Sobre Mary Douglas - RAM 2011

download Sobre Mary Douglas - RAM 2011

of 17

Transcript of Sobre Mary Douglas - RAM 2011

IX Reunio de Antropologia do MERCOSUL 10 a 13 de julho de 2011 Curitiba, PR

GT 52 Pesquisa antropolgica em trnsitoIracema Dulley (USP) e Marta Jardim (Unicamp)

Estratgias de legitimao e constrangimentos institucionais: o estabelecimento de cnones etnogrficos em territrios coloniais e os desafios da pesquisa heterodoxa

Christiano Key Tambascia PAGU / UNICAMP

Resumo:

Em comunicao prvia, procurei relacionar a anlise das narrativas sobre os constrangimentos institucionais e tericos enfrentados por Mary Douglas no campo africanista britnico com as questes surgidas pelo carter extranacional de minha pesquisa, realizada em contextos analticos distintos daquele de meu pas, dado que estes deslocamentos produziram efeitos no trabalho. Interessa levar adiante tais reflexes, ao estend-las para a investigao das prprias dificuldades encontradas por Douglas em estabelecer redes de interlocuo. A insatisfao manifesta pela antroploga acerca das dificuldades de publicao de sua etnografia africanista, bem como as tentativas de estabelecer parcerias intelectuais, iluminam os casos em que antroplogos centrais dispem de diferentes estratgias em pesquisas em antigos territrios coloniais comumente objetos de distintas tradies antropolgicas.

*******

Introduo: Talvez o historiador da disciplina antropolgica ficasse tentado a deixar de lado as hipteses levantadas por Richard Fardon (2004) acerca da marginalidade enfrentada por Mary Douglas (1921-2007) no interior do campo acadmico britnico, em especial, o africanista fosse este um historiador britnico ou de outra nacionalidade. Entretanto, pretendo enfrentar as observaes de Fardon e tentar relativizar esta noo de marginalidade, aparentemente contraditria, de uma das mais celebradas autoras da segunda metade do sculo passado. Espero com isso levar adiante algumas reflexes iniciadas em outra ocasio (Tambascia, 2009), e esboar uma anlise das interlocues tericas e institucionais de Douglas frente proposta do Grupo de Trabalho: em que medida experincias de pesquisa em trnsito, especialmente em contextos extra-nacionais, proporcionam

efeitos no conhecimento traduzido em publicaes e insero em espaos acadmicos. Para tanto, deverei retomar o estudo das interlocues estabelecidas com outros antroplogos, contemporneos de Mary Douglas, no interior da academia britnica, fornecendo elementos adicionais que permitam delinear o encontro entre os condicionantes do campo e a experincia destes movimentos, traduzidos narrativamente. Esta abordagem, a propsito de poder validar algumas das teses de que esta marginalidade de que fala Fardon, somente adquire sentido na contraposio destes breves exemplos que ajudam a mapear o lugar de Douglas na disciplina com uma anlise dos hiatos tericos e do entremeio dos entrecruzamentos das tradies britnica e francesa geralmente borradas nas descries paradigmticas da literatura de referncia sobre as particularidades das escolas. Uma comparao entre elementos da prpria obra da autora com estes exemplos me ajudar a levar a cabo uma tentativa de resgatar as possibilidades analticas desta abordagem.

Do Kasai cosmologia Dogon complicadores paradigmticos no dilogo anglo-francfono: Em 1963, Mary Douglas deu por encerrada suas publicaes propriamente africanistas, para em trs anos depois lanar o livro que a alou ao reconhecimento acadmico: Pureza e Perigo (Douglas, 1976). De sua tese de concluso de curso sobre o dote da noiva no continente africano (Tew, 1948), passando por inmeras resenhas de monografias africanistas, at a divulgao de suas anlises sobre os Lele do Kasai, a antroploga dedicou-se a estabelecer um espao no campo acadmico britnico, investindo na tentativa de demonstrar seu domnio da literatura de referncia sobre o continente africano e constituir uma agenda autoral de inspirao durkheimiana, que iria aplicar e refinar pelo restante da carreira. Na realidade, iria utilizar seus dados etnogrficos para sua teoria cultural desenvolvida a partir de Pureza e Perigo. Alm disso, em suas anlises decorrentes de seu trabalho de campo, possvel encontrar

