ROTEIRO DE DIREITO CONSTITUCIONAL PARA O CONCURSO DE...
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Cibele Fernandes Dias
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ROTEIRO DE DIREITO CONSTITUCIONAL PARA O
CONCURSO DE AUDITOR FISCAL DO TRABALHO -
MTE 1 - aulas 1 a 4
PONTOS DO EDITAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 1.1 Princípios
fundamentais. 2. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2.1 Normas de
eficácia plena, contida e limitada. 2.2 Normas programáticas. 3 Direitos e
garantias fundamentais.
1. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
O MAPA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: preâmbulo, Títulos I a IX e Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias
“Há que se ter presente, no entanto, considerada a controvérsia em referência,
que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em recente (e unânime) decisão
(ADI 2.076/AC, Rel. Min. CARLOS VELLOSO), reconheceu que o preâmbulo da
Constituição não tem valor normativo, apresentando-se desvestido de força
cogente.”[...] O preâmbulo não é um conjunto de preceitos. (...). O preâmbulo não
pode ser invocado enquanto tal, isoladamente; nem cria direitos ou deveres (...);
não há inconstitucionalidade por violação do preâmbulo como texto 'a se'; só há
inconstitucionalidade por violação dos princípios consignados na Constituição.”2
1 Elaborado pela Professora Cibele Fernandes Dias como plano de aula. Mestre e Doutora em Direito
Constitucional pela PUC/SP. Professora de Direito Constitucional da FEMPAR (Fundação Escola do
Ministério Público do Paraná), ESMAFE (Escola da Magistratura Federal do Paraná), EMAP (Escola da
Magistratura Estadual do Paraná), ESA/PR (Escola Superior de Advocacia do Paraná). Advogada
(OAB/Pr 25443). 2 Voto do Ministro Celso de Mello, Relator no Mandado de Segurança n. 24645-DF, transcrição do
Informativo do Supremo Tribunal Federal n. 320.
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1.1 Princípios fundamentais
a) DISTINÇÕES DAS NORMAS JURÍDICAS: PRINCÍPIOS E REGRAS
(a) Normas constitucionais : regras (preceitos) ou princípios
Os princípios e as regras constitucionais podem ser expressos (escritos no texto)
ou implícitos (decorrentes de normas expressas). As normas constitucionais
implícitas formam uma espécie de “Constituição virtual”, porque somente são
apreendidas mediante um processo de interpretação sistemática. Ambos,
princípios e regras, são normas constitucionais dotados de aplicabilidade e,
portanto, servem como parâmetro para (1) o controle de constitucionalidade das
leis posteriores à CF (se violarem princípios ou regras constitucionais podem ser
declaradas inconstitucionais), (2) a revogação das leis anteriores à CF que
colidam com o seu conteúdo. 3
3 Para José Joaquim Gomes Canotilho, constitucionalista português, as normas constitucionais podem ser
classificadas, quanto à sua estrutura, em princípios ou regras (preceitos) constitucionais. Esta tipologia é
adotada pela doutrina brasileira como também pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Os
princípios são normas constitucionais (i) com grau de abstração relativamente elevado em relação às
regras, (ii) vagas e imprecisas se comparados com as regras, o que lhes confere uma baixa densidade
normativa se comparados com as regras; (iii) são normas mais próximas à ‘idéia de direito’, (iv) são
multifuncionais: (1) servem como cânone (parâmetro) de interpretação do direito constitucional e do
direito infraconstitucional (FUNÇÃO INTERPRETATIVA DOS PRINCÍPIOS), (2) revelam normas que
não são expressas no texto possibilitando a integração (preenchimento de lacunas) e a complementação do
direito (constitucional e infraconstitucional) (FUNÇÃO INTEGRATIVA OU SUPLETIVA DOS
PRINCÍPIOS), (3) são o fundamento de regras jurídicas (função normogenética dos princípios, o que
justifica a circunstância de atuarem como pilares para a interpretação e integração das regras
constitucionais e legais, permitindo a compreensão da Constituição enquanto sistema, dotado de coerência
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo
brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.
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A doutrina majoritária brasileira adota uma teoria que propõe uma distinção forte
entre princípios e regras. Os princípios e as regras têm estruturas lógicas diversas
porque têm formas de aplicação diversas. Não se trata de mera distinção gradual
– de generalidade e abstração – ou de diferença de grau. Segundo a teoria dos
princípios, o principal traço distintivo entre princípios e regras é que no caso das
regras garantem direitos (ou se impõem deveres) definitivos, ao passo que no caso
dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie. No
caso dos princípios, há uma diferença entre aquilo que é garantido (ou imposto)
prima facie e aquilo que é garantido (ou imposto) definitivamente. Pode-se dizer
que há um longo caminho entre um (o “prima facie”) e outro (o “definitivo”). Na
esteira de Robert Alexy, os princípios são mandamentos de optimização: são
normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível, diante das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Os princípios se distinguem das
regras, pois estas, se válidas, devem sempre ser realizadas por completo. Ao
contrário das regras, os princípios podem ser realizados em vários graus.
A aplicação dos princípios depende de condições jurídicas – a realização total de
um princípio encontra barreiras na proteção de outro princípio ou de outros
princípios. No caso das regras, a aplicação não depende de condições jurídicas do
caso concreto. A distinção do conteúdo do dever-ser das regras e dos princípios
implica uma importante diferença na forma de aplicá-los. Pode-se usar as figuras
do “conflito entre regras” e da “colisão entre princípios” para deixar isso claro.
Por causa dessa diferença de estrutura, há uma distinção na forma de aplicação
das normas jurídicas: a subsunção e o sopesamento.
Conflito normativo: conflito entre regras e colisão entre princípios. O
conflito normativo é a possibilidade de aplicação, a um mesmo caso
concreto, de duas ou mais normas cujas conseqüências jurídicas se
mostrem, pelo menos para aquele caso, total ou parcialmente
incompatíveis. É o que Alf Ross chama de “inconsistência”.
Conflito entre regras: aqui vale o conhecido raciocínio “tudo ou nada”. Se
o conflito for parcial, resolve-se pela instituição de uma cláusula de
exceção de uma delas. Se for total, a declaração de invalidade de uma
delas. O conflito entre regras é resolvido no plano da validade: sempre que
há conflito entre regras, há alguma forma de declaração de invalidade. A
validade não é graduável, pois ou uma norma é válida ou não. Tertium non
datur. Duas regras que prevêem conseqüências jurídicas diversas para o
mesmo suporte fático não podem pertencer ao mesmo sistema jurídico. Uma
delas é, pelo menos para esse sistema, inválida.
Conflito entre princípios: A solução de colisões entre princípios não exige
a declaração de invalidade de nenhum deles e também não é possível que se
interna) (FUNÇÃO FUNDAMENTADORA DOS PRINCÍPIOS). CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 166-167.
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fale que um princípio institui uma exceção a outro. Quando dois princípios
colidem, o que ocorre é a fixação de relações condicionadas de
precedência. Essa diferença decorre da estrutura dos princípios, que são
mandados de otimização.
Como o princípio é um mandado de optimização – exigem que algo seja
realizado na maior medida possível diante das condições jurídicas e fáticas
existentes – a sua realização quase sempre é restringida pela realização de
outro. Condições jurídicas expressam a possibilidade de colisão com outros
princípios, o que poderá limitar, no caso concreto, a realização de um ou
mais princípios de forma total ou parcial. Isto não é resolvido a partir da
declaração de invalidade de um dos princípios. Depois da solução da
colisão, os princípios continuam tão válidos quanto antes. E um não
constitui exceção ao outro, pois às vezes prevalecerá um, às vezes,
prevalecerá outro. Tudo dependerá do caso em questão. São relações
condicionadas de precedência, porque a relação é sempre condicionada à
situação concreta. A validade do princípio não é afetada nos casos em que
sua aplicação é restringida em favor da aplicação de outra norma.
Havendo colisão entre princípios, será necessário realizar um sopesamento
entre os princípios colidentes para que se decida qual deles terá
preferência, que valerá, enquanto precedência condicionada, apenas para
aquele caso concreto. Não se pode dizer que houve a instituição de uma
cláusula de exceção, porque quando isso acontece, no caso das regras, a
exceção é sempre a mesma e vale para todos os casos de aplicação
daquelas regras.
No caso da colisão entre princípios, portanto, não há como se falar em um
princípio que sempre tenha precedência em relação a outro. Uma norma é
um princípio não por ser fundamental, mas por ter a estrutura de um
mandado de otimização.
Colisão entre princípios e regras? Não é possível. Sopesar regra e princípio
não é possível porque poderá haver caso em que a regra válida e aplicável
é afastada. Incompatível com a idéia de que a regra garante direitos (ou
impõe deveres) de forma definitiva. E sopesamento só cabe em normas que
tenham a dimensão do peso. Solucionar o conflito no plano da validade
implicaria aceitar que um princípio que cede em favor de uma regra teria
de ser expelido do ordenamento jurídico. Incompatível com a idéia de que a
validade de um princípio não é afetada no caso em que sua aplicação é
restringida em favor da aplicação de outra norma.
Não há colisão entre princípios e regras. O que há é o produto de um
sopesamento, feito pelo legislador, entre dois princípios que garantem
direitos fundamentais, e cujo resultado é uma regra de direito ordinário. A
relação entre a regra e um dos princípios é uma relação de restrição e não
de colisão. A regra é a expressão da restrição de um dos princípios.
PROBLEMA: QUANDO A APLICAÇÃO DA REGRA POR SUBSUNÇÃO,
em determinado caso concreto, levaria a situações consideradas
incompatíveis com algum princípio constitucional decisivo para o caso
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concreto, sem que, no entanto, essa incompatibilidade seja algo verificável
em abstrato e, portanto, sem que haja razões para considerar essa regra
inconstitucional. Você decide que a regra não se aplica, que o ato não se
enquadra na descrição da regra. Em outros casos, é necessário incluir uma
conduta, um estado ou uma posição jurídica na proteção de um direito
fundamental. O Judiciário pode criar uma regra que constitui exceção à
regra proibitiva. Exemplo: a regra legal que permite o saque do FGTS
quando o titular tem AIDS, proíbe implicitamente o saque para os seus
dependentes. O Judiciário cria uma regra que permite o saque quando os
dependentes têm HIV e essa regra é aplicada por subsunção. A regra criada
pelo juiz é produto do sopesamento de dois princípios. Do sopesamento
entre princípios, surge a regra (processo de surgimento).
Na realidade, o sopesamento não é entre a regra e o princípio. Não há
colisão entre a regra e o princípio, mas entre o princípio em questão e o
princípio que sustenta a regra que com ele colide. O sopesamento é uma
forma de interpretação e não de aplicação, destina-se a verificar se o fato
em questão é típico ou não.
Resumo das diferenças entre regras e princípios: (1) é estrutural, implica deveres
de estrutura diferentes (deveres definitivos – regras e deveres prima facie –
princípios), (2) formas diferentes de aplicação (subsunção – regras e
sopesamento ou ponderação – princípios), (3) os princípios têm a dimensão do
peso (um princípio cede preferência a outro, em determinada situação de colisão,
sem que, com isso, se torne inválido e tenha que ser expurgado do ordenamento
jurídico), as regras seguem a lógica do “tudo ou nada”.4
a) PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
INTERPRETAÇÃO: possibilidade de indagação do conteúdo semântico dos enunciados
linguísticos do texto constitucional com a conseqüente dedução de que a matéria de
regulamentação é abrangida pelo âmbito normativo da norma constitucional.
INTEGRAÇÃO: determinadas situações que se devem considerar constitucionalmente
reguladas não estão previstas e não podem ser cobertas pela interpretação, mesmo
extensiva, dos preceitos constitucionais (considerados na sua letra e na sua ratio).
DOIS PROCESSOS GRADUAIS DE OBTENÇÃO DO DIREITO
CONSTITUCIONAL: o intérprete tem uma dupla tarefa – (1) fixar o âmbito e o
conteúdo de regulamentação da norma a aplicar, (2) se a situação de fato carecedora de
decisão não se encontrar regulada no complexo normativo-constitucional, ele deve
completar a lei constitucional preenchendo ou colmatando as suas lacunas.
4 Sobre o tema, consultar: SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do direito: os direitos
fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011. Do mesmo
autor: Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros,
2011.
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LACUNA CONSTITUCIONAL AUTÔNOMA: ausência de disciplina jurídica no
complexo normativo, mas esta pode ser deduzida do plano regulativo da Constituição e da
teleologia da regulamentação constitucional.
LACUNAS DE REGULAMENTAÇÃO: (1) lacunas no nível das normas, quando um
preceito constitucional é incompleto, tornando-se necessária a sua complementação para
que ele seja aplicado, (2) quando não se trata de uma incompletude da norma, mas uma
determinada regulamentação em conjunto.
MÉTODO PARA COLMATAÇÃO: analogia (argumentum a simile) – transferência de
uma regulamentação de certas situações para outros casos merecedores de igualdade de
tratamento jurídico e que apresentam uma coincidência axiológica significativa.
b.1 PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
1) PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO: a Constituição deve ser
interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos), obrigando o
intérprete a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas
constitucionais, considerando-as não como normas isoladas e dispersas, mas como
preceitos integrados num sistema interno unitário.
2) PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR: na resolução dos problemas
constitucionais, deve dar-se primazia aos critérios que favoreçam a integração política e
social e o reforço da unidade política.
3) PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE OU PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É
invocado no âmbito dos direitos fundamentais: no caso de dúvida, deve ser preferida a
interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.
