da Amrica Latina

    no seu processo de redemocratizao, traduzindo-se num tipo de regime em que a

    participao poltica nas decises governamentais se resumia ao voto e os direitos da

    populao se centravam em direitos polticos e civis (muitos somente na Constituio),

    ignorando as condies de desigualdades sociais e econmicas da populao. A

    democracia, pois, deveria se focar na esfera poltica e assim se constituir enquanto um

    regime de apoio e suporte ao mercado. A subseo seguinte permite a clara identificao

    desse tipo de regime democrtico na Amrica Latina que ficou conhecido por democracia

    de procedimentos.

    1.1.1 Abordagens e tipos de democracia

    Neste novo foco de estudo a democracia ganha caractersticas peculiares. A

    anlise j no parte mais da dicotomia pases democratizados e no democratizados. A

    inovao est agora em saber o que e como diferenciam pases democratizados entre si.

    Com base no estudo de David Collier e Steven Levitsky (1996) observa-se que

    um novo tipo de discurso democrtico se constituiu e predominou nas pesquisas sobre

    democracia. E a anlise do contexto evidenciou que a esfera poltica dessas democracias

    28

  • nascentes produziu, reproduziu e tambm incorporou o conceito de democracia como um

    mtodo.

    Collier e Levitsky analisaram centenas de estudos com o objetivo de saber como a

    democracia foi observada, conceituada e caracterizada nesta nova fase, principalmente na

    Amrica Latina. Os autores descobriram mais de 550 exemplos de democracia com

    adjetivos. Segundo eles, h um esforo de padronizar a terminologia mais notadamente

    via definies procedimentais, na tradio de Schumpeter e Dahl. A preocupao gira em

    torno do tipo de sistema de governo, do sistema eleitoral e partidrio, de uma forma geral,

    e colocando os fatores histrico-estruturais em segundo plano.

    De acordo com Collier e Levitsky, as abordagens sobre democracia partem de

    duas metas que parecem contraditrias: 1) procurar aumentar a diferena conceitual para

    capturar as diversas formas que a democracia tm emergido e 2) procurar evitar o

    alargamento conceitual para que no se aplique o conceito quando a realidade no

    corresponde. Os autores observaram que h uma tendncia inicial de uma abordagem

    geral do conceito que se concentra em cinco dimenses: 1)definio

    eleitoral/eleitoralismo; 2) mnimo procedimental; 3) mnimo procedimental expandido; 4)

    definio prottipo das democracias industriais avanadas e 5) concepo maximalista.

    Segundo os autores, as trs primeiras so as abordagens mais empregadas na literatura

    sobre democracia. Abaixo as caractersticas que definem cada uma dessas abordagens,

    conforme esses autores. Quadro 1.

    29

  • Quadro 1: Definies de democracia com base em pesquisas sobre democratizao

    na terceira onda democrtica

    Termos usados para designar conceitos de democracia

    (1) (2) (3) (4) (5)

    Significados Associados

    Eleitoral Mnimo

    procedimental

    Mnimo

    procedimental

    expandido

    Prottipo de

    democracias

    industriais

    Maximalista

    Eleies razoavelmente

    competitivas, sem fraude

    massiva e amplo sufrgio

    X X X X

    Frequente no

    incluso

    Liberdades civis bsicas,

    liberdade de expresso,

    assembleia e associao.

    X X X

    Frequente no

    incluso

    Governos eleitos tm

    poder efetivo para

    governar.

    X X

    Frequente no

    incluso

    Caractersticas polticas,

    econmicas e sociais

    adicionais associadas

    democracia industrial.

    X

    Frequente no

    incluso

    Igualdade socioeconmica

    e/ou altos nveis de

    participao popular nas

    instituies econmicas,

    sociais e polticas.

