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SOBRE O CONSTRUTIVISMO

CONTRIBUIÇÕES A UMA

ANÁLISE CRÍTICA

[email protected]

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Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

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Preparação dos OriginaisLúcia Helena Lahoz Morelli

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Impressão e AcabamentoGráfica Paym

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SOBRE O CONSTRUTIVISMO

CONTRIBUIÇÕES A UMA

ANÁLISE CRÍTICA

NEWTON DUARTE

(ORGANIZADOR )

2ª EDIÇÃO

COLEÇÃO POLÊMICAS DO NOSSO TEMPO

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sobre o construtivismo: contribuições a uma análise crítica/Newton Duarte (org.). – 2. ed. – Campinas, SP: AutoresAssociados, 2005. – (Coleção polêmicas do nosso tempo; 77)

Vários autores. Bibliografia.ISBN 85-7496-002-0

1. Construtivismo (Educação) 2. Psicologia educacional I. Duarte, Newton II. Série.

00-2634 CDD-370.15

Índices para catálogo sistemático:

1. Construtivismo: Análise crítica:Psicopedagogia: Educação 370.15

Impresso no Brasil – janeiro de 20051ª Edição – setembro de 2000

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1Newton Duarte

CAPÍTULO UM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3CONSTRUTIVISMO E ALIENAÇÃO: AS ORIGENS

DO PODER DE ATRAÇÃO DO IDEÁRIO CONSTRUTIVISTAJoão Henrique Rossler

CAPÍTULO DOIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23PEDAGOGIAS PSICOLÓGICAS E REFORMA EDUCACIONALMarília Gouvea de Miranda

CAPÍTULO TRÊS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41A FORMAÇÃO DE PROFESSORES SOB A ÓTICA

CONSTRUTIVISTA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

E ALGUNS QUESTIONAMENTOSAlessandra Arce

CAPÍTULO QUATRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS À CONCEPÇÃO DE

SUJEITO E OBJETO Lígia Regina Klein

CAPÍTULO CINCO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87O CONSTRUTIVISMO SERIA PÓS-MODERNO OU

O PÓS-MODERNISMO SERIA CONSTRUTIVISTA?(ANÁLISE DE ALGUMAS IDÉIAS DO “CONSTRUTIVISMO

RADICAL” DE ERNEST VON GLASERSFELD)Newton Duarte

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APRESENTAÇÃO 1

E

APRESENTAÇÃO

Esta pequena coletânea tem por objetivo, como já o indica seu título, apresentar algumas contribuições ao desenvolvimento de uma análise crítica do construtivismo. Não farei aqui, comoé de praxe em apresentações de coletâneas, a síntese de cada um dos artigos que a compõem. Os títulos são claros o bastante para indicar ao leitor a temática de cada artigo e instigantes a ponto de despertar sua curiosidade.

Entretanto são necessárias algumas palavras quanto às origens dos textos aqui reunidos. São cinco textos escritos por pesquisadores que vêm se dedicando ao exercício de análise crítica do construtivismo, de seus fundamentos e de suas implicações educacionais, a partir de diferentes perspectivas e enfocando distintos aspectos em suas análises. Dos cinco textos, três (o de João Henrique Rossler, o de Alessandra Arce e o meu) resultam de projeto integrado intitulado “O construtivismo: suas muitas faces, suas filiações e suas interfaces com outros modismos”. Esse projeto, por mim coordenado, conta com o apoio do CNPq para o período de agosto de 1998 a julho de 2000. Minha expectativa é a de continuidade dessa pesquisa ao menos por mais um período de dois anos, ou seja, até julho de 2002. O artigo de Marília Gouvea de Miranda resulta também de projeto integrado de pesquisa que contou

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com apoio do CNPq, intitulado “O construtivismo como princípio pedagógico: a problemática da relação psicologia e edu-

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cação”, desenvolvido nos anos de 1995 a 1999. O artigo de autoria de Lígia Regina Klein apresenta um capítulo da tese de doutorado defendida pela autora, em 1996, na PUC-SP, intitulada “Uma leitura de Piaget sob a perspectiva histórica”. Além disso, a autora já havia, de certa forma, defrontado-se com os ecos do construtivismo no senso comum no campo da alfabetização, em sua dissertação de mestrado que foi publicada como livro, com o título Alfabetização: quem tem medo de ensinar?.

Também são necessárias algumas palavras sobre a seqüência na qual os textos são aqui apresentados. Sendo uma coletânea detextos independentes, não há uma seqüência lógica obrigatória para sua leitura. Entretanto, procurei ordená-los adotando como critério a maneira pela qual os autores realizaram, em cada texto, a aproximação ao objeto comum a todos: o construtivismo. Os três primeiros textos aproximam-se de seu objeto procurando enfocar o construtivismo como corrente de pensamento, sem se deterem de forma detalhada sobre algum autor em especial. É dessa forma que João Henrique Rossler focaliza a questão das origens do poder de atração do ideário construtivista; Marília Gouvea de Miranda focaliza as relações entre educação e psicologia no construtivismo, bem como a influência que tais relações exerceriam sobre as reformas educacionais contemporâneas e, no terceiro texto, Alessandra Arce analisa como a formação de professores é abordada pelo construtivismo. Já os dois últimos textos aproximam-se de seu objeto através da análise de um determinado pensador construtivista: Jean Piaget no texto de Lígia Regina Klein e Ernest Von Glasersfeld em meu texto.

Newton Duarte

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Araraquara, fevereiro de 2000

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CONSTRUTIVISMO E ALIENAÇÃO 3

E

C A P Í T U L O - U M

CONSTRUTIVISMO E ALIENAÇÃO

AS ORIGENS DO PODER DE ATRAÇÃO DO

IDEÁRIO CONSTRUTIVISTA

João Henrique Rossler*

Este texto aborda alguns aspectos da pesquisa que estamos desenvolvendo com vistas à elaboração de nossa dissertação de Mestrado em Educação, pesquisa esta de cunho teórico, que tem por objetivo analisar a presença de processos de sedução e, portanto, de alienação, na difusão do ideário construtivista entre os educadores brasileiros, ideário este que acabou se transformando num dos grandes modismos de nossa educação. Esta investigação vem sendo realizada tendo como eixo teórico norteador a teoria do cotidiano da filósofa húngara Agnes Heller, especialmente suas categorias de indivíduo particular, cotidiano alienado e pensamento cotidiano, teoria esta elaborada durante a fase ainda marxista da obra dessa autora.

Nosso interesse por questões dessa natureza começou a ser despertado durante o estágio de Psicologia Escolar, ainda na graduação, no qual tivemos, entre outras teorias psicológicas e pedagógicas, o construtivismo como objeto de nossas reflexões. Esse interesse veio a ser intensificado e mais bem definido pela nossa participação, durante a pós-graduação, em dois projetos integrados de pesquisa. Durante o período de setembro de 1997 a julho de

* Doutorando e bolsista CNPq do Programa de Pós-Graduação em Educação

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Escolar, UNESP, campus de Araraquara.

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1998, participamos do projeto integrado de pesquisa intitulado“Elementos para uma teoria histórico-crítica do trabalho educativo”1. Essa pesquisa teve como objetivos: 1) verificar na bibliografia construtivista a existência de elementos de aproximação com o ideário escolanovista; 2) estabelecer os pontos de diferenciação e/ ou oposição entre o construtivismo e a Psicologia Soviética da Escola de Vigotski; 3) propor uma aproximação entre Vigotski e a Pedagogia Histórico-Crítica. Atualmente, participamos do outro projeto integrado “O construtivismo: suas filiações, suas muitas faces e suas interfaces com outros modismos”2. Esse projeto pretende, por um lado, dar continuidade ao projeto anterior e, por outro lado, aprofundar a análise específica do construtivismo, sendo que sua proposta de investigação e seus objetivos estão diretamente relacionados ao tema da pesquisa de mestrado por nós desenvolvida. Para iniciarmos nossas reflexões, a primeira questão que poderíamos formular seria a seguinte: a que nos referimos quando pensamos nos possíveis processos de sedução que perpassam a difusão do ideário construtivista entre os nossos educadores no meio educacional brasileiro? Que relações estaríamos estabelecendo entre modismos educacionais, construtivismo, sedução, alienação e teoria do cotidiano?

Seria difícil nos tempos atuais discordar da afirmação acerca da existência do fenômeno dos modismos na educação brasileira, muito menos negar seus efeitos negativos. E isto independentemente da teoria que esteja em moda ou em vias de transformar-se num modismo. Na verdade, os modismos que marcam nossa educação neste final de século constituem-se hoje num fenômeno que, com toda a sua problemática, não pode de forma alguma passar despercebido mesmo a um olhar menos acostumado com os problemas educacionais.

