Sindrome x Fragil

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    SNDROME DO X FRGIL Miguel Palha Pediatra do Desenvolvimento Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENAS

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    O Carlos, em beb, era muito irritvel. Ao mnimo desconforto, ou mesmo sem causa aparente, desatava a chorar, de uma forma intensa e por tempo indeterminado. O Carlos falou muito tarde, j depois dos cinco anos de idade. E nunca gostou muito de brincar com as outras crianas, Quando algum falava com ele, o Carlos desviava o olhar. E quando se excitava com alguma coisa, fazia um movimento repetitivo com os braos, como se quisesse levantar voo. E mordia os dedos das mos, a ponto de fazer calos. Estava sempre a mexer-se e o tempo de ateno era muito curto.

    Quando entrou para a escola, no conseguiu aprender a ler, apesar dos esforos da professora, que, dizem, era muito dedicada. As suas feies eram peculiares: as orelhas muito grandes; o queixo grande; e a face longa. Havia um primo da me, hoje homem feito, com algumas semelhanas fsicas com ele.

    Foi observado, em Coruche, por um Pediatra do Desenvolvimento que levantou a suspeita de se tratar de um dfice cognitivo (ou seja, de um atraso mental), num quadro de uma sndrome do X Frgil.

    A doena veio a confirmar-se e o Carlos foi submetido a uma interveno especializada destinada a minimizar o dfice intelectual e a eliminar ou a reduzir as alteraes comportamentais.

    Hoje, o Carlos tem 10 anos, est no terceiro ano e j l quase tudo, embora de forma silabada. E, no recreio, j comeou a aproximar-se de dois colegas

    A Sndrome do X Frgil (SXF) a causa hereditria mais comum de dfice cognitivo (designao prefervel s anteriores terminologias de atraso mental ou de deficincia mental). Trata-se de uma doena gentica, ligada ao cromossoma X (a par do cromossoma Y, um dos cromossomas sexuais: as mulheres tm dois cromossomas X e os homens possuem um cromossoma Y e um cromossoma X) e deve o seu nome descrio por Lubs, em 1969, do "marcador X" (caracterizado por uma constrio na extremidade do brao longo do cromossoma X) em todos os homens com dfice cognitivo de determinada famlia. Todavia, a relao entre o dfice cognitivo e a fragilidade do cromossoma X s foi demonstrada dez anos depois, com os trabalhos de Giraud, Harvey e Sutherland.

    Em 1991, uma pesquisa multicntrica internacional (trata-se de um estudo que envolveu diversos centros) permitiu identificar e sequenciar o gene para a SXF - fragile X mental retardation 1 gene (FMR1), e reconhecer uma parte instvel do mesmo, caracterizada por sequncias repetidas de trinucletidos simples (CGG).

    Os indivduos normais tm aproximadamente 5 a 50 sequncias repetidas de CGG, com uma mdia de 30. Os indivduos portadores, mas com um desenvolvimento cognitivo convencional, possuem uma expanso pequena, especificamente de 54 a 200 sequncias repetidas de CGG, que se designa por pr-mutao. Os indivduos clinicamente afectados pela SXF tm uma mutao completa, a qual consiste numa expanso muito maior de sequncias repetidas de CGG, que varia, aproximadamente, de 230 a 2000. A mutao completa est normalmente associada a metilao do gene FMR1, que

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    bloqueia a transcrio deste gene, e, consequentemente, a protena FMR1 (FMRP) no produzida. a falta ou a deficincia de FMRP que causa as caractersticas clnicas e intelectuais associadas SXF. Normalmente, a FMRP encontra-se na maioria dos tecidos, mas est presente em nveis mais elevados em todos os neurnios (clulas nervosas). Pensa-se que esta protena seja importante para o desenvolvimento e a maturao neuronal, e que a sua ausncia se associe a uma alterao do processo normal de desenvolvimento. Assim, o fentipo neurocomportamental da SXF (conjunto de caractersticas fsicas e psquicas) encontra-se associado a alteraes neuro-anatmicas do crebro, relacionadas com a falta de nveis normais de FMRP.

    A prevalncia da SXF (mutao completa) estimada entre 1:2.000 no sexo masculino e 1:4.000 no sexo feminino. A prevalncia da pr-mutao parece ser de 1:259 no sexo feminino e 1:750 no sexo masculino. A SXF ocorre com igual frequncia em todos os grupos raciais e tnicos.