    X

    Fonte: Collier e Levitsky (1996)

    O quadro 1 permite observar a predominncia de elementos mnimos para definir

    a democracia, sem qualquer preocupao com aspectos econmicos e sociais. Na

    definio eleitoral prima-se somente o aspecto do voto, minimizando o processo

    democrtico no ato de votar e ser votado. A democracia, nessa abordagem, um mtodo

    poltico, em que a populao escolhe, via eleies, quem decide as polticas que

    orientaro os rumos do pas. A nica participao popular, nesta perspectiva, o ato de

    30

  • votar. Conforme Collier e Levitsky, uma abordagem que tem sido usada por muitos

    pesquisadores.

    Porm, conforme estes autores, so as abordagens mnimo procedimental e

    mnimo procedimental expandido que obtm um consenso substancial na definio de

    democracia. Esta ltima, principalmente, teve uma boa aceitao na literatura latina sobre

    o tema. Nestas perspectivas, a democracia vista como um conjunto de procedimentos e

    regras polticas como votar, ter direitos civis respeitados e os governos eleitos

    conseguirem governar. Ou seja, focam sobre definies mnimas, com um menor nmero

    possvel de atributos; que so observados como produzindo uma definio vivel de

    democracia.

    A definio prottipo das democracias industriais conceitua essa nova concepo

    de democracia a partir de caractersticas polticas, econmicas e sociais das democracias

    avanadas. Ou seja, apenas eleies e direitos civis bsicos no so elementos definidores

    de democracias.

    Por fim, a definio maximalista analisa a democracia como um regime que prima

    pela igualdade de relaes sociais e econmicas e ampla participao na tomada de

    deciso em todos os nveis. Conforme Collier e Levitsky, os autores dessa abordagem

    rejeitam a ideia procedimental, no incluindo garantias procedimentais em suas

    definies. Essa abordagem tem sido deliberadamente evitada nesta recente onda de

    democratizao, apesar de ter sido um campo comum nos estudos de democracia nos

    anos 1960 e 1970, principalmente na Amrica Latina.

    Os autores tambm verificaram que os estudiosos da democracia nesta terceira

    onda democrtica, alm de analisarem o tema sob diferentes abordagens discutidas

    acima, estudam a democracia de uma forma mais especfica sob estratgias de inovao

    conceitual, como: 1) preciso; 2) mudana na abrangncia a partir de diferentes contextos

    observando se uma situao democrtica, um momento democrtico, um governo

    democrtico, um regime democrtico ou um estado democrtico, e 3) criao de subtipos.

    Conforme os autores, o subtipo um conceito derivativo formado com referncia

    modificao de algum outro conceito. O significado mais comum a adio de algum

    adjetivo ao nome democracia como, por exemplo, democracia competitiva e democracia

    eleitoral, entre outros. Os autores identificaram a utilizao de subtipos clssicos como

    31

  • democracia federal, democracia partidria. Porm so os subtipos reduzidos que tm um

    papel central nesta literatura de democratizao. Estes subtipos, em contraste com os

    clssicos, no representam exemplos completos do conceito, ou seja, so vistos como

    exemplos incompletos de democracia.

    Os subtipos reduzidos, apresentados abaixo, so observados e caracterizados a

    partir de suas referncias ou derivaes.

    1) Democracias parciais: derivadas das dimenses do mnimo procedimental e mnimo

    procedimental expandido. Os pesquisadores que usam estes subtipos esto classificando-

    os a partir dos seguintes critrios: eleies livres, sufrgio universal e proteo das

    liberdades civis bsicas como caractersticas essenciais da democracia. So empregados

    geralmente para analisar processos democrticos em transio ou em pases em que o

    regime somente parcialmente democratizado. Na maioria dos casos, conforme Collier e

    Levitsky, so usados adjetivos que se referem a certos atributos fracos ou inexistentes. E

    desse modo, a democracia, no pas analisado, no completa, ou seja, parcial.