Entretanto, a despeito do reconhecimento deste problema na nossa educação, até o presente momento desconhecemos a exis-

1. Esse projeto, coordenado pelo professor doutor Newton Duarte (UNESP/Araraquara), foi financiado pelo CNPq, no período de agosto/1996 a

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julho/1998.2. Projeto Integrado também coordenado pelo professor doutor Newton

Duarte e financiado pelo CNPq, pelo período de agosto/1998 a julho/ 2000..

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tência de estudos dedicados à análise detalhada desta questão e,muito menos, daqueles que no interior dessa temática focalizem os mecanismos que contribuiriam para a produção e a reprodução deste fenômeno, muito embora possam aparecer, esporadicamente, em um ou outro trabalho, menções acerca dos problemas que os modismos acarretariam para a educação.

No que se refere à questão do construtivismo visto como um modismo, dois artigos não podem deixar de ser aqui mencionados. Um deles é o artigo de Miguel Arroyo, publicado na revista AMAE-Educando, intitulado “Construtivismo: teoria séria, moda preocupante” (ARROYO, 1993), no qual o autor aborda a questão dos motivos que teriam levado nossos educadores a aderir facilmente a mais um modismo pedagógico, tratando a questão do construtivismo como um fenômeno sociocultural-escolar. O outro é o artigo de Sandra Mara Corazza, publicado na revista Educação e Realidade, intitulado “Construtivismo: evolução ou modismo?” (CORAZZA, 1996).

Dados os limites deste nosso artigo, não nos deteremos na análise das convergências e das divergências entre nossa abordagem do construtivismo como um modismo e a abordagem adotada por esses dois autores nesses dois artigos. Especialmente no caso do texto de Corazza, no qual a autora polemiza, a partir de um referencial pós-moderno/pós-estruturalista, com o que considera dois sentidos correntes atribuídos ao construtivismo, o de evolução e o de modismo, precisaríamos fugir muito aos objetivos deste artigo se pretendêssemos esclarecer por que discordamos dessa autora quando ela argumenta que o construtivismo não deveria ser considerado um modismo.

O objetivo deste texto não é propriamente o de caracterizaro que seja um modismo e, especialmente, um modismo em educação, mas sim o de, adotando como pressuposto o fato de o construtivismo ter-se constituído num modismo, procurar analisar as origens sociais e psicológicas do poder de atração

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exercido por esse ideário. Entretanto, para evitar alguns mal-entendidos, devemos esclarecer minimamente o que entendemos por modismo ou por moda, que aqui estamos empregando como sinônimos.

Nesse sentido, entendemos que a moda (ou o modismo) é, como a caracterizou Ágnes Heller (1989, pp. 89-90), uma forma

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alienada da orientação da sociedade para o futuro. Segundo a filósofa húngara, as sociedades pré-capitalistas orientavam-se para o passado. Numa estrutura social como aquela, portanto, a tradição adquiria uma maior importância. E, deste modo, a vida das gerações daquela época orientava-se, essencialmente, pelas atitudes, pelos valores, dos seus antepassados. Com o advento da ascensão da burguesia e a conseqüente modificação nas estruturas sociais, começa a se impor uma nova forma de orientação: o futuro é quem passa a guiar a vida dos indivíduos. Com o capitalismo, a produção humana se torna indefinida, não se limitando mais ao essencial, à satisfação das necessidades imediatas dos homens. Isto, por sua vez, determina nos homens uma necessidade de modificarem, renovarem, transformarem continuamente, tanto a si mesmos quanto a própria sociedade, e esta necessidade de transformação, segundo Heller, seria uma das maiores conquistas da humanidade. Todavia, com a crescente alienação, fenômeno este intrínseco às relações capitalistas de produção, deu-se também a alienação desta forma qualitativamente nova de guiarmos nossas vidas. A orientação para o futuro aliena-se e transforma-se em moda, na necessidade de não ficarmos atrasados em relação àquilo que esteja na moda, ao que existe de novo na nossa sociedade. Portanto, a moda e os modismos são sempre e necessariamente fenômenos de alienação. Em outras palavras, um olhar alienado para aquilo que se apresenta como o que há de novo na sociedade. Para Heller, esse processo teria relações diretas com a estereotipia dos sistemas funcionais da nossa sociedade, com a conversão de certos tipos de comportamentos, na sociedade burguesa, em “papéis”.

A própria idéia de que o construtivismo seria algo “novo” em educação certamente desempenhou e desempenha um papel importante em sua difusão. Basta lembrar aqui a afirmação de Sanny A. Rosa (1994, p. 32): “se há algo novo no ar que se respira nos meios educacionais, de modo mais intenso há mais ou menos uma década, esse novo tem nome: chama-se construtivismo”.

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Exatamente a que estamos nos referindo quando falamos em construtivismo, seria uma questão pertinente neste momento, em se tratando de buscarmos uma definição mínima para este termo

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tão propagado. O construtivismo constitui-se num ideário epistemológico, psicológico e pedagógico, fortemente difundido no interior das práticas e reflexões educacionais e, a despeito das divergências que possam existir quanto ao que seriam as principais características definidoras desse ideário em educação, não poderíamos negar a existência dessa corrente, pelo simples fato do grande número de publicações de autores autodefinidos como construtivistas.

Numa primeira aproximação, e também provisoriamente, poderíamos definir o construtivismo como um conjunto de diferentes vertentes teóricas que, apesar de uma aparente heterogeneidade ou diversidade de enfoques no interior de seu pensamento, possuem como núcleo de referência básica a epistemologia genética de Jean Piaget3, em torno à qual são agregadas certas características que definem a identidade do ideário construtivista como um ideário filosófico, psicológico e educacional, compartilhando, assim, um mesmo conjunto de pressupostos, conceitos e princípios teóricos. Contudo, não pretendemos com isto esgotar o assunto, uma vez que a definição de construtivismo é problemática até mesmo entre os próprios construtivistas e não nos cabe aqui querer fechar tal questão. Entretanto, por mais que possam existir várias definições de construtivismo, nenhuma delas deixa de admitir o citado pensador suíço como referência, ainda que não necessariamente exclusiva e ainda que questionada ou superada neste ou naquele ponto em particular. Além do mais o próprio termo construtivismo foi criado, como é sabido, pelo próprio Piaget.

A partir da segunda metade da década de 1980, este ideário começou a ganhar simpatia e, assim, uma rápida e significativa adesão, por parte dos nossos educadores e estudiosos da área, repercussão esta que, no nosso entender, perdura até os dias de hoje.

A partir dos estudos realizados no projeto integrado do qual participamos atualmente, acreditamos que o construtivismo esta-

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3. Também não abordaremos aqui a importante questão das oposiçõesfundamentais entre a concepção construtivista e a concepção sócio-histórica de Vigotski, Leontiev, Luria etc. Para uma crítica às tentativas de aproximação entre o construtivismo e a psicologia da Escola de Vigotski vide DUARTE (1996;1998; 2000).

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ria, ainda hoje, mais vivo do que nunca. E qualquer aparente perda de prestígio para outras teorias seria apenas a expressão de um movimento mais amplo de reorganização e reestruturação teórica do respectivo ideário, que vem a cada dia incorporando (ou sendo incorporado por) outros discursos teóricos aparentemente concorrentes, mas que na verdade guardam entre si profundas filiações e interfaces. E mesmo teorias radicalmente opostas, por divergências que já partem desde o âmbito dos fundamentos filosóficos, foram e vêm sendo incorporadas ao ideário interacionista-construtivista, como é caso do pensamento do psicólogo russo L. Vigotski, pois foi muito mais interessante e conveniente tê-lo como aliado teórico, ressaltando as supostas e aparentes aproximações entre ambas as teorias, do que enfrentar as profundas diferenças e discordâncias. Nesse sentido, podemos considerar que o construtivismo ainda se constitui em uma concepção filosófica, psicológica e pedagógica hegemônica em nossa educação, exercendo seu poder de encanto e sedução de forma mais explícita ou mais implícita, dependendo dos diferentes momentos e situações.

Entretanto, a existência desse processo de grande difusão dessa corrente de pensamento é por vezes contestada através da afirmação de que o discurso e a prática da maioria dos educadores (mesmo daqueles que se apresentem como construtivistas) não correspondem ao modelo teórico do construtivismo. Em primeiro lugar, gostaríamos de enfatizar que tal argumentação não se sustentaria a partir de uma reflexão mais aprofundada acerca das relações entre a teoria e a prática, mas mesmo admitindo-se provisoriamente aqui que realmente exista tal discrepância, isto não invalidaria o fato de que o construtivismo teve e ainda tem uma ampla difusão, uma grande aceitação pelo público educador em geral e que conseguiu e ainda consegue, apesar das críticas que vem sofrendo, conquistar muitos adeptos. Muito menos, portanto, invalidaria nossa problemática de pesquisa. Até porque falar em adesão não significa, num primeiro instante, qualificá-la, pois ser adepto de uma dada teoria pode concretizar-se através de diferentes

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modalidades de adesão e não implica necessariamente a existência de uma aplicação coerente e integral da teoria à qual se aderiu.

