Ruy Mesquita, obituário Estadão, H3

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2013 Especial H3 1932 Inconformado com o autorita- rismo e o tratamento hostil de Getúlio Vargas e os “tenentes” a São Paulo, o Estado passa a opor-se ao governo. No dia 9 de julho estoura a Revolução Constitucionalista em defesa de eleições livres e de uma Constituição. Os irmãos Julio de Mesquita Filho, Francisco e Alfredo Mesquita vão para a frente de batalha. Julio de Mes- quita Filho e Francisco Mesqui- ta são presos e, posteriormen- te, exilados em Lisboa. 1933 Morre Nestor Pestana em abril. No mês seguinte, Plínio Barreto é promovido a diretor. Em agosto, Armando de Salles Oliveira, casado com Raquel Mesquita de Salles Oliveira, irmã de Julio Mesquita Filho, é indicado interventor por Getú- lio Vargas. Salles Oliveira só aceita o posto sob a condição de o ditador conceder anistia aos revolucionários de 32 e con- vocar eleições para o ano se- guinte. Julio e Francisco Mes- quita retornam ao País, reassu- mindo suas funções no jornal. 25/1/1934 Ainda como interventor federal, Armando de Salles Oliveira bai- xa decreto que cria a Universida- de de São Paulo, concretizando uma ideia de Julio de Mesquita Filho defendida em campanha do Estado. Julio convida profes- sores franceses, italianos e ale- mães para a Faculdade de Filoso- fia, Ciências e Letras. 1934 Francisco Mesquita se elege deputado estadual pelo re- cém-criado Partido Constitu- cionalista e Armando Salles é eleito governador pela Assem- bleia Legislativa. homenagens que se rendem, de praxe, numa situação como es- sa, dizendo que ele teve um ges- to digno”. Quando Getúlio foi eleito em 1950, lembrou Ruy Mesquita, o jornal o tratou co- mo presidente democrático. “Com a má vontade de sempre. Mas, para o que houve de bom no governo, particularmente na área econômica, o Estado fa- zia editoriais, aprovando.” Ao lado do pai, Ruy Mesquita foi um dos articuladores do mo- vimento de 1964. Mais do que o medo do comunismo – “um ris- co real e iminente” –, o que, em sua opinião, levou à derrubada do presidente João Goulart foi a quebra da hierarquia militar. O jornal apoiou o golpe – ou melhor, contragolpe ou con- trarrevolução, como preferia di- zer –, mas rompeu com o regi- me após a promulgação do Ato Institucional n.º 2 (AI-2). Pa- gou caro por sua resistência à arbitrariedade. “O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai”, disse o jornalista em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Fi- lho, que morreu sete meses após a edição do AI-5. “Meu pai caiu doente, quando parou de escrever o primeiro editorial, que escrevia diariamente. Era um homem de saúde muito boa, mas era um psicossomáti- co. Todas as suas contrarieda- des tinham reflexos fisiológi- cos imediatos.” O Estado passou seis anos sob censura. Foi apreendido em 13 de dezembro de 1968, por causa do editorial Instituições em Frangalhos, no qual Julio de Mesquita Filho denunciava a fa- lência do regime. Durante a vi- gência do AI-5, o jornal não se submeteu à censura prévia que os militares impuseram à im- prensa. O governo escalou cen- sores para as oficinas, onde as matérias proibidas eram corta- das, porque também a autocen- sura seria inadmissível. Como não se permitia que fi- casse espaço em branco, deci- diu-se publicar poemas (Esta- do) e receitas de bolos e doces (Jornal da Tarde). Em 1972, Ruy Mesquita protestou, em telegra- ma ao então ministro da Justi- ça, Alfredo Buzaid, contra a proi- bição de que fossem publicadas notícias, comentários e edito- riais sobre uma série de assun- tos. Era proibido falar, entre ou- tros itens, de abertura política e democratização. “Senhor Ministro, ao tomar co- nhecimento dessas ordens ema- nadas de V. Sa., o meu sentimen- to foi de