SacerdoteS 26

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O retorno do rangar

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Capítulo 26 – O retorno do rangar Reza a lenda que há centenas de anos o mais poderoso dos demônios foi criado. Naquela época os dragões ainda dominavam e reinavam por todos os cantos de Gardwen, espalhando terror e destruindo cida-des inteiras, e somente os protetores eram capazes de proteger os hu-manos dos dragões. Era uma época em que era arriscada a criação de grandes cidades, pois chamavam a atenção daquelas feras sem pieda-de. Cada uma das principais cidades de Gardwen dispunha de um cer-to número de protetores que ali habitava e eles eram responsáveis pela proteção da cidade. Mas isso foi há muito tempo, muito antes de os humanos exigirem que os protetores ficassem dentro de seus próprios Domínios. Mas mesmo com a ajuda dos protetores, os humanos ainda sofriam muito com os constantes ataques de dragões, e foi então que o atual Guardião da Magia resolveu interferir. Teve a idéia de criar um de-mônio, aquele que seria lembrado para sempre como o mais poderoso de todos. Semelhante aos dragões, mas muito maior e com um poder sem comparação. Uma velocidade surpreendente e uma fúria sem igual pa-ra com aqueles a quem tinha o dever de exterminar. Esse demônio re-cebeu o nome de Zen, e finalmente os dragões tiveram um motivo para temer. Zen não dormia, não comia, não descansava. Ficava dia e noite caçando dragões, matando todos aqueles que encontrava. Os humanos tiveram medo dele, mas ele era incapaz de ferir qualquer um que não fosse um dragão. Esse era o propósito de sua existência, o seu carma eterno; enquanto vivesse, Zen não deixaria de perseguir os dragões. Por alguns meses a batalha entre o demônio e as feras prosseguiu, sempre terrível, mas sempre com o mesmo vencedor, então logo os dra-

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gões passaram a fugir para as gélidas terras de Covarmen, que até en-tão eram praticamente desabitadas. Mas a idéia de um demônio caçador de dragões não agradou a todos e logo foi feita uma Convocação Elementar para decidir o assunto. O atual Guardião da Alma não admitiu que uma criatura criada com o único propósito de matar continuasse vivendo sobre Gardwen. Houve muita discussão e aquela Convocação Elementar durou dias, até que finalmente chegaram a uma conclusão. Zen deveria ser detido imedia-tamente. A lenda diz que o Guardião da Magia não teve coragem para exter-minar o seu feito mais poderoso, mas uma vez que ele foi criado com o propósito de matar dragões ninguém poderia mudar isso, nem mesmo o Guardião. Foi nesse momento que ele decidiu transformar Zen em al-go que ficasse sob o seu controle, sem precisar matá-lo. Segundo a lenda, nessa hora foi criada uma das armas brancas. Den-tre as nove, essa é a arma branca mais poderosa e dizem que ela ainda conserva grande parte do poder destrutivo de Zen.

8° Cavaleiro da Magia – Bulque Arma Branca – Canhão de Zen

Assim que atravessaram o portal Elkens ficou assustado e parou, sem fôlego. Estava num lugar mal iluminado, como se ali fosse sempre noi-te. Havia ossos por todo lado. Ossos enormes, monstruosamente enor-mes. Todo o lugar era cheio desses ossos. Era assustador.

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Kanoles fez força para conseguir ficar em pé sem a ajuda de seus companheiros e foi então que viu onde estavam. Também ficou assus-tado e, assim como Elkens, sentiu um frio percorrer sua espinha. — Mas que diabos de lugar é esse? Meithel era o único que se mantinha impassível diante da paisagem macabra. Já passou por ali tantas vezes que já havia se acostumado. Sem olhar para Elkens ou Kanoles, ele respondeu: — O oitavo templo recebe o nome de Cemitério de Dragões! Silêncio. Aos poucos Elkens conseguiu recuperar o fôlego e foi então que per-guntou: — Esses ossos… são de dragões? — São. Todos eles. Os olhos de Elkens rapidamente se acostumaram com a falta de lumi-nosidade, então mais uma vez voltou a perder o fôlego. Só agora con-seguia enxergar a plenitude do lugar. Dezenas de quilômetros quadra-dos completamente cobertos por imensos esqueletos. Até onde ele con-seguia enxergar só podia ver ossos e mais ossos. Vivos aqueles dragões deviam ser terríveis, mas a visão de todos eles mortos era ainda mais perturbadora. Os esqueletos estavam amontoados pelo lugar como verdadeiros troféus. O que seria capaz de tamanho feito? Quem seria capaz de assassinar tantos dragões? Quem seria capaz de tanta cruel-dade? — Mas… desde quando estão aqui? — Há muito tempo, ninguém sabe ao certo – respondeu Meithel. – Ossos de dragões são eternos. Podem estar aqui desde que os Domínios da Magia foram criados. Os protetores não tinham acesso a toda a sua história, por isso era im-possível saber desde quando ou o motivo de os ossos estarem ali. Nin-

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guém sabe ao certo há quantas centenas de anos os protetores exis-tem. Especula-se que os protetores surgiram logo após a formação de Gardwen, mas a história dos protetores se perdeu no tempo. Os protetores ancestrais detinham poderes inimagináveis. Eles fize-ram grandes feitos por toda Gardwen e reinaram por um longo período de tempo, driblando a morte e prevalecendo por um tempo longo de-mais. Mas chegou um dia que os protetores ancestrais decidiram que a sua hora havia chegado e que estava na hora de deixar Gardwen sob a custódia de uma nova geração de protetores. Mas quando isso aconte-ceu, eles decidiram que as coisas deviam ser diferentes, embora não se saiba o motivo. Eles decidiram que a nova geração de protetores não devia ter tanto poder quanto eles e decidiram também acabar com os vestígios da maioria de seus feitos. Seus poderes incríveis foram ocul-tados e seus segredos foram esquecidos. Hoje em dia dizem que os protetores ancestrais não seriam capazes de apagar todos os vestígios de sua existência e de seus feitos, por isso dizem que todo o conhecimento foi passado de geração em geração de protetores. Não se sabe se isso é verdade ou não, mas acredita-se que ao menos um protetor vivo de cada Elemento guarde esses segredos, segredos que tem a obrigação de não se deixar perder, nem ao menos de ser quebrado. Eles não podem revelar o que sabem, apenas quando es-tão perto da morte, quando seus conhecimentos são passados para ou-tro protetor e assim por diante. Elkens olhou adiante e finalmente enxergou o portal que dava acesso ao último templo dos Cavaleiros, onde encontrariam o Cavaleiro-Líder, Kaiser, o responsável por tanta dor e sofrimento. O portal es-tava sob um grande crânio de dragão. Ainda estava fechado, por isso precisariam derrotar Bulque.

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E lá estava ele. Elkens viu o homem vestido com armaduras brancas de Cavaleiro da Magia, além de uma longa capa às costas. E ele estava olhando para os recém-chegados. O Cavaleiro estava atrás de um objeto branco. O objeto parecia ter a forma da cabeça de um dragão, mas ao olhar direi-to Elkens percebeu que não se tratava de um dragão. Era semelhante a um, mas com toda certeza não era um dragão. Parecia-se mais com um demônio. A criatura que o objeto representava, seja lá qual fosse, estava com a boca aberta, como se estivesse pronta para atacar. O objeto era grande e batia acima da cintura do Cavaleiro. Elkens tentou entender o que era aquilo, mas ao perceber a ausência de qual-quer outro tipo de arma, percebeu que aquele estranho objeto era a própria arma branca de Bulque. Não sabia ele que se tratava do Ca-nhão de Zen, a arma branca mais poderosa de todas as nove. Elkens olhou para Bulque com mais atenção e sentiu pena dele ao re-parar em seus olhos. Eram olhos vazios, sem vida. Bulque devia ser realmente muito poderoso, por isso o feitiço de controle usado por Kaiser sobre os demais devia estar agindo mais sobre ele, tornando-o assim algo sem vida, guiado apenas pela vontade de Kaiser. Por de-trás daqueles olhos vazios, Elkens podia quase sentir o verdadeiro Bulque chorando. Ele precisava acabar com isso de uma vez por to-das. Não agüentava mais lutar contra Cavaleiros que na verdade nem eram seus inimigos, nem ao menos queriam lutar. Sua raiva por Kaiser cresceu ainda mais. Felizmente agora estava perto de vingar tanto so-frimento. Bulque era o último obstáculo em seu caminho, depois disso poderia focar toda sua raiva numa luta contra o verdadeiro e único inimigo. Lutaria contra Kaiser como nunca lutou antes, com uma fú-ria sem igual, sem piedade, sem nenhum sentimento que o impedisse de matá-lo. Esse era o único jeito de Elkens se sentir realizado. Pela pri-