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Negar o impacto do construtivismo em nossa educação porconta de esse modelo não ser inteiramente coerente com o discurso e a prática dos educadores que nele se fundamentam é um argumento temerário, pois levaria, em última instância, a negarmos o impacto de toda e qualquer teoria. Tomemos o caso da psicanálise como exemplo. O senso comum, ao longo dos anos, absorveu de forma incontestável muito do vocabulário psicanalítico e não poderíamos negar que tanto a educação, num sentido mais amplo, quanto a educação escolar ainda hoje sofrem influência dessa teoria, mesmo que essa interferência se dê de forma pouco coerente com a mesma. Poderíamos por conta disso negar o seu impacto? Negar a adesão ou mesmo a simpatia que recebeu nos mais diversos campos das ciências e da cultura? Poderíamos discordar que a psicanálise interferiu na educação das novas gerações? Acreditamos que não.

Partimos do pressuposto de que idéias são geradas, idéias são difundidas, ecoam e, portanto, causam impactos. Cria-se toda uma cultura tanto material quanto simbólica, ora mais explícita ora menos, mas que existe objetivamente posta na realidade. No caso específico da difusão do construtivismo no Brasil, idéias foram produzidas, configuradas na forma de um ideário, difundidas por diferentes meios e causaram sim um impacto nas reflexões e ações dos educadores brasileiros, modificando o ambiente da escola, o trabalho na escola ou aquilo que alguns autores têm chamado de “cultura da escola” ou “cultura do cotidiano escolar”. Nesse sentido, acreditamos que o construtivismo gerou sim um forte impacto na nossa educação e isto por conta de várias razões, justificando-se a necessidade de estudos e pesquisas que procurem compreender tais motivos.

O status que o referencial construtivista assume atualmente no meio educacional brasileiro, como um dos principais e mais importantes modelos teóricos norteadores de reflexões e práticas pedagógicas, ou, como preferimos dizer, na posição do principal modismo de nossa educação, não é em absoluto uma

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suposição arbitrária de nossa parte, mas sim consiste em uma constatação tanto empírica quanto fruto dos estudos que vêm sendo desenvolvidos no já citado projeto integrado de cuja equipe fazemos

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parte. E vários outros autores concordam em afirmar esse seustatus privilegiado.

Analisando a presença do construtivismo na revista Nova Escola, revista esta de ampla difusão no nosso meio educacional, destinada principalmente ao público de educadores das séries iniciais do ensino fundamental, Vieira (1998) constata que o construtivismo constitui-se no tema principal das publicações, ocupando o lugar de maior destaque no rol dos temas escolhidos pelos editores da revista, tanto no caso das grandes reportagens como no caso das matérias secundárias. Silva (1998), procurando fazer a crítica ao construtivismo a partir de um enfoque pós-estruturalista, aponta a situação privilegiada que este ideário ocupa na educação, segundo as próprias narrativas construtivistas. Segundo o autor, a abordagem construtivista dos processos cognitivos da criança e dos processos escolares de aprendizagem é narrada como “o ápice de uma história de compreensão cada vez mais científica da mente humana [...] o núcleo da educação e da pedagogia”, constituindo-se, assim, atualmente, na “grande narrativa da educaçãoe da pedagogia” (idem, p. 13). Por outro lado, Fosnot (1998), autora representante do construtivismo norte-americano, afirma que o construtivismo talvez se constitua hoje na psicologia da aprendizagem mais corrente, apoiando grande parte das tomadas de decisões curriculares e instrucionais que ocorrem na educação. E no prefácio da obra Construtivismo em sala de aula (BROOKS e BROOKS, 1997), a mesma autora afirma que “embora não seja uma teoria de ensino, o construtivismo está servindo como base para muitas das reformas atuais na educação”.

Os autores acima citados apontam todos numa mesma direção: apresentam o ideário construtivista como um marco significativo no campo tanto da psicologia como, e principalmente, da pedagogia e da educação, deixando claro o status que esse ideário assumiu e ainda assume no nosso meio educacional. De fato, não podemos perder de vista que o ideário construtivista vem sendo utilizado, atualmente, na

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tentativa de legitimação científica de uma série de políticas e propostas de reformas na educação, em vários países do mundo, com vistas a uma suposta melhoria da qualidade de ensino. E, nesse sentido, julgamos que não seria muito afir-

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mar que o construtivismo se apresenta hoje como um dos principais modismos de nossa educação e, nesse sentido, um fenômeno privilegiado para aqueles que pretendam analisar o problema dos modismos teóricos de nossa realidade educacional.

Assim, qualquer reflexão mais crítica que se pretenda realizar sobre essa teoria adquire uma significativa relevância, em face do atual contexto educacional. Na medida em que as políticas educacionais atuais apregoam estarem fundamentadas em pressupostos construtivistas, a reflexão sobre esse ideário assume, portanto, uma relevância tanto científica quanto política. Ou seja, num momento em que as políticas educacionais voltam-se para a implementação, muitas vezes apressada, de reformas pretensamente apoiadas em determinados referenciais teóricos, precisamos questionar e refletir sobre esses referenciais, particularmente quando possuem um potencial tão forte em ganhar simpatia e rápida adesão, como é o caso do construtivismo.

Uma vez que nosso objetivo com esta pesquisa consiste em compreender os mecanismos pelos quais o construtivismo tem seduzido e, assim, conquistado tantos adeptos e simpatizantes entre nossos educadores e pesquisadores, impõe-se a tarefa de procurarmos responder às seguintes questões: por que determinadas teorias da educação recebem uma significativa adesão por parte de educadores e pesquisadores e passam a ocupar um lugar privilegiado no meio acadêmico e escolar, enquanto outras são recebidas com certa indiferença ou mesmo, após um certo período de tempo, simplesmente esquecidas? Que elementos tanto objetivos quanto subjetivos estariam determinando o poder de sedução de certos modismos educacionais? Estes mecanismos ou processos de sedução constituiriam um dos fatores que estariam na base da produção e da reprodução dos referidos modismos educacionais? Por outro lado, por que certos educadores seriam até certo ponto imunes ao poder de sedução do construtivismo, vindo mesmo a se posicionarem de forma tão crítica em relação a ele? O que os diferenciaria daqueles que, apaixonadamente, porém de forma

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acrítica, se encantaram pela teoria? Em resumo, para podermos responder a essas questões é necessário nos perguntarmos: o que seria sedutor no ideário construtivista, isto é, que

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elementos estariam presentes em seu discurso que o tornam sedutor para um grande contingente de educadores? E mais ainda: como e por que seduz, ou seja, como e por que esses mesmos educadores se deixariam seduzir por tais elementos? Em outras palavras, temos que procurar compreender os conteúdos da teoria pelos quais os educadores se seduzem e os processos psicológicos, tanto intelectuais como afetivos, que estariam envolvidos nesse fenômeno de sedução.

Vários autores já destacaram aspectos que teriam contribuído para a difusão do construtivismo. Duarte (1993) formulou a hipótese de que o construtivismo teria ocupado um espaço vazio ou rarefeito que existiria, no terreno das teorias críticas em educação, entre o âmbito dos fundamentos filosóficos, históricos e sociológicos da educação e o âmbito dos estudos sobre o fazer pedagógico propriamente dito. Para fazer frente a esse avanço do construtivismo, Duarte apresenta, naquele trabalho, o que seriam as categorias básicas de uma teoria histórico-social da formação do indivíduo, teoria essa que se oporia à concepção a-histórica da individualidade humana postulada pelo construtivismo. Miguel Arroyo, em artigo já citado, analisa as relações entre os traços correntes da cultura escolar pedagógica dominante no Brasil e certos aspectos do construtivismo, os quais reforçam essa cultura e por isso provocam uma fácil adesão dos educadores. Silva (1993) afirma que o sucesso do construtivismo seria devido, entre outras coisas, ao fato de apresentar-se como a resposta para a questão do que fazer na sala de aula na segunda-feira pela manhã, assumindo, ao mesmo tempo, ares de uma concepção crítica e progressista. Segundo esse autor:

Parte da predominância atual do construtivismo deve-se, precisamente, à sua dupla promessa. De um lado, ele aparece como uma teoria educacional progressista, satisfazendo portanto aqueles critérios políticos exigidos por pessoas que, em geral, se classificam como de “esquerda”. De outro, o construtivismo fornece uma direção relativamente clara para a prática pedagógica, além de ter como base uma teoria de

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aprendizagem e do desenvolvimento humano com forte prestígio científico. Compa-

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rem isso com, de um lado, por exemplo, as teorias macrosso-ciológicas e políticas sobre a escola, tais como as chamadas teorias da reprodução, apenas para citar uma delas. Faltam aqui aqueles ingredientes práticos, de direção para a “ação na sala de aula na segunda-feira de manhã”. E, por outro lado, coloquem o construtivismo lado a lado com o tecnicismo, por exemplo. Obviamente, o tecnicismo tem toda aquela aura conservadora que nenhuma pessoa que se considere como progressista quer – nesta altura do debate – carregar [idem, p. 4, grifos nossos].