    2) Democracias problemticas: derivadas da dimenso prottipo de democracias

    industriais avanadas. Os pases so democrticos, mas apresentam problemas nos

    aspectos polticos, econmicos e sociais j superados pelas democracias industriais. Na

    maioria dos casos considerados como democracias problemticas no h presena, ou

    fraca, de um ou mais atributos presentes nas democracias avanadas como por exemplo:

    accountability horizontal, consolidao do regime, participao efetiva dos cidados e

    compromisso para sustentar as polticas de bem-estar social. E desse modo, onde a

    consolidao democrtica fraca os regimes so chamados de democracia frgil. Ou

    ainda, onde a accountability horizontal incompleta, o regime recebe o adjetivo de

    democracia delegativa (Guilhermo ODonnell, 1994) ou caudilhista.

    Os autores observaram, a partir dessas derivaes, que a democracia nesta terceira

    onda vista como um regime gradativo, analisada a partir de definies abrangentes

    (abordagens) e identificadas por subtipos do regime, com uma predominncia dos

    elementos procedimentais. Essas mesmas caractersticas predominantes no mbito

    acadmico foram visualizadas no contexto democrtico de muitos pases latinos, nesta

    terceira onda. A democracia implementada foi de fato a democracia no parmetro

    procedimental, fosse expandida ou no. As questes para alm das regras e

    32

  • procedimentos foram ignoradas. Os novos governantes democrticos garantiram eleies

    regulares e razoavelmente competitivas, e direitos civis bsicos, porm deixaram de lado

    necessidades sociais e econmicas primrias da sociedade. A abordagem democrtica

    implementada propiciou a implantao de polticas econmicas neoliberais, nas quais o

    compromisso para com as polticas de bem-estar foi fraco ou mesmo ausente. A prxima

    subseo examina esse tipo de democracia implementado na Amrica Latina, de modo

    que se possa entender que a democracia na regio no se constituiu como um suporte

    para a melhoria das condies de vida da populao. Ela veio para atender a outros

    interesses.

    1.1.2 -Conceituando democracia sob a tica procedimental

    A democracia na Amrica Latina se fundamenta nesse modelo de procedimentos,

    ou, como Macpherson denomina, de equilbrio. Desse modo, a concepo de democracia

    se restringe a regras que regulam a disputa eleitoral entre grupos polticos. E a

    participao fica restrita ao ato de votar do eleitor, aceitando um dos grupos que

    pretendem exercer o poder. A democratizao na regio, portanto, finca pilares em um

    conceito e discurso calcados numa concepo de democracia em sentido restrito esfera

    poltica, diluindo qualquer possibilidade de se pressup-la enquanto a representao de

    uma sociedade integrada e organizada, capaz de promover uma distribuio de renda e de

    poder entre os cidados (Welfort, 1984).

    Giovanni Sartori (1994), Joseph Schumpeter (1984) e Robert Dahl (1971) figuram

    entre os principais defensores deste tipo de democracia. Suas concepes sobre o regime

    limitam a participao popular e minimizam o processo democrtico ao ato de votar. A

    democracia, para eles, se estabelece num espao estritamente poltico, em que o poder

    exercido por poucos. Ao povo cabe apenas escolher quem deter esse poder.

    Em sua Teoria da Democracia Revisitada, Sartori (1994) chama a ateno para

    o fato de que a democracia j no apenas mais um conceito poltico, como a

    denominaram os antigos. O conceito ganhou outros significados e sentidos, como, por

    exemplo, democracia social, econmica e industrial. Conforme o autor, so sentidos

    legtimos, mas tambm responsveis por essa situao de democracia confusa. Para ele, a

    33

  • democracia , antes de tudo, um conceito poltico. a poltica que est na origem da

    palavra democracia.

    Ningum nega a importncia da democracia social enquanto base vital de uma sociedade poltica democrtica, nem que uma democracia primria, bsica, pode ter mais valor que qualquer outro aspecto da democracia. Da mesma forma, a equalizao econmica e a democracia industrial podem ter mais importncia para ns que qualquer outra coisa. Permanece o fato de que a democracia poltica a condio indispensvel, o instrumento indispensvel de qualquer democracia ou meta democrtica que acalentemos. Se o sistema principal, o sistema poltico global, no um sistema democrtico, ento a democracia social tem pouco valor, a democracia industrial tem pouca autenticidade, e a igualdade econmica pode no diferir da igualdade entre os escravos. Essa a razo pela qual democracia sem adjetivos significa democracia poltica, a razo pela qual democracia antes de tudo um conceito poltico. (Sartori, 1994:29)

    Portanto, de acordo com ele, democracia no sentido poltico uma

    macrodemocracia, a democracia soberana, supra-ordenada. E nesse sentido, a

    democracia poltica um mtodo, um procedimento, uma maquinaria que produz bens,

    ou seja, produz outros tipos de democracia. Desse modo, a democracia poltica deve

    preceder qualquer grande realizao que se possa exigir de uma democracia.