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meira vez tinha vontade de matar alguém e acreditava que seria ca-paz disso. Bulque não disse palavra alguma, nem fez qualquer tipo de movimen-to. Apenas ficou parado atrás de sua estranha arma branca, com os olhos sem vida. Logo o Canhão de Zen começou a brilhar. Parecia que estava acumulando energia. Elkens não demorou a perceber como aquele objeto conseguia acumular tanta magia em pouco tempo, quase como se a tirasse do próprio ar. Meithel estremeceu ao lado de Elkens e deu um passo à frente. — BULQUE! – gritou ele com um certo nervosismo em sua voz. – PÁRE COM ISSO, BULQUE. VOCÊ SABE QUE NÃO SOU SEU INIMIGO. — O que ele está fazendo? – Elkens perguntou. — Precisamos impedi-lo – Meithel estava realmente com medo. Sua voz tremia, assim como suas pernas. – Se não conseguirmos detê-lo ele irá nos matar. Não podemos deixar que ele carregue todo o poder do seu canhão, caso contrário será o nosso fim… — Ele é tão poderoso assim? – perguntou Elkens ficando com medo apenas por ver o medo de seu amigo. Meithel olhou para ele e Elkens viu o desespero em seu rosto. — Você não tem idéia do poder que Bulque tem em suas mãos. Aquele canhão é a arma branca mais poderosa de todas as nove. Nenhum de nós é capaz de resistir a um único ataque dele. A quantidade de magia que o canhão conseguia acumular era assusta-dora. Elkens nunca viu algo igual em toda a sua vida. A quantidade de magia acumulada e a velocidade com que o canhão fazia isso assus-tou Elkens mais que o próprio Cemitério de Dragões. Era algo sim-plesmente inacreditável.

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— ELKENS! – gritou Meithel ao seu lado, trazendo-o de volta à realidade. – Quando Bulque disparar o ataque do seu canhão estare-mos mortos. Você precisa me ajudar a criar uma barreira. — Te ajudar? – perguntou Elkens sem compreender. — Sim. Meu tutor uma vez me contou que é possível combinar feiti-ços entre os Elementos. Combinando a magia de dois Elementos dife-rentes podemos criar uma barreira mais poderosa que qualquer outra. Elkens não era ignorante. Sabia disso desde que era um Aprendiz da Alma, o problema era que ele nunca havia nem tentado fazer isso e o pior era que ele acreditava que Meithel também não. — Vamos fugir – disse Kanoles logo atrás deles. Meithel olhou para trás e viu o amigo apoiado num dos ossos de dra-gão, mas mal conseguia se manter em pé. Estava improvisando uma atadura para os cortes em seu peito provocados pelas garras de Zephir, mas os ferimentos ainda sangravam muito. Quando seus olha-res se encontraram, Meithel percebeu que o caçador de recompensas não estava falando sério. Não queria fugir. Estava apenas usando seu humor em comentários que freqüentemente eram feitos em momentos impróprios. Meithel tentou sorrir, mas não conseguiu. O canhão esta-va acumulando ainda mais magia. — Vamos! – disse Meithel de repente, posicionando-se ao lado de El-kens. – Concentre-se o máximo que você puder. Uma só barreira não é o suficiente para deter tamanho poder, mas acredito que se combinar-mos os poderes da Alma e da Magia podemos criar uma barreira sem igual. Lado a lado, os dois Sacerdotes fecharam os olhos. Rapidamente dei-xaram de sentir o chão aos seus pés ou o ar a circundá-los. Significava que a concentração de ambos estava se elevando rapidamente, passan-do do Ken-gan para o Absu-gan. A única coisa que sentiam era o colar

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pendurado ao pescoço, que agora mais parecia ser parte de seus pró-prios corpos. Agora estavam em Roe-gan. Lentamente passaram a ter consciência um do outro, e quando atingiram o quarto nível de con-centração, o Ginden-gan, estavam conectados entre si, como se fossem um só. Agora estavam prontos para tentarem juntos criar uma única barreira. Nenhum dos dois nunca havia tentado estabelecer tal conexão, nunca tentaram combinar suas magias com a magia de outro Elemento. Não sabiam como fazer isso, apenas se concentravam mais e desejavam que funcionasse. Logo surgiu uma única barreira à frente deles, uma barreira formada por luz sólida. Hora era alva, hora era rubra. Na verdade não era uma barreira, eram duas barreiras disputando o mesmo lugar no espaço. Mas não deveria haver disputa entre das magias; elas deveriam se fundir… Mesmo com os olhos fechados e com a concentração tão elevada, ne-nhum deles podia ou conseguia deixar de sentir a quantidade exorbi-tante de magia acumulada pelo Canhão de Zen. Agora podiam ouvir o som que o canhão fazia enquanto acumulava energia e sentiam que todo o Cemitério de Dragões estava tremendo. O ataque de Bulque es-tava quase pronto, enquanto os Sacerdotes ainda não haviam conse-guido fundir suas magias. Kanoles deixou de fazer suas ataduras e apenas observava as barrei-ras de Elkens e Meithel se alternando. Hora era a barreira rubra de Elkens que estava diante deles, hora era a barreira alva. Aquilo não ia funcionar… Mas foi quando Kanoles fechou os olhos para rezar para o seu deus que algo aconteceu. As duas barreiras pararam de se alternar, e uma única barreira foi formada. Não era alva nem rubra, era das duas co-

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res. Não era somente da Magia, nem somente da Alma, era uma úni-ca barreira formada pela junção dos dois Elementos, com a essência dos dois Elementos. Uma única barreira criada por dois Sacerdotes. — Não está forte o bastante… – murmurou Elkens. — Não vai agüentar… – sussurrou Meithel tentando inutilmente concentrar-se mais. — Vai sim! Era Mifitrin. Havia acabado de atravessar o portal, o que significava que já havia derrotado Zephir. Enfim uma notícia boa. Ela se juntou a Elkens e Meithel na tentativa de formar uma barreira poderosíssi-ma. Elevando sua concentração tão rápido quanto ela jamais conse-guiu, a primeira barreira formada por Elkens e Meithel logo se juntou a uma terceira barreira, formada por Mifitrin. A barreira agora reful-gia nas cores dos três Elementos da Vida. Era tão poderosa quanto a misteriosa barreira que Meithel conjurou para derrotar Kam. Na ver-dade era muito mais poderosa. Mas então o som do canhão se aquietou. Tudo parou de vibrar. Pare-cia que nada mais aconteceria, que ficaria tudo bem, mas era apenas a reversão da magia do canhão. O curto momento de paz entre a acumu-lação e a liberação de magia. Aquele silêncio era pior que qualquer coi-sa. Um silêncio agourento. Então aconteceu! Todos ouviram um forte estrondo, algo que se asse-melhava ao uivo de um demônio enfurecido, e o Canhão de Zen foi disparado. O disparo voou velozmente contra a barreira tricolor formada pelos três Sacerdotes. A barreira agüentou por alguns breves segundos, mas então estilhaçou-se em mil pedaços como se fosse feita simplesmente de vidro. O disparo prosseguiu e atingiu quem estava no meio da for-mação: Meithel!