    A SXF apresenta um amplo espectro clnico. Pode variar desde um dfice cognitivo grave at a um estado de normalidade intelectual associada a problemas comportamentais e/ou a dificuldades de aprendizagem. Os achados moleculares correlacionam-se com a variabilidade do envolvimento clnico.

    As raparigas com a SXF so menos afectadas do que os rapazes, j que elas tm dois cromossomas X e apenas um tem a mutao completa FMR1 (por outras palavras, o cromossoma X no alterado consegue compensar o cromossoma X afectado, facto impossvel de ocorrer nos rapazes). O grau de envolvimento nas raparigas relaciona-se com a percentagem de clulas que tm o cromossoma X normal e o cromossoma X activo (relao de activao). Sabe-se que a relao de activao nas raparigas com mutao completa se correlaciona com o desempenho cognitivo, mas no com a cognio verbal (desempenhos cognitivos contaminados pela linguagem). Aproximadamente 50% a 70% das raparigas com a mutao completa apresentam desempenhos cognitivos no limiar da normalidade ou um dfice cognitivo ligeiro. As raparigas com a mutao completa (mas com uma inteligncia convencional) apresentam, muitas vezes, dfices das funes executivas, causados por uma deficincia moderada de FMRP. Indivduos com dfices das funes executivas podem apresentar problemas de ateno, de linguagem, de aprendizagem ou do comportamento.

    Tipicamente, o rapaz com a SXF nasce, geralmente, de termo (grosseiramente, de uma gestao que durou entre 37 e 42 semanas), mas apresenta hipotonia (de uma forma simples, falta de fora muscular) e perturbao da linguagem nos dois primeiros anos de vida. Em mais que 70% dos casos, so desatentos e hiperactivos. A hiperactividade , frequentemente, a queixa mais apontada pelos pais e pelos educadores. Mais de 80% destes rapazes apresentam manifestaes tpicas das perturbaes do espectro do autismo, designadamente: movimentos estereotipados das mos, auto-agresso (mordedura das mos), contacto visual escasso e errtico, interaco social pobre e averso ao contacto fsico (a ser tocado ou acariciado, etc, ...). Existe, tambm, um atraso no incio da fala, com o subsequente desenvolvimento da linguagem sem fins comunicativos.

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    Muitos rapazes com a SXF apresentam dificuldades na interaco social, maneirismos peculiares, timidez e contacto visual pobre. Todavia, s numa minoria de casos que ser possvel formular o diagnstico concomitante de autismo. Pelo contrrio, a SXF frequentemente diagnosticada em crianas com autismo. Pensa-se que aproximadamente 7% dos rapazes e 5% das raparigas com autismo estejam afectados pela SXF. Por isso, todas as crianas com autismo de causa desconhecida devem ser rastreadas para a SXF.

    As raparigas com mutao completa podem, ocasionalmente, apresentar alguns comportamentos similares aos encontrados nas crianas com autismo, mas mais tipicamente apresentam um desenvolvimento cognitivo limite ou um ligeiro dfice, e dificuldades de aprendizagem. A timidez e a ansiedade so comuns e esto descritos problemas de ateno, normalmente sem hiperactividade, em 30% das raparigas. O problema acadmico mais comum a dificuldade na aprendizagem da matemtica. As perturbaes da linguagem requerem frequentemente terapia especfica e incluem dificuldades no processamento auditivo, na compreenso e na memria a curto e a longo prazo. Correspondem, habitualmente, a problemas mais ligeiros do que os apresentados pelos rapazes com a SXF. A perturbao da coordenao motora requer terapia ocupacional em aproximadamente um tero das raparigas afectadas. Assim, todas as irms de rapazes com a SXF devem ser estudadas para a SXF, preferencialmente para o gene FMR1 e para o tipo de mutao. Com teraputica apropriada, incluindo o apoio educativo especial, teraputica medicamentosa (quando indicada), entre outros, possvel melhorar-se significativamente o futuro destas raparigas.

