Sábato Magaldi - Divergências Acerca Do Teatro Épico

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Texto de Sábato Magaldi contra Iná Camargo

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Divergncias acerca do teatro picoSBATO MAGALDIESPECIAL PARA A FOLHAQuando, em razo da queda do Muro de Berlim e do malogro da Unio Sovitica, os afoitos pensaram que perdeu o sentido ler e encenar Brecht, o aparecimento de "A Hora do Teatro pico no Brasil" merece ser saudado com a lucidez e os elogios do prefcio de Roberto Schwarz. importante rastrear uma corrente que trouxe frutos decisivos para a consolidao do nosso teatro moderno.Sob o prisma da dramaturgia, o livro de In Camargo Costa analisa especialmente, no primeiro captulo, denominado "Rumo a um Teatro No-Dramtico", "Eles No Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri; e "A Alma Boa de Setsuan", de Brecht, por ser a primeira montagem significativa do autor alemo entre ns, tendo ele formulado a teoria do teatro pico. O captulo "Na Hora do Teatro pico" trata de "Revoluo na Amrica do Sul", de Augusto Boal; e "A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar", e "Os Azeredo mais os Benevides", de Oduvaldo Vianna Filho. "A Fora de Inrcia do Teatro pico" examina o "Show Opinio", assinado por Armando Costa, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho; e "Arena Conta Zumbi", de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. O ltimo captulo -"Adeus s Armas"- contempla "Arena Conta Tiradentes", tambm de Boal e Guarnieri; "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade; e "Roda Viva", de Chico Buarque. Pelos ttulos dos captulos, pode-se acompanhar o itinerrio traado pela autora para definir o nascimento e a alegada diluio de uma tendncia.Para quem, como eu, diverge em grande parte da classificao e dos juzos de In Camargo Costa, embora lhe reconhea a agudeza de muitas observaes, no fcil comentar o volume. Argumentar de forma convincente contra conceitos polmicos, dos quais se discorda, exigiria quase o mesmo espao por ela utilizado, com o objetivo de discuti-los. Um artigo de jornal indicar, na melhor das hipteses, os temas passveis de contestao.Caberia afirmar que um assunto seja pico ou dramtico? No vejo por que a greve deva ser julgada, em si, tema pico. O tratamento que pode ter uma ou outra forma e Gianfrancesco Guarnieri, que em 1958 estava familiarizado com o drama e no com o teatro pico, escolheria forosamente o primeiro, que dominava. As falhas se creditam mais ao dramaturgo imaturo, que estreava com "Eles No Usam Black-Tie". E as restries que se lhe imputam no empanam seu admirvel significado histrico. Nada decreta que o drama seja conservador, e ele poder abrigar contedo progressista ou no.In alude a "cotao zero de Brecht entre ns at o final dos anos 50", explicando-a melhor, talvez, "por nossa dependncia em relao ao teatro francs". No creio ser aceitvel essa afirmao, porque em 1956, ano da morte do dramaturgo, j tinha sido possvel assinalar que, "ao menos para um crculo de crticos e espectadores", seu teatro situava-se "como o mais representativo do nosso tempo". E a montagem de "A Alma Boa de Setsuan" pela Cia. Maria Della Costa-Sandro Polloni, em 1958, a primeira de um conjunto profissional brasileiro, foi saudada como "acontecimento histrico".Infelizmente, sendo alvo de um mal-entendido da autora, sinto-me obrigado a esclarecer, quanto a "Revoluo na Amrica do Sul", que ter mencionado a revista como um de seus estmulos foi de fato um elogio e no "apenas aparente", e que "hoje talvez possa mesmo passar por tal, j que os ento vigentes preconceitos contra o teatro de revista parecem superados". Havia no preconceito contra a revista, mas inaceitao do mau teatro de revista, pois aquele considerado bom recebia palavras calorosas.O captulo de meu "Panorama do Teatro Brasileiro" no revela indisposio contra a revista de Artur Azevedo: no dei preferncia ao seu "teatro srio" -simplesmente no tive acesso a ela, na ocasio, e ao l-la, anos mais tarde, nos seis volumes da obra cnica, em boa hora publicada pelo governo federal, achei-a da melhor qualidade. Por sinal, Boal tambm no conhecia a revista do ano de Artur Azevedo, ao elaborar "Revoluo na Amrica do Sul".Depois de fazer boas anlises sobretudo de "A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar", a autora se deixa conduzir por um desgnio de generalizao que, perdendo a objetividade, compromete o seu raciocnio. Veja-se, por exemplo, o juzo categrico desta frase: "E, como vimos, para a nossa crtica, o teatro pico esquemtico e maniquesta por definio". Nada vi que autorizasse In a tirar essa concluso, a respeito de "nossa crtica". No seria aconselhvel que, antes de expender condenao to peremptria, ela tivesse procedido a amplo levantamento sobre o tema, em toda a imprensa?Espanta-me que In anatematize como "curiosa combinao de parania e m-f" o procedimento de Boal e Guarnieri em "Arena Conta Zumbi", ao empobrecer o "complexo lado palmarino da histria". No me consta que os autores quisessem "identificar" a admirvel luta dos negros aos episdios ligados a 1964. O espetculo procurou utilizar a lio de Palmares, no seu herosmo, para manter a chama da resistncia ditadura militar. Uma "obra esttica e politicamente falsa" nunca teria a capacidade de mobilizar um pblico