profunda humilhação e vergonha”, dizia o telegrama. Em junho de 1978, portanto ainda na época do AI-5, Ruy Mesquita recebeu em sua casa o então sindicalista Luiz Iná- cio Lula da Silva, a pedido de Luís Carta. “Ruy Mesquita, re- pórter de Senhor Vogue entrevis- ta Lula, o metalúrgico”, dizia a chamada de abertura do texto da revista. Resultado de quase quatro horas de conversa, a en- trevista – que foi mais um bate- papo descontraído, com a parti- cipação da família – teve gran- de repercussão, pelo inusitado e pelo conteúdo do encontro. Mais de uma vez, Ruy Mesqui- ta foi processado e intimado a depor na Polícia Federal, por causa de matérias proibidas. As- sim como Julio Neto, no Esta- do, ele não se curvou às impo- sições da ditadura. E, quando re- pórteres e redatores do jornal foram presos, saiu em defesa de- les. Em abril de 2004, o jornalis- ta Paulo Markun agradeceu ao vivo, na abertura do programa Roda Viva, da TV Cultura, a soli- dariedade que recebeu em maio de 1976. Desempregado havia oito meses, depois de ter sido preso e acusado de ser comunis- ta, Markun procurou Ruy Mes- quita e foi contratado. Preso pelos órgãos de seguran- ça, o repórter de polícia Antônio Carlos Fon recebeu apoio dos Mesquitas, nos dois meses que passou atrás das grades. Seus co- legas e amigos Percival de Souza e Inajar de Souza foram procurá- lo em nome do Jornal da Tarde, enquanto ele era interrogado e torturado. Fon sempre foi grato por essa solidariedade. “Quando fui solto, procurei Ruy Mesquita para agradecer e me explicar. Ele disse que eu não tinha que explicar nada, por- que, se a polícia não tinha apura- do nada contra mim, não era ele quem ia me punir. Meu salário estava depositado na conta.” Outros dois jornalistas do Grupo Estado foram ampara- dos por Ruy Mesquita, em outu- bro de 1975. Não havia mais cen- sura, mas a prisão de Vladimir Herzog, torturado e morto num quartel da Rua Tutoia, no Ibirapuera, acirrou a repressão contra a imprensa. “Luiz Paulo Costa, que era correspondente em São José dos Campos, deve a vida a Ruy Mesquita”, afirmou o então coordenador das sucursais, Raul Bastos, em depoimento pa- ra o livro Mordaça no Estadão (edição O Estado de S. Paulo, reportagem de José Maria May- rink), lançado em dezembro de 2008.Torturado nas mesmas dependências do Exército onde Herzog morreu, Luiz Paulo foi libertado depois de um telefo- nema de Ruy Mesquita ao minis- tro Armando Falcão, da Justiça. Também ameaçado de prisão no episódio Herzog, o jornalis- ta Marco Antônio Rocha pediu socorro ao diretor do Jornal da Tarde. “Ruy Mesquita me aco- lheu em sua casa e de lá ligou ao ministro Armando Falcão para avisar que eu estava sob sua pro- teção”, relatou Marco Antônio. Se os agentes da repressão qui- sessem pegar o jornalista, adver- tiu Ruy Mesquita, teriam de in- vadir sua casa ou a redação do jornal, onde ele continuaria tra- balhando. Liberal e democrata, como sempre se definiu, Ruy Mes- quita atribuía o sucesso do jor- nal à coerência e fidelidade que vem mantendo ao longo de sua história, “à custa de sa- crifícios materiais sofridos pe- la empresa e de sacrifícios pes- soais sofridos pelos seus dire- tores”. Conforme lembrou na comemoração dos 130 anos de fundação, em janeiro de 2005, O Estado de S. Paulo nunca pôs os interesses empresa- riais antes dos interesses polí- ticos – da defesa dos interes- ses nacionais.” Era uma traje- tória, acrescentou, marcada por Julio Mesquita e “seguida fielmente pelos seus filhos, ne- tos e bisnetos”. Se não fosse a manutenção dessa separação rigorosa entre o interesse comercial e os ideais políticos e culturais, o Es- tado não teria chegado até on- de chegou, afirmou Ruy Mesqui- ta, ao receber o Prêmio Persona- lidade da Comunicação 2004. “Infelizmente, é esse