Nesse artigo bastante conhecido, Silva propõe-se a mostrar que o construtivismo seria, ao contrário do que postulam seus defensores, uma concepção educacional com efeitos conservadores, configurando um retrocesso político em relação às análises críticas do fenômeno educacional. Assinalamos, de passagem, que o citado projeto integrado do qual participamos tem evidenciado o fato de que o construtivismo não possui o caráter prescritivo a ele atribuído por Tomas Tadeu da Silva. Em artigo intitulado “Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar”, Duarte (1998) defende a tese de que o construtivismo seria “concepção negativa sobre o ato de ensinar”, o que contradiz a idéia tão difundida segundo a qual o construtivismo deveria seu sucesso ao fato de trazer aos educadores propostas concretas sobre o fazer pedagógico de sala de aula.

Ainda no que se refere aos elementos que teriam contribuído para o sucesso do construtivismo, devemos mencionar os trabalhos de Miranda (1997 e 1999) e Klein (1996), que também assinalam como um desses elementos a difusão da idéia de que o ideário construtivista traria a possibilidade de concretização de uma prática educacional progressista e transformadora. Ainda que os autores aqui citados formulem, com enfoques e pressupostos distintos, críticas à imagem que o construtivismo divulgou de si próprio, isto é, a de que seria uma concepção revolucionária da educação, o fato é que esses autores não discordam quanto à força que essa imagem teria no processo de difusão do ideário

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construtivista. Se as problemáticas tentativas de articulação do construtivismo com as teorias críticas da educação acabaram por contribuir para reforçar seu caráter sedutor, por outro lado, suas interfaces

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com o movimento escolanovista, no decorrer de sua difusão no Brasil, é outro fator significativo, segundo nossa interpretação, e que não podemos de modo algum desconsiderar, se queremos compreender os elementos que tornam o ideário construtivista um discurso bastante atraente e sedutor. No interior de um trabalho que se propõe a investigar as razões que levam um determinado ideário a conquistar tão facilmente adeptos e simpatizantes, compreender seus diálogos com outras teorias e/ou modismos pode ser algo bastante elucidativo.

Como mencionamos no início deste artigo, os projetos integrados de pesquisa, de cuja equipe temos participado, têm como um de seus objetivos analisar a filiação pedagógica do construtivismo no movimento escolanovista. Essa idéia, entretanto, é também defendida por outros pesquisadores, não necessariamente voltados para a crítica do construtivismo como, por exemplo, o trabalho de Mário Sérgio Vasconcelos (1996), no qual o autor afirma que a inserção, a divulgação e a aceitação das idéias do pensador suíço em nosso país teriam sido promovidas pelo movimento escolanovista.

Acreditamos que o fato de o construtivismo ter penetrado na educação brasileira vinculado teórica e ideologicamente ao ideário escolanovista acabou por ampliar a ressonância das idéias advindas do interacionismo-construtivista na cultura educacional e pedagógica atual, tendo em vista o forte impacto do pensamento escolanovista em nossa educação, impacto este presente de certa forma até os dias de hoje. Sabemos o quanto as idéias defendidas pelo movimento da Escola Nova despertaram o interesse dos nossos educadores. E se a Escola Nova teria alcançado uma considerável repercussão positiva em outros tempos, seria mais do que normal que ideários a ela relacionados, por extensão, causassem, também, um certo impacto no nosso meio educacional.

E não podemos deixar de considerar o fato não menos importante, assinalado por Tomaz Tadeu da Silva na citação já por nós apresentada, de que, ao falarmos em construtivismo,

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não estamos abordando apenas uma teoria educacional e pedagógica supostamente crítica e revolucionária, associada a ideários de ampla repercussão na nossa educação. Não podemos perder de vista que

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o ideário construtivista procura estar fundamentado, ora com maisconsistência ora com menos, dependendo do autor, em teorias científicas de certo prestígio, como a teoria de Piaget, o que poderia vir a reforçar a autoridade que o ideário construtivista assumiria aos olhos dos educadores.

Sabemos o quanto sedutor pode se tornar um modelo teórico tido como crítico, como um modelo prescritivo, que traria respostas concretas para o dia-a-dia escolar, num contexto educacional no qual a grande maioria das correntes educacional e pedagógica vinha apenas se detendo em reflexões de caráter mais geral, abstrato, no âmbito dos fundamentos teóricos da educação, deixando muitos educadores à mercê de sua própria experiência, de seus próprios conhecimentos e vontades. Mais sedutor ainda torna-se esse modelo quando ele não se apresenta como uma teoria meramente especulativa, mas sim investida de prestígio científico. Reunidos esses três ingredientes (entre outros) num só modelo seria difícil que ele não tivesse um grande poder de sedução.

Se, por um lado, sabemos que esses fatores podem, em certo sentido, ter contribuído para que o construtivismo tenha-se tornado um discurso fortemente sedutor para nossos educadores, por outro lado, se pretendemos nos aprofundar na compreensão dos processos psicológicos, cognitivos e afetivos, pelos quais o construtivismo penetrou de forma tão contundente e entusiasmada na nossa cultura educacional, necessariamente temos de nos perguntar ainda quais outros possíveis elementos estariam presentes em seu discurso, atuando, talvez de forma ainda mais efetiva, na determinação do seu potencial sedutor. E mais: faz-se também necessário buscarmos compreender que fatores poderiam estar determinando nossa receptividade e suscetibilidade cognitiva e afetiva a esses processos de sedução, bem como quais seriam as implicações para a educação de modo geral e para a prática educativa escolar, em particular, da presença de processos de sedução na difusão e adesão a ideários educacionais, na medida em que as teorias pedagógicas constituem-se em ferramentas de trabalho importantes nas

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reflexões e práticas de nossos educadores.

Nesse sentido, buscando responder a essas questões, nossas hipóteses são as seguintes: 1) A adesão ao ideário construtivista por

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grande parte dos nossos educadores, através de processos de sedução, se daria tanto pela forma através da qual se articula o discurso construtivista, isto é, pela sua estrutura argumentativa maniqueísta, como também pelos conteúdos que constituem o conjunto desse ideário, quer dizer, os temas, as imagens, as idéias, os valores que veicula, os quais vão ao encontro de e mobilizam as paixões, as fantasias, os anseios, os desejos dos indivíduos. Em outras palavras, o ideário construtivista seduziria por aproximar-se a elementos fortemente ideológicos e sedutores difundidos no cotidiano alienado da nossa sociedade capitalista contemporânea. Esses processos de sedução, por sua vez, são determinados pela inserção dos indivíduos-educadores num cotidiano alienado, segundo definição de Heller (1989; 1994). O que significa dizer que a adesão ao construtivismo teria por base determinados fatores psicológicos, tanto afetivos quanto cognitivos, isto é, as formas cotidianas do pensar, sentir e agir, engendradas pela estrutura e pelofuncionamento do psiquismo cotidiano, o qual, por sua vez, seconfigura no interior dos processos objetivos e subjetivos de alienação, socialmente determinados. E seriam justamente esses fatores que tornariam esses indivíduos vulneráveis aos processos de sedução; 2) Sendo, portanto, a adesão ao construtivismo um processo de sedução, supomos que, nesse caso, se configuraria uma relação com tal teoria de natureza imediata, espontânea, pragmática, carente de reflexão, de rigor lógico, aprofundamento teórico e posicionamento crítico; 3) A presença de processos de sedução na vida dos indivíduos é um sinal do grau de alienação desses mesmos indivíduos e, sendo assim, a sedução nas atividades que compõem a prática educativa dos educadores é, por sua vez, uma manifestação da alienação desses mesmos educadores, assim como da alienação de sua prática, de seu pensamento e, em última instância, de sua formação, seja a formação básica, seja a chamada formação continuada; 4) Há uma relação entre a presença da sedução na difusão de certas teorias da educação e a ocorrência do fenômeno dos modismos educacionais, estando os processos sociais e

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psicológicos envolvidos no fenômeno da sedução, presentes na determinação desses modismos teóricos.

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A idéia de que haveria a presença de processos de seduçãona divulgação do ideário construtivista no Brasil pode ser percebida em alguns autores, ainda que estes apenas tangencialmente toquem nesta questão, sem qualquer preocupação ou intenção de um aprofundamento ou uma problematização mais sistematizada do tema. Moreira (1997, p. 97), por exemplo, ao abordar o prestígio das reflexões de Cesar Coll (representante do construtivismo espanhol, já relativamente conhecido no Brasil) sobre a questão dos currículos, afirma que o recente prestígio das suas reflexões se daria, em primeiro lugar, pelas mesmas razões – o caráter prescritivo e o forte apelo ao senso comum – que determinaram o sucesso da ênfase dada por autores como Bobbitt e Tyler ao como fazer, nas discussões desses autores em torno do mesmo assunto. E, em segundo lugar, em função do tom sedutor e moderno do discurso de Coll.

