SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS...

14

Click here to load reader

Transcript of SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS...

Page 1: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉDO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA

DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONALLegal certainty and tax assessments: The relevance of the taxpayer's good faith in the

face of legal uncertainty factors of the national tax systemRevista Tributária e de Finanças Públicas | vol. 129/2016 | p. 321 - 339 | Jul - Ago /

2016DTR\2016\22243

Gustavo Perez TavaresMestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialistaem Direito Processual Tributário pela COGEAE/PUC-SP. Bacharel em direito pelaUniversidade Mackenzie. Advogado em São Paulo. [email protected]

Área do Direito: TributárioResumo: O presente trabalho parte da análise da situação de “primeiro intérprete” emque se encontram os contribuintes (em sua grande maioria, pequenas e médiasempresas), e a complexidade e volume da legislação tributária, e conclui pelanecessidade da consideração da boa-fé dos contribuintes quando da lavratura de autosde infração, sob pena de se ferir a segurança jurídica do sistema constitucionaltributário.

Palavras-chave: Tributário - Boa-fé - Segurança jurídica - Infração Fiscal - Tolerância.Abstract: This work begins with the analysis of the "first interpreter" situation in whichtaxpayers (for the most part, small and medium enterprises) are held, and thecomplexity and volume of tax legislation, and concludes by the necessity of consideringthe good faith of taxpayers when the issuance of tax assessments, so as not to hurt thelegal certainty of the constitutional tax system.

Keywords: Tax law - Good Faith - Legal certainty - Tax Assessment - Tolerance.Sumário:

1Introdução - 2Breves notas sobre segurança jurídico-tributária - 3Quantidade ecomplexidade da legislação como fatores de insegurança do sistema tributário - 4Arelevância da boa-fé do contribuinte em autuações fiscais - 5Conclusão - 6Referênciasbibliográficas

1 Introdução

A atual complexidade das relações sociais em geral e, mais especificamente, dasrelações jurídico-tributárias, demanda da comunidade jurídica uma reavaliação depreceitos há muito tidos como certos e incontestáveis. Não é mais possível a idealizaçãosimplificada e abstrata das relações jurídicas.1 Uma dessas idealizações que não maiscabem refere-se ao sujeito (contribuinte) onisciente da assustadora quantidade ecomplexidade da legislação tributária, do que decorre a sua responsabilização objetiva eimediata em qualquer infração à legislação tributária.

Com efeito, havia no Brasil uma cultura arraigada, em parte da comunidade jurídica, emanalisar as infrações à legislação tributária sob uma ótica dita objetiva, no sentido deque, verificada a infração, deve necessariamente ser aplicada a respectiva penalidade,independentemente das circunstâncias nas quais ela ocorreu. Não havia espaço parasubjetivismos, análise de circunstâncias de fato, etc.

Basicamente, parcela dos aplicadores do direito tributário era fortemente vinculada àdicção do artigo 136 do Código Tributário Nacional, o qual propagaria ser “objetiva” aresponsabilidade do agente por infrações tributárias. Importante transcrever o referido

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 1

Page 2: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

dispositivo para melhor elucidarmos a questão:

“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações dalegislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e daefetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.”

A melhor doutrina sempre alertou para o fato de que essa responsabilidade por infraçõesnão deveria ser interpretada objetivamente. Nesse sentido Hugo de Brito Machado2

afirma que “O art. 136 do CTN não estabelece a responsabilidade objetiva em matéria depenalidades tributárias, mas a responsabilidade por culpa presumida do agente”. Esegue o ilustre professor piauiense demonstrando a diferença entre a responsabilidadepor culpa presumida do agente e a tantas vezes propagada “responsabilidade objetiva”:

“A diferença é simples. Na responsabilidade objetiva não se pode questionar a respeitoda intenção do agente. Já na responsabilidade por culpa presumida tem-se que aresponsabilidade independe da intenção apenas no sentido de que não há necessidadede se demonstrar a presença de dolo ou de culpa, mas o interessado pode excluir aresponsabilidade fazendo a prova de que, além de não ter a intenção de infringir anorma, teve a intenção de obedecer a ela, o que não lhe foi possível fazer por causassuperiores à sua vontade.”

E é justamente nesse ponto específico, ou seja, na intenção de obedecer à normatributária (complexa e excessiva), que a relevância da boa-fé se aprumará, adianteneste trabalho.

Mais recentemente, por influência do Superior Tribunal de Justiça, essa visão passou aser um pouco abrandada. Destacamos, nesse sentido, o Recurso Especial 1.148.444/MG,de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que, tratando de infrações relativas aorecebimento de mercadorias de fornecedores posteriormente declarados inidôneos pelafiscalização, garantiu aos adquirentes o direito ao creditamento do ICMS incidentenessas aquisições. Confira-se a ementa:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DANÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS.ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.