elementos que de certa maneira anunciam algumas das preocupaes acerca da relao entre as formas simblicas de ordenao da estrutura social e as instituies que as embasam ou a relao entre as formas de associao sociais e as formas de julgamento moral que as ratificam (Fardon, 1987). Mas, no obstante a continuidade terica entre seu perodo africanista e sua obra posterior, sua posio no campo acadmico mudaria radicalmente. Seria tentador aplicar a teoria de marginalidade que, segundo Fardon, foi endossada por Douglas e coube a ele apenas anunci-la1 ao insucesso em estabelecer redes de interlocuo com os africanistas de Manchester, encabeados por Max Gluckman e os antroplogos que trabalharam ao seu redor na Rodsia do Norte, e que passaram a ser o grupo hegemnico em se tratando das pesquisas feitas na frica na segunda metade do sculo passado. No entanto, se alguns dos indcios que poderiam ser utilizados para compreender as confluncias, entre os discursos micos de Douglas a respeito de sua posio perifrica africanista e a estrutura deste campo, poderiam ajudar a dar carne e ossos para esta marginalizao, parecem existir elementos que tornam sua relao com a antropologia britnica (ou mesmo a antropologia transnacional), de maneira geral, igualmente passvel de uma investigao cuidadosa. Acredito que para dar sentido experincia de sua insero no mundo acadmico preciso repensar o conjunto de sua obra sob a luz destas estruturas institucionais e pessoais, no Reino Unido e na antropologia francfona. Talvez seja possvel, assim, considerar a trajetria de Douglas como um n paradigmtico, refletido em suas anlises tericas. Desenvolverei meu argumento a partir da anlise de um interessante artigo publicado em 19672 (Douglas, 1975a). Se trata de um exerccio intelectual sobre as diferenas das tradies etnogrficas dos dois lados do canal ingls, que permite situar a posio reivindicada por Douglas na antropologia que realizou, e que pode ajudar a determinar indcios sobre sua experincia institucional. 1 2

Comunicao pessoal com o autor. E reimpresso em 1975 em Implicit Meanings.

No referido trabalho, Mary Douglas se pergunta o que aconteceria se os Nuer tivessem sido etnografados pelos antroplogos franceses, e os Dogon, pelos britnicos. O que est em jogo no argumento desenvolvido so as diferentes metodologias e diferentes interesses dos estudiosos treinados em cada tradio: a favor dos seus conterrneos, Douglas acredita que maiores esforo e tempo em um trabalho de campo permitem que estes se dediquem mais ao mapeamento das estruturas sociais que adquirem sentido simblico nos rituais praticados. Exmios na coleta das cosmologias Dogon, os etngrafos franceses, que por anos se debruaram sobre as categorias simblicas desta sociedade, acabaram por no buscar de fato as causas profundas e reais, manifestas de maneira oblqua nos relatos dos informantes, como em uma das metforas preferidas de Douglas: das sombras lanadas s paredes de Plato algo que seus colegas britnicos, atravs de toda a preocupao com os dados materiais sobre parentesco e organizao poltica, estavam ansiosos por alcanar. Arquelogos sociais, estes pesquisadores estavam interessados em encontrar algo alm e aqum do mundo aparente. Entre a descrio dos modelos ideais, coletados em campo e em conversas com informantes, e os arranjos sociais de que dispem os indivduos3, os antroplogos britnicos buscavam uma verdade mais profunda dos fenmenos sociais observados. Em outro texto da mesma coletnea (Douglas, 1975b), a autora iria alm, ao afirmar que mais do que encontrar um sistema estruturado de ideias, o antroplogo deve demonstrar sua conexo com as preocupaes reais das pessoas que as utilizam para pensar, classificar e ordenar o mundo social. Segundo Douglas, foi Turner outro antroplogo ligado escola de Manchester que logrou apontar para a direo certa, ao mostrar a relao entre as ordens simblica e social de forma a que cada uma conduz outra um intercmbio dinmico de sentidos:Anthropologists are rightly always worried by the danger of subjectively imposing their categories on the material to be analysed. How can we control

Neste artigo, Douglas ainda sugere que os indivduos operam manipulando estas estruturas cosmolgicas.3

this subjective factor? Turners answer is to require a convincing demonstration of how the cultural categories sustain a given social structure. It should never again be permissible to provide an analysis of an interlocking system of categories of thought which has no demonstrable relation to the social life of the people who think in these terms (Douglas, 1975b, p. 144).

