Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

download Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

of 15

description

ABSTRACT: This article intends to approach some questions conceming research in visual poetics. essumimg tbet this modality of research and its specificities refer to methodotoglcat problems not comparable to those of other research areas.KEY WORDS:mothodology of research.SANDRA REYpoetics. process. institution. work of art.Este artigo propoe abordsr e tevantar etgumss questoes sobre a pesquisa em poettcas visuals, parttndo do pressuposto de que este modatidede de pesquise e um trabalhoc

Transcript of Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    1/15

    ABSTRACT: Thiserticle intends to appro-ach some questions conceming research invisual poetics. essumimg tbet this modalityof research and its specificities refer tomethodotoglcat problems not comparable tothose of other researchareas.

    KEY WORDS: mothodology of research.poetics. process. institution. work of art.

    RESUMO: Este artigo propoe abordsr e te-vantar etgumss questoes sobre a pesquisaem poettcas visuals, parttndo do pressu-posto de que este modatidede de pesquise eum trabalhocujas especitictdedes remerem ,1problemas metodoiogicos diferenciados deoutrasareasde pesqulse.

    PALA VRAS-CHA VE: metodologia depesqulsa. poletlca, processo. Inst.1ura

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    2/15

    82 SandraRey

    A PESQUISA EM A~TE

    Pesqulsa em arte, pesquisa sobrearte. Para tentarmos estabelecer umadlferenctacao dentro da area de ArtesVisuais, em nosso programa de P6s-Graduacao, costumamos chamar a pes-quisa na ~nfase de Poetlcas Visuais de"pesquisa em arte" para diferencla-la dapesquisa em Hist6ria, Teoria e Critica,denominada "pesquisa sobre arte". Emreferenciando a pesquisa sobre 0pro-cesso de criao do artista. Pesquisa emarte, enfase de Poetlcas Visuais, deli-mita 0 campo do artista-pesquisadorque orienta sua pesquisa a partir doprocesso de instauracao de seu trabalhoplastlco assim como a partir das ques-toes te6ricas e poetlcas, suscitadas pelasua pratica. ja a pesquisa sobre arte,enfase de Hist6ria, Teoria e Critica, re-ferencia as pesquisas envolvendo 0estudo da obra de arte a partir do pro-duto final, seus processos de significa-~o e c6digos semanncos. seu efeitosno contexte social, seus processos delegttlrnacao e clrculacao.

    COLOCAc;:Ao DO PROBLEMA

    A pesquisa em arte pode ser le-vada seguindo os mesmos parametresde pesquisa que em outras areas doconhecimento? Pesquisar em arte abran-

    ge apenas 0relato de meios, procedl-mentos e tecnlcas lancados pelo artistana realizacao de sua obra, ou abarcariatam bern a mantpulacao de conceitos,estudo das lrnpllcacoes te6ricas do atede instauracao da obra, 0 estudo deobras e escritos de artistas consagradosou nao, assim como tudo que possa di-zer respeito ao processo de instauracaodo trabalho artistico? Nosso objetivoneste artigo, estando centrado nasquestoes metodoI6gicas de Poeticas Vi-suais, e considerar que a pesquisa emartes visuais e urn campo relativamentenovo na atividade acaderruca, sendoque esta modalidade de pesquisa nocontexto unlversitar!o, a nosso conhe-cimento, inlciou na Universidade deParis I, inicio dos anos 80. No entanto,desde Leonardo da Vinci, a obra de artetern duas vias de acesso complemen-tares: uma visual e outra referindo-se atudo que possa passar pela linguagem.Se anteriormente 0 ensino das artes vi-suais, a s vezes, nao explicitava questoesde pesquisa, parece-nos consequenclaurn ensino fundamentalmente centradonas questoes tecntcas, muitas vezes emdetrimento das questoes artisticas. 0artista que realiza uma pesquisa no am-bito unlversttarlo. concebe seu fazer ar-tlstico como praxis, sendo portador deuma dimensao te6rica e, conseqliente-mente, articulando 0seu fazer de ate-lier com a producao de conhecimento.

    Num ambito InstitucionaI, colo-ca-se 0 problema de criterios para este

    PortoArte. Porto Alegre, v.7, n.13, p.81-95. nov. 1996 _

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    3/15

    Dapratlca a teoria: tres instancras metodol. sobre a pesquisaem poetkas vlsuals 83tipo de pesqulsa, seguidamente trazidoa baila pelas institulcoes financiadoras.Porem, na realidade, a pesquisa emPoeticas Visuais envolve 0 desenvolvi-mento de uma serte de cornpetenclasnesta area de pesquisa especIfica e re-lativamente recente, mas que, sem du-vida, necessita consolldar-se junto aoutras areas que possuem grande tradi-~ao.

