RSTJ 239 TOMO2 - mpsp.mp.br · Andréia Mendonça Agostini Annelise Monteiro Steigleder Arícia...

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PUBLICAÇÃO OFICIAL Revista SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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    Revista SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

  • VOLUME 239, TOMO 2ANO 27

    JULHO/AGOSTO/SETEMBRO 2015

    Revista SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

  • SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIAGabinete do Ministro Diretor da Revista

    DiretorMinistro Herman BenjaminChefe de GabineteAndrea Dias de Castro CostaServidoresEloame AugustiGerson Prado da SilvaMaria Anglica Neves SantAnaTcnica em SecretariadoMaria Luza Pimentel MeloMensageiroCristiano Augusto Rodrigues Santos

    Superior Tribunal de Justiawww.stj.jus.br, [email protected] do Ministro Diretor da RevistaSetor de Administrao Federal Sul, Quadra 6, Lote 1, Bloco C, 2 Andar, Sala C-240, Braslia-DF, 70095-900Telefone (61) 3319-8055/3319-8003, Fax (61) 3319-8992

    Revista do Superior Tribunal de Justia. N. 1 (set. 1989). -- Braslia : STJ, 1989 - .

    Periodicidade varia: Mensal, do n. 1 (set. 1989) ao n. 202 (jun. 2006), Trimestral a partir do n. 203 (jul/ago/set. 2006).

    Volumes temticos na sequncia dos fascculos: n. 237 ao n. 239 organizados por Antonio Herman Benjamin, Jos Rubens Morato Leite e Slvia Capelli.

    Repositrio Ofi cial da Jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia. Nome do editor varia: Superior Tribunal de Justia/Editora Braslia Jurdica, set. 1989 a dez. 1998; Superior Tribunal de Justia/Editora Consulex Ltda, jan. 1999 a dez. 2003; Superior Tribunal de Justia/ Editora Braslia Jurdica, jan. 2004 a jun. 2006; Superior Tribunal de Justia, jul/ago/set 2006-.

    Disponvel tambm em verso eletrnica a partir de 2009: https://ww2.stj.jus.br/web/revista/eletronica/publicacao/?aplicacao=revista.eletronica.

    ISSN 0103-4286

    1. Direito, Brasil. 2. Jurisprudncia, peridico, Brasil. I. Brasil. Superior Tribunal de Justia (STJ). II. Ttulo.

    CDU 340.142(81)(05)

  • MINISTRO HERMAN BENJAMIN Diretor

    Revista SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

  • Organizadores do Volume TemticoAntonio Herman BenjaminJos Rubens Morato Leite

    Slvia Cappelli

    RSTJ 239, Tomo 2 - Direito Ambiental

    Juristas Colaboradoreslvaro Luiz Valery Mirra

    Ana Maria de Oliveira NusdeoAna Maria Moreira Marchesan

    Ana Paula Rengel GonalvesAndra Silva

    Andria Mendona AgostiniAnnelise Monteiro Steigleder

    Arcia Fernandes CorreiaBraulio Cavalcanti Ferreira

    Cndido Alfredo Silva Leal JniorCarlos E. Peralta

    Carlos Eduardo Ferreira PintoCarlos Magno de Souza Paiva

    Carlos Teodoro Jos Hugueney IrigarayClarides Rahmeier

    Cristiane DeraniDaniel Gaio

    Danielle de Andrade MoreiraDlton Winter de Carvalho

    Eduardo Coral ViegasEla Wiecko Volkmer de Castilho

    Eliane Cristina Pinto MoreiraEliziana da Silveira Perez

    Elton M. C. LemeEveline de Magalhes Werner Rodrigues

    Fernanda Dalla Libera DamacenaFernanda Luiza Fontoura de MedeirosFernanda Menna Pinto PeresFernando Reverendo Vidal AkaouiFrancisco Humberto Cunha FilhoGabriel WedyGabriela Cristina Braga NavarroGabriela SilveiraGermana Parente Neiva BelchiorGilberto Passos de FreitasGiorgia Sena MartinsGirolamo Domenico TreccaniGuilherme Jos Purvin FigueiredoHeline Sivini FerreiraHugo Nigro MazzilliIbraim RochaIns Virgnia Prado SoaresIngo Wolfgang SarletJarbas Soares JniorJoo Luis Nogueira MatiasJos Heder BenattiJos Rubens Morato LeiteKamila Guimares de MoraesKleber Isaac Silva de SouzaLeonardo Castro Maia

  • Letcia AlbuquerqueLeticia Rodrigues da Silva

    Lidia Helena Ferreira da Costa PassosLucas Lixinski

    Luciano Furtado LoubetLus Fernando Cabral Barreto Junior

    Luiz Fernando RochaLuiz Guilherme Marinoni

    Luiza Landerdahl ChristmannLuly Rodrigues da Cunha Fischer

    Marcelo Abelha RodriguesMarcelo Krs Borges

    Mrcia Dieguez LeuzingerMaria Leonor Paes C. Ferreira Codonho

    Marina Demaria VenncioMario Jose Gisi

    Melissa Ely MeloNatlia Jodas

    Ney de Barros Bello FilhoNicolao Dino

    Oscar Graa CoutoPatricia Antunes Laydner

    Patrcia Faga Iglecias LemosPatrcia Nunes Lima Bianchi

    Patryck de Araujo AyalaPaula Galbiatti Silveira

    Paulo Aff onso Brum VazPery Saraiva Neto

    Rafael Martins Costa MoreiraRaimundo Moraes

    Raquel Thais HunscheRaul Silva Telles do Valle

    Rodolfo de Camargo MancusoRodrigo Antonio de Agostinho Mendona

    Sandra Veronica CureauSlvia Cappelli

    Solange Teles da SilvaTalden FariasThas Dalla CorteThas Emlia de Sousa ViegasTiago FensterseiferUbiratan CazettaVansca Buzelato PrestesVictor Manoel PelaezVladimir Passos de FreitasXimena Cardozo FerreiraZenildo Bodnar

  • Resoluo n. 19/1995-STJ, art. 3.

    RISTJ, arts. 21, III e VI; 22, 1, e 23.

    SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIAPlenrio

    Ministro Francisco Cndido de Melo Falco Neto (Presidente)Ministra Laurita Hilrio Vaz (Vice-Presidente)Ministro Felix FischerMinistra Ftima Nancy Andrighi (Corregedora Nacional de Justia)Ministro Joo Otvio de Noronha (Diretor-Geral da ENFAM)Ministro Humberto Eustquio Soares MartinsMinistra Maria Th ereza Rocha de Assis MouraMinistro Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin (Diretor da Revista)Ministro Napoleo Nunes Maia Filho Ministro Jorge MussiMinistro Geraldo Og Nicas Marques Fernandes (Corregedor-Geral da Justia Federal)Ministro Luis Felipe SalomoMinistro Mauro Luiz Campbell MarquesMinistro Benedito GonalvesMinistro Raul Arajo FilhoMinistro Paulo de Tarso Vieira SanseverinoMinistra Maria Isabel Diniz Gallotti RodriguesMinistro Antonio Carlos Ferreira (Ouvidor)Ministro Ricardo Villas Bas CuevaMinistro Sebastio Alves dos Reis JniorMinistro Marco Aurlio Gastaldi BuzziMinistro Marco Aurlio Bellizze OliveiraMinistra Assusete Dumont Reis MagalhesMinistro Srgio Luz KukinaMinistro Paulo Dias de Moura RibeiroMinistra Regina Helena CostaMinistro Rogerio Schietti Machado CruzMinistro Nefi CordeiroMinistro Luiz Alberto Gurgel de FariaMinistro Reynaldo Soares da FonsecaMinistro Marcelo Navarro Ribeiro Dantas

  • CORTE ESPECIAL (Sesses s 1 e 3 quartas-feiras do ms)

    Ministro Francisco Falco (Presidente)Ministra Laurita Vaz (Vice-Presidente)Ministro Felix FischerMinistra Nancy AndrighiMinistro Joo Otvio de NoronhaMinistro Humberto MartinsMinistra Maria Th ereza de Assis MouraMinistro Herman BenjaminMinistro Napoleo Nunes Maia FilhoMinistro Jorge MussiMinistro Og FernandesMinistro Luis Felipe SalomoMinistro Mauro Campbell MarquesMinistro Benedito GonalvesMinistro Raul Arajo

    PRIMEIRA SEO (Sesses s 2 e 4 quartas-feiras do ms)

    Ministro Herman Benjamin (Presidente)

    PRIMEIRA TURMA (Sesses s teras-feiras e 1 e 3 quintas-feiras do ms)

    Ministro Srgio Kukina (Presidente)Ministro Napoleo Nunes Maia FilhoMinistro Benedito Gonalves Ministra Regina Helena CostaMinistro Olindo Herculano de Menezes *

    * Desembargador convocado (TRF1)

  • SEGUNDA TURMA (Sesses s teras-feiras e 1 e 3 quintas-feiras do ms)

    Ministra Assusete Magalhes (Presidente)Ministro Humberto MartinsMinistro Herman BenjaminMinistro Mauro Campbell MarquesMinistra Diva Prestes Marcondes Malerbi **

    SEGUNDA SEO (Sesses s 2 e 4 quartas-feiras do ms)

    Ministro Raul Arajo (Presidente)

    TERCEIRA TURMA (Sesses s teras-feiras e 1 e 3 quintas-feiras do ms)

    Ministro Villas Bas Cueva (Presidente)Ministro Joo Otvio de NoronhaMinistro Paulo de Tarso SanseverinoMinistro Marco Aurlio BellizzeMinistro Moura Ribeiro

    QUARTA TURMA (Sesses s teras-feiras e 1 e 3 quintas-feiras do ms)

    Ministra Isabel Gallotti (Presidente)Ministro Luis Felipe SalomoMinistro Raul ArajoMinistro Antonio Carlos Ferreira Ministro Marco Buzzi

    ** Desembargadora convocada (TRF3)

  • TERCEIRA SEO (Sesses s 2 e 4 quartas-feiras do ms) Ministro Sebastio Reis Jnior (Presidente)

    QUINTA TURMA (Sesses s teras-feiras e 1 e 3 quintas-feiras do ms)

    Ministro Felix Fischer (Presidente)Ministro Jorge MussiMinistro Gurgel de Faria Ministro Reynaldo Soares da FonsecaMinistro Ribeiro Dantas

    SEXTA TURMA (Sesses s teras-feiras e 1 e 3 quintas-feiras do ms)

    Ministro Rogerio Schietti Cruz (Presidente)Ministra Maria Th ereza de Assis Moura Ministro Sebastio Reis JniorMinistro Nefi CordeiroMinistro Ericson Maranho ***

    *** Desembargador convocado (TJ-SP)

  • COMISSES PERMANENTES

    COMISSO DE COORDENAO

    Ministro Marco Buzzi (Presidente)Ministra Regina Helena Costa Ministro Gurgel de Faria Ministro Nefi Cordeiro (Suplente)