De qualquer forma, se a caracterizao dos ganhos tericos de uma abordagem estrutural-funcionalista inglesa no era nova, o que est por trs das reflexes de Douglas a defesa de um projeto intelectual bastante ambicioso, que expe, na reivindicao de um espao mais nobre da antropologia britnica no cenrio internacional, pistas sobre seu lugar no interior do mesmo. Se aprofundarmos a anlise e admitirmos que , alm disso, uma reivindicao pessoal, face a um projeto intelectual, possvel esquadrinhar estes espaos imaginados ainda que repletos de efeitos de sua obra, no interior da disciplina, de forma geral, e no interior do campo acadmico britnico (e africanista), em especial. No referido artigo sobre os Dongon, Douglas parece afirmar que a antropologia britnica no se restringe a coletar informaes que exprimam preocupaes prticas do colonialismo, retomando, para tanto, as contribuies de Evans-Pritchard, seu orientador em Oxford; Daryll Forde, o diretor do International African Institute, que financiou sua pesquisa de campo no Congo Belga; Max Marwick, africanista ligado ao grupo de Max Gluckman em Manchester e no Rhodes-Livingstone Institute na Rodsia do Norte; John Middleton, que foi colega de Douglas em Oxford; e Godfrey Lienhardt, que tambm foi orientado por Evans-Pritchard em Oxford na mesma poca em que Douglas l se encontrava. Se estes estudiosos, em comparao aos africanistas franceses, fizeram to pouco para registrar as cosmologias que so operadas pelos indivduos, ao mesmo tempo estavam no caminho correto. Modelos abstratos de racionalidade devem ser relacionados s aes humanas que conferem realidade simbolicamente mediada a tais estruturas de ordenao cosmolgica. O importante, entretanto, que mesmo tais manipulaes dos sistemas morais a famosa dicotomia entre o que dizem e o que fazem tambm passvel de categorizao em modelos de anlise, de acordo com o tipo de autoridade desempenhada em

cada sociedade, sua relao com a cultura, entre os indivduos, em dadas estruturas institucionais. Obviamente que esta perspectiva fez ruir, se ainda fosse preciso, as dicotomias ontolgicas entre o pensamento ocidental e o das sociedades primitivas. Afinal, uma sociologia do conhecimento que pudesse associar, as bases morais entrevistas na classificao simblica do cosmos, s configuraes polticas e da organizao social real que se utilizam destas bases, permite comparaes entre diferentes sociedades: das ocidentais, de quaisquer tipo, s tradicionais na frica, ou ainda lgica encontrada nas pginas do Velho Testamento. Diferem as formas, mas os mecanismos so os mesmos. Ao dizer que a antropologia britnica pode fazer mais do que simplesmente registrar dados que tornassem possvel compreender (ou utilizar) os choques entre as sociedades colonizadas e a administrao europia, Douglas se refere menos ao trabalho de Evans-Pritchard, Meyer Fortes, e outros defensores de uma teoria pura (preferencialmente, de uma sociedade que aparentasse no sofrer com o impacto do colonialismo); ela elogia a perspectiva poltica e processual dos africanistas da gerao psguerra em especial os de Manchester mas parece afirmar que isto no suficiente. Se seus trabalhos etnogrficos refletem essa preocupao com as transformaes das estruturas sociais tradicionais, sua abordagem iria progressivamente apontar para a busca de um modelo de explicao mais universal dos fenmenos sociais. Ou ainda, se a perspectiva histrica se deve fazer presente, mesmo na constituio de modelos abstratos, ela passvel de categorizao, dadas as estruturas em jogo, uma vez que uma das bases mais slidas de seu pensamento, exatamente a operao de formas de associao e solidariedade em relao s fronteiras dos grupos, sua posio ao que de fora e ameaa o sistema de funcionamento do mundo (Douglas, 1970). Nesse sentido, na maior parte das sociedades, os rituais tm grande importncia em manter protegidas as margens da unidade social: as categorias cosmolgicas so utilizadas contextualmente, pois o foco se trata, agora, da experincia social destes sistemas descritos pelos