    Falar pesquisa, nos induz imedia-tamente a pensar em parametres cientl-ficos. Talvez entao, inicialmente. Fosseoportuno lembrar que a grande diferen-clacao a fazer entre arte e clencla, e ade que a arte remete ao mundo dosval ores e nao diretamente ao dos feltos,como a clencla. Se na clencia os pes-quisadores e cientistas costumam tra-balhar em bloco, e se empenham nadecodificacao de fatos e interpretacaode conceitos que permitam organizar 0entendimento da realidade e descobrirprincIpios que regem 0mundo e 0 unl-verso. na arte, 0artista segue ou In-venta um certo nOmero de regras queIhe permitem criar uma visao de mundosingular.

    Segundo Heidegger. 0que estaem questao na arte nao e a descoberta,mas sim 0acontecimento da verdade, econseqOentemente, a obra enquantoobra, Institui um mundo.

    Mas, talvez, melhor ainda seriabuscarmos subsidios na propria arte everificarmos no percurso de Klee. queao longo de uma evolucao lenta e

    constante estabelece uma relacao reel-proca entre seu pensamento e sua atl-vidade criadora, extraindo pouco apouco um Onico postulado: a fusao desua expressao formal e de seu suportefilos6fico, concebendo a arte "naocomo uma clencla exata, mas como 0universo da disparidade". (KLEE, 1980,p.ll-14)

    Estando pontuadas estas diferen-cas iniciais, sera rarnbern necessarloconscientizar-nos de que a pesquisa emPoetlcas Visuals pressupoe parametresmetodol6glcos que se diferenciam naos6 da pesquisa cientlfica, ou da pesqul-sa na area social, como ate mesmo dapesquisa sobre arte, pensada como pro-duto final. A pesquisa em Poeticas Vi-suais constitul-se numa modalidade es-pedfica de pesquisa com particularidadesmuito pr6prias ao seu proprio campo.

    A pesquisa em arte vai encontrarrespaldo te6rico na poietica, que pro-poe-se como uma clencla e filosofia dacrlacao, levando em conta as condutasque instauram a obra. A palavra poleti-ca. tendo ficado durante muito tempodilulda no interior da estetlca geral, foiempregada primelramente por PaulValery, partindo da poetlca no sentldoempregado por Arist6teles e propon-do-se a estudar a genesis do poema. Io objeto de estudo de Valery nao e 0conjunto de efeitos de uma obra perce-bida, nem a obra feita, nem a obra a fa-zer (como projeto): e a obra se fazendo.Jean Pommier (PASSERON, I989). cita

    ______________ Porto Arte. Porto Alegre. v.7. n.13. p.81-95. nov. 1996

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    4/15

    84 SandraReya definlcao valeriana do conceito depotence. "tudo que diz respeito a crta-cao, obras as quais a llnguagern e aomesmo tempo substancla e rneto.' Aporetlca compreende, por urn lado, 0estudo da tnvencao e da cornposlcao. afuncao do aeaso, da reflexao e da imita-

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    5/15

    Da pratlca a teorta- tres lnstanctas metodol. sobre a pesquisaem poetkas visuals 85

    processo de criacao, por outro lado,precisamos fazer apelo a organlzacao eao rnetodo, se quisermos fazer frente aorigor necessarlo a pesquisa que vemcom ela atrelado como se Fosse a suasombra: 0 cronograma. Comecemos,entao, desde la, a colocar uma certa or-dem na casa: uma pesquisa em PoetlcasVisuais, no contexto untversttarto,abrange tres Instanclas metodol6gicas: ametodologia de trabalho em atelier, ametodologla de pesquisa te6rica e a me-todologia de trabalho com estudantes.

    A metodologia de trabalho ematelier leva em conta a obra como pro-cesso. Para0artlsta, a obra e ao mesmotempo urn processo de tormecso e urnprocesso no senti do de processamento,de formao de significado. A obra in-terpela os seus sentidos enquanto eleesta "as voltas" com ela. Ela e urn ele-mento ativo na elaboracao ou no deslo-camento de significados ja estabeleci-dos. Enquanto artista, a obra em pro-cesso perturba 0 conhecimento demundo que me era familiar antes del a:ela me processa.