Na nossa interpretação, o problema reside justamente no fato de que a adesão por sedução a qualquer idéia, teoria ou ideário caracteriza-se por uma adesão alienada, na medida em que os processos de sedução não se constituem numa forma reflexiva, consciente e crítica de estarmos nos relacionando com a nossa existência, com o mundo à nossa volta, isto é, de estarmos conduzindo livre e conscientemente nossas vidas. Portanto, acreditamos ser a sedução uma manifestação dos processos de alienação que se materializam objetiva e subjetivamente hoje na nossa sociedade contemporânea, ou seja, um fenômeno que expressa o grau de manipulação ideológica a que estão submetidos os indivíduos atualmente. Partimos do pressuposto de que qualquer processo de sedução é, essencialmente, um processo de dominação e expressa o poder que exerce um sujeito, uma idéia ou um objeto sobre outro sujeito, a partir de mecanismos sociais e psicológicos de manipulação. No que se refere ao sujeito seduzido, o resultado é a alienação, tenha essa sedução sido produzida de forma intencional ou não. Por essa razão entendemos ser necessário, antes de mais nada, analisar a lógica inerente a esse processo, ou seja, a manipulação do pensamento, dos afetos, da vontade, dos

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desejos, das necessidades, das fantasias, das paixões, dos sonhos e anseios humanos. Nesse primeiro momento, é secundá-

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ria a questão do grau de intencionalidade da parte de quem lança mão de processos de sedução.

A presença ou não da sedução na vida dos indivíduos de uma determinada sociedade atesta o grau de alienação desses indivíduos e, assim, dessa mesma sociedade. Para nós, quanto mais alienados forem uma sociedade e seus membros, mais presentes estarão nessa sociedade os fenômenos de sedução. A sedução é um fenômeno generalizado numa sociedade de classes, ou seja, numa sociedade alienada. Basta observarmos como as massas se seduzem pelos produtos, pelas idéias, pelos valores etc., veiculados pela TV, pela mídia em geral, pelas campanhas publicitárias e/ou políticas. Enfim, basta observarmos como os indivíduos se deixam seduzir por aquilo que é a nova moda ou o discurso do momento. A sedução é, portanto, um fenômeno histórico, surgido no interior dos processos de alienação das relações humanas e, nesse sentido, contrário à formação de indivíduos livres e conscientes. Por outro lado, temos que considerar que esse fenômeno não poderá ser totalmente superado numa sociedade capitalista que se caracteriza, essencialmente, pelo predomínio da alienação nas relações entre os indivíduos e entre estes e os produtos de seu trabalho.

Sendo assim, gostaríamos de atentar ao caráter duplamente problemático da presença de processos de sedução e, portanto, de alienação, na difusão do construtivismo entre nossos educadores, na medida em que tal corrente tem como um dos seus principais lemas a autonomia intelectual do sujeito. Ou seja, a presença da sedução na difusão e na incorporação do ideário construtivista contradiz o objetivo central por ele proclamado: a busca da autonomia intelectual e moral dos sujeitos. Pois na sedução o indivíduo deixa de ser o sujeito de sua razão e de sua vontade. Na verdade, qualquer teoria pedagógica acabaria negando a si mesma como pedagogia, ao recorrer à sedução, ainda que isto se dê de forma não-intencional, mas sim a partir de determinações objetivas e subjetivas que extrapolam o âmbito restrito da própria teoria e da produção de seu discurso.

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Por conta do fato de nossa pesquisa estar em andamento e considerando-se os limites deste artigo, não nos será possível en-

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trar em maiores detalhes acerca da teoria do cotidiano4, suas implicações para a análise do fenômeno da sedução na vida dos indivíduos, ou mesmo apresentar uma análise dos elementos formais e de conteúdo que tornam sedutor o discurso construtivista. Apenas assinalaremos que temos como alvo de nossa análise alguns textos de autores que, no meio educacional, defendam e/ou divulguem o construtivismo e as suas implicações para a reflexão e a prática pedagógica, textos estes extraídos da bibliografia do projeto integrado do qual vimos tomando parte. A partir da teoria do cotidiano, temos procurado analisar os aspectos psicológicos, tanto afetivos como cognitivos, envolvidos nos processos pelos quais a apropriação de idéias construtivistas, por parte dos educadores e estudiosos da área, transforma-se em um processo caracteristicamente de sedução, considerando-se a inserção dos indivíduos no cotidiano alienado de nossa sociedade. Em outras palavras, pretendemos apontar certos indicadores que nos possibilitem compreender algumas das causas da sedução na difusão do construtivismo, isto é, as condições e os mecanismos objetivos e subjetivos, sociais e psicológicos, que possam ter contribuído para que o construtivismo tenha-se tornado um dos grandes modismos da educação brasileira. Por outro lado, temos procurado apontar alguns indicadores que nos permitam estar atentos aos elementos teóricos e ideológicos que perpassam a teoria em causa e que podem estar determinando os processos de sedução que estariam ocorrendo subjacentes à difusão e à adesão ao construtivismo de uma forma geral. Pretendemos, assim, fornecer aos educadores algumas questões para que estes reflitam sobre seus vínculos e posicionamentos diante dessa concepção tão em moda no nosso meio educacional. Portanto, esperamos que nossas reflexões possam ser generalizadas e confrontadas com outros discursos no interior do ideário construtivista, e servir de ferramenta para continuamente avaliarmos o seu potencial de sedução.

Não podemos, entretanto, concluir este artigo sem antes explicitar os limites que circunscrevem nossos estudos. Não pre-

4. Para maiores detalhes das implicações para a educação, da teoria do cotidiano

de Agnes Heller, vide Duarte (1993 e 1996).

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tendemos analisar os processos de sedução presentes em todas as formas pelas quais é difundido o construtivismo. Limitaremos nosso estudo à análise de textos de autores auto-intitulados construtivistas. Também não pretendemos analisar um grande número de textos, pois nosso objetivo não é esgotar o universo bibliográfico construtivista em constante expansão.

Com essa análise esperamos poder contribuir para uma melhor compreensão do fenômeno do modismo, tão freqüente na área educacional, entretanto, pouco investigado. Esperamos, ainda, poder trazer contribuições para as reflexões acerca dos problemas relativos à formação de educadores, bem como acerca das questões envolvidas na difusão de teorias no meio educacional.

Na verdade, este estudo toca na questão dos processos psicológicos – cognitivos e afetivos – pelos quais os indivíduos se relacionam com o mundo, com suas atividades, isto é, aborda as formas de pensamento e ação através das quais nos orientamos e conduzimos nossa vida ou, ao contrário, somos conduzidos pela vida de forma alienada (cf. HELLER, 1989; 1994). Trata-se, portanto, de investigar qual é a característica do pensamento dos indivíduos quando estes estão inseridos num cotidiano alienado, ou seja, daqueles indivíduos que têm sua vida cerceada pelo seu cotidiano, e qual a relação dessas formas de pensamento e ação com os processos de sedução que estariam na base da adesão ao construtivismo. Por outro lado, abordamos aqui a natureza das relações entre os indivíduos-educadores e uma dada teoria da educação e, assim, os processos de conhecimento pelos quais esses educadores se apropriam dessa teoria. Portanto, não podemos deixar de pressupor neste nosso estudo o processo de cognição que consideramos desejável, isto é, que consideramos como o processo ideal que todos os educadores e estudiosos deveriam percorrer. E, assim, não podemos aqui nos abster de nos posicionarmos diante daquilo que consideramos ser as formas de pensar, sentir e agir que efetivamente devem estar dando suporte a qualquer atividade que envolva a relação dos indivíduos para com teorias do campo da educação, isto é, não podemos nos

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ausentar de eleger as formas desejáveis de qualquer processo cognitivo, no âmbito das relações que são estabelecidas com determinados ideários da edu-

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cação. Ou seja, de eleger a razão, a crítica radical, a reflexão consciente, a análise coerente, a paixão pela verdade e pela transformação da realidade, como as únicas formas possíveis de se conhecer o mundo e de se alcançar um conhecimento objetivo, que nos permita superar os processos de dominação e alienação da sociedade capitalista contemporânea, o que significa romper com a situação social e psicológica de alienação na qual se encontra a grande maioria dos indivíduos hoje na nossa sociedade. Portanto, de forma alguma poderemos escapar à responsabilidade de nos posicionarmos criticamente diante do pensamento irracionalista que assola nossa cultura de forma especialmente contundente neste final de século, uma vez que acreditamos que esse movimento anti-racionalista teria implicações diretas sobre o quadro atual, no qual se configura a onda dos modismos teóricos na nossa educação e na nossa cultura, de um modo geral.