    Relativamente suspeio diagnstica, as caractersticas comportamentais so, geralmente, mais teis do que as caractersticas fsicas na criana pr-pubertal com a SXF. As caractersticas fsicas mais comummente encontradas em rapazes jovens so: orelhas grandes e evertidas (em linguagem popular, orelhas de abano) e macrocrnia (cabea grande). Uma face longa e estreita, com a fronte e a mandbula proeminentes, encontra-se mais frequentemente nos homens adultos. A hiperlaxido ligamentar, traduzida por mobilidades articulares exageradas, ps planos (ps chatos), palato em ogiva (cu da boca muito alto), escoliose (desvio lateral da coluna), e pele muito suave (tipo-veludo), especialmente nas mos (embora nas palmas, a pele esteja frequentemente enrugada), so os achados mais comuns. O macroorquidismo (testculos grandes) est presente em 80% de rapazes ps-pubertais com a SXF, mas s ocorre em aproximadamente 20% de rapazes pr-pubertais. Outras caractersticas que podem ser observadas incluem: a prega palmar nica (em 30% dos casos), calosidades nas mos (secundrias s mordeduras repetidas das mos), e maneirismos ou estereotipias das mos.

    Episdios convulsivos ocorrem em 20% das crianas afectadas. Geralmente, so bem controlados com medicamentos anticonvulsivantes, e desaparecem depois da puberdade. Em cerca de 50% dos rapazes com a SXF, o electroencefalograma revela alteraes.

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    Otites mdias agudas recorrentes so comuns nestes rapazes. Estas infeces recorrentes ou a presena de otite serosa (grosseiramente, corresponde persistncia de lquido no ouvido mdio) podem exacerbar os problemas de linguagem, por causa de uma diminuio ou da perda da audio. Justifica-se, ento, um tratamento mais "agressivo", frequentemente com colocao de tubos transtimpnicos (tubos que atravessam a membrana do tmpano).

    O estrabismo ocorre em aproximadamente 30% destes rapazes, pelo que a avaliao oftalmolgica obrigatria na primeira infncia. Outros problemas oftalmolgicos so relativamente frequentes, nomeadamente os erros de refraco (como a miopia, o astigmatismo ou a hipermetropia) e o nistagmo (tremor no intencional do globo ocular).

    O prolapso da vlvula mitral (vlvula entre a aurcula e o ventrculo esquerdos) aparece em cerca de 50% dos homens adultos atingidos. Assim, quando identificado, obriga profilaxia da endocardite bacteriana (infeco intra-cardaca) durante os procedimentos dentrios e/ou cirrgicos que possam provocar contaminao bacteriana do sangue. Ocasionalmente, pode existir insuficincia mitral importante, que requer seguimento cuidadoso. Todos os doentes com auscultao cardaca alterada devem ser encaminhados para avaliao cardiolgica.

    Contudo, o mais importante de todos os problemas atrs referidos , sem dvida, o DFICE COGNITIVO, que, em grau varivel, afecta quase todos os rapazes e 50-70% das raparigas com a mutao completa. Estima-se que esta sndrome represente cerca de 10% de todas as causas de DFICE COGNITIVO. A interveno no DFICE COGNITIVO assenta, basicamente, na prestao de cuidadas mdicos, educativos e sociais, numa perspectiva pluridisciplinar, e sempre com a participao efectiva da famlia.

    Os rapazes quase sempre necessitam de terapia da fala e de apoio educativo especial, para maximizar o seu potencial de desenvolvimento.

    A teraputica para os problemas comportamentais e emocionais centra-se principalmente nas perturbaes da ateno e na hiperactividade. Os psico-estimulantes, particularmente o metilfenidato, so teis numa percentagem significativa de crianas com cinco ou mais anos de idade. O uso de cido flico controverso, embora alguns estudos sugiram que pode ser til para um nmero limitado de crianas em idade pr-pubertal, com um efeito semelhante ao dos psico-estimulantes. A teraputica medicamentosa dever sempre ser considerada como um dos aspectos de um programa de interveno integrado.

    Estas crianas devem ser integradas em instituies de ensino regular com apoio educativo especial (e no serem institucionalizadas).

    O diagnstico da SXF importante por: a) permitir a teraputica adequada e atempada; b) oferecer o aconselhamento gentico criana e sua famlia.

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    O diagnstico consistia, e consiste nalguns centros, na demonstrao do situs X frgil (Xq27.3) no cromossoma X sob microscopia ptica. Actualmente, a anlise de DNA para sequncias repetidas de CGG tornou-se no exame padro para o diagnstico. Um risco elevado (aproximadamente 50%) de transmisso da mutao completa do FMR1 est presente em mulheres portadores da pr-mutao, e o diagnstico pr-natal e as novas tecnologias de reproduo podem prevenir a repetio da SXF.