    Ja a pesquisa te6rica deve avan-car neste labirinto para descobrir esteenigma que e a obra. A teo ria buscarespostas para 0porque de Fazer istoou aquilo, especula sobre as implica-coes daquilo que estou fazendo com 0que ja foi feito. Estabelece relacoes coma hist6ria da arte e com a producaoconternporanea. Questiona em quesenti do 0 que eu faco afirma, em que

    sentido rompe com a tradicao. Opera-cionaliza conceitos para investigar cam-pos de conhecimento interdisciplinares.o que leva da pratlca a teoria?De uma forma muito direta, raplda-mente poderiamos responder que e atnsatisfacao com as respostas. Sim, po-demos dize-Io desta maneira muitosimples, mas a artlculacao da pratica

    . com 0 campo te6rico, traca caminhosextremamente complexos, por tratar-seda construcao de um conhecimentoque intersecciona diversos campos.Desde os procedimentos tecnicos lan-cades na cria

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    6/15

    86 SandraRey

    utilizamos no processo de lnstauracaodo trabalho pratico. Estes conceitos,provindos da filosofia, Iiteratura, semio-tica ou pslcanaltse, sao 0 que chama-mos de conceitos operacionais que nosfazem avancar tanto no campo pratlcocomo teortco.

    FinaJmente. no case do pesquisa-dor que tarnbern orienta a pesquisa a nl-vel de pos-graduacao. a metodologia detrabalho com estudantes de Poeticas Vi-suais pressupoe do isprearnbulos funda-mentais: orientar ar-tistas. que na maio-ria das vezes saoeminentemente pra-tlcos, no projeto depesquisa prCitica einduzi-Ios a inventar uma maneira deescrever que seja tao vallda quanto oste6ricos. Convencer os estudantes paraque este texto seja diferente do que es-creve 0 filosofo, 0historiador ou 0criti-co, mas que tera tanto valor quanto ...

    t a experiena que auforiza 0artista a fer um ponto de vista te6ricodiferenciado. Para um artista plastico, ecomo se as palavras estivessem encar-nadas no trabalho e no proprio corpo.Suas anallses terao esta vlvencia su-plementar: sua confrontacao pessoalcom 0processo de crlacao.

    Entao, estando nosso campo detnvestlgacao esbocado, passemos aexaminar mais de perto cada uma des-tas instancias rnetodologtcas.

    MHODOLOGIA DETRABALHO EMATELIER

    Se a obra nao avanca a partir deum projeto estabelecido a priori. comoela avanr;aria? Talvez Klee. mais umavez; possa nos darear a questao:"quando durante a criacao de umaobra, eu atinjo um objetivo preciso quee decorrencla de uma evolucao natural.e que eu crio neste nivel um certo

    conjunto acabado; acada vez que istoacontece, a intensi-dade diminui repl-damente e eu devoencontrar um outrecaminho. t 0cemt-nho que e essenciel.

    que tem um cereter produtivo. I 0de-vir se coloca acima do ser". (KLEE.1980)

    Se e 0caminho que e essenclal,que tem um carater produtivo no pro-cesso de criar;ao. podemos deduzir quee porque a obra avanca segundo umprocesso. A formulacao em processosignifica que a obra e um processo detormecso. Conforme Pareyson (t 991) "aobra e 0 pr6prio processo de formacaolevado a termo. Assim, cada momentadeste processo contern em si todo 0movimento".

    E se a obra e, ao mesmo tempo,um processo de tormecio e um proces-so no sentido de processamento. detormeceo de Significado. como afirma-

    PortoArte, Porto Alegre. v.T, n.I,3. p.81-95, nov. 1996 _

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    7/15

    Daprancaa teorla. tres InstanclasmetodoJ.sobrea pesquisa em poeticas visuais 87

    do acima, e porque, de alguma forma,a obra interpela os meus sentidos, ela eum elemento ativo na elaboracao ou nodeslocamento de significados jll esta-belecidos. Ela perturba 0 conhecimentode mundo que me era familiar antesdela: ela me processa. Tambern nestesentido, de fazer um processo a al-guern. sim, somos processados pelaobra. A obra, em processo de instaura-~ao, me faz repensar os meus parame-tros, me faz repensar minhas posicoes.o artista, as voltas com 0processo detnstauracao da obra, acaba por proces-sar-se a si mesmo, coloca-se em pro-cesso de descoberta. Descobre coisasque nxo sabia antes e que s6 pode teracesso at raves da obra.

    Tudo ficaria muito pobre se pen-sassemos a obra como um mere pro-duto final, resultado de um projeto es-tabelecido a priori, sem levarmos emconta os acasos que sao inerentes aoprocesso de crtacao. Pensar a obracomo processo, implica pensar esteprocesso nao como meio para atingirum determinado fim - a obra acabada -mas como de vir. Implica pensar que aobra nao avanca segundo um projetoestabelecido, ela avanca segundo este apriori: a obra esta constantemente emprocesso com elamesme.