tipo de jornalismo que sofre hoje uma terrível ameaça e pode ter sua vida interrompida, daqui para a frente, pelo que chamo de ‘mur- dochização’ da imprensa, ou se- ja, a subordinação dos interes- ses da política editorial aos inte- resses de marketing dos jor- nais”, disse, numa alusão ao em- presário Rupert Murdoch, que “escolheu o setor da mídia por- que achou que daria mais dinhei- ro do que fabricar salsichas”. Estava atento à ameaça da in- ternet. “Ninguém lê jornal para se distrair ou se entreter”, ad- vertiu o jornalista, prevendo que “só sobreviverão, no futu- ro, os jornais que se tornarem leitura indispensável de certos setores da sociedade, as classes dirigentes – os empresários, os intelectuais, os políticos – sem a pretensão de concorrer em termos de números de circula- ção com as audiências da inter- net ou mesmo da televisão”. Havia mais de 30 anos que Ruy Mesquita falava em se apo- sentar, mas não era para levar a sério. A realidade do dia a dia confirmava que, ao contrário, ele pretendia continuar traba- lhando enquanto Deus lhe des- se força. Dirigiu seu carro auto- mático até alguns meses atrás e, se não dava para viajar à fazen- da que comprou no Triângulo Mineiro, administrava a pro- priedade a distância. Plantou seringueiras, gosta- va de cultivar a terra, mas sua paixão mesmo era pescar. “Tu- do o que se refere a mar e peixe me fascina”, dizia. Para ele, to- das as pescarias são emocionan- tes, “até mesmo as que não pro- duzem resultados, porque um dos prazeres da pesca é a eterna expectativa do peixe maior de todos”. No seu caso, foi um mar- lim azul de 177 quilos, captura- do em dezembro de 1975, a 40 milhas da Ilha Rasa, no litoral fluminense. Ruy Mesquita estava interna- do no Hospital Sírio-Libanês, onde se submeteu a cirurgia car- díaca para a implantação de um marca-passo, quando comemo- rou os 83 anos, em 16 de abril de 2008. Impaciente e só falando em voltar logo para casa, estava feliz e bem-humorado, quando recebeu a família para festejar o aniversário. “Agora vou funcionar melhor com esse relógio no coração”, brincou. Quando recebeu alta, fez questão de subir sozinho as escadas de sua casa, dispensan- do a ajuda de uma enfermeira. Duas semanas depois, já dava expediente no jornal. Passava o dia sentado ou de pé, diante da mesa sempre entupida de pa- péis, lendo artigos e editoriais. Queixava-se da saúde, porque estava difícil manter o ritmo, mas parecia estar sempre de bom humor. Continuou trabalhando, sem- pre a mesma rotina, na medida de suas forças. No dia de seu ani- versário de 85 anos, em 2010, emocionou-se com a festa de aniversário que uma centena de amigos, funcionários e ex-fun- cionários lhe prepararam, com participação da família, no Sa- lão Nobre do 6.º andar do pré- dio do Estado. Ao lado do ex- presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos convidados, confessou a emoção, uma rea- ção incomum, ele explicou, pa- ra seu temperamento arredio a esse tipo de comemoração. Casado com Laura Maria Sampaio Lara Mesquita, tinha quatro filhos – Ruy, Fernão, Ro- drigo e João –, 12 netos e um bisneto. / COLABOROU UBIRATAN BRASIL REPRODUÇÃO www.estadao.com.br/acervo “O sucesso do jornal se deve à coerência e fidelidade que vem mantendo ao longo de sua história” Artigos de Ruy Mesquita ‘Vergonha’. Trecho do telegrama enviado por Ruy a Buzaid Ruy Mesquita Leia a coluna ‘De um dia para outro’ DOMICIO PINHEIRO/ESTADÃO–11/10/1976 História. Em 1976, em debate sobre a imprensa, Ruy Mesquita fala sobre a censura que durou seis anos, depois do editorial ‘Instituições em Frangalhos’, escrito por seu pai em 1968 Em 1959, foi saudado em Havana por ter defendido a revolução de Sierra Maestra Ainda sob o AI-5, recebeu o sindicalista Lula, para uma entrevista de 4 horas