1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pelaempresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar oaproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vezdemonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório dainidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (Precedentes das Turmasde Direito Público: (...) 2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside naexigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente àassunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco,razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvodisposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributáriaindepende da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza eextensão dos efeitos do ato" (norma aplicável, in casu, ao alienante). 3. In casu, oTribunal de origem consignou que: "(...)os demais atos de declaração de inidoneidadeforam publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notasfiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque doICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). Noque toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento àsempresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204),sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho deContribuintes ." 4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradasinidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado),uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS. 5. O óbice da

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 2

Page 3: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária residena tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notasfiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máximetendo em vista o teor do artigo 136, do CTN. 6. Recurso especial desprovido. Acórdãosubmetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.” 3

(destacamos)

Tais autuações foram muito frequentes há alguns anos em todos os Estados. Nelas, oFisco glosava o crédito escriturado pelo adquirente das mercadorias, aplicando-lhepesadas multas, sob o fundamento de que não importaria a sua boa-fé na aquisição dasmercadorias, uma vez que a responsabilidade por infrações seria objetiva, a teor doindigitado art. 136 do CTN.

Em nosso entender, não poderia ter maior acerto o E. STJ, uma vez que, se o próprioFisco, com todo o seu aparato, tem dificuldades em determinar a idoneidade dosfornecedores, o que se dirá dos adquirentes dessas mercadorias.

Pela reiteração da matéria, o STJ editou a Súmula 509, com o seguinte teor: “É lícito aocomerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscalposteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra evenda”.

Os Tribunais parecem ter, em alguma medida, incorporado essa orientação em seusjulgados sobre a matéria. Vamos nos ater, no presente trabalho, ao Estado de SãoPaulo:

“TRIBUTÁRIO. ICMS. O contribuinte de boa-fé que adquire mercadoria de empresaposteriormente declarada inidônea pode aproveitar o crédito do ICMS, uma vezdemonstrada a materialidade da compra e venda efetuada. O caso não admiteresponsabilização objetiva. Súmula 509 do STJ. Sentença mantida. Recurso desprovido.”4 (destacamos)

O afastamento da responsabilidade objetiva, contudo, não é unanimidade no próprioTribunal de Justiça de São Paulo. Confira-se, por exemplo, outro recente julgado (diasantes do julgamento anteriormente citado) em sentido diametralmente oposto:

“APELAÇÃO – ICMS – ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO – NOTAS FISCAIS –AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE IDONEIDADE – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO –REGULARIDADE – ARGUIÇÃO INVIÁVEL – PREVALÊNCIA DA AUTUAÇÃO.

A pretensão de anulação de auto de infração que tem como fundamento a falsadeclaração quanto ao destinatário da mercadoria indicado nas notas fiscais, somentepode ser revista com demonstração suficiente e formal de que ocorreu vício no atoadministrativo, nãosendo a singela arguição de boa fé suficiente para o desfazimentodaquele procedimento, cujo trâmite tenha obedecido ao formalismo legal e regulamentare atendido ao princípio da ampla defesa. Sentença mantida. Recurso negado.5

Não vamos entrar nos detalhes de cada caso, os quais, obviamente, podem terparticularidades que levaram os julgadores a entender por um ou outro desfecho. Basta,no entanto, sabermos que a tese da responsabilidade objetiva do contribuinte porinfrações já foi mais forte, contudo, ainda existe em nossos Tribunais, notadamente emmatérias ainda não analisadas pelo STJ.

O que pretendemos, nesse trabalho, é propor um passo adiante na consideração daboa-fé do contribuinte em autuações fiscais.

Em nosso entender, em alguns casos, a prévia análise da boa-fé do contribuinte érequisito necessário para a validade da autuação fiscal, tendo em vista, basicamente, (I)a necessidade de se manter um estado de segurança jurídica em matéria tributária; (II)o grande fator de insegurança que representa a quantidade e complexidade da legislação

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 3

Page 4: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

tributária; (III) a inserção do contribuinte como primeiro interprete da legislaçãotributária; e (IV) a necessidade de humanizar as relações entre Fisco e contribuinte(mediante posturas de tolerância, por exemplo), em busca de um cumprimentovoluntário das obrigações tributárias e a consequente redução de conflitos.

Com efeito, entendemos ser dever das autoridades fiscais perquirir a boa-fé docontribuinte na aplicação da legislação tributária, antes de lhe aplicar qualquer punição,como forma de consagrar o princípio da segurança jurídica. Equivale dizer, a boa-fé éelemento relevante nas relações entre Estado-Fisco e contribuintes, e, mais do que isso,em alguns casos chega a ser de observância cogente pelas autoridades fiscais, sob penade invalidade da autuação.

É o que procuramos demonstrar a seguir.2 Breves notas sobre segurança jurídico-tributária

A segurança jurídica em matéria tributária tem ganhado a atenção de nossa doutrina.Segurança jurídica, para Roque Antonio Carrazza,6 “ajuda a promover os valoressupremos da sociedade, inspirando a edição e a boa aplicação das leis, dos decretos, dasportarias, das sentenças, dos atos administrativos etc.”.

Carrazza7 defende a ideia de que a segurança jurídica seria o próprio fim do sistemajurídico, pautado no binômio certeza e igualdade:

“De fato, como o Direito visa à obtenção da res justa, de que nos falavam os antigosromanos, todas as normas jurídicas, especialmente as que dão efetividade às garantiasconstitucionais, devem procurar tornar segura a vida das pessoas e das instituições.