to entusiasta e esclarecido. Naqueles anos sombrios, uma encenao que exaltava a liberdade tinha o dom de revigorar o nimo de quem se sentia oprimido.Raciocnio semelhante se aplica a "Arena Conta Tiradentes". Confesso, de incio, no ter entendido esta frase: "O Curinga sintetiza o equivocado esquema consagrado pela crtica para explicar a trajetria do Teatro de Arena, incorporando-o ao texto de 'Tiradentes', o mesmo esquema apresentado por Boal em sua teoria do Curinga".Se bem compreendi a teoria do Curinga, permitindo que uma personagem fosse interpretada por vrios atores, e levando, como no jogo de cartas, o Curinga a entrar nesse ou naquele papel, Boal adaptava, para um pequeno elenco fixo, o estranhamento brechtiano. Apenas Tiradentes tinha um s intrprete, porque se concentrava nele a empatia pretendida, e que caracterstica do teatro dramtico, de inspirao realista ou naturalista.Ainda que eu no compartilhe da crtica dos autores aos demais inconfidentes, reconheo ser "Tiradentes" um texto muito mais elaborado que "Zumbi". E o espetculo visava a reiterar a luta pela liberdade, sendo ademais dificilmente interditvel pela censura, como a maldade de In registrou: "No custa lembrar que Tiradentes sempre foi muito cultuado pelos nossos militares". Na tica da autora, que procuraria valorizar o contexto histrico, o que parece faltar exatamente a sensibilidade para apreender essas montagens nas circunstncias em que foram apresentadas.As colocaes discutveis prosseguem no estudo sobre o Teatro Oficina. Menciona a autora o atraso desse conjunto em relao ao Arena. Ora, o Oficina iniciou suas atividades anos depois do Arena, e por isso se entende que ele refizesse sua trajetria, a partir do aprendizado. Mas ningum contestar que o Oficina realizou, com "Pequenos Burgueses", de Grki, o melhor espetculo stanislavskiano do teatro brasileiro.Com o empenho um tanto alucinado de atualizar-se permanentemente, o Oficina retomou, na dcada de 60, todos os caminhos do teatro moderno, desde fins do sculo passado. Enfrentou o teatro pico, descobriu o tropicalismo e, incansvel na pesquisa, valeu-se de "Na Selva das Cidades", pea do jovem Brecht, para experimentar as pesquisas de Grotvski. Na conceituao dessa caminhada rica ser necessrio rever diversas posies assumidas por "A Hora do Teatro pico".A primeira delas refere-se a "Os Inimigos", de Grki. Ningum ignora que se trata de uma pea realista, cuja encenao bvia reclamaria o estilo stanislavskiano. Entretanto, o diretor Jos Celso Martinez Corra recusou dar ao espetculo essa linha, imprimindo-lhe uma leitura pica. Essa opo patenteou-se no visual concebido por Flvio Imprio, que sublinhava o efeito de estranhamento. Assim, estapafrdio escrever que estava em jogo uma "folha de servios prestados causa cultural stalinista", no obstante a origem do texto. Se o espetculo merece reparo na impossibilidade de casamento entre as duas linguagens.Outras colocaes discutveis se estendem ao estudo de "O Rei da Vela". Por mais que haja um esquema analtico marxista na conduo da trama e das personagens, algo mais forte no temperamento de Oswald de Andrade -o seu esprito profundamente anarquista- trouxe ao primeiro plano o propsito de "espinafrao", uma espcie de arma giratria voltada contra todos.Ao invs de ser "desnecessria e inglria" a morte do protagonista, ela tinha o propsito de mostrar a traio do "socialista" Abelardo 2 (os comunistas acreditavam, na poca, serem os socialistas seus inimigos e aliados da burguesia) e que, no capitalismo, os sentimentos no contam, e substituir um Abelardo por outro no importa em nenhuma diferena, porque Helosa, ironicamente, sempre lhe pertencer. Lembre-se ainda que, se "O Rei da Vela" pode enquadrar-se no "teatro de cmara", rejeitado teoricamente por Oswald (a pea foi ao menos iniciada em 1933, datando a edio em livro de 1937), "O Homem e o Cavalo", publicada em 1934, pertence sem dvida ao seu conceito de "teatro de massas".Uma ltima divergncia diz respeito ao papel atribudo a "Roda Viva", de Chico Buarque, estria de 1968. A autora exagerou no radicalismo, ao afirmar que no haveria "outro modo reconhecido de 'ser artista' no sistema de mercado", por ser a idia do texto a de "contar a velha (desde Fausto) histria do artista que 'se vende'".O diretor Jos Celso alterou, de fato, a delicadeza do dilogo, transformando todo o espetculo em agresso, desde os palavres alinhados gratuitamente at o elenco se sentar no colo do pblico e o desfile de signos provocativos para o sexo. Sinceramente, ressalvado o talento dos intrpretes, o conjunto me parecia uma algazarra de adolescentes mal-educados.Concluir que "Roda Viva" "abriu o caminho para o teatro de vanguarda no Brasil" chega a causar espanto, sendo estranhvel, tambm, a no ser na cronologia, mencionar que se seguem montagem "Cemitrio de Automveis" e "O Balco". O prprio Jos Celso dirigiu em 1968 e 1969, respectivamente, "Galileu Galilei" e "Na Selva das Cidades", de Brecht, duas das mais extraordinrias realizaes do nosso teatro. E no se pode esquecer: aquilo que a autora chama reinstalar "a cena brasileira no descampado da ideologia burguesa" valeu a Jos Celso o exlio, como se tinha exilado tambm Augusto Boal.Livro discutvel, assim, "A Hora do Teatro pico no Brasil", que os interessados no destino do nosso palco vo por certo debater.