4) PRINCÍPIO DA JUSTEZA OU DA CONFORMIDADE FUNCIONAL: o órgão
encarregado da interpretação constitucional não pode chegar a um resultado que subverta
ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido, ou seja,
visa impedir a alteração da repartição de funções constitucionalmente estabelecidas por
meio da concretização constitucional.
5) PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO: impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o
sacrifício total de uns em relação aos outros, a fim de se buscar uma harmonização ou
concordância prática. Aplica-se principalmente na colisão entre direitos fundamentais ou
entre eles e bens jurídicos constitucionalmente protegidos, de forma que este princípio
exigirá a ponderação.
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6) PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO: na solução dos
problemas constitucionais, deve dar-se prevalência aos pontos de vista que contribuem
para uma eficácia ótima da lei fundamental, ou seja, que garantem a a eficácia e
permanência da Constituição
7) PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E
DOS ATOS DO PODER PÚBLICO: as leis e atos do Poder Público elaborados na
vigência de uma Constituição presumem-se constitucionais em relação à ela.
8) PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS EM CONFORMIDADE COM
A CONSTITUIÇÃO: no caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas deve-se dar
preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição.
Devem ser considerados os seguintes princípios na interpretação conforme a CF:
(1) Princípio da prevalência da Constituição: deve-se escolher a interpretação não
contrária ao texto e ao programa da norma.
(2) Princípio da conservação: uma norma não deve ser declarada inconstitucional
quando puder ser interpretada em conformidade com a Constituição.
(3) Princípio da exclusão da interpretação conforme a Constituição mas “contra
legem”: o aplicador da norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma
através de uma interpretação conforme, mesmo que por meio dela consiga uma
concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais (não é
possível chegar-se a uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido
literal ou objetivamente claro da lei ou em manifesta dessintonia com os objetivos do
legislador).
c) PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS (TÍTULO I DA CF): são princípios
fundamentais todos aqueles dispostos no Título I da Constituição, dos artigos 1º a 4º,
que compreendem:
(1) FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1º, CF);
(2) PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES (art. 2º, CF)
(3) OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
(art. 3º, CF)
(4) PRINCÍPIOS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL (art. 4º, CF)
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PRINCÍPIO REPUBLICANO
FORMA DE GOVERNO (modo como se organiza a Chefia de Estado num país): a forma
de governo adotada no Brasil é a republicana. A República constitui princípio constitucional
fundamental, pois atua como fonte inspiradora para várias regras constitucionais. Não é por
acaso que a parte permanente começa com a expressão “A República” (art. 1º, da CF). O art.
2º do ADCT previu a realização de plebiscito para escolha da forma e do sistema de governo,
resultando na decisão popular pela manutenção da república e do presidencialismo,
constantes da Constituição na sua redação originária.
a) Diferenças entre Chefia de Estado e Chefia de Governo
O Chefe de Estado (i) representa o Estado na sua unidade (povo, território e governo), (ii)
comanda as Forças Armadas e (iii) defende e preserva os objetivos de Estado (presidir).
Exemplos na CF de 1988: incs. VII, VIII, IX, XII, XIII, XIX, XX, XXI do art. 84, que elenca
as competências do Presidente da República. O Chefe de Governo (i) representa, no máximo,
o partido dominante (uma parte do Estado, o governo, responsável pela consecução de
políticas públicas), (ii) comanda uma equipe de políticos e (iii) executa a plataforma do
partido (governar). Exemplos: incs. I, II, III, VI, XI, XXIII, XXIV, XXV, XXVI, do art. 84, da
CF.
Três são as características centrais que distinguem a República da Monarquia e estão
baseadas nas prerrogativas inerentes à Chefia de Estado (CE):
REPÚBLICA
1. Chefe de Estado eleito - Não se admite sucessão hereditária, o Chefe de Estado tem
legitimação popular direta (escolhido pelo povo mediante sufrágio, voto direto) ou indireta
(escolhido por representantes do povo reunidos no Parlamento), pois só a eleição lhe confere
justo título para o exercício do poder.
2. Chefe de Estado temporário
Não se admite a vitaliciedade no cargo, pois a República implica eleições periódicas a fim de
assegurar a alternância no poder. Para evitar que as eleições reiteradas de um mesmo
indivíduo criassem um paralelo com a monarquia, é costume, nas repúblicas presidencialistas,
estabelecer a proibição de reeleições sucessivas. O art. 14, § 5º, da CF, acrescentado pela
Emenda Constitucional 16/97, que permite a reeleição do Presidente da República, dos
Governadores e dos Prefeitos e de quem os houver sucedido ou substituído no curso dos
mandatos para um único período subsequente está inspirado no princípio republicano.
3. Chefe de Estado responsável
Responde pelos seus atos. A República exige a responsabilidade ampla do Estado e serve de
fundamento à regra do art. 37, § 6º, da CF, que estabelece a responsabilidade objetiva das
pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de
serviços públicos.
Na monarquia, por sua vez, o Chefe de Estado é HEREDITÁRIO, VITALÍCIO e
IRRESPONSÁVEL (“The King can do not wrong”, o Rei não pode errar, justamente porque
não responde pelos seus atos).
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REPÚBLICA (combina com os dois sistemas de governo): pode ser
PARLAMENTARISTA OU PRESIDENCIALISTA
MONARQUIA (não combina com o sistema presidencialista de governo): pode ser
ABSOLUTISTA OU PARLAMENTARISTA
PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO
REGIME POLÍTICO OU REGIME DE GOVERNO: “complexo estrutural de princípios e
forças políticas que configuram determinada concepção política do Estado e da sociedade, e
que inspiram seu ordenamento jurídico”5:
REGIME DEMOCRÁTICO REGIMES AUTOCRÁTICOS: autoritários e
totalitários
a) Para Karl Loewenstein, duas são as diferenças entre o regime autocrático e o democrático.
No regime democrático, há uma real e efetiva separação de poderes (com os mecanismos
inerentes ao sistema de checks and
balances) e um autêntico pluralismo político. Nos regimes autocráticos, predomina a
concentração de poderes nas mãos de uma autoridade, grupo, classe ou partido com ausência
de controles efetivos sobre o exercente do poder. Há uma aparência de pluralismo político
(mimetismo politico típico deste tipo de regime) enquanto no regime totalitário não há
pluralismo político (regime de partido único).
b) Adoção do regime democrático na Constituição brasileira: (i) o
art. 1º estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado
Democrático de Direito; (ii) entre os fundamentos da República estão a cidadania e a
dignidade da pessoa humana (segundo a filosofia kantiana de que o homem é um fim em si
mesmo); (iii) democracia pluralista: pluralismo político como fundamento republicano
(art. 1º, inc. V, CF), pluralismo partidário respeitados os limites constitucionais (art. 17,
caput, CF), pluralismo econômico (livre-iniciativa e livre concorrência – art. 170, CF),
pluralismo de idéias e de instituições de ensino (art. 206, III, CF), pluralismo cultural
(arts. 215 e 216, CF), pluralismo de meios de informação (art. 220, caput, CF); (iv) o art.
2º, da CF fixa a soberania popular (todo o poder emana do povo), com a adoção da
democracia indireta ou representativa (que encontra no sufrágio universal seu principal
instrumento – aliás, voto direto, secreto, universal e periódico é cláusula pétrea) ao lado
da adoção de instrumentos de democracia quase direta: (i) plebiscito (art. 14, I, CF), (ii)
referendo (art. 14, II, CF), (iii) iniciativa popular (arts. 14, III, CF; 61, § 2º, CF – iniciativa
popular em projetos de lei federal; 27, § 4º, CF – determina que o legislador deve dispor
sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual e 29, inc. XIII, CF – prevê a
iniciativa popular para projetos de lei municipal) e (iv) ação popular (art. 5º, LXXIII, CF).
Todavia, não existe, no direito brasileiro, o mecanismo do veto popular, em que o povo é
consultado para revogar uma lei já existente e o recall, quando o povo é chamado para
votar sobre a revogação do mandato de um representante.
5 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001.
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2. Aplicabilidade das normas constitucionais
1. RELAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO NOVA COM A CONSTITUIÇÃO
ANTERIOR
a) Tese do STF – REVOGAÇÃO TOTAL (AB-ROGAÇÃO): A tese que prevalece
na doutrina e jurisprudência é a da revogação total (ab-rogação) e irrestrita das normas
da Constituição velha pela nova Constituição. Toda a Constituição anterior é revogada
com o advento de uma nova Constituição, independentemente de conter normas
compatíveis com a nova ordem constitucional.
b) Desconstitucionalização: É defendida pela Professora Maria Helena Diniz.6 A
desconstitucionalização seria a possibilidade de recepção tácita, pela nova ordem
constitucional, de dispositivos da Constituição anterior como legislação
infraconstitucional, preenchidos os seguintes requisitos: (i) compatibilidade material e
(ii) desde que o assunto não tenha sido objeto da nova Constituição. A tese da
desconstitucionalização tácita não é aceita pela jurisprudência do STF. No entanto, a
desconstitucionalização somente é possível caso haja dispositivo expresso da
Constituição nova recepcionando norma da Constituição anterior como lei, já que o
poder constituinte originário é ilimitado, pode tudo.
Desconstitucionalização tácita – VEDADA
Desconstitucionalização expressa – PERMITIDA
c) Recepção material de normas constitucionais: normas da Constituição anterior são
recebidas pela nova Constituição e continuam a vigorar como normas constitucionais.
Recepção material tácita – VEDADA
Recepção material expressa – PERMITIDA. Exemplo: artigo 34 do ADCT, que
manteve o sistema constitucional tributário da Constituição de 1967, com a
Emenda n. 1/69 por um determinado período.
2. RELAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO NOVA COM AS LEIS E ATOS
NORMATIVOS ANTERIORES
b1) RECEPÇÃO (TOTAL OU PARCIAL): (1) A Constituição recebe as normas
infraconstitucionais anteriores materialmente compatíveis com ela, confirmando sua
vigência, eficácia e validade.7 As leis velhas são “novadas”, porque terão de ser
reinterpretadas em face da nova Constituição. Para a recepção da legislação anterior,
exige-se compatibilidade material (de conteúdo) com a nova Constituição. A recepção das
leis anteriores visa garantir o princípio da continuidade da ordem jurídica e da segurança
jurídica. As leis anteriores são recebidas, mas deverão receber uma interpretação
ajustada à nova Constituição (o que José Afonso da Silva chama de “eficácia
construtiva” da nova Constituição).
De outro lado, é importante salientar que a Constituição nova não tem poder convalidar as
6 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 50-51.
7 DINIZ, op. cit., p. 48.
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leis e atos normativos anteriores que eram incompatíveis com a Constituição anterior,
então vigente.
EXIGÊNCIAS PARA A RECEPÇÃO DE LEIS OU ATOS NORMATIVOS
ANTERIORES À CF de 1988:
(1) LEI DEVE SER CONSTITUCIONAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO
ANTERIOR, QUE ESTAVA EM VIGOR QUANDO FOI PUBLICADA + (2)
COMPATIBILIDADE MATERIAL COM A NOVA CONSTITUIÇÃO.
A incompatibilidade da lei anterior com a nova Constituição no aspecto formal (relativo ao
processo legislativo ou às regras de repartição de competências) é irrelevante (não há
inconstitucionalidade formal superveniente), porque a legislação recebe a natureza que a
nova ordem constitucional reservou para a matéria. Assim, o art. 146, da CF de 1988 exige
lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. O
Código Tributário Nacional, que se constitui numa lei ordinária anterior à Constituição
Federal de 1988 (Lei 5172/66), trata, no livro segundo, das normas gerais de direito
tributário. Embora o Código Tributário Nacional não seja uma lei complementar, as
normas gerais de direito tributário, constantes do seu livro segundo, foram recepcionadas
pela Constituição com caráter de lei complementar.
b2) NÃO-RECEPÇÃO TOTAL OU PARCIAL: a legislação anterior (constitucional
em face da Constituição que vigorava quando foi publicada) incompatível com o conteúdo
da nova Constituição não é por ela recebida. Essa é a tese prevalente na jurisprudência do
STF. O problema é que a não-recepção está baseada exclusivamente no critério temporal
(lei posterior revoga lei anterior) e a nova Constituição não só retira a vigência, mas
também o fundamento de validade da legislação incompatível com o seu conteúdo.
Todavia, esta última tese, que sustenta a inconstitucionalidade material superveniente das
leis anteriores em face da nova Constituição, não é aceita pelo STF. A não-recepção pode
ser questionada em ADPF, porque leis anteriores (federais, estaduais, distritais ou
municipais) incompatíveis com o conteúdo da nova Constituição podem ser objeto de
arguição de descumprimento de preceito fundamental, segundo jurisprudência do STF.
A Constituição de 1988 também não recebe leis anteriores que nasceram inconstitucionais
em face da Constituição que estava em vigor na época que a lei foi publicada, ainda que
essas leis anteriores apresentem compatibilidade material com a nova Constituição. Esse
problema pode ser suscitado no controle concreto de constitucionalidade. O juiz poderá
declarar a inconstitucionalidade incidental da lei anterior em face da Constituição velha.