Muito bem, o Direito, com sua positividade, confere segurança às pessoas, isto é, ‘criacondições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seuspróprios atos e dos atos dos outros’.

Portanto, a certeza e a igualdade são indispensáveis à obtenção da tão almejadasegurança jurídica.” (grifos originais)

Heleno Taveira Torres,8 após fazer duras críticas ao tratamento do tema – banalizado,em seu entender – e cobrar uma postura rigorosa na construção semântica e funcional,também assenta a ideia de que a segurança jurídica representa o fim do ordenamentoconstitucional brasileiro:

“No constitucionalismo do Estado Democrático de Direito a segurança jurídica vê-seincorporada ao ordenamento como garantia constitucional, e não apenas comodecorrente da estrutura sistêmica ou da certeza do direito (segurança jurídica formal),mas como meio de efetividade dos direitos e liberdades fundamentais (segurançajurídica material), como proteção a esses direitos. A segurança jurídica, nessa totalidadeformal e material, converte-se em fim do ordenamento, como eficácia do sistemajurídico haurida a partir do interior da Constituição. Daí comumente dizer-se que oEstado Democrático de Direito é o ‘Estado de Segurança’. Com maior rigor, melhor seriadizer que a Constituição na atualidade é a ‘Constituição de Segurança’” (grifos originais)

Torres9 propõe uma definição funcional de segurança jurídica, como:

“princípio-garantia constitucional que tem por finalidade proteger direitos decorrentesdas expectativas de confiança legítima na criação ou aplicação das normas tributárias,mediante certeza jurídica, estabilidade do ordenamento ou efetividade de direitos eliberdades fundamentais”.

O autor10 diferencia a segurança jurídica do atual sistema constitucional da simples ideiade certeza do direito que, para ele, sempre existiu:

“O ideal de segurança, a exemplo da expectativa de certeza das leis aplicáveis, ao longo

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 4

Page 5: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

da formação histórica experimentada pelos Estados, sempre existiu. Sua tradução emsegurança jurídica é que nos chega em época mais recente, com vistas a conferirestabilidade às relações econômicas e aos direitos de propriedade, tutelando-os eatribuindo-lhes a necessária condição de juridicidade. Neste evoluir, do liberalismoburguês ao Estado do bem-estar social, do individualismo jurídico para ointervencionismo legislativo, a segurança jurídica ‘individualista’, fundada unicamente nacerteza da legalidade, vê-se secundada pela segurança jurídica ‘social’, ao amparo dointervencionismo estatal que tolhe os excessos de liberalismo, ao afirmar exigências deordem pública, econômicas e sociais, no interesse geral.”

Em arremate, Heleno Torres11 afasta o que chama de uma posição jusnaturalista sobre otema, lecionando que a segurança jurídica não é um fim metafísico ousupraconstitucional, mas sim deve ser compreendida a partir do sistema jurídico,“entendido como uma forma que elabora e reelabora seus fins a partir de seu interior esegundo valores institucionalizados e mediatizados por princípios”.

Humberto Ávila12 ao se debruçar sobre o tema, analisou detalhadamente todos os seusaspectos, destacando se tratar de uma garantia que ultrapassa a segurança física oupsicológica, estando no mesmo patamar de valores sociais objetivos como o direito àliberdade, à igualdade e à propriedade (art. 5.°, CF).

O autor gaúcho13 também qualifica a segurança jurídica como “norma-princípio”, pois,“pelo exame de sua estrutura e das suas partes constituintes, verifica-se que eladetermina a proteção de um ideal de coisas cuja realização depende decomportamentos, muitos dos quais já previstos expressamente”.

Ávila14 descreve o aspecto material da segurança jurídica com base na ConstituiçãoFederal de 1988, com um estado de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade.

Entre diversas outras considerações que Ávila15 faz acerca da segurança jurídica, doisaspectos são mais relevantes para o deslinde desse trabalho. O primeiro diz respeito aossujeitos que devem garantir a segurança jurídica, cuja resposta é, simplesmente, “ostrês Poderes”. O segundo e consequente aspecto é a quem se destinaria a segurançajurídica, cuja resposta é “ao contribuinte”, assim entendido como o “cidadão comum enão o especialista em direito tributário”.3 Quantidade e complexidade da legislação como fatores de insegurança do sistematributário

Como visto, a segurança jurídica deve ser objetivada como um dos próprios fins dosistema constitucional tributário. Equivale afirmar que todo e qualquer ato deve serpensado tendo em vista esse fim.

Há, no entanto, diversos fatores de insegurança jurídica dentro do sistema, causadospelos Três Poderes, como a defesa de interesses de classes pelos legisladores, na ediçãodas leis, a morosidade do Poder Judiciário em resolver questões de relevância para oscontribuintes, a alteração de entendimento da Fiscalização sobre determinadaclassificação fiscal, etc. São diversos os fatores que poderíamos exemplificar.

Nesse momento, no entanto, nos interessa focarmos em um fator específico, qual seja, aquantidade e complexidade da legislação tributária. Com efeito, sabemos que aquantidade e complexidade da legislação tributária são um problema global. Contudo, noBrasil, esse fator toma proporções astronômicas.