antroplogos. E, crucial dizer, discurso e as relaes entre indivduos e grupos, ambos fazem parte da estrutura social. Alguns dos indcios mais fortes das reflexes que um dilogo antropolgico que ultrapassasse as fronteiras do Imprio, se referem contatos estabelecidos entre Mary Douglas e os antroplogos belgas que fizeram pesquisa de campo em regies prximas do territrio Lele (em que visitou entre 1949 e 1950, e novamente em 1953). Com Daniel Biebuyck, escreveu um livro editado pelo Royal Anthropological Institute (Douglas e Biebuyck, 1961); teve seus dados etnogrficos reutilizados por Luc de Heusch (Heusch, 1975; Heusch, 1981; Heusch, 1993); com Jan Vansina a colaborao foi ainda mais prxima, uma vez que este realizou pesquisa entre os Bushong, um grupo cujas semelhanas culturais e enormes discrepncias polticas e econmicas com os Lele, foi de suma importncia para a autora4. Todos os trs etngrafos belgas em algum momento estiveram no Reino Unido para complementar suas formaes acadmicas no caso de Luc de Heusch, muito por esforo de Douglas para convenc-lo a lecionar em Londres por um perodo. Em carta a Daryll Forde, de 09 de outubro de 1972, Douglas faz meno ao projeto, e agradece ao diretor do International African Institute pela assistncia. Tambm comenta sobre a possibilidade de uma nova edio da monografia Lele, e sobre os laos estabelecidos entre seu material etnogrfico e uma perspectiva francesa estruturalista (ainda que parea no ter urgncia em tratar do assunto):There is no hurry at all about asking the IAI to think of re-issuing the Lele of the Kasai or giving permission to do so to another publisher. It will take me a long time to assimilate the work on Lele kinship that Luc de Heusch is doing with Lvi-Strauss and I have other writings to do5.

Afinal, meu argumento o de que as tentativas de Mary Douglas em estabelecer redes de interlocuo terica no estavam restritas aos etngrafos belgas que poderiam se utilizar de seus dados coletados no Congo. Seria perfeitamente plausvel afirmar que, por Douglas no ter feito Este ainda escreveu duas resenhas elogiando a monografia Lele: Vansina (1964a) e Vansina (1964b). 5 Douglas para Forde, 09 de outubro de 1972. International African Institute Archives. IAI 38/27.4

pesquisa de campo em um territrio de colonizao britnica, tenha sofrido com um fraco dilogo com os africanistas de Manchester, que invariavelmente faziam pesquisas nas colnias do Imprio6. Este parece ser o argumento adotado por Fardon. Entretanto, se estendermos estes esforos por parte da antroploga em criar redes de colaborao no restringidas institucionalmente no Reino Unido, ou, ainda, se admitirmos que seu objetivo no era apenas ver seus dados etnogrficos utilizados por pesquisadores de sociedades aos quais estas informaes poderiam interessar, temos um novo e mais abrangente contexto ao qual testar a hiptese de marginalidade. O projeto douglasiano, mesmo em escritos africanistas, me parece alargar as perspectivas antropolgicas da anlise de sociedades tradicionais, para propor um modelo de explicao de pretenses universalistas. este desejo propriamente antropolgico pois se refere comparao entre sistemas de racionalidade de diferentes sociedades que coloca a relao com os etngrafos belgas apenas como um dos pontos de partida para alcanar discusses tericas mais gerais. Como foi anunciado na carta de Douglas acima, os estudiosos belgas do Congo no foram os nicos etnlogos francfonos com quem Mary Douglas estabeleceu um dilogo. Louis Dumont j havia lecionado em Oxford, no perodo em que Douglas l realizava seu doutorado, e foi interpelado por Douglas acerca das possibilidades de anlise de seus dados etnogrficos e para intermediar um dilogo com Lvi-Strauss, cuja teoria naquela poca j causava discusses no Reino Unido, principalmente por suas contribuies para a teoria do parentesco e suas discusses com Radcliffe-Brown sobre estruturas de aliana. Em primeiro de abril de 1954, Dumont escreveu:I am very sorry and I feel quite confused to discover now (I am sorting my papers before leaving for France) that I did not reply to your letter last December and did not thank you for your article. The worst is that I began writing at that time (I enclose the letter and notes about the Lele system of

Ainda que mesmo este argumento merecesse alguma considerao, dado que as semelhanas culturais entre os Lele os alguns dos povos da Rodsia do Norte, onde os colaboradores de Gluckman se fixaram, permitiria que existissem possibilidades de comparao entre as regies, no apenas do ponto de vista etnogrfico, mas tambm terico.6

kinship). What happened is that, since we came back here on January 2d., I have been engulfed in writing up my thesis, and have forgotten all about the complements which I probably wanted to add. I enclose these two sheets of paper, not for what they contain (you just throw them if you find it nonsensical) but just in the hope of being forgiven. (...) P.S. I recommended your paper to Levi-Strauss when I last saw him. I wonder whether He will have any comments this time7.

Vansina tambm fala sobre a relao de Mary Douglas com o estruturalismo lvi-straussiano. Afirma o autor belga, relembrando seus primeiro contatos com Douglas, colocando em perspectiva os flertes intelectuais ainda no incio da carreira desta:About 1951-1952 I also remember that she was not as opposed to the approach of Levi Strauss in his studies of kinship than others: but she was unusually more structuralist, less functionalist and more positivist than then usual in London8.

Na realidade, me parece evidente que as afinidades tericas que Douglas entrevia com os pesquisadores do outro lado do canal no so resultado de uma opo de segurana, quando as portas da universidade de Manchester se fecharam e ela teve que abandonar sua carreira africanista e se dedicar uma antropologia mais terica, na dcada de 1960. Existem indcios suficientes para localizar este trnsito extranacional ainda antes de concludo a tese de doutoramento em 1952. Mary Douglas no foi fazer teoria por no ter espao no campo africanista. Ainda em campo, ela estava interessada na maneira como as crenas em feitiaria Lele poderiam ser relacionadas estrutura social, da mesma forma como as regras e sanes alimentares descritas no Velho Testamento poderiam ajudar a compreender os mecanismos de equilbrio social, simbolicamente mediados. Mas sobre o dilogo pretendido com Lvi-Strauss, este parece no ter demorado para enviar comentrios sobre suas hipteses acerca das possibilidades analticas Lele para o problema das formas de associao positivas dada a estrutura de parentesco desta sociedade. Ele iria analis-las Dumont para Douglas, 01 de abril de 1954. Northwestern University Archives, series 11/3/2/2. Box 5, folder 9. 8 Comunicao pessoal com o autor, 10 de junho de 2007.7

com mais profundidade em um artigo de 1973 (Lvi-Strauss, 1993), em defesa de sua tese acerca da composio de um modelo de parentesco abstrato, contra as criticas de Luc de Heusch9 (Heusch, 1981) sobre equvocos, por sua vez, de sua critica teoria de Radcliffe-Brown sobre a importncia do tio materno na explicao dos termos de parentesco que implicam em matrimnio (quem so os indivduos, no tomo do parentesco, responsveis por ceder mulheres para ser feita a aliana). No cabe aqui estender-me sobre a polmica entre os dois autores belgas, mas importante assinalar que Luc de Heusch parte, de forma bastante elogiosa, da monografia Lele (Douglas, 1963) para se aventurar em um exerccio de anlise estrutural, dado que os dados que expe, e mesmo sua anlise, interessada em revelar estruturas latentes, permite tal tentativa. Ainda que, segundo o autor, Douglas permanecesse:(...) attached to the empirical procedures of the British tradition in social anthropology, the scope of her description prompts us to attempt a more radical formulation on the basis of the fruitful perspectives opened up by her analysis. I shall attempt, in particular, to reveal the subtle interaction of praxis and the structural order which is occasioned among the Lele by an ideology at times explicit and at others implicit (Heusch, 1981, p. 82).