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PEDAGOGIAS PSICOLÓGICAS E REFORMA EDUCACIONAL 23

O

C A P Í T U L O - D O I S

PE DAG OGIAS PSICOLÓGICAS

E REFORMA EDUCACIONAL

Marília Gouvea de Miranda*

O construtivismo pedagógico tem recebido diferentes tratamentos por parte dos educadores. Há os que o ignoram,

por considerá-lo uma dimensão secundária e temporária se comparada a outros determinantes mais fundamentais da educação. Há, em contrapartida, os que o adotam enfaticamente em sua prática e estão empenhados em promover seu aperfeiçoamento. Há aqueles que consideram que o construtivismo teve certa expressão na década passada e no início desta, mas que, neste momento, está completamente superado por outras práticas. E há, ainda, os que acreditam que o construtivismo, além de expressar dimensões intra-escolares do processo pedagógico, está referido também a dimensões macroestruturais das determinações do processo educativo, sendo, portanto, mais que um modismo na educação, ao qual teria sido possível aderir, de acordo com a disposição e a inclinação dos educadores. O construtivismo pedagógico seria uma dimensão constitutiva e, portanto, um aspecto não-casual, não- acessório e não-secundário, das reformas educacionais que se processam, na atualidade, em vários países do mundo.

Essa última posição é a adotada por este artigo que discute o conceito de construtivismo e suas implicações para a educação contem-

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* Doutora em Educação pela PUC-SP, professora titular de Psicologia daEducação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e doDepartamento de Educação da Universidade Católica de Goiás.

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porânea. Tenho preferido referir-me, muitas vezes, a “pedagogias psicológicas” (VARELA, 1991), para designar o conjunto de influências advindo das teorias psicológicas presentes nas reformas educacionais que se verificam em diferentes lugares, orientadas pela premissa de que é preciso mudar a educação para que esta possa se adequar às demandas do mundo contemporâneo, que estaria cada vez mais orientado pelos processos de globalização da economia, de flexibilização do trabalho e de informatização do processo produtivo.

A designação “pedagogias psicológicas”, ou “pedagogias psicológicas do desenvolvimento e da aprendizagem”, permite tratar genericamente as teorias psicológicas, sem que isto implique exclusivamente o construtivismo piagetiano (mesmo que o “construtivismo” seja predominantemente piagetiano) e, ainda, discutir a influência da psicologia em seu conjunto sobre a educação, ou seja, a disposição dos educadores em adotar parâmetros, concepções e modelos advindos da psicologia na educação.

Para efeito desta discussão, usarei indistintamente os termos“construtivismo” e “pedagogias psicológicas” para designar a abordagem pedagógica contemporânea fundamentada em uma ou mais teorias psicológicas da aprendizagem ou do desenvolvimento e orientada pelo princípio de que o aluno, mediante sua ação e auxiliado pelo professor, deva ser o agente de seu próprio conhecimento. Assim, genericamente afirmado, o termo “construtivismo” se aplica tanto aos processos intra-escolares de ensino e aprendizagem (cada vez menos de ensino e cada mais de aprendizagem), quanto aos processos mais globais de justificação e organização da ação educativa, nas mais diversas expressões, compondo fortemente o discurso educacional contemporâneo ou, como alguns preferem tratar, a retórica reformista contemporânea.

Quando iniciei um estudo sistemático deste tema, em 19951,o construtivismo dava sinais de ser mais um dos inquietantes modismos em que, de tempos em tempos, incorre a educação.

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Ele

1. Pesquisa financiada pelo CNPq “O construtivismo como princípio pedagógico:a problemática da relação psicologia e educação”, sob a coordenação da autorae com participação das professoras Mona Bittar e Lueli N. Duarte e Silva, realizada na Faculdade de Educação da UFG (1995-1999).

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era anunciado como uma importante estratégia pedagógica paraas mudanças que se faziam necessárias no âmbito escolar, em face das novas demandas sociais. Apesar de ser amplamente adotado, em todo o país, pelas redes de ensino pública e privada, chamava minha atenção, à época, o fato de o tema não ter-se convertido, até então, em objeto recorrente de discussões críticas por parte dos educadores, que, afinal, conviviam com a defesa entusiasmada das virtudes do construtivismo pedagógico para a solução de muitos problemas educacionais.

Creio que, ainda hoje, o tema não é suficientemente estudado. Esse fato pode ser justificado com o arrefecimento da onda construtivista, o que faria supor que este tema perdera importância para a compreensão da educação. Pretende-se discutir, neste artigo, que, como prática escolar ou como retórica reformista, o construtivismo permanece vivo nas escolas, nas universidades, em diversos textos das reformas de ensino e, até mesmo, na mídia. Portanto, entendendo que o construtivismo, ou as pedagogias psicológicas, mais do que um modismo já superado, constitui um discurso que tem-se mostrado bastante vigoroso, tanto no ambiente escolar quanto fora dele, ao qual corresponde um conjunto de princípios e, ainda, uma prática em parte já plenamente consolidados na educação contemporânea.

1. AS PEDAGOGIAS PSICOLÓGICAS COMO RETÓRICA REFORMISTA

Como os educadores vêm discutindo a presença das pedagogias psicológicas no ideário e na prática pedagógica? Entre os artigos, dissertações, teses e livros lançados em defesa do construtivismo pedagógico – sem mencionar a produção direcionada para a divulgação entre professores, surgiram alguns trabalhos críticos sobre o assunto2. Em 1993, Miguel Arroyo publicou, em uma revista de divulgação pedagógica (AMAE Educando), um artigo cujo título já revelava as apreensões do autor: “Construtivismo: teoria

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2. Não serão comentados aqui os estudos críticos sobre a relação psicologia eeducação em geral, uma vez que o interesse da presente discussão recai

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séria, moda preocupante”. Evitando abordar as implicações inerentes às teorias envolvidas, Arroyo tomou a questão como fato “socioescolar”, indagando, sobretudo, sobre os motivos que teriam levado os educadores brasileiros a adotar, com tanta facilidade, mais um modismo pedagógico. Compreendendo o fenômeno como característico da cultura pedagógica brasileira3, afirmava ser necessário buscar uma correlação entre a cultura escolar pedagógica dominante no Brasil e “aquelas dimensões do construtivismo que reforçam essa cultura e por isso provocam adesão do professorado”. Sua crítica recaía sobre a excessiva ênfase dada aos aspectos subjetivos, em especial naqueles relacionados à aprendizagem, sem que fosse considerado o conjunto das determinações históricas e sociais que incidem sobre a educação. O casamento entre as “lógicas das aprendizagens” e a “ilógica paixão” que orienta os construtivistas reeditaria o voluntarismo: “traço tão marcante de nossa romântica cultura pedagógica”.

Ainda em 1993, um artigo de Tomaz Tadeu Silva, “Desconstruindo o construtivismo pedagógico”, abordava a questão de forma mais contundente. A predominância do construtivismo era explicada por sua dupla promessa: por um lado, aparecia como uma teoria educacional “progressista” e, por outro, fornecia uma direção clara para o processo pedagógico, fundamentando-se nas prestigiadas teorias psicológicas da aprendizagem e do desenvol-

sobre uma particularidade da relação psicologia-educação: as abordagensconstrutivistas. Também não são citados, neste momento, os trabalhos que se dedicaram a fazer a crítica ao enfoque ou à interpretação das teorias psicológicas envolvidas, como o famoso embate entre os piagetianos e os vygotskyanos. Para uma exposição sobre a difusão das idéias de Piaget no Brasil, ver Vasconcelos (1996).

3. A idéia de que o construtivismo é um fenômeno que ocorre tipicamente no Brasil, sendo menos importante e fugaz em outros países, é freqüente em discussões sobre o assunto. Como se discutirá oportunamente neste trabalho, a noção de construtivismo tende a estar presente nas reformas educacionais de diferentes países e não parece haver indicações de que

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seja um fenômeno assim tão passageiro. (Ver em especial Popkewitz, 1998b, sobre os “construtivismos” nas reformas educacionais da Suécia, dos Estados Unidos, da Rússia e da África do Sul.)

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vimento. O objetivo do artigo é mostrar que, “em certo sentido,a predominância do construtivismo constitui uma regressão conservadora” (p. 4), especialmente porque representa a retomada do predomínio da psicologia na educação. Citando Valerie Walkerdine, Tomaz Tadeu Silva lembra que a influência da psicologia na educação de massas tem implicado a despolitização da educação. A emergência do construtivismo teria implicações ainda mais regressivas que as influências anteriores, uma vez que se apresentaria como um substituto de uma teoria social da educação4, reforçando a tendência à biologização e à naturalização dos fatos sociais. Além disso, ao fazer a transposição da psicologia da aprendizagem (como se aprende) para a pedagogia (como se deve aprender), o construtivismo incorporaria elementos que não estariam presentes na teoria original e que não são claramente conhecidos. Finalmente, citando Foucault, Bernstein e Popkewitz, o autor lembra que o aparato pedagógico está vinculado a uma relação de controle e poder. O construtivismo é visto, portanto, como “uma prática discursiva que tem efeitos práticos sobre a formação de subjetividades e de identidades, de produção de sujeitos, uma prática discursiva que produz efeitos sociais” (p. 9)5.