Com efeito, de acordo com um levantamento realizado pela KPMG,16 o Brasil ocupa apior colocação entre os países da América Latina na quantidade de horas gastas para ocumprimento das obrigações tributárias, chegando ao estonteante número de 2.600horas gastas anualmente apenas para o cumprimento dessas obrigações.

Imagine o leitor, o robusto aparato administrativo que uma empresa precisa ter para

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 5

Page 6: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

cumprir com todas essas obrigações! Ainda, rememore-se que todo o dinheiro gastopara a manutenção desse aparato não é dedutível para fins de apuração fiscal.

Em agravamento a esse cenário, segundo levantamento do SEBRAE,17 99,2% dasempresas no comércio e 95,5% das indústrias são Micro e Pequenas empresas,sabidamente sem grandes estruturas administrativas e fiscais.

Para fechar esse crítico cenário de insegurança jurídica, atentamos ao fato de que, cadadia mais, é o contribuinte o interprete primeiro da legislação tributária. Com efeito, pelochamado “lançamento por homologação”, aplicado à grande maioria das situaçõestributárias, deve o contribuinte interpretar a norma e, a partir dela, verificar a ocorrênciado fato imponível, calcular a base imponível, determinar a alíquota aplicável e recolheros valores eventualmente devidos aos cofres públicos.

Heleno Taveira Torres18 atribuindo o nome de “comunidade de intérpretes” (ao fato de ocontribuinte integrando o conjunto de interpretes da legislação tributária, junto com oadministrador público e o juiz), confirma a ocorrência de lesão à segurança jurídica.Confira-se:

“Destarte, quando contribuintes orientam suas condutas segundo uma compreensãoequivocada da legislação, por não apreenderem adequadamente todas as repercussõesderivadas da legislação em vigor, em decorrência de falhas legislativas, estecondicionamento psíquico gera interferências na determinação das condutas normadas(insegurança jurídica por deficiência de orientação). Como vimos, à acessibilidade formaldeve conjugar-se a acessibilidade material ou cognitiva, que consiste na possibilidade decompreensão dos textos legislados, de forma simples, clara e objetiva. Valoresconstitucionais de maior suposição amparam sua pertinência ao sistema como meio hábilpara a solução de problemas decorrentes da opacidade da legislação, mormente aos finsda orientação ou adequação das condutas normadas. A eliminação de opacidade dalegislação tributária é um imperativo de segurança jurídica inelutável.”

Retomamos, ainda, o destaque que fizemos anteriormente, com relação ao destinatárioda segurança jurídica ser o “cidadão comum” e não o especialista em direito tributário.Nesse sentido, H. Ávila19também discorre sobre o destinatário da norma tributária,destacando a necessidade de o “cidadão comum” conseguir compreender integralmenteas prescrições normativas. Confira-se:

“No Direito Tributário, isso significa que há segurança quando o contribuinte temcondições de, em elevada medida, conhecer o Direito, confiar nele e calcular os seusefeitos. A exigência de determinabilidade será tanto maior, quanto mais intensamenteforem restringidos os direitos fundamentais de liberdade, de propriedade e igualdade.Esse é, precisamente, o caso do Direito Tributário, pela eficácia oneratória e indutora dasnormas tributárias.”

Esse fator de insegurança decorrente da dificuldade de cognição da legislação tributáriapelo contribuinte é agravado, ainda, pela postura dos agentes do Poder Executivo, osquais, muitas vezes, por suas ações, acabam por induzir os contribuintes à pratica dedeterminados atos. São exemplos disso as mudanças de entendimento (mudança decritério jurídico), as práticas reiteradas da administração, entre outras.

Para essa específica situação (insegurança causada por influência da administração), opróprio CTN busca ferramentas de retorno ao estado de segurança jurídica, como porexemplo, pelas disposições dos arts. 146 (que alberga fatos anteriores da aplicação denovos critérios jurídicos pela Administração), 100 e 112.

Sobre o art. 14620 do CTN, H. Torres,21 abordando inclusive a alteração de entendimentodecorrente de decisão administrativa ou judicial, assim discorre:

“Sobre a irretroatividade do não benigno, igualmente contemplada nessa disposição doart. 146 do CTN, tem-se aqui nítida norma no modal deôntico ‘proibido’ para vedar a

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 6

Page 7: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

aplicação de modificações de critérios jurídicos no lançamento, em relação a um mesmocontribuinte (salvo quando se trata de decisões erga omnes), sobre todos os fatosgeradores anteriores à decisão judicial ou administrativa. A permissão limita-seexclusivamente aos fatos posteriores à decisão. Na prática, esta é a única regra:qualquer modificação de critérios de lançamento somente poderá vir empregada aosfatos geradores posteriores à decisão judicial ou administrativa (...) o que vale inclusivepara fatos pendentes de lançamento, como exceção ao teor do art. 105 do CTN.”

Por sua vez, os artigos 10022 e 11223 protegem, respectivamente, os contribuintes quedescumpriram a norma tributária por seguirem as chamadas “normas complementaresdas leis”, como as práticas reiteradas da administração, bem como salvaguarda ocontribuinte no caso de dúvida com relação à interpretação da legislação refere àspenalidades.