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2013 Especial H3

1932Inconformado com o autorita-rismo e o tratamento hostil deGetúlio Vargas e os “tenentes”a São Paulo, o Estado passa aopor-se ao governo. No dia 9de julho estoura a RevoluçãoConstitucionalista em defesade eleições livres e de uma

Constituição. Os irmãos Juliode Mesquita Filho, Francisco eAlfredo Mesquita vão para afrente de batalha. Julio de Mes-quita Filho e Francisco Mesqui-ta são presos e, posteriormen-te, exilados em Lisboa.

1933Morre Nestor Pestana emabril. No mês seguinte, PlínioBarreto é promovido a diretor.Em agosto, Armando de SallesOliveira, casado com RaquelMesquita de Salles Oliveira,irmã de Julio Mesquita Filho, éindicado interventor por Getú-lio Vargas. Salles Oliveira sóaceita o posto sob a condiçãode o ditador conceder anistiaaos revolucionários de 32 e con-vocar eleições para o ano se-

guinte. Julio e Francisco Mes-quita retornam ao País, reassu-mindo suas funções no jornal.

25/1/1934Ainda como interventor federal,Armando de Salles Oliveira bai-xa decreto que cria a Universida-de de São Paulo, concretizandouma ideia de Julio de MesquitaFilho defendida em campanhado Estado. Julio convida profes-sores franceses, italianos e ale-mães para a Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras.

1934Francisco Mesquita se elegedeputado estadual pelo re-cém-criado Partido Constitu-cionalista e Armando Salles éeleito governador pela Assem-bleia Legislativa.

homenagens que se rendem, depraxe, numa situação como es-sa, dizendo que ele teve um ges-to digno”. Quando Getúlio foieleito em 1950, lembrou RuyMesquita, o jornal o tratou co-mo presidente democrático.“Com a má vontade de sempre.Mas, para o que houve de bomno governo, particularmentena área econômica, o Estado fa-zia editoriais, aprovando.”

Ao lado do pai, Ruy Mesquitafoi um dos articuladores do mo-vimento de 1964. Mais do que omedo do comunismo – “um ris-co real e iminente” –, o que, emsua opinião, levou à derrubadado presidente João Goulart foia quebra da hierarquia militar.O jornal apoiou o golpe – oumelhor, contragolpe ou con-trarrevolução, como preferia di-zer –, mas rompeu com o regi-me após a promulgação do AtoInstitucional n.º 2 (AI-2). Pa-gou caro por sua resistência àarbitrariedade.

“O preço que pagamos foi,em primeiro lugar, a vida demeu pai”, disse o jornalista emmarço de 2004, referindo-se àmorte de Julio de Mesquita Fi-lho, que morreu sete mesesapós a edição do AI-5. “Meu paicaiu doente, quando parou deescrever o primeiro editorial,que escrevia diariamente. Eraum homem de saúde muitoboa, mas era um psicossomáti-co. Todas as suas contrarieda-des tinham reflexos fisiológi-cos imediatos.”

O Estado passou seis anossob censura. Foi apreendidoem 13 de dezembro de 1968, porcausa do editorial Instituiçõesem Frangalhos, no qual Julio deMesquita Filho denunciava a fa-lência do regime. Durante a vi-gência do AI-5, o jornal não sesubmeteu à censura prévia queos militares impuseram à im-prensa. O governo escalou cen-sores para as oficinas, onde asmatérias proibidas eram corta-das, porque também a autocen-sura seria inadmissível.

Como não se permitia que fi-casse espaço em branco, deci-diu-se publicar poemas (Esta-do) e receitas de bolos e doces(Jornal da Tarde). Em 1972, RuyMesquita protestou, em telegra-ma ao então ministro da Justi-ça, Alfredo Buzaid, contra a proi-bição de que fossem publicadasnotícias, comentários e edito-riais sobre uma série de assun-tos. Era proibido falar, entre ou-tros itens, de abertura política edemocratização.

“SenhorMinistro,aotomarco-nhecimento dessas ordens ema-nadas de V. Sa., o meu sentimen-to foi de profunda humilhação evergonha”, dizia o telegrama.