    Como fazer, para deixar a obra seprocessar etreves de mim? Bachelardfala sobre 0"racionalismo aberto", istoe, um racionallsmo que se ultrapassaem se criendo. Para que esta estrutura

    nascente, que se estabelece logo aosprimeiros investimentos do artista, pos-sa se concluir como uma especie de 16-gtca interna, e necessario muitas vezes,dar lugar ao nao saber, ficar atento aosimprevlstos, "ouvlr" e "ver" nossospensamentos. Se formos atentos, se-guldamente as Idelas veern em rno-mentos mais inusitados e, as vezes, in-oportunos. A obra se faz bem antes decomecarrnos a faze-Ia no atelier. E noatelier, sempre que cornecarnos a tra-balhar uma ldeia imediatamente lnstala-se0conflito. 0 que seria este conflito?A lrnpressao de que a obra escapa, deque nao estamos sabendo muito bem 0que estamos fazendo, que tudo podedar errado. A obra apresenta-se tam-bern como um enigma, nao podemosimpor uma vontade que vem unlca-mente do nosso raciocinio intelectual.A obra final e muitas vezes 0 inverso doque pretendiamos fazer. Kandinsky, noinfcio do seculo, ja coloca enfase na suateoria, nos processos internos do artistaem detrimento da representacao domundo externo. Escreve que toda obratem uma construcao nao evidente, es-condida, que se desprende insensivel-mente da imagem. "Esta construcao es-condida pode ser constituida de formasaparentemente jogadas sobre a tela,que nao teriam, tarnbem aparente-mente, nenhuma Iiga~o entre si. Mas 0que e a ausencla exterior de llgacao. esua presence interior. 0 que na obra eexteriormente descosturado e interior-

    _______________ Porto Arte, Porto Alegre, v.7, n.13, p.81-95, nov. 1996

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    8/15

    88 SandraRey

    mente fundido num todo" (KAN-DINSKY, t 989, p.193- t 94). K1ee, tam-bern nos induz pensar a obra comoprocesso, como natureza neturente, naonatureza neturede. "a arte nao reproduzo visTvel, torna vlslvel", 0 "tornar visi-vel" coloca e acentua a enfase na obracomo processo, nao como produto fi-nal.

    Pareyson afirma que e como se"a obra comportasse sua propria regra eesta regra so e conhecida com a obraacabada. (... ) Porque na obra a fazer, 0modo de faze-Ia, nao e conhecido apriori com evidencla. mas e precisodescobrl-lo e encontra-lo, e para des-cobrir como fazer a obra e necessartoproceder por tentativas, por tateamen-to, inventando varlas possibilidades,testando-as e selecionando-as de talmaneira que, de tentativa em tentativa,a cada operacao, se consiga inventar apossibilidade que se desejava, isto e, 0surgimento de obre",

    Se a obra se faz, geralmente nummomento que nao temos total menteconsclencla, e sempre a posteriori queteremos a total cornpreensao do quefazemos. A pesquisa teorlca pode virtarnbem, em auxlllo, a c1arear certasposrcoes, a aportar solucoes para pro-blemas enfrentados na pratlca, a confe-rir poslcoes de artistas que apresentemproblernatlcas semelhantes as nossas.Parece que exlste no processo de crta-< ; : 0 3 . 0 , um ponto de cegueira para 0 ar-tista, e e ai que a obra se processe e

    consequenternente me processe. Quasepoderiamos dlzer: quando eu fico cego,e ai que a obre se faz. 0processo decrtacao e este enfrentamento desen-contrado entre caos e ordem, entre de-sequilfbrio e equilibrio. E preciso apren-der a suportar as tiranias que as incerte-zas provocam. 0caos da obra se fa-zendo, nao e confusao indiferenciadamas a obra "em luta"4 com seu criador.

    o elemento agon no processode tnstauracao da obra nao se da semuma Impltcacao imediata: a obra emprocesso nao pode ser pensada comomeio para atingir um determinado fim,mas como devir. Um vir a ser que seinstaura no processo de crlacao de umaobra e que pode continuar Indefinida-mente, estabelecendo dlalogos, idas evindas da obra consigo mesma ou entreuma obra e outra.

    A obra em devir aproximaria aldela de cosmos Heracllttano? Para He-raclito, 0cosmos comporta tanto a or-dem como a desordem em virtude daunidade dos contrarlos. "0 todo estanas partes, assim como as partes estaono todo, ao homem cada descobrir a simesmo assim como a razao imanentede todas as coisas, implfcita na lei dodevlr." Sim, 0 processo de crtacao ea1goque se apresenta na ordem do caos,mas se aventurar neste processo, lrnplt-ca tomar consclencla que este "caos"nao e a desordem total ou a confusaoindiferenciada. E esta alternancla que seestabelece logo aos primeiros investi-

    Porto Arte, Porto Alegre, v.7, n.13, p.81-95, nov. 1996 _

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    9/15

    Daprancaa teoria: tres instanclasmetodoL sobrea pesquisaem poeticasvisuais 89

    mentos na obra, entre 0saber e 0naosaber.