Uma resposta “construtivista” à proposta de desconstrução do artigo de Tomaz Tadeu Silva foi dada por Fernando Becker (1994) na mesma revista. Em um claro confronto com o enfoque sociológico de Silva, a réplica assume uma defesa ardorosa do constru-

4. “Crianças educadas sob o construtivismo tenderiam a favorecer em suavida adulta – este é o raciocínio – relações mais democráticas, tenderiama não aceitar em sua vida política e de trabalho, relações autoritárias” [SILVA,1993, p. 5]. Também com referência ao analfabetismo, este “deixa de ser uma questão social, política e cultural para se tornar um problema de aprendizagem, solucionável através da escola e de métodos que levem em conta uma melhor compreensão da gênese da leitura e da escrita”[Ibidem, p. 5].

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5. Tomaz Tadeu Silva e seu grupo de professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicariam e organizariam em seguida publicações enfocando a crítica ao construtivismo a partir de uma concepção denominada por eles de “pós-estruturalista” (Folcault, Derrida, Rorty, entre outros): Corazza, 1995; Silva, 1998.

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tivismo, não sem antes tomar o cuidado de distinguir “um determinado construtivismo pedagógico” que ele próprio considera despolitizado6, de uma verdadeira teoria construtivista cujas implicações pedagógicas ele admitia. Falando de um ponto de vista piagetiano, Becker recorre à autoridade de quem fala de dentro dos textos do psicólogo suíço a alguém que critica a teoria de fora. Esta perspectiva de Becker seria freqüentemente retomada no boom construtivista de meados da década de 1990 no Brasil: a impermeabilidade dos pontos de vista em decorrência dos limites epistemológicos de teorias e enfoques produzindo uma espécie de diálogo de surdos7.

Se as posições de Arroyo e de Silva poderiam ter sido consideradas, pelos defensores do construtivismo pedagógico, como um ponto de vista extrínseco à teoria, outros autores discutiram as implicações pedagógicas da teoria piagetiana a partir de seus fundamentos. Entre os autores que criticam o construtivismo pedagógico, a partir da perspectiva piagetiana (BANKS-LEITE, 1994; CASTORINA, 1994), verifica-se a crítica à aplicação direta da teoria piagetiana (“fórmulas mágicas”, “respostas prontas”), admitindo, no entanto, que a teoria pode contribuir para fundamentar uma postura, por parte do professor, de reflexão interdisciplinar sobre sua própria prática. Essa posição se aproxima de Becker: cautelosa com relação à mera aplicação da teoria à educação, mas convencida de

6. Referindo-se, indiretamente, ao projeto político-pedagógico da PrefeituraMunicipal de Porto Alegre nos anos 1989/1992, encabeçado por Esther Pillar Grossi, conhecida divulgadora do construtivismo em todo o país, nos anos seguintes.

7. A esse respeito, é interessante a posição de José Antônio Castorina (1994) que, ao discutir a pertinência da teoria psicogenética para interpretar o aprendizado escolar, sugere que essa reflexão seja feita a partir de três perspectivas distintas mas interligadas: 1) a crítica epistemológica dos fundamentos internos da teoria; 2) a crítica “prática”, que se refere à “viabilidade,à factibilidade e à eficácia das conseqüências que derivam da teoria da aprendizagem voltadas para a intervenção no campo educativo”; e 3) a

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crítica“ideológico-cultural” que deve examinar se essa teoria contribui para ocultar ou facilitar a compreensão do significado social das práticas pedagógicas (p. 38).

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sua grande importância na formulação de alguns princípios fundamentais que deveriam ser considerados pelo professor na reflexão sobre seu fazer pedagógico.

Lajonquièrre (1992) foi mais incisivo ao questionar o pressuposto das aplicações pedagógicas da teoria psicológica, o que, para ele, supõe a possibilidade de imbuir o educador de um poder de controle sobre a dinâmica da aprendizagem, argumentando que isso pressuporia “por um lado, que a dinâmica do aprender seja suscetível de padronização e, por outro, que o sujeito que aprende é centrado sobre sua consciência”8.

Essa discussão é retomada por Lajonquièrre:

Pois bem, se não cabe “fundamentar piagetianamente” a ilusão do controle então o que também fica sem fundamento teórico ou explicação psicológica é a estratégia escolar-disciplinar com a qual se tenta transmitir os conhecimentos. [...] Chegados a esse ponto, nossos leitores concordarão que então o construtivismo só tem garantida sua livre circulação uma vez aggiornado de uma tal forma que não coloque em dúvida o caráter “natural” da dupla “possibilidade e necessidade de produzir controladamente processos epistêmicos/estratégia disciplinar de transmissão”. Por outra parte, cabe acrescentar que, ao nosso ver, não só o espírito piagetiano está condenado a esse destino triste mas também qualquer outra tradição psicológico-epistemológica que entre em confronto com as teses articuladoras do saber pedagógico hegemônico e, por conseguinte, que subverta a tradicionalidade escolar das práticas educativas [1993, p. 463].

Em alguns artigos, discuti (MIRANDA, 1994 e 1995) as possibilidades e os limites da extrapolação do conceito psicológico de construtivismo para princípio explicativo na educação, indagando a ra-

8. “[...] em outras palavras: o sujeito é consciente do conteúdo-resultado, masnão das razões instrucionais e funcionais que determinam nesse instante o ato cognitivo. A este funcionar estrutural, que se enraíza nas

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coordenações nervosas e orgânicas, Piaget dá o nome de inconsciente cognitivo. Assim definido, só pode ser inesgotável ou, em outros termos, nenhum sujeito pode dar conta exaustivamente das razões de seu ato cognitivo” [LAJONQUIÈRRE,1992, p. 63].

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zão pela qual essa abordagem se tornava predominante naquele momento e qual a significação desse fato na educação. Abordando em particular o construtivismo de fundamentação piagetiana, discutia as transformações produtivas e as novas exigências de qualificação para o trabalho, formulando a hipótese de que a concepção de inteligência formulada por Piaget seria consoante com a concepção de inteligência exigida por uma nova capacitação intelectual e moral para o trabalho tecnificado no chamado mundo globalizado. A crítica ao construtivismo se apoiaria, portanto, de um lado, na discussão epistemológica da psicologia piagetiana e, por outro, na relação educação e trabalho.

Orientava meu esforço de compreensão do construtivismo pedagógico a concepção de que a transposição de uma teoria psicológica a princípio pedagógico deveria ser explicada por características inerentes à teoria original que se tornavam suscetíveis de ser transpostas para um universo explicativo amplo e indiferenciado, incorporando aspectos importantes da normatização e da justificação da prática pedagógica que originariamente não seriam necessariamente encontrados em Piaget, no caso do construtivismo piagetiano. Defendia, ainda, que esses aspectos normatizados e justificados pela prática pedagógica correspondem aos padrões de socialização e formação intelectual exigidos pela sociedade contemporânea no atual estágio do capitalismo, resguardadas as especificidades interpostas pela realidade brasileira. Buscava, assim, significar esse retorno ao psicologismo em um momento em que novas exigências de qualificação se interpunham como retórica a exigir reformas na educação. O construtivismo, ao que tudo indica, viria corresponder a essa “nova realidade”.

Estudos que se seguiram permitiram perceber, com maior clareza, que o construtivismo pedagógico não era um modismo passageiro explicado pela insistência dos educadores brasileiros em assimilar idéias novas, não apenas uma retomada do psicologismo na educação sem maiores conseqüências ou, principalmente, não dizia respeito a um processo

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psicopedagógico restrito, sem maiores implicações para a consolidação de uma política educacional.

A problemática do construtivismo aparecia relacionada, por exemplo, ao chamado novo paradigma de conhecimento e às

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políticas educacionais propostas para a América Latina. Essa concepção viria responder a uma exigência de racionalidade mais instrumental (funcional, imediata, adaptativa) por parte dos processos produtivos. A excessiva ênfase nos processos psicopedagógicos da aprendizagem e a crença de que é possível mudar a educação de um país a partir de uma nova concepção de aprendizagem (construtivista, por exemplo) seriam manifestações da emergência do paradigma do conhecimento e de seu forte impacto.

Se, por um lado, já havia sinais que poderiam indicar o esgotamento das práticas construtivistas, por outro, elas pareciam ressurgir muito mais vigorosas na retórica sobre as reformas educacionais necessárias à adequação dos cidadãos ao mundo submetido à reconversão tecnológica, revivido na defesa de um novo paradigma de conhecimento.