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Foi muito rápido e nem conseguiram ver quando Meithel foi atingi-do pelo ataque e atirado para trás. O ataque prosseguiu e atingiu um grande esqueleto de dragão, que partiu-se por completo. No segundo seguinte Meithel estava caído entre os restos do esqueleto, inconscien-te. Estava muito ferido; seus órgãos internos haviam estourado e seus ossos foram moídos, mas ainda estava vivo, Elkens sentiu isso. Um pequeno fio de vida, frágil, prestes a estilhaçar-se. A vida do Sacerdo-te da Magia se esvaía rapidamente e Elkens quase conseguia ver a alma abandonando o seu corpo. Naquele momento tomou consciência de como a vida era frágil, como podia ser destruída em questão de se-gundos. Elkens estava tremendo, já não sabia mais se de medo ou rai-va. — O poder do canhão é capaz de destruir até mesmo os ossos eternos dos dragões. Mifitrin não podia acreditar no que acabara de presenciar. Jamais viu um ataque tão poderoso antes. Bulque e sua arma branca eram inven-cíveis. A desesperança tomou conta de seu corpo e agora ela já não sa-bia se seriam capazes de salvar o Guardião da Magia. Não sabia se poderiam derrotar o oitavo Cavaleiro da Magia para, enfim, enfrentar Kaiser. Nem se deu conta de que suas pernas também estavam tre-mendo. Sentiu medo, um sentimento que dificilmente tomava conta dela. Pela primeira vez em muito tempo Mifitrin ficou sem qualquer reação diante de um inimigo e pela primeira vez pensou em fugir. Nem mesmo seu orgulho inabalável seria capaz de mantê-la no campo de batalha. Precisava fugir de qualquer jeito…

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Mas não fugiu. De repente seus olhos encontraram os olhos de El-kens e isso a encheu de forças. Não iria fugir agora. Não iria abando-nar Elkens mais uma vez. Ficaria ali e lutaria, independente do resul-tado da batalha, por mais trágico que pudesse ser. Mifitrin viu nos olhos de Elkens uma fúria que jamais viu antes nem sequer esperava vê-la no olhar do Sacerdote da Alma. Elkens sempre lhe pareceu uma pessoa que respeitava a vida acima de tudo, uma pessoa frágil e com-pletamente dependente de amigos por perto, amigos que pudessem lhe incentivar a seguir em frente e que lhe protegessem. Mas este não era o Elkens que via agora. A visão daquele homem di-ante dela lhe deu forças, lhe deu coragem. Passou a confiar em Elkens, confiar que ele a protegeria, e não mais o contrário. A imagem do ho-mem fraco desapareceu num segundo, sendo substituída por um El-kens forte e determinado e finalmente a esperança retornou. Em um segundo Mifitrin voltou a acreditar que poderiam vencer. Agora Elkens sabia que não estava tremendo de medo, tinha total cer-teza que tremia de raiva. Não tinha medo, nem um pingo sequer, o que sentia era raiva, uma raiva ímpar. Não conseguia sentir raiva de Bul-que, pois sabia que este estava sendo controlado, mas sentia um ódio mortal por Kaiser. Agora só havia um desejo em todo o seu ser: vin-gança! Elkens precisava lutar, derrotar, causar dor, vingar… precisa-va derrotar Kaiser, esse era o único modo de se livrar daquela raiva que estava sentindo. Era o único modo. — Eu posso derrotá-lo! Mifitrin o encarou. Não duvidava disso. Agora enxergava que Elkens era mais poderoso que ela, embora isso não fosse verdade. Mas neste momento, para ela, Elkens era. Pelo menos neste momento esta era a mais pura verdade. Confiava nele assim como um dia confiou em Mor-ton.

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— Como? – ela perguntou. — Confie em mim – lhe pediu. – Posso derrotá-lo com um dos meus ataques mais poderosos: a Mundus Solven. Mas eu preciso de tempo. Mifitrin sorriu e concordou com a cabeça. — Eu compreendo – disse ela ao entender o que Elkens quis dizer com “eu preciso de tempo”. Ela andou calmamente até a frente de Elkens. Ficou de frente para ele, dando as costas à Bulque. Não se importava mais com o Cavalei-ro, nem sentia mais medo. Elkens a protegeria, ela sabia disso. De frente para o amigo, estendeu a mão direita e Elkens a segurou. De mãos dadas, Mifitrin fechou os olhos e passou a se concentrar numa manipulação do tempo. A magia fluiu do seu corpo para o corpo de Elkens e imediatamente a manipulação começou. À exceção deles tudo e todos estavam imóveis. O tempo estava parado, nada mais se movia, apenas eles. Bulque es-tava em pé atrás de seu canhão, mas assim como todo o resto, estava completamente imóvel; sequer seu coração batia. Agora era a vez de Elkens agir. Com a mão livre, ele tocou seu colar e passou a se concen-trar na Mundus Solven. Por algum momento teve dificuldades para canalizar a magia e focá-la no ataque, mas logo sua raiva fez com que a Mundus Solven sur-gisse. Ainda era uma pequena esfera de luz rubra, apenas recebendo o poder da alma de Elkens e ficando mais poderosa a cada segundo. Pouco a pouco a esfera foi crescendo, tornando-se cada vez mais bela e terrível ao mesmo tempo, algo que parecia prestes a explodir. Logo Elkens percebeu que não era somente o poder da sua alma que alimentava o ataque, e sim da alma de Mifitrin também. A Sacerdoti-sa do Tempo estava cedendo o seu poder para ajudar Elkens a criar um ataque muito mais poderoso. Mas quando os poderes de duas ou

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mais almas são combinadas na Mundus Solven, ela é aprimorada e se transforma numa Nai-Kolumbar, muito mais poderosa. Era a se-gunda vez que Elkens utilizava este ataque; da primeira vez foi Lase-rin quem cedeu o poder de sua alma para ajudá-lo a derrotar Káfka, o primeiro Cavaleiro. O escudo branco de Káfka foi capaz de deter o ataque, mesmo ele sendo muito poderoso. Mas agora Elkens sabia que a Nai-Kolumbar derrotaria o inimigo, pois Bulque não tinha nenhum escudo para se proteger. Sua arma branca era a mais poderosa de to-das, mas era uma arma de ataque e não de defesa. Bulque estava inde-feso. Elkens e Mifitrin ficaram ali de mãos dadas durante um longo tempo, com tudo imóvel à volta deles. Ele estava concentrado na Nai-Kolumbar; ela na manipulação do tempo. Mas não era apenas isso, era muito mais. Pela primeira vez os dois estavam tão conectados, como se fossem um só. Elkens sentia o calor da mão dela, um calor aconchegante; de repente sentiu vontade de ficar ali para sempre. Só queria isso, nada mais; queria poder ficar ali, de mãos dadas com a Sacerdotisa do Tempo, sentindo o calor da sua mão e sentindo a sua respiração, ouvindo seu coração bater… teve vontade de abraçá-la, de apertá-la contra o seu próprio corpo. Lembrou-se de quando viu Mifi-trin pela primeira vez, alguns dias atrás; lembrou-se de como sentiu, assim que a viu, de que ela seria a pessoa mais importante em toda a sua vida e agora teve certeza disso. Ainda não compreendia direito o que sentia pela Sacerdotisa, só teve vontade de ficar ali com ela pelo resto dos seus dias. Mas estavam no meio de uma batalha mortal e is-so não seria possível. De repente a manipulação do tempo começou a falhar, assim como Mifitrin soube que aconteceria. Ela já tentou prender Zephir no tem-po quando o enfrentou, mas não foi capaz de detê-lo por muito tempo.

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Logo Zephir se livrou da sua manipulação e era por isso que ela sa-bia que o mesmo aconteceria com Bulque. O oitavo Cavaleiro de re-pente passou a se mover. Foi por apenas alguns breves segundos, e lo-go ele voltou a ficar imobilizado, mas a Sacerdotisa sabia que não tardaria a acontecer de novo e de novo, até que a manipulação falhas-se de uma vez por todas. Mas agora ela já havia dado muito poder pa-ra o ataque de Elkens e estava na hora de ajudar de outro jeito. En-quanto estivesse mantendo a manipulação do tempo, sua magia seria consumida rapidamente, e foi por isso que Mifitrin cancelou a mani-pulação. Agora tudo estava correndo normalmente. Todos estavam se movendo, não somente eles, mas Kanoles e Bulque também. Mifitrin soltou a mão de Elkens e deu às costas para ele, ficando de frente para o Cava-leiro da Magia e de costas para Elkens, como se agora fosse protegê-lo do perigo. Bulque ainda estava atrás de seu canhão e já estava acu-mulando energia para um novo ataque, o ataque que significaria o fim dela e de Elkens. Ela precisava detê-lo. Enquanto isso, Elkens se concentrava com todas as suas forças para tornar a Nai-Kolumbar ainda mais forte. De vez em quando surgia em sua mente a imagem de Meithel inconsciente no chão e isso o en-chia de raiva, o que fazia com que a Nai-Kolumbar ficasse ainda mais poderosa, mais bela e terrível. Já tinha a forma de uma alma agora, não tão grande quanto a que usou para atacar Bulque, mas com um poder considerável. Mifitrin estava olhando para Bulque; este estava de olhos fechados, concentrado em seu canhão. Ela sabia o que precisava ser feito. Preci-sava atacar Bulque e desconcentrá-lo do se canhão. Era a única ma-neira de impedir que o ataque dele se concretizasse antes do ataque de Elkens. E foi isso o que fez. Tocando seu colar, Mifitrin conjurou um