No entanto, para as diversas outras situações, a boa-fé do contribuinte deve ser utilizadacomo ferramenta de retorno ao estado de segurança jurídica, por meio de suaconsideração (inclusive obrigatória, por vezes) no momento de autuações fiscais.4 A relevância da boa-fé do contribuinte em autuações fiscais

Com efeito, entendemos que a consideração da boa-fé do contribuinte é etapa quenecessariamente deve ser ultrapassada no momento da verificação da infração àlegislação tributária e a aplicação de penalidades pela autoridade fiscal. Se não chega aser obrigatória do ponto de vista formal (formalista), sua observância é necessária paradar harmonia ao sistema jurídico-tributário.

Ora, se (a) a segurança jurídica é princípio-matriz e fim do sistema tributário nacional;(b) é dever dos Poderes garantir a segurança; (c) seu destinatário é o contribuinte“cidadão comum”; (d) o Estado, cada dia mais, relega ao contribuinte a tarefa deprimeiro interprete da legislação tributária, a qual (e) é uma das mais volumosas ecomplexas do mundo; como não considerar, obrigatoriamente, a boa-fé do contribuinte,antes de aplicar-lhe sanções?

Seria o mesmo que admitirmos que a sanção deva ser aplicada à revelia do própriomotivo de existência do sistema constitucional tributário – unicamente por estarformalmente prevista em lei. Sob outro foco de análise, não é mais razoável, diante daabundância e complexidade da legislação tributária, que se autue o contribuinte sem seconsiderar efetivamente a sua boa-fé.

À época da edição do Código Tributário Nacional, a afirmação anterior talvez não sesustentasse. No entanto, cumpre relembrar que o CTN – que teve inspiração, inclusiveno direito nazista24 – foi editado em 1966, época de complexidade e volume muitomenores da legislação tributária, e com a situação dos contribuintes também diversa,excluídos da “comunidade de intérpretes”.

Voltando ao nosso escopo de observação, há, no Estado de São Paulo, disposição legalque se coaduna com o nosso entendimento acima exposto. Com efeito, a Lei Estadual(SP) 6.374/89, assim dispõe em seu art. 72, § 2.°:

“Artigo 72 – A administração tributária tem por atribuição fazer cumprir a legislaçãorelativa aos tributos de competência estadual, devendo adotar, na sua consecução,procedimentos que estimulem o atendimento voluntário da obrigação legal, reduzam ainadimplência e reprimam a sonegação, tais como a educação fiscal, a orientação decontribuintes, a divulgação da legislação tributária, a fiscalização e a aplicação depenalidades.

(…)

§ 2.° – Em observância aos princípios da eficiência administrativa e da razoabilidade, oAuto de Infração e Imposição de Multas pode deixar de ser lavrado nos termos de

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 7

Page 8: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda.” (grifamos)

Duas importantes observações devem ser feitas a respeito do dispositivo acimatranscrito. A primeira, com relação ao caput, determina a obrigatoriedade daAdministração Tributária adotar – na consecução da aplicação da lei – procedimentosque estimulem o atendimento da obrigação, reduzam inadimplência e reprimam asonegação, mediante, exemplificativamente, educação fiscal, orientação e divulgação dalegislação tributária – atente-se o leitor – antes da “aplicação de penalidades”.

Ora, o comando é claro à Administração: antes de autuar, deve se buscar oadimplemento voluntário da obrigação tributária.

A segunda observação é a do § 2.°, que, para sanar qualquer dúvida possivelmenteexistente, abre expressamente a possibilidade de a autoridade fiscal deixar de lavrar oAuto de Infração, em observância aos princípios da eficiência e razoabilidade.

Temos que essa disposição alinha-se ao quanto defendido linhas acima: a observânciada boa-fé do contribuinte, no sentido de, por exemplo, intimá-lo a regularizar umeventual erro formal, ou a recolher um tributo inadimplido, total ou parcialmente, éobrigação da Administração Tributária (por meio de seus agentes e órgãos defiscalização). Não se faculta, mas se exige. Não deve ser verificada em um segundomomento, (como, por exemplo, em processo administrativo ou judicial) mas sim, antesde qualquer autuação.

Não seria necessário dizer, mas para evitar dúvidas, estão fora desse contexto,obviamente, aqueles contribuintes que, de má-fé, utilizam “erros formais” ou “dúvidasrazoáveis” para burlarem a legislação tributária e se locupletarem ilicitamente. Contudo,a presunção deve ser sempre pela boa-fé25 do contribuinte, devendo ser comprovada amá-fé do agente.

Esclarecemos, novamente, para que não haja misinterpretation de nossa proposta: anecessidade de observância da boa-fé do contribuinte se apresenta naquelas situaçõesem que o fator de insegurança jurídica (desconhecimento ou incompreensão dalegislação) foi causado pelo próprio Estado (que tem a obrigação de dar segurançajurídica), não a toda e qualquer situação de infringência à legislação tributária.

Utilizamo-nos, aqui, das lições de Klaus Tipke26 para ilustrar nossa posição. A boa-fé aser necessariamente considerada é a do contribuinte inexperiente, o “sujeito passivocomum”, não do contribuinte homo oeconomicus ou do desgostoso com o Estado –sujeitos estes que, por liberalidade, decidem não cumprir a legislação tributária.