Ora, esta era a mesma reivindicao que Douglas expressou em seu artigo sobre os Dogon que a antropologia britnica, ao partir da exaustiva descrio dos modelos abstratos que do sentido s configuraes de parentesco ou da organizao poltica de uma sociedade, permite dar carne para os padres que os indivduos fornecem ao etngrafo, mesmo sem saber que esto fornecendo verdades mais profundas ao serem entrevistados pelos primeiros. Estes indivduos revelam, segundo a antroploga, atravs de contradies e inconsistncias, os usos sociais prticos de seus esquemas cosmolgicos (Douglas, 1975a, p. 139). Combinar as tcnicas de pesquisa de franceses e britnicos, segundo a autora, tornaria possvel uma abordagem original e completa dos fenmenos sociais. Retomo, ento, o artigo que iniciou minha reflexo:

9

Heusch (1981), publicado originalmente em 1971.

The French would map the marvellous world of forms, whilst the English would burrow underground. Who are these sorcerers whom the Dogon fear? Who is accused and why, and what is the result of an accusation? What is the real balance of power which is expressed in the honouring of twins and the rejection of odd numbers? Where is authority most precarious? What is the ladder to advancement? In these subterranean corridors we are more at home (Douglas, 1975a, p. 140).

Qual tradio antropolgica permite que a anlise de uma sociedade revele mais do que o registro de cosmologias, ou, ainda, de modelos ideais de funcionamento e classificao do mundo cognoscvel, e situem as aes prticas ancoradas nestes sistemas morais (mas nunca exatamente cumpridos como deveriam)? Para Mary Douglas, a despeito de suas tentativas de estabelecer um dilogo com a teoria de Lvi-Strauss, no seria este ltimo: Lvi-Strauss tambm est interessado, segundo Douglas, em descobrir o que est por trs da tela, para encontrar sentidos escondidos ao olhos destreinados. Ele tambm procura revelar os mecanismos que explicam as aes sociais. Mas o antroplogo belga, ainda segundo Douglas, trabalha em um nvel cognitivo, no no nvel das emoes; os efeitos das ambies e remorsos dos homens: This is the crucial difference between his work and the kind of English anthropology in Africa I am talking about (Douglas, 1975a, p. 140). No me parece seguro afirmar sem qualquer sombra de dvida que Lvi-Strauss no esteja preocupado com as aparentes contradies que a estrutura de parentesco Lele prope ao antroplogo que a analisasse se esta a implicao real da abordagem proposta por Douglas. Esta noo, inclusive, uma das principais objees do autor quanto s crticas de De Heusch sobre os limites de sua teoria. Lvi-Strauss acusa, por sua vez, a interpretao de seu colega, sobre os efeitos de solidariedade, ou de autoridade, que indivduos Lele experimentam em sua sociedade, de acordo com os princpios que regem a moradia e os direitos de casamento entre homens e mulheres (geralmente de geraes diferentes). Razes bastante prticas poderiam ajudar a explicar o porqu os Lele se utilizam de pretenses aparentemente excludentes, para manter o equilbrio social e

constituir a perpetuao das linhagens de outra maneira difusa, dada a pouca profundidade histrica desta sociedade, segundo Douglas. Esta tambm no falhou em perceber que, entre os arranjos matrimoniais ideais de que lhe informaram na pesquisa de campo, e as formas como os mesmos indivduos conseguem contornar estes princpios morais, h uma aparente contradio. Um Lele de duas geraes acima de uma mulher pode ter o direito de casamento preferencial, mas na prtica ele pode alocar esta para ganhar favores de seu sobrinho materno, ou ainda torn-la esposa de seu grupo etrio, de onde provm uma das maiores foras de solidariedade desta sociedade. Da mesma forma, uma mulher que no esteja satisfeita com os arranjos de seu casamento, pode voltar para sua vila de origem, explicitando o fato de que o modelo abstrato que rege a vida social operado segundo circunstncias muito concretas (Douglas, 1963). Na realidade, Mary Douglas j havia enfrentado uma discusso pblica com Radcliffe-Brown a respeito destes pontos: as relaes jocosas que podem ser entrevistas na solidariedade e no carinho entre membros das geraes alternadas, na sociedade Lele, atentaria para a necessidade de repensar a teoria do colega. A antroploga inclusive enviou uma carta para Radcliffe-Brown expressando suas observaes. Este demonstrou no concordar com as crticas, acerca das situaes estruturais, em que a possibilidade institucionalizada de brincadeiras depende de uma anlise dos grupos e relaes de parentesco10. Novamente, no cabe discutir as implicaes tericas da troca de correspondncias11. possvel entrever as estratgias de insero no campo acadmico por parte de Douglas (no que no est sozinha): demonstrar o conhecimento da literatura tornada cannica e propor contribuies autorais para desenvolv-la. Entretanto, o importante a ressaltar que o palco encontrado por Mary Douglas para apresentar sua teoria, baseada em grande medida por suas observaes no Congo, ultrapassava os limites dos Ver, por exemplo, Radcliffe-Brown para Douglas, s/d. Northwestern University Archives, series 11/3/2/2. Box 1, folder 2. A carta provavelmente foi escrita no final de 1951. 11 E mesmo de publicaes que seguiram, dado que Radcliffe-Brown sentiu-se incentivado a escrever uma pequena nota sobre as geraes alternadas e as relaes jocosas aps a polmica com Douglas (Radcliffe-Brown, 1953). E esta reformulou algumas de suas anlises em 1952 (Douglas, 1952).10

corredores de Manchester, em que, por razes menos nobres, no lograra se relacionar12. O fato que Mary Douglas, a despeito dos discursos sobre sua marginalidade, no se absteve de estabelecer pontes de interlocuo, mesmo que no isentas de obstculos e rudos (ou, ainda, de mo nica). Sua posio no interior da acadmica britnica e nas relaes com a antropologia francfona surtiu efeitos institucionais para no dizer pessoais mesmo que traduzidas obliquamente em forma de teorias reivindicadas. Se o leitor pode no ficar convencido que estas estruturas acadmicas europias pudessem ser suficientes para admitir que a antroploga tenha de fato sido marginalizada no campo intelectual, preciso lembrar que para alm dos modelos paradigmticos afirmados a respeito das diferenas entre as tradies disciplinares, pode existir realmente um sentimento de inadequao, de uma insero que no se deu perfeitamente, nem em terras britnicas, nem em terras francfonas. No obstante, esta caracterstica da trajetria de Douglas, como uma espcie de n paradigmtico, ilumina as experincias da autora. O que crucial apreender aqui, sugiro, que isto pode, no fim, haver formatado a teoria produzida pela antroploga, nessa tentativa de constituir ferramentas de anlise das formas em que as sociedades se constituem, e se mantm, com um matiz universalista. Mary Douglas pode no ter tido sucesso em estabelecer-se no interior do campo africanista britnico. Ou mesmo na academia britnica de forma mais ampla, ou, ainda, na antropologia de maneira geral, a despeito de seu prestgio. Mas como desconsiderar os discursos de Douglas sobre as dificuldades encontradas no campo acadmico? A questo no simples, e qualquer historiador da antropologia hesitaria em no analisar de forma nuanada tal marginalidade relatada (mesmo apoiado em um estudo das estruturas do campo intelectual). Afirmou Vansina sobre a questo:

Em trabalho prvio eu procuro explorar alguns destes condicionantes, tambm de ordem pessoal, que fizeram com que sua monografia Lele no recebesse a devida ateno pelos africanistas hegemnicos do perodo: os colaboradores prximos a Max Gluckman no Rhodes-Livingstone e em Manchester (Tambascia, 2009).12

Relative silence Manchester School given the influence of Marxism there vs Marys liberal stance in the later 60s this is not surprising + 1 factor having to do then with the attempt to make Manchester the place for African social anthro + a functional basis... But Mary complained perhaps too easily. Her Natural Symbols made her famous in various intellectual circles, a situation no doubt envied by some which may explain some reticences, and she was much respected and honoured during her years in the US and of course in the UK as the obituary in the Guardian makes clear13.