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bastão de luz anil, então atacou. Correu com uma incrível contra Bulque, gritando, e só quando se aproximou o bastante foi que tentou golpeá-lo. Mas sua primeira tentativa falhou. Bulque sequer abriu os olhos, apenas continuou concentrado em seu canhão, mas alguma coisa im-pediu que Mifitrin o atacasse. Uma força invisível repeliu o seu ata-que e ela recuou enquanto ganhava tempo para analisar o ocorrido. Bulque sequer se mexeu, sequer tocou seu colar. Então como foi que ele se defendeu? Livrando-se do bastão, Mifitrin conjurou várias esfe-ras anis e as atirou contra Bulque. Como da primeira vez, alguma coi-sa consumiu os seus ataques antes que eles o atingissem e o Cavaleiro continuou ileso. — Você conhece a lenda do demônio Zen, Sacerdotisa do Tempo? – perguntou Bulque sem abrir os olhos. Sem que Mifitrin tivesse tempo de responder ele continuou: – A lenda diz que sempre que Zen ia ata-car ele fechava os olhos para acumular energia. Enquanto ele estava de olhos fechados, nada podia atacá-lo. Mifitrin nunca ouviu falar do demônio Zen, nem conseguiu imaginar o que aquele demônio tinha a ver com eles, por isso não compreendeu nada do que Bulque disse. Apenas ficou perturbada ao ouvir sua con-clusão: — Enquanto eu estiver me preparando para atacar, ninguém pode me ferir. Para me atacar, você deve esperar que eu ataque primeiro! Então Bulque parou de falar e voltou a se concentrar inteiramente em seu canhão, deixando Mifitrin ainda mais perturbada. O som provo-cado pelo canhão já era assustador e todo o Cemitério de Dragões es-tava tremendo, assim como aconteceu da primeira vez. Agora não le-varia muito tempo para que Bulque atacasse. Mifitrin ficou desespe-rada, pois sabia que não havia nada a ser feito. O canhão de Bulque

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não tinha um alvo definido, mas logo ela viu o canhão virando-se para Elkens. O Sacerdote da Alma estava tão concentrado em seu ataque que sequer chegou a perceber. Tudo ficou em silêncio; tudo parou de tremer. O Canhão de Zen havia acumulado toda a magia necessária para atacar. O silêncio indicava o período entre a acumulação e a liberação de toda essa magia. — ELKENS! Mifitrin gritou, mas o Sacerdote não ouviu. A Nai-Kolumbar diante dele crescia assustadoramente, assumindo quase a sua altura, e batia suas asas impaciente para atacar, mas Elkens estava tão concentrado que não conseguiu ouvir. Então foi ouvido um forte estrondo, o som de um demônio enfurecido, e o canhão foi disparado. Mifitrin assistiu a cena em câmera lenta. Viu quando o disparo saiu do canhão e seguiu diretamente contra Elkens; seu rastro de luz criava uma espiral no ar. Mifitrin começou a correr. Correu o mais rápido que podia, mais rápi-do que um raio, mais rápido que o ataque de Bulque. Chegou até El-kens e o empurrou com força para longe, tirando-o assim do percurso do ataque do canhão. Mas não teve tempo de se salvar e foi atingida em cheio. Assim como Meithel, Mifitrin foi atirada para trás pelo impacto do ataque e só parou quando atingiu um dos esqueletos de dragão, que também foi destruído. Elkens ficou sem conseguir respirar ao ver o que aconteceu, perdeu completamente o fôlego. Viu Mifitrin cair de bruços no chão, de onde não se levantou. Sentiu um aperto em seu coração ao vê-la caída ali, quase sem vida. Os braços de Mifitrin formavam um ângulo estranho com o corpo; estavam quebrados em mais de um pon-to. Mas isso era o de menos. Elkens sabia que todo o corpo de Mifi-trin se encontrava em tal situação. O ataque de Bulque era letal; não

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importava se aquele canhão era disparado contra um homem ou um dragão, o resultado era o mesmo. Toda a raiva que Elkens estava sentindo de repente explodiu em seu coração. Em questão de segundo a Nai-Kolumbar dobrou de tamanho diante dele. O imenso ataque com a forma de uma alma rubra agora continha algo que se assemelhava a veias negras, que lhe bombeavam magia. A raiva de Elkens transformou o ataque da Alma, deixando-o com uma aparência horrível, mas ainda assim extremamente poderoso. Finalmente a Nai-Kolumbar foi concretizada. — Maldito seja você, Kaiser. Elkens não hesitou em atacar Bulque com todo o poder do seu ataque. A enorme alma de luz criada com os poderes da alma de Elkens e Mi-fitrin voou velozmente contra o Cavaleiro, batendo suas asas numa velocidade assustadora. Quando se chocou contra Bulque, a Nai-Kolumbar explodiu, iluminando todo o Cemitério de Dragões e cegan-do Elkens. Os esqueletos mais próximos foram impulsionados para trás, abrindo uma grande clareira sem nenhum esqueleto no cemitério, mas Elkens ainda não conseguia enxergar nada; só podia sentir que seu ataque foi realmente poderoso, que com toda certeza havia derro-tado Bulque. Finalmente estava livre para enfrentar Kaiser, o verda-deiro inimigo.

Estavam correndo sem parar, movidos pela única vontade daquele a quem serviam. O pequeno grupo de kenrauers corria sem descanso, de cidade em cidade. Assim como qualquer um pode sentir a presença de um kenrauer por perto, eles também podem sentir a presença de vida. Isso acontece porque os kenrauers são demônios sem alma, exatamente

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o oposto da vida. É por isso que qualquer um se sente mal perto de-les, do mesmo modo que eles se sentem perto de qualquer ser vivo. Mas diferente dos outros, os kenrauers não procuram fugir, se afastar, a única coisa que querem é acabar com a vida que há ao redor. Esse é o desejo de Mon, cujo fragmento de alma está em cada um deles, por isso a vontade de Mon é a vontade dos kenrauers; a vontade de matar! Esse pequeno grupo é composto por nove kenrauers, cada um deles em posse de uma misteriosa adaga negra. Quando usam essa adaga para matar conseguem aprisionar a alma em pequenas esferas, impedindo assim que a alma retorne para os Domínios da Alma e, conseqüente-mente, outra alma não pode vir ocupar o seu lugar. É assim que são gerados os vácuos da vida, onde Mon deposita pequenos fragmentos da sua alma e consegue criar os kenrauers. Esse grupo originalmente era composto por dez kenrauers, os respon-sáveis pela multiplicação do exército de Mon, mas quando esses mes-mos kenrauers enfrentaram Elkens e os outros na cidade de Buor, Mi-fitrin conseguiu pegar a adaga de um deles. É por isso que agora ape-nas nove kenrauers seguem com a missão de matar e aprisionar as al-mas. Uma adaga a menos foi uma grande perca para Mon, mas ainda assim não foi o bastante para deter a fúria dos kenrauers. Eles conti-nuam seguindo de cidade em cidade, espalhando o terror e aprisionan-do cada vez mais almas. A cada dia o exército de demônios sem alma aumenta consideravelmente e logo nenhum exército de Gardwen será capaz de se comparar a ele em número de soldados. O líder do grupo, aquele que corria à frente dos demais, parou de cor-rer de repente. Estavam no alto de uma colina e de lá ele passou a fa-rejar o ar. Pôde sentir o cheiro de vida por perto, o cheiro de paz e ale-gria. Havia mais uma cidade e ela estava por perto. Ele olhou para baixo e lá estava ela: à beira do rio, entre as árvores de frutas. Alguns

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homens trabalhavam numa pequena lavoura, enquanto outros cui-davam dos animais. As mulheres andavam pela cidade com seus afa-zeres. Algumas ajudavam seus maridos enquanto outras lavavam roupas à margem do rio. Crianças corriam felizes por entre as casas, se divertindo sem ter qualquer consciência de que suas vidas estavam próximas do fim. A visão de todas aquelas pessoas incentivou o ataque que logo aconte-ceu. Um atrás do outro, os kenrauers avançaram contra o pequeno vi-larejo. As crianças gritaram e correram quando viram os demônios se aproximando, mas não podiam fazer nada. Vários homens correram para proteger seus lares e uma dúzia deles foram mortos em questão de segundos. Seus corpos caíram no chão, já sem vida, mas nenhuma al-ma apareceu, pois os kenrauers estavam aprisionando-as com o auxilio das adagas negras. As mulheres tentaram proteger suas crianças, tentaram fugir, mas isso era impossível agora. Algumas pegaram seus bebês e se atiraram no rio, mas nem assim puderam se salvar, pois foram perseguidas até mesmo na água. Em questão de minutos só havia corpos pelo chão; ninguém sobrevi-veu, assim como tem acontecido em todos os ataques. Por cada cidade que passam ninguém sobrevive. Cada habitante é morto de forma cru-el, sem nenhuma piedade. O número de kenrauers só estava aumentando…