Com relação à presunção de boa-fé do contribuinte, citamos os seguintes julgados doTribunal de Justiça de São Paulo:

“TRIBUTÁRIO E PROCESSO CIVIL TUTELA ANTECIPADA CRÉDITO TRIBUTÁRIOSUSPENSÃO DE EXIGIBILIDADE INSCRIÇÃO NO CADIN DECLARAÇÃO DEINIDONEIDADE DE DOCUMENTOS FISCAIS PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE.1. A antecipação dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial pressupõe aconcorrência dos requisitos da verossimilhança da alegação em face da existência deprova inequívoca e fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou,alternativamente, caracterização de abuso de direito de defesa ou o manifesto propósitoprotelatório do réu (art. 273, I e II, CPC). 2. Cobrança de ICMS decorrente de compra evenda com empresas consideradas inidôneas pelo Fisco. Declaração de inidoneidadeposterior às operações comerciais impugnadas. Presunção de boa-fé. Tutela antecipadaindeferida. Inadmissibilidade. Concorrência dos pressupostos legais. Decisão reformada.Recurso provido.”27

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL ICMS CREDITAMENTO PRINCÍPIO DANÃO-CUMULATIVIDADE AUTO DE INFRAÇÃO E IMPOSIÇÃO DE MULTA DECLARAÇÃO DE

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 8

Page 9: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

INIDONEIDADE DE DOCUMENTOS FISCAIS REALIZAÇÃO DAS OPERAÇÕES COMERCIAISCOM EMPRESA POSTERIORMENTE DECLARADA INIDÔNEA PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DOCONTRIBUINTE. 1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal(emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, podeengendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade,porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de suapublicação. 2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, nomomento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção daregularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pelaqual não incide, à espécie, o artigo 136 do CTN. Precedente do STJ em recursorepresentativo de controvérsia. Sentença reformada. Recurso provido.”28

“TUTELA ANTECIPADA. Ação declaratória de inexigibilidade de crédito fiscal. Créditos deICMS com base em notas fiscais consideradas inidôneas pela fiscalização. Necessidadede esclarecer se corresponderam a operações efetivas. Presunção da boa-fé docontribuinte por não caber presumir o contrário. Suspensão da exigibilidade do créditotributário e certidão positiva de débito com efeito de negativa, para participar deconcorrência pública e contratar com a Administração. Presentes os requisitos daverossimilhança do direito e do perigo da demora. Recurso provido.”29

Sentimos, ainda, a necessidade de esclarecermos que nossa posição não representaafronta à chamada teoria imperativa do direito, um dos fundamentos do positivismojurídico. É a regra clássica de que ninguém poderá se escusar de cumprir a lei alegandodesconhecimento. Sobre essa teoria, confira-se Renato Lopes Becho:30

“Na teoria imperativa do direito podemos destacar a circunstância de que o direito éfundado sobre o pressuposto, mesmo que não fático, de amplo conhecimento dasnormas jurídicas por parte de todos aqueles que estão sujeitos à sua sanção. Todos ossúditos conhecem as leis. Ou, por outro giro verbal, ninguém se escusa de respeitar asleis alegando desconhecê-las. Eis uma ficção, mas imprescindível para o império dodireito. Essa teoria nos parece a mais forte, sem correspondência – ao menos para nós –nos sistemas normativos social e religioso. Ao que nos parece, as pessoas são educadaspara conhecerem as normas sociais, sendo muitas vezes naturalmente escusável odescumprimento pelo desconhecimento. Assim também ocorre com as normasreligiosas, notadamente menos numéricas e mais conhecidas pelos fiéis do que asnormas legais. Por isso, vemos a teoria imperativa do direito como única e como a maissignificativa das construções positivistas.”

Não se nega a obrigatoriedade do cumprimento da lei, nem tampouco se contraria aafirmação de que a simples alegação de desconhecimento não basta para eximir ocontribuinte do cumprimento da legislação tributária. O que se afirma é que a aplicaçãode sanções deve passar pelo filtro da boa-fé do contribuinte, uma vez que se está dianteda mais volumosa e complexa legislação que se tem notícia.

Retomando nossa análise ao Estado de São Paulo, a previsão, pela Coordenadoria deAdministração Tributária, de hipóteses de não lavratura de autos de infração é histórica,remetendo à Instrução CAT 10/1968. Atualmente, a Portaria CAT 115/2014, regula umadas hipóteses nas quais, havendo boa-fé do contribuinte, notadamente em infraçõesrelativas a obrigações acessórias, o auto de infração poderá deixar de ser lavrado.Confira-se:

“Artigo 10 – Mediante análise e decisão da Comissão de Controle de Qualidade e emobediência aos princípios da eficiência administrativa e razoabilidade, o AIIM poderádeixar de ser lavrado quando, cumulativamente:

I – a infração não implicar falta ou atraso no recolhimento do imposto;

II – não existirem indícios de dolo, fraude ou simulação;

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 9

Page 10: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

III – ficar constatado que a infração não trouxe prejuízos à fiscalização, assim entendidaqualquer ação ou omissão que:

a) implique embaraço, atraso ou dificuldade à ação fiscal, inclusive o descumprimento anotificação fiscal específica;

b) prejudique o controle fiscal sobre as operações ou prestações;

c) prejudique a utilização das informações dos bancos de dados da Secretaria daFazenda;