Todavia, essa questão não pode ser objeto de controle abstrato, já que neste o parâmetro do
controle é sempre norma constitucional em vigor.
b3) Repristinação: A repristinação ocorre quando uma lei volta a vigorar, pois foi
revogada a lei revogadora. O art. 2º, §3º, da Lei de Introdução ao Código Civil admite a
repristinação desde que haja regra expressa (“Salvo disposição em contrário, a lei
revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”). É claro que a
repristinação, ainda que haja regra legal expressa, não poderá atingir o direito adquirido, o
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ato jurídico e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF – “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”).8 A circunstância de a nova
Constituição revogar a Constituição anterior não terá, a princípio, o condão de restaurar a
eficácia das leis que foram revogadas pela Constituição antiga. Todavia, como o Poder
Constituinte Originário é inicial, ilimitado e incondicionado, ao elaborar uma nova
Constituição, pode ressuscitar leis anteriores que já haviam sido revogadas pela
Constituição velha. Todavia, para que isso aconteça, é necessária (1) expressa previsão no
texto da nova Constituição, (2) essa repristinação poderá até prejudicar direitos adquiridos
e atos jurídicos perfeitos, já que realizada pelo Poder Constituinte Originário, mas também
nessa circunstância deverá haver regra constitucional expressa (como a irretroatividade é a
regra, não há retroatividade tácita).9
CONCLUSÃO
LEI ANTERIOR (constitucional em face
da Constituição velha) COMPATÍVEL
COM O CONTEÚDO DA NOVA
CONSTITUIÇÃO = É
RECEPCIONADA, AINDA QUE HAJA
INCOMPATIBILIDADE FORMAL.
LEI ANTERIOR (constitucional em face
da Constituição velha) INCOMPATÍVEL
COM O CONTEÚDO DA NOVA
CONSTITUIÇÃO = NÃO É RECEBIDA,
AINDA QUE HAJA
COMPATIBILIDADE FORMAL.
2.1 Normas constitucionais de eficácia plena, contida e limitada. 2.2 Normas
programáticas
APLICABILIDADE das normas constitucionais (teoria de José Afonso da Silva)
EFICÁCIA PLENA EFICÁCIA CONTIDA EFICÁCIA LIMITADA
As normas
constitucionais de
As normas constitucionais
de eficácia contida são
Já as normas constitucionais de
eficácia limitada têm aplicabilidade
8 Como ressalta Luis Roberto BARROSO, o princípio da não-retroatividade das leis somente condiciona a
atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas na Constituição: “São elas: a) a
proteção da segurança jurídica no domínio das relações sociais, veiculada no art. 5º, XXXVI, já citado; b)
a proteção da liberdade do indivíduo contra a aplicação retroativa da lei penal, contida no art. 5º, XL (‘a
lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’), c) a proteção do contribuinte contra a voracidade
retroativa do fisco, constante do art. 150, III, a ( é vedada a cobrança de tributos ‘em relação a fatos
geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado’). Fora
dessas hipóteses, a retroatividade da norma é tolerável.” BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e
aplicação da Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 53. Logo, a Constituição admite a
retroatividade da lei desde que não atinja o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Também admite a retroatividade da lei penal mais benéfica. Nesse sentido, a questão da ESAF: (Gestor
Fazendário 2005 – ESAF) A Constituição em vigor expressamente admite a possibilidade de leis
retroativas no ordenamento brasileiro. (certa) 9 “O princípio da não-retroatividade, todavia, não condiciona o exercício do poder constituinte originário.
A Constituição é o ato inaugural do Estado, primeira expressão do direito na ordem cronológica, pelo que
não deve reverência à ordem jurídica anterior, que não lhe pode impor regras ou limites. Doutrina e
jurisprudência convergem no sentido de que ‘não há direito adquirido contra a Constituição.’”
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
p. 55.
Cibele Fernandes Dias
13
eficácia plena são
normas de
aplicabilidade
DIRETA, IMEDIATA
E INTEGRAL.
Sozinhas, ou seja, sem
necessidade de lei
regulamentadora, já
produzem todos os seus
efeitos (positivos e
negativos).
normas de aplicabilidade
DIRETA, IMEDIATA,
MAS POSSIVELMENTE
NÃO INTEGRAL. Embora sozinhas já
consigam produzir todos os
seus efeitos (positivos e
negativos), autorizam ao
legislador a restrinção,
diminuição, contenção dos
seus efeitos, prevendo
exceções ou restrições,
condicionamentos à sua
incidência.
INDIRETA, MEDIATA E
REDUZIDA. Sozinhas, só produzem
efeitos negativos (capacidade da norma
constitucional para servir de parâmetro
para invalidar atos contrários ao seu
conteúdo). No entanto, precisam de lei
que as regulamente e complete o seu
comando normativo para produzirem
efeitos positivos e assegurarem o
exercício do direito ou da competência
nelas previsto.10
ESPÉCIES DE NORMAS DE
EFICÁCIA LIMITADA:
a) PROGRAMÁTICAS
b) PRINCÍPIOS INSTITUTIVOS
ALERTA: A doutrina e a jurisprudência referem-se, muitas vezes, a normas constitucionais
auto-aplicáveis (são as de eficácia plena e contida que não dependem do legislador para a
produção de efeitos positivos) e a normas constitucionais não auto-aplicáveis (são as de
eficácia limitada, que dependem do legislador para produção de efeitos positivos). Exemplo de
utilização dessa classificação: Súmula 24, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “São
auto-aplicáveis os parágrafos 5º e 6º do art. 201 da Constituição Federal de 1988”; Súmula
648, do STF: “A norma do §3º, do artigo 192 da Constituição, revogada pela Emenda
Constitucional 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua
aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar”; Súmula vinculante n. 7, do STF:
“A norma do §3º do artigo 192 da CONSTITUIÇÃO, revogada pela Emenda Constitucional
40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à
edição de lei complementar.” Súmula 13, do TSE: “Não é auto-aplicável o §9º, do art. 14, da
Constituição, com a redação da emenda constitucional de revisão nº 4/94.”
Essa nomenclatura merece críticas porque as normas de eficácia limitada são auto-aplicáveis no
que se refere à eficácia negativa, podendo servir, imediamente, como parâmetro para declaração
de inconstitucionalidade de leis posteriores e revogação de leis anteriores com ela colidentes
(imediatamente já produzem uma eficácia reduzida, que é a eficácia negativa ou paralisante).
Exemplo de eficácia negativa de norma constitucional é o que mostra a Súmula 280 do STJ:
“O art. 35 do Decreto-Lei n. 7661, de 1945, que estabelece a prisão administrativa, foi
revogado pelos incisos LXI e LXVII do art. 5º, da Constituição Federal de 1988.”
3. Direitos e garantias fundamentais
I – TEORIA GERAL DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Espécies de direitos e garantias fundamentais (Título II, CF)
a.1) Direitos e garantias individuais e coletivos (Capítulo I - 5º, CF)
10
DIAS, Cibele Fernandes Dias. Direito constitucional didático. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2012.
Cibele Fernandes Dias
14
a.1.1) Diferença entre DIREITOS e GARANTIAS
a.1.2) Princípio-garantia e Garantias fundamentais: remédios constitucionais e ações
constitucionais
A expressão ‘remédios constitucionais’ designa as garantias que servem de
instrumento para a efetivação da tutela, ou proteção dos direitos fundamentais.11
Os remédios constitucionais são garantias fundamentais destinadas à tutela dos
direitos fundamentais: (1) direito de petição ou também chamado pela doutrina
‘direito de representação’ (5º, XXXIV, a, CF), (2) habeas corpus (5º, LXVIII), (3)
habeas data (5º, LXXII), (4) mandado de segurança individual (5º, LXIX), (5)
mandado de segurança coletivo (5º, LXX), (6) mandado de injunção (5º, LXXI), (7)
ação popular (5º, LXXIII) e ação civil pública (129, III). Entre os remédios
constitucionais, somente o direito de petição não constitui ação constitucional,
pois não envolve o direito de provocar o exercício da função jurisdicional. Na
definição de Celso Ribeiro Bastos, as ações constitucionais são “direitos de ordem
processual, são direitos de ingressar em juízo para obter uma medida judicial com
uma força específica ou com uma celeridade não encontrável nas ações
ordinárias.”12
No mesmo sentido, Álvaro Ricardo de Souza Cruz aponta as
características das ações constitucionais: “(a) a sumariedade dos ritos e
preferência de trâmite, (b) informalidade processual, (c) antecipação da tutela, de
caráter preventivo ou repressivo, (d) manifestação jurisdicional de caráter
condenatório/mandamental, (e) amplitude na legitimação ativa.”13
a.2) Direitos sociais (Capítulo II - 6º a 11, CF)
a.3) Direitos relativos à nacionalidade (Capítulo III - 12 a 13, CF)
a.4) Direitos políticos (Capítulo IV - 14 a 16, CF)
a.5) Direitos relativos à organização e participação em partidos políticos (Capítulo V
- 17, CF)
(b) GARANTIAS INSTITUCIONAIS: são instituições (direito público) ou institutos
(direito privado) que desempenham função de proteção de bens jurídicos indispensáveis à
proteção de valores essenciais.
(c) DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS COMO CLÁUSULAS
PÉTREAS (60, §4º, IV) e PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO
SOCIAL (art. 5º, XXXVI, CF). REGIME EXCEPCIONAL NO ESTADO DE
DEFESA E DE SÍTIO (136 A 141, CF): os direitos fundamentais podem sofrer uma
restrição mais acentuada nos estados de exceção constitucional, no estado de sítio podem
até ser suspensos, mas jamais suprimidos.
11
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2000.
p. 140. 12
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 239. 13
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In:
Hermenêutica e jurisdição constitucional. Coordenadores: José Adércio LEITE SAMPAIO; Álvaro
Ricardo de SOUZA CRUZ. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2001. p. 234.
Cibele Fernandes Dias
15
INFORMATIVO DO STF Nº 582 do STF
Direito à Saúde - Reserva do Possível - “Escolhas Trágicas” - Omissões
Inconstitucionais - Políticas Públicas - Princípio que Veda o Retrocesso Social
(Transcrições) (v. Informativo 579) STA 175-AgR/CE* RELATOR: MINISTRO
PRESIDENTE V O T O O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O alto significado
social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem
ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável
compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário. O
objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de proteção ao direito à saúde,
traduz meta cuja não-realização qualificar-se-á como uma censurável situação de
inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se se tiver
presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido
programa a ser (necessariamente) implementado mediante adoção de políticas públicas
conseqüentes e responsáveis. Ao julgar a ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO,
proferi decisão assim ementada (Informativo/STF nº 345/2004): “ARGÜIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA
LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS,
QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL.
DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER
RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR.
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’.
NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA
INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO
‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES
POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).” Salientei,
então, em referida decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão
política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do
gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais que se
identificam - enquanto direitos de segunda geração - com as liberdades positivas, reais
ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 199/1219-1220,
Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). É que, se assim não for, restarão comprometidas a
integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do
estatuto constitucional, motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento
de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de
inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min.
CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal: “DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO
- MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER
PÚBLICO. - O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal
quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode
derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em
desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os
princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um
‘facere’ (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar
de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição,
Cibele Fernandes Dias
16
em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de
cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa
do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non praestare’, resultará a
inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência
adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
................................................... - A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior
ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como
comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia,
o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se
fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria
aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (RTJ 185/794-796, Rel.
Min. CELSO DE MELLO, Pleno) É certo - tal como observei no exame da ADPF 45/DF,
Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) - que não se inclui,
ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta
Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas
públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois,
nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas
fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao Judiciário,
se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-
jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos
impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame. Mais do
que nunca, Senhor Presidente, é preciso enfatizar que o dever estatal de atribuir
efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva
limitação à discricionariedade administrativa. Isso significa que a intervenção
jurisdicional, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir
significação real ao direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer
ofensa, portanto, ao postulado da separação de poderes), sempre que se impuser, nesse
processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer
prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema
de respeito e de proteção ao direito à saúde. Cabe referir, neste ponto, ante a extrema
pertinência de suas observações, a advertência de LUIZA CRISTINA FONSECA
FRISCHEISEN, ilustre Procuradora Regional da República (“Políticas Públicas – A
Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público”, p. 59, 95 e 97, 2000, Max
Limonad), cujo magistério, a propósito da limitada discricionariedade governamental em
tema de concretização das políticas públicas constitucionais, corretamente assinala:
“Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas,
o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição
Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de
discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.
................................................... Como demonstrado no item anterior, o administrador
público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a
implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja,
própria à finalidade da mesma: o bem-estar e a justiça social.