Em junho de 1978, portantoainda na época do AI-5, RuyMesquita recebeu em sua casao então sindicalista Luiz Iná-cio Lula da Silva, a pedido deLuís Carta. “Ruy Mesquita, re-pórter de Senhor Vogue entrevis-ta Lula, o metalúrgico”, dizia achamada de abertura do textoda revista. Resultado de quase

quatro horas de conversa, a en-trevista – que foi mais um bate-papo descontraído, com a parti-cipação da família – teve gran-de repercussão, pelo inusitadoe pelo conteúdo do encontro.

Mais de uma vez, Ruy Mesqui-ta foi processado e intimado adepor na Polícia Federal, porcausa de matérias proibidas. As-sim como Julio Neto, no Esta-do, ele não se curvou às impo-sições da ditadura. E, quando re-pórteres e redatores do jornalforam presos, saiu em defesa de-les. Em abril de 2004, o jornalis-ta Paulo Markun agradeceu aovivo, na abertura do programaRoda Viva, da TV Cultura, a soli-dariedade que recebeu em maiode 1976. Desempregado haviaoito meses, depois de ter sido

preso e acusado de ser comunis-ta, Markun procurou Ruy Mes-quita e foi contratado.

Presopelosórgãos deseguran-ça, o repórter de polícia AntônioCarlos Fon recebeu apoio dosMesquitas, nos dois meses quepassouatrás das grades. Seus co-legas e amigos Percival de Souzae Inajar de Souza foram procurá-lo em nome do Jornal da Tarde,enquanto ele era interrogado etorturado. Fon sempre foi gratopor essa solidariedade.

“Quando fui solto, procureiRuy Mesquita para agradecer eme explicar. Ele disse que eunão tinha que explicar nada,por-que, se a polícia não tinha apura-do nada contra mim, não era elequem ia me punir. Meu salárioestava depositado na conta.”

Outros dois jornalistas doGrupo Estado foram ampara-dos por Ruy Mesquita, em outu-bro de 1975. Não havia mais cen-sura, mas a prisão de VladimirHerzog, torturado e mortonum quartel da Rua Tutoia, noIbirapuera, acirrou a repressãocontra a imprensa.

“Luiz Paulo Costa, que eracorrespondente em São Josédos Campos, deve a vida a RuyMesquita”, afirmou o entãocoordenador das sucursais,Raul Bastos, em depoimento pa-ra o livro Mordaça no Estadão(edição O Estado de S. Paulo,reportagem de José Maria May-rink), lançado em dezembro de2008.Torturado nas mesmasdependências do Exército ondeHerzog morreu, Luiz Paulo foilibertado depois de um telefo-nema de Ruy Mesquita ao minis-tro Armando Falcão, da Justiça.

Também ameaçado de prisãono episódio Herzog, o jornalis-

ta Marco Antônio Rocha pediusocorro ao diretor do Jornal daTarde. “Ruy Mesquita me aco-lheu em sua casa e de lá ligou aoministro Armando Falcão paraavisar que eu estava sob sua pro-teção”, relatou Marco Antônio.Se os agentes da repressão qui-sessem pegar o jornalista, adver-tiu Ruy Mesquita, teriam de in-vadir sua casa ou a redação dojornal, onde ele continuaria tra-balhando.

Liberal e democrata, comosempre se definiu, Ruy Mes-quita atribuía o sucesso do jor-nal à coerência e fidelidadeque vem mantendo ao longode sua história, “à custa de sa-crifícios materiais sofridos pe-la empresa e de sacrifícios pes-soais sofridos pelos seus dire-tores”. Conforme lembrou nacomemoração dos 130 anos defundação, em janeiro de 2005,“O Estado de S. Paulo nuncapôs os interesses empresa-riais antes dos interesses polí-ticos – da defesa dos interes-ses nacionais.” Era uma traje-tória, acrescentou, marcadapor Julio Mesquita e “seguidafielmente pelos seus filhos, ne-tos e bisnetos”.

Se não fosse a manutençãodessa separação rigorosa entreo interesse comercial e osideais políticos e culturais, o Es-tado não teria chegado até on-de chegou, afirmou Ruy Mesqui-ta, ao receber o Prêmio Persona-lidade da Comunicação 2004.