IV – o contribuinte não for reincidente, assim considerado aquele que, em relação aqualquer dos seus estabelecimentos, nos últimos cinco anos, não tiver sido autuado pelaprática da mesma infração ou notificado nos termos do item 2 do § 4º;

V – o contribuinte não possuir débitos, inscritos ou não em dívida ativa, ou, caso possua,estiverem com exigibilidade suspensa, observado o disposto no item 2 do § 2º.(destacamos)

Conforme se observa, existem hipóteses expressamente previstas nas quais afiscalização é orientada a deixar de lavrar autos de infração. Contudo, entendemos que aPortaria CAT 115/2014 representa apenas uma hipótese, mas não a única.

O Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo já adotou entendimento semelhante aoaqui defendido, cancelando exigência fiscal em razão de o contribuinte não ter sido,primeiramente, intimado a regularizar sua escrita fiscal. Confira-se:

“Ementa: ICMS. Transferência de saldo credor de ICMS para estabelecimentocentralizador já detentor de saldo credor. Hipótese vedada pela legislação. RECURSO DEOFÍCIO DESPROVIDO.

Relatório e Voto:

No caso dos autos, muito embora o contribuinte tenha agido em desconformidade com oestabelecido na legislação tributária, entendo que não seria desarrazoado notificá-lopreviamente a fim de que regularizasse sua situação, mediante o estorno dos créditostransferidos em excesso. Creio que a Administração Tributária deve evoluir no sentidonão de privilegiar o incumpridor, mas sim de acercar-se de seus contribuintes,perseguindo o cumprimento voluntário da obrigação tributária, seja principal, sejaacessória, ainda que esse cumprimento voluntário seja induzido por comunicações fiscaispara que o contribuinte caminhe para a conformidade. É o caso dos autos. Em meusentir, a notificação prévia evitaria o desgaste de uma autuação, tanto para o Fiscocomo para o contribuinte e caminharia de forma mais eficiente na direção do que deveser o verdadeiro fim a ser perseguido pela Administração Tributária, que é ocumprimento das obrigações tributárias, repito, ainda que de forma induzida.

Cumprimento o d. juiz com vista, Dr. Flávio Nascimbem de Freitas, pelo voto proferidoacerca da Instrução Normativa CAT 10/68, com o qual concordo no sentido de que nãoobriga o Fisco.

Não obstante, como expus, creio que a Administração Tributária deve caminhar nessesentido nos casos em que não se vislumbra redução ou supressão de imposto.

Nesse sentido, meu voto é para acompanhar o voto de relatoria proferido pelo i. Dr.Osvaldo Zorzeto, para negar provimento ao Recurso de Ofício, considerando ainda havertempo para o que se propõe em seu voto, qual seja, que o Fisco realize a notificação aocontribuinte para fins de estorno, sob pena de autuação.

É como voto.”31 (destacamos)

Observe que o julgado acima ilustra bem o ponto que defendemos. Bastaria uma ação

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 10

Page 11: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

educativa prévia da fiscalização para que se evitassem lavraturas de autos de infração,processos administrativos, enfim, toda uma movimentação do aparato administrativo,financiado às custas dos próprios tributos buscados pela Fiscalização.

O que se cobra é uma postura de tolerância fiscal32 pelas autoridades, diante do patentefator de insegurança jurídica representado pela complexidade e abundância dalegislação. Devem ser abandonadas as figuras do Fiscal-Pilatos e Fiscal-Cruzado33 – ouseja, a análise das situações sob o prisma do contribuinte-infiel, pecador, que deverá sera todo custo punido, bem como a da escusa sob o véu do princípio da legalidade, mesmodiante de situações manifestamente injustas, respectivamente.

Com a tolerância, cobra-se uma postura de aproximação entre fisco e contribuinte, doafrouxamento da relação antagonista entre as partes, de modo a reconhecer acomplexidade das relações jurídicas e suas causas, notadamente o descumprimento dalegislação a pretexto de cumpri-la. Ao encarar o contribuinte como humano,naturalmente sujeito a falhas, ou, simplesmente, interpretações diversas, fica fácilentender a necessidade de consideração subjetiva de sua conduta quando se trata deaplicação de penalidades tributárias.

Assim, em nosso sentir, a análise da boa-fé do contribuinte é etapa obrigatória paralegitimar a lavratura de todo e qualquer auto de infração, e deve ser devidamentedemonstrada, por exemplo, nos relatórios fiscais que acompanham essas autuações, sobpena de insubsistência da exigência fiscal.5 Conclusão

Assim sendo, entendemos estar devidamente comprovada a necessidade de que afiscalização observe a boa-fé do contribuinte na lavratura de autos de infração, assimentendida a demonstração, nos relatórios fiscais, que o contribuinte foi prévia edevidamente orientado ao cumprimento espontâneo da obrigação tributária, que éinfrator reiterado ou que agiu de má-fé, entre outros, sob pena de insubsistência daexigência fiscal.

Tal se justifica em razão da quantidade e da complexidade da legislação tributária, aliadaà condição de primeiro interprete do contribuinte, com vistas a dar segurança jurídica àsrelações tributárias, segurança esta que é a própria finalidade do sistema constitucionaltributário.