Gauton estava correndo pela grande ponte que ligava os dois portais no templo de Zephir. Esteve procurando algumas respostas desde que se separou de Mifitrin, mas agora já estava satisfeito. A única coisa

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que queria agora era alcançar seus amigos e ajudá-los na batalha contra os Cavaleiros da Magia. Ele sabia que a batalha estava quase no fim; de um jeito ou de outro tudo se encerraria, independente de quem fosse o vencedor. Gauton sabia que seria muito difícil passar por Bulque, o detentor da mais poderosa arma branca. Mas mesmo assim ele corria em frente. Chegou ao final da ponte, subiu no altar e atra-vessou o portal aberto sob o arco de pedra. Levou algum tempo para conseguir entender o que estava acontecen-do. Havia muita poeira e ele não conseguia enxergar nada que estives-se mais que alguns metros à frente. Procurou por algum sinal de seus amigos e logo encontrou o primeiro deles. Meithel estava caído no chão não muito longe de onde Gauton estava; não demorou em com-preender que Meithel havia sido atingido pelo canhão de Bulque, es-tava praticamente morto. Kanoles estava ao lado dele, mas a aparên-cia deste também era lastimável. A camisa negra do caçador de recom-pensas estava toda rasgada, deixando à mostra enormes cortes em seu peito. Com certeza Kanoles havia sido ferido pelas garras de Zephir; o ferimento não era profundo, mas ainda estava sangrando e Kanoles já havia desistido de fazer qualquer curativo em seu próprio ferimento, apenas tentava inutilmente acordar o Sacerdote da Magia. Alguns metros para o lado, Gauton conseguiu enxergar o corpo de Mi-fitrin. Ela havia acabado de ser atingida pelo ataque de Bulque e es-tava tão à beira da morte quanto Meithel. A poeira começou a abai-xar lentamente e logo Gauton conseguiu ver Elkens não muito a sua frente. Ele estava em pé, olhando para alguma coisa adiante. Parecia muito fraco, como se tivesse acabado de usar uma grande quantidade de magia. E foi então que Gauton compreendeu o motivo de toda aquela poeira: Elkens atacou Bulque com algum ataque, um ataque

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tão poderoso que impulsionou os ossos de dragões mais próximos pa-ra bem longe. — Elkens! Elkens olhou surpreso para trás. Gauton levou um susto ao olhar para o seu rosto, mal conseguiu reconhecê-lo. Estava suado e cansado. Sua respiração estava arfante e seus olhos reluziam com o tamanho ódio que estava sentindo. Era algo que não combinava com Elkens, a quem Gauton sempre achou ser uma pessoa de paz, incapaz de tirar a vida de qualquer ser por mais que merecesse. Mas não era esse Elkens que via agora; o que via era um Elkens movido exclusivamente pelo ódio, pela sede de vingança. — Elkens… – chamou Gauton mais uma vez, na tentativa de fazer o Sacerdote demonstrar algum sinal de reconhecimento em seu rosto, pois não conseguia ver nada através daquela máscara de ódio. Eles se encararam por um momento, então o ódio passou a se dissipar. Os olhos de Elkens se encheram de lágrimas e ele não pôde mais detê-las. O ódio se foi, deixando apenas a culpa pelo que havia acabado de fa-zer, deixando apenas o sofrimento e um imenso remorso. – Elkens… você o matou! As lágrimas escorreram pelo rosto de Elkens e ele voltou a olhar para frente, onde esperava ver o corpo de Bulque assim que a poeira termi-nasse de baixar. Um ataque da Alma raramente matava um inimigo, no máximo o deixava incapacitado para lutar, mas Elkens depositou tanto ódio na Nai-Kolumbar que ele nem conseguia imaginar as con-seqüências daquilo. Voltou a pensar no que havia acabado de fazer, então suas pernas bambearam e ele caiu de joelhos. Havia matado uma pessoa! Bulque estava sob o controle de Kaiser, não merecia aquele trágico fim. Assim como Meithel descobriu, agora Gauton também conhecia

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toda a verdade, sabia que Kaiser era o verdadeiro e único inimigo, por isso também sofreu com a morte do oitavo Cavaleiro da Magia. Apesar de tudo o que Bulque fez com Meithel e Mifitrin, ele era tão inocente quanto Elkens. Lentamente a poeira baixava e logo Elkens conseguia ver o Canhão de Zen, intacto, no mesmo lugar em que estava. Mas aquilo já era de se esperar, jamais acreditou que seu ataque fosse capaz de destruir uma arma branca. Mas a poeira continuou baixando e um segundo depois Elkens sentiu um aperto em seu coração com o que viu: Bulque estava em pé logo atrás do seu canhão. Estava de olhos fechados, concen-trando-se em um novo ataque. Elkens levantou-se imediatamente, completamente chocado. Sem con-seguir entender como Bulque sobreviveu ao seu ataque, olhou para Gauton a fim de obter alguma resposta. Gauton ficou algum tempo sem saber o que dizer, mas logo entendeu: — A lenda de Zen diz que nada podia ferir o demônio enquanto ele se preparava para atacar. Quando você o atacou, Bulque provavelmente já estava se concentrando em seu canhão, por isso você não pôde feri-lo. Para atacá-lo, precisamos primeiro esperar que ele nos ataque. Apesar de todo o remorso, culpa e sofrimento que sentiu, Elkens não conseguiu ficar feliz em ver que Bulque estava vivo, pois isso signifi-cava que todos eles terminariam como Meithel e Mifitrin. Derrotar Bulque era impossível e agora ele percebia isso. Não havia mais espe-rança alguma. — Precisamos detê-lo! – disse Elkens em seu desespero. Havia um tom de medo em sua voz agora que conhecia todo o poder do penúlti-mo Cavaleiro da Magia. O canhão passou a brilhar. Já havia acumulado muita magia.

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— Não há como – respondeu Gauton. – Não podemos atacar, nem sequer nos defender. Só nos resta fugir… O Canhão de Zen passou a emitir o conhecido som atormentador. — Fugir? – perguntou Elkens sem acreditar no que ouvia. – Tem co-ragem de dizer isso agora, depois de tudo pelo que passamos? Tem que haver uma maneira… O Cemitério de Dragões passou a tremer. Bulque continuava de olhos fechados, concentrado em sua arma branca. — Não podemos ser derrotados aqui, Elkens. Precisamos fugir. Se formos derrotados agora não haverá nada que impeça Kaiser de liber-tar Mon. Você sabe tão bem quanto eu que não podemos derrotar Bulque… Uma idéia surgiu na mente de Elkens e ele novamente voltou a sentir esperanças. Ainda havia uma chance: — Use o cristal! Elkens conseguiu até mesmo sorrir. Ele sabia que Gauton havia rou-bado todos os cristais que estavam com os Cavaleiros da Magia. Rou-bou três deles, então entregou um a Meithel para que ele pudesse der-rotar Shanara. Esse cristal se transformou em pedra, assim como o cristal de Laserin, mas Elkens sabia que ainda restavam dois cristais. — Não! – gritou Gauton em resposta. – Não podemos nem pensar em fazer isso. — Por que não? É nossa única chance! — Não! – insistiu Gauton. – Estive buscando novas informações desde que trouxe Mifitrin para dentro. Sempre soube que o Cristal de quatro Faces era uma peça importante no meio de tudo o que está acontecendo aqui nos Domínios da Magia, por isso procurei entender por que o Cristal era tão importante.