“Infelizmente, é esse tipo dejornalismo que sofre hoje umaterrível ameaça e pode ter suavida interrompida, daqui para afrente, pelo que chamo de ‘mur-dochização’ da imprensa, ou se-ja, a subordinação dos interes-

ses da política editorial aos inte-resses de marketing dos jor-nais”, disse, numa alusão ao em-presário Rupert Murdoch, que“escolheu o setor da mídia por-queachou quedariamais dinhei-ro do que fabricar salsichas”.

Estava atento à ameaça da in-ternet. “Ninguém lê jornal parase distrair ou se entreter”, ad-vertiu o jornalista, prevendoque “só sobreviverão, no futu-ro, os jornais que se tornaremleitura indispensável de certossetores da sociedade, as classesdirigentes – os empresários, osintelectuais, os políticos – sema pretensão de concorrer emtermos de números de circula-ção com as audiências da inter-net ou mesmo da televisão”.

Havia mais de 30 anos queRuy Mesquita falava em se apo-sentar, mas não era para levar asério. A realidade do dia a diaconfirmava que, ao contrário,ele pretendia continuar traba-lhando enquanto Deus lhe des-se força. Dirigiu seu carro auto-

mático até alguns meses atrás e,se não dava para viajar à fazen-da que comprou no TriânguloMineiro, administrava a pro-priedade a distância.

Plantou seringueiras, gosta-va de cultivar a terra, mas suapaixão mesmo era pescar. “Tu-do o que se refere a mar e peixeme fascina”, dizia. Para ele, to-das as pescarias são emocionan-tes, “até mesmo as que não pro-duzem resultados, porque umdos prazeres da pesca é a eternaexpectativa do peixe maior detodos”. No seu caso, foi um mar-lim azul de 177 quilos, captura-do em dezembro de 1975, a 40milhas da Ilha Rasa, no litoralfluminense.

Ruy Mesquita estava interna-do no Hospital Sírio-Libanês,

onde se submeteu a cirurgia car-díaca para a implantação de ummarca-passo, quando comemo-rou os 83 anos, em 16 de abril de2008. Impaciente e só falandoem voltar logo para casa, estavafeliz e bem-humorado, quandorecebeu a família para festejar oaniversário.

“Agora vou funcionar melhorcom esse relógio no coração”,brincou. Quando recebeu alta,fez questão de subir sozinho asescadas de sua casa, dispensan-do a ajuda de uma enfermeira.Duas semanas depois, já davaexpediente no jornal. Passava odia sentado ou de pé, diante damesa sempre entupida de pa-péis, lendo artigos e editoriais.Queixava-se da saúde, porqueestava difícil manter o ritmo,mas parecia estar sempre debom humor.

Continuou trabalhando, sem-pre a mesma rotina, na medidade suas forças. No dia de seu ani-versário de 85 anos, em 2010,emocionou-se com a festa deaniversário que uma centena deamigos, funcionários e ex-fun-cionários lhe prepararam, comparticipação da família, no Sa-lão Nobre do 6.º andar do pré-dio do Estado. Ao lado do ex-presidente Fernando HenriqueCardoso, um dos convidados,confessou a emoção, uma rea-ção incomum, ele explicou, pa-ra seu temperamento arredio aesse tipo de comemoração.

Casado com Laura MariaSampaio Lara Mesquita, tinhaquatro filhos – Ruy, Fernão, Ro-drigo e João –, 12 netos e umbisneto. / COLABOROU UBIRATAN

BRASIL

REPRODUÇÃOwww.estadao.com.br/acervo

“O sucesso do jornal se deve à coerência e fidelidadeque vem mantendo ao longo de sua história”

Artigos de Ruy Mesquita

‘Vergonha’. Trecho do telegrama enviado por Ruy a Buzaid

Ruy Mesquita

Leia a coluna ‘De um dia para outro’

DOMICIO PINHEIRO/ESTADÃO–11/10/1976

História. Em 1976, em debate sobre a imprensa, Ruy Mesquita fala sobre a censura que durou seis anos, depois do editorial ‘Instituições em Frangalhos’, escrito por seu pai em 1968

Em 1959, foi saudadoem Havana por terdefendido a revoluçãode Sierra Maestra

Ainda sob o AI-5,recebeu o sindicalistaLula, para umaentrevista de 4 horas