Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

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A FILOSOFIA POLÍTICA E JURÍDICA A PARTIR DE OCKHAM (Sobre a elaboração dos conceitos de “direito”, “direito subjetivo” e “direito de propriedade” em Guilherme de Ockham) Willis Santiago Guerra Filho SUMÁRIO Introdução 1. Sobre Guilherme de Ockham (com um aceno à modernidade de concepções filosóficas e jurídicas por ele desenvolvidas) 2. Considerações metodológicas 3. Sobre a proposta de análise estrutural 1ª. Parte I. Doutrinas medievais das distinções 1.A. O ser considerado como tertium quid 1.B. A distinção formal ex natura rei 2. Ato e potência 2.A. Posição unitarista 2.B. Posição essencialista 1

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A FILOSOFIA POLÍTICA E JURÍDICA A PARTIR DE OCKHAM

(Sobre a elaboração dos conceitos de “direito”, “direito subjetivo” e “direito de

propriedade” em Guilherme de Ockham)

Willis Santiago Guerra Filho

SUMÁRIO

Introdução

1. Sobre Guilherme de Ockham (com um aceno à modernidade de

concepções filosóficas e jurídicas por ele desenvolvidas)

2. Considerações metodológicas

3. Sobre a proposta de análise estrutural

1ª. Parte

I. Doutrinas medievais das distinções

1.A. O ser considerado como tertium quid

1.B. A distinção formal ex natura rei

2. Ato e potência

2.A. Posição unitarista

2.B. Posição essencialista

3.A. A causalidade por ordem recíproca de diversas causas

3.B. A causalidade concorrente não recíproca das causas parciais.

II. Princípios fundamentais do pensamento teológico-filosófico de Ockham

III. Noções básicas da “lógica semiológica” desenvolvida por Ockham

IV. A epistemologia em Ockham

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2ª. Parte

V. A querela sobre a pobreza franciscana

VI. A concepção de direito natural

VII. Desenvolvimento das noções de direito subjetivo e objetivo

3ª. Parte

VIII. Considerações conclusivas sobre a noção de direito de propriedade em

Ockham e sua repercussão

Bibliografia

Introdução

1. Há poucas datas fixadas com precisão na vida de Ockham.

Data e local de nascimento são apontados, vagamente, como situando-se na

década de 1280, provavelmente no Condado de Surrey, distante um dia de

viagem a sudeste de Londres. Sobre o ingresso na ordem franciscana e os

estudos de teologia em Oxford pouco se sabe. Uma data que se dá como certa

é a da ordenação com subdiácono em Southwark, por Robert Winchelsey,

arcebispo de Canterbury, em fevereiro de 1306, sendo a idade normal para

esta investidura os dezoito anos de idade. Da mesma forma, pode-se supor

que até 1310 ele cumpriu sua formação básica em filosofia, ainda em Londres,

passando ao estudo da teologia, provavelmente já em Oxford, e iniciando a

leitura ou interpretação (Reportatio) das “Sentenças” de Pedro Lombardo,

provavelmente entre 1317 e 1319, concluindo, assim, o bacharelado em

teologia, habilitando-se para a obtenção do grau de mestre.1

1 Cf. William J. Courtenay, “The Academic and Intellectual Worlds of Ockham”, in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 19 ss.

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Em torno de 1321, Ockham foi nomeado professor de filosofia em

uma das escolas franciscanas de Londres, quando então se inicia o período em

que produz suas principais obras de lógica, filosofia natural e teologia. É

quando suas idéias já começam a ganhar notoriedade e também se tornar

objeto de controvérsias, que terminarão ensejando a convocação, em 1324,

para comparecer perante o Papa João XXII, refugiado em Avignon – após a

ocupação de Roma por Luís da Baviera, escolhido imperador pela maioria dos

reis-eleitores do Sacro Império Romano-Germânico, tendo o Papa coroado o

candidatos derrotado, o francês Felipe, o Belo -, sob a acusação de praticar

ensinamentos falsos e heréticos.

A comissão nomeada para examinar a doutrina de Ockham era

integrada por doutores em teologia parisienses, em geral dominicanos, e

apenas um proveniente de Oxford, John Lutterell, sendo quase todos eles de

orientação tomista – o Papa João XXII vinha de canonizar Tomás de Aquino -,

a exceção apenas do dominicano Durand de Saint Pourçain, um simpatizante

da teologia de Duns Scot.2

Na noite de 26 de maio de 1328, com o recrudecimento das

disputas teológicas sobre a pobreza franciscana, juntamente com o superior da

ordem, Miguel de Cesena e outros frades, Ockham foge de Avignon para

refugiar-se junto a Luís da Baviera, inicialmente na Itália, depois em Munique,

onde nosso A. terminaria os seus dias - ao que tudo indica vítima da peste

negra -, em 1347, dedicando-se à elaboração de escritos políticos e libelos

contra o Papa João XXI e seu sucessor, Benedito XII, a quem acusava de

heréticos.

2 Cf. id. ib., p. 25.3

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Guilherme de Ockham foi considerado um dos introdutores da

chamada via moderna,3 que conduz o pensamento filosófico para além da

Escolástica medieval,4 diretamente na ambiência moderna,5 isto é, ensejando,

dentre outros desenvolvimentos, a emergência do “paradigma da

subjetividade”. Sua preocupação com a análise lógica da linguagem, por outro

lado, o torna precursor, igualmente, do que se pode considerar a temática

fundamental de nosso tempo, em filosofia.6

Apesar disso, trata-se de um pensador ainda relativamente pouco

estudado, vítima de um “preconceito elevado à segunda potência”, pois tanto é

preterido por ser um autor medieval, como também por não ser um daqueles

3 Já no século XV o epíteto venerabilis inceptor, atribuído a Ockham por não ter atingido o grau de mestre, por razões políticas, aparece ampliado para venerabilis inceptor viae modernae, cometendo-se uma dupla imprecisão: uma terminológica, por confundir “iniciante” com “iniciador”, outra histórica, pois se a via moderna pode ser associada à adoção do nominalismo ou, como em Thomas Bradwardine (+ 1349), à doutrina da predestinação divina, em nenhuma dessas hipótese o pensamento ockhamiano, por mais importante que seja, pode ser considerado pioneiro. Cf. Heiko A. Oberman, “Via antiqua and via moderna: late medieval prolegomena to early reformation thought”, in: “From Ockham to Wyclif”, Anne Hudson & Michael Wilks (eds.) Oxford/New York: Basil Blackwell, 1987, p. 445 ss.4 Segundo Gordon Leff, por seu intermédio, operou-se em verdade uma “transformação do discurso escolático”. Cf. “William of Ockham. The Metamorphosis of Scholastic Discourse”, Manchester: Manchester University Press, 1975.5 Cf., nesse sentido, Hans Blumenberg, “Säkularisation und Selbstbehauptung”, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, pp. 173 ss.6 Para uma aproximação - de resto, no mínimo, temerária -, entre o pensamento de Ockham e a filosofia contemporânea da linguagem cf., v.g., F. Bottin, “La scienza degli occamisti. La scienza tardo-medievale dalle origini del paradigma nominalista alla rivoluzione scientifica”, Rimini: Maggioli, 1982; id. “La scienza secondo Guglielmo di Ockham”, in: “A Ciência e a Organização dos Saberes na Idade Média”, De Boni, Luiz Alberto (org.), Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, pp. 315 ss.; Th. De Andrés, “El nominalismo de Ockham como filosofía del lenguaje”, Madrid, 1969; M. Kaufmann, “Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham”, Leiden: Brill, 1994; C. Panaccio, “Le mots, le concepts et les choses. La sémantique de Guillaume d’Occam et le nominalisme d’aujourd’hui”, Montréal/Paris: Bellarmin/Vrin, 1991; R. Pasnau, “Theories of cognition in the later middle Ages”, Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1997; P. V. Spade, “Thoughts, Words and Things: An introduction to Late Medieval Logic and Semantics, Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1996. É certo, contudo, que provavelmente por influência de Bertrand Russell – o qual em uma obra como “The Problems of Philosophy”, de 1928, se ocupou de questões pertencentes ao campo de investigações ockhamianas -, é comum encontrar entre filósofos analíticos como Wittgenstein, na proposição 5.47321 do “Tractatus Logico-Philosophicus”, ou W. O. Quine, em “Quiddities. An Intermittenly Philosophical Dictionary”, Cambridge: Harvard University Press, 1987, p. 12, referência à “navalha de Ockham”, numa rara concessão a um filósofo medieval.

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que se costuma considerar característicos do período histórico em que viveu –

o que de fato não foi. É assim, por exemplo, que suas obras só na última

década do século XX foram completamente editadas.

Não resta dúvida, contudo, quanto à intensificação dos estudos a

respeito de nosso autor, como se pode constatar a partir da bibliografia abaixo

indicada, que de longe se pretende seja exaustiva, ou então com uma rápida

consulta aos sites de pesquisa da internet.

O estudo da contribuição do pensamento ockhamista à filosofia do

direito, por seu turno, é ainda menos desenvolvido do que aqueles referentes a

outros aspectos deste pensamento, como por exemplo aqueles atinentes à

epistemologia e à teoria dos signos, a semiologia – para a tradição que se

origina em de Sausure - ou semiótica – para a vertente peirceana. Para

verificar essa afirmação, basta consultar as obras mais abrangentes sobre

nosso A., como a de Marilyn McCord Adams,7 observando a ausência de um

capítulo dedicado especificamente ao seu pensamento jurídico.

Mesmo com essa escassez de estudos sobre o aspecto jurídico

da filosofia ockhamiana, a hipótese que se suscita e pretende verificar, no

trabalho aqui proposto, é a de que em decorrência de seus pressupostos

teóricos, seguidos com máxima firmeza e coerência, bem como de fatores

históricos, que levaram Ockham a se engajar prática e teoricamente na política,

foi nesse pensamento que se forjou a pedra de toque da construção moderna

do Direito - e, também, da ideologia predominante em nosso tempo, no que lhe

é mais característico: o individualismo.8

É certo que dificilmente se detectará uma influência direta de

Ockham no desenvolvimento moderno do Direito, pois seus escritos de caráter

7 “William Ockham”, 2 Vols., Notre Dame (Ind.): University of Notre Dame Press, 1987. 8 Cf. L. Dumont, “O Individualismo”, São Paulo: Rocco, 1993, esp. p. 76 ss.

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jurídico se produziram em um contexto teológico-político. A filosofia do direito,

por seu turno, enquanto ramo diferenciado da filosofia, é também uma

aquisição recente, tipicamente moderna. O principal desses escritos

ockhamianos, de relevância jurídica – ou, pelo menos, o que se nos afigura o

mais importante, nesse contexto – é a Opus nonaginta dierum, onde já nas

páginas iniciais, como destaca M. Villey,9 se percebe a passagem do discurso

jurídico romano para aquele moderno. “C’est ici”, comenta o jurista e filósofo

francês (ib.), “que Guillaume d’Occam a eu l’occasion de définir explicitement le

droit subjectif et, problablement le premier, d’en édifier la théorie”.

Por outro lado, se os juristas de então, como os de hoje e de

ontem, desenvolvem sua semântica, tanto jurídica como jusfilosófica, sem

maiores contatos com a produção filosófica em geral, é possível detectar

concordâncias e influências mútuas entre o pensamento escolástico e aquele

jurídico, como demonstra em obra de extraordinário valor Ernst H.

Kantorowicz.10 É assim que o glosador Baldus, a partir de exposições

anteriores de Bartolo e Acúrsio, considerava uma cidade, assim como o gênero

humano “algo universal” (quoddam universale), o que nos evoca associações

imediatas com os Universais dos filósofos e a universitas fidelium, a Igreja

universal dos teólogos e canonistas, uma “pessoa fictícia”, assim como as

universitates, enquanto os Universais, para os nominalistas – inclusive

Ockham, antes de endossar a crítica que lhe dirigiu Walter Chatton -, eram

fictiones intelectuales.

A concepção de universitas, enquanto corpo social fictício que

forma um todo, no qual os indivíduos concretos nada mais são do que partes, é

a representação fidedigna de uma visão que preponderou durante todo o 9 “Seize Essais de Philosophie du Droit”, Paris: Dalloz, 1969, p. 158.10 “Os Dois Corpos do Rei. Um Estudo sobre Teologia Política Medieval”, S. Paulo: Cia. Das Letras, 1998, pp. 185 ss., passim.

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período histórico que antecede a modernidade. Para que esta se instaure, vai

se fazer necessária a erosão daquela concepção, para que emirja a sua

substituta moderna, a societas, reunião de socius. E isso tanto se dará no

plano institucional, como naquele ideológico, onde desempenha um papel de

grande importância a crítica nominalista da noção de universais, que resulta na

defesa da existência apenas de entidades individuais – e, logo, também na

promoção do individualismo, ainda que contra a disposição de seus

defensores, como Ockham.

É com o individualismo e a correspondente noção jurídica de

direitos subjetivos, dentre os quais avulta o direito de propriedade, que se vai

consolidar a idéia de autoria intelectual, favorecida, ainda, pelo aparecimento

de novos meios de reprodução das obras intelectuais, com a invenção da

imprensa. Embora Guilherme de Ockham tenha sido um dos autores mais

beneficiados pela difusão em larga escala de obras impressas, logo que ela

passou a ocorrer, naquele momento ainda não se tinha consolidado o hábito

científico da indicação de fontes, por meio de citações, em autores já do

período que, posteriormente, será tido como “moderno”.11 Daí que, apesar de

podermos rastrear influências de autores medievais em autores já modernos,

assim como de autores medievais mais antigos naqueles mais recentes, fica-se

constrangido, nesse campo, a fazer especulações, caso se pretenda avançar.

Nos debruçaremos, portanto, sobre a gênese de um dos

conceitos jurídicos fundamentais da modernidade, o de direito subjetivo, em

uma dimensão pouco explorada, almejando contribuir para repensá-lo, no

momento em que dele resultou um conceito mais abrangente, o de “situações

11 Curiosamente, na atualidade, em razão do desenvolvimento dos meios de comunicação telemática, por internet etc., presenciamos um comprometimento da noção de autoria.

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jurídicas subjetivas”, e também se passa a afirmar seu caráter secundário e

subordinado ao direito objetivo.

Vale notar, por outro lado, a revalorização contemporânea da

noção de status, usada para definir, por exemplo, os direitos subjetivos par

excellence, que são os direitos fundamentais. E aquela noção, antes da

modernidade, ocupou a mesma posição destacada que veio a ocupar a de

“direito subjetivo” e outras a ele correlatas, na organização jurídica da

sociedade, antes de enveredar pelo desenvolvimento próprio da nossa, na

modernidade, donde ser pertinente suscitar a hipótese de que esta estaria

fenecendo, juntamente com a idéia que lhe é congenial, de “autonomia da

vontade”, ao tornar-se tardia essa modernidade. É de sua renovação que tanto

necessita o Direito e o Homem, em uma sociedade que já se diferenciou

bastante – e de forma sempre mais veloz continua se diferenciando – em

relação aos modelos concebidos na modernidade, modernidade essa que,

como também se pretende evidenciar no estudo ora proposto, já data de há

muito mais tempo do que se costuma pensar. Não é de se estranhar, portanto,

a circunstância de a sociedade instituída com a modernidade, a sociedade

capitalista ocidental, que por força de sua lógica interna torna-se mundial,

apresente sinais cada vez mais agudos de esgotamento: revigorá-la talvez

requeira um retorno às discussões que a geraram, abordando aspecto tão

fundamental, como é aquele pertinente à formação do conceito de

subjetividade jurídica, onde de forma pioneira se tem uma afirmação da

individualidade e suas prerrogativas.

Daí que é de se esperar, ao final do presente trabalho, de um

lado, contribuir para a ampliação do conhecimento a respeito da filosofia de

Guilherme de Ockham, ao abordar o seu aspecto jurídico, e de outro lado,

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verificar a possibilidade de se empregar aquela filosofia, a um só tempo

singular e marcada pela preocupação com a singularidade, para refletir

filosoficamente sobre problemas contemporâneos do Direito, dentre os quais

avulta o de se buscar soluções a casos que precisamos considerar em sua

singularidade, por seu elevado grau de ineditismo e pelas elevadas exigências

contemporâneas para realização de pautas normativas as mais diversas.

A seguir, pretende-se, em uma primeira parte, (I) expor

sucintamente o “solo” (para dizer com Ortega y Gasset) em que se fundamenta

o pensamento filosófico ockhamiano, o que pressupõe referir a uma estrutura

que já é transcendental, como só se revelará mais explicitamente em

Descartes e, em toda plenitude, em Kant, mas que será cunhada

fundamentalmente pelo grande antecessor de Ockham na linha agostiniana de

pensamento da Ordem Franciscana, a saber, John Duns Scot. Em seguida, (II)

rememorar os princípios teológicos seguidos por Ockham, bem como (III) as

categorias básicas da “lógica semiológica” por ele desenvolvida e (IV) sua

epistemologia, na medida em que sua concepção política e jusfilosófica se

fundamenta nesses pressupostos filosófico-teológicos mais gerais. Este será o

tema da segunda parte do trabalho, quando se enfocará (V) a chamada

“Querela da Pobreza Franciscana”, para expor como nesse contexto, sobretudo

no enfrentamento de Ockham com o Papa João XXIII, surge por parte daquele

a elaboração singular do conceito de direito de propriedade, que antecipa

aquele moderno de direito subjetivo, (VI) para assim poder examinar o conceito

de direito, natural e objetivo, de nosso A., a fim de, em seguida, (VII) situar a

contribuição específica de Guilherme de Ockham, comparando-a com a de

autores imediatamente anteriores, contemporâneos seus e posteriores, para

então sugerir que se explore o potencial explicativo, na atualidade, do conceito

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de “direito subjetivo” e outros a ele correlatos, tal como desenvolvidos

originalmente no âmbito do pensamento ockhamiano, ao incluir a noção de

“singularidade”, tanto na filosofia jurídica, como também em filosofia política e

moral, e então, por fim, (VIII) examinar mais detidamente o conceito de direito

de propriedade em nosso A. Antes de passarmos ao estudo propriamente de

nosso assunto, cabe expender, ainda em sede introdutória, algumas

considerações metodológicas.

2. Entendemos que toda exposição parte de pressupostos,

pressupostos estes que, dependendo do campo do saber, serão axiomas,

postulados, hipóteses ou mesmo dogmas, como ocorre mais freqüentemente

em teologia e em Direito, mas também em filosofia, considerando como

dogmata o conjunto de teses em que se sustenta uma doutrina ou sistema

filosófico.12 Em se tratando de uma exposição filosófica, tais pressupostos

assumem características peculiares, decorrentes da própria natureza deste tipo

de saber, a filosofia. A filosofia – e eis aí enunciado já um de nossos

pressupostos – é um saber incerto de si mesmo, se comparado com os

12 Nesse sentido, Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Ieda e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: DIFEL, 1963, p. 139. Também, com apoio em E. Husserl, pode-se considerar a postura dogmática como a única alternativa que se apresenta a quem acredita na possibilidade de um acesso à verdade pelo conhecimento, repelindo o ceticismo - cf. Philippe van den Bosch, “A Filosofia e a Felicidade”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 14, texto e nota, e p. 256. Por fim, com apoio em Tercio Sampaio Ferraz Jr. – cf., v.g., "A filosofia como discurso aporético", in: A Filosofia e a Visão Comum do Mundo, em colaboração com Bento Prado Jr. e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: Brasiliense, 1981 -, pode-se indicar o caráter dogmático da filosofia como equivalente à natureza aporética, paradoxal, das questões que ela tipicamente coloca, enquanto questões reflexivas, circulares, que remetem a si mesmas, tal ocorre com a questão sobre o que é a filosofia, a qual já pressupõe a própria filosofia, enquanto discurso sobre o que é o ser dos entes: a filosofia só pode ser praticada com base numa concepção do que seja fazer isso, filosofar, o que por sua vez é um fator determinante do conteúdo e resultado desse filosofar. Atribuir uma tal natureza à filosofia, dogmática, note-se bem, não é o mesmo que condená-la ao dogmatismo, o que só acontece quando há a recusa em discutir os dogmas, tornando-os imunes à crítica. Um passo importante para prevenirmo-nos do dogmatismo em filosofia seria justamente essa assunção do caráter dogmático da filosofia, ao invés de tentar mascará-lo, insinuando possuir uma resposta verdadeira e definitiva quando apenas se erigiu um dogma, uma tese.

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demais, desde aquele do senso comum até o das ciências, passando por

aqueles de natureza mágica ou mítica, religiosa e artística. Mas nesta

fragilidade reside, ao mesmo tempo, a grandeza da filosofia, visto que advém

de seu compromisso radical com a criticidade, com a problematização total,

que leva a que ponha e reponha até a si mesma como problema a ser

enfrentado, dependendo dos resultados deste enfrentamento o modo como se

procederá em seu âmbito uma investigação. Desnecessário lembrar que os

pressupostos aqui apresentados o são para serem discutidos e, se for o caso,

retificados ou, mesmo, abandonados, sendo esta disposição para revisar seus

pressupostos uma das características de um saber que se pretenda

consentâneo à Civilização tecnocientífica em que vivemos. É para favorecer a

crítica, portanto, que se busca explicitar – e assumir – os pressupostos por nós

assumidos

É de uma perspectiva filosófica mais geral, situada no âmbito do

que em estudos anteriores propusemos se considerasse uma “filosofia da

filosofia”,13 que, em seguida, passamos a expender algumas considerações

preliminares sobre a própria natureza dos pressupostos de um conhecimento

filosófico, em contraste com aquele das ciências, sejam elas explicativas,

empíricas ou formais, sejam compreensivas, como costumam ser aquelas mais

voltadas para o fenômeno humano. Propomos que os pressupostos filosóficos

não são axiomáticos, hipotéticos nem muito menos dogmáticos, donde se

poder ainda diferenciar um campo específico de investigação para a filosofia.

Também não seria característico do pensamento filosófico uma natureza

conjetural, que o tornaria uma espécie de pensamento pré-científico, composto

por assertivas plausíveis, a espera de comprovação. Nossa proposta é de que 13 Cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho, Para uma Filosofia da Filosofia. Conceitos de Filosofia, 2a. ed., refundida, Fortaleza: Programa Editorial Alagadiço Novo da Casa de José de Alencar (Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará), 1999.

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os pressupostos filosóficos, assim como uma investigação que a partir deles se

pretende desenvolver, configuram-se dentro de uma tradição que remonta aos

chamados “filósofos pré-socráticos” e se mantém perceptível até o presente,

caracterizada por seu caráter originário, quer dizer, forçando um pouco nossa

língua para ser mais fiel ao modo originário de expressão dessa idéia,

“principial”, do latim princeps, enquanto tradução do grego arché, donde se

poder denominar essa característica peculiar da investigação filosófica, tal

como certa feita propôs Martin Heidegger, de “arcôntica” (archontisch).14 Em

filosofia, portanto, em qualquer tema investigado, seja levando em conta o

passado, seja situando-se em uma perspectiva sincrônica, há de se buscar as

determinações fundamentais das questões que se coloca, as quais

permaneceram presentes nas respostas a serem dadas. Além disso, essas

respostas devem ocorrer nos moldes de um quadro explicativo que lhes dá um

sentido mais abrangente, enquanto parte de uma explicação que se pretende

integral, do modo como se articula o conjunto dessas partes em um todo

significativo. É assim que, para Manfredo Araújo de Oliveira, “a filosofia se

distingue das ciências particulares à medida que ela considera as coisas (os

particulares) em seu relacionamento com o todo, à medida que pretende

mostrar a presença do todo em todos os particulares. Sua tarefa é reconhecer

o todo no particular (para usar uma expressão de Schelling)” (grifos do A.). 15

14 Cf. M. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, Walter Bröcker e Käte Bröcker-Oltmanns (eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26.15 A Filosofia na Crise da Modernidade, São Paulo: Loyola, 1989, p. 157. Xavier Zubiri atribui a Aristóteles a primazia na identificação disto que se pode denominar a “catolicidade” da filosofia, ao se propor a estudar seu objeto em sua universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mas também no sentido de abarcar a totalidade das coisas, entendendo cada uma de acordo com seu lugar na totalidade dela. Cf., deste A., Cinco lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7a. reimpr., 1999, p. 30; id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros Escritos (1932 – 1944), Madri: Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre os diversos sentidos da “catolicidade” em Aristóteles, Oswaldo Porchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São Paulo: Ed. UNESP, 2001, pp. 152 ss.

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Do que se trata, afinal, como preconizam autores da tradição

francesa - recepcionada diretamente no Brasil por seus discípulos em São

Paulo -, a exemplo Martial Guéroult, Victor Goldschmidt e Gilles-Gaston

Granger, é de buscar nos autores, escolas e suas doutrinas filosóficas sua

contribuição para que se delineie “um quadro de interpretação significativa para

a totalidade da experiência”.16

3. O que se empreende a seguir é resultado de uma análise

estrutural, tal como proposta pelo professor suíço, da Universidade de

Lausanne, André de Muralt.17

A abordagem muraltiana, por ele mesmo denominada analítica e

estrutural, é também - e, ao nosso ver, primeiramente - genética, ou, como

propomos acima, “arcôntica”, tal como a própria filosofia. Isso porque as

estruturas analisadas nas diversas doutrinas filosóficas se fariam presentes, de

maneira mais clara, desde a primeira grande síntese – e, logo, literalmente, a

primeira grande depuração - do pensamento filosófico, aquela aristotélica,

podendo se encontrar formas embrionárias dessas doutrinas nos pensadores

que o antecederam, bem como nos seus contemporâneos e pósteros. Após a

sua explicitação, em Aristóteles, as diversas doutrinas filosóficas que se

sucederam, assim como outras formas de pensamento que entraram em

16 Cf. Paulo Eduardo Arantes, Um Departamento Francês de Ultramar, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 127. Note-se, com relação, pelo menos, a Guérolt e Granger, que se está a referir a posições que sustentavam no período em que Goldschmidt igualmente defendia sua postura metodológica de análise estrutural em filosofia.17 As fontes principais para se conhecer o método desenvolvido por este autor, bem como os resultados a que chegou, aplicando-o à filosofia teorética, com ênfase no período medieval, são as seguintes: L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofia prática e política, a referência é a obra publicada originalmente em 2002, La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández Polanco, Madri: Istmo, 2002.

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contato e se mesclaram com a filosofia, de natureza religiosa ou científica, vão

se constituir por sobre essas estruturas, que são fundamentalmente duas,

apoiando-se ora de maneira quase exclusiva sobre uma delas, ora sobre

ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos dessas

estruturas tem-se a distinção aristotélica, proposta para a compreensão

racional ou intelecção da realidade substancial em si mesma indiferenciada,

entre o que nela é forma e o que é matéria. Os entes singulares, todos e

quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e forma,

considerando-se como transcendental, pelo sentido etimológico mesmo, a

relação que as atravessa (de transcendere) e vincula, embricando-as.18 Para

de Muralt, a diversidade de posições adotadas pelas mais variadas doutrinas

do pensamento, filosófico ou não, de corte ocidental, está fundamentalmente

determinado pelo modo diferenciado como cada uma delas solucionará o

problema da articulação de forma e matéria, enquanto elementos básicos da

realidade, ou do modo de compreendê-la que é próprio da metafísica, seja

como ontologia, estudando as manifestações do ser em ação, em seu devir,

seja como teologia, estudando o ser como origem imutável de toda ação e

transformação. As duas estruturas fundamentais são as seguintes:

(A) A estrutura transcendente, que denominamos assim por ser

aquela que se constitui a partir da unidade transcendental de

forma e matéria no ente, considerando-se essa unidade nos

entes singulares como anterior à própria articulação desses

dois elementos que os compõem, os quais só se distinguem

por meio da análise teórica, racional e abstrata, feita sobre os

entes concretos. Essa estrutura é a que se vincula

18 Cf. A. de Muralt, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.14

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tradicionalmente a Aristóteles, especialmente após os

desenvolvimentos tomistas de seu pensamento.

(B) A estrutura transcendental, que assim denominamos por sua

origem na metafísica escotista, desenvolvida como

comentário a Aristóteles, mas tendo como objeto o que o

Doctor Subtilis denomina de “transcendentais”, enquanto tudo

aquilo que transcende o ser finito, no sentido de ir além dele,

participando do ser infinito, sendo comum a ambos, ou

exclusivo deste último.19 A origem mais remota desta estrutura

se encontra em Platão ou, antes, no pitagorismo, estando

também presente no neoplatonismo de Plotino ou de Santo

Agostinho. É em Scot, contudo, que se revelará em sua

plenitude esta estrutura, culminando um desenvolvimento que

tem sua origem mais próxima no perspectivismo oxfordiano

de Roger Bacon (1214/1220 – 1293?), recepcionando os

trabalhos de ótica de árabes como Alhazen (965 – 1039) e

dali extraindo conseqüências gnosiológicas que

amadurecerão em Scot, resultando em seu conceito original

19 Cf. Duns Scot, Quaestiones Subtilissimae in Metaphysican Aristotelis, prólogo, n. 5, in: id. Escritos Filosóficos, trad. e notas Carlos Arthur R. do Nascimento e Raimundo Vier, São Paulo: Abril, 1979, p. 339 e, ali, nota 1. Os transcendentais, tematizados já por Aristóteles, deve sua elaboração medieval mais bem acabada, segundo A. de Muralt, inicialmente, a Santo Tomás, no De veritate, q. 1, a. 1. As “metafísicas dos transcendentais”, no sentido em que a elas se refere Muralt, na ob. ult. cit., p. 18 ss. – v. esp. p. 22 -, têm em Scot uma elaboração paradigmática, e se caracterizam por atribuírem a algum dos transcendentais o papel de definir o ser, o que não aparece na estrutura aristotélico-tomista. É assim que, na continuação desta obra, o precitado A. postulará só haverem dois tipos de metafísicas fundamentais (ou estruturas), aquelas do ser, transcendentes, como a aristotélico-tomista, que então seriam sobretudo ontológicas, e as diversas “metafísicas do Um”, dos transcendentais, mais teológicas – no sentido aristotélico, bem entendido. Curiosamente, Muralt vinculará sua proposta de análise das estruturas de pensamento, à estrutura (mais propriamente) aristotélica, aquela que denominamos transcendente, visto ser ela “um instrumento de caráter autenticamente filosófico” – cf. id. ib., p. 54 -, uma vez que “permite a compreensão das obras do pensamento humano na sua unidade e sua ordem própria” – id. ib., p. 53, grifos do A. -, ou seja, naquela perspectiva de “catolicidade” antes mencionada. .

15

Page 16: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

de intentio.20 No que tange o problema da forma e matéria,

pela distinção formal a parte rei ou ex natura rei (pela

natureza das coisas), em Scot ambas são separadas

entitativamente, por considerá-las como dois entes que são

em si e por si mesmos, independentemente um do outro, e

antes mesmo de se articularem para daí resultar algum outro

ente, em relação ao qual são como partes de um todo.

Examinemos agora, brevemente, o modo diverso como nas duas

estruturas, a partir de suas determinações fundamentais, se resolvem

problemas tipicamente gnosiológicos e ontológicos, isto é, filosóficos.

1ª. Parte

I

1. As disputas medievais sobre as distinções se dão “historialmente”21 na

Europa desde o século XII até pelo menos meados do século XVIII, enquanto

ainda houve quem se dedicasse explicitamente à construção de sistemas

metafísicos, pois não há como imaginá-los sem uma teoria ou, pelo menos,

uma tomada de posição sobre as distinções. Vejamos como a questão aparece

em cada uma das estruturas fundamentais acima apresentadas.22

20 Cf. Matthias Kaufmann, Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham, Leiden et al.: Brill, 1994, pp. 200 ss.; Katherine Tachau, Vision and Certitude in the Age of Ockham, Leiden: Brill, 1988, pp. 58 ss.; sobre Alhazen, recentemente, entre nós, Roberto Hofmeister Pich, “Subordinação das ciências e conhecimento experimental. Um estudo sobre a recepção do método científico de Alhazen em Duns Scotus”, in: Luis A. De Boni e id., “Recepção do Pensamento Greco-Romano, Árabe e Judaico pelo Ocidente Medieval, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 573 ss.; já sobre Roger Bacon, cf. Carlos Arthur R. do Nascimento, De Tomás de Aquino a Galileu, Campinas (SP): IFCH/UNICAMP, 1995, p. 101, passim.21 Empregamos o neologismo para distinguir o que é da ordem meramente histórica, do acontecido, registrado e catalogado em épocas pela ciência da história, daquilo que se dá em um “tempo lógico”, para referir a expressão goldschmidtiana, no estudo citado anteriormente.22 Cf. A. de Muralt, L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., pp. 47 ss., bem como o resumo feito por Francisco León Florido e Valentin Fernández Polanco no Estudio introductorio, in: A. de Muralt, La estructura de la filosofia política moderna, cit., pp. 16

16

Page 17: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

1.A. Na estrutura transcendente o ser é considerado o tertium quid

comum, ao qual se pode remeter qualquer assertiva, donde poder ser dito de

diversas maneira (pollakos), através das categorias (kategorein), enquanto os

diferentes modos de um ser que só se mostra (dêixis), desde si mesmo (apo), e

por si mesmo (kat´auton), neste dizer-se racionalmente ou “raciocinante”

(analogismos), unificador e “decodificador” (analego). Na concepção mais

propriamente aristotélica, o ser é simultaneamente uno e múltiplo, fundando

sua unidade na identificação com a existência, que não nem uma realidade em

si nem uma idéia a parte das substâncias concretas existentes, mas sim o

surgir de cada ser que é, o nascer de cada ente, a physis ou “nascividade”,23

como um todo sem partes, um composto indivisível de matéria e forma. A

unidade do ser consiste, assim, na continuidade dos processos da existência

aos quais se denominava “natureza” (physis), já entre os pré-socráticos ou,

como Aristóteles mesmo a eles se referia, os “fisiólogos”. A distinção entre

forma e matéria, assim como qualquer outra, em relação aos seres naturais,

será uma “distinção da razão”, para efeito de análise lógica, lingüística, do que

na realidade é uno e indissociável em sua atividade e existência. Do mesmo

modo, o conhecimento e a vontade, as duas potências da atividade do ser

humano, se encontram submetidas a estas exigências de unidade,

estabelecidas naturalmente no âmbito de sua atuação, em relação aos objetos

aos quais se dirigem. Estes, no campo do conhecimento, teorético, com o

predomínio das faculdades noéticas, tornam-se conceitos, e naquele prático ou

político, com o predomínio da vontade, tendem para o bem.

ss.23 É este o termo que Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski sugerem que se empregue para traduzir a noção fundamental, originariamente pré-socrática, de physis. Cf. Os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito, trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski, Petrópolis: Vozes, 1991.

17

Page 18: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

1.B. Na estrutura transcendental, com a proposta de distinção formal ex

natura rei, em contraposição às distinções reais e de razão – ou “superando

dialeticamente” esta contraposição, enquanto verdadeiro tertium quid -24, a

consideração da forma passa a se impor sobre aquela da matéria, assim como

o intelecto sobre a natureza e a vontade sobre seu objeto. Isso porque aí o

intelecto não se dirige mais naturalmente ao conhecimento das coisas a serem

conhecidas, passando a criar seu próprio objeto de conhecimento, sem relação

necessária com a realidade em si daquilo a que representa, tal como é no

mundo, na natureza, visto que agora importa mais a consideração do efeito

modificador que sofre o intelecto com sua própria atividade. A melhor

expressão do novo modo de conhecer seria a doutrina do ser objetivo (esse

objectivum), contido no intelecto, o qual representa mais sua atividade subjetiva

do que o ser dos entes. Assim, cada elemento do todo que a análise lógica

detecta nas coisas termina adquirindo seu próprio ser, o qual, no entanto, já

não pode ser substancial, existindo como unidade de forma e matéria, mas tão-

somente formal, ser objetivo, recebendo seu ser da atividade intelectiva pela

forma, analítica e dedutivamente, more geometrico.25

24 Cf. A. de Muralt, L´enjeu de la philosophie médiévale, loc. ult. cit.25 De Muralt destaca ainda que, na esteira de sua inadvertida alteração da doutrina propriamente aristotélica das distinções, com a introdução da distinção ex natura rei, Duns Scot dá ensejo, igualmente, a uma concepção nova da definição, que se fará mais abstrata do que aquela feita por gênero próximo e diferença específica, própria do procedimento indutivo e empirista empregado normalmente na metafísica aristotélica. Como na concepção escotista o objeto de conhecimento é in esse rei tal como está constituído in esse objecti (ou in esse cogniti), não importando –o que ficará de todo evidente em Guilherme de Ockham -, para conhecê-lo, que haja vínculo com objetos reais, entende-se que esteja aí o ponto de partida para a metafísica especulativa dedutivista que será elaborada, exemplarmente, por Francisco Suárez, no século XVI, que tanto veio a influenciar o racionalismo cartesiano como também, via Leibniz e Wolff, a Kant ou até a concepção dialética hegeliana e os seus adeptos, materialistas ou não, sendo, portanto, a verdadeira matriz de todo o pensamento moderno, já não mais metafísico em sua intenção, mas construído segundo os mesmo princípios arquitetônicos concebidos por Scot, desenvolvidos, entre outros, por Ockham e praticados, exemplarmente, por Suárez. Cf. A. de Muralt, ob. ult. cit., pp. 85 ss. Essa mesma “dialética das formas e da matéria” será aplicada ao campo do direito, já em Scot, depois de maneira mais extensa em Ockham, culminando com o aporte de Suárez, como demonstra a obra fundamental de Michel Bastit, Naissance de la loi

18

Page 19: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

Ao mesmo tempo, no campo da “razão prática”, do esse objectivum

prático, do bem a ser feito (bonum faciendum), o objeto desejado, esse

volitum,26 se concebe como já contido na vontade que o busca, de modo que

esta vontade se revela como querendo a si mesma, como “vontade de

vontade”. É assim que, uma vez operada a distinção formal, não se concebe

mais o intelecto como tendendo naturalmente à verdade, enquanto sua matéria

própria, passando a transformar o objeto em verdadeiro já pelo simples fato de

inteligí-lo, da mesma forma que a vontade não deseja o bem porque seu ser

nela repousa, mas antes é ela que converte em bem o que por ela é desejado

e imposto como lei.

2. A existência, na física e na metafísica aristotélicas, além da unidade

de matéria e forma, pressupõe também o movimento e a transformação do que

existe, sem que isso resulte, como entre os eleatas, nas aporias que indicariam

a impossibilidade do movimento e da mudança, por significarem uma

passagem do ser ao não-ser. É nesse contexto que um novo par de conceitos

metafísicos é introduzido, a saber, aquele de ato e potência, acarretando novas

possibilidades e divergências doutrinárias.

2.A. O ser concebido em atividade, no âmbito da estrutura

transcendente, pressupõe a unidade no ser dos entes singulares,

substancialmente indissolúvel, entre ato e potência, assim como entre forma e

matéria, conceitos que são irredutíveis entre si e discerníveis apenas para

efeito de análise lógica. Cada ente, além de ser um composto substancial de

forma e matéria, ao movimentar-se, demonstra também a unidade de ato e

potência, podendo ser conhecido, individualmente, em seu ser ou substância

una, e universalmente, sob o aspecto da unidade de tudo o que é, enquanto

moderne, Paris: PUF, 1990.26 Cf. Id. Ib., p. 43.

19

Page 20: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

natureza, isto é, o que é comum: a existência. O instrumento privilegiado deste

modo de conhecer, na concepção mais propriamente aristotélica, não é a

lógica, cujas formas se imporiam à natureza, sendo antes, ao contrário, as

exigências desta, dos campos naturais de objetos suscetíveis de serem

conhecidos, que forjam, por analogia, as formas conceituais adequadas ao

conhecimento do que é comum, da natureza de tudo o que é.

2.B. Na estrutura transcendental, a essência do que é se define como

um atributo, uma qualidade que o diferencia do não-ser, de modo que os entes,

ao serem, possuem ipso facto a existência, a unidade, a verdade e o bem,

qualidade de tudo o que é pelo fato de ser. Nessa consideração essencialista,

torna-se viável a distinção dos atributos do ser, concebidos como existindo

independentemente enquanto idéias ou formas puras, o que patrocina a análise

formal e o método dedutivo. Estamos diante de uma herança platônica, que

será recuperada pela filosofia escolástica, quando Deus passa a ocupar o lugar

do ser supremo, enquanto as idéias contidas em seu intelecto seriam os

atributos transcendentais convertidos ao ser mesmo. Já o poder criador da

divindade é que abriria a possibilidade de uma participação dos entes nessas

qualidades, divinas, especialmente através daquele ente que foi criado à sua

imagem e semelhança. Então, assim como as idéias do intelecto divino tendem

a substancializar-se, “entificando-se”, no intelecto humano o ser objetivo das

idéias tornam-se independentes de seu ser formal, donde resulta que, da

consideração essencial do ser, se chega ao estabelecimento de um princípio

que define de antemão, a priori, o que é, como o que deve ser, em obediência

a um tal princípio – inicialmente, divino ou “sobrenatural”, e, na modernidade,

passa a ser o sujeito, seja o do cogito cartesiano, seja o sujeito transcendental

legislador kantiano, ou husserliano, que na contemporaneidade será ainda o

20

Page 21: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

sistema da linguagem como lógica, no “primeiro Wittgenstein”, ou como forma

de vida, no “segundo Wittgenstein”, e, até, ainda a título exemplificativo, o

inconsciente do texto em Derrida.

3. Para fazer uma última consideração dos elementos anteriormente

referidos, os quais foram definidos em oposições e posições diversas em cada

uma das duas estruturas fundamentais do pensamento, não se pode deixar de

verificar o modo como esses elementos – o sujeito e a realidade por ele

conhecida, o objeto e a coisa por ele representado, a vontade e o fim por ele

almejado, o poder e a lei por ele estabelecido etc. – operam naquelas

estruturas, o que significa verificar suas conexões de causa e efeito, como são

concebidas em cada uma das duas estruturas.

3.A. Na estrutura transcendente, da ortodoxia aristotélica, concebe-se

uma causalidade por ordem recíproca de diversas causas, sem que haja

hierarquia entre elas, sendo a divisão entre as que se privilegiará feita em

função do tipo de investigação a ser levada a cabo. Daí que as causas

eficiente, final, material e formal intercambiarão seus papéis, a depender do

ângulo que se examine a fixação das mesmas, em relação ao seu substrato

comum, o hypokheimenon, que sempre se fará presente e atuará como

unidade homogênea inalterável pelos movimentos recíprocos das causas que

sobre ela incidem. Assim, a alma, para os antigos, ou Deus, para os medievais,

podem ser consideradas como causas eficientes, quando iniciam,

respectivamente, o movimento da abstração ou da criação, um então como

causas finais, já que as formas anímicas aperfeiçoam o ser das coisas, assim

como Deus é tido como o objeto a que aspira o intelecto e deseja a vontade.

Alma e Deus podem operar ainda, indistintamente, como causa formal e

material, e isso não porque possuam forma e matéria, mas sim por haver neles

21

Page 22: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

as formas que serão adquiridas na mudança do ente considerado como

potência (causa formal), em sua passagem ao ato, movido materialmente por

uma alma ou por Deus (causa material).

3.B. Na estrutura transcendental, introduzida de maneira sub-reptícia por

Duns Scot, julgando-se um aristotélico da mais estrita observância, a rebater

com Aristóteles as posições tidas como exclusivamente aristotélicas do

tomismo, ocorre o que Muralt considera “uma revolução filosófica que se

ignora, quando se trata, certamente, da única revolução doutrinária digna deste

nome que se produziu na história do pensamento ocidental”.27 Esta revolução,

responsável maior, no plano das idéias, pelas transformações radicais que

resultaram no mundo tal como hoje o temos, com o que nele há de melhor e

pior também – e, assim, tanto em um caso como no outro, o que nele há de

grandioso -, mostra-se em toda evidência na doutrina da causalidade

concorrente não recíproca das causas parciais, a qual minará os fundamentos

da construção do saber antigo e medieval, de cunho propriamente aristotélico,

criando as condições subjetivas para o aparecimento da ciência e de tudo o

que é mais característico da modernidade, também em termos políticos, éticos

ou jurídicos.28 Isto porque, como destaca Hannah Arendt, em passagem já

clássica de sua obra maior, que restou incabada,29 em Duns Scot inverte-se a

relação entre o intelecto e a vontade, pois enquanto Tomás de Aquino afirmava

a subserviência desta última àquele, Scot, igualmente com apoio em

Aristóteles, mas partindo de sua pré-compreensão agostiniana e franciscana,

afirmará o primado da vontade frente ao intelecto, em um ser finito, capaz de,

apesar disso, por força de sua vontade, chegar a conceber o infinito, Deus,

27 L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., p. 118.28 Cf. id. ib., pp. 39 s.29 Cf. A Vida do Espírito: o Pensar, o Querer, o Julgar, 2a. ed., trad.: Antônio Abranches et al., Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993, vol. 2, cap. 3, n. 12, pp. 280 ss.

22

Page 23: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

alcançando uma liberdade, pela autonomia da vontade, que só encontra limite

na negação do ser como um todo, ou seja, no nada, o “querer-não-querer” ou

“vontade-de–nada”, concebível apenas nos quadros do nihilismo já mais que

moderno, “pós-moderno”.

A inovação na estrutura de pensamento “escotista”, como a este

segundo tipo de estrutura fundamental costuma aludir de Muralt, em termos de

concepção de causalidade,30 decorre da consideração do ser como diverso de

um tertium quid na composição de todo ente, assim como no transcurso de

todo movimento. Nesse contexto, Deus já não possui nenhuma função

material, tornando-se uma hipótese metodológica, não-necessitarista, por

inescrutável e (concorrentemente) contingente, para nós, a sua vontade

soberana. As causas, então, passam a ser ordenadas formalmente, quer em

uma hierarquia que se considera estabelecida de potentia absoluta Dei, quer

de acordo com uma ordem estabelecida arbitrariamente pela vontade de

conhecer – ou de poder. Se sujeito e mundo já não estão vinculados

naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a forma de ambos.

Se a vontade e o fim por ela almejado não estão mais unidos, pelo amor, só

resta um desejo arbitrário que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para

conhecê-los, seja para dominá-los, o que na modernidade, por exemplo, em

um Francis Bacon, logo será considerado como praticamente o mesmo. Se o

poder já não tem constrangimentos impostos pelo bem como fim que justifica o

seu exercício, só resta a lei que obriga sem limitações ou necessidade de

maiores justificativas, já que sua força arbitrária provém do simples fato de

estar na lei mesma a sua origem. Isso porque objeto do conhecimento, vontade

arbitrária de agir e lei imposta do agir são, afinal, considerados efeitos do

30 Cf. id. ib., pp. 32 ss.; 321 ss.; 331 ss.; passim.23

Page 24: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

concurso simultâneo de causas indiferentes ao que causam, nas quais já não é

possível discernir o que é forma e matéria, eficiência e finalidade, estando

todas reduzidas a uma só causa, que é formal, mas não como aquela que

corresponde a uma matéria determinada, e é eficiente, mas não como aquela

que corresponde a uma certa finalidade, pois é a causalidade mecanicista, dos

impulsos, choques e trajetórias que, quando conhecidos enquanto causas,

explicam que e como (hoti, “quia”) se deu algo, mas não por que (dioti, “propter

quid”) se deu. Eis a origem do formalismo, tão característico do pensamento

moderno, cuja crítica, por assim dizer, imanente, será feita de maneira

estarrecedora, na última grande obra de Husserl,31 como denúncia de um

verdadeiro suicídio coletivo que estaria cometendo a “humanidade européia”, e

que hoje presenciamos como ameaça ao conjunto da humanidade.

É assim que o objeto do conhecimento passa a ser concebido

diversamente. Nesse contexto, merece destaque o papel desempenhado por

Guilherme de Ockham, cujo pensamento, como é sobejamente conhecido,

descende diretamente daquele de Scot, mas introduzindo variações que, no

entender de Muralt, darão suporte a posições também da tradição

(aristotélico-)tomista, indo reverberar, por influência de seus professores

parisienses, com Jean Gerson à frente, naqueles que integrarão a escolástica

espanhola do século XVI, com destaque para o Pe. Suárez (1548 – 1617), com

sua “tentativa sincrética de restauração aristotélica” (-tomista, WSGF), apesar

de vinculada à “tradição scotiana”.32 Para Ockham, o conhecimento resulta da

ação, simultânea ou não, do ente extramental ou da vontade divina, absolutos

que co-existem sem qualquer relação necessária, donde permitir sua

31 Cf. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, editado por W. Biemel, La Haya: Martinus Nijhoff , col. Husserliana, Vol. 6, 1962.32 Id. ib., p. 41.

24

Page 25: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

epistemologia “a co-existência sistemática de uma lógica do nome conotativo,

efetivamente `nominalista´, de uma crítica `psicologista´ do conceito e de uma

filosofia `voluntarista´ da liberdade”.33 Vejamos a seguir o significado disso, em

maiores detalhes.

II

O pensamento teológico de Ockham – e tenhamos em mente que, com autor

(ainda)_ medieval, era essenclalmente um teólogo - orienta-se por três

princípios fundamentais:34 o princípio da onipotência divina, o princípio da não-

contradição e o princípio da economia. O primeiro desses princípios,

naturalmente, vale apenas para a divindade: Deus é absolutamente livre para

fazer o que bem entender – exceto o que for contraditório com o que já tenha

feito ou criado anteriormente. Então, o segundo princípio enunciado vincula a

própria divindade e, com mais razão ainda, haverá de vincular a humanidade.

Já o terceiro princípio, o qual se refere à chamada “navalha de Ockham”, deve

ser obedecido apenas por nós, a fim de evitarmos criar conceitos

desnecessários para conhecermos a realidade: a Divindade, que é livre para

criar tanto os conceitos como a própria realidade a que se referem, sempre

poderá multiplicá-los e reinventá-la a seu bel-prazer.

Pelo princípio da onipotência divina, tudo provém de Deus, até o que

para nós, por uma deficiência nossa, é mal e pecado, pois Ele, ao contrário de

nós, não é devedor de ninguém – nullius est debitor.35 Em sendo assim, Ele

33 Id. ib., p. 42. V. tb., ib., pp. 153 ss. e, esp., 167 ss.34 Para uma exposição da vida e obra de Ockham, v. a “Introdução” de C. R. de Souza e Luis A. De Boni em “Brevilóquio sobre o Principado Tirânico”, Ockham, Guilherme de, trad.: Luis A. De Boni, Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 11 ss.35 A não ser que Ele mesmo se comprometa com alguém, como anota Marylin MacCord Adams, em “Ockham on Will, Nature, and Morality” in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 264.

25

Page 26: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

não peca, por não estar obrigado em relação a ninguém a fazer o que é bom e

não é pecado.36 A rigor, portanto, Deus nem é moralmente bom nem mal.37

36 Cf. Ockham, Opera theologica, G. Gál/St. Brown et al. (eds.), New York: St.

Bonaventure Institute, 1967 -, vol. VII, p. 45; Id., Quodlibeta, III, q. III, tb. in Coleção

“Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, São Paulo:

Abril Cultural, 2ª ed., 1979, p. 403 e in id. “Philosophical Writings. A Selection”,

Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), New York: St. Bonaventure

Inst., 1990, p. 131. V. ainda J. Beckmann, “Wilhelm von Ockham”, Munique: Beck,

1995, p. 36.

37 Cf. Marilyn MacCord Adams, ob. ult. cit., p. 272, nota 140.26

Page 27: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

A este princípio vai, então, corresponder um outro, que podemos

denominar “(sub)princípio da contingência”, pelo qual só Deus é

necessário, sendo tudo o mais contingente, inclusive o mundo como um

todo, que seria apenas um dos infinitos mundos possíveis. Que este

mundo exista, depende absolutamente de Deus: a onipotência de Deus é

condição necessária (conditio sine qua non) da existência do mundo,

sendo, por outro lado, condição suficiente (conditio per quam) de que ele

seja e permaneça como é, que essa potentia absoluta atue segundo uma

determinada concepção, de forma ordenada – como potentia ordinata,

portanto.38

Um outro (sub)princípio, correlato tanto ao princípio da onipotência

divina, do poder infinito de Deus, como ao (sub)princípio da contingência, será,

então, o (sub)princípio da finitude da razão humana. As razões de Deus para

criar o mundo tal como o conhecemos, ou para alterá-lo, não nos são

acessíveis, pois nossa capacidade de compreensão das coisas, tal como elas

próprias, é criada e contingente: fora Deus, que é necessário, tudo o mais pode

se tornar diferente, ou ser diferente do que pensamos.39 Quão distante

38 A noção de potentia ordinata, assim como aquela de potentia absoluta, como é sabido, não são de maneira alguma originárias de Ockham, pois são mencionadas por diversos de seus predecessores, inclusive Tomás de Aquino, embora em poucos – e um desses seria Petrus Johannis Olivi -, tenha assumido a significação central que lhes consagra Ockham, com implicações teológicas que estão na base da própria querela sobre a pobreza franciscana. Cf. Volker Leppin, “Geglaubte Wahrheit. Das Theologieverständnis Wilhelm von Ockham”, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1995, p. 123 ss. A distinção entre as duas formas da potência divina é feita em termos jurídicos por Duns Scot, considerando aquela ordinata em um sentido literal, como de acordo com regras, estabelecidas pela própria divindade, e que só ela poderia descumprir, estabelecendo outras, de potentia absoluta. Cf. Marilyn McCord Adams, “William Ockham”, vol. II, Notre Dame (Ind.): University of Notre Dame Press, 1987, p. 1190 ss. Ockham fará extenso uso da concepção jurídica aí implicada, conforme veremos adiante.39 Já o conhecimento de Deus, ao contrário, é perfeito e completo, abrangendo mesmo

os fatos futuros contingentes, posto que cabe a Ele determiná-los, e Ele conhece as

coisas antes de criá-las – “Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...”. 27

Page 28: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

deixamos, então, o necessitarismo parmenídeo-platônico-aristotélico, de

acordo com o qual o ser, por existir, necessariamente é, pelo princípio da não-

contradição. E este princípio, no entanto, também vale para Deus, no sentido

específico que lhe atribui Ockham.

O princípio da não-contradição, em Ockham, não tem apenas um

sentido lógico, como em Aristóteles, para quem, de acordo com a célebre

passagem da “Metafísica”,40 algo não pode ser e deixar de ser, ao mesmo

tempo, dadas as mesmas condições. Para Ockham, esse princípio remete a

um outro, que podemos denominar o “(sub)princípio da singularidade”, pelo

qual o princípio da não-contradição assume um sentido ontológico, na medida

em que se torna “o meio mais seguro de prova da diferença entre as coisas”,41

Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. IV, p. 504; Beckmann, cit., p. 41. Logo, sob

certo aspecto, só para nós é que os fatos futuros são contingentes, sendo essa

contingência um signo da limitação de nosso conhecimento, enquanto Deus habeat

scientiam determinatam et necessariam omnium futurorum contingentium. Cf.

Ockham, Ordinatio, D. XXXVIII, Q. unica; tb. in Coleção “Os Pensadores”, cit., p. 404 e

in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown,

Stephen F. (rev.), cit., p. 133. V. ainda Beckmann, ob. cit., pp. 38 ss.

40 Cf. liv. IV, 3, 1005 b 24, e tb. ib., 19-23, 32/33.41 Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. I, p. 174; Beckmann, cit., pp. 40 ss. Para uma defesa consistente do caráter ontológico do “singularismo” de Ockham, i.e., do que no texto denominamos “(sub)princípio da singularidade”, v. B. Ryosuke Inagaki, “Res and Signum – On the Fundamental Ontological Presupposition of the Philosophi of William Ockham”, in G. Wieland et al., “Philosophie im Mittelalter. W. Kluxen zum 65. Geburtstag”, Hamburgo: F. Meiner, 1996, pp. 302 ss.

28

Page 29: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

de sua radical singularidade:42 Tudo o que existe no mundo exterior, em si

mesmo, é singular.43

De acordo com Ockham, não apenas devemos evitar a contradição

quando formulamos juízos lógicos, mas sequer podemos conhecer objetos

contraditórios, que, em verdade, não podem existir, posto que todos são iguais

a si mesmos e apenas a si mesmo, não podendo ser, ao mesmo tempo, “si-

mesmos” e “não-si-mesmos”. Deus, então, em sua onipotência, cria livremente,

optando entre infinitas possibilidades, dentre as quais, porém, não há

contraditoriedade. É condição mesmo da vontade livre de Deus que ela não

seja arbitrária, mas sim, que sua potência absoluta se exerça dentro de

determinada ordem, como potentia ordinata, e ordenada racionalmente, posto

que Ele, antes de criar, (pré)conhece o que cria, operando racionalmente.44

42 Um outro (sub)princípio – ou (sub)subprincípio - relacionado a este da singularidade, que se pode referir, no contexto da ontologia ockhamiana e em conexão com o problema dos universais, enuncia-se como um “princípio de diversidade”. De acordo com ele, apenas entidades reais, as coisas mesmas, são diversas entre si – e sempre o são. Diversidade (diversitas), porém, não deve ser confundida com diferenciação (differentia), pois esta última é operada pelo intelecto em sua atividade cognitiva, donde se justificar que não se diferencie, sob certos aspectos, coisas que, no entanto, são, de fato, diversas. Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. II, p.212; Beckmann, cit., pp. 108 ss. É interessante observar que semelhante colocação permite que se estabeleça relações entre o pensamento medieval aqui estudado e aquela epistemologia dita construtivista radical, defendida por autores contemporâneos, identificados pelos estudos feitos no Instituto de Palo Alto (EUA), como Bateson, Heinz von Foerster, Luhmann, Maturana, Varela, Watzlawick etc.43 “Quaelibet res extra animam seipsa est singularis”. Ordinatio, D. I, Q. II, 6. De passagem, vale notar como o mesmo “singularismo” será defendido por Locke – “Things themselves, which are all of them particular in their existence...”. “An Essay concerning human Understanding”, III, 3, 11. Cf. B. R. Inagaki, ob. cit., pp. 303 e seg.

44 “Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...; ideo dicitur rationabiliter operans”. Cf. Ockham, ib., vol. IV, p. 504; Beckmann, ib., p. 41. Em outras passagens, lê-se que Deus pode fazer tudo quanto não inclua contradição – “Deus potest facere quidquid non includit contradictionem” (id. ib., vol. IV, p. 36) – e não pode fazer nada desordenadamente – “Deus nil potest facere inordinate” (id. ib., vol. IX, pp. 585 e seg.). Isto não deve ser entendido como uma limitação à potência absoluta de Deus, pois o respeito ao princípio da não-contradição, donde decorre o caráter ordenado e racional de Sua atividade, é antes condição de possibilidade de Sua liberdade. Cf. Beckmann, ib., p. 149. Esta concepção da liberdade do próprio Ser criador do Universo como decorrente da obediência a uma regra, lógica, ontológica e, em primeiro lugar, deontológica, que veda em termos absolutos a não-contradição, reconhecendo-a como aparência, existência, mas não como essência, na qual se dissolvem todas as contradições, nos remete à retomada da perspectiva hegeliana, denominada por

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Page 30: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

Deus é livre, mas não é desarrazoado, guardando coerência com as premissas

que Ele mesmo estabelece – embora sempre possa optar por outras.

Já a compreensão humana é tão limitada, como é limitada sua

possibilidade de ação. Nota-se como para nosso A. conhecer é agir, sendo

essa ação tão mais eficaz, quanto menos esforço seja despendido para obter o

máximo em explicação como resultado. Daí que, pelo princípio da economia,

segundo Ockham, deve-se optar pela explicação mais simples e, ao mesmo

tempo, mais abrangente.

A célebre fórmula da “navalha de Ockham”, “entia non sunt multiplicanda

sine necessitate”, não foi enunciada por nosso A., pois para ele o princípio da

economia não se relaciona com os entes, não são eles que não devem ser

multiplicados inutilmente – o que só Deus poderia fazer: e, de fato, até onde

podemos perceber, o faz -, mas sim o conhecimento deles, donde não ser esse

um princípio ontológico, mas tão-somente epistemológico. As duas formulações

cunhadas por Ockham do princípio da economia seriam: (a) “frustra fit per plura

quod fieri potest per pauciora”45 (inutilmente se faz com muito o que se pode

fazer com pouco) e (b) “pluralitas non est ponenda sine necessitate”46 (uma

pluralidade não deve ser pressuposta sem necessidade).47 Pela utilização

Dilthey “idealista objetiva”, trabalhada em nossos dias por Vittorio Hösle, esp. em “Hegels System”, 2 vols., Hamburgo: Rowohlt, 1987, e entre nós, por Cirne-Lima, “Sobre a Contradição”, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993 e Manfredo Araújo de Oliveira, “Sobre a Fundamentação”, id: ib. Uma investigação da presença de princípios normativos na base mesma de toda estrutura conceitual, mesmo aquela lógico-matemática, encontra-se em Willis Santiago Guerra Filho, “Para uma Filosofia da Filosofia (Conceitos de Filosofia)”, ed. refundida, Fortaleza: Casa de José de Alencar/UFC, 1999, cap. 3, pp. 39 ss. Para uma concepção do caráter “dialógico” e “mundo-constitutivo” (weltbildend) do princípio da não-contradição cf. Wolff, Francis, “Dizer o Mundo”, São Paulo: Discurso Editorial, 1999.45 Cf. Ockham, ib., vol. III, pp. 430 e 475, id., vol. V, pp. 199, 268 e 436, id., vol. VI, pp. 136 e 399; Beckmann, ib., p. 43.46 Cf. Ockham, ib., vol. I, pp. 74 e 415, id., vol. IV, pp. 202, 317 e 322, id., vol. V, pp. 256, 404, 414 e 442, id., vol. VI, pp. 17, 59, 124 e 408, id., vol. VII, pp. 52 e 213; Beckmann, id. ib.47 Apesar do uso freqüente por parte de Ockham das duas fórmulas aqui mencionadas, Ph. Boehner entende ser aquela que melhor expressa o princípio da economia a enunciada no seguinte texto, extraído de Ordinatio, D. I, Q. XXX, 1 (Contra opinionem

30

Page 31: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

desse princípio, afasta-se uma série de assertivas, por serem supérfluas e,

logo, desprovidas de sentido, ao implicarem a existência de entidades para

validá-las, quando bastaria estabelecer condições de validação. Nota-se, aí,

uma antecipação, em Ockham, da substituição operada na ciência

contemporânea dos conceitos substanciais em favor daqueles relacionais,

evitando o hipostasiamento metafísico. 48

Pelo princípio da economia, devemos evitar o quanto possível supor a

existência de entidades - o que, de todo modo, é sempre incerto, em razão do

(sub)princípio da contingência - para explicar os fenômenos, assim como

devemos evitar a contradição, para com isso nos aproximarmos ao máximo da

compreensão de uma realidade criada por um Deus, a partir de sua potência a

um só tempo absoluta e ordenada.

III

São três as espécies fundamentais de “suposições” (de sup + pono,

literalmente, “pôr embaixo”, e mais propriamente, “pôr no lugar”) dos termos

que podem compor uma proposição, constituindo-a na qualidade de sujeito ou

predicado: pessoal, simples e material.49

Na suposição pessoal ou universal o termo está no lugar do seu

significado, natural – v.g., na frase “o homem corre” - ou convencional – p. ex.,

Scoti): “nihil debet poni sine ratione assignata nisi sit per se notum vel per experientiam scitum vel per auctoritatem Scripturae Sacrae probatum”. Cf. Boehner, “Collected Articles on Ockham”, New York: St. Bonaventure Inst., 1958, p. 155. Cf. Ryosuke Inagaki, ob. cit., p. 311, nota.48 Não por acaso, certamente, a categoria aristotélica da relação vem recorrentemente tratada em quase todas as obras de Ockham, segundo Ghisalberti – cf. Ghisalberti, A., “Guilherme de Ockham”, trad.: A. De Boni, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 124 -, dentre as quais se incluiria, para a maioria dos estudiosos, um Tractatus de relatione, incluído na Opera philosophica, Ph. Boehner, G. Gál, St. Brown. (eds.), New York: St. Bonaventure Institute, 1974 -, vol. VII, pp. 348 ss.49 Cf. Ockham, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 376 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 63 ss.

31

Page 32: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

na frase “a espécie é um universal”.50 Na suposição simples o termo

empregado designa um conceito, correspondente a uma intenção do

cognoscente (intentione animae) de referir-se diretamente a alguma coisa – em

“primeira imposição”, portanto, e não, em “segunda imposição”, quando a

referência é a um outro nome ou termo.51 Uma frase que exemplifica este tipo

de suposição é: “o homem é uma espécie”. Finalmente, na suposição material,

tem-se o caso da auto-referência, em que o termo não remete nem a uma

realidade física, nem a um conceito, mas apenas a si mesmo, estando no lugar

de si mesmo, na escrita ou na fala – é o que ocorre com o termo “homem”

quando proferimos ou escrevemos a frase “homem é um nome que se escreve

com cinco letras”.52

Dentre os diversos tipos de suposições ou modos dos termos suporem

por (substituírem) outros ou as coisas – realidades individuais significadas

pelos sujeitos -, merece destaque a suposição pessoal, que corresponde à

função significativa dos termos. Ockham opera uma série de divisões e

subdivisões desta suposição, onde se evidencia como toda a lógica,

especialmente enquanto aparato de inferências, implicações e predicações –

para nosso A., pertence ao domínio da lógica também o estudo dos

50 “Suppositio personalis, universaliter, est illa quando terminus supponit pro suo significato”. Ockham, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p. 195. V. tb. Ghisalberti, ob. cit., p. 46.51 A impositio é o ato pelo qual as pessoas atribuem significado aos signos convencionais, escritos ou falados, sendo esses signos, segundo Ockham, nomes, que podem ser de primeira ou segunda imposição, uma distinção que se pode perfeitamente relacionar com aquela feita pelos positivistas lógicos, entre uma linguagem-objeto e a metalinguagem. Cf. Ockham, Summa logicae I, 11; tb. id., in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 371 e seg., bem como in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 56 ss. V. ainda Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 13, 47 ss. e 223, nota 37. 52 Cf. Ockham, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p. 196; Ghisalberti, ob. loc. ult. cit.

32

Page 33: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

argumentos, mesmo quando fundamentados por autoridade –, constrói-se a

partir das suposições.53

Também a verdade, para nosso A., decorrerá da suposição, enquanto

garantia de que as proposições referem-se à realidade. Note-se que nesta

concepção da verdade se opera uma inversão daquela tradicional, aristotélico-

tomista, em que a verdade decorre de uma “adequatio intellectus et rei”.54

Verdade e falsidade, portanto, não são qualidades dos objetos conhecidos, que

se imprimem no sujeito cognoscente, mas são antes qualidades das

proposições, a elas inerentes, enquanto termos de segunda imposição,

abstratos, que se predicam de proposições, e não de realidades extra-

mentais.55 Em assim sendo, verdadeiro e falso são termos conotativos, que se

referem diretamente a proposições e só indiretamente ao real estado de coisas

a que tais proposições se referem.56 Uma proposição será verdadeira, segundo

Ockham,57 quando coincidirem sujeito e predicado na suposição pelo mesmo

objeto, i.e., refiram-se à mesma coisa. Mas como proposições são composta

por termos, signos, e não por objetos, coisas, tudo quanto for reunido

sinteticamente nas proposições constituirá uma unidade no plano mental, sem

garantia nenhuma de que ela se verifique efetivamente no plano real. Só do

passado, que nem Deus pode alterar, e de termos idênticos, em que coincidem

suppositio (“quod supponit”) e supponate (“pro quo supponit”) – v.g., “o homem

é o homem”-, pode-se fazer asserções afirmativas necessariamente

verdadeiras, pois sendo o presente e futuro contingentes, as assertivas sobre o

53 Cf. Ghisalberti, ob. cit., p. 48. 54 Cf. Tomás de Aquino, “Summa theologiae”, I, 16; id., “De veritate”, I, tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 19 ss., 125 ss.55 Cf. Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 95 ss., Ghisalberti, ib.56 Cf. Ockham, Summa logicae I, 10, tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 369 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 52 ss.57 Cf. Summa logicae II, 2, tb. in Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 98 ss.

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Page 34: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

que não existe ou existirá necessariamente só poderão ser verdadeiras quando

negativas – p. ex., “o homem não é um asno” - ou condicionais – e.g. “se o

homem existe, ele é um animal racional”.

IV

Do exposto, pode-se perceber que também a noção tradicional de

ciência será alterada por Ockham, pois quando se afirma, como então era de

costume, com base em Aristóteles, que não pode haver ciência das coisas

consideradas em sua singularidade, mas tão-somente do que for universal e

necessariamente verdadeiro, nesses termos, a ciência seria impossível para

nosso Autor. No “Prólogo” que escreveu à sua “Exposição dos oito livros da

Física”,58 Ockham apresenta sua concepção de ciência, procurando

compatibilizá-la, o quanto possível, com aquela aristotélica. É assim que a

ciência pode ser das coisas, isto é, “ciência real”, como as ciências naturais,

por resultarem de proposições compostas por termos que supõem por coisas,

numa suposição pessoal. Além disso, há ainda as ciências racionais, como a

lógica, em cujas proposições os termos estão em lugar de outros termos - em

suposição simples, portanto.

Já no princípio do texto apenas referido, Ockham conceituara o

conhecimento em termos que nos evoca o modo como muito posteriormente,

com Hume e, por último, Popper, se vai conceber um dos princípios basilares

da ciência, aquele da causalidade: como um hábito (habitus).59 Isso porque o

58 Cf. Ockham, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 347 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 2 ss.59 Ockham nega, expressamente, que uma relação causal seja demonstrável e, logo, existente, já que não há vínculo necessário entre as criaturas, pois sendo elas radicalmente diferentes, Deus sempre pode fazer com que exista uma sem precisar de outra, ou mesmo, de potentia absoluta, produzir direta e imediatamente uma que, em circunstâncias normais, necessitaria de outra para surgir. Cf. Ockham, Quæstiones in

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Page 35: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

conhecimento, dadas as categorias de Aristóteles, seria de se classificar como

uma qualidade, e uma qualidade da mente, não das coisas, que podem se

alterar sem que isso implique em alteração do conhecimento que temos delas.

O sujeito do conhecimento – “sujeito” aqui entendido no sentido medieval, de

subjectum, correspondente ao que hoje consideramos o objeto do

conhecimento – será a razão, pois ele será uma qualidade da alma, adquirida

com a repetição de atos intelectivos. Aqui pode-se ter como iniciado o processo

de transformação conceitual, que resultará na concepção moderna da

subjetividade como suporte do saber.

Também os conceitos e os universais serão tidos por Ockham como

qualidades da mente, ou melhor, de atos da intelecção abstrativa empregando

signos que, seguindo a tradição lógica árabe, denomina “nomes de segunda

intenção”, responsáveis por uma significação secundária (ou conotação).60 Eles

não se encontram “in rebus”, não se apresentam no modo do ser substancial,

nem tampouco naquele do não-ser, pois são signos de uma pluralidade de

coisas que, enquanto tais, não constituem um saber sobre o que elas são

substancialmente, mas tão-somente declaram algo a esse respeito.61

Da mesma forma, a unidade de uma ciência, para nosso A., não se

funda na unidade do que hoje chamamos seu objeto - e ele chamaria o seu

“sujeito”, em sentido lato, enquanto aquilo do qual se sabe algo. Na verdade,

librum secundum Sententiarum (Reportatio), q. III - IV, in id., Opera theologica, cit., vol. V, 1981, esp. pp. 72 e seg.; Biard, ob. cit., pp. 110 e seg.60 Cf. Ockham, Summa logicae I, 12, in: Opera philosophica, cit., p. 42; Ghisalberti, ob. cit, p. 78; Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 52 ss.; Biard, ob. cit., pp. 42 e seg.61 “Universalia non sunt substantiae, nec de substantia alicuius rei, sed tantum

declarant substantias rerum sicut signa”. Ockham, Opera theologica, cit., vol. II, p. 254;

Beckmann, cit., pp. 114 ss. V. tb. Biard, ib., p. 41.35

Page 36: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

para Ockham, como anota Ghisalberti,62 “nenhuma ciência possui uma unidade

intrínseca, sendo cada uma delas, antes, um conjunto de hábitos”. A unidade

das ciências, portanto, como a que é propiciada por toda universalidade, não é

uma unidade de simplicidade, mas de agregação ou composição. Tal

concepção impede que se trace uma linha de demarcação muito rígida entre os

diversos saberes, o que se nos afigura mais uma nota de grande atualidade do

pensamento ora apresentado.63

As ciências, portanto, sempre serão a respeito de proposições,

composta por signos – os complexa.64 O mesmo se diga com relação à

metafísica, ocupada com a validade da predicação do termo “ente” (ens). Esta

validade, como a de toda ciência, seguindo o padrão aristotélico, depende da

universalidade e necessariedade da predicação. Em Ockham, como vimos, a

universalidade é uma característica aferida pelo emprego dos signos nas

proposições – uma função semiótica, portanto. Já com a necessariedade, em

um mundo onde tudo, a exceção de Deus, é contingente, não-necessário,65 não

poderia ser diferente: não se busca, nas ciências, proposições sobre o que é

necessariamente verdadeiro (“propositiones de necessario”), mas sim

proposições verdadeiramente necessárias (“propositiones necessariae”). Uma

das conseqüências dessa concepção, que novamente a coloca em sintonia

com a epistemologia contemporânea, é a de que a necessariedade de uma

62 Cf. ob. cit., p. 55. 63 Mais uma vez vem-nos à lembrança Karl Popper, quando em texto clássico nega que haja critérios para uma demarcação rigorosa entre os domínios da ciência e da metafísica.64 “Semper scientia est respectu alicuius complexi”. Cf. Ockham, Opera theologica, cit.,

vol. I, p. 5; Beckmann, cit., p. 127.

65 De acordo com Ockham, “necessário” é tudo aquilo cujo contrário é impossível; “possível” é o que, sem ser contraditório, admite um contrário, que igualmente não o é; “contingente”, por fim, é o que é, mas sem contradição, pode também ser diferente. Cf. Opera philosophica, cit., vol. I, p. 334; Beckmann, ib., p. 129.

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Page 37: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

proposição não corresponde à pretensão de que ela seja sempre e em

qualquer circunstância verdadeira, mas sim que o seja, dadas certas

condições.66

Assim como a metafísica, também a teologia é considerada por Ockham

uma ciência do discurso – no caso, do discurso sobre Deus e a salvação.

Trata-se, porém, de uma ciência especial, já por ser uma ciência com duas

acepções diversas. Numa primeira acepção, é diversa das demais ciências por

ser mais que elas, por lhes ser superior, enquanto ciência que não é humana

(“scientia hominis”67), por ser ciência divina, discurso de Deus, “theologia in se”.

Além desta, existe a “theologia nostra”, a do peregrino (viator),68 que é uma

ciência inferior às demais, na medida em que a finitude da razão humana não

nos permite ter acesso, pelo saber natural, a juízos conclusivos sobre o

assuntos pertinentes à divindade – e se fosse diverso, caso pudéssemos

formular tais juízos como necessariamente verdadeiros, mesmo submetidos a

certas condições, restaria ameaçada a onipotência absoluta de Deus.

Com isso, não se postula, de modo algum, a irracionalidade de Deus –

como vimos anteriormente, Sua potência absoluta é “ordinata”, exerce-se

racionalmente, com respeito ao princípio da não-contradição. Apenas se

66 Cf. Beckmann, ib., p. 128.67 Cf. Ockham, “Prologus in Expositio super VIII libros physicorum”, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., p. 348 e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., p. 3.68 “Intellectus viatoris est ille, qui non habet notitiam intuitivam Deitatis sibi possibilem de potentia Dei ordinata. Per primum excluditur intellectus beati, qui notitiam intuitivam Deitatis habet; per secundum excluditur intellectus damnati, cui non est illa notitia possibilis de potentia Dei ordinata, quamvis sit sibi possibilis de potentia Dei absoluta”. Esta passagem da primeira questão do prólogo do comentário de Ockham às sentenças de Pedro Lombardo é traduzida do seguinte modo por A. R. dos Santos: “(...) intelecto do peregrino é aquele que não tem notícia intuitiva da divindade, que lhe é possível pelo poder ordenado de Deus. Pelo primeiro, exclui-se o intelecto do bem aventurado, que tem notícia intuitiva da divindade; pelo segundo, exclui-se o intelecto do condenado, a quem não é possível aquela notícia pelo poder ordenado de Deus, embora lhe seja possível pelo poder ordenado de Deus”. Ob. cit., p. 59. V. tb. Robert Guelluy, “Philosophie et Théologie chez Guillaume d’Ockham”, Louvain: É Nauwelaerts – Paris: J. Vrin, 1947, pp. 79 ss.

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Page 38: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

reconhece, do ponto de vista teológico, uma limitação da razão humana,

limitação essa que a filosofia e as demais ciências são desafiadas a superar,

mesmo sabendo que não atingirão o seu objetivo – essa consciência, no

entanto, é fundamental para nos prevenirmos contra o dogmatismo. A

incognoscibilidade de Deus e a conseqüente limitação da teologia enquanto

ciência humana decorre da própria circunstância de não possuirmos

conhecimento intuitivo e evidente do “sujeito” desta ciência - a saber, Deus -,

posto que este tipo de conhecimento, garantia última de todo conhecimento

científico, como já vimos, é um conhecimento de objetos existentes, o qual,

inclusive, atesta esta existência – e Deus não existe tal como tudo o mais por

nós conhecido. Deus é associado à criação da existência, como sua origem e

suporte – causa primeira e “causa efficiens per conservationem” -, donde não

poder com ela se identificar, sendo, assim como tudo o mais, porém, diverso -

e ainda diverso em sua diversidade. Tanto é assim, que não se prova

racionalmente a singularidade de Deus: tal como não há contradição entre a

existência de Deus e a de tudo o mais que conhecemos – e precisamente daí

decorreria a racionalidade da afirmação de Sua existência -, também não há

contradição entre a existência de vários Deuses, criadores de mundos

diversos, ou entre diversos mundos, criados pelo mesmo Deus que criou o

nosso.69

É assim que de Deus, apesar da prova de Sua existência, não se pode

predicar o ser tal como se faz de objetos no domínio da metafísica, o que

projeta o discurso a Seu respeito em outro domínio, contíguo, o da teologia,

onde não conta apenas a postura (habitus) intelectual da ciência, do saber,

69 “Selbst der Satz, daß es nur einen Gott gebe, kann nach Ockham durch die Vernunft nicht apodiktisch, sondern nur mit Plausibilitätsargumenten bewiesen werden (...); dies gelte ebenso für andere Prädikate Gottes wie Unendlichkeit, Allmacht, Vorsehung usw.”. V. Hösle, “Wahrheit und Geschichte”, Stuttgart/Bad Cannstatt: frommann-holboog, 1984, p. 687 (grifos do A.).

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Page 39: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

mas também – e, principalmente – uma outra: a da crença, da fé.70 No campo

da teologia, nos vemos às voltas com uma “lógica da fé”, que não é apofântica,

mas persuasiva, incluindo além dos valores modais aléticos, “verdadeiro” e

“falso”, aquele que melhor a caracteriza: o “possível”,71 já que suas conclusões

se sustentam quando não implicarem em contradição e “non est maior ratio”. É

sobre uma tal base, “falibilista”, que se assentará o pensamento de Ockham,

visto ser o princípio maior em que se baseia, como é próprio da época em que

foi elaborado, um princípio teológico, o da onipotência divina, e, enquanto tal,

igualmente indemonstrável.72 Não se justifica, portanto, que se lhe impute o

defeito do “teologismo”, pois teológicos são seus pressupostos e a destinação

última de seu pensamento, desenvolvido, porém, com extremo rigor lógico,

compromissado com o bem, a correção, intelectual e moral.

2ª. Parte

V

Chegados a esse ponto, estaríamos em condições mais

favoráveis à apresentação, no campo da filosofia jurídica e política, de

70 Cf. Beckmann, ob. cit., pp. 137 ss. Para maiores desenvolvimentos, v. Biard, ob. cit., pp. 86 ss.; Ghisalberti, id., pp. 131 ss., e, especialmente, a obra clássica a respeito, de Guelluy, “Philosophie et Théologie chez Guillaume d’Ockham”, cit., além do recente trabalho de Volker Leppin, ob. loc. ult. cit.71 Para uma exposição da lógica modal medieval, especialmente em Duns Scot, Ockham e Buridan, v. Simo Knuuttila, “Modal Logic”, in “The Cambridge History of Later Medieval Philosophy”, N. Kretzmann et al. (eds.), Irthlingborough: Cambridge University Press, 1996 (5ª reimp.), pp. 342 ss., esp. pp. 354 ss.72 Cf. Cf. Ockham, Quodlibeta, I, q. I, in Opera theologica, vol. IX, p. 11; J. Biard, ib., p. 96.

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Page 40: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

contribuições oriundas da obra de autores medievais, após – e na esteira de -

Duns Scot (o qual recebeu enorme influência do filósofo persa, de cultura

muçulmana, Ibn-Sina ou Avicena). Partiríamos de uma consideração feita por

de Muralt,73 que julgamos acertada, no sentido de se poder reenviar a

concepção, do que modernamente veio a se considerar como ciência jurídica,

assim como seu objeto, enquanto o sistema legal positivado, à estrutura aqui

denominada transcendental, tendo como representantes mais significativos,

dentre os medievais, com pioneirismo, Guilherme de Ockham, e dentre os

modernos, com importância paradigmática, Immanuel Kant.

A uma tal concepção se oporia outra, mais tradicional e antiga,

que remete ao tempo em que o estudo filosófico do direito não o distinguia

como esse objetivum, como objeto formal de estudo diverso de seu conteúdo

ético, político e, mesmo, teológico, enquanto direito que só o seria enquanto

igualmente justo, seja na relação (comutativa) entre duas pessoas, seja na

relação (distributiva) da pessoa aos bens que lhe seriam devidos. Para de

Muralt, conforme o compreendemos, a filosofia do direito contemporânea

padeceria de um esvaziamento de interesse e, mesmo, de descrédito, tanto

entre filósofos, como entre cientistas, na medida em que desconhece a

diferença entre esta postura antiga, de estrutura aristotélico-tomista, e uma

outra, que ele denomina “escotista suareziana”,74 rejeitando a ambas como se

tratando de um mesmo jusnaturalismo caduco, donde resultam as mais

diversas posturas positivista – por definição, anti-filosóficas -, abdicando de

discussões que são as que mais importam no campo do Direito, como são

aquelas atinentes à sua validade material, e não apenas, formal.

73 Cf. id. ib., p. 12.74 Cf. id. ib., p. 13.

40

Page 41: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

Daí se explica, pelo menos em parte, os esforços vindos das mais

diversas direções, mais recentemente, para “reabilitar” a razão prática, agora

“renascida”,75 e, nesse contexto, renovar os estudos filosóficos do direito de

uma perspectiva que evite a dicotomia entre o positivismo e o jusnaturalismo,

dentre os quais se pode mencionar aquelas do inglês John Rawls e sua Teoria

da Justiça, ou de Ronald Dworkin, norte-americano, ativo também na

Inglaterra, em Oxford, e, na Alemanha, Robert Alexy, com a Teoria dos Direitos

Fundamentais, teorias estas que encontram eco nas propostas sobre teoria do

direito e filosofia política em geral de Jürgen Habermas e sua escola, feitas sob

o pano de fundo da Teoria do Agir Comunicativa. Digna de nota, também, é a

proposta de Michel Bastit, assentada em trabalho monumental de

reconstituição das origens escolásticas e medievais (ou tardo-medievais) da

concepção moderna, positivista, da lei jurídica, a fim de com isso buscar

auxílio, aprendendo com os “erros do passado”, para formular uma noção de lei

“mais conforme à realidade jurídica e mais isenta de contradições”.76 Bastit

procede na esteira de seu mestre Michel Villey, que, em estudos clássicos,77 já

chamara atenção para a distinção radical entre conceitos jurídicos e

jusfilosóficos, herdados da antiguidade romana, como aquele de jus e sua

reformulação moderna – neste caso, como “direito subjetivo”-, sob a influência

decisiva de autores medievais, com destaque para Guilherme de Ockham.

Além disso, compartilha Bastit a convicção de Villey, no sentido de que a

solução para os impasses da filosofia jurídica e do próprio Direito, na

contemporaneidade, expressão da crise mais ampla da sociedade e, mesmo,

da civilização ocidentais – que são também aquelas que se pode considerar

75 Cf., v.g., Enrico Berti, Aristóteles no Século XX, trad. Dion Davi Macedo, São Paulo: Loyola, 1997, pp. 229 ss.76 Naissance de la loi moderne, cit., p. 361.77 Cf. Villey, Seize Essais de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz, 1969, p. 158, passim; id., Filosofia do Direito, São Paulo: Atlas, 1977, p. 120, passim.

41

Page 42: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

verdadeiramente mundiais, por instaladas em todo o planeta através dos atuais

meios técnicos de comunicação -, estaria em um retorno a um jusnaturalismo

de corte aristotélico (ou aristotélico-tomista).78

Ao nosso ver, contudo, não haveria possibilidade – ou, sequer,

conveniência – de um retorno ou re-conversão do pensamento, em qualquer

campo, à estrutura que aqui denominamos transcendente, descartando, por

espúrias, formas de pensamento derivadas, em maior ou menor grau, daquela

outra estrutura, que denominamos transcendental. Não há retrocesso possível

em uma história que tem características evolutivas, como são tanto aquela

natural, dos seres naturais, como esta, social, “historial”, das idéias produzidas

por uma espécie desses seres, a nossa. Além disso, não houveram apenas

prejuízos, com a erupção de uma nova estrutura de pensamento na Alta Idade

Média, que veio a ser a principal matriz da modernidade. Uma série de ganhos,

de “aquisições evolutivas”,79 também se verificaram, com esta mudança epocal,

e os graves problemas, que com ela advieram, pensamos que só poderão ser

enfrentados e, eventualmente, superados, empregando recursos forjados com

as possibilidades também nela contidas.

A análise estrutural, ao revelar os componentes fundamentais das

diversas formas de pensamento, assim no campo mais amplo da filosofia,

como naquele mais restrito, em relação ao primeiro, da filosofia jurídica,

permite não apenas que elas sejam melhor conhecidas, até por meio de uma

eventual quantificação das referências aos e dos diversos autores,80 como

78 Cf. Michel Bastit, “El método del derecho natural”, in: El Derecho Natural Hispánico. Actas de las II Jornadas Hispánicas de Derecho Natural, Córdoba, 14 a 19 de septiembre de 1998, Cajasur Obra Social y Cultural Publicaciones, 2001, pp. 177 ss., esp. pp. 189/196.79 Expressão cunhada por Bronislaw Malinowski e utilizada no sentido dado na teoria social sistêmica luhmanniana. Cf., v.g., Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, vol. I, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, pp. 505 ss.80 Cf., v.g., a título ilustrativo, o trabalho realizado por John Andraos, no âmbito da história das influências em matemática, em “Named things in Mathematics”, 2003-

42

Page 43: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

também traz consigo a possibilidade de se propor rearranjos de maneira mais

consciente, tal como até o presente não teria ocorrido. É assim que o próprio

objeto do conhecimento, quer científico, quer filosófico passa a ser concebido

diversamente. E aqui, há de se privilegiar o pensamento de Guilherme de

Ockham, considerando a relevância que a ele se costuma atribuir, para o

desenvolvimento da concepção moderna de ciência, ainda hoje baseada no

princípio da parcimônia ou “da razão suficiente”, como o denominará no século

XVII Leibniz, para não falar no princípio da causalidade e no formalismo,

assumidos por Ockham sob a influência de Duns Scot. Também a filosofia

contemporânea teria essa ascendência ockhamiana - assim como a filosofia

moderna, de Descartes a Husserl, passando por Kant, com sua ênfase no

papel transcendental do sujeito, é de derivação scotista -, considerando a

importância por ele atribuída ao estudo da linguagem, enquanto possibilidade

de dar a melhor garantia possível a um discurso que se tornou incerto de si

mesmo – na época, pelo que se entende, devido ao impacto causado do

contato com uma teologia diversa daquela cristã, a dos muçulmanos, e melhor

fundamentada metafisicamente, abalando assim a concepção já sedimentada

sobre o fundamento de tudo, a saber, Deus. Não menos importante, como aqui

se pretende demonstrar, é a transposição do posicionamento teológico-

filosófico desta linhagem de pensamento para o campo político-jurídico,

gerando - pela assertiva da prioridade do poder da vontade, tal como postulam

da divindade por ser, acima de tudo (e todos) onipotente -, já por gerar uma

concepção de uma esfera privada ou social como diversa daquela pública ou

estatal, agora separadas pelo modo como desconectam a forma da matéria, de

maneira absolutamente inovadora na história do pensamento, da filosófica

2004, in: http://www.chem.yorku.ca/NAMED/.

43

Page 44: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

cosmocêntrica antiga dos gregos, com Aristóteles à frente, ao teocentrismo

medieval, cujo expoente máximo é Thomás de Aquino. Surge assim o

formalismo que em matéria de ética tornará o comportamento bom por estar de

acordo com uma norma, na ausência de qualquer possibilidade de se saber o

que só Deus sabe, isto é, o bem, assim como a justiça, que no campo do

direito será também o que estiver determinado nas normas, normas estas

editadas, no campo político, por um poder que deverá se apoiar externamente,

inicialmente no próprio Deus, para se impor internamente, enquanto soberano.

É de fundamental importância, para uma apreciação do modo

como a ciência e a própria filosofia, e também o direito, público e privado,

objetivo e subjetivo, contemporaneamente, se posicionam em face de valores

assumidos de maneira ideológica, que se perceba como no período constitutivo

da modernidade, em que se destacam os autores ora enfocados, deu-se a

transposição de suas concepções teológicas e metafísicas, pautadas pela

mesma busca de certeza que caracterizará a modernidade, tanto para o campo

gnosiológico como para aquele da ação orientada por normas. É assim que se

mostrará de grandes e duradouras conseqüências uma discussão sobre

assunto aparentemente de somenos importância, se considerado pelos

padrões modernos, como é aquele atinente à legitimidade do voto de pobreza

da ordem franciscana, mas que mobilizará de uma maneira tão visceral autores

como Guilherme de Ockham, que operará uma verdadeira cisão em seu

pensamento, o qual assumirá uma nova inflexão, a partir de seu envolvimento

em tal querela, passando a aplicar na discussão de problemas jurídico-políticos

o aparato intelectual desenvolvido para enfrentar as incertezas epistemológicas

de sua era, aparecidas na matriz teológica que lhe era própria.

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Page 45: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

Dentre as obras produzidas por Guilherme de Ockham no contexto de

sua querela com o Papa João XXII a respeito da pobreza do monges

franciscanos, de onde emergirá seu conceito pioneiro de “direito subjetivo”, o

trabalho grandioso de G. de Lagarde destaca a “Opus nonaginta dierum” como

a mais significativa,81 sendo esta a principal fonte de Villey para fazer a

afirmação, antes referida, de que é nas páginas iniciais desse trabalho onde se

pode verificar “ao vivo” a passagem da noção de direito tal como era utilizada

na linguagem romanista, sempre em sentido objetivo, para aquela moderna,

em que se biparte em diversos sentidos, destacando-se aquele subjetivo, e

este, de forma paradigmático no conceito de direito de propriedade.82

Para melhor situar a querela apenas mencionada, vale recordar a

fórmula jurídica pela qual a ordem franciscana conciliava seus inúmeros bens

com a determinação básica de seu fundador, de que deveriam ser pobres

como Jesus o foi: à ordem cabia o uso, a posse, como diríamos em termos

modernos, restando a propriedade com a Igreja católica. É o que se exprime

com toda clareza já na Bula Ordinem Vestrum (1245), de Inocêncio IV, assim

como em diversas outras que a ela se seguiram: os bens que utilizavam os

franciscanos pertenciam in jus et proprietatem Beati Petri, sendo o seu

dominium, portanto, da Santa Sé. Assim, com uma fórmula ainda mais incisiva,

em 1279, a Bula Exiit qui seminat, de Nicolau III, adotando a fórmula proposta

por S. Boaventura, prescrevia aos franciscanos o simplex usus facti de seus

bens, o jus utendi, o ususfructus e a possessio, sendo da Igreja romana a

proprietas. É principalmente em torno dos termos ali empregados que se

desenrolará a querela entre Guilherme de Ockham e João XXII, onde a visão

teológico-filosófica do primeiro suplantará aquela estritamente jurídica do

81 Cf. “La naissance de l’esprit laïque”, vol. IV, Paris, 1962, pp. 159 ss.82 “Seize Essais de Philosophie du Droit”, cit., p. 158.

45

Page 46: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

segundo, própria do advogado que era – como é sabido, o papado neste

período foi exercido mais freqüentemente por padres-advogados do que por

padres-teólogos, pelas vantagens óbvias que a formação daqueles lhes

conferia, no trato com o poder.

João XXII desenvolve sua argumentação jurídica nas bulas Ad

conditorem canonum (1322), Cum inter nonnullos (1323) e Quia quorundam

mentes (1324). Invocando a autoridade de Tomás de Aquino, que vinha de ser

canonizado por ele, afirma o poder do Papa de modificar os cânones antigos e

instituir direito canônico novo. E é ainda em Tomás que recolhe a noção de que

a propriedade se constitui em um direito natural, sendo o regime mais

apropriado ao desenvolvimento humano na vida terrena, donde ninguém poder

dela abdicar, para o seu próprio bem – nem mesmo as comunidades

franciscanas.

De se notar é que, apesar de João XXII ter dado um “giro positivista”, ao

afirmar seu poder de romper com o que já estava estabelecido por seus

antecessores, criando direito novo através de suas bulas, para ele, nesse

ponto, não havia propriamente inovação, mas tão-somente retificação do

emprego de termos jurídicos em seu sentido técnico, negligenciado por seus

antecessores. Para João XXII, o usus que se garantia aos franciscanos de

seus bens resultava em um jus utendi et fruendi, pelo qual se definia a

verdadeira propriedade, e o sentido diverso a ele atribuído era puramente

verbale, nudum et aenigmaticum. Isso porque não se justificaria um usufruto

desvinculado ad aeternum de um título jurídico que o amparasse, i. e., de um

direito de propriedade, sendo ele que se transfere, e não o simples uso. Mesmo

das coisas consumíveis, como a água e a comida, os franciscanos, como todas

as pessoas, tinham propriedade, pois também aí o uti não era de se distinguir

46

Page 47: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

do abuti, nem o uso da propriedade, já que os atos de comer e beber não

seriam justos, se não estivessem amparados em um título jurídico, isto é, se

não se amparassem em seus respectivos jura. E para um arremate tipicamente

“advocatício”, valendo-se do pensamento nominalista de seus opositores,83

para assim liquidar-lhes com seus próprios argumentos, o Papa-advogado

destaca que, sendo o ato de comer e beber passíveis de serem praticados

apenas por indivíduos, mas não pela ordem franciscana, uma “universalidade”,

persona repraesenta ou imaginaria, assim como a Igreja era a universitas

fidelium, cabendo porém à primeira o jus, o justo título que legitimava aqueles

atos dos que a compunham. A conclusão, portanto, é que para João XXII não

se podia viver corretamente desprezando, como pretendiam os franciscanos, o

direito e o que lhe seria mais característico: o direito de propriedade.

A abordagem de Ockham do problema jurídico-teológico em questão

principia deslocando-o desse campo para aquele outro, por ele tão cultivado

em seus trabalhos de lógica – e que hoje denominaríamos melhor como

“semiótico” ou “semiológico”, por trabalhar antes a significação de um conceito

do que o modo como eles se articulam corretamente, distinguindo-se também

da abordagem mais comum em seu tempo, aquela que também em termos

modernos se denominaria “ontológica”, em que se buscava a definição do que

eram os entes representados pelos signos, ao invés de seu significado. É que

Ockham inicia coletando os diversos sentidos dos termos empregados na

disputa, não deixando de incluir, além daqueles por assim dizer “técnicos”,

como aparecem empregados por juristas e teólogos, também o sentido comum,

“vulgar”. E é precisamente do uso à época comum, gerado pelo contexto de

83 Este ponto é destacado por A. S. McGrade, “Ockham and the Birth of Individual Rights”, in: B. Tierney/P.Linehan (eds.), “Authority and Power. Studies on Medieval Law and Government. Presented to Walter Ullmann on his Seventieth Birthday”, Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 152.

47

Page 48: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

emergência da economia de mercado capitalista, que ele vai tomar o sentido

de jus, o qual lhe possibilitará mostrar o grave erro cometido por João XXII. É

este sentido de “direito subjetivo”, enquanto direito de propriedade, que será o

sentido consagrado modernamente: o de poder, potestas.84

A obra de Ockham vai então sugerir que não se considere o jus apenas

como a quota de bens que nos cabe, por determinação do direito positivo ou

natural, a qual podemos reivindicar perante tribunais, já que temos para isso

uma potestas vindicandi, pois esse é o jus fori, nascido ex pactione,

convencionalmente, do direito positivo humano, havendo também o que já

Agostinho denominou jus poli (embora se referindo ao sentido objetivo do

Direito), o qual é a permissão ou faculdade que nos vem do céu (polus), da

natureza pela razão e do direito positivo verdadeiramente divino para usarmos

os bens com despojamento, sem ser por eles possuídos, abdicando mesmo de

sua defesa perante tribunais, como preconizou Jesus Cristo. É essa posse a

título precário, permitida pelo verdadeiro proprietário – no caso, Deus -, que os

franciscanos teriam, individual e coletivamente, enquanto ordem: um direito em

sentido moral, mas não naquele propriamente jurídico.85

Eis que em Ockham o ser humano, criado à imagem e semelhança de

Deus, que se caracteriza por sua onipotência e liberdade absoluta, será ele

também dotado de potestades (“dignidades”) e liberdade, que se traduzirão em

um complexo de direitos subjetivos, o novo fundamento do Direito (objetivo).

O enfoque de Ockham nos mostra com clareza o que comumente

se tende a negligenciar no âmbito da filosofia do direito, a saber, que a noção

de “direitos (subjetivos)” tem um significado que transcende aquele técnico-

84 Cf. Villey, “Seize Essais de Philosophie du Droit”, cit., p. 168.85 Cf. John Kilcullen, “The Political Writings”, in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 308.

48

Page 49: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

jurídico, devendo ser considerado igualmente em sua projeção na filosofia

política e moral.86

O “pan-jurisdicismo” de João XXII encontra-se expresso com toda

clareza em uma passagem de uma outra bula, de 1329, Quia vir reprobus -

onde o “vir reprobus” é ninguém menos que o superior da ordem franciscana,

Miguel de Cesena – o qual, com o auxílio de Ockham, ousara contestar as

idéias expostas nas bulas anteriores -, na seguinte passagem: “quia quod iuste

fit, et fit iure (...) Si dicet autem quod ille, cui est licentia utendi concessa, nec

iuste utatur nec iniuste, hoc falsum est. Impossibile est enim actum humanum

individuale indifferentem esse, id est nec bonum, nec malum, nec iustum nec

iniustum...”.87 O Papa entendia que somos portadores de direitos de

propriedade desde a criação, ao contrário do que defendiam os minoritas, para

quem a divisão de bens é posterior à queda, ao pecado original, e uma

conseqüência disto. É a esta bula que se reportará diretamente Guilherme de

Ockham, para defender a si e aos sues irmão de ordem, em sua “obra escrita

em noventa dias” (“Opus nonaginta dierum”), fazendo uma série de distinções e

chegando a conclusões tão surpreendentes para o ambiente intelectual da

época, e mesmo de hoje, como aquela da heresia do Papa – ao negar até a

pobreza de Jesus e dos Apóstolos -, às quais só teriam sido possíveis graças à

dissolução de hierarquias categoriais por ele operada no plano lógico e, então,

transposta para o plano político, onde se destaca, literalmente, a singularidade

de um pensamento da singularidade.88

86 Assim, v. Páramo, “Derecho Subjetivo”, in: Ernesto Garzón Valdés/Francisco J. Laporta (eds.), “El Derecho y la Justicia”, Madri: Trotta, 1996, p. 367 ss.87 Apud Miethke, “Ockhams Weg zur Sozialphilosophie”, Berlin: Walter de Gruyter, 1969, p. 477, n. 168.88 Cf. P. Alféri, “Guillaume D’Occam. Le singulier”, Paris: Les Éditons de Minuit, 1989; Wim Staat, “Ockham, singularity and multiculturalismo. An Ockhamist analysis of singularity and its politico-legal implications”, in: International Journal for the Semiotics of Law, vol, IX, n. 26, Liverpool: Deborah Charles Publ., 1996, pp. 139/172.

49

Page 50: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

Permanece ainda hoje um desafio desenvolvermos e

aprofundarmos essa idéia, central no pensamento ockhamiano, de que para

além da oposição entre a universalidade tanto dos conceitos como das leis,

naturais e jurídicas, e a particularidade se situações concretas redutíveis ou

subsumíveis a tais conceitos e leis, há de se considerar como diversa a

singularidade das mesmas, a fim de mantermos os sentidos em estado de

alerta, para com isso percebermos erros e/ou injustiças no tratamento igual

dado a situações que só aparentemente são iguais – ou se apresentam como

casos particulares excepcionando regras gerais -, quando na verdade são

singulares, dotadas de intensidades diversas. Há, perseguindo essas

indicações, muito que se fazer, no campo da filosofia jurídica e em geral, no

rastro também daqueles que, como Ockham, mais recentemente, não perdem

de vista a primazia do acontecimento, dos eventos e sua intensidade, frente ao

que já está estabelecido por regras e conhecimentos herdados: Kierkegaard,

Nietzsche, Carl Schmitt, Heidegger, Deleuze, Agamben...89

VI

Outro aspecto que, indubitavelmente, merece ser realçado, no

pensamento jusfilosófico de Ockham, é o seu conceito de direito natural. Este,

se em sua origem ainda é tido como divino, tal como era geralmente concebido

no período, especialmente em seus escritos teológicos, por outro lado, nos

escritos políticos do último período de seu pensamento, é-lhe atribuída validade

quando fundamentado racionalmente, pela recta ratio, no que mais uma vez

aquele pensamento se apresenta atual ou, pelo menos, moderno.90

89 Cf., para uma primeira aproximação, Francisco Ortega, “Intensidade. Para uma história herética da filosofia”, Coleção Quíron, Série Filosofia, n. 3, Goiânia: EDUFG, 1998.90 Cf. Ockham, “Texte zur politischen Theorie. Exzerpte aus dem Dialogus”, trad.: Jürgen Miethke, Stuttgart: Reclam, 1995, pp. 207 ss. – III Dialogus II i, c. 15 -;

50

Page 51: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

VII

Como é sabido, só modernamente passa-se a enfatizar o aspecto

permissivo da normatividade, a esfera de liberdade que transcende os limites

objetivos impostos pelas proibições morais e religiosas, a licentia laica. Já

Hobbes, por exemplo, apontava o caráter insustentável de uma situação em

que todos dispunham livremente de uma faculdade de tudo fazer, de um jus

omnium in omnia, donde decorreria para ele a necessidade de se impor limites,

com o respaldo em um poder com supremacia e reconhecimento social – o

Estado civil -, a fim de garantir e efetivar direitos individuais, os poderes dos

indivíduos, que são seus direitos subjetivos.91 Antes do “positivismo contratual”

hobbesiano, contudo, foi o nominalismo medieval que tornou possível o

aparecimento da noção propriamente dita de um direito como atributo de um

sujeito, que o torna direito seu, propriedade exclusiva do indivíduo, a qual lhe é

inerente. Tal noção já se encontra entre nominalistas “parisienses” como

Gerson, no século XV, bem como em juristas-teólogos espanhóis da “segunda

escolástica”, a exemplo dos “regicidas” domenicanos Francisco de Vitória, seu

discípulo Domingo de Soto, juntamente com seu amigo, jurista, Fernando

Vázquez de Menchaca e de jesuítas como Luis de Molina, sem deixar de

Beckmann, ob. cit., p. 166, Miethke, ob. cit., pp. 124 e seg.; A. S. McGrade, “Natural Law and Moral Omnipotence”, in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999. Sobre as semelhanças entre as doutrinas jusnaturalistas de observância ockhamiana e aquelas do século XVII cf. Richard Tuck, “Natural Rights Theories”, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p. 24, e, em geral, mais recentemente, Brian Tierney, “The Idea of Natural Rights”, Cambridge: Grand Rapids, 1997.91 Um paralelo entre as concepções de Ockham e Hobbes encontra-se em Mathias Kaufmann, “Wilhelm von Ockham und Thomas Hobbes: Varianten des politischen Individualismus”, Erlangen, mimeo., 2000.

51

Page 52: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

mencionar o grande Francisco Suárez.92 Sua origem mais remota, contudo,

está no pensamento de Guilherme de Ockham, desenvolvido na esteira

daquele de Duns Scot, como pretendemos aqui vir a demonstrar.

A definição (positivista) do Direito, dito objetivo, enquanto instituição,

como um corpo de normas emanadas de um poder, sem importar seu

conteúdo, para que as mesmas sejam consideradas válidas, normas estas a

serem estudadas de modo igualmente formalista e dedutivista, aparece

afirmada com independência por autores canônicos os mais diversos, a

exemplo de John Austin, no século XIX, no contexto da tradição anglo-

saxônica, que se pode remontar a Hobbes, bem como Hans Kelsen, na

tradição continental européia, que finca suas raízes ainda mais profundamente,

como se pretende demonstrar, em estratos onde se encontra, no séc. XIX, a

chamada “jurisprudência dos conceitos” (Begriffsjurisprudenz), associada a

nomes como G. Puchta, o direito natural racionalista, de tantos autores, dos

séculos XVIII e XVII, com Puffendorf, Thomasius e Althusius, até chegar ao

século XVI, na Escola de Salamanca, formada em torno a Francisco Vitória,

onde se destaca, como jurista-teólogo, a Fernando Vázquez de Menchaca e,

como filósofo-teólogo, Francisco Suárez, há pouco mencionados. Aventa-se

ainda, filosoficamente, a hipótese, de que a própria filosofia do direito,

enquanto disciplina e objeto de investigações, para surgir, pressupõe como

condição objetiva principal, o surgimento de um direito positivo produzido na

matriz estatal de corte moderno, assim como sua condição subjetiva maior, que

seria igualmente condição “estrutural” – no sentido em que aqui se emprega a

doutrina muraltiana das estruturas de pensamento – das manifestações típicas

92 Cf., v. g., Annabel S. Brett, “Liberty, Right and nature: Individual Rights in Later Scholastic Thought”, Quentin Skinner (ed.), Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1997; tb. Frank Viana Carvalho, “As vindiciae contra tyrannos e os monarcômacos”, dissertação de mestrado, USP, São Paulo: 2002.

52

Page 53: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

da modernidade, a exemplo tanto da forma política estatal, como daquela

cientifica, que hoje (ainda) predominam, estaria na estrutura, de origem mais

próxima na época medieval avançada, que Muralt denomina escotista, e nós

optamos por denominar transcendental. Daí permanecer ainda hoje a filosofia

do direito, por exemplo, atrelada – e, em geral, subserviente mesmo – aos

estudos (majoritariamente positivistas, no sentido normativista e formalista) do

direito enquanto direito positivo, posto por uma vontade, dotada de poder para

tanto.

Assim como fez Ockham diante do “pan-jurisdicismo” positivista e

autoritário de João XXII, também na atualidade toda uma plêiade de filósofos

do direito, da moral e da política (Dworkin, Hart, Nozick, Rawls, Raz) defendem

uma concepção dos direitos (subjetivos) como designando elementos a serem

empregados na argumentação prática enquanto parte de uma reserva

pertencente aos indivíduos, isolada ou comunitariamente considerados, que

não se deve deixar apropriar por nenhuma razão institucional, econômica,

social, coletiva ou política – mesmo que majoritária. Com isso, o que se

pretende é “reservar para el área y ámbito del ejercicio de los derechos un

perímetro protector frente a los possibles violaciones basadas en otros

intereses; es decir, los derechos vendrían a dibujar los límites de la

deliberación práctica”.93

Todo o discurso de grande atualidade sobre os “Direitos

Humanos” se situa mais propriamente nos planos da ética e da política do que

naquele estritamente jurídico, onde tais “direitos” se apresentam como “direitos

fundamentais”, que por sua vez não são apenas “direitos” dos cidadãos a um

respeito pelo Estado de sua esfera de liberdade e também que lhes provenha

93 Páramo, loc. cit., p. 386.53

Page 54: Sobre a elaboração de conceitos jurídicos em Ockham

de um mínimo de igualdade (ou eqüidade) entre si, pois tanto se afirmam

perante outros particulares, individual ou coletivamente considerados, como

também se apresentam como pautas objetivas de organização do Estado e

parâmetro para balizamento de suas políticas. Não é de estranhar, portanto,

que de último, tanto em sede de dogmática jurídica constitucional,94 como de

teoria social,95 se vem resgatando a figura do estado ou estatuto (status) para

definir juridicamente a posição fundamental dos que gozam daqueles direitos,

visto que os mesmos se lhes escapam a uma determinação de suas vontades.

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94 Cf., v.g., Stern, “Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland”, vol. III, tomo I, Munique: Beck, 1988, p. 421 ss.95 Cf. Baudrillard, “A Sociedade de Consumo”, Rio de Janeiro/Lisboa: Elfos/Edições 70, 1995, p. 56 e seg.; 73 e seg., passim.

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