Entretanto, acredito que mesmo que possamos admitir, com Vansina, que esta noo de marginalidade pudesse ser enganadora, ou que alguma inveja poderia estar por detrs de relaes conturbadas com alguns colegas14, iria contra tudo o que disse sobre a fora de sua obra, ou sobre como ela poderia adquirir novos sentidos com uma perspectiva sobre a importncia da experincia, se deixasse de lado tais discursos de Douglas. Ter realizado pesquisa em um territrio que no interessava diretamente aos seus pares britnicos; ter relaes conturbadas com Gluckman; ou reivindicar e ser criticada, mesmo pelos autores francfonos que se dispunham a discutir suas ideias, por atribuies que comumente se identificam com o melhor fazer antropolgico, o que constitui a fora de sua obra. Se existe um modelo de explicao do social, o anmalo crucial para mediar os sentidos que este modelo experimentado pelos indivduos que os utilizam mesmo que existam, no meio do caminho, aparentes contradies e surpresas. Parcerias intelectuais, mesmo que surdas, defeituosas, separadas por um canal, esto no cerne da obra de Mary Douglas.

Comunicao pessoal com o autor, 10 de junho de 2007. nfases no original. E, importante assinalar, mesmo antes de se tornar clebre com Natural Symbols, como afirma Vansina.14 13

Bibliografia: DOUGLAS, Mary. Alternate Generations among the Lele of the Kasai, SouthWest Congo. Africa, vol. 22, n. 1, pp. 59-65, 1952. _______. The Lele of the Kasai. Londres: Oxford University Press, 1963. _______. Natural Symbols: explorations in cosmology. Nova York: Pantheon House, 1970. _______. If the Dogon... In Douglas, Mary. Implicit Meanings: essays in anthropology. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1975a. _______. The Healing Rite. In Douglas, Mary. Implicit Meanings: essays in anthropology. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1975b. _______. Pureza e Perigo. So Paulo: Editora Perspectiva, 1976. DOUGLAS, Mary e Daniel Biebuyck. Congo Tribes and Parties. Londres: Royal Anthropological Institute, Pamphlets, n. 1, 1961. FARDON, Richard. The Faithful Disciple: On Mary Douglas and Durkheim. Anthropology Today, vol. 3, n. 5, pp. 4-6, 1987. _______. Mary Douglas: uma biografia intelectual. Apresentao de Peter Fry. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. HEUSCH, Luc De. El estructuralismo heterodoxo de Mary Douglas. In Douglas, Mary. Sobre la Naturaleza de las Cosas. Barcelona: Anagrama, 1975). _______. Why Marry Her? Society and symbolic structures. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. _______. Hunting the Pangolin. Man (New Series), vol. 28, n. 1, pp. 150-166, 1993. LVI-STRAUSS, Claude. Reflexes sobre o tomo de parentesco. In LviStrauss, Claude. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. On Joking Relantionships. Africa, vol. 13, n. 3, pp. 195-210, 1940.

_______. A Further Note on Joking Relantionships. Africa, vol. 19, n. 2, pp. 133-140, 1949. _______. A Commentary on Alternate Generations among the Lele. Africa, vol. 23, n. 4, pp. 251-254, 1953. TAMBASCIA, Christiano Key. O trabalho de campo de Mary Douglas no Congo Belga e o africanismo britnico do ps-guerra: desafios metodolgicos de uma pesquisa em arquivos em contextos extranacionais. Trabalho apresentado na VIII Reunio de Antropologia do MERCOSUL (RAM 2009). Buenos Aires, 2009. TEW, Mary. Bridewealth in Africa. Tese apresentada para o ttulo de Bacharel em Cincias pela Universidade de Oxford, 1948. VANSINA, Jan. Resenha de Mary Douglas, The Lele of the Kasai. Man, vol. 64, p. 67, 1964a. _______. Resenha de Mary Douglas, The Lele of the Kasai. Journal of African History, vol. 5, n. 1, pp. 141-142, 1964b.