Sentenca - crime ambiental - absolvicao

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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA SEÇÃO JUDICIÁRIA DA PARAÍBA 2ª VARA FEDERAL ROGÉRIO ROBERTO GONÇALVES DE ABREU Juiz Federal Substituto PROCESSO N. 2005.82.00.011495-5 AÇÃO PENAL PÚBLICA AUTOR: Ministério Público Federal RÉU: Sebastião da Silva Soares Juiz Federal Substituto ROGÉRIO ROBERTO GONÇALVES DE ABREU S E N T E N Ç A 1 Dispensado o relatório (art. 81, § 3º, da Lei n. 9.099/95). Tratam os presentes autos de AÇÃO PENAL PÚBLICA movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (sob o rito das Leis n. 9.099/95 e n. 10.259/2001) contra SEBASTIÃO DA SILVA SOARES, dando-o a denúncia (fls. 188/190) como incurso nos artigos 60 e 64 da Lei n. 9.605/98 (crimes ambientais). Na denúncia, o MPF atribui ao acusado as condutas de: a) fazer funcionar, em caráter permanente, empreendimento potencialmente poluidor sem licença da autoridade competente ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes; e b) construir em solo não edificável sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a autorização concedida. Nos dois casos, a “autoridade competente” para o licenciamento referido nos tipos penais é o IBAMA que, por isso mesmo, teria a atribuição legal de autuar o infrator pela ausência dessas licenças. Conforme se observa dos autos, o acusado é proprietário de uma barraca de praia denominada “Barraca do Tião”, destinada ao comércio de bebidas e alimentos, localizada no final da rua Henrique Siqueira, Ponta de Campina, Cabedelo/PB, desenvolvendo dita atividade há vários anos. O procedimento se iniciou a partir de ofício enviado pelo gerente executivo do IBAMA ao Ministério Público da Paraíba, noticiando a suposta prática de fato atentatório à Lei n. 9.605/98 (fls. 05 e segs). O auto de infração enviado registrava que a irregularidade do empreendimento consistia em “fazer funcionar estabelecimento comercial bar em área de domínio da União, sem licença dos órgãos ambientais pertinentes” (fl. 07). A autuação ocorreu em 05/03/2004. A comunicação de crime indicava enquadramento no art. 60 da Lei de Crimes Ambientais (fl. 09). 1 Sentença tipo D, cf. Res. CJF n. 535/2006.

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JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

SEÇÃO JUDICIÁRIA DA PARAÍBA

2ª VARA FEDERAL

ROGÉRIO ROBERTO GONÇALVES DE ABREU Juiz Federal Substituto

PROCESSO N. 2005.82.00.011495-5

AÇÃO PENAL PÚBLICA

AUTOR: Ministério Público Federal

RÉU: Sebastião da Silva Soares

Juiz Federal Substituto ROGÉRIO ROBERTO GONÇALVES DE ABREU

S E N T E N Ç A1

Dispensado o relatório (art. 81, § 3º, da Lei n. 9.099/95).

Tratam os presentes autos de AÇÃO PENAL PÚBLICA movida pelo

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (sob o rito das Leis n. 9.099/95 e n. 10.259/2001) contra

SEBASTIÃO DA SILVA SOARES, dando-o a denúncia (fls. 188/190) como incurso nos

artigos 60 e 64 da Lei n. 9.605/98 (crimes ambientais).

Na denúncia, o MPF atribui ao acusado as condutas de: a) fazer funcionar, em

caráter permanente, empreendimento potencialmente poluidor sem licença da autoridade

competente ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes; e b) construir

em solo não edificável sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a

autorização concedida. Nos dois casos, a “autoridade competente” para o licenciamento

referido nos tipos penais é o IBAMA que, por isso mesmo, teria a atribuição legal de autuar o

infrator pela ausência dessas licenças.

Conforme se observa dos autos, o acusado é proprietário de uma barraca de

praia denominada “Barraca do Tião”, destinada ao comércio de bebidas e alimentos,

localizada no final da rua Henrique Siqueira, Ponta de Campina, Cabedelo/PB,

desenvolvendo dita atividade há vários anos.

O procedimento se iniciou a partir de ofício enviado pelo gerente executivo do

IBAMA ao Ministério Público da Paraíba, noticiando a suposta prática de fato atentatório à

Lei n. 9.605/98 (fls. 05 e segs). O auto de infração enviado registrava que a irregularidade

do empreendimento consistia em “fazer funcionar estabelecimento comercial bar em área de

domínio da União, sem licença dos órgãos ambientais pertinentes” (fl. 07). A autuação

ocorreu em 05/03/2004. A comunicação de crime indicava enquadramento no art. 60 da Lei

de Crimes Ambientais (fl. 09).

1 Sentença tipo D, cf. Res. CJF n. 535/2006.

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Após a apresentação de defesa administrativa, o auto de infração foi julgado

procedente em decisão que considerou ter sido provada a irregularidade: construção de

empreendimento em área do patrimônio da União sem licença da autoridade competente

(fls. 20/22).

Curiosamente, embora tenha sido o IBAMA a julgar dito laudo, manteve o auto

de infração por motivo absolutamente alheio a questões ambientais.

A fls. 29/30, consta dos autos um laudo de vistoria sobre a barraca de

propriedade do acusado. De suas conclusões finais lê-se o seguinte trecho, bastante

elucidativo para o caso dos autos: “A área não é de preservação permanente e sim de

domínio da União, por tratar-se de terreno de marinha, e de logradouro público infringindo a

legislação ambiental”, indicando a Lei 7661/88, art. 3º, inciso I, e o Código de Obras e

Postura do Município. O laudo é datado de 04/11/2002.

A fls. 41/43 consta dos autos Termo de Ajustamento de Conduta celebrado entre

o acusado, o Gerente Regional do Patrimônio da União, Francisco Sales Leite Dantas, e o

prefeito municipal de Cabedelo, José Francisco Régis. Em seu texto, além do

reconhecimento pelo acusado de estar ocupando irregularmente um terreno de propriedade

da União, estabelecia-se uma gradual transição para o uso regular de bens do patrimônio

público, com a correlata suspensão das medidas de desocupação.

A fls. 47/49 constam DARF’s em nome do acusado, devidamente pagos,

relacionados ao “ajustamento provisório de ocupação irregular em área de Marinha –

domínio da União”. Entre as fls. 102/107, novos DARF’s.

No âmbito judicial, após declinação da competência pelo juízo estadual para a

justiça federal (em razão da natureza federal do bem imóvel), requereu o MPF que fosse

oficiado o IBAMA para que informasse “se a suposta conduta delituosa do referido (sic)

ocasionou dano ao meio ambiental (sic)”, pedindo ainda que, caso positiva a resposta, fosse

informado se já teria sido recuperado o dano (fl. 58).

Em resposta, o IBAMA encaminhou cópia de relatório de vistoria realizada no

local (fls. 67/69), onde consta a seguinte informação: “Conforme dito no referido laudo o ato

infracional da barraca é estar localizada em terreno de marinha e na via pública e não de

degradação, não tendo portanto o que reparar” (grifado).

O ofício de fls. 36, falando em atividade potencialmente poluidora, além de não

ter base em qualquer exame ou laudo, destoa completamente do laudo já constante dos

autos, que indicava a inexistência de dano ambiental a reparar, bem como que a

irregularidade da barraca cingia-se à questão patrimonial (nada mencionando sobre

potencialidade poluidora).

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Em seu depoimento, a testemunha VALDIVAN RODRIGUES GOMES (fls.

202/204) disse lembrar-se de que a barraca teria sido autuada por estar em terreno de

marinha, bem como por não possuir licença ambiental. Disse ainda que, ao que se

recordava, o porte da barraca e o fato de possuir uma fossa tornava-a potencialmente

poluidora. Disse também não saber se houve dano ambiental ou poluição. Mais à frente, a

testemunha afirmou peremptoriamente que a questão da potencialidade poluidora da

barraca não foi levada em conta pelo IBAMA no momento da autuação – não tendo feito

parte dos motivos que conduziram à autuação.

A testemunha FRANKLIN MAGALHÃES GONÇALVES (fls. 221/223), de sua

parte, nada acrescentou sobre as questões de natureza ambiental que diziam respeito à

ocupação pelo acusado, cingindo-se à questão puramente patrimonial.

Por fim, o acusado, interrogado em juízo, afirmou que construiu sua barraca

desde 1995, no final de uma rua, ainda fora da areia da praia. Afirma que teria licença de

funcionamento da prefeitura municipal de Cabedelo e autorização da vigilância sanitária do

mesmo município. Registrou ainda que, em determinado momento, tendo celebrado termo

de ajustamento com a GRPU, passou ocupar o terreno com autorização da Gerência,

pagando a importância de R$ 372,00 mensalmente.

Disse ainda o acusado que se lembrava de uma vistoria realizada por técnicos

do IBAMA e que, na ocasião, não teriam afirmado ser a barraca potencialmente poluidora,

nem tampouco que haveria poluição, dano ambiental ou degradação. A irregularidade

apontada limitava-se á sua localização em terreno de marinha e à existência de uma tenda,

que foi prontamente retirada. Por fim, afirmou que é licenciado pelo IBAMA para a venda de

caranguejos, e que o IBAMA frequentemente executa fiscalizações sobre esse comércio.

Diante dos fatos e provas acima descritos, assistiria razão ao MPF em sua

pretensão punitiva?

Penso que não.

Para a configuração do delito previsto no art. 60 da Lei de Crimes Ambientais é

indispensável que se comprove a natureza potencialmente poluidora do empreendimento,

sob pena de atipicidade do fato. O MPF alega que a barraca de praia de propriedade do

acusado tem essa característica, mas não consta dos autos laudo algum relativo a exame

para tal comprovação (nem tampouco requerimento do órgão acusador nesse sentido).

O próprio IBAMA, ao ser instado a se manifestar, disse formalmente que a

irregularidade encontrada cingia-se ao fato de localizar-se a barraca em terreno de marinha,

propriedade da União, dizendo expressamente que nada havia a recuperar em termos de

dano ambiental. Esse órgão ambiental, esclarecendo a questão, afirmou que não havia

sobre o empreendimento irregularidade ambiental (para o que seria competente), mas

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apenas quanto ao patrimônio da União, dizendo respeito a área de fiscalização pela

Gerência Regional do Patrimônio da União (GRPU).

Diante de todos esses fundamentos, não vejo como seja possível enquadrar a

conduta do acusado no fato típico previsto no art. 60 da Lei dos Crimes Ambientais, pois não

há prova de que o empreendimento fosse potencialmente poluidor, e mesmo o IBAMA

afirmou expressamente que a irregularidade reportada se restringia a uma questão

patrimonial – não ambiental. Se o empreendimento fosse potencialmente poluidor e não

estivesse licenciado, parece-me óbvio que assim teria dito oficialmente o IBAMA e, mais

logicamente ainda, por esse motivo específico teria sido autuado o acusado, o que não

ocorreu.

Por esses motivos, entendo que a conduta do acusado não se subsume ao tipo

do art. 60 da Lei n. 9.605/98.

Quanto ao tipo descrito no art. 64 da Lei de Crimes Ambientais, não vejo,

igualmente, possibilidade de enquadramento da conduta praticada pelo acusado. Uma vez

mais, retomo a consideração de que o IBAMA – órgão federal encarregado de fiscalizar o

cumprimento da legislação ambiental – não procedeu a qualquer autuação nesse sentido e,

quando instado a se manifestar, apontou irregularidade restrita a questões de utilização de

patrimônio público, afeta à fiscalização da Gerência Regional do Patrimônio da União.

Para subsunção do fato ao tipo do art. 64, é indispensável que se configure a

natureza “não edificável” do lugar em que se haja realizado a construção. Essa natureza

deve advir de características relativas ao seu valor paisagístico, histórico, ecológico, artístico

etc., nos termos da redação dada pelo mesmo dispositivo. A quem cabe, primordialmente

(não exclusivamente), ajuizar dessa característica? Penso que seja novamente o IBAMA.

Comparecendo ao local, o IBAMA, em momento algum, procedeu a autuação do acusado

por esse motivo e, instado a se manifestar, não reconheceu dita irregularidade no

empreendimento do réu.

A julgar pelos depoimentos colhidos ao longo da instrução e pelas fotos

existentes nos autos, não se pode apontar com segurança de que o terreno possa ser

enquadrado como “não edificável” – nos estritos termos da rígida moldura do art. 64 da Lei

dos Crimes Ambientais. Vigendo aqui o princípio da tipicidade e da legalidade, não se pode

validamente flexibilizar o exame da referida elementar para alargar-se o campo de

incidência da norma penal incriminadora. O exame deve ser rigoroso e a interpretação não

pode ser extensiva.

Por esses motivos, entendo que a conduta do acusado não se subsume ao tipo

do art. 64 da Lei n. 9.605/98.

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Tendo-se discutido sobre a questão patrimonial do suposto uso indevido de

patrimônio público pelo acusado, ainda seria possível cogitar de eventual enquadramento de

sua conduta em algum dos tipos correlatos.

Contudo, o acusado alegou que estava, desde o início, autorizado a manter seu

empreendimento no local onde hoje se encontra, inicialmente pela prefeitura e

posteriormente pela GRPU. Afirmou, inclusive, que pagou durante certo tempo à GRPU uma

taxa pela utilização do solo, apresentando comprovantes para juntada aos autos. Afirmou

também que tal ocupação foi objeto de termo de ajustamento de conduta, o que foi

igualmente provado.

Ainda que se possa argumentar com a inutilidade desses atos e documentos

para legitimar a utilização do terreno de marinha pelo acusado, não se pode negar que

esses mesmo documentos demonstram a atuação do acusado em franca boa-fé. Essa

circunstância, a meu juízo, exclui completamente o dolo em relação a qualquer delito pela

utilização indevida de bens imóveis da União, tornando atípica qualquer conduta, ainda que

objetivamente se enquadrasse em eventual definição abstrata contida em lei penal.

DIANTE DO EXPOSTO e pelo mais que dos autos consta, com base no art. 386,

incisos III e VI, do Código de Processo Penal e art. 81 da Lei n. 9.099/95, julgo

improcedente o pedido contido na denúncia para absolver o acusado Sebastião da Silva

Soares.

Custas ex lege.

Transitada em julgado a presente sentença, certifique-se, dê-se baixa na

distribuição e arquivem-se os autos.

Publique-se. Registre-se no sistema informatizado. Intime-se o réu e seu

defensor. Cientifique-se o MPF.

João Pessoa,

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