................................................... Conclui-se, portanto, que o administrador não tem
discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de
implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois
Cibele Fernandes Dias
17
tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de
integração. ................................................... As dúvidas sobre essa margem de
discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido
concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou
comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso,
a concretização da ordem social constitucional.” (grifei) Não deixo de conferir, no
entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do
possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999,
Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios
Constitucionais”, p. 245/246, 2002, Renovar), notadamente em sede de efetivação e
implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos,
sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste,
prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou
coletivas. Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais -
além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende,
em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades
orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de
incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente
exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do
comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder
Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida
manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o ilegítimo,
arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o
estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições
materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO,
Informativo/STF nº 345/2004). Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva
do possível” — ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível — não
pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do
cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta
governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de
direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de
liberdade real ou concreta, a proteção à saúde — que compreende todas as
prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República
(notadamente em seu art. 196) — tem por fundamento regra constitucional cuja
densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o
Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior
grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente,
com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação
mesma dessa prerrogativa essencial. O caso ora em exame, Senhor Presidente, põe em
evidência o altíssimo relevo jurídico-social que assume, em nosso ordenamento positivo,
o direito à saúde, especialmente em face do mandamento inscrito no art. 196 da
Constituição da República, que assim dispõe: “Art. 196. A saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (grifei) Na realidade, o
cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei
Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à
saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-
Cibele Fernandes Dias
18
se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de
nossa organização federativa. A impostergabilidade da efetivação desse dever
constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal que a instituição
governamental interessada deduziu na presente causa. Tal como pude enfatizar em
decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em
contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a
inviolabilidade do direito à vida e à saúde - que se qualifica como direito subjetivo
inalienável a todos assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput”,
e art. 196) - ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro e secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema, que razões
de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela que
privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas. Essa relação dilemática, que
se instaura na presente causa, conduz os Juízes deste Supremo Tribunal a proferir
decisão que se projeta no contexto das denominadas “escolhas trágicas” (GUIDO
CALABRESI e PHILIP BOBBITT, “Tragic Choices”, 1978, W. W. Norton & Company),
que nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal
de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um
lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros,
sempre tão dramaticamente escassos, de outro. Mas, como precedentemente acentuado, a
missão institucional desta Suprema Corte, como guardiã da superioridade da
Constituição da República, impõe, aos seus Juízes, o compromisso de fazer prevalecer os
direitos fundamentais da pessoa, dentre os quais avultam, por sua inegável precedência,
o direito à vida e o direito à saúde. Cumpre não perder de perspectiva, por isso mesmo,
que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível,
assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz
bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira
responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas
sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário
à assistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da
Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano
institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR,
“Comentários à Constituição de 1988”, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense
Universitária) - não pode convertê-la em promessa constitucional inconseqüente, sob
pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever
por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei
Fundamental do Estado. Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima
obrigação de tornar efetivas as ações e prestações de saúde, incumbindo-lhe promover,
em favor das pessoas e das comunidades, medidas — preventivas e de recuperação —,
que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar
concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República, tal como este
Supremo Tribunal tem reiteradamente reconhecido: “O DIREITO À SAÚDE
REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO
À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da
República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja
integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe
formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir,
aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-
Cibele Fernandes Dias
19
hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que
assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do
direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação
no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao
problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão,
em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA
PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL
INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta
Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano
institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode convertê-la em
promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas
expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO
GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À
PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER
CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O
reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de
medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da
Constituição da República (arts. 5º, ‘caput’, e 196) e representa, na concreção do seu
alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas,
especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua
própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” (RE 393.175-
AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO) O sentido de fundamentalidade do direito à
saúde — que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa
humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas — impõe,
ao Poder Público, um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido,
pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a
promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto
constitucional. É por tal razão, Senhor Presidente, que tenho proferido inúmeras
decisões, nesta Suprema Corte, em plena harmonia com esse entendimento, sempre a
fazer prevalecer, nos casos por mim julgados (RTJ 175/1212-1213, v.g.), o direito
fundamental à vida, de que o direito à saúde representa um indissociável consectário,
como o atestam os seguintes julgamentos de que fui Relator: - RE 556.886/ES
(adenocarcinoma de próstata) - AI 457.544/RS (artrite reumatóide) - AI 583.067/RS
(cardiopatia isquêmica grave) - RE 393.175-AgR/RS (esquizofrenia paranóide) - RE
198.265/RS (fenilcetonúria) - AI 570.455/RS (glaucoma crônico) - AI 635.475/PR
(hepatite “c”) - AI 634.282/PR (hiperprolactinemia) - RE 273.834-AgR/RS (HIV) - RE
271.286-AgR/RS (HIV) - RE 556.288/ES (insuficiência coronariana) - AI 620.393/MG
(leucemia mielóide crônica) - AI 676.926/RJ (lipoparatireoidismo) - AI 468.961/MG
(lúpus eritematoso sistêmico) - RE 568.073/RN (melanoma com acometimento cerebral) -
RE 523.725/ES (migatia mitocondrial) - AI 547.758/RS (neoplasia maligna cerebral) - AI
626.570/RS (neoplasia maligna cerebral) - RE 557.548/MG (osteomielite crônica) - AI
452.312/RS (paralisia cerebral) - AI 645.736/RS (processo expansivo intracraniano) - RE
248.304/RS (status marmóreo) - AI 647.296/SC (transplante renal) - RE 556.164/ES
(transplante renal) - RE 569.289/ES (transplante renal) Vê-se, desse modo, que, mais do
que a simples positivação dos direitos sociais — que traduz estágio necessário ao
processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à
sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”,
Cibele Fernandes Dias
20
p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) —, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo
institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em
ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação
estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente
vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes
impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o
reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples
declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente
garantido, especialmente naqueles casos em que o direito — como o direito à saúde — se
qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do
Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento
constitucional. Cumpre assinalar que a essencialidade do direito à saúde fez com que o
legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e
serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e
do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente,
deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a
eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável
modalidade de comportamento governamental desviante. Tenho para mim, desse modo,
presente tal contexto, que o Estado não poderá demitir-se do mandato constitucional,
juridicamente vinculante, que lhe foi outorgado pelo art. 196, da Constituição, e que
representa - como anteriormente já acentuado - fator de limitação da discricionariedade
político-administrativa do Poder Público, cujas opções, tratando-se de proteção à saúde,
não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples
conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
Entendo, por isso mesmo, que se revela inacolhível a pretensão recursal deduzida pela
entidade estatal interessada, notadamente em face da jurisprudência que se formou, no
Supremo Tribunal Federal, sobre a questão ora em análise. Nem se atribua,
indevidamente, ao Judiciário, no contexto em exame, uma (inexistente) intrusão em esfera
reservada aos demais Poderes da República. É que, dentre as inúmeras causas que
justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário (de que resulta uma
positiva criação jurisprudencial do direito), inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a
primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por
pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo
Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar
medidas que objetivam restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do
Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse
gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da
República. A colmatação de omissões inconstitucionais, realizada em sede jurisdicional,
notadamente quando emanada desta Corte Suprema, torna-se uma necessidade
institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam,
excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa
determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o
Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não
pode se reduzir a uma posição de pura passividade. As situações configuradoras de
omissão inconstitucional — ainda que se cuide de omissão parcial derivada da
insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma
impositiva fundada na Carta Política — refletem comportamento estatal que deve ser
repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se como uma das causas geradoras dos
processos informais de mudança da Constituição, tal como o revela autorizado
Cibele Fernandes Dias
21
magistério doutrinário (ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais
de Mudança da Constituição”, p. 230/232, item n. 5, 1986, Max Limonad; JORGE
MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/406 e 409, 2ª ed., 1988,
Coimbra Editora; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “Fundamentos da
Constituição”, p. 46, item n. 2.3.4, 1991, Coimbra Editora). O fato inquestionável é um
só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável
gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um
incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto
significado de que se reveste a Constituição da República. Nada mais nocivo, perigoso e
ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir
integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la
aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos
governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. A percepção da
gravidade e das conseqüências lesivas derivadas do gesto infiel do Poder Público que
transgride, por omissão ou por insatisfatória concretização, os encargos de que se tornou
depositário, por efeito de expressa determinação constitucional, foi revelada, entre nós,
já no período monárquico, em lúcido magistério, por PIMENTA BUENO (“Direito
Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, p. 45, reedição do Ministério
da Justiça, 1958) e reafirmada por eminentes autores contemporâneos em lições que
acentuam o desvalor jurídico do comportamento estatal omissivo (JOSÉ AFONSO DA
SILVA, “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, p. 226, item n. 4, 3ª ed., 1998,
Malheiros; ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança
da Constituição”, p. 217/218, 1986, Max Limonad; PONTES DE MIRANDA,
“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969”, tomo I/15-16, 2ª ed.,
1970, RT, v.g.). O desprestígio da Constituição — por inércia de órgãos meramente
constituídos — representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois
reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da autoridade
suprema da Lei Fundamental do Estado. Essa constatação, feita por KARL
LOEWENSTEIN (“Teoria de la Constitución”, p. 222, 1983, Ariel, Barcelona), coloca em
pauta o fenômeno da erosão da consciência constitucional, motivado pela instauração,
no âmbito do Estado, de um preocupante processo de desvalorização funcional da
Constituição escrita, como já ressaltado, pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos
julgamentos, como resulta evidente da seguinte decisão consubstanciada em acórdão
assim ementado: “(...) DESCUMPRIMENTO DE IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL
LEGIFERANTE E DESVALORIZAÇÃO FUNCIONAL DA CONSTITUIÇÃO ESCRITA. -
O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de
legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório - infringe, com esse
comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no
âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional (ADI
1.484-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO). - A inércia estatal em adimplir as imposições
constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e
configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela
mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de
fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito
subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à
conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos
cidadãos. DIREITO SUBJETIVO À LEGISLAÇÃO E DEVER CONSTITUCIONAL DE
LEGISLAR: A NECESSÁRIA EXISTÊNCIA DO PERTINENTE NEXO DE
CAUSALIDADE. - O direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado, quando
Cibele Fernandes Dias
22
também existir - simultaneamente imposta pelo próprio texto constitucional - a previsão
do dever estatal de emanar normas legais. Isso significa que o direito individual à
atividade legislativa do Estado apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em que
o desempenho da função de legislar refletir, por efeito de exclusiva determinação
constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao Poder Público. (...).”
(RTJ 183/818-819, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Em tema de implementação de
políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente
nas áreas de educação infantil (RTJ 199/1219-1220) e de saúde pública (RTJ 174/687 –
RTJ 175/1212-1213), a Corte Suprema brasileira tem proferido decisões que neutralizam
os efeitos nocivos, lesivos e perversos resultantes da inatividade governamental, em
situações nas quais a omissão do Poder Público representava um inaceitável insulto a
direitos básicos assegurados pela própria Constituição da República, mas cujo exercício
estava sendo inviabilizado por contumaz (e irresponsável) inércia do aparelho estatal. O
Supremo Tribunal Federal, em referidos julgamentos, colmatou a omissão governamental
e conferiu real efetividade a direitos essenciais, dando-lhes concreção e, desse modo,
viabilizando o acesso das pessoas à plena fruição de direitos fundamentais, cuja
realização prática lhes estava sendo negada, injustamente, por arbitrária abstenção do
Poder Público. Para além de todas as considerações que venho de fazer, há, ainda,
Senhor Presidente, um outro parâmetro constitucional que merece ser invocado. Refiro-
me ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de
caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo
cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado
magistério doutrinário (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES
COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, “Hermenêutica Constitucional e
Direitos Fundamentais”, 1ª ed./2ª tir., p. 127/128, 2002, Brasília Jurídica; J. J. GOMES
CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 320/322, item n. 03,
1998, Almedina; ANDREAS JOACHIM KRELL, “Direitos Sociais e Controle Judicial no
Brasil e na Alemanha”, p. 40, 2002, 2002, Sergio Antonio Fabris Editor, INGO W.
SARLET, “Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito
à saúde na Constituição de 1988”, “in” Revista Público, p. 99, n. 12, 2001). Na
realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de
sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de
natureza prestacional (como o direito à saúde), impedindo, em conseqüência, que os
níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos
ou suprimidos, exceto nas hipóteses — de todo inocorrente na espécie — em que políticas
compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais. Lapidar,
sob todos os aspectos, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO, cuja lição, a
propósito do tema, estimula as seguintes reflexões (“Direito Constitucional e Teoria da
Constituição”, 1998, Almedina, p. 320/321, item n. 3): “O princípio da democracia
econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social. A idéia aqui expressa
também tem sido designada como proibição de ‘contra-revolução social’ ou da ‘evolução
reaccionária’. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito
dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um
determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia
institucional e um direito subjectivo. A ‘proibição de retrocesso social’ nada pode fazer
contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o principio em
análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de
desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da
confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do
Cibele Fernandes Dias
23
núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa
humana. O reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais de propriedade,
subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo,
uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as
expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efectivado
justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da chamada
justiça social. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a
subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o tempo de serviço
necessário para a aquisição do direito à reforma (...). De qualquer modo, mesmo que se
afirme sem reservas a liberdade de conformação do legislador nas leis sociais, as
eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito
vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O
princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial
dos direitos já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança
social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se
constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que,
sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na
prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura a simples desse núcleo
essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm
como limite o núcleo essencial já realizado.” (grifei) Bem por isso, o Tribunal
Constitucional português (Acórdão nº 39/84), ao invocar a cláusula da proibição do
retrocesso, reconheceu a inconstitucionalidade de ato estatal que revogara garantias já
conquistadas em tema de saúde pública, vindo a proferir decisão assim resumida pelo
ilustre Relator da causa, Conselheiro VITAL MOREIRA, em douto voto de que extraio o
seguinte fragmento (“Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 3/95-131, 117-118,
1984, Imprensa Nacional, Lisboa): “Que o Estado não dê a devida realização às tarefas
constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser
objecto de censura constitucional em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas
quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge
uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no
plano da própria inconstitucionalidade por acção. Se a Constituição impõe ao Estado a
realização de uma determinada tarefa - a criação de uma certa instituição, uma
determinada alteração na ordem jurídica -, então, quando ela seja levada a cabo, o
resultado passa a ter a protecção directa da Constituição. O Estado não pode voltar
atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de
devedor. (...) Se o fizesse, incorreria em violação positiva (...) da Constituição.