    A elternancia entre saber e naosaber, na obra em processo de instaura-~o, nos coloca as voltas na construcaode c6digos que se inventam J medidaque se emmdem? estabelecendo aideia de jogo como parte Integrante doprocesso. [ogo nao como algo deterrnl-nado por regras estabeleddas a priori,mas um [ogo onde as regras sao in-ventadas e transformadas a medlda quea obra se faz. Uma espede de "jogoideal" segundo Deleuse (1969), quenao comporta regras predeterminadas,que nao tem venddos nem vencedo-res, jogo, segundo ele, de lnocenclacomo "no outro lade do espelho" dasaventuras de Alice, onde 0endereco eo acaso nao se dlstlnguem mais, pare-cem nao ter nenhuma realidade. Estejogo ideal para Deleuse, e reservado aopensamento e a arte. "Mas este jogoque nao existe fora do pensamento, eque nao produz outro resultado a naoser a obra de arte, e tarnbern aquilopelo qual 0pensamento e a arte se tor-nam reais e perturbam a realidade, amoralidade, e a economia do mundo."

    METODOLOGIA DE PESQUISATE6R1CA

    o pressuposto fundamental paraa pesqulsa em artes plasttcas pode serenundado da seguinte maneira: toda

    obre contern em si mesmo a sua di-mensso teortce. Isto Impllca que a obrapossui um sentldo alem do que vemos.A pesquisa em Poetlcas Visuaisparte da maneira como a obra e felta.Maneira, meniere na lingua francesa,vem de mao (main).6Para estudar aobra final do ponto de vista da poietlcae predso obter todas as tnformacoespossiveis sobre a tecnlca. procedimen-tos e metodologia do artlsta.

    o que serla a teoria neste caso?E a colocacao em cena de Idelas, sejasob a forma plastlca, se]a sob a formade escrita para aproximar 0que pareceafastado. Os conceitos tem que ser tl-rados da tecnlca, dos procedimentos,da maneira de trabalhar, do processode tnstauracao da obra,

    Mas e preclso observar que,tarnbern por esta peculiarldade, a pes-quisa em artes plasttcas requer umametodologia diferendada: 0pesoutse-dor produz seu objeto de estudo eomesmo tempo em que desenvolve apesqutse teorice. Ele predsa produzlrseu objeto de investlgacao (sua obra)para dai extrair as questoes que lnves-ttgara pelo vies da teoria. E complete-mente diferente do te6rico que se de-bruca sobre anallses de obras acabadas.J . Lanni, dlretor do Centro de Pesquisasem Artes Plastlcas da Universldade deParis I. conta uma pequena hist6ria parametaforizar uma questao crucial dapesquisa em Poettcas Visuals: ele dizque a pesquisa e como se estlvessemos

    _______________ PortoArte, PortoAlegre, v.7, n.13, p.81-95, nov. 1996

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    10/15

    90 SandraReyrealizando uma corrida a cavalo, bemmontados em nossa sela, ate que derepente tem um outro cavalo, sem j6-quei, que vem se aproximando e queval nos ultrapassar a todo galope. Apesquisa "acontece" se conseguirmospular do cavalo que estamos montados,para este cavalo que passa de maneiradesenfreada. E ele dlz que sabe quandoisto aconteceu, quando estudantes,muitas vezes em final de tese, Ihe che-gam com esta noticia: mudei meu temade pesquisal

    Em Poeticas Visuais, todo desafioconsiste em saber descolar as questoesmais pertinentes que a pratica suscita.o objeto de estudo nao existe comourn dado preliminar no referencial teorl-co, como na pesquisa em Hist6ria daArte, por exemplo. Ele precisa ser cria-do com 0 corpus da pesquisa e ser lan-cado como uma seta. Sao a s interpela-c;:oesda praxis que dtrectonarao a pes-quisa te6rica. Podemos. strn, lanc;:armao de algumas estrateglas, como porexemplo, realizar decalagens. e melhorterminar 0 trabalho pratico antes da re-dacao de qualquer texto final. Mas arealidade e que grande parte das duaspesquisas, a pratlca e a te6rica, sao Ie-vadas concomitantemente. Entao,manter um dlario de anotac;:6es (secre-to) durante 0 processo de elaboracaodo trabalho prattco, onde se possa es-crever todos os nossos pensamentos,sem censura, tem se confirmado comofundamental para a redacao de qual-

    quer texto te6rico e/ou poetlco. Tam-bern e fundamental a elaboracao de fi-chas de anotacoes sobre obras. artistase conceitos que possam ser colocadosem relacao com 0 trabalho realizado.