    COMISSO DE DOCUMENTAO

    Ministro Jorge Mussi (Presidente)Ministro Raul ArajoMinistro Villas Bas CuevaMinistro Moura Ribeiro (Suplente)

    COMISSO DE REGIMENTO INTERNO

    Ministro Luis Felipe Salomo (Presidente)Ministro Benedito GonalvesMinistro Marco Aurlio BellizzeMinistro Jorge Mussi (Suplente)

    COMISSO DE JURISPRUDNCIA

    Ministra Maria Th ereza de Assis Moura (Presidente)Ministro Mauro Campbell MarquesMinistra Isabel GallottiMinistro Antonio Carlos FerreiraMinistro Sebastio Reis JniorMinistro Srgio Kukina

  • MEMBROS DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

    Ministra Maria Th ereza de Assis Moura (Corregedora-Geral)Ministro Herman Benjamin (Efetivo)Ministro Napoleo Nunes Maia Filho (1 Substituto)Ministro Jorge Mussi (2 Substituto)

    CONSELHO DA JUSTIA FEDERAL (Sesso 1 sexta-feira do ms)

    Ministro Francisco Falco (Presidente)Ministra Laurita Vaz (Vice-Presidente)Ministro Og Fernandes (Corregedor-Geral da Justia Federal)

    Membros EfetivosMinistro Mauro Campbell MarquesMinistro Benedito GonalvesDesembargador Federal Cndido Artur M. Ribeiro Filho (TRF 1 Regio)Desembargador Federal Poul Erik Dyrlund (TRF 2 Regio)Desembargador Federal Fbio Prieto de Souza (TRF 3 Regio)Desembargador Federal Luiz Fernando Wowk Penteado (TRF 4 Regio)Desembargador Federal Rogrio de Meneses Fialho Moreira (TRF 5 Regio)

    Membros SuplentesMinistro Raul ArajoMinistro Paulo de Tarso SanseverinoMinistra Isabel GallottiDesembargadora Federal Neuza Maria A. da Silva (TRF 1 Regio)Desembargador Federal Reis Friede (TRF 2 Regio)Desembargadora Federal Ceclia Maria Piedra Marcondes (TRF 3 Regio)Desembargador Federal Carlos Eduardo Th ompson Flores Lenz (TRF 4 Regio)Desembargador Federal Francisco Roberto Machado (TRF 5 Regio)

  • SUMRIO

    RSTJ N. 239 - TOMO 1

    APRESENTAO ..................................................................................................................................................21

    JURISPRUDNCIA E COMENTRIOS

    1. Responsabilidade Civil Ambiental, Princpio do Poluidor-Pagador, Princpio daReparao Integral, Princpio da Melhoria da Qualidade Ambiental e Princpio inDubio pro Natura .........................................................................................................23

    1.1. Cumulao de Obrigao de Fazer, No Fazer e de Indenizar ..................25REsp 1.198.727-MG (Rel. Min. Herman Benjamin) ...........................25Comentrio de Patryck de Araujo Ayala, Eveline de MagalhesWerner Rodrigues e Paula Galbiatti Silveira.............................................41REsp 1.307.938-GO (Rel. Min. Benedito Gonalves) .........................51Comentrio de Jos Rubens Morato Leite e Marina Demaria Venncio ....69

    1.2. Dano Ambiental Moral Coletivo ...............................................................74REsp 1.269.494-MG (Rel. Min. Eliana Calmon) .................................74Comentrio de Jos Rubens Morato Leite e Marina Demaria Venncio ....87REsp 1.367.923-RJ (Rel. Min. Humberto Martins) .............................95Comentrio de Jos Rubens Morato Leite e Marina Demaria Venncio ..108REsp 1.410.698-MG (Rel. Min. Humberto Martins) ........................118Comentrio de Vansca Buzelato Prestes ...............................................125

    1.3. Confl ito entre o Interesse Pblico e o Particular .....................................131AgRg na SLS 1.071-SC (Rel. Min. Cesar Asfor Rocha,Presidente do STJ) ..............................................................................131Comentrio de Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer .....................149AgRg na SLS 1.419-DF (Rel. Min. Joo Otvio de Noronha) ...........155Comentrio de lvaro Luiz Valery Mirra .............................................165

  • 1.4. Sentena Incerta e Ausncia de Detalhamento das Medidas naObrigao de Fazer ...............................................................................179

    AgRg no REsp 1.121.233-SP (Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima) ......179Comentrio de Kamila Guimares de Moraes ........................................184

    1.5. Prescrio .................................................................................................192AgRg no REsp 1.204.607-SC (Rel. Min. Cesar Asfor Rocha) ...........192Comentrio de Fernanda Menna Pinto Peres ........................................204REsp 1.120.117-AC (Rel. Min. Eliana Calmon) ................................215Comentrio de Eliane Cristina Pinto Moreira ......................................236REsp 1.223.092-SC (Rel. Min. Castro Meira) ...................................246Comentrio de Lidia Helena Ferreira da Costa Passos ...........................265

    1.6. Solidariedade ...........................................................................................271AgRg no REsp 1.001.780-PR (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) ........271Comentrio de Fernando Reverendo Vidal Akaoui ................................279REsp 604.725-PR (Rel. Min. Castro Meira) ......................................285Comentrio de Th as Emlia de Sousa Viegas ........................................300REsp 647.493-SC (Rel. Min. Joo Otvio de Noronha) .....................306Comentrio de Patrcia Faga Iglecias Lemos .........................................332REsp 771.619-RR (Rel. Min. Denise Arruda) ....................................339Comentrio de Dlton Winter de Carvalho ...........................................346REsp 880.160-RJ (Rel. Min. Mauro Campbell Marques) ..................353Comentrio de Raul Silva Telles do Valle ..............................................358

    1.7. Obrigaes Propter Rem ............................................................................362REsp 1.090.968-SP (Rel. Min. Luiz Fux) ...........................................362Comentrio de Oscar Graa Couto ........................................................395

    1.8. Indenizao por Dano Ambiental, Compensao Ambiental e Bis in Idem ................................................................................................. 403

    REsp 896.863-DF (Rel. Min. Castro Meira) ......................................403Comentrio de Jarbas Soares Jnior e Carlos Eduardo Ferreira Pinto .......416

    2. Mnimo Existencial e Meio Ambiente ..................................................................425REsp 1.366.331-RS (Rel. Min. Humberto Martins) ..........................427Comentrio de Leonardo Castro Maia ..................................................446

  • 3. Poluio Sonora .....................................................................................................453REsp 791.653-RS (Rel. Min. Jos Delgado) .......................................455Comentrio de Jos Rubens Morato Leite e Paula Galbiatti Silveira ......462REsp 1.051.306-MG (Rel. Min. Herman Benjamin) .........................470Comentrio de Slvia Cappelli .............................................................487

    4. Unidade de Conservao .......................................................................................4954.1. Plano de Manejo e Gesto .......................................................................497

    REsp 1.163.524-SC (Rel. Min. Humberto Martins) ..........................497Comentrio de Ana Maria Moreira Marchesan ....................................505

    4.2. Deveres do Estado ...................................................................................512REsp 1.071.741-SP (Rel. Min. Herman Benjamin) ...........................512Comentrio de Germana Parente Neiva Belchior e Joo LuisNogueira Matias ...................................................................................548

    4.3. rea de Proteo Integral ........................................................................556RMS 20.281-MT (Rel. Min. Jos Delgado) .......................................556Comentrio de Elton M. C. Leme .........................................................580

    RSTJ N. 239 - TOMO 2

    JURISPRUDNCIA E COMENTRIOS

    5. Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico.............................................................587

    5.1. Comunidade Remanescente de Quilombos .............................................589REsp 931.060-RJ (Rel. Min. Benedito Gonalves) .............................589Comentrio de Zenildo Bodnar ............................................................651

    5.2. Tombamento ............................................................................................657REsp 808.708-RJ (Rel. Min. Herman Benjamin) ...............................657Comentrio de Carlos Magno de Souza Paiva ......................................676REsp 840.918-DF (Rel. Min. Herman Benjamin) .............................683Comentrio de Carlos Magno de Souza Paiva ......................................714REsp 1.098.640-MG (Rel. Min. Humberto Martins) ........................721Comentrio de Francisco Humberto Cunha Filho eIns Virgnia Prado Soares ....................................................................730

  • REsp 1.293.608-PE (Rel. Min. Herman Benjamin) ...........................737Comentrio de Carlos Magno de Souza Paiva .......................................747

    6. Processo Civil Ambiental .......................................................................................7536.1. Ao Civil Pblica ...................................................................................755

    REsp 497.447-MT (Rel. Min. Jos Delgado) .....................................755Comentrio de lvaro Luiz Valery Mirra .............................................764REsp 570.194-RS (Rel. Min. Denise Arruda) ....................................772Comentrio de Fernanda Dalla Libera Damacena ................................788REsp 605.323-MG (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) .......................800Comentrio de Annelise Monteiro Steigleder ........................................816REsp 726.543-SP (Rel. Min. Francisco Falco) ..................................831Comentrio de Melissa Ely Melo .........................................................836REsp 801.005-SP (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) ........................... 842Comentrio de Hugo Nigro Mazzilli ....................................................846REsp 826.409-PB (Rel. Min. Francisco Falco) .................................852Comentrio de Mario Jose Gisi ............................................................855REsp 884.150-MT (Rel. Min. Luiz Fux)............................................861Comentrio de Rodolfo de Camargo Mancuso .......................................867REsp 1.188.001-SP (Rel. Min. Cesar Asfor Rocha) ...........................873Comentrio de Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer .....................885

    6.2. Ao Popular ...........................................................................................890AgRg no REsp 1.151.540-SP (Rel. Min. Benedito Gonalves) ..........890Comentrio de Melissa Ely Melo e Paula Galbiatti Silveira ..................896

    6.3. Legitimao para Agir .............................................................................902REsp 265.300-MG (Rel. Min. Humberto Martins) ...........................902Comentrio de Marcelo Abelha Rodrigues.............................................908REsp 440.002-SE (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) ..........................921Comentrio de Eliziana da Silveira Perez ............................................928REsp 876.931-RJ (Rel. Min. Mauro Campbell Marques) ..................937Comentrio de Ins Virgnia Prado Soares e Francisco Humberto Cunha Filho ..........................................................940REsp 876.936-RJ (Rel. Min. Luiz Fux) ..............................................948Comentrio de Tiago Fensterseifer ........................................................959