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“Com o poder do Cristal, Kaiser pretende destruir a grande muralha que mantém Mon no Exílio. Mas o Cristal também é a nossa única esperança de libertar o Guardião da Magia. Os dois cristais que vocês usaram para enfrentar os Cavaleiros se transformaram em pedra, e is-so também acontecerá se atacarmos Bulque com um deles. Mas se to-dos os cristais virarem pedra nunca mais poderemos usar o seu poder, pois pelo menos um deles precisa estar vivo. Usar este cristal agora significa que Mon não será libertado, mas também significa que não poderemos salvar o Guardião”. Elkens entendia perfeitamente o que Gauton estava dizendo e con-cordava com ele de que não poderiam sacrificar todos os cristais, mas o próprio Mensageiro disse que precisavam de apenas um cristal vivo para reviver os outros. — Mas só dois cristais viraram pedra – insistiu Elkens. – Ainda po-demos usar um deles… Mas a notícia de Gauton não era tão boa: — Não foram só vocês que usaram os cristais em batalha. Havia mui-tos protetores protegendo os cristais e eu tive de enfrentá-los. Para conseguir escapar tive que usar o poder de um dos cristais, que tam-bém se transformou em pedra. Agora só nos resta um único cristal vi-vo! Então Elkens voltou a perder as esperanças. Realmente não podiam usar o último cristal, caso contrário não poderiam salvar o Guardião e toda aquela guerra teria sido em vão. Não havia nada a ser feito, apenas aguardar o ataque de Bulque. Então Elkens sentiu algo. Foi algo confuso, muito rápido e o pegou desprevenido. Mas logo ele compreendeu: alguém estava vindo! Não sabia se era amigo ou inimigo, mas alguém estava chegando e ele con-

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seguia quase ouvir os passos, podia senti-los. Por algum motivo, que ele não soube qual, podia sentir uma pessoa se aproximando. — Alguém está chegando! – disse para Gauton. — O quê? — Eu senti… estou sentindo! Tenho certeza de que alguém está che-gando. Acabou de entrar nos Domínios da Magia. Está dentro do Templo dos Cavaleiros agora… — Então temos que fugir! – Gauton voltou a falar. – Precisamos fu-gir… — Não vamos fugir – Elkens se interpôs com raiva. – Não depois de termos passado por tantas coisas… — Mas só pode ser um inimigo – disse Gauton desesperado. – Eu es-tive nos Domínios do Tempo Elkens, e sei que ninguém vem nos aju-dar. Ninguém! Com toda certeza é mais um inimigo e não agüentare-mos lutar contra dois ao mesmo tempo… — Shiron! – murmurou Elkens. — O que disse? — Quando passamos pelo templo de Shiron, ele não estava lá. Zephir nos contou que ele estava fora dos Domínios da Magia. Talvez seja ele quem esteja vindo… — Então precisamos mesmo fugir! – insistiu Gauton ainda mais de-sesperado. – O Canhão de Zen é a arma branca mais poderosa de to-das as nove, mas Shiron é o Cavaleiro mais forte; o único que supera os poderes de Kaiser… — Não é o Shiron! – disse Elkens interrompendo-o. – Não sei como sei disso, mas sei que não é ele… Nesse momento a conversa foi interrompida. O som do canhão emude-ceu-se e toda a magia parou de ser acumulada. Era a reversão. A breve pausa entre a acumulação e liberação da magia. Bulque iria atacar!

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— Acabou… – sussurrou Gauton. Não havia como escapar do ata-que de Bulque, nem como se defender. Quando o canhão era disparado alguém tinha de ser atingido. Não havia como mudar isso. – É o fim… Então ouviu-se o estrondo que mais se parecia com o rugido de um grande demônio enfurecido. O canhão disparou e Elkens e Gauton fi-caram lado a lado, como os olhos fechados, apenas aguardando para saber qual dos dois seria atingido. Pouco mais de um segundo era o tempo que o disparo levava para atingir sua vítima, mas esse pequeno espaço de tempo se transformou numa eternidade. Elkens podia ouvir as batidas aceleradas do coração de Gauton misturadas às batidas do seu próprio. Logo tomou coragem e abriu os olhos. Viu o disparo branco logo a frente dos dois. Sentiu o grande poder naquele disparo que mais se pa-recia com um cometa vindo na sua direção… mas não veio! Elkens viu o disparo passar ao seu lado e atingir Gauton. Viu o corpo do Mensageiro sendo arremessado quando o disparo o atingiu e viu quando, juntos, Mensageiro e disparo, atingiram um grande esqueleto de dragão e o espatifaram com o impacto. Agora Meithel, Mifitrin e Gauton estavam inconscientes. Kanoles também mal agüentava se manter em pé. Karnar ficou para trás e El-kens nem sabia se ele havia conseguido derrotar Magai. Yusguard ainda estava lutando contra seu irmão no Templo do Sacrifício e La-serin estava inconsciente no Jardim de Briluem. Agora Elkens estava sozinho. Completamente sozinho. Sentiu o peso daquela missão, o pe-so que compartilhava com seus amigos, somente em seus ombros. Sen-tiu-se abandonado, mas ao mesmo tempo o responsável por chegar até o fim. Nem que tivesse de seguir sozinho, só pararia quando suas per-nas já não agüentassem mais levá-lo adiante. Não tinha esperança de

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vencer, não guardou nenhuma esperança para si mesmo, a única coi-sa que o impulsionava a seguir adiante era a raiva por ter sido obriga-do a seguir sozinho. A raiva por tanta dor e sofrimento causados por uma única pessoa: Kaiser. — Resolvi deixar você por último – disse Bulque preparando-se para um novo ataque. – Agora sim você irá se juntar a eles. Mas Elkens não deu atenção. Fechou os olhos e passou a se concen-trar; mesmo sabendo que não tinha chances de vencer, iria lutar até o fim. A raiva aumentou o fluxo de magia em seu corpo, mas Elkens ti-nha dificuldades para controlá-la e canalizá-la. Precisava pensar em alguma coisa, algum feitiço que fosse forte o bastante para, ao menos, fazer Kaiser perceber que não estava tão seguro assim. Apesar de não estar ali, queria que o Cavaleiro-Líder presenciasse o poder deles. Mesmo que morresse, Elkens queria provar o seu valor e queria que seu inimigo reconhecesse isso. Mas Elkens nem chegou a pensar em coisa alguma, pois toda a sua consciência era atraída para a pessoa que estava vindo. Embora tives-se dito que não era, Elkens se via obrigado a admitir que só poderia ser Shiron. Quem mais viria tão desesperadamente ao encontro deles? Shiron estava atravessando o Jardim de Briluem e logo chegou à Ca-tedral Alva. Elkens via tudo pelos olhos dele. Viu as árvores mortas do Covil e a seguir os corredores dourados do Templo do Sacrifício. Shiron estava chegando, Elkens podia ouvir sua respiração. Agora es-tava no meio da ponte na Nascente Brilhante. O Cemitério de Dra-gões vinha logo a seguir. Shiron corria numa velocidade assustadora, atraindo a mente de Elkens de um modo curioso; era como se ele qui-sesse que Elkens soubesse que ele estava ali, que estava vindo. E, quando soube que Shiron atravessaria o portal, Elkens olhou para trás para encará-lo. Viu quando alguém atravessou o portal às suas

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costas e viu a si próprio pelos olhos dele; finalmente estava ali. E ele estava certo ao afirmar a Gauton que não era Shiron, pois realmente não era, mas teria ficado muito menos surpreso se fosse ele. Quem atravessou o portal foi um enorme felino, formado completa-mente por uma luz verde que emanava do seu interior, a mesma luz da qual as almas eram formadas. O felino era peludo, grande e forte; ha-via uma carapaça em torno de sua cabeça. A figura era a de um ran-gar, mas Elkens sabia que o que havia ali era uma alma. Era Nai-Peleguir, sua alma-protetora. A surpresa deixou Elkens congelado no mesmo lugar, sem qualquer forma de reação. Os kenrauers feriram Nai-Peleguir durante a batalha na cidade de Buor, e desde então Elkens jamais voltou a pedir sua ajuda. Conhecia a história daquela alma. Alguma coisa que aconteceu durante sua última reencarnação a deixou com medo de voltar a Gar-dwen sob a forma de um novo corpo e Elkens se comprometeu consigo mesmo de ajudá-la a perder este medo provando que Gardwen, apesar de tantas coisas más, também era um lugar maravilhoso. Nai-Peleguir decidiu se tornar a alma-protetora do Sacerdote e, assim, pôde voltar a caminhar sobre Gardwen sem necessariamente reencarnar em um novo corpo. Aquele gesto de Nai-Peleguir, de vir ajudá-lo mesmo sem ele ter pedido, mesmo após o que aconteceu em sua luta, deixou Elkens emo-cionado. Não estava sozinho! Ainda havia amigos dispostos a ajudá-lo, dispostos a dividir seu fardo, e Nai-Peleguir era prova disso. Neste momento Elkens compreendeu que, mesmo que estivesse só em algum lugar, jamais estaria completamente sozinho. Por mais que seus ami-gos não estivessem presentes no momento, todos estavam com ele, sempre estariam… A alma, sob a forma do rangar, ficou de frente para Elkens por um breve segundo, mas então marchou contra Bulque. O Cavaleiro olhou