    Retomemos a poietlca, uma vezque a pesquisa em Poetlcas Visuais seap6ia no conjunto de estudos queabordam a obra do ponto de vista desua instauracao, no modo de exlstenclada obra se fazendo. A poletica pressu-poe tres parametres fundamentais: 1/-berdade (expressao da singularidade),errabilidade (direito de se enganar), efi-ceddede (se errou tem que reconhecerque errou e corrlglr 0errol.

    A poietlca leva em conta a cons-titulcao de significado a partir de comoa obra e feita. Por exemplo: Proust es-creveu a noite. Ea tnversao e 0tema detodo 0 romance La recherche du tempsperdu.

    Na arte conternporanea se naoconhecemos a proposta e 0modo detrabalhar do artista, dificilmente conse-guimos apreender a obra. Temos queter expllcacoes sobre a pro posta e 0modo de fazer do artista. A com preen-sao da obra passa pela Iinguagem. naopodemos entender sem a palavra,muito embora e preciso aprender aconviver com este paradoxo: a palavrajamais podera traduzir a obra. A lingua-gem nao substitui, mas ela e como 0outro lado da mesma moeda. Se qul-sessernos lanc;:armao a uma rnetafora,poderfamos dlzer que a obra e a lin-

    PortoArte, Porto Alegre. v.7, n.13, p.81-95, nov. 1996 _

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    11/15

    Da p ranca a teoria: tres tnstanctas metodol. sobre a pesquisa em poeticas visuals 91

    guagem sao como a alma que naopode existir sem 0corpo. Parece entao,que 0 importante e invisivel aos olhos,mas predsa ser desvendado. Conexaoentre linguagem e pratlca e tao lndisso-ciavel quanto 0 corpo e a alma: umprecisa do outro para existir.

    Quais seriam os instrumentospara uma analise poietlca de obras deoutros artistas que queiramos estudarpara coloear em relacao com nosso tra-balho? Depoimentosdizendo se 0artistaesta vivo, entrevis-tas e catalogos, saouma Fonte preciosaa obra original e es-critos de artistas.Estas sao lnforrna-coes brutas neces-sarlas para fazer e responder perguntas.

    Uma observacao importante e ade partir do que parece contradltorlo.porque os artistas muitas vezes falamde tmpressoes que so eles tlverarn, oude sensacoes e percepcoes singulares.Na contradlcao pode estar contido 0nucleo das coisas. Se e na obra que oscontraries se unem, se 0processo decrlacao se da como se estivessernospercorrendo a superflcle de uma fita deMcebius (passamos do exterior para 0interior sempre percorrendo a mesmasuperffcle), na contradlcao pode estar aluz de algo que esta escondido na obra,Se esta dito nos escritos do artista, esta,de alguma forma, expresso na obra. E

    precise fiear atento ao que, a primeiravista, achamos sem irnportancia.

    Um instrumento importante saoas anallses comparativas. 0 compara-tismo diferencial consiste na tarefa deaproxlmar 0que parece muito dlferen-te, diferenciar 0 que parece muito se-melhante. Por exemplo, 0Nu descendoa escada, de Duchamp, seguidamente einterpretado em alguns livros de Hlsto-ria da Arte como um quadro futurista.

    Mas, segundo asdedaracoes de Du-champ, ele nao es-tava nem um poucointeressado nas ques-toes da veloddadecomo os futuristas, esim, no estudo dodesdobramento do

    movimento a partir das experlenciascom a cronofotografia. 0 conceito per-tinente para esta obra, segundo 0pro-prio Duchamp, e ~ conceito de "retar-damento". Por isfo nao podemos nosater apenas na aparencla da obra, masprocurar desvendar os conceitos que 0artista esta veiculando. E importanteprocurar similitudes entre colsas quesao diferentes e dlferencas que, a prl-meira vista, podem parecer muito se-melhantes.

    E precise pensar que os obsta-culos sao inerentes a pesquisa. E preci-so saber que quanto mais obstaculos,melhor e a obra, mais relevante e apesquisa.

    ______________ Porto Arte, Porto Alegre, v.T, n.13. p.81-95. nov. 1996

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    12/15

    92 Sandra Rey

    A esaita tambern e urn proces-so. Formulamos uma hipotese supondoque vamos encontrar as respostas, mastambern nao e segura que nao tenha-mos que mudar 0 rumo. A esaita tracaseu pr6prio trajeto. Tarnbern se revelacomo processo de crtacao. Nao exlstediferenca fundamental entre pratlca eteoria.