  • 6.4. Competncia ............................................................................................965AR 756-PR (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) ...................................965Comentrio de Heline Sivini Ferreira e Andria Mendona Agostini .....989CC 39.111-RJ (Rel. Min. Luiz Fux) ...................................................997Comentrio de Marcelo Abelha Rodrigues...........................................1008CC 90.722-BA (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) ............................1023Comentrio de Cndido Alfredo Silva Leal Jnior ..............................1037CC 102.158-RS (Rel. Min. Teori Albino Zavascki) ...........................1046Comentrio de Patricia Antunes Laydner ...........................................1051REsp 1.100.698-PR (Rel. Min. Francisco Falco) ............................1057Comentrio de Zenildo Bodnar ...........................................................1068

    6.5. Denunciao da Lide .............................................................................1072REsp 67.285-SP (Rel. Min. Castro Meira) .......................................1072Comentrio de Ney de Barros Bello Filho ...........................................1080

    6.6. Litisconsrcio Necessrio ......................................................................1087REsp 1.383.707-SC (Rel. Min. Srgio Kukina) ................................1087Comentrio de Ana Maria de Oliveira Nusdeo ....................................1102

    6.7. Interesse de Agir ....................................................................................1107AgRg no AREsp 477.346-PR (Rel. Min. Og Fernandes) ................1107Comentrio de Natlia Jodas ..............................................................1114AgRg no REsp 1.312.668-PB (Rel. Min. Benedito Gonalves) .......1120Comentrio de Mrcia Dieguez Leuzinger .........................................1125AgRg no REsp 1.396.306-PE (Rel. Min. Mauro Campbell Marques) 1132Comentrio de Ximena Cardozo Ferreira ...........................................1137

    6.8. Inverso do nus da Prova ....................................................................1141REsp 883.656-RS (Rel. Min. Herman Benjamin) ............................1141Comentrio de Luiz Guilherme Marinoni ..........................................1158REsp 972.902-RS (Rel. Min. Eliana Calmon) ..................................1162Comentrio de Annelise Monteiro Steigleder, Ana Maria Moreira Marchesan e Silvia Cappelli .................................................................1169REsp 1.049.822-RS (Rel. Min. Francisco Falco) ............................1177Comentrio de Danielle de Andrade Moreira ......................................1202

  • REsp 1.060.753-SP (Rel. Min. Eliana Calmon) ...............................1225Comentrio de Cristiane Derani ........................................................1234

    6.9. Provimentos Cautelares ........................................................................1241MC 2.136-SC (Rel. Min. Jos Delgado) ...........................................1241Comentrio de Kleber Isaac Silva de Souza .........................................1251

    MC 15.918-SP (Rel. Min. Humberto Martins) ...............................1261Comentrio de Hugo Nigro Mazzilli ..................................................1273

    6.10. Julgamento Ultra ou Extra Petita .........................................................1277

    REsp 1.107.219-SP (Rel. Min. Luiz Fux) .........................................1277Comentrio de Pery Saraiva Neto .......................................................1288

    NDICE ANALTICO .........................................................................................................................................1297

    NDICE SISTEMTICO ....................................................................................................................................1317

    SIGLAS E ABREVIATURAS ...........................................................................................................................1323

    REPOSITRIOS AUTORIZADOS E CREDENCIADOS PELO

    SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA ..........................................................................................................1329

  • APRESENTAO

    Pela primeira vez, a Revista do Superior Tribunal de Justia publica coletneas temticas e comentadas de sua jurisprudncia. So vrios volumes e tomos dedicados ao Direito Ambiental, representando o labor da Primeira Seo (Direito Pblico) da Corte, e ao Direito do Consumidor, matria prpria da Segunda Seo (Direito Privado).

    Tal inovao busca atender demanda crescente de especializao, de sistematizao e de aprofundada anlise doutrinria dos julgados do STJ em ramos do Direito que, embora jovens, tm presena marcante na prtica judicial cotidiana da litigiosidade brasileira.

    Os Volumes 237, 238 e 239, Tomos 1 e 2, trazem as principais decises ambientais da Primeira Seo, desde 2000, cada uma comentada por renomado jurista da rea. No foi fcil selecion-las, sobretudo diante do nmero impressionante de julgados do STJ nos diversos domnios da proteo do meio ambiente, urbanismo, patrimnio histrico-cultural e sade das pessoas. Flora, fauna, gua, poluio industrial e sonora, reas protegidas, minerao, desapropriao direta e indireta, licenciamento, responsabilidade civil, direito adquirido, sanes administrativas, confl ito intertemporal de normas, entre tantos outros temas, praticamente nada fi ca de fora do crivo do STJ. Alm, claro, dos aspectos principiolgicos (mnimo existencial, princpios da preveno, da precauo, da funo ecolgica da propriedade, da reparao in integrum, poluidor-pagador, in dubio pro Natura, obrigao propter rem etc.) e processuais da matria, notadamente naquilo que diz respeito ao civil pblica e popular.

    No foi toa que os volumes iniciais desta srie histrica especializada comearam pelo Direito Ambiental, uma das disciplinas jurdicas que, entre ns, mais se desenvolveram nas ltimas dcadas, seja pelo surgimento de entidades acadmicas, como o Instituto O Direito por um Planeta Verde e a Aprodab Associao dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, seja por formar centenas de especialistas, mestres e doutores, seja ainda pela produo doutrinria de altssimo quilate, espelhada em manuais e tratados, bem como em consagrados peridicos, como a Revista de Direito Ambiental (a primeira da Amrica Latina).

    Doutrina e docncia, entretanto, pouco signifi cam sem prtica judicial robusta e constante. Essa talvez a grande diferena entre o Direito Ambiental brasileiro e o de tantos outros pases, onde no passa de aspirao terica, com pouca ou nenhuma repercusso no dia a dia dos tribunais e das pessoas.

    Nisso reside a expressividade e a riqueza da jurisprudncia do STJ, nessa coletnea retratada pela obra dos Ministros que compem sua Primeira Seo, embora a Segunda e Terceira Sees tambm possuam magnfi cos precedentes ambientais no mbito de sua competncia (Direito Privado e Direito Penal, respectivamente). Quem compulsar qualquer dos tomos da obra se deparar com julgados dotados de articulao terica original e sofi sticada, o que pe o STJ na linha de frente da jurisprudncia ambiental mais progressista, tcnica e numerosa do mundo. No apenas mera constatao numrica, contudo, tal resultado refl ete a grande sensibilidade social e o amplo saber jurdico dos Ministros de hoje e de ontem. Por conta dessa elaborao jurisprudencial massiva e de qualidade, podem ser eles considerados os mais infl uentes obreiros do Direito Ambiental brasileiro.

  • Por isso mesmo, alm da fi nalidade informativa e de divulgao, a coletnea, nem poderia ser diferente, denota merecida homenagem que a Revista presta aos Ministros de ontem e de hoje da Primeira Seo do STJ, reconhecimento do seu compromisso coletivo com o admirvel projeto poltico-jurdico, mas igualmente tico-ecolgico, de Nao, estampado na Constituio de 1988.

    No se deve esquecer, no entanto, que os julgados do STJ espelham a prpria maturidade, preparo e excelncia dos juzes de primeiro grau, assim como dos Desembargadores dos Tribunais de Justia e dos Tribunais Regionais Federais. Muito do mrito dos acrdos que ora se publicam deve-se a esses artfi ces devotados do Direito Ambiental, os quais, com sucesso, souberam tirar a disciplina dos livros de leis e doutrina, ou mesmo do mundo das hipteses (law in the books), e dar-lhe visibilidade e efetividade, no mundo dos fatos (law in action).

    Muito alm disso, ou seja, julgar bem, observa-se, nas Justias federal e estadual, processo de especializao judicial, com criao de Varas Ambientais e at mesmo com o estabelecimento, no Tribunal de Justia de So Paulo, de duas Cmaras com competncia exclusiva para essa modalidade de litgio, fato esse notvel em si mesmo. especializao do Ministrio Pblico brasileiro, a quem se imputa muito dos avanos e sucesso do nosso Direito Ambiental, segue-se, pois, a especializao da prpria jurisdio, o que certamente ter impactos em outras instituies, como a Advocacia-Geral da Unio, as Procuradorias federais, estaduais e municipais e a Defensoria Pblica, na linha do que prega o IBAP Instituto Brasileiro de Advocacia Pblica.

    O cuidado aqui louvar o progresso inequvoco, como refl etido na jurisprudncia que agora se leva a lume, sem olvidar que muito ainda h por fazer. Evidente que no basta contar com juzes independentes e atentos dimenso pica da crise ambiental que assola o mundo e, de maneira particular, o Brasil. No iremos muito longe no enfrentamento da acelerada degradao da biota, convulso no sistema climtico da Terra, contaminao das pessoas e eroso da biodiversidade sem rgos ambientais fortes, ntegros e competentes, sem sociedade civil organizada apta a se manifestar, protestar e exigir, sem empresrios conscientes de suas responsabilidades para com as geraes futuras e o Planeta.

    Em sntese, ao reconhecer que a presente coletnea realmente eloquente exemplo de que nossos juzes esto atentos crise planetria, inserida de maneira central em todos os debates jurdicos da atualidade, devemos, por igual, referir existncia de incontveis boas prticas ambientais por este Pas afora. A esperana maior reside a, na transformao tica e cultural, por meio da educao, de um povo que avana na direo de uma genuna ecocivilizao.

    Finalmente, agradeo, em nome da Revista, aos Professores Jos Rubens Morato Leite e Slvia Cappelli, aclamados juristas da matria e co-organizadores da obra, assim como aos 97 especialistas-colaboradores que emprestaram seu vasto conhecimento ao comentrio dos acrdos selecionados. Destaco, ainda, o trabalho incansvel e esmerado zelo da pequenssima equipe do Gabinete da Revista, to bem chefi ado pela Dr Andrea Costa.

    Ministro Diretor da Revista Antonio Herman Benjamin

  • 5. Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico

  • 5.1. Comunidade Remanescente de Quilombos

    RECURSO ESPECIAL N. 931.060-RJ (2007/0047429-5)

    Relator: Ministro Benedito GonalvesRecorrente: Benedito Augusto JuvenalAdvogado: Alexandra de Souza NigriRecorrido: Unio

    EMENTA

    Administrativo e Processual Civil. Recurso especial. Ao de reintegrao de posse. Terreno de Marinha. Ilha da Marambaia. Comunidade remanescente de Quilombos. Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, e art. 68 do ADCT.

    1. A Constituio de 1998, ao consagrar o Estado Democrtico de Direito em seu art. 1 como clusula imodifi cvel, f-lo no af de tutelar as garantias individuais e sociais dos cidados, atravs de um governo justo e que propicie uma sociedade igualitria, sem nenhuma distino de sexo, raa, cor, credo ou classe social.

    2. Essa novel ordem constitucional, sob o prismado dos direitos humanos, assegura aos remanescentes das comunidades dos quilombos a titulao defi nitiva de imvel sobre o qual mantm posse de boa-f h mais de 150 (cento e cinquenta) anos, consoante expressamente previsto no art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias.

    3. A sentena proferida no bojo da Ao Civil Pblica n. 2002.51.11.000118-2, pelo Juzo da Vara Federal de Angra dos Reis-RJ (Dirio Ofi cial do Estado do Rio de Janeiro Poder Judicirio, de 29 de maro de 2007, p. 71-74), reconheceu a comunidade de Ilhus da Marambaia-RJ como comunidade remanescente de quilombos, de sorte que no h nenhum bice para a titulao requerida.

  • REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

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    4. Advirta-se que a posse dos remanescentes das comunidades dos quilombos justa e de boa f. Nesse sentido, conforme consta dos fundamentos do provimento supra, a Fundao Cultural Palmares, antiga responsvel pela identifi cao do grupo, remeteu ao juzo prolator do decisum em comento relatrio tcno-cientfi co contendo [...] todo o histrico relativo titularidade da Ilha de Marambaia, cujo primeiro registro de propriedade fora operado em 1856, junto ao Registro de Terras da Parquia de Itacuru, em nome do Comendador Joaquim Jos de Souza Breves, que instalou no local um entreposto do trfi co negreiro, de modo que, ao passar para o domnio da Unio, afetado ao uso especial pela Marinha, em 1906, j era habitado por remanescentes de escravos, criando comunidade com caractersticas tnico-culturais prprias, capazes de inser-los no conceito fi xado pelo artigo 2 do indigitado Decreto n. 4.887/2003.

    5. A equivocada valorao jurdica do fato probando permite ao STJ sindicar a respeito de fato notrio, mxime no caso sub examinem, porque o contexto histrico-cultural subjacente ao thema iudicandum permeia a alegao do recorre de verossimilhana.

    6. Os quilombolas tem direito posse das reas ocupadas pelos seus ancestrais at a titulao defi nitiva, razo pela qual a ao de reintegrao de posse movida pela Unio no h de prosperar, sob pena de por em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas tradies e culturas. O que, em ltimo, conspira contra pacto constitucional de 1988 que assegura uma sociedade justa, solidria e com diversidade tnica.

    7. Recurso especial conhecido e provido.

    ACRDO

    Vistos, relatados e discutidos os autos em que so partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justia, prosseguindo o julgamento, aps o voto-vista da Sra. Ministra Denise Arruda, por unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, nos termos da reformulao de voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luiz Fux (voto-vista) e Denise Arruda (voto-vista) votaram com o Sr. Ministro Relator.

  • Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico

    RSTJ, a. 27, (239): 587-751, julho/setembro 2015 591

    No participaram do julgamento os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Teori Albino Zavascki (RISTJ, art. 162, 2, primeira parte).

    Braslia (DF), 17 de dezembro de 2009 (data do julgamento).Ministro Benedito Gonalves, Relator

    RELATRIO

    O Sr. Ministro Benedito Gonalves: Trata-se de especial interposto por Benedito Augusto Juvenal, s fl s. 177-184, com arrimos nas alneas a e c do permissivo constitucional, contra acrdo oriundo do Tribunal Regional Federal da Segunda Regio, cuja est consignada nos seguintes termos, in verbis:

    Direito Civil e Administrativo. Reintegrao de posse. Ilha de Marambaia. Terreno pblico. Art. 68, ADCT. Conceito jurdico de remanescentes de Quilombola.

    1. O conceito jurdico de remanescentes das comunidades dos quilombos no pode se apartar da prpria noo histrica acerca dos quilombos. Devido prova de que a Ilha de Marambaia, nos idos do perodo da escravido de pessoas de cor negra no Brasil, servia como entreposto do trfi co de escravos, no seria de se considerar possvel que no mesmo arquiplago fossem tambm instaladas comunidades integradas por escravos fugidos e as famlias que eles passaram a compor.

    2. Ademais, revela-se importante registrar que o pedido formulado nos autos possessrio e no petitrio, razo pela qual poder eventualmente ser reconhecido o local como sendo objeto de remanescentes de quilombola para o fi m de os descendentes dos escravos fugidos serem reconhecidos como proprietrios das terras.

    3. As construes levantadas pelo Ru o foram bem recentemente, conforme fi cou apurado em diligncia realizada por rgo do Ministrio militar, a corroborar a irrelevncia de o Ru ser (ou no) descendente de escravo fugido que eventualmente tenha ocupado aquelas terras.

    4. Nos termos do art. 20, do Decreto-Lei n. 9.760/1946, aos bens imveis da Unio, indevidamente ocupados, invadidos, turbados na posse, ameaados de perigos ou confundidos em suas limitaes, cabem os remdios de direito comum, razo pela qual foi correta a soluo apresentada pela magistrada no sentido de determinar a reintegrao da Unio na posse do imvel irregular e ilegitimamente ocupado pelo Ru.

    5. Remessa Necessria e Apelaes conhecidas e improvidas (fl . 173).

  • REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

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    Noticiam os autos que a Unio ajuizou ao de reintegrao contra o ora recorrente, objetivando a desocupao liminar e a consequente reintegrao defi nitiva na posse da Ilha da Marambaia (Municpio do Rio de Janeiro), rea militar invadida, com a condenao do ru a perdas e danos na base de um salrio-mnimo por dia, a partir da data da intimao ou citao at a restituio do imvel Unio.

    A sentena de fls. 111-115 julgou parcialmente procedente o pedido autoral, apenas para declarar o direito reintegrao na posse, sem qualquer direito s indenizaes pretendidas por parte da Unio Federal.

    Sobrevieram recursos de apelao e remessa necessria, as quais foram conhecidas e no providas, conforme ementa supra.

    Na irresignao especial que ora se apresenta, o recorrente alega afronta aos arts. 2 do Decreto n. 4.887/2003, 1.196 do Cdigo Civil de 2002 e 927 do CPC, no sentido de que um remanescente das comunidades dos quilombos. Acrescenta que formulou pedido junto Fundao Cultural Palmares, a fi m de seja reconhecida essa qualidade, o que legitima a titulao defi nitiva do imvel ocupado a seu favor.

    Aduz, ainda, que resultou amplamente comprovado nos autos que o recorrente, cidado idoso de poucos recursos, detm a posse da rea h mais de 4 (quatro) dcadas, transmitida por seus ancestrais de gerao a gerao e que a Unio jamais foi possuidora do local ocupado pelo recorrente, a ensejar o manejo de ao de reintegrao de posse.

    A recorrida apresentou contrarrazes, s fls. 188-194, e pugnou pela mantena do acrdo guerreado.

    O recurso especial recebeu crivo positivo de admissibilidade no Tribunal a quo, razo pela qual os autos ascenderam ao STJ (fl . 199).

    O Ministrio Pblico Federal, em parecer de fl s. 204-210, da lavra do Subprocurador-Geral a Repblica Dr. Joo Pedro de Sabia Bandeira de Mello fi lho, opinou pelo provimento do recurso especial.

    Na sesso do dia 17 de maro do corrente ano, levei o feito a julgamento e no conheci do recurso especial em face dos bices das Smulas n. 7 e 126 desta Corte e 283 do Supremo Tribunal Federal.

    O Sr. Ministro Luiz Fux pediu vista antecipada dos autos naquela assentada.

  • Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico

    RSTJ, a. 27, (239): 587-751, julho/setembro 2015 593

    J no dia 1 de outubro de 2009, o feito foi novamente levado a julgamento e Sua Excelncia o Ministro Luiz Fux inaugurou a divergncia, no sentido de conhecer e dar provimento ao apelo nobre.

    Nessa ocasio, pedi vista regimental dos autos para melhor anlise da controvrsia.

    o relatrio.

    VOTO

    O Sr. Ministro Benedito Gonalves (Relator): Consoante exposto no relatrio, o Sr. Ministro Luiz Fux pediu vista dos autos e inaugurou a divergncia, a fi m de conhecer do recurso especial e lhe dar provimento. Nesse sentido, insta expor que, em virtude das questes prejudiciais, no adentrei no meritum causae.

    Sob esse ngulo, aps refl etir sobre a questo posta em juzo, capitaneado pelas razes de decidir do Sr. Ministro Luiz Fux, vislumbro que a minha posio deve ser revista, a fi m de acompanhar, in totum, o voto de Sua Excelncia, que assim se manifestou, ipsis litteris:

    Colhem-se das hem-se das fundamentaes do v. acrdo proferido pelo Tribunal a quo, que o conceito jurdico de remanescentes das comunidades dos quilombos est ligado prpria noo histrica dos quilombos, verbis:

    A questo da natureza do imvel como bem pblico no se discute posto que sobejamente reconhecida, inclusive pelos prprios requeridos em sede de pea de bloqueio.

    A discusso, porm, esbarra na caracterizao dos requeridos como exemplares de comunidades quilombolas, tal como pleiteado pelo Ministrio Pblico Federal em sua interveno no feito.

    A questo resta prevista em sede constitucional, nos Atos das Disposies Constitucionais Transitrias nos seguintes termos:

    Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    A matria restou disciplinada pelo Decreto n. 4.887/2003, que traou as diretrizes para o procedimento de identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao das terras ocupadas por remanescentes daquelas comunidades especifi cadas no art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias.

  • REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

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    Nestes termos, restou reconhecido pelo artigo 2 daquele diploma legal que remanescentes das comunidades dos quilombos seriam os grupos tnico-raciais, segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territoriais especficas, com presuno de ascentralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida.

    O 1 daquele mesmo dispositivo previu que a caracterizao dos remanescentes das comunidades quilombolas seria atestada mediante auto-defi nio da prpria comunidade, sendo a mesma inscrita no Cadastro Geral junto Fundao Cultural Palmares, encarregada de expedir certido naquele sentido (artigo 3, 4).

    Atendendo a pedido do Ministrio Pblico Federal, fora ofi ciado quela fundao, que remeteu a este juzo relatrio dando conta da situao de processo administrativo instaurado junto a indigitada instituio, conforme se verifi ca atravs do documento de fl s. 98-100.

    A teor daquele documento, tem-se todo o histrico relativo titularidade da Ilha de Marambaia, cujo primeiro registro de propriedade fora operado em 1856, junto ao Registro de Terras da Parquia de Itacuru, em nome do Comendador Joaquim Jos de Souza Breves, que instalou no local um entreposto do trfi co negreiro, de modo que, ao passar para a jurisdio da Marinha, em 1906, j habitavam na ilha remanescentes de escravos, criando comunidade com caractersticas tnico-culturais prprias de modo a inserir-se no conceito fixado pelo artigo 2 do indigitado Decreto n. 4.887/2003.

    Conforme extrato do mencionado relatrio, os habitantes da ilha seriam em sua maioria descendentes diretos dos negros escravos que habitam a mesma ilha desde antes da abolio da escravatura.

    Finalmente, o mesmo documento concluiu afirmando que a comunidade em questo atende s condies mencionadas na lei para fi ns de caracterizao como comunidade remanescente de quilombo.

    A questo que se impe, todavia, quanto ao conceito de quilombos no sentido de que, antes mesmo de ser este um termo sujeito conceituao legal, o mesmo um conceito histrico, de modo que a defi nio legal no poderia deste ltimo se apartar.

    De fato, segundo Laudelino Freire, quilombo seria lugar onde se recolhiam os negros fugitivos e onde constituam muitas vezes habitao duradoura (Grande e novssimo dicionrio da lngua portuguesa). Segundo Aurlio Buarque de Holanda, o mesmo termo designaria valhacouto de escravos fugidos. E finalmente, segundo o Dicionrio Houaiss, o termo designaria povoao fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divises e organizao interna (onde tb. se acoitavam ndios e eventualmente brancos socialmente desprivilegiados).

    [...] (fl s. 167-169).

  • Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico

    RSTJ, a. 27, (239): 587-751, julho/setembro 2015 595

    Depreende-se dos autos que a Unio Federal ajuizou ao de reintegrao de posse, sustentando que proprietria do terreno no qual reside o Ru, situado na Ilha da Marambaia, que est sob o controle administrativo do Ministrio da Marinha.

    Aduziu a Recorrida que a Ilha da Marambaia foi adquirida com todas as suas construes, dependncias e servides pela Unio Federal em 1905, e que apenas por mera tolerncia da autoridade poca, permitiu-se que alguns poucos pescadores permanecessem em humildes habitaes l existentes. Porm, as autoridades sempre fi zeram amplos comunicados no sentido de que no seria tolerado qualquer acrscimo ou construo de uma nova moradia, que visasse consolidar as ocupaes irregulares. Pleiteou, assim, a reintegrao na posse do imvel ocupado pelo ora recorrente.

    O juzo de primeiro grau deu parcial provimento ao pedido formulado pela autora, tendo sido mantida a r. deciso pelo TRF-2 Regio, nos termos acima destacado.

    O recorrente interps recurso especial, pugnando pela reforma do v. acrdo, ao fundamento de que tem direito posse do imvel, por fora do Decreto n. 4.887/2003 e do art. 68 do ADCT. Ademais, alega que a perda da posse do imvel representa afronta aos princpios fundamentais e dignidade da pessoa humana.

    Relatados, decido.

    Os remanescentes das comunidades dos quilombos, por fora da Constituio ps-positivista de 1988, iderio de nossa nao que funda o Estado Brasileiro na Dignidade Humana, no af de construir uma sociedade justa e solidria, com erradicao das desigualdades, o que representa o respeito s diferenas, ostentam direito justa posse definitiva que mantm, merc de a mesma conferir-lhes o direito a titulao, consoante o artigo 68, do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias - ADCT, verbis: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    O Estado Democrtico de Direito brasileiro, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, tutela os direitos culturais prprios dos seguimentos sociais e ticos que compem a populao brasileira.

    As garantias constitucionais, por essa razo, asseguram o respeito s minorias, sem preconceito de origem e raa ligadas proteo da cultura, com incluso dos quilombolas, a teor dos artigos 215 e 216, 5, da Constituio Federal de 1988, verbis:

    Art. 215. O Estado garantir a todos o pleno exerccio dos direitos culturais e acesso s fontes da cultura nacional, e apoiar e incentivar a valorizao e a difuso das manifestaes culturais.

  • REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

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    1 - O Estado proteger as manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional.

    2 - A lei dispor sobre a fixao de datas comemorativas de alta signifi cao para os diferentes segmentos tnicos nacionais.

    3 - A lei estabelecer o Plano Nacional de Cultura, de durao plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do Pas e integrao das aes do poder pblico que conduzem : (Includo pela Emenda Constitucional n. 48, de 2005)

    I defesa e valorizao do patrimnio cultural brasileiro;

    II produo, promoo e difuso de bens culturais;

    III formao de pessoal qualifi cado para a gesto da cultura em suas mltiplas dimenses;

    IV democratizao do acesso aos bens de cultura;

    V valorizao da diversidade tnica e regional.

    Art. 216. Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

    [...] 5 - Ficam tombados todos os documentos e os stios detentores de

    reminiscncias histricas dos antigos quilombos.

    Segundo doutrina de Jos Afonso da Silva:

    No se pode, porm, olvidar o fato de que as levas de africanos que chegavam ao Brasil durante trs sculos sempre reforavam a cultura negra preservada no pas, razo por que, reconhecidamente, o africano acabou por influir mais na cultura brasileira do que o ndico. As consideraes feitas supra sobre cultura popular aplicam-se s culturas afro-brasileiras e indgenas, que receberam igual proteo da Constituio. Stios e locais onde afl oram as culturas afro-brasileiras, os quilombos, tiveram proteo direta da Constituio, cujo art. 216, 5, declara que fi cam tombados todos os documentos e os stios detentores de reminiscncias histricas dos antigos quilombos.

    (...)

    O zoneamento tambm uma forma de reconhecimento do valor cultural de bens imveis urbanos ou conjuntos urbanos (CF, art. 216, V), por meio da delimitao de zona ou stio de valor histrico, artstico e paisagstico(...).

  • Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico

    RSTJ, a. 27, (239): 587-751, julho/setembro 2015 597

    (Jos Afonso da Silva, Cometrio Contextual Constituio, 6 ed., p. 807 e 815)

    A ratio do mencionada dispositivo constitucional visa assegurar o respeito s comunidades de quilombolas, para que possam continuar vivendo segundo suas prprias tradies culturais, assegurando, igualmente, a efetiva participao em uma sociedade pluralista.

    Cuida-se de norma que tem como escopo promoo da igualdade substantiva e da justia social, na medida em que confere direitos territoriais aos integrantes de um grupo desfavorecido, composto quase exclusivamente por pessoas muito pobres e que so vtimas de estigma e discriminao.

    Igualmente, a medida reparatria, porquanto visa a resguardar uma dvida histrica da Nao uma dvida histrica com comunidades compostas predominantemente por descendentes de escravos, que sofrem ainda hoje com o preconceito e violao dos seus direitos.

    O Ministrio Pblico Federal - Procuradoria da Repblica no Estado do Rio de Janeiro - nos autos da ACP n. 2002.51.11.00118-2, ao solicitar informaes Koinonia - Presena Ecumnica e Servio - respeitada instituio dedicada aos estudos das comunidades de quilombos, recebeu parecer nos seguintes termos:

    Os moradores da Ilha de Marambaia descendem, direta ou indiretamente, de famlia que ocupam a Ilha h, no mnimo, 120 anos, por serem remanescentes de escravos de duas fazendas que funcionam no local at a abolio da escravatura.

    (...)

    A posse pacfi ca da ilha por parte desses moradores se estabeleceu logo aps a morte do Comendador Breves, em 1889, e do abandono da Ilha por parte de sua famlia devido s difi culdades fi nanceiras em que ela se viu envolvida a partir de ento.

    (...)

    Isso faz com que a Ilha de Marambaia se enquadre, de forma absolutamente coerente, com a caracterizao sociolgica apresentada por Almeida (1989) acerca da chamada terras de preto: domnios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalizao jurdica, por famlia de escravos.

    (...)

    As famlias de pescadores da Marambaia permaneceram, de fato, no interior de um regime prprio de uso de territrio, que ainda hoje pode ser documentado por meio de seu conhecimento prtico artesanal da pesca e de sua comercializao.

  • REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

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    (...)

    Sendo assim, no h nada que, do ponto de vista da caracterizao objetiva, impea o reconhecimento da Ilha da Marambaia como uma comunidade remanescente de quilombos.

    Deveras, aspectos fticos e culturais encartados na histria dos quilombos retratados na sentena que apreciou a Ao Civil Pblica n. 2002.51.11.000118-2 precisam ser destacados.

    Entrementes, o tema tem suscitado debate, conforme noticiado no artigo Conscincia Negra no Quilombo da Marambaia (RJ) (disponvel em http://www. midiaindependente.org/pt/blue/2006/11/366224.shtml, acessado em 6.8.2009), litteris:

    A Ilha da Marambaia fi ca localizada no litoral de Mangaratiba (RJ), em uma rea considerada de segurana nacional e controlada por militares.

    Era na Ilha da Marambaia que o Breves - senhor do caf e do trfi co de escravos no Rio de Janeiro do sculo XIX - mantinha seus escravos para engorda antes de serem vendidos para outras fazendas. As runas das senzalas onde eram mantidos os escravos na engorda ainda existem e so impressionantes. Os moradores da Ilha contam que, pouco antes de morrer, Breves teria deixado toda Ilha para os ex-escravos que ainda permaneciam nela, sendo os atuais moradores descendentes diretos destes.

    Mas como essa doao foi feita s de boca, a famlia Breves no cumpriu o compromisso assumido pelo antigo proprietrio e vendeu as terras da Ilha para a Unio (Companhia Promotora de Indstrias e Melhoramentos). Ainda assim, as famlias negras permaneceram ali em posse pacfi ca at 1939. Nesse ano, a Escola de Pesca Darcy Vargas instalou-se na Ilha, inaugurando um perodo de grande prosperidade. A partir de 1971, porm, depois de fechada a escola, a Ilha passou administrao militar da Marinha e a comunidade comeou a viver um perodo de mudanas drsticas.

    Segundo relatos dos moradores, a implantao dos servios da Marinha na Ilha fez com que eles fossem proibidos de continuar cultivando suas roas de subsistncia, de construir casas para os filhos ou mesmo de reformar ou ampliar as j existentes, e perdessem os servios pblicos antes oferecidos, sem nenhum tipo de compensao por tais perdas, alm de serem submetidos a uma presso psicolgica constante, como uma forma de expulso branca. A partir de 1998, esse mtodo foi complementado pelas aes judiciais de Reintegrao de Posse, que a Marinha move contra os moradores alegando que estes seriam invasores da rea. Sem apoio jurdico e, na sua maior parte, no-alfabetizados, os condenados foram sendo expulsos.

    Com a intensificao das ordens de despejo e destruio de casas, reiniciam-se as tentativas de organizao dos moradores. De um lado,

  • Patrimnio Histrico, Cultural e Artstico

    RSTJ, a. 27, (239): 587-751, julho/setembro 2015 599

    elas levam criao da Vitria - Associao para o Desenvolvimento Socioeconmico Cultural da Ilha da Marambaia, composta exclusivamente por evanglicos. De outro, levam a reunies na pastoral social da igreja catlica de Mangaratiba, que resultam em um abaixo-assinado, denncias imprensa, cartas s autoridades e, finalmente, num dossi que seria entregue Fundao Cultural Palmares.

    (FCP) 1999 (maro/maio)

    A FCP abre um processo, envia ofcio para a Marinha requerendo informaes sobre a Ilha e produz um parecer onde afi rma: Ao passar para a jurisdio de Marinha, em 1906, a Ilha j era habitada por vrias pessoas, remanescentes de escravos que, vivendo basicamente da pesca, criaram uma comunidade distinta. A presidente da FCP escreve comunidade informando que em breve estar mandando uma equipe para trabalhar com eles para fi ns de titulao da rea. A equipe nunca chegou Ilha. 2002 (janeiro/fevereiro)

    O Procurador da Repblica responsvel pela pasta dos Direitos do Cidado no Rio de Janeiro, Daniel Sarmento, solicita ao Projeto Egb - Territrios Negros um relatrio preliminar com dados que comeavam a ser levantados sobre a comunidade. Com base nesse relatrio preliminar, o Ministrio Pblico Federal (MPF) entra com uma Ao Civil Pblica solicitando o reconhecimento da comunidade como remanescentes de quilombo e a interrupo das aes de expulso da Marinha contra os moradores da ilha, no que atendido pela juza de primeira instncia.

    2002 (abril)

    A liminar da juza Lucy Costa atende a trs dos quatro pontos solicitados na Ao Civil, ficando o ltimo na dependncia de que a Fundao Cultural Palmares se pronuncie sobre o reconhecimento do grupo como comunidade remanescente de quilombo.

    2002 (novembro)

    Moradores da Ilha voltam a se reunir, dando incio ao processo de organizao de uma associao comunitria.

    2003 (fevereiro)

    criada a Associao da Comunidade Remanescente de Quilombos da Ilha da Marambaia (ARQIMAR).

    2003 (dezembro)

    O laudo antropolgico sobre o grupo, produzido pela ONG Koinonia com a colaborao de dois ncleos de estudos da UFF sob a coordenao de Jos Maurcio Arruti (um volume de cerca de 350 pginas), fi nalizado e entregue Fundao Palmares, com cpia para diversas instncias ofi ciais, entre elas o Incra, que depois de 2003 passou a ser o rgo responsvel pela regularizao das comunidades quilombolas. 2004 (novembro)

  • REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

    600

    FCP emite certido de auto-reconhecimento para a Comunidade da Ilha da Marambaia e o Incra inicia o trabalho de demarcao.

    2005 (janeiro)

    O trabalho de demarcao interrompido pelo Incra sem maiores esclarecimentos e a diretoria da ARQIMAR vai sede da Superintendncia Regional do rgo para pedir esclarecimentos. Em resposta, a diretoria informada de que a equipe da instituio estaria de frias, mas que em breve os trabalhos seriam retomados.

    2005 (fevereiro)

    Em um artigo de opinio publicado no jornal O Globo, o prefeito do Rio de Janeiro, Csar Maia (Crime ambiental e erro histrico) questiona, depois de ter visitado a rea a convite dos militares, o reconhecimento dos ilhus da Marambaia como quilombolas, assim como sugere que tal reconhecimento representaria um desastre ecolgico. No dia seguinte, o mesmo jornal publica uma matria informando que o Incra teria sido proibido de entrar na Ilha para dar continuidade aos trabalhos de demarcao e regularizao fundiria. A matria acompanhada de um Boxe com a opinio do jornal que repete os argumentos do prefeito. No dia seguinte, a equipe do Programa Egb - Territrios Negros de KOINONIA visita a comunidade a pedido da populao para discutir as alternativas de aes contra as declaraes do prefeito. Os moradores redigem, ento, uma carta-resposta, que enviada a todos os principais veculos de comunicao, mas ignorada pela maioria deles.

    2005 (maio)

    Toma posse a nova diretoria da ARQIMAR. No mesmo ms, a comunidade recebe visita de tcnicos da Subsecretaria de Polticas para Comunidades Tradicionais da Seppir da Presidncia da Repblica, juntamente com outros rgos governamentais integrantes do programa Brasil Quilombola (incluindo o Incra), para conhecerem a situao. Poucos dias depois, a equipe do Balco de Direitos, constitudo por meio de uma parceria entre KOINONIA e a SEDH, recebe resposta negativa ao ofcio em que solicitava a sua entrada na Ilha para dar continuidade aos seus trabalhos, que consistem na promoo de ofi cinas de capacitao em direitos humanos e cidadania e na promoo da documentao bsica de seus moradores.

    2006

    No dia 14 de agosto, o Incra publicou a Portaria de n. 15 no Dirio Ofi cial da Unio que aprovava as concluses do relatrio tcnico de identifi cao, delimitao, levantamento ocupacional e cartorial (RTID) de 1.638 hectares, reconhecidos como terras quilombolas dos ilhus da Marambaia. Essa medida faz parte do processo de titulao dos territrios quilombolas. A partir da publicao do RTID os interessados na rea em questo teriam

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    o prazo de 90 dias para contestar a deciso do Incra. Mas durou pouco a alegria da comunidade quilombola de Marambaia. Horas depois de ter publicado o Relatrio, o superintendente do INCRA do Rio de Janeiro, Mrio Lcio Machado Melo, recebeu do Presidente do Incra Nacional, Rolf Hackbart, uma ordem para emitir nova portaria tornando a publicao do RTID insubsistente. Segundo o procurador do Ministrio Pblico Federal Daniel Sarmento, a determinao partiu da prpria Chefe da Casa Civil, Dilma Roussef.

    Diante da paralisao do processo de regularizao das terras quilombolas da Ilha, as entidades participantes da Campanha Marambaia Livre! e a comunidade decidiram produzir um mandado de segurana coletivo. O documento foi aprovado durante uma reunio realizada no dia 24 de outubro em Itacuru (RJ), que reuniu cerca de cem quilombolas e representantes de entidades que fazem parte da Campanha, como KOINONIA - Presena Ecumnica e Servio, Fase, Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e o Grupo de Defesa Ambiental e Social de Itacuru (Gdasi), que cedeu o espao de sua sede para a reunio.

    Contato com os movimentos urbanos

    Os quilombolas ainda estavam amargando a decepo com a revogao da Portaria de n. 14/08 quando participaram do Grito dos Excludos no Rio, em 7.9. Gritando Marambaia Quilombola, Marinha Fora! conheceram diversos grupos e movimentos, entre os quais os sem-teto da Ocupao Zumbi dos Palmares (centro do Rio), junto com os quais logo surgiu a proposta de intercmbio prtico entre as comunidades.

    Como um primeiro passo, organizamos a participao coletiva de diversos grupos e militantes na comemorao da Conscincia Negra no quilombo. Para nos precavermos de difi culdades a serem colocadas pela Marinha, alugamos um barco e no dia 19.11 mais de 50 pessoas embarcaram em Itacuru em direo Marambaia. Presentes, entre outros, as ocupaes Zumbi dos Palmares, Quilombo das Guerreiras e Chiquinha Gonzaga, a Frente de Luta Popular, o Coletivo de Hip Hop Lutarmada, bboys da ofi cina do GBCR (Gang de Break Consciente da Rocinha) na Mar, o Frum da Baa de Sepetiba, o Comit de Solidariedade aos Movimentos Sociais da UFRJ, o projeto Quilombos Libertrios de estudantes de comunicao da UFF, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violncia e o Sintrasef.

    Aps passar pelo cais da Marinha para o confere dos militares, fomos para a praia do Stio, onde desembarcamos e montamos o nosso acampamento. Recuperamos nossas foras com o delicioso almoo de peixe preparado pelos quilombolas e at a noite, aproveitamos o tempo para conhecer as pessoas e a linda natureza local - preservada pelos quilombolas apesar da devastao provocada pela Marinha - das praias

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    prximas (a populao de nativos - remanescentes de quilombolas - cerca de 300 famlias, esto dispersas em diversas praias - espcie de aldeias - bastante distantes entre si, com instalaes da Marinha no caminho).

    Destaque-se tambm o artigo publicado por Jean Pierre Leroy, O quilombo da Marambaia (disponvel em http://www.overmundo.com.br/blogs/o-quilombo-da-marambaia-por-jean-pierre-leroy, acessado em 6.8.2009):

    [O Globo] O caso envolvendo os quilombolas da Ilha da Marambaia e a Marinha do Brasil apresenta um conjunto de argumentos jurdicos e prticos que deveria abrir a viso da sociedade para considerar a hiptese de apoiar a luta dos quilombolas pela terra que tradicionalmente ocupam.

    Primeiro, a prpria Constituio, em seu Ato de Disposies Transitrias (art. 68), afi rma que aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos. Depois, o Decreto Presidencial n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, defi ne remanescentes de quilombo como grupos tnico-raciais, segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territoriais especfi cas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. O mesmo decreto obriga o Incra a reconhecer, delimitar, demarcar e titular terras desses grupos.

    No uso de suas atribuies conferidas pelo decreto citado, o Incra produziu um Relatrio Tcnico de Demarcao e Identificao que o primeiro reconhecimento pblico ofi cial de que o territrio da Marambaia quilombola. No dia 14 de agosto de 2006, o Incra publicou o relatrio no Dirio Ofi cial da Unio, mas, no dia seguinte, por presso da Casa Civil, tornou sem efeito a publicao anterior. O efeito da publicao do relatrio ainda est sub judice.

    Anteriormente, em 12 de novembro de 2004, a Fundao Cultural Palmares, rgo do Ministrio da Cultura, emitiu uma Certido de Auto-Reconhecimento em que se diz claramente que a comunidade de Ilha de Marambaia (...) remanescente das comunidades dos quilombos. Portanto, reconhecida est a identidade do grupo, e reconhecido est seu direito ao territrio. importante lembrar que, auto-atribuio dos quilombolas da Marambaia, soma-se um relatrio tcnico cientfico elaborado pela Universidade Federal Fluminense, que deu base para a emisso da Certido.

    No entanto, a disputa continua. normal, afi nal o Estado brasileiro nunca foi clere no atendimento a direitos territoriais legtimos e estabelecidos. O que surpreende mais a miopia sobre a relao de cada ator - quilombolas e Marinha - com o meio ambiente. Acusam-se os quilombolas de pr em risco o patrimnio natural da Marambaia, quando seu modo de vida inclui

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    a pesca artesanal e roas de subsistncia. A Marinha, por sua vez, acusada por eles de praticar exerccios militares com tanques, bombas em rvores e tiros no costo, que rea de reproduo de espcies submarinas. Diante desse tipo de impacto, o roado e a pesca artesanal dos quilombolas so na verdade um elemento conservacionista.

    Por saber que a titulao definitiva da terra quilombola poder demorar, e por ter conscincia de que preservam a ilha, a Associao dos Remanescentes do Quilombo da Marambaia (Arqimar) prope a criao de uma reserva extrativista (Resex). Inseridas no Sistema Nacional de Unidades de Conservao, as Resex defi nem limitaes ao uso da terra e do mar. No Estado do Rio, j se tem em Arraial do Cabo uma Resex marinha, que vai mal por no ter sido sufi cientemente discutida com os pescadores locais, nem acompanhada de aes pblicas que ajudassem na sua consolidao.

    Na Marambaia, as chances so muito maiores. A iniciativa parte da comunidade local, que desenvolveu, no seu embate com a Marinha, a conscincia das suas responsabilidades. O Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade/Ibama e o secretrio estadual de Meio Ambiente, Carlos Minc, acolheram favoravelmente o pleito. Enfim, os moradores poderiam contar com a Marinha. Na sua solicitao ao secretrio, a Arqimar e seus apoiadores solicitam que ele realize mediao com a Marinha do Brasil para que ela tambm se torne agente ativo da preservao do ambiente costeiro, da Mata Atlntica e do patrimnio histrico da ilha. O que se prope uma aliana entre os moradores e a Marinha em favor de uma Resex em que ambos - sociedade e corpo pblico - colaborem na sua concepo e na sua realizao. Seria uma forma de atualizar a tradio da Marinha de dar assistncia s populaes pobres do litoral e dos rios amaznicos, num exemplo mpar de democracia.

    Quem pode ser contra isso? A meu ver, somente dois tipos de pessoas: ou aquelas movidas por um preconceito to enraizado que ultrapassa toda lgica, ou as que verdadeiramente, at revelia da prpria Marinha, tm interesse numa possvel abertura de partes da ilha, num futuro que esperam no to distante, para iniciativas privadas ligadas explorao predatria do turismo, como vem acontecendo principalmente na costa do Nordeste brasileiro.

    JEAN PIERRE LEROY coordenador de meio ambiente da organizao no-governamental Fase - Solidariedade e Educao.

    (www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo O Globo - 27.8.2007

    Ademais, a sentena que apreciou a Ao Civil Pblica n. 2002.51.11.000118-2 conclusiva no sentido de que:

    [...]

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    No mrito, o pedido do MPF se divide em dois: a proteo possessria aos membros da comunidade descendente de quilombo, dirigido r Unio Federal, e pedido consistente na determinao judicial para que o INCRA fi nalize o processo administrativo de identifi cao desta comunidade e promover, se assim o forem reconhecidos, a delimitao, titulao e registro imobilirio de suas terras, no prazo de um ano, com a cominao de sano pecuniria na hiptese de descumprimento.

    Quanto ao primeiro pedido, inicialmente, h que se delinear os parmetros de interpretao do artigo 68 do ADCT, que, no caso, representa o principal fundamento para o pleito formulado pelo Ministrio Pblico Federal. Dispe a citada disposio constitucional transitria:

    Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    A tese defensiva da Unio Federal sustenta que a rea na Ilha de Marambaia no seria quilombo, de forma que a comunidade que l reside no poderia ser reconhecida como remanescente de quilombos. Assim, o cerne da questo caracterizar ou no a rea da Ilha de Marambaia como um antigo quilombo.

    A matria foi disciplinada primeiramente no Decreto n. 3.912 de 10 de setembro de 2001 que estabelecia ser a Fundao Cultural Palmares competente para dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificao dos remanescentes da comunidade de quilombos, bem como de reconhecimento, delimitao, demarcao, titulao e registro imobilirio das terras por eles ocupadas. O referido decreto foi revogado pelo Decreto n. 4.887/2003, que imps ao INCRA a mesma tarefa constitucionalmente prevista.

    Nestes termos, restou reconhecido pelo artigo 2 do Decreto n. 4.887/2003 que remanescentes das comunidades dos quilombos seriam os grupos tnico-raciais, segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territoriais especficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida.

    O 1 do mesmo dispositivo previu que a caracterizao dos remanescentes das comunidades quilombolas seria atestada mediante auto-defi nio da prpria comunidade. Atendendo a pedido do Ministrio Pblico Federal nos autos do presente feito, a Fundao Cultural Palmares, antiga responsvel pela identificao do grupo, remeteu a este juzo relatrio tcno-cientfi co no qual concluiu pelo reconhecimento ofi cial da comunidade de Ilhus da Marambaia (RJ), nos termos do art. 68 (ADCT), como comunidade remanescente de quilombos, abrindo com isso, o caminho legal para a titulao das terras que tais moradores e seus ancestrais ocupam h mais de 150 anos (fl . 863).

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    Nesse documento tem-se todo o histrico relativo titularidade da Ilha de Marambaia, cujo primeiro registro de propriedade fora operado em 1856, junto ao Registro de Terras da Parquia de Itacuru, em nome do Comendador Joaquim Jos de Souza Breves, que instalou no local um entreposto do trfi co negreiro, de modo que, ao passar para o domnio da Unio, afetado ao uso especial pela Marinha, em 1906, j era habitado por remanescentes de escravos, criando comunidade com caractersticas tnico-culturais prprias, capazes de inseri-los no conceito fixado pelo artigo 2 do indigitado Decreto n. 4.887/2003.

    Finalmente, o mesmo documento concluiu que a comunidade em questo atende s condies mencionadas na lei para fi ns de caracterizao como comunidade remanescente de quilombo.

    A questo que se impe, todavia, quanto ao conceito de quilombos no sentido de que, antes mesmo de ser este um termo sujeito conceituao legal, o mesmo um conceito histrico e antropolgico, de modo que a defi nio legal no poderia deste ltimo se apartar.

    Em pesquisa sobre o tema, vrias so as referncias doutrinrias encontradas que distanciam o conceito de quilombos do seu sentido restrito a local de escravos fugidos. O trabalho elaborado pelas antroplogas Alessandra Schmitt, Maria Ceclia Manzoli Turatti e Maria Celina Pereira de Carvalho, denominado A atualizao do conceito de quilombo: Identidade e Territrio nas defi nies tericas, defi ne as comunidades quilombolas da seguinte forma:

    os grupos que hoje so considerados remanescentes de comunidade de quilombos se constituram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupao de terras livres e geralmente isoladas, mas tambm as heranas, doaes, recebimento de terras livres como pagamento de servios prestados ao Estado, a simples permanncia na terra que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, durante a vigncia do sistema escravocrata aps a sua extino. Dentro de uma viso ampliada, que considera as diversas origens e histrias destes grupos, uma denominao tambm possvel para estes grupos identifi cados como remanescentes de quilombos seria a de terras de preto, ou territrio negro, que enfatizam a sua condio de coletividades camponesa, defi nida pelo compartilhamento de um territrio e de uma identidade.

    Mesmo entendimento verifi cado em artigo doutrinrio elaborado por Maria Elizabeth Guimares Teixeira Rocha, cujo trecho se transcreve:

    A despeito do contedo histrico, o conceito de quilombos, contemporaneamente, designa a situao presente dos segmentos negros em diferentes regies e contextos do Brasil. Ele no mais se refere a resqucios arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao

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    biolgica nem, tampouco, se trata de grupos isolados ou de uma populao estritamente homogenia constitudos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados. Consiste, sim, em grupos que consolidaram um territrio prprio e nele desenvolveram prticas cotidianas de resistncia e reproduo de seus modos de vida. O que os defi ne a experincia vivida e as verses compartilhadas de sua trajetria comum e da continuidade enquanto grupo.

    Neste diapaso mantm-se a doutrina da antroploga Miriam de Ftima Chagas:

    (...) A defi nio clssica de Quilombo aquela defi nio formal que remonta ao sculo XVIII. Na poca, este entendimento jurdico estava impregnado de uma viso intervencionista calcada na idia de fugas ou negros fugitivos. Essa viso distorcida fi guraria, at hoje, como imagem de Quilombo (...) A restituio do aspecto quilombola residiria na transio da condio de escravo para a de campons livre, independentemente das estratgias utilizadas para alcanar esta condio: fuga, negociao com os senhores, herana entre outras. Com esta defi nio o elemento da fuga mais um entre outros a ser considerados.

    No outra a concluso dos laudos tcnicos do Dr. Jos Maurcio Paiva Andion Arruti (fls. 494-645) e da Fundao Palmares (autos apartados juntados por linha).

    No que diz respeito ao conceito hodierno de Quilombos, este difere do conceito colonial tradicional, pois de acordo com os argumentos dos antroplogos e historiadores, notadamente os que participaram do laudo tcnico elaborado pela Fundao Cultural Palmares, a resistncia das comunidades negras rurais pode ser evidenciada como as vrias estratgias empregadas no sentida da sobrevivncia e perpetuao do grupo.

    Os grupos remanescentes de quilombos, ou de senzalas, ou de portos de embarque de escravos, ou, no caso dos autos, entreposto de engorda podem, efetivamente, ser considerados resistentes, pois de alguma forma chegaram at os dias atuais ocupando rea de uso comum em meio de uma srie de infortnios, sofrimentos e adversidades, como resistncia da Marinha, a especulao imobiliria e o preconceito racial.

    Com efeito, os quilombos, consoante o Decreto n. 4.887/2003 so as chamadas terras de preto ou comunidades negras rurais, que se constituram no apenas atravs das fugas com ocupao de terras livres e isoladas, mas, igualmente, atravs de heranas, doaes, compras, recebimentos de terras como pagamento de servios prestados, entre outras formas, anteriores ou posteriores abolio.

    No caso dos autos, verifi ca-se a presena da apropriao coletiva da terra, vez que as famlias de pescadores da Marambaia permaneceram, de fato,

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    dentro de um regime prprio de uso do territrio. Isto porque, conforme consta dos laudos acostados aos autos, alm da pesca a populao utilizava-se das terras da ilha para cultivos agrcolas de subsistncia que davam ao grupo uma grande capacidade de autonomia com relao ao continente e ao mercado.

    Por fim, a conceituao de quilombos unicamente como local de escravos fugidos remonta ao prprio perodo escravocrata de nossa sociedade, de forma a caracterizar o escravo em condio ilegal, fugido de seu proprietrio. um conceito que favorece unicamente ao senhor escravista. A CR/1988, ao consagrar o direito a terra dos remanescentes de quilombos no o fez tomando com base os quilombos unicamente como locais de negros fugitivos, mas sim referindo-se ao uso da terra segundo os costumes e tradies das comunidades negras.

    Assim, o art. 68 do ADCT e seus termos no deve ser interpretado de forma restritiva. Pelo contrrio, sendo a interpretao constitucional um processo que tem como objetivo revelar o alcance das normas que integram a constituio, aplicando-se o mtodo valorativo, bem como o princpio da hermenutica constitucional da unicidade da constituio, verifi ca-se que o comando constitucional acima citado deve ser cotejado sistematicamente com os princpios fundamentais do nosso Texto Constitucional, notadamente o princpio que garante a dignidade da pessoa humana.

    Mais uma vez, ressalte-se que a norma jurdica que impunha um critrio temporal ao reconhecimento dos remanescentes das comunidades de quilombos, o Decreto n. 3.912/2001, foi revogada expressamente pelo art. 25 do Decreto n. 4.887/2003, que trouxe como mtodo de identifi cao deste grupo de pessoas o critrio de auto-atribuio, associado a estudos antropolgicos.

    E mais, o laudo tcnico elaborado pela Fundao Cultural Palmares que conclui pela caracterizao da comunidade na Ilha de Marambaia como remanescente de quilombos foi realizado enquanto esta fundao ainda era competente para tanto, por fora da MP n. 2.123-27, que acrescentou o inciso III e pargrafo nico ao artigo 2 da Lei n. 7.668/1988, indicando que a fundao seria competente para realizar a identifi cao dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, delimitao e demarcao de suas terras e, ainda, realizar a titulao e promover o registro dos ttulos de propriedade junto aos cartrios imobilirios.

    Com efeito, a presente ao civil pblica foi ajuizada em 25 de fevereiro de 2002. Nesta poca, o Decreto n. 3.912/2001 determinava ser a Fundao Cultural Palmares o rgo responsvel para a identifi cao dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para

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    a atribuio de reconhecimento, delimitao, demarcao, titulao e registro imobilirio das terras por eles ocupadas.

    Ocorre que o referido decreto foi revogado pelo Decreto n. 4.887/2003, que entrou em vigor em 20 de novembro de 2003. Por sua vez, o laudo antropolgico feito pela Fundao Cultural Palmares data de 6 de maro de 2002, ou seja, bem antes da promulgao do citado decreto.

    Alm disso, apesar de bastar a simples declarao escrita da comunidade, a Instruo Normativa do prprio INCRA n. 20, de 19 de setembro de 2005, tambm prev a participao da FCP no processo de caracterizao dos remanescentes de quilombos, atravs da sua certifi cao por este rgo, assim como pela da expedio de Certido de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos, e da elaborao de um Relatrio Tcnico de Identifi cao e Delimitao, em que constaro informaes cartogrfi cas, fundirias, agronmicas, ecolgicas, geogrfi cas, scioeconmicas, histricas e antropolgicas.

    Por outro lado, h de se comentar sobre o receio da parte r de que a procedncia do pedido possa signifi car incentivo favelizao da rea. No fossem as famlias remanescentes dos quilombos previamente identifi cadas, certamente haveria tal risco. Porm, conforme documento de fl s. 951-961, expedido pelo prprio INCRA, foram identifi cadas todas as famlias detentoras do direito terra constitucionalmente assegurado, de forma que somente estas podero continuar no local e retornar rea, no caso das pessoas que foram de l expulsas.

    Risco de favelizao, pelo contrrio, h se no for reconhecido o direito destas pessoas l permanecerem, pois a sada de sua comunidade originria, onde cresceram e providenciam sua subsistncia, teria como destino provavelmente os bolses de pobreza que se proliferam nas periferias do Estado, aumentando o quantitativo populacional que se encontra margem dos mais basilares direitos fundamentais e sociais.

    Neste sentido, considerando que o conceito antigo de quilombos foi elaborado no decorrer do perodo da escravido, que o Decreto n. 4.887/2003 prev o critrio de auto-atribuio para identificao dos remanescentes das comunidades de quilombos, que h nos autos laudo elaborado pelo ente competente, poca, para a identificao destes grupos afi rmando que a comunidade da Ilha de Marambaia remanescente de quilombos e, por fim, que a autarquia atualmente com atribuio para realizar esta identifi cao expediu ato normativo em que consta a participao da Fundao Cultural Palmares neste processo de identifi cao, entendo pela caracterizao da localidade como remanescente de comunidade de quilombo, ao menos para fi ns de proteo possessria e garantia aos membros da comunidade de no mais serem molestados pela Unio Federal.

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    A ttulo elucidativo, no h como determinar peremptoriamente a caracterizao da comunidade negra da ilha de Marambaia como descendente de quilombos, seja por que tal providncia no consta do pedido inicial, o que violaria o disposto nos artigos 128 e 460, ambos do CPC, seja porque neste caso estaria o Poder Judicirio usurpando a competncia administrativa do INCRA para tanto, sem condies tcnicas para faz-lo.

    O que se faz nesta sentena reconhecer a existncia de fortssima prova documental neste sentido, possibilitando garantir o direito proteo possessria, nos precisos termos em que foi proposta a lide. A identifi cao da comunidade como descendente de quilombos para fi ns de titulao da terra que ocupam uma das providncias que cabe ao INCRA na concluso do processo administrativo, objeto da segunda parte do pedido inicial.

    Assim sendo, decido pela procedncia do pedido em relao Unio Federal, devendo esta tolerar a permanncia dos integrantes identifi cados da comunidade dentro das reas que ocupam na ilha, bem como permitir o retorno dos identifi cados que de l foram retirados e se abster de inviabilizar que a comunidade mantenha seu tradicional estilo de vida.

    Passo ento a apreciar o pedido dirigido em face do INCRA, no sentido da condenao desta autarquia a concluir o procedimento administrativo de identifi cao, delimitao, demarcao, titulao e registro imobilirio das terras ocupadas pela comunidade negra da ilha de Marambaia, no prazo de um ano, sob pena de imposio de cominao pecuniria.

    Necessrio se torna, neste momento, atentar para o fato de que a pretenso deduzida pelo MPF no ofende a separao dos poderes prevista no art. 2 da Constituio de 1988.

    Embora possa parecer que a imposio de um prazo para que o INCRA conclua o procedimento administrativo de identifi cao dos quilombolas signifi que imiscuio do Poder Judicirio em atribuio legalmente dirigida para ente da administrao indireta do Poder Executivo, no isso que ocorre.

    Isto porque embora exista a diviso dos poderes do Estado, na verdade o Estado uno e indivisvel, de forma que, se o Poder Executivo falta com sua misso constitucionalmente prevista, possvel que o Poder Judicirio assinale sua mora e imponha um prazo para que tal inadimplemento seja sanado. Com o fi to de tornar clara a questo, relevantes so as palavras do Ministro Celso de Mello, por ocasio do julgamento do RE n. 436.996, em 22.11.2005, que se aplicam bem ao caso em comento:

    Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar polticas pblicas, revela-se possvel, no entanto, ao Poder Judicirio, determinar, ainda que em bases

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    excepcionais, especialmente nas hipteses de polticas pblicas defi nidas pela prpria Constituio, sejam estas implementadas pelos rgos estatais inadimplentes, cuja omisso por importar em descumprimento dos encargos poltico-jurdicos que sobre eles incidem em carter mandatrio mostra-se apta a comprometer a efi ccia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questo pertinente reserva do possvel.

    [...]

    A posse dos remanescentes das comunidades dos quilombos, portanto, justa e de boa f et pour cause no pode ser afastada pela alegao de domnio da Unio, sob pena de violao da vedao da exceptio proprietatis, porquanto no direito brasileiro, no juzo possessrio, o melhor direito propende em favo do possuidor.

    Ademais, a posse transmissvel (art. 1.206, do CC) e no obsta a sua manuteno alegao de domnio (exceptio domini) (art. 1.210, 2, do CC).

    Nesse sentido, os comentrios da doutrina:

    O preceito em exame consagra uma das mais relevantes inovaes do Cdigo Civil em matria possessria, eliminando de vez a fi gura da exceo de domnio do ordenamento jurdico. Note-se que o Supremo Tribunal Federal, a fi m de harmonizar a redao antinmica dos dois perodos do revogado art. 505, j editara a Smula n. 487, que contm: Ser deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domnio, se com base neste for ela disputada. A redao do 2 do art. 1.210 positiva o entendimento jurisprudencial, separando os juzos possessrio e petitrio.

    Desde o Direito romano tem-se distinguido nitidamente a posse da propriedade. So conhecidos os aforismos separata esse debet possessio a proprietata (a posse deve ser separada da propriedade), nihil commune habet proprietas cum possessione (nada tem em comum a propriedade com a posse) e nec possessio et proprietas misceri debent (posse e propriedade que no devem confundir-se).

    Percebe-se facilmente que a posse pode ser considerada sob dois ngulos distintos: a) em si mesma, independentemente do fundamento ou do ttulo jurdico; b) como uma das faculdades jurdicas que integram a propriedade, ou outras relaes jurdicas.

    A expresso ius possidendi significa, literalmente, direito posse, ou direito de possuir. a faculdade que tem uma pessoa, por ser j titular de uma situao jurdica, de exercer a posse sobre determinada coisa. a posse vista como o contedo de certos direitos. Pressupe uma relao jurdica preexistente, que confere ao titular o direito posse. Ao contrrio do que afi rmam alguns autores, no s o proprietrio goza de tal situao

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    RSTJ, a. 27, (239): 587-751, julho/setembro 2015 611

    mas tambm os titulares de outros direitos reais, como o usufruturio e o credor pignoratcio. ou mesmo titulares de direitos meramente pessoais, como o locatrio e o comandatrio. Basta que seja a posse o objeto da relao jurdica, real ou pessoal. O titular do ius possidendi, ao invocar o seu ttulo ou relao jurdica preexistente (real ou pessoal) para assegurar o direito posse, instaura o chamado juzo petitorio. No se discute a posse em si mesma considerada, mas a razo, ou causa, pela qual se deve possuir.

    O jus possessionis, inversamente, o direito originado da situao jurdica da posse, independentemente da preexistncia de uma relao jurdica que lhe d causa. indiferente a incidncia, ou no, de um ttulo para possuir. Aqui a posse no aprece subordinada a direitos, nem emanada deles, formando parte de seu contedo. Alguns autores chegam a negar a expresso jus, preferindo factum possessionis, como melhor signifi cado de posse sem ttulo anterior. o refl exo da autonomia do instituto da posse, que se mostra em toda sua pureza. o fato da posse per se, necessrio e sufi ciente para ter ingresso na signifi cao jurdica. So casos tpicos do exerccio do jus possessionis aqueles que cultivam a terra abandonada, ou que se aponderam de coisas mveis perdidas. Recebem a proteo possessria, ainda que lhes falte um ttulo que justifi que a posse ou d causa a ela. o direito de posse. Seu nico suporte a sua prpria existncia e presena.

    A melhor forma de distinguir o juzo petitrio do possessrio manter estrita correlao entre o jus (factum) possessionis e o possessrio e entre o jus possidendi e o petitrio. Com isso, garante-se a distino a distino entre a posse e a propriedade e, sobretudo, protege-se a posse per se como instituio jurdica autnoma.

    A tutela possessria - s possessria - mnima e bsica, na ordem jurisdicional, est constituda pelos interditos, ou, entre ns, aes possessrias em sentido estrito. Deve-se, nas ditas aes possessrias, defender a posse como tal, sem outras ajudas em sem outras complicaes: s e simplesmente. Se por trs dela aparece um direito que a atribua, indiferente. Isso porque posso provar o direito, mas no obter a posse. Posso, em contrapartida, obter a posse e no provar o direito. Aqui o ponto em que a posse aparece em sua plenitude e, diria, em sua solido.

    (...)

    A clssica separao entre o possessrio e o petitrio tem como propsito evitar que o proprietrio justifi que sua m conduta no campo possessrio invocando o direito de propriedade. Quando, porm, a separao vai alm do limite acima mencionado e torna-se proibio genrica,