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para a estranha criatura e ficou espantado. Ela corria a toda veloci-dade contra ele e Bulque não teria tempo de atacar. O rangar saltou, derrubando Bulque no chão e afastando-o de sua arma branca. Ficou em pé sobre as patas traseiras e golpeou o canhão, pois sabia que era aquilo que representava perigo para o seu Sacerdote. Atacou o canhão com uma ferocidade que Elkens jamais havia visto, até que finalmente a oitava arma branca, a mais poderosa de todas as nove, foi destruí-da! Inutilizada a arma, o rangar avançou contra Bulque. Mostrou suas grandes presas enquanto avançava contra o Cavaleiro, rugindo, pron-to para atacá-lo. Havia muito medo no olhar de Bulque e Elkens se viu obrigado a interferir: — NAI-PELEGUIR, PÁRE. NÃO O MATE! Então a fera parou. Relutou por um momento, indecisa, mas então decidiu obedecer. Deu às costas para o Cavaleiro e correu até onde El-kens continuava parado. Ele lhe acariciou a face com carinho, então a figura do rangar foi substituída pela de uma ave, formada pela mesma luz verde. Aquela era a verdadeira forma de uma alma, a verdadeira Nai-Peleguir. Ela ficou pairando no ar. — Obrigado – disse Elkens por fim. Estava emocionado em rever sua amiga em tal situação. – Obrigado por enfrentar o seu medo e vir me ajudar, mesmo sem eu ter pedido. A alma fez um leve aceno com a cabeça, então bateu suas asas e desa-pareceu no ar. Estava regressando para os Domínios da Alma. Elkens estava novamente sozinho, mas desta vez tinha esperança. Com o Ca-nhão de Zen destruído, Bulque não lhe representava mais perigo, pois não ousaria lhe atacar com o colar e correr o risco da punição. Agora poderia seguir adiante e chegar até Kaiser. Não tinha esperança de

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derrotá-lo, apenas a esperança de que poderia chegar até ele, de vin-gar pelo menos um pouco toda a dor que ele causou. Elkens olhou para Bulque e o encarou. Ainda estava com a expressão de medo em seu rosto, quase como em estado de choque. Continuava caído no mesmo lugar onde Nai-Peleguir o derrubou e seu canhão, agora destruído, jazia há alguns metros dele. Lançando a Bulque um último olhar de pena, Elkens lhe deu às costas e correu até onde Ka-noles estava, ao lado do corpo de Meithel. — Que bom que o seu amiguinho resolveu aparecer – disse o caçador de recompensas com certo esforço. Mesmo ferido como estava e após perder tanto sangue, Kanoles não perdia o costumeiro bom humor. Ele havia tirado o que restava da sua camisa e a usava para tentar estan-car o sangue dos cortes em seu peito. Elkens percebeu que o sangra-mento havia diminuído um pouco, mas ainda assim escorria sangue por baixo dos trapos que ele pressionava contra o ferimento. Elkens olhou para Meithel que permanecia inconsciente. Sua respira-ção era lenta e ele parecia muito ferido internamente. Gauton e Mifi-trin se encontravam nas mesmas situações, mas Elkens não podia fa-zer nada e sabia disso. Sacerdotes dificilmente aprendiam magias de cura e Elkens não era uma exceção. Lentamente ele caminhou até Gauton e pegou a bolsa do Mensageiro. Dentro havia vários mapas e objetos que Elkens não quis se importar em saber o que eram ou para que serviam. A única coisa que ele queria ali eram os dois cristais que ainda estavam com o Mensageiro. Um de-les, como Gauton lhe revelou, havia se transformado em pedra tam-bém, mas o outro se encontrava em perfeitas condições. Era o último cristal vivo e somente com ele seriam capazes de recuperar os demais cristais e juntar as quatro peças no Cristal de quatro Faces. Mas isso só seria feito mais tarde.

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Ele pegou os cristais e voltou para perto de Kanoles. — Você fica com eles – disse Elkens entregando os cristais para Ka-noles. – Não deixe que ninguém pegue os cristais… — Mas e você? – Apesar de ter perguntado, Kanoles já sabia a res-posta. Ela estava claramente visível nos olhos de Elkens. — Eu vou atravessar o portal. Vou lutar contra Kaiser. — Eu vou com você… — Não! Você nem consegue ficar em pé, quanto mais segurar sua es-pada; só iria me atrapalhar. Fique aqui. Proteja os cristais e os nossos amigos. Assim que eu derrotar Kaiser eu volto para pegar todos os cristais e então sigo para libertar o Guardião da Magia. Kanoles concordou. Eles enfrentaram muitas coisas para chegar até ali e agora só havia um último inimigo. Era uma pena que Elkens fos-se o único capacitado para enfrentar Kaiser, mas era necessário que isso fosse feito. De repente Kanoles se lembrou da primeira vez que viu Elkens. Só agora percebia exatamente toda a magnitude da trans-formação que Elkens passou em tão poucos dias, de garoto para um verdadeiro homem. Percebia na voz de Elkens que aquilo soava mais como uma despedida, sentia que Elkens seguia para a morte e que sa-bia disso, mas o que mais o impressionava era a sua coragem e a calma que demonstrava sentir mesmo numa situação extrema como aquela. Realmente ele havia crescido muito. E aquela visão de Elkens deu es-peranças a Kanoles, uma esperança que nem mesmo Elkens tinha; e Kanoles acreditou nele, acreditou que seria capaz de cumprir sua mis-são. Acreditou, pois acreditava que o simples e incontestável fato de acreditar nele já seria suficiente. — Boa sorte, amigo – disse Kanoles sorrindo. – Derrote aquele des-graçado e quando fizer isso dê um chute no traseiro dele por mim. Elkens não pôde deixar de sorrir.

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— Eu farei isso – então se levantou. – Volto logo! Assim que Elkens deu às costas para seu amigo, viu Bulque em pé lá na frente. Estava na frente do portal que Elkens precisava atravessar para chegar até Kaiser. Bulque o encarava com ódio no olhar, como se fossem inimigos mortais, mas Elkens olhou para ele com compaixão. Bulque estava desprovido de sua arma branca, já não era problema al-gum. Elkens caminhou em sua direção sem medo e, ao encará-lo, en-xergou o verdadeiro Bulque por trás daquela máscara de ódio criada por Kaiser. Viu o sorriso por trás dos dentes cerrados, viu o olhar de incentivo por detrás dos olhos contraídos de raiva. Viu o oitavo Cava-leiro da Magia, o verdadeiro Bulque, incentivando-o a seguir em fren-te e terminar com aquela guerra de uma vez por todas, ao mesmo tem-po em que a marionete de Kaiser parecia pensar em algo para detê-lo. Mas Elkens não teve medo; continuou andando em direção ao Cava-leiro, passaria ao seu lado e atravessaria o portal de encontro a Kai-ser. Mesmo que a parte controlada de Bulque tentasse fazer algo para detê-lo, Elkens revidaria e seguiria em frente. Não tinha mais medo. Elkens ignorou a marionete de Kaiser e sorriu para o Bulque que es-tava oculto, mas que Elkens já era capaz de enxergar. E bem lá no fundo, no fundo da essência do seu ser, um lugar que nem Kaiser nem Mon poderiam macular, Bulque sorriu de volta. Quarenta anos atrás a Magia passava por uma situação delicada. Si-rius, um dos mais promissores Guardiões da Magia, fora assassinado friamente e, mesmo semanas após o ocorrido, ninguém foi capaz de descobrir o assassino. O Guardião Sirius fora assassinado dentro dos próprios Domínios da Magia, obviamente por um dos protetores, mas o assassino tomou todas as precauções para que não fosse descoberto. Vários protetores da Alma e do Tempo vieram prestar suas últimas

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homenagens durante o funeral, mas isso já havia ocorrido há sema-nas. Agora dezenas de protetores estavam novamente reunidos diante da grande Torre Espiral, mas neste momento, mesmo à sombra dos acontecimentos recentes, o motivo da reunião era alegre. Zander, que até então era um General, fora escolhido pela Magia para representá-la, tornando-se assim o Guardião. Para uma cerimônia tão especial dois convidados postavam-se de cada lado de Zander enquan-to ele recebia seu colar e fazia seus juramentos e discursos perante to-dos os protetores que ali estavam: o primeiro era Mirundil e o segundo Sáturan, Guardiões do Tempo e da Alma respectivamente. Após longas horas de rituais, discursos e homenagens, finalmente che-gou a hora do juramento dos Cavaleiros perante o novo Guardião. Mas, com o assassinato de Sirius, praticamente todos os seus Cavalei-ros entregaram seus colares e afastaram-se do cargo. Os únicos que restaram foram Kaiser, Shiron a Alain. Também haviam mais dois homens ao lado destes, Bulque e Magai, que haviam acabado de rece-ber o título de Cavaleiros da Magia. Isso dava à Zander um total de cinco em nove Cavaleiros possíveis. Alain, o mais velho, foi o primeiro a fazer o juramento perante Zan-der. Ajoelhando-se diante do Guardião e tocando seu colar em sinal de respeito, jurou ser leal a ele pelos anos que se seguiriam e enquanto ainda estivesse apto a continuar com o cargo. Alain ficaria no cargo por mais vinte anos, até que passasse sua posição para um de seus pu-pilos: Algoz. Magai foi o segundo. Assim que Zander foi escolhido como novo Guardião, todos sabiam que ele indicaria um de seus adorados pupilos para servi-lo como Cavaleiro. Alguns ficaram em dúvida se ele esco-lheria Magai ou Aren, mas acabou ficando com a primeira opção a quem, muitos sabiam, era o preferido de Zander. Após ajoelhar-se di-

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ante do Guardião, Magai olhou brevemente para o irmão Aren, que estava no meio da multidão. Aren fez um sinal positivo, incentivan-do-o a começar seu juramento, e Magai obedeceu. Era estranha a idéia de estar acima do irmão, de ser melhor e mais importante que ele. Ma-gai e Aren sempre caminharam lado a lado, treinaram juntos e apren-deram juntos. Magai sentia que agora Zander havia imposto uma do-lorosa distância entre os gêmeos, uma distância que Magai não sabia por quanto tempo suportaria. Kaiser foi o próximo e, Shiron reparou, usou as mesmas palavras que usou no juramento que fizera a Sirius, aproximadamente dez anos atrás. Shiron reparou como Kaiser hesitou por um breve momento em jurar sua lealdade a um novo Guardião, entendeu a dor dele, mas no fim das contas o juramento de Kaiser foi o mesmo, completamente idêntico: lealdade plena enquanto perdurasse com o título de Cavalei-ro e estaria sujeito a todas as vontades de Zander. Zander agradeceu e fez sinal para Kaiser se levantar e dar espaço pa-ra o próximo Cavaleiro fazer seu juramento. O próximo da fila era Shiron e Zander o encarou, sorrindo. Mas Shiron não retribuiu seu sorriso e isso foi o bastante para Zander deixar de sorrir também. Shi-ron seguiu até seu lugar, mas jamais se ajoelhou perante Zander, se-quer fez juramento algum. O que disse deixou todos os presentes as-sustados: — Só jurei lealdade a um Guardião e ele está morto agora. Não serei leal a você Zander, nem me submeterei aos seus desejos… Dito isto deu às costas e se juntou às dezenas de protetores que assis-tiam a cerimônia e desapareceu no meio deles. Kaiser, que era tão pró-ximo de Shiron, ficou sem reação com a atitude do companheiro. Ma-gai fez menção de ir atrás dele, mas Zander o impediu levantando

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uma das mãos. No rosto do Guardião, a expressão de surpresa e de-sagrado perdurou pelo resto da cerimônia. É comum os Cavaleiros jurarem lealdade a um Guardião e isso é feito nos três Elementos da Vida. Fazem isso durante o Ritual de Plena Lealdade e assim o Guardião passa a ter controle sobre qualquer ação do Cavaleiro. Por mais que um Cavaleiro discorde de uma ordem dire-ta, jamais poderá desobedecê-la. Uma ordem será sempre uma ordem e a vontade do Guardião virá à frente das suas próprias. Isso é apenas para mostrar como os Cavaleiros confiam naquele a quem juram leal-dade, estando sujeitos e aceitando qualquer decisão que ele vir a to-mar. Mas Shiron jamais fez seu juramento. Jamais ficou a mercê das von-tades e decisões de Zander e, apesar disso, Zander não teve coragem de destituí-lo do título de Cavaleiro. Dos cinco Cavaleiros que Zander tinha agora, apenas quatro lhe eram fiéis. E teria de se contentar com isso. Assim que os protetores presentes se aquietaram diante da rebeldia de Shiron, foi a vez de Bulque fazer seu juramento. Ele, que estivera treinando durante anos para ser um Cavaleiro de Sirius, nunca teve a chance de servir o Guardião que fora assassinado. Por este motivo Zander achou mais do que justo nomeá-lo para este cargo agora, após tantos anos treinando. — Eu, Bulque, prometo cumprir minha obrigação de servi-lo e prote-gê-lo sempre – Zander ouvia Bulque atentamente, olhando para o no-vo Cavaleiro ajoelhado diante dele. Bulque fez um longo discurso, que já havia preparado e decorado há meses, dizendo o quanto se sentia orgulhoso por ter sido escolhido por dois Guardiões para ser Cavaleiro, disse o quanto treinara duro para isso e o quanto se sentia realizado e preparado. ‒ Aceito que as suas vontades sejam as minhas vontades,

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tomarei seus objetivos como sendo meus, e quando o meu sacrifício for a garantia das suas realizações, me sacrificarei sem hesitar. Sou um Cavaleiro de Zander e lhe juro lealdade enquanto estiver apto pa-ra esta função ou até que a morte me leve… Bulque encarava Elkens com o mesmo ódio no olhar, o mesmo ódio que na realidade não era dele. Assistiu às palavras de despedida que Elkens trocou com Kanoles e irritou-se ainda mais. — Isso foi realmente emocionante – disse ele zombeteiro. – Pena que você não vá a lugar algum. Elkens foi andando na direção de Bulque calmamente. Não tinha mais medo. — Você já perdeu, Bulque. Não pode me atacar sem o seu canhão. — Engano seu, meu jovem – disse ele seriamente. Estava segurando seu colar de Cavaleiro da Magia e parecia preparado para usá-lo. — Sei que não pode fazer isso – disse Elkens continuando a andar com a mesma calma. – Se usar o colar para me atacar ele pode acordar e perceber o que você está fazendo. Se isso acontecer você será punido por ele e de qualquer maneira a vitória não será sua. Bulque não manifestou qualquer reação, apenas disse: — E de que isso importa agora? Havia um tom insano em sua voz, uma insanidade que Elkens já viu em muitos outros que estavam sob o controle de Kaiser. Essa insani-dade era gerada pela raiva e pela necessidade de cumprir o que lhe foi imposto pelo feitiço de controle de Kaiser, mas nesse momento de in-sanidade até mesmo Kaiser perde o controle sobre eles. E era isso o que estava acontecendo com Bulque agora. Cada um dos Cavaleiros havia recebido a ordem de não usar o colar, pois caso eles percebessem o que estava acontecendo os planos de Kaiser podiam ser destruídos. Mas

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agora Bulque estava tomado pela insanidade e usaria o colar mesmo correndo os riscos. Mesmo o mais poderoso dos seus ataques não che-garia nem perto do poder do canhão, mas Elkens sabia que já era o su-ficiente para ser derrotado. De qualquer forma ele era um Cavaleiro e, mesmo sem sua arma branca, ainda era um grande inimigo. Bulque passou a se concentrar em seu colar para atacar, ao mesmo tempo em que Elkens pensava em um contra-ataque. Mas sem que Bulque se desse conta, o portal às suas costas se abriu. Elkens viu o portal sob o crânio de dragão se abrir e ficou assustado. Estava sendo aberto pelo outro lado, do nono templo e só três colares tinham o po-der de abrir aquele portal: o primeiro era o colar de Bulque, mas não era ele quem estava abrindo o portal; o segundo colar era o do Guar-dião da Magia, mas este estava preso, então também não era ele; as-sim só resta um colar com tal poder: o de Kaiser! Um homem atravessou o portal aberto e chegou por trás de Bulque, mas ele ainda não havia percebido. O homem estava segurando uma grande e bela espada branca. Ele encostou sua arma nas costas de Bulque e disse: — Você perdeu esta batalha no momento em que seu canhão foi des-truído. Não me serve mais… Então ele fez algo que Elkens não esperava. Cravou a espada branca nas costas de Bulque e Elkens pôde ver a ponta da espada, agora suja de sangue, atravessar o peito do Cavaleiro. O corpo do oitavo Cavalei-ro da Magia caiu no chão. Finalmente Bulque fora derrotado. Estava morto. Morto por aquele que o obrigara a lutar como inimigo. — NÃÃÃÃÃÃO! – Elkens gritou, mas já era tarde demais. O corpo de Bulque brilhou por um momento e uma alma cinzenta abandonou o seu corpo, saindo voando para os Domínios da Alma.

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Bulque estava morto. Fora morto por Kaiser, seu próprio compa-nheiro…

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