    Para descobrir como a obrafunciona precis amos de ferramentasteoncas. textos de hlstorla da arte,de filosofla, entrevistas e depot-mentos de artistas, livros de fisica,romances, etc. Trata-se de ver comoa teoria de Benjamin por exemplo,pode apllcar-se a tal obra. Mas tam berntrata-se de ver como outra obra podeservir como exemplo de enundadosteortcos,

    Podemos nos servir de varlosauto res. mas como as vezes e irnpor-tante reafirmar 0 obvlo, os mais Oteissao os maiores. Se encontramos porexernplo, em Dldi-Huberman, urn dosmais brilhantes historiadores da artefrances na atualidade, uma cita~o deMerleau-Ponty que podemos reladonarcom n0550 trabalho, e importante bus-car os conceitos na fonte, entao para apesquisa e preciso chegar ate Merleau-Ponty. Os grandes pensadores compreen-deram muitas coisas e podemos catalo-ga-les invariavelmente sob estas tresqualidades: possuem profunda enver-gadura te6rica, e ao mesmo tempo. saodaros e poetlcos.

    Durante a pesquisa, e importantefalar sobre 0 trabalho, expJicar para aspessoas 0 que estamos fazendo. Fazerurn esforco em relacao A dareza. Adareza e a complexldade tern que en-trar na estrutura do texto. Matisse. Du-champ, K1ee, por exemplo, tern posl-~oes muito daras a respeito de suasobras. Os grandes artistas. nao custareafirmar. assim como os grandes pen-sadores, sao ao mesmo tempo profun-dos, dares e poetlcos,

    E.e tam bern importante lembrarque a obra constitui-se a partir da cul-tura que temos, e isto se cultiva.

    METODOLOGIA DE.TRABALHO COME.STUDANTES

    De urn modo muito simples, apesquisa e 0 que permite que, quandoos estudantes me fazern uma perguntaeu tenha uma resposta, mas 0 inversotambern se faz pertinente: quando eufaco uma pergunta, eles tern 0 com-promisso de achar uma resposta.

    Como barornetro, os estudantesde poetlcas visuais, que sao eminente-mente pratlcos, 50 devem esaever 0queinteresse d eles. Se interessa a eles e quepode interessar aos outros. entao pode-se buscar a motivacao para esaever bern.o metodo tern que ser ao mes-mo tempo rlgoroso e aberto. Cada es-tudante tern que partir de sua pr6priaobra. Falar da propria obra e dlflcll. jus-

    Porto Arte, Porto Alegre, v.T, n.13. p.81-95. nov. 1996 _

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    13/15

    Dapratica 1 1 teoria: tres instAnciasmetodo!. sobre a pesquisa em poettcas visuais 93tamente porque se ela constitui-secomo obra, ultrapassa, num primeiromomento, nosso conhecimento racionaJe intelectual das coisas.

    Algumas estrateglas. tern rnos-trado eficacldade tanto no meu trabalhode pesquisa, como na orlentacao demeus alunos:

    a) manter um dlario secreto,onde se possa descrever as obras reali-zadas, contar como as fez. t importantecarregar este dlarlo sempre consigo,porque as ideias nao tern hora marcadapara chegar. Usa-se escrever na paglnadirelta, e deixa-se a paglna esquerdapara fazer cornentarlos e acrescentarnovas ldeias e .anotacoes no decorrerdo tempo da pesquisa.

    Na organlzacao do diario e precl-so datar cada intervencao, anotar 0quefazemos e 0que queremos fazer, 0quelemos, e escrever tudo que passa pelacabeca, sem censura. Por esta razao elee secreto. Assim, temos um testernu-nho do processo subterraneo da obra.Todas as ldelas que se teve, 0 que folrealizado e0que nao foi;

    b) estabelecer pequenos contra-tos de trabaJho que disciplinam 0 desen-volvimento da pesquisa. Isto porquepara escrever e preciso dedicar muitotempo. Funciona por pequenos con-tratos. Em vez de marcar a data paraentrega do trabalho final, marcar eta pasde elaboracao com datas precisas.

    E os bloqueios? As vezes podehaver bloqueios. Pode "bloquear" 0

    texto ou as obras. 0 professor-orientador, neste caso, deve ter a habl-lidade de saber identificar 0que 0alu-no nao disse. Trazer a luz 0que 0estu-dante nao disse, a fim de tentar deslln-dar 0 bloqueio. Neste caso, tem semostrado eficaz tracar pequenas metascom datas precisas, estabelecendocontratos entre professor e estudante.

    Se as leituras sao multo lmpor-tantes, ver exposlcoes tarnbern e es-sencial. 0 grupo igualmente e um re-curso muito importante. t preciso estl-mular os estudantes a criar elos entre osprofessores e colegas do curso.

    Na fase da redacao, e Importantesaber que 0primeiro texto sera ruim, 0segundo e 0 terceiro geralmente tam-bern. Mas se tiver que recornecar dezvezes, e preciso ter a humildade de fa-ze-lo. t importante reallzar exer6ciosde redacao, Escrever pequenos ensaios.Como exercicio de redacao pode sereficaz que cada paragrafo possa receberum titulo. 56 trocar-de paragrafo quan-do mudar de assunto.

    A hip6tese estabelece 0 fio con-dutor para a pesqulsa e na conclusao epreciso dar uma resposta provis6riapara a hip6tese. Num ambito universi-tarto, a pesquisa com enfase em poen-cas visuais tem que trazer contributcoesa pesquisa geral, t necessarto asslnar 0compromisso com a producao de co-nhecimento. Em hip6tese alguma, adlssertacao de mestrado ou a tese de

    ______________ Porto Arte, Porto Alegre. v.7. n. f 3, p.8 f -95, nov. f 996

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    14/15

    94 Sandra Rey

    doutorado deve limitar-se a cornptlacaode conhedmentos ja veiculados.

    Na introducao, e importante re-digir claramente a hip6tese perseguida.Uma boa maneira de organizar a reda-e;.aoe dlvldl-la em itens. e a cada itematribuir um titulo.

    Quando usar 0eu, 0nos e 0lrn-pessoal, na redacao? A primeira pessoado singular refere-se a tudo que e es-tritamente pessoal. como supoe-se sero caso da producao plastlca. 0 nos,quando teorizamos, quando nos referl-mos a conceitos ou idelas de autores,com a citacao, referenda, ou nota derodape para expllcacoes complemen-tares, e finalmente usamos 0 impessoalquando nos referimos a procedimentos,ou mencionamos tecnlcas ou ideias dedomInio comum. t preciso ter dare

    que a originalidade de uma dlssertacao,esta no fio condutor que propomospara explorar 0 campo de conheci-mento que dellmitamos. assim como. efundamental mente. na articulae;.ao quefazemos entre pratlca e teoria.o surnario e a apresentacao dadlssertacao devem. de algurna forma.remeter ao trabalho prattco. t muitoimportante a forma de apresentar a dis-sertacao. unlversitaria, mas levando emconta a obra. Entrar no jogo da Univer-sidade, mas subverter tarnbern. A pes-quisa em artes plasttcas tem que ser rea-lizada com toda seriedade. mas deveser feita com muito prezer. t 0 prazerda descoberta que mobiliza a pesquisa.

    E. final mente. a condusao nao ealgo que fecha. mas algo que abre.

    Como a obra.

    Porto Arte. Porto Alegre. v.7, n.13, p.81-95. nov. 1996 _

  • 5/10/2018 Sandra Rey - Da Pratica a Teoria

    15/15

    Da pratica A teoria: tres instancias metodol. sobre a pesquisa em poetlcas visuais 95

    NOTA1 Sem grifo no original.

    REFERENCIAS BIBL IOGRAF ICASCABANNE. Pierre. Marcel Duchamp: engenhelro do tempo perdido. Sao Paulo: Perspectiva.

    1987.DELEUZE. Logique du sens. Paris: Editions de minuit. 1969.HERACLITO. Fragments. Paris: PUF. 1987. Texto estabelecldo, traduzido e comentado por

    Marcel CONCHE.KANDINSKY. W. Du spirituel dans l'ert et dans 1.1peinture en partlculier. Paris: Denoel, 1989.KLEE. P. Lapensee creetrtce, eatts sur I'srt I. Paris: Dessain et Tolra, 1980. Textes recueillis et

    annotes par JUrgSpiller.MERLEAU-PONTY. M. Phenomenotogte de 1.1perception. Paris: Gallimard. 1992.PASSERON. R. Pour une philosofie de 1.1creation. Paris: Klincksieck. 1989.PAREYSON. L. Estetice, teorie da tormetivtdede. Petr6polls: Vozes. 1991.

    _ SANDRA REY(Brasil): Artista Plastica, Doutora em Artes e Clenclas da Arte- opcao Artes Plasttcas, pel a Universidade de Paris I - Pantheon - Sorbonne. Franca.

    Professora Orientadora do Mestrado em Artes Visuaisna Universidade Federal do Rio Grande do SuI.

    Pesquisadora/CNPq.

    ______________ Porto Arte, Porto Alegre. v.7. n.13. p.81-95. nov. 1996