................................................... Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para
o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema
escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a
Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido
criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da
Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos
fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a
criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados. Quer isto dizer que a
partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas
constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional
deste deixa de consistir (ou deixar de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se
transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava
obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-
Cibele Fernandes Dias
24
se de atentar contra a realização dada ao direito social. Este enfoque dos direitos sociais
faz hoje parte integrante da concepção deles a teoria constitucional, mesmo lá onde é
escasso o elenco constitucional de direitos sociais e onde, portanto, eles têm de ser
extraídos de cláusulas gerais, como a cláusula do ‘Estado social’.” (grifei) Concluo o
meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, devo observar que a ineficiência
administrativa, o descaso governamental com direitos básicos da pessoa (como o direito
à saúde), a incapacidade de gerir os recursos públicos, a falta de visão política na justa
percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a proteção
à saúde, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições
constitucionais não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder
Público, da norma inscrita no art. 196 da Constituição da República, que traduz e impõe,
ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão
governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental e que é, no
contexto ora examinado, o direito à saúde. Sendo assim, em face das razões expostas, e
considerando, sobretudo, Senhor Presidente, o magnífico voto proferido por Vossa
Excelência, nego provimento ao recurso de agravo interposto pela União Federal. É o
meu voto. * acórdão pendente de publicação INOVAÇÕES LEGISLATIVAS 12 a 16 de
abril de 2010 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) Preso - Trabalho -
Reabilitação Penal - Pena Alternativa - Programa Portaria nº 49/CNJ, de 30 de março de
2010 - Estabelece os requisitos para outorga do selo do Projeto Começar de Novo
conforma artigo 3º da Resolução nº 96, de 27 de outubro de 2009. Publicada DJE/CNJ de
15/4/2010, n. 67, p. 2. Direitos Humanos - Medalha Resolução nº 109/CNJ, de 6 de abril
de 2010 - Institui a Medalha Joaquim Nabuco de Direitos Humanos e dá outras
providências. Publicada no DJE/CNJ de 12/4/2010, n. 64, p. 3. Sistema Carcerário -
Alvará de Soltura - Preso - Movimentação Resolução nº 108/CNJ, de 6 de abril de 2010 -
Dispõe sobre o cumprimento de alvarás de soltura e sobre a movimentação de presos do
sistema carcerário, e dá outras providências. Publicada no DJE/CNJ de 12/4/2010, n. 64,
p. 2. ESTATUTO DA CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL
PRIVADO Decreto nº 7.156, de 9 de abril de 2010 - Promulga o texto do Estatuto
Emendado da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, assinado em 30 de
junho de 2005. Publicado no DOU de 12/4/2010, Seção 1, p. 5. ADMINISTRAÇÃO
FEDERAL - Transação extrajudicial - Defesa - Advocacia Geral da União Decreto nº
7.153, de 9 de abril de 2010 - Dispõe sobre a representação e a defesa extrajudicial dos
órgãos e entidades da administração federal junto ao Tribunal de Contas da União, por
intermédio da Advocacia-Geral da União. Publicado no DOU de 12/4/2010, Seção 1, p.
4.
(d) CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
1. Conceito: fundamentalidade material (1º, inc. III) e fundamentalidade formal
a) Os direitos previstos em Tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte
5º, §3º, da CF de 88 na redação da Emenda Constitucional 45/04: “Os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
Cibele Fernandes Dias
25
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”14
1. Sistemas: dualista ou monista
1. Fases de incorporação, transposição ou recepção dos tratados internacionais:
1. Celebração do
tratado pelo
Presidente da
República (84, VIII,
CF)
2. Referendo do
Congresso Nacional
por meio de decreto
legislativo (49, I,
CF)
3. Ratificação do
tratado (depósito ou
troca)
4. Promulgação e
publicação do tratado
por decreto do
Presidente da
República (84, IV, CF)
(a) Tratados sobre direitos humanos incorporados antes da Emenda 45/04: têm
status supralegal
(b) Tratados sobre direitos humanos incorporados após a Emenda 45/04: têm (1)
status supralegal: se aprovados no Congresso no rito simples, (2) status de emenda
constitucional: se aprovados no Congresso no rito das emendas. O único tratado
com força de emenda no Brasil é a Convenção Internacional de Proteção às
Pessoas Portadoras de Deficiência (incorporada pelo Decreto 6949/2009). Os
tratados com status constitucional servem (1) de parâmetro para o controle de
constitucionalidade das leis (é o que se chama de controle de convencionalidade),
(2) podem revogar normas constitucionais originárias e derivadas.
Súmula vinculante n. 25, do STF: “É ilícita a prisão civil de depositário
infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”
HC 95967 / MS - MATO GROSSO DO SUL
Relator(a): Min. ELLEN GRACIE
Julgamento: 11/11/2008 Órgão Julgador: Segunda Turma
Publicação
DJe-227 DIVULG 27-11-2008 PUBLIC 28-11-2008
EMENT VOL-02343-02 PP-00407
DIREITO PROCESSUAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL.
PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. ALTERAÇÃO DE ORIENTAÇÃO DA
JURISPRUDÊNCIA DO STF. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. A matéria em julgamento neste
habeas corpus envolve a temática da (in)admissibilidade da prisão civil do depositário infiel no
ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do Pacto de São José da Costa
Rica no direito nacional. 2. Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos
(art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica
(art. 7°, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais
sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da
Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados
internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação
infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. 3. Na
atualidade a única hipótese de prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art.
5°, §2°, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput
14
Como salienta Ana Cândida DA CUNHA FERRAZ, “é de certa forma freqüente o recurso à emenda
formal à Constituição para modificar decisões judiciais, quer as que declaram inconstitucionais leis de
aplicação do texto constitucional, quer para afastar interpretação judicial de normas e disposições da
própria Constituição.” FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da
Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 112.
Cibele Fernandes Dias
26
do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de São
José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matéria de direitos humanos,
expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e,
conseqüentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel. 4. Habeas
corpus concedido.
HC 90450 / MG - MINAS GERAIS
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 23/09/2008 Órgão Julgador: Segunda Turma
Publicação
NDJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009
EMENT VOL-02347-02 PP-00354
"HABEAS CORPUS" - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO JUDICIAL - A QUESTÃO DA
INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
(ARTIGO 7º, n. 7) - HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS - PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE
JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. - Não mais
subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária,
independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou
cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Precedentes. TRATADOS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO
INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. - A Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais
em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. -
Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF,
art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos
humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de
supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia
constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A
INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA
CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do
Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança
informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder
Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante
exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos
processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos
aspectos, a sociedade contemporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA
MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa,
especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um
princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana
de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à
pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O Poder Judiciário,
nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser
aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do
Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações
constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais,
notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos
fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade
humana tornarem-se palavras vãs. - Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos
da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico
de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.
Características dos direitos fundamentais
Cibele Fernandes Dias
27
(1) HISTORICIDADE (generatividade)15
– não são direitos naturais
“Também os direitos do homem são direitos históricos, que emergem
gradualmente das lutas que o homem trava pela sua própria emancipação e
das transformações das condições de vida que essas lutas produzem.”16
“Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que
compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o princípio
da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e
culturais) — que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas —
acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que
materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as
formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento
dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais
indisponíveis, nota de uma essencial inexauribilidade.” (MS 22.164, Rel. Min.
Celso de Mello, DJ 17/11/95)
Os direitos de quarta geração compreenderiam os direitos das minorias, de que
são expressões o direito à democracia, o direito ao pluralismo e o direito à
informação.17
(PAULO BONAVIDES). No entanto, para Norberto BOBBIO, os
direitos de quarta geração são referentes à proteção do patrimônio genético de
cada indivíduo em face das novas pesquisas biológicas.18
(2) RELATIVIDADE – não são direitos absolutos19
: admite-se limitação ou contenção dos
direitos fundamentais numa situação de colisão (conflito) entre direitos fundamentais (em
15
“BOBBIO assinala o gradualismo dos direitos fundamentais, destacando que eles, nem nasceram todos
de uma vez (generatividade), nem de uma vez por todas (garantismo).” CRUZ, op. cit., p. 207. Segundo
Manoel GONÇALVES FERREIRA FILHO, os direitos de terceira geração seriam os seguintes: (i) direito
à paz (4º, VI e VII, CF), (ii) ao desenvolvimento (4º, IX, CF); (iii) à autodeterminação dos povos (4º, III,
CF); (iv) ao patrimônio comum da humanidade (fundo do mar e seu subsolo); (v) ao meio ambiente (225)
e (vi) à comunicação social (220). FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 58. 16
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 32. 17
CARVALHO, Kildare Gonçalves, op. cit., p. 403. 18
BOBBIO, A era dos direitos..., op. cit., p. 6. 19
“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TEM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no
sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque
razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades
legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das
prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria
Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estão
sujeitas, e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de
ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar
a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em
Cibele Fernandes Dias
28
que deverá prevalecer o que for considerado de ‘maior peso’ no caso concreto) ou em face
da ordem pública, dos interesses da coletividade. Essa limitação pode estar prevista
expressamente na Constituição Federal (exemplos: hipóteses do art. 5º, XI e XII que
prevêem a possibilidade de invasão domiciliar e interceptação telefônica), ser realizada pelo
legislador tendo em vista a necessidade de harmonizar direitos fundamentais (exemplo:
hipóteses de aborto autorizadas pelo Código Penal), ou pelo próprio juiz no caso concreto.
IMPORTANTE: No choque entre direitos fundamentais, o exercício de um implicará a
invasão do âmbito de proteção do outro. A convivência exige um regime de cedência
recíproca. A regra de solução do conflito é a da máxima observância dos direitos
fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição (menor sacrifício possível) compatível
com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental.20
Assim, no juízo de ponderação
dos direitos colidentes, feito pelo legislador ou pelo juiz, num caso concreto e determinado
(exemplo: permitir o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro) é possível que um
direito prevaleça sobre o outro.21
Exemplo de relatividade – O princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (5º,
XXXV) não é absoluto, a própria Constituição Federal prevê exceção no art. 142, §2º,
CF – “não caberá habeas corpus em relação à punição disciplinar militar”, o que a
jurisprudência do STF lê como “não caberá habeas corpus em relação ao mérito da
punição disciplinar militar”. Todavia, o STF entende ser cabível habeas corpus em
relação à punição disciplinar militar quando houver desatendimento, pela autoridade
administrativa, de pressupostos formais:
“Como assinala Pontes de Miranda, a transgressão disciplinar tem quatro pressupostos: 1º)
a hierarquia: o transgressor deve estar subordinado a quem o pune, 2º) poder disciplinar: a
lei deve atribuir poder de punir a esse superior, 3º) ato ligado à função: o fundamento da
punição tem de ligar-se à função do punido, 4º) pena: ou seja, sanção prevista em lei. Se
faltar qualquer desses pressupostos, não houve, na verdade, transgressão disciplinar. Daí
decorre que o cerceamento da liberdade de locomoção é ilegal, cabendo então a ordem
judicial.”22
Sobre o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e a proibição da exigência
de exaurimento da via administrativa, a Súmula 89 do STJ: “A ação acidentária
prescinde do exaurimento da via administrativa”.
ADPF 130 / DF - DISTRITO FEDERAL
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
Relator(a): Min. CARLOS BRITTO
Julgamento: 30/04/2009 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação: DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009
EMENT VOL-02381-01 PP-00001
EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE
IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA "LIBERDADE DE
detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” Supremo Tribunal
Federal, MS 23452-RJ, Relator: Ministro Celso de Mello, DJU 12.5.00. 20
ARAÚJO, Luiz Alberto David de. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 95-96. 21
SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 728. 22
FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., op. cit., p. 143.
Cibele Fernandes Dias
29
INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA", EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A
"PLENA" LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER
TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU
SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE
EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE
DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS
DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO
SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE
INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL.
TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO
PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE
PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE
IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA.
PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE
DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR
RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO
PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE
PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS
CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE
LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A
TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E
DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A
IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO
ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU
OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E AUTÔNOMO FATOR DE INIBIÇÃO DE
ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE
IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO
RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS
JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. A ADPF, fórmula
processual subsidiária do controle concentrado de constitucionalidade, é via adequada à impugnação de
norma pré-constitucional. Situação de concreta ambiência jurisdicional timbrada por decisões conflitantes.
Atendimento das condições da ação. 2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA
COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E
DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À PRODUÇÃO
INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição reservou à imprensa
todo um bloco normativo, com o apropriado nome "Da Comunicação Social" (capítulo V do título VIII). A
imprensa como plexo ou conjunto de "atividades" ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder
influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública.
Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à
vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo
que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em
qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido
com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo
normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de
imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida
dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. 3. O CAPÍTULO
CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE
SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO
E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA
NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A
COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de
atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de
pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja
qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras
disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística
é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que
Cibele Fernandes Dias
30
dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos.
Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são
de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja,
antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de
controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização
ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional "observado o disposto nesta
Constituição" (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de
personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da "plena liberdade de
informação jornalística" (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa
pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se
resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao
regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território
virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude
de comunicação. 4. MECANISMO CONSTITUCIONAL DE CALIBRAÇÃO DE PRINCÍPIOS. O art.
220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e
informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da
aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma Constituição Federal: vedação do anonimato
(parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou
moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII);
direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso
XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência
desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os mencionados incisos do art. 5º). Noutros
termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a "livre" e
"plena" manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar
do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda
que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de momentânea
paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do
art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento
(vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a
informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei
Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das
ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de
resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e
responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute
da plenitude de liberdade de imprensa. 5. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA
E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Sem embargo, a excessividade
indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao
princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de proporcionalidade entre o dano moral ou
material sofrido por alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior o dano maior a
indenização) opera é no âmbito interno da potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido.
Nada tendo a ver com essa equação a circunstância em si da veiculação do agravo por órgão de imprensa,
porque, senão, a liberdade de informação jornalística deixaria de ser um elemento de expansão e de
robustez da liberdade de pensamento e de expressão lato sensu para se tornar um fator de contração e de
esqualidez dessa liberdade. Em se tratando de agente público, ainda que injustamente ofendido em sua
honra e imagem, subjaz à indenização uma imperiosa cláusula de modicidade. Isto porque todo agente
público está sob permanente vigília da cidadania. E quando o agente estatal não prima por todas as
aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um
comportamento antijurídico francamente sindicável pelos cidadãos. 6. RELAÇÃO DE MÚTUA
CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é
um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo
um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes
do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência
ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a
desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de
expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma
constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das
sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa
convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente
Cibele Fernandes Dias
31
proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio
e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado "poder social da
imprensa". 7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A
IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO
ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento crítico é parte integrante da informação
plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da
própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de
expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as
autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse
público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O
próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do
pensamento crítico e "real alternativa à versão oficial dos fatos" ( Deputado Federal Miro Teixeira). 8.
NÚCLEO DURO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO PARCIAL DE LEGISLAR. A uma
atividade que já era "livre" (incisos IV e IX do art. 5º), a Constituição Federal acrescentou o qualificativo
de "plena" (§ 1º do art. 220). Liberdade plena que, repelente de qualquer censura prévia, diz respeito à
essência mesma do jornalismo (o chamado "núcleo duro" da atividade). Assim entendidas as coordenadas
de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu, sem o que
não se tem o desembaraçado trânsito das ideias e opiniões, tanto quanto da informação e da criação.
Interdição à lei quanto às matérias nuclearmente de imprensa, retratadas no tempo de início e de duração
do concreto exercício da liberdade, assim como de sua extensão ou tamanho do seu conteúdo. Tirante,
unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o "estado de sítio" (art. 139), o Poder
Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a
ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao
Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por
indivíduos e jornalistas. As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação
legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de indenização,
proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte ("quando necessário ao exercício profissional");
responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e espetáculos públicos; estabelecimento
dos "meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou
programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de
produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente" (inciso II do § 3º do art.
220 da CF); independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua
própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º); participação do capital estrangeiro nas empresas de
comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF); composição e funcionamento do Conselho de Comunicação
Social (art. 224 da Constituição). Regulações estatais que, sobretudo incidindo no plano das consequências
ou responsabilizações, repercutem sobre as causas de ofensas pessoais para inibir o cometimento dos
abusos de imprensa. Peculiar fórmula constitucional de proteção de interesses privados em face de
eventuais descomedimentos da imprensa (justa preocupação do Ministro Gilmar Mendes), mas sem
prejuízo da ordem de precedência a esta conferida, segundo a lógica elementar de que não é pelo temor do
abuso que se vai coibir o uso. Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, "a censura governamental,
emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público". 9.
AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. É da lógica encampada
pela nossa Constituição de 1988 a autorregulação da imprensa como mecanismo de permanente ajuste de
limites da sua liberdade ao sentir-pensar da sociedade civil. Os padrões de seletividade do próprio corpo
social operam como antídoto que o tempo não cessa de aprimorar contra os abusos e desvios jornalísticos.
Do dever de irrestrito apego à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público
decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade da imprensa. Repita-se: não é jamais
pelo temor do abuso que se vai proibir o uso de uma liberdade de informação a que o próprio Texto Magno
do País apôs o rótulo de "plena" (§ 1 do art. 220). 10. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI 5.250 PELA
NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. 10.1. Óbice lógico à confecção de uma lei de imprensa que se orne de
compleição estatutária ou orgânica. A própria Constituição, quando o quis, convocou o legislador de
segundo escalão para o aporte regratório da parte restante de seus dispositivos (art. 29, art. 93 e § 5º do
art. 128). São irregulamentáveis os bens de personalidade que se põem como o próprio conteúdo ou
substrato da liberdade de informação jornalística, por se tratar de bens jurídicos que têm na própria
interdição da prévia interferência do Estado o seu modo natural, cabal e ininterrupto de incidir. Vontade
normativa que, em tema elementarmente de imprensa, surge e se exaure no próprio texto da Lei Suprema.
10.2. Incompatibilidade material insuperável entre a Lei n° 5.250/67 e a Constituição de 1988.
Impossibilidade de conciliação que, sobre ser do tipo material ou de substância (vertical), contamina toda
a Lei de Imprensa: a) quanto ao seu entrelace de comandos, a serviço da prestidigitadora lógica de que
Cibele Fernandes Dias
32
para cada regra geral afirmativa da liberdade é aberto um leque de exceções que praticamente tudo desfaz;
b) quanto ao seu inescondível efeito prático de ir além de um simples projeto de governo para alcançar a
realização de um projeto de poder, este a se eternizar no tempo e a sufocar todo pensamento crítico no
País. 10.3 São de todo imprestáveis as tentativas de conciliação hermenêutica da Lei 5.250/67 com a
Constituição, seja mediante expurgo puro e simples de destacados dispositivos da lei, seja mediante o
emprego dessa refinada técnica de controle de constitucionalidade que atende pelo nome de "interpretação
conforme a Constituição". A técnica da interpretação conforme não pode artificializar ou forçar a
descontaminação da parte restante do diploma legal interpretado, pena de descabido incursionamento do
intérprete em legiferação por conta própria. Inapartabilidade de conteúdo, de fins e de viés semântico
(linhas e entrelinhas) do texto interpretado. Caso-limite de interpretação necessariamente conglobante ou
por arrastamento teleológico, a pré-excluir do intérprete/aplicador do Direito qualquer possibilidade da
declaração de inconstitucionalidade apenas de determinados dispositivos da lei sindicada, mas
permanecendo incólume uma parte sobejante que já não tem significado autônomo. Não se muda, a golpes
de interpretação, nem a inextrincabilidade de comandos nem as finalidades da norma interpretada.
Impossibilidade de se preservar, após artificiosa hermenêutica de depuração, a coerência ou o equilíbrio
interno de uma lei (a Lei federal nº 5.250/67) que foi ideologicamente concebida e normativamente
apetrechada para operar em bloco ou como um todo pro indiviso. 11. EFEITOS JURÍDICOS DA
DECISÃO. Aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o
Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal às causas decorrentes das relações de imprensa. O
direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável
por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no
inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma, essa, "de eficácia plena e de aplicabilidade imediata",
conforme classificação de José Afonso da Silva. "Norma de pronta aplicação", na linguagem de Celso
Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária conjunta. 12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total
procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o
conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
Inq 2424 / RJ - RIO DE JANEIRO
Relator(a): Min. CEZAR PELUSO
Julgamento: 26/11/2008 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
“PROVA. Criminal. Escuta ambiental. Captação e interceptação de sinais eletromagnéticos, óticos ou
acústicos. Meio probatório legalmente admitido. Fatos que configurariam crimes praticados por quadrilha
ou bando ou organização criminosa. Autorização judicial circunstanciada. Previsão normativa expressa do
procedimento. Preliminar repelida. Inteligência dos arts. 1º e 2º, IV, da Lei nº 9.034/95, com a redação da
Lei nº 10.217/95. Para fins de persecução criminal de ilícitos praticados por quadrilha, bando, organização
ou associação criminosa de qualquer tipo, são permitidos a captação e a interceptação de sinais
eletromagnéticos, óticos e acústicos, bem como seu registro e análise, mediante circunstanciada
autorização judicial. 8. PROVA. Criminal. Escuta ambiental e exploração de local. Captação de sinais
óticos e acústicos. Escritório de advocacia. Ingresso da autoridade policial, no período noturno, para
instalação de equipamento. Medidas autorizadas por decisão judicial. Invasão de domicílio. Não
caracterização. Suspeita grave da prática de crime por advogado, no escritório, sob pretexto de exercício
da profissão. Situação não acobertada pela inviolabilidade constitucional. Inteligência do art. 5º, X e XI, da
CF, art. 150, § 4º, III, do CP, e art. 7º, II, da Lei nº 8.906/94. Preliminar rejeitada. Votos vencidos. Não
opera a inviolabilidade do escritório de advocacia, quando o próprio advogado seja suspeito da prática de
crime, sobretudo concebido e consumado no âmbito desse local de trabalho, sob pretexto de exercício da
profissão.”
PARA LEITURA – O DIREITO DE GREVE, como os demais direitos fundamentais, é
relativo e por isso pode ser limitado tendo em vista a necessidade de proteger o interesse
público e outros direitos fundamentais. Assim, quando a Constituição Federal assegura o
direito de greve aos trabalhadores (art. 9º), já traça expressamente limites a serem respeitados
nos §§1º e 2º: “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” e “os abusos cometidos sujeitam
os responsáveis às penas da lei”. Da mesma forma, quando permite o direito de greve aos
servidores públicos civis, remete o exercício do direito ao legislador ordinário que deverá
Cibele Fernandes Dias
33
definir termos e limites tendo em vista a necessidade de garantir a continuidade dos serviços
públicos, do qual a coletividade depende (37, VII, CF que o STF classifica como norma
constitucional de eficácia limitada). De outro lado, dada a estrutura militar (hierarquia e
disciplina), a natureza das funções a serem por ela exercidas e a essencialidade da segurança
pública, a Constituição Federal proíbe a sindicalização e a greve para os servidores militares
(142, §3º, IV).
(3) INALIENABILIDADE/INDISPONIBILIDADE/IRRENUNCIABILIDADE
“A inalienabilidade traz uma conseqüência prática importante – a de deixar claro
que a preterição de um direito fundamental não estará sempre justificada pelo
mero fato de o titular do direito nela consentir. (...) Do ponto de vista prático, a o
caráter inalienável entrevisto em alguns direitos fundamentais conduziria à
nulidade absoluta, por ilicitude de objeto, de contratos em que se realize a
alienação desses direitos. Na doutrina nacional, José Afonso da Silva acolhe essa
característica.”23
“Não se pode, dessa forma, abraçar a tese radical de Gladstone, segundo a qual a
vida privada de um homem público seria pública, mas reconhecer a liberdade de
informação relativa às suas atividades públicas e privadas, à medida que estas
possam de modo plausível e concreto, ser prejudiciais ao interesse público. [...]
Não significa que não possuam uma intimidade, mas somente que parte de sua
vida privada, em uma visão mais geral ou do homem comum, acha-se fora da
reserva e pode ser exposta ao público. Há, com efeito, uma ‘contenção’ do sentido
de intimidade, não sua negação.”24
“O nosso Superior Tribunal de Justiça entendeu de interesse público, a divulgação
do resultado de uma ação de investigação de paternidade, envolvendo um homem
público.”25
INFORMATIVO Nº 568 do STF - RE228177
Liberdade de Imprensa - Crítica Jornalística - Figuras Públicas ou Notórias - Excludentes
Anímicas - Inexistência de Abuso (Transcrições) AI 505595/RJ* RELATOR: MIN.
CELSO DE MELLO EMENTA: LIBERDADE DE INFORMAÇÃO. DIREITO DE
CRÍTICA. PRERROGATIVA POLÍTICO-JURÍDICA DE ÍNDOLE
CONSTITUCIONAL. MATÉRIA JORNALÍSTICA QUE EXPÕE FATOS E VEICULA
OPINIÃO EM TOM DE CRÍTICA. CIRCUNSTÂNCIA QUE EXCLUI O INTUITO DE
OFENDER. AS EXCLUDENTES ANÍMICAS COMO FATOR DE
DESCARACTERIZAÇÃO DO “ANIMUS INJURIANDI VEL DIFFAMANDI”.
AUSÊNCIA DE ILICITUDE NO COMPORTAMENTO DO PROFISSIONAL DE
IMPRENSA. INOCORRÊNCIA DE ABUSO DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO
23
MENDES et al, Curso..., 2. ed., p. 242-243. 24
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da
sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 1998. p. 250-252. 25
SAMPAIO, Direito à intimidade..., op. cit., 251.
Cibele Fernandes Dias
34
DO PENSAMENTO. CARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DO REGULAR
EXERCÍCIO DO DIREITO DE INFORMAÇÃO. O DIREITO DE CRÍTICA, QUANDO
MOTIVADO POR RAZÕES DE INTERESSE COLETIVO, NÃO SE REDUZ, EM SUA
EXPRESSÃO CONCRETA, À DIMENSÃO DO ABUSO DA LIBERDADE DE
IMPRENSA. A QUESTÃO DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO (E DO DIREITO
DE CRÍTICA NELA FUNDADO) EM FACE DAS FIGURAS PÚBLICAS OU
NOTÓRIAS. JURISPRUDÊNCIA. DOUTRINA. JORNALISTA QUE FOI
CONDENADO AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO CIVIL POR DANOS
MORAIS. INSUBSISTÊNCIA, NO CASO, DESSA CONDENAÇÃO CIVIL.
IMPROCEDÊNCIA DA “AÇÃO INDENIZATÓRIA”. CONVERSÃO DO AGRAVO
DE INSTRUMENTO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO, QUE, PARCIALMENTE
CONHECIDO, É, NESSA PARTE, PROVIDO. Não se pode desconhecer que a
liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e
de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras
prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de
buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar. A crítica
jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional,
plenamente oponível aos que exercem qualquer atividade de interesse da coletividade em
geral, pois o interesse social, que legitima o direito de criticar, sobrepõe-se a eventuais
suscetibilidades que possam revelar as pessoas públicas. É por tal razão que a crítica que
os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, por mais acerba, dura e
veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações
externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade. Lapidar, sob tal
aspecto, a decisão emanada do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
consubstanciada em acórdão assim ementado: “Os políticos estão sujeitos de forma
especial às críticas públicas, e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral
larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa,
ante a relevante utilidade pública da mesma.” (JTJ 169/86, Rel. Des. MARCO CESAR -
grifei) É importante acentuar, bem por isso, que não caracterizará hipótese de
responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgar
observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicular opiniões em tom de crítica
severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem
dirigidas ostentar a condição de figura pública, investida, ou não, de autoridade
governamental, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira
excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender. Com efeito, a exposição de
fatos e a veiculação de conceitos, utilizadas como elementos materializadores da prática
concreta do direito de crítica, descaracterizam o “animus injuriandi vel diffamandi”,
legitimando, assim, em plenitude, o exercício dessa particular expressão da liberdade de
imprensa. Expressivo dessa visão pertinente à plena legitimidade do direito de crítica,
fundado na liberdade constitucional de comunicação, é o julgamento, que, proferido pelo
E. Superior Tribunal de Justiça - e em tudo aplicável ao caso ora em exame -, está assim
ementado: “RECURSO ESPECIAL - RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL -
(...) - DIREITO DE INFORMAÇÃO - ‘ANIMUS NARRANDI’ - EXCESSO NÃO
CONFIGURADO (...). ...................................................... 3. No que pertine à honra, a
responsabilidade pelo dano cometido através da imprensa tem lugar tão-somente ante a
ocorrência deliberada de injúria, difamação e calúnia, perfazendo-se imperioso
demonstrar que o ofensor agiu com o intuito específico de agredir moralmente a vítima.
Se a matéria jornalística se ateve a tecer críticas prudentes (‘animus criticandi’) ou a
narrar fatos de interesse coletivo (‘animus narrandi’), está sob o pálio das ‘excludentes
Cibele Fernandes Dias
35
de ilicitude’ (...), não se falando em responsabilização civil por ofensa à honra, mas em
exercício regular do direito de informação.” (REsp 719.592/AL, Rel. Min. JORGE
SCARTEZZINI – grifei) Não é por outro motivo que a jurisprudência dos Tribunais – com
apoio em magistério expendido pela doutrina (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Manual
de Direito Penal”, vol. 2/147 e 151, 7ª ed., 1993, Atlas; DAMÁSIO E. DE JESUS,
“Código Penal Anotado”, p. 400, 407 e 410/411, 4ª ed., 1994, Saraiva; EUCLIDES
CUSTÓDIO DA SILVEIRA, “Direito Penal - Crimes contra a pessoa”, p. 236/240, 2ª ed.,
1973, RT, v.g.) – tem ressaltado que a necessidade de narrar ou de criticar (tal como
sucedeu na espécie) atua como fator de descaracterização da vontade consciente e dolosa
de ofender a honra de terceiros, a tornar legítima a crítica a estes feita, ainda que por
meio da imprensa (RTJ 145/381 – RTJ 168/853 – RT 511/422 – RT 527/381 – RT 540/320
– RT 541/385 – RT 668/368 – RT 686/393), eis que – insista-se – “em nenhum caso deve
afirmar-se que o dolo resulta da própria expressão objetivamente ofensiva” (HELENO
CLÁUDIO FRAGOSO, “Lições de Direito Penal - Parte especial”, vol. II/183-184, 7ª
ed., Forense – grifei), valendo referir, por oportuno, decisão que proferi, a propósito do
tema, neste Supremo Tribunal Federal: “LIBERDADE DE IMPRENSA (CF, ART. 5º, IV,
c/c O ART. 220). JORNALISTAS. DIREITO DE CRÍTICA. PRERROGATIVA
CONSTITUCIONAL CUJO SUPORTE LEGITIMADOR REPOUSA NO PLURALISMO
POLÍTICO (CF, ART. 1º, V), QUE REPRESENTA UM DOS FUNDAMENTOS
INERENTES AO REGIME DEMOCRÁTICO. O EXERCÍCIO DO DIREITO DE CRÍTICA
INSPIRADO POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO: UMA PRÁTICA INESTIMÁVEL
DE LIBERDADE A SER PRESERVADA CONTRA ENSAIOS AUTORITÁRIOS DE
REPRESSÃO PENAL. A CRÍTICA JORNALÍSTICA E AS AUTORIDADES PÚBLICAS. A
ARENA POLÍTICA: UM ESPAÇO DE DISSENSO POR EXCELÊNCIA.” (RTJ 200/277,
Rel. Min. CELSO DE MELLO) Entendo relevante destacar, no ponto, analisada a
questão sob a perspectiva do direito de crítica - cuja prática se mostra apta a
descaracterizar o “animus injuriandi vel diffamandi” (CLÁUDIO LUIZ BUENO DE
GODOY, “A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade”, p. 100/101, item n.
4.2.4, 2001, Atlas; VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, “A Proteção Constitucional da
Informação e o Direito à Crítica Jornalística”, p. 88/89, 1997, Editora FTD; RENÉ
ARIEL DOTTI, “Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação”, p. 207/210, item
n. 33, 1980, RT, v.g.) -, que essa prerrogativa dos profissionais de imprensa revela-se
particularmente expressiva, quando a crítica, exercida pelos “mass media” e justificada
pela prevalência do interesse geral da coletividade, dirige-se a figuras notórias ou a
pessoas públicas, independentemente de sua condição oficial. Daí a existência de
diversos julgamentos, que, proferidos por Tribunais judiciários, referem-se à legitimidade
da atuação jornalística, considerada, para tanto, a necessidade do permanente escrutínio
social a que se acham sujeitos aqueles que, exercentes, ou não, de cargos oficiais,
qualificam-se como figuras públicas: “Responsabilidade civil - Imprensa - Declarações
que não extrapolam os limites do direito de informar e da liberdade de expressão, em
virtude do contexto a que se reportava e por relacionar-se à pessoa pública -
Inadmissibilidade de se cogitar do dever de indenizar - Não provimento.” (Apelação nº
502.243-4/3, Rel. Des. ÊNIO SANTARELLI ZULIANI – TJSP - grifei) “Indenização por
dano moral. Matéria publicada, apesar de deselegante, não afrontou a dignidade da
pessoa humana, tampouco colocou a autora em situação vexatória. Apelante era
vereadora, portanto, pessoa pública sujeita a críticas mais contundentes. Termos
deseducados utilizados pelo réu são insuficientes para caracterizar o dano moral
pleiteado. Suscetibilidade exacerbada do pólo ativo não dá supedâneo à verba
reparatória pretendida. Apelo desprovido.” (Apelação Cível nº 355.443-4/0-00, Rel. Des.
Cibele Fernandes Dias
36
NATAN ZELINSCHI DE ARRUDA - TJSP - grifei) “INDENIZAÇÃO.
RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. INOCORRÊNCIA. MATÉRIA QUE
TRADUZ CRÍTICA JORNALÍSTICA. AUTORA QUE, NO EXERCÍCIO DE CARGO
PÚBLICO, NÃO PODE SE FURTAR A CRÍTICAS QUE SE LHE DIRIGEM. CASO EM
QUE FERIDA MERA SUSCETIBILIDADE, QUE NÃO TRADUZ DANO. AUSÊNCIA DE
ILICITUDE DO COMPORTAMENTO DOS RÉUS. DIREITO DE CRÍTICA QUE É
INERENTE À LIBERDADE DE IMPRENSA. VERBA INDEVIDA. AÇÃO JULGADA
IMPROCEDENTE. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO, PREJUDICADO
O APELO ADESIVO. (...).” (Apelação Cível nº 614.912.4/9-00, Rel. Des. VITO
GUGLIELMI - TJSP - grifei) “INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO
MORAL. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE ILICITUDE. PUBLICAÇÃO DE ARTIGO
EM REVISTA COM REFERÊNCIAS À PESSOA DO AUTOR. INFORMAÇÕES
COLETADAS EM OUTRAS FONTES JORNALÍSTICAS DEVIDAMENTE INDICADAS.
AUSÊNCIA DE CONOTAÇÃO OFENSIVA. TEOR CRÍTICO QUE É PRÓPRIO DA
ATIVIDADE DO ARTICULISTA. AUTOR, ADEMAIS, QUE É PESSOA PÚBLICA E
QUE ATUOU EM FATOS DE INTERESSE PÚBLICO. SENTENÇA MANTIDA.
RECURSO IMPROVIDO.” (Apelação Cível nº 638.155.4/9-00, Rel. Des. VITO
GUGLIELMI - TJSP - grifei) “(...) 03. Sendo o envolvido pessoa de vida pública, uma
autoridade, eleito para o cargo de Senador da República após haver exercido o cargo de
Prefeito do Município de Ariquemes/RO, condição que o expõe à crítica da sociedade
quanto ao seu comportamento, e levando-se em conta que não restou provado o ‘animus’
de ofender, tenho que o Jornal não pode ser condenado ao pagamento de indenização por
danos morais. 04. Deu-se provimento ao recurso. Unânime.” (Apelação Cível nº
2008.01.5.003792-6, Rel. Des. ROMEU GONZAGA NEIVA - TJDF - grifei) “A
notoriedade do artista, granjeada particularmente em telenovela de receptividade
popular acentuada, opera por forma a limitar sua intimidade pessoal, erigindo-a em
personalidade de projeção pública, ao menos num determinado momento. Nessa linha de
pensamento, inocorreu iliceidade ou o propósito de locupletamento para, enriquecendo o
texto, incrementar a venda da revista. (...) cuida-se de um ônus natural, que suportam
quantos, em seu desempenho exposto ao público, vêm a sofrer na área de sua
privacidade, sem que se aviste, no fato, um gravame à reserva pessoal da reclamante.”
(JTJ/Lex 153/196-200, 197/198, Rel. Des. NEY ALMADA - TJSP - grifei) Vê-se, pois - tal
como tive o ensejo de assinalar (Pet 3.486/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in”
Informativo/STF nº 398/2005) -, que a crítica jornalística, quando inspirada pelo
interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada,
ainda mais quando dirigida a figuras públicas, com alto grau de responsabilidade na
condução dos interesses de certos grupos da coletividade, não traduz nem se reduz, em
sua expressão concreta, à dimensão do abuso da liberdade de imprensa, não se revelando
suscetível, por isso mesmo, em situações de caráter ordinário, de sofrer qualquer
repressão estatal ou de se expor a qualquer reação hostil do ordenamento positivo. É
certo que o direito de crítica não assume caráter absoluto, eis que inexistem, em nosso
sistema constitucional, como reiteradamente proclamado por esta Suprema Corte (RTJ
173/805-810, 807-808, v.g.), direitos e garantias revestidos de natureza absoluta. Não é
menos exato afirmar-se, no entanto, que o direito de crítica encontra suporte legitimador
no pluralismo político, que representa um dos fundamentos em que se apóia,
constitucionalmente, o próprio Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, V). É por tal
razão, como assinala VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR (“A Proteção Constitucional
da Informação e o Direito à Crítica Jornalística”, p. 87/88, 1997, Editora FTD), que o
reconhecimento da legitimidade do direito de crítica - que constitui “pressuposto do
Cibele Fernandes Dias
37
sistema democrático” - qualifica-se, por efeito de sua natureza mesma, como verdadeira
“garantia institucional da opinião pública”: “(...) o direito de crítica em nenhuma
circunstância é ilimitável, porém adquire um caráter preferencial, desde que a crítica
veiculada se refira a assunto de interesse geral, ou que tenha relevância pública, e
guarde pertinência com o objeto da notícia, pois tais aspectos é que fazem a importância
da crítica na formação da opinião pública.” (grifei) Não foi por outra razão - e aqui
rememoro anterior decisão por mim proferida nesta Suprema Corte (Pet 3.486/DF, Rel.
Min. CELSO DE MELLO) - que o Tribunal Constitucional espanhol, ao veicular as
Sentenças nº 6/1981 (Rel. Juiz FRANCISCO RUBIO LLORENTE), nº 12/1982 (Rel. Juiz
LUIS DÍEZ-PICAZO), nº 104/1986 (Rel. Juiz FRANCISCO TOMÁS Y VALIENTE) e nº
171/1990 (Rel. Juiz BRAVO-FERRER), pôs em destaque a necessidade essencial de
preservar-se a prática da liberdade de informação, inclusive o direito de crítica que dela
emana, como um dos suportes axiológicos que informam e que conferem legitimação
material à própria concepção do regime democrático. É relevante observar, ainda, que o
Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), em mais de uma ocasião, também
advertiu que a limitação do direito à informação e do direito (dever) de informar,
mediante (inadmissível) redução de sua prática “ao relato puro, objetivo e asséptico de
fatos, não se mostra constitucionalmente aceitável nem compatível com o pluralismo, a
tolerância (...), sem os quais não há sociedade democrática (...)” (Caso Handyside,
Sentença do TEDH, de 07/12/1976). Essa mesma Corte Européia de Direitos Humanos,
quando do julgamento do Caso Lingens (Sentença de 08/07/1986), após assinalar que “a
divergência subjetiva de opiniões compõe a estrutura mesma do aspecto institucional do
direito à informação”, acentua que “a imprensa tem a incumbência, por ser essa a sua
missão, de publicar informações e idéias sobre as questões que se discutem no terreno
político e em outros setores de interesse público (...)”, vindo a concluir, em tal decisão,
não ser aceitável a visão daqueles que pretendem negar, à imprensa, o direito de
interpretar as informações e de expender as críticas pertinentes. Não custa insistir, neste
ponto, na asserção de que a Constituição da República revelou hostilidade extrema a
quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da
liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento. É preciso advertir,
bem por isso, notadamente quando se busca promover, como no caso, a repressão à
crítica jornalística, mediante condenação judicial ao pagamento de indenização civil, que
o Estado - inclusive o Judiciário - não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as
idéias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação
social. Essa garantia básica da liberdade de expressão do pensamento, como
precedentemente assinalado, representa, em seu próprio e essencial significado, um dos
fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade, mesmo a
autoridade judiciária, pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras
questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem
estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de
divulgação do pensamento. Isso, porque “o direito de pensar, falar e escrever livremente,
sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental” representa, conforme
adverte HUGO LAFAYETTE BLACK, que integrou a Suprema Corte dos Estados Unidos
da América, “o mais precioso privilégio dos cidadãos (...)” (“Crença na Constituição”,
p. 63, 1970, Forense). Vale rememorar, por relevante, tal como o fiz em anterior decisão
neste Supremo Tribunal Federal (Pet 3.486/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO),
fragmento expressivo da obra do ilustre magistrado federal SÉRGIO FERNANDO
MORO (“Jurisdição Constitucional como Democracia”, p. 48, item n. 1.1.5.5, 2004, RT),
no qual esse eminente Juiz põe em destaque um “landmark ruling” da Suprema Corte
Cibele Fernandes Dias
38
norte-americana, proferida no caso “New York Times v. Sullivan” (1964), a propósito do
tratamento que esse Alto Tribunal dispensa à garantia constitucional da liberdade de
expressão: “A Corte entendeu que a liberdade de expressão em assuntos públicos deveria
de todo modo ser preservada. Estabeleceu que a conduta do jornal estava protegida pela
liberdade de expressão, salvo se provado que a matéria falsa tinha sido publicada
maliciosamente ou com desconsideração negligente em relação à verdade. Diz o voto
condutor do Juiz William Brennan: ‘(...) o debate de assuntos públicos deve ser sem
inibições, robusto, amplo, e pode incluir ataques veementes, cáusticos e, algumas vezes,
desagradáveis ao governo e às autoridades governamentais.’” (grifei) Essa mesma
percepção em torno do tema tem sido manifestada pela jurisprudência dos Tribunais, em
pronunciamentos que se orientam em sentido favorável à postulação do ora recorrente,
que agiu, na espécie, com o ânimo de informar e de expender crítica, em comportamento
amparado pela liberdade constitucional de comunicação, em contexto que claramente
descaracteriza qualquer imputação, a ele, de responsabilidade civil pela matéria que
escreveu: “RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA PUBLICADA EM REVISTA SEMANAL.
VIÉS CRÍTICO SOBRE TERAPIAS ALTERNATIVAS. LIBERDADE DE IMPRENSA.
INEXISTÊNCIA DE DANOS MORAIS. 1. A liberdade de imprensa, garantia inerente a
qualquer Estado que se pretenda democrático, autoriza a publicação de matéria que
apresente críticas a quaisquer atividades.” (REsp 828.107/SP, Rel. Min. HUMBERTO
GOMES DE BARROS - grifei) “Críticas - inerentes à atividade jornalística. Estado
Democrático - cabe à imprensa o dever de informar. Art. 5º, IV e X, da Constituição.
Idéias e opiniões pessoais são livres. Garantia constitucional. Vida pública - todos estão
sujeitos a críticas favoráveis ou desfavoráveis. .......................................................
Exercício da crítica não produz lesão moral.” (Apelação Cível nº 2006.001.21477/RJ,
Rel. Des. WANY COUTO - grifei) “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS -
LIBERDADE DE IMPRENSA - DIVULGAÇÃO DE FATOS ENVOLVENDO O AUTOR -
AUSÊNCIA DE DESVIRTUAMENTO. 1 - A liberdade de imprensa deve ser exercida com
a necessária responsabilidade, para que não resulte em prejuízo à honra, à imagem e ao
direito de intimidade da pessoa abrangida na notícia. 2 - Não tendo as matérias
publicadas ultrapassado os limites legais e constitucionais do direito de informação,
afasta-se a ocorrência de dano moral, eis que ausente a intenção de lesar ou prejudicar
outrem.” (Apelação Cível nº 2004.01.1.063638-4/DF, Rel. Des. HAYDEVALDA
SAMPAIO - grifei) Impõe-se reconhecer que esse entendimento tem o beneplácito do
magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, que, em hipótese assemelhada à ora em
exame, proferiu decisão consubstanciada em acórdão assim ementado: “Direito à
informação (CF, art. 220). Dano moral. A simples reprodução, pela imprensa, de
acusação de mau uso de verbas públicas, prática de nepotismo e tráfico de influência,
objeto de representação devidamente formulada perante o TST por federação de
sindicatos, não constitui abuso de direito. Dano moral indevido. RE conhecido e
provido.” (RE 208.685/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE - grifei) Concluo a minha decisão:
as razões que venho de expor levam-me a reconhecer que a pretensão deduzida pelo
jornalista recorrente revela-se acolhível, eis que compatível com o modelo consagrado
pela Constituição da República. É que a opinião jornalística ora questionada - que
motivou a condenação civil imposta ao recorrente - veicula conteúdo que traduz
expressão concreta de uma liberdade fundamental que legitima o exercício do direito
constitucional de crítica e de informação. Sendo assim, pelas razões expostas, conheço do
presente agravo de instrumento, para, desde logo, conhecer, em parte, do recurso
extraordinário, e, nessa parte, dar-lhe provimento (CPC, art. 544, § 4º), em ordem a
julgar improcedente a “ação indenizatória” ajuizada pela parte ora recorrida,
Cibele Fernandes Dias
39
restabelecendo-se, quanto às custas processuais e à verba honorária, a sentença
proferida pela magistrada estadual de primeira instância, com a conseqüente devolução,
ao ora recorrente, do valor de sua condenação, por ele já depositado nos autos do
Processo nº 2000.001.139887-4 (8ª Vara Cível da comarca do Rio de Janeiro/RJ).
Publique-se. Brasília, 11 de novembro de 2009. Ministro CELSO DE MELLO Relator *
decisão publicada no DJE de 23.11.2009
(4) INDIVISIBILIDADE
(5) IMPRESCRITIBILIDADE (como regra, exceção: art. 7º, inc. XXIX)
(6) UNIVERSALIDADE
(7) INTER-RELAÇÃO e INTERDEPENDÊNCIA
APLICABILIDADE das normas constitucionais sobre direitos fundamentais (art. 5º, §1º,
CF – “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”)
ART. 5º, §1º - HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL – Em se tratando de normas
constitucionais sobre direitos fundamentais, a regra é que têm eficácia plena ou contida,
garantindo imediatamente o exercício do direito mesmo não havendo legislação sobre o assunto
(aplicação imediata), excepcionalmente, têm eficácia limitada, dependendo o exercício do
direito da existência de lei que regulamente a norma constitucional (aplicação mediata). Com
efeito, há um princípio de presunção de aplicabilidade imediata das normas definidoras de
direitos e garantias fundamentais. Faz prova da existência de normas constitucionais que
estabelecem direitos fundamentais com eficácia limitada a existência do mandado de injunção
(5º, LXXI CF).
4. DIREITOS FUNDAMENTAIS EXPRESSOS E IMPLÍCITOS – a “abertura” das
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, §2º, CF), a
“inesgotabilidade” dos direitos fundamentais.26
Súmula vinculante n. 5, STF: “A falta de defesa técnica no processo
administrativo disciplinar não ofende a Constituição.”
Súmula vinculante n. 14 do STF: “É direito do defensor, no interesse do
representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em
procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia
judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Súmula vinculante n. 21, do STF: “É inconstitucional a exigência de depósito ou
arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso
administrativo.”
5. TITULARIDADE OU DESTINATÁRIOS DA PROTEÇÃO (art. 5º, caput):
26
A redação do art. 5º, §2º, da CF não é novidade. Já constava do §36, do art. 153, da Carta de 1969: “A
especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.” A inspiração de ambas as Constituições foi a
IX Emenda à Constituição americana: “A enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser
interpretada como negando ou coibindo outros direitos inerentes ao povo” (“The enumeration in the
Constitution of certain rights shall not be construed to deny or disparage others retained by the people.”).
Cibele Fernandes Dias
40
(1) brasileiros ou estrangeiros ‘residentes’ no país (que se encontram no país) ou
não-residentes: embora a proteção constitucional seja mais forte em se tratando
dos brasileiros – (pessoas físicas)
(2) pessoas jurídicas desde que (a) o direito seja compatível com a sua personalidade
(exemplo: direito à honra objetiva);
(3) Em certas situações, até universalidades patrimoniais despidas de personalidade
(direito de ação, direito de acesso ao Poder Judiciário, por exemplo)
Súmula 227, do STJ “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”
“A honra objetiva da pessoa jurídica pode ser ofendida pelo protesto indevido de
título cambial, cabendo indenização pelo dano extrapatrimonial daí decorrente.27
Súmula 365 do STF: Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação
popular.
"A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos
comuns não exonera o Estado brasileiro — e, em particular, o Supremo Tribunal
Federal — de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que
venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de
qualquer Estado estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de
extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a
essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a
titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua
insuperável importância, a garantia do due process of law. Em tema de direito
extradicional, o Supremo Tribunal Federal não pode e nem deve revelar indiferença
diante de transgressões ao regime das garantias processuais fundamentais. É que o
Estado brasileiro — que deve obediência irrestrita à própria Constituição que lhe
rege a vida institucional — assumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o
gravíssimo dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4º, II)."
(Ext 633, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28-8-96, DJ de 6-4-01)
Súmula 654, do STF: A garantia da irretroatividade da lei, prevista no art. 5º,
XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a
tenha editado.
A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES
DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO
PÚBLICO. - A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo Estado, quer se concretize na esfera
judicial, quer se realize no âmbito estritamente administrativo (como sucede com a inclusão de supostos
devedores em cadastros públicos de inadimplentes), supõe, para legitimar-se constitucionalmente, o
efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do "due process of law", assegurada, pela
Constituição da República (art. 5º, LIV), à generalidade das pessoas, inclusive às próprias pessoas
jurídicas de direito público, eis que o Estado, em tema de limitação ou supressão de direitos, não pode
exercer a sua autoridade de maneira abusiva e arbitrária. Doutrina. Precedentes.
(AC 2403-MC-ED-Ref/DF, Relator: Ministro Celso de Mello, Julgamento: 20.08.2009, Plenário do STF)
27
STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 60033/MG, Relator Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior.
Cibele Fernandes Dias
41
7. EFICÁCIA ou EFEITOS dos direitos fundamentais: “VERTICAL” e
“HORIZONTAL” (“eficácia privada”, “eficácia em relação a terceiros”, “eficácia
externa”)
7a. TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL:
EFICÁCIA INDIRETA OU MEDIATA EFICÁCIA DIRETA OU IMEDIATA
Os direitos fundamentais são aplicados de
maneira reflexa, tanto em uma dimensão
proibitiva, porque o legislador não poderá
editar leis violadoras de direitos fundamentais,
quanto numa dimensão positiva, impondo um
dever ao legislador de implementar os direitos
fundamentais, decidindo quais serão aplicáveis
às relações privadas.
Os direitos fundamentais podem ser invocados
diretamente nas relações privadas,
independentemente de qualquer mediação por
parte do Legislador.
7b. Precedentes sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais:
1. RE 158.215-4/RS, STF, 2ª Turma, DJ 7.6.97, Relator Ministro Marco Aurélio: entendeu
como violado o princípio do devido processo legal e ampla defesa na hipótese de exclusão de
associado de cooperativa sem direito à defesa;
2. RE 161.243-6/DF, STF, 2ª Turma, Relator Min. Carlos Mário da Silva Velloso: acolheu
pretensão do empregado brasileiro da Air France de reconhecimento de direitos trabalhistas
assegurados no Estatuto do Pessoal da Empresa, que a empresa reconhecia tão-somente aos
empregados franceses, por ofensa ao princípio da igualdade;
3. RE 251.445/GO, STF, Relator Min. Celso de Mello: a proibição constitucional da prova
ilícita alcança no processo penal as provas resultantes de ato ilícito perpetrado por particular,
ainda que o Estado não tenha nenhuma participação.
4. HC 12.547/DF, STJ, 4ª Turma, Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 12.2.2001:
invalidade do decreto de prisão civil da devedora que deixou de pagar dívida bancária assumida
com a compra de um automóvel-taxi, que se elevou, em menos de 24 meses, de R$ 18.700,00
para R$ 86.858,24, a exigir que o total da remuneração da devedora, pelo resto do tempo
provável de vida, seja consumido com o pagamento de juros, ofensa ao princípio da dignidade
da pessoa humana, dos direitos de liberdade de locomoção e de igualdade contratual (artigos 1º,
III; 3º, 5º, caput, da CF);
5. RE 249.321, STJ, 4ª Turma, Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar: rejeitou
aplicabilidade ao limite do valor da indenização em casos de extravio de bagagem nas viagens
aéreas, previsto no Pacto de Varsóvia, por ofensa ao princípio da igualdade (5º, caput), já que
esta cláusula estabelece nítida desigualdade entre as partes, criando situação de verdadeira
desoneração de responsabilidade em favor do transportador, além de conceder à empresa aérea
benefício que não concede aos demais transportadores.28
28
Comentando estes precedentes, conferir Daniel SARMENTO. A vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: BARROSO, Luis Roberto. A nova
Cibele Fernandes Dias
42
"Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. As violações a direitos fundamentais não
ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas
entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela
Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à
proteção dos particulares em face dos poderes privados. Os princípios constitucionais como limites à
autonomia privada das associações. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer
associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos
postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em
tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela
Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o
respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações
de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de
terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não
confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as
restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem,
aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais." (RE 201.819,
Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 11-10-05, DJ de 27-10-0. Voto no Informativo 405/STF.)
interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. São Paulo-Rio
de Janeiro: Renovar, 2003.