Em caso de descumprimento, os órgãos administrativos judicantes ou, ainda, o próprioPoder Judiciário poderá cancelar a exigência fiscal, unicamente em razão da nãoobservância da boa-fé do contribuinte.6 Referências bibliográficas

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre a permanência, mudança e realização noDireito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.

BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30ª ed. SãoPaulo: Malheiros, 2015.

DANIEL NETO, Carlos Augusto. Dialética da Tolerância Fiscal. Defesa em 25/08/2014.255 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 225/08/2014.Suporte digital.

FOLLONI, André. Reflexões sobre complexity science no direito tributário. In: MACEI,Demetrius Nichele et. al. (coord.). Direito tributário e filosofia. Curitiba: InstitutoMemória, 2014, p. 24-37.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros,

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 11

Page 12: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

2010.

SAMPAIO, Carlos Alberto Alves. A boa-fé no direito tributário. Defesa em 11/02/2015.131 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 11/02/2015.Suporte digital.

TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz DóriaFurquim. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2012.

TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2011.

1 FOLLONI, André. Reflexões sobre complexity science no direito tributário. In: MACEI,Demetrius Nichele et. al. (coord.). Direito tributário e filosofia. Curitiba: InstitutoMemória, 2014, p. 24-37.

2 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros,2010, p. 171.

3 STJ Recurso Especial 1.148.444/MG, Relator Ministro LUIZ FUX, 1.ª Turma.

4 TJ/SP, Apelação 0013469-29.2009.8.26.0510. Relator: Coimbra Schmidt; Comarca:Rio Claro; Órgão julgador: 7.ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento:23.11.2015; Data de registro: 23.11.2015.

5 TJ/SP, Apelação 0001810-14.2011.8.26.0264, 1.ª Câmara. Relator(a): Danilo Panizza;Comarca: Novo Horizonte; Órgão julgador: 1.ª Câmara de Direito Público; Data dojulgamento: 10.11.2015; Data de registro: 12.11.2015.

6 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30.ª ed. SãoPaulo: Malheiros, 2015. p.455.

7 Ibidem. p. 455-456.

8 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2011, p. 184.

9 Ibidem. p. 193.

10 Ibidem. p. 187.

11 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2011, p. 188-189.

12 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre a permanência, mudança e realizaçãono Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 255.

13 Ibidem, p. 255-256.

14 Ibidem, p. 256-362

15 Ibidem, p. 264-265.

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 12

Page 13: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

16 Notícia veiculada em diversos periódicos, disponível, por exemplo, em:http://www.infomoney.com.br/negocios/tributos-de-empresas/noticia/2579531/empresas-brasileiras-gastam-600-horas-por-ano-pagando-impostos.Acesso em 27.11.2015.

17 Participação das Micro e Pequenas Empresas na Economia Brasileira (2009/2011),disponível emhttp://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Estudos%20e%20Pesquisas/Participacao%20das%20micro%20e%20pequenas%20empresas.pdf.Acesso em 27.11.2015.

18 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2011, p. 171-172.

19 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre a permanência, mudança e realizaçãono Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 266.

20 Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisãoadministrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativano exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeitopassivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

21 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2011, p. 266.

22 Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convençõesinternacionais e dos decretos:

I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que alei atribua eficácia normativa;

III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas;

IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e osMunicípios.

Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição depenalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base decálculo do tributo.

23 Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades,interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I – à capitulação legal do fato;

II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dosseus efeitos;

III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

24 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.304.

25 SAMPAIO, Carlos Alberto Alves. A boa-fé no direito tributário. Defesa em 11-2-2015.131 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 11-2-2015.Suporte digital, p. 109/110. Em competente dissertação acerca da boa-fé no direito

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 13

Page 14: SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

tributário, Carlos Alberto Alves Sampaio contesta a máxima da presunção da boa-fé,diferenciando situações de boa-fé objetiva e subjetiva. No entanto, não faremos, aqui,essa distinção.

26 TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz DóriaFurquim. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2012, p. 103 a 111.

27 TJ/SP Agravo de Instrumento nº 0262754-77.2012.8.26.0000, Relator DÉCIONOTARANGELI, 9ª Câmara de Direito Público, DJe 28/02/2013.

28 TJ/SP Apelação nº 0048179-02.2009.8.26.0405, Relator DÉCIO NOTARANGELI, 9ªCâmara de Direito Público, DJe: 08/05/2013.

29 Agravo de Instrumento 0583956-08.2010.8.26.0000, 12.ª Câmara de Direito Público.Relator Des. EDSON FERREIRA DA SILVA, DJ de 28/02/2011.

30 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.187.

31 AIIM 4.007.428-6, 5.ª Câmara Julgadora, julgamento em recurso ordinário, voto depreferência do juiz Fábio Henrique Bordini Cruz (Presidente).

32 DANIEL NETO, Carlos Augusto. Dialética da Tolerância Fiscal. Defesa em 25.8.2014.255 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 225/08/2014.Suporte digital. 217-237.

33 Idem. p. 226-227.

Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância daboa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança

jurídica do sistema tributário nacional

Página 14