    Sartori faz um esforo intelectual para contribuir com o rompimento da

    indefinio que paira sobre a democracia, buscando defini-la nos sentidos descritivo () e

    prescritivo (deve ser). Porm, a minimiza quando compreende democracia apenas como

    um processo que de fato sintetizado em eleies.

    Para o autor, a democracia, enquanto governo do povo, tomada apenas na

    acepo etimolgica, sem que da se retire um valor em si. A interpretao do termo povo

    compreendida como uma maioria limitada por uma minoria. E democracia, portanto,

    conforme Sartori, um sistema de governo de maioria limitado pelos direitos das

    minorias (Sartori, 1994:45). No qual, as maiorias e minorias so alternveis.

    Ao contrrio de muitos autores que sustentam e defendem a maioria como pilar da

    democracia, Sartori acredita que o respeito e a salvaguarda da minoria que sustentam a

    dinmica e a mecnica da democracia. ...os direitos da minoria so uma condio

    necessria ao processo democrtico. Se estamos comprometidos com esse processo, ento

    34

  • tambm devemos estar com um poder de maioria restringido e limitado pelos direitos da

    minoria (Sartori, 1994:56).

    Na teoria de Sartori o povo tem o direito de escolher seus representantes, ou seja,

    decidir o titular do poder, mas o exerccio real do poder no est em suas mos. nesse

    sentido que Sartori afirma que as democracias modernas dependem de: a) poder limitado

    da maioria; b) procedimentos eleitorais e c) transmisso do poder dos representantes. Isso

    implica, conforme o autor, que no seio do povo como um todo, uma parcela do povo

    conta mais, outra parcela conta menos; que mesmo o povo que constitui a maioria

    eleitoral vitoriosa no exerce realmente o poder; e que muito do que chamado de

    vontade do povo soa mais como um consenso do povo (Sartori, 1994:52). Sartori se

    empenha em defender uma democracia na qual, para ele, apesar do povo transferir o

    poder para o representante, aquele no perde sua liberdade no momento em que vota;

    porque pode decidir transferir sua adeso do grupo majoritrio para o minoritrio, por

    exemplo.

    O autor argumenta que o povo tambm tem seu momento de governar. Para ele,

    este momento o das eleies. No pouca coisa, pois o processo democrtico de fato

    sintetizado em eleies e eleger5. Ou seja, o ato de governar do povo se resume no

    processo eleitoral. Conforme Sartori, isso muito, porque as eleies verificam o

    consenso, porque as eleies registram as decises do eleitor, porque computam opinies.

    E a opinio pblica, de acordo com ele, autnoma. O teste democrtico, de acordo com

    o autor, o teste eleitoral, porque s as eleies manifestam um consenso geral. Porm,

    o autor deixa muito claro que as eleies no decidem sobre polticas concretas;

    estabelecem, ao invs, quem vai decidir sobre elas. As eleies no resolvem problemas;

    decidem, antes, quem vai resolver os problemas (Sartori, 1994:152). E se, de fato, as

    eleies decidem sobre quem vai decidir, o nus da racionalidade, conforme o autor, no

    pesa nos ombros dos eleitores. Ele transferido para seus representantes.

    Essa representao, segundo Sartori, hoje o caminho mais vivel da

    governabilidade do regime democrtico. Para o autor, a democracia participativa s

    significativa, autntica e real em pequenos grupos, porque o tomar parte pessoalmente e

    deliberar polticas diminui medida que a populao cresce. Nem mesmo o referendo

    5 Sartori, 1994:123

    35

  • instrumento da democracia direta no participativo, conforme o autor, porque ele no

    permite a discusso, o debate, a participao. Ali, a opinio individual do cidado

    diante de uma questo determinada por uma agenda poltica.

    Sartori v a democracia como um processo decisrio, calcado na representao.

    Uma deciso que se encontra fora da competncia dos eleitores e tomada por algum

    para que outrem cumpra o que ele chama de deciso coletivizada. E toda coletividade

    organizada se submete s decises coletivizadas, embora essa prtica tenha variaes nas

    sociedades contemporneas. Porm, a deciso coletivizada pode no implicar a deciso

    de todos, mesmo que recaia sobre todos. Essa coletivizao da deciso a essncia da

    democracia representativa, que carrega em si dois elementos que podem favorecer ou

    prejudicar a coletividade: custos internos e riscos externos. Os custos internos significam

    que toda deciso de grupo tem custos para os prprios tomadores de decises; os riscos

    externos so riscos para os destinatrios. Quanto maior o nmero de pessoas no rgo

    responsvel pelas decises, maior os custos internos ou custos decisrios. Inversamente,

    os riscos externos diminuem medida que o rgo decisrio aumenta o nmero de

    indivduos. Os dois instrumentos analticos esto inversamente relacionados, pois o

    desempenho positivo de um est ligado ao prejuzo do outro.

    O ponto de equilbrio dos dois elementos se baseia em trs variveis mencionadas

    por Sartori para tentar uma soluo vivel: nmero de pessoas que tomam decises,

    forma de selecionar os indivduos e as regras da tomada de decises. O problema

    passvel de soluo porque os riscos externos esto em funo bem mais do mtodo de

    formao do grupo decisrio do que do nmero de participantes desse rgo. O mtodo

    representativo aparece ento como a nica possibilidade para lidar com os riscos

    externos, pois encher o grupo decisrio de pessoas inviabiliza a tomada de decises.

    Apenas a reduo drstica do universo dos representados para um pequeno grupo de

    representantes permite uma reduo importante dos riscos externos sem agravar os custos

    internos (Sartori, 1994:294-297).

    A viso da democracia elaborada por Sartori tem como foco vrias unidades

    formadoras da teia de processos de tomada de deciso: os comits, que so os grupos de

    pessoas que realmente tomam as decises. E, para Sartori, somente nestes comits h a

    possibilidade de participao, enquanto um tomar parte de forma significativa com debate

    36

  • e discusses. So nesses comits, segundo o autor, que a representao desempenhada.

    Eles constituem, na viso do autor, a unidade por excelncia de formao das decises.

    Schumpeter (1984) mostra-se ainda mais radical que Sartori ao definir a

    democracia como um sistema institucional para a tomada de decises polticas, no qual o

    indivduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do

    eleitor. Portanto, para ele, a democracia um mtodo poltico e no um rol de ideais, ou

    seja, um arranjo institucional que regula a disputa entre grupos polticos pelo poder.

    Esta concepo evidencia a viso minimalista e procedimental que o autor tem da

    democracia.

    Por mtodo poltico Schumpeter (1984:304) entende ser este um certo tipo de

    arranjo institucional para se alcanarem decises polticas. E nesse sentido, portanto, a

    democracia no deve ser compreendida como um fim em si mesmo. O autor aprimora a

    definio de mtodo poltico ou democrtico acrescentando o seguinte ponto: neste

    mtodo os indivduos adquirem o poder de deciso atravs de uma luta competitiva pelos

    votos livres da populao (Schumpeter, 1984:336). Isto consiste mais ou menos na

    chamada competio pela liderana, que o critrio usado para distinguir os governos

    democrticos. O mtodo eleitoral tomado enquanto critrio porque se mostra o nico

    disponvel a comunidades de qualquer tamanho na conduo da competio dentro dos

    regimes democrticos. Conforme Schumpeter, o papel do eleitorado nestes regimes

    produzir um governo e desaposs-lo. Ou seja, produzir um governo significa a aceitao

    de um lder ou grupo de lderes, enquanto a funo de desapossar a retirada da aceitao

    nas urnas.

    Para Schumpeter, nas modernas sociedades o povo no participa diretamente das

    decises. representado por membros da elite, numa acepo ideia de um modelo

    elitista de busca ao poder, no qual a elite compete pela adeso e conduo ao poder,

    atravs das massas. Conforme o autor, as elites so as portadoras de racionalidade

    poltica e, portanto, capazes de tomar as decises, cabendo ao povo sua participao

    atravs do voto.

    O autor um crtico da teoria tradicional de democracia, ancorada na noo de

    soberania popular do governo do povo, cuja concepo se articula em torno do seu

    37

  • protagonismo. Schumpeter coloca em dvida a capacidade efetiva do povo de produzir

    uma vontade autnoma, racional e que traduza um bem que, de fato, seja comum a todos.

    Conforme Schumpeter, impossvel que indivduos diferentes, sujeitos a

    estmulos diversos e com interesses distintos cheguem a um consenso acerca de um bem

    comum. E se isso acontecesse, de acordo com o autor, estes indivduos se desentenderiam

    com relao aos meios necessrios para alcanar o objetivo proposto. Para Schumpeter,

    as pessoas reunidas em grande nmero tendem a reduzir sua atividade mental para

    padres no-lgicos e no-racionais. De acordo com o autor, muitos fatores atrapalham o

    desempenho dos indivduos comuns na esfera poltica, como o desconhecimento das

    regras do jogo, a falta de controle do resultado das eleies, a incompreenso do processo

    eleitoral, alm da influncia dos lderes e suscetibilidade ao de propagandas.

    E desse modo, nenhuma situao poltica criada pelo povo. Todo o regime

    poltico moldado por elites polticas. O cidado no tem capacidade de decidir ou

    escolher uma poltica. Esta o resultado da disputa de elites. A democracia apenas um

    conjunto de procedimentos e regras que facilita essa competio. E, portanto, a principal

    instituio poltica desse modelo a eleio. por meio dela que o povo escolhe que

    grupos da elite detero o poder. Para o autor, atravs das eleies que os eleitores

    decidem se aceitam ou no a dominao de uma liderana. Mas essa escolha no feita

    de forma autnoma. Como dito antes, os eleitores so persuadidos, seja pelas lideranas

    ou pela mdia.

    Robert Dahl tambm analisa a democracia como um procedimento, um mtodo.

    Porm vai alm de Schumpeter, considerando democracia como o governo que se

    configura pela concertao de muitos interesses e preferncias. Nesse sentido, o poder

    estaria dividido entre grupos governamentais e externos, e estes fariam presses sobre o

    governo. Dessa forma, o poder seria plural, porm essa pluralidade no exercida por

    todos.

    Para Robert Dahl (1971), uma caracterstica chave dessa democracia a

    responsividade contnua do governo s preferncias de seus cidados, considerados iguais

    politicamente. Nesses termos, a democracia, conforme Dahl, seria um tipo ideal. Ele

    chamou de poliarquia os regimes efetivamente existentes, resultantes da democracia

    enquanto sistema ideal.

    38

  • O autor compreende a democracia estritamente como um regime poltico de

    regras e procedimentos. Como institucionalista, no sentido de acreditar que as instituies

    fixam uma estrutura de incentivos para a concertao de preferncias e esforos, Robert

    Dahl deposita nas instituies a importncia de fornecer sociedade ao menos oito

    garantias que possibilitam as condies necessrias democracia. 1) liberdade para

    formar e participar de associaes; 2) liberdade de expresso; 3) direito a voto; 4)

    elegibilidade a cargo pblico; 5) direito de lderes polticos de competir; 6) alternativas

    de fontes de informao; 7) eleies livres e justas e 8) instituies nas quais as polticas

    de governo dependem de votos e de outras expresses de preferncias.

    Para o autor, estas oito garantias institucionais forneceriam uma escala terica, na

    qual seria possvel ordenar diferentes tipos de sistemas polticos, de democrticos a no-

    democrticos a partir de duas dimenses: contestao pblica e inclusividade. Mas

    importante observar que quando Dahl fala em contestao pblica refere-se a um sistema

    institucionalizado e pacfico de competio pblica, e inclusividade, para o autor, a

    incluso da populao adulta via incorporao eleitoral ao processo poltico. Conforme

    Dahl, a participao popular no poder deve ser por meio de eleies representativas pelo

    voto, com ampla organizao popular. Mas se limita a uma participao eleitoral,

    deixando aos grupos de interesse organizado a representao das preferncias populares,

    por possurem, de acordo com ele, um ndice maior de atividade poltica e menor

    propenso ao autoritarismo.

    O grau de institucionalizao dessas duas dimenses, contestao pblica e

    inclusividade, pode ser observado em quatro tipologias de regimes: 1)hegemonia fechada,

    sem qualquer tipo de participao e contestao pblica; 2) oligarquia competitiva, com

    plena contestao e nenhuma participao; 3)hegemonia inclusiva, sem nenhuma

    contestao e plena participao e 4) poliarquia, plenas contestao e participao.

    Conforme Dahl, quando regimes hegemnicos de precria contestao e inclusividade

    caminham em direo a uma poliarquia um indicativo de que aumentaram as

    possibilidades de efetiva contestao e incluso. nesse sentido que ele afirma que

    poliarquias so regimes que tm sido substancialmente popularizados e liberalizados,

    isto , altamente inclusivos e extensivamente abertos contestao pblica. (Dahl,

    1971:8).

    39

  • Na poliarquia, conforme o autor, h um maior nmero de indivduos, interesses e

    grupos cujas preferncias devem ser levadas em considerao nas decises polticas. No

    apenas um grupo de interesse que est no poder, h uma concertao. Mas h conflito

    tambm fora do governo, da esfera de poder. Uma oposio que quer fazer com que seus

    interesses sejam atendidos e um governo que tenta barrar os objetivos da oposio. A

    tolerncia, pois, o ponto de equilbrio desse conflito, a partir de dois elementos: custos

    de tolerncia e custos de represso. A probabilidade de um governo tolerar uma oposio

    aumenta com a diminuio dos custos de tolerncia e com o crescimento dos custos de

    represso. A segurana mtua desses dois atores polticos governo e oposio

    aumenta as possibilidades de contestao pblica e poliarquia, segundo o autor.

    Dahl deixa bem evidenciado que a transio poliarquia no um processo natural.

    Ela depende de sete conjuntos de condies:

    1) acontecimentos histricos, nos quais a competio pblica precede a

    participao;

    2) ordem socioeconmica, onde a violncia e as sanes socioeconmicas so

    dispersadas ou neutralizadas;

    3) nvel de desenvolvimento socioeconmico representado por um PIB per capita

    entre $700 e $800;

    4) igualdades e desigualdades, onde a desigualdade baixa e dispersa e a privao

    baixa ou diminui cada vez mais;

    5) pluralismo subcultural, em que no h uma maioria, no regional e onde no se

    tem garantias mtuas;

    6) dominao do poder estrangeiro fraca ou temporria;

    7) crenas dos ativistas polticos tais como: instituies da poliarquia so legtimas,

    a poliarquia efetiva em resolver grandes problemas, h confiana nos outros, a

    relao poltica cooperativa e competitiva, ou seja, h compromissos.

    Portanto, na teoria dahlsiana a chance de um pas ser governado em nvel

    nacional por um considervel perodo de tempo por um regime, no qual oportunidades

    para a contestao pblica esto disponveis a uma grande parte da populao (isto , a

    poliarquia), depende ao menos desses sete conjuntos de complexas condies. (Dahl,

    40

  • 1971:202). Em suma, a teoria dahlsiana se baseia tambm em procedimentos. Estes, uma

    vez cumpridos, o pas torna-se polirquico. O voto o principal instrumento de

    participao e o poder no est mais concentrado nas mos