Essa discussão ganha especial interesse quando considerados os estudos de Thomas Popkewitz sobre o construtivismo na reforma educacional americana. Fundamentando-se sobretudo em Foucault, Popkewitz vem estudando a reforma no campo social da escolarização, entendendo reforma como parte do processo de regulação social, preocupado com a “maneira como a reforma estabelece relações com os diversos níveis de relações sociais – da organização das instituições à autodisciplina e organização da percepção e das experiências através das quais os indivíduos agem” (1997, p. 13).

A partir da análise das relações entre poder e conhecimento na educação americana em distintos momentos, Popkewitz analisa, entre outros argumentos exaustivamente reiterados, como as ciências educacionais cognitivas contribuem para fundamentar a retórica contemporânea sobre educação. A reforma do sistema escolar americano seria um discurso patrocinado pelo Estado, fundamentado pela pesquisa científica que teria identificado os componentes necessários para o sucesso das escolas.

O “novo” professor (e a “nova” criança) é “ré-elaborado”

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como indivíduo “dotado de poder” e solucionador de problemas, capaz de responder de maneira flexível aos problemas que não têm um conjunto definido de limites ou respostas singula-

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res. Supõe-se que o professor possua uma individualidade pragmática ligada às contingências de situações nas quais os problemas surgem. O novo sistema governante funde as ideologias de direita, esquerda e liberal em um populismo que é textualmente assinalado pela escola e pelo professor democráticos [POPKEWITZ, 1998a, p. 157].

Discutindo as reformas educacionais em quatro diferentes países (Rússia, África do Sul, Suécia e Estados Unidos), Popkewitz encontra similaridades entre as psicologias construtivistas (ainda que nem sempre denominadas dessa maneira), enfatizando, mais uma vez, a presença de uma retórica que afirma um professor“solucionador de problemas”, atuando em um ambiente flexível, em fluxo constante (POPKEWITZ, 1998b, p. 104).

Popkewitz chama a atenção para o (ou para os) construtivismo como dimensão importante dos distintos processos de reformas educacionais que ocorrem em vários países do mundo, ressaltandoa presença das ciências – em particular a psicologia – na sustentação das políticas de autogoverno. Para ele, afinal, a pedagogia é considerada como “um local específico que vincula racionalidades políticas e as capacidades do indivíduo” (1998b, pp. 96-97).

Em uma abordagem distinta, Gimeno Sacristán (1998), ao discutir a reforma educacional espanhola, critica a conciliação que esta tenta realizar entre o construtivismo psicológico (César Coll) e o tecnicismo (psicologia comportamental) da teoria do currículo de Tyler. Antônio Flávio Moreira (1997) também questiona a influência da abordagem construtivista de Coll na reforma curricular brasileira:

A psicologização do espaço escolar é promovida por pedagogias psicológicas (Varela, 1991), caracterizadas por determinadas visões do que sejam a criança e o adolescente e de como se devem organizar e transmitir os saberes. Nessas pedagogias a identidade dos alunos se define, quase exclusivamente, a partir dos códigos psicológicos que

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parecem saber o que de fato são as crianças e os adolescentes. Acredita-se, nessa perspectiva, que, para bem educá-los, basta, por um lado, adaptar objetivos, conteúdos e procedimentos ao nível específico de desenvolvimento em que se situem e, por outro, organizar, formalizar e seqüenciar adequadamente as atividades pedagógicas. Ou seja,

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são os critérios psicológicos e lógico-formais que proporcionama chave para a escolha de conteúdos significativos e não, como se poderia supor, o poder que tais conteúdos teriam de propiciar a compreensão de processos históricos (políticos, sociais e materiais). Nesse contexto, entende-se a preocupação com o como ensinar, em detrimento de considerações sobre o que ensinar, bem como a valorização de destrezas e habilidades cognitivas, em detrimento dos próprios conteúdos curriculares [pp. 101-102].

As pedagogias psicológicas são, portanto, identificadas por esses autores como a concepção teórica mais determinante na reforma educacional contemporânea, com conseqüências que vão na direção contrária de uma educação democrática e não-excludente. Constituem, efetivamente, suporte psicopedagógico da retórica que preside as reformas educacionais contemporâneas.

2. AS PEDAGOGIAS PSICOLÓGICAS COMO PRÁTICA ESCOLAR

Em um estudo de caso comparativo realizado em seis escolas de Goiânia9, as professoras, de modo geral, tendiam a expressar sua compreensão de prática construtivista no contraponto com o ensino “tradicional”: “não sei dizer com certeza o que o construtivismo é, mas a gente sabe que ele não é tradicional”. Quando afirmativas, as concepções de construtivismo se mostraram muito genéricas, como “o papel do professor construtivista é ajudar o aluno a construir seu conhecimento”. Mas o fato de as professoras não saberem ao certo que abordagem pedagógica era aquela que estava sendo adotada ou sugerida não fazia com que elas deixassem de se sentir pressionadas a “ser construtivistas”. Ao contrário, pareciam se sentir obrigadas a se adequar a um modelo pedagógico sobre o qual sabiam muito pouco, rechaçando um modelo anterior, que era bem conhecido, mas agora considerado inteiramente inadequado.

9. As escolas foram escolhidas de acordo com o seguinte critério:

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umapertencente à rede municipal, uma, à rede estadual, uma federal, uma particular de grande porte e duas particulares de pequeno porte.

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Verificou-se, portanto, entre professoras de escolas tão diferentes quanto à sua localização, quanto ao público atendido, quanto às condições socioeconômicas, físicas e pedagógicas, bem como quanto à formação e à estruturação do quadro docente, que a idéia do construtivismo ou das pedagogias psicológicas como um ideal pedagógico a ser conquistado já fora incorporada. Ainda que não se soubesse exatamente o significado disso, o importante era “não ser tradicional”.

E o que é “ser tradicional”? É curioso que essa conceituação do construtivismo pela oposição ao ensino tradicional aparece também fortemente na literatura dedicada ao tema, especialmente naquela destinada aos professores. Explica-se o que é construtivismo pelo não-construtivismo ou pelo tradicional. Mas, na verdade, o modelo tradicional tampouco é bem compreendido e seria possível questionar se este não se definiria também pela sua negação, ou seja, no contraponto da afirmação do “novo”. O tradicional questionado pouco guarda do modelo pedagógico surgido com o processo de escolarização moderna, em suas vertentes católicas e laicas. A escola tradicional apresentada é um conceito sem história. É algo que a escola não deveria ser. E o que é que a escola não deveria ser?

Creio que já nos acostumamos a ver alguns quadros comparativos que representam esquematicamente essa oposição. De modo geral, nas pedagogias psicológicas, são contrapostas duas premissas básicas:

1. Quanto ao aluno: nas pedagogias psicológicas, a aprendizagem se dá mediante a ação do aluno sobre os objetos. Tal princípio se contrapõe à pedagogia tradicional, na qual o aluno recebe passivamente os conteúdos transmitidos pelo professor;

2. Quanto ao professor: nas pedagogias psicológicas, seu papel é de mediador ou facilitador do processo de aprendizagem do aluno: ele deverá ser capaz de desencadear situações-problema. Na pedagogia

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tradicional, o professor preside todas as etapas do processo de ensino e aprendizagem e tem maior controle sobre a ação do aluno.

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A adoção dessas premissas traria, entre outras, as seguintesconseqüências:

1. maior autonomia do aluno em seu processo de aquisição de conhecimento e de socialização;

2. maior interatividade na relação sujeito-objeto, expressa na relação do aluno com o meio, mediado pelo professor;

3. efetiva valorização do processo de aprendizagem, pelo quala significação dos conteúdos para os alunos se sobreporiaa outros critérios de seleção dos mesmos (quantidade, abrangência, relevância social e cultural);

4. maior dinamismo na atuação do professor que, desobrigado dos afazeres tradicionais na sala de aula, teria também oportunidade de ser mais construtivo, mais reflexivo, um verdadeiro “pesquisador”, pois, afinal, ele deverá ser sempre e cada vez mais um aprendiz, um construtor do próprio conhecimento;

5. mudança no processo de avaliação, que seria mais processual, mais interativa e mais constante, valorizando-se o erro como parte constitutiva e imprescindível do processo de aprendizagem. Entende-se, além disso, que a criança, por possuir uma lógica própria de pensamento, quase sempre já traria consigo uma experiência anterior com relação aos desafios vividos na sala de aula;

6. diferenciação do processo de socialização do aluno, que seria estimulado a ser mais cooperativo e interativo com os colegas, respondendo adaptativamente às demandas imediatas do mundo em constante transformação, transformando-se, portanto, a noção de disciplina na escola;

7. modificação na atuação do professor, que não mais seria“autoritário” e sim “democrático”, aberto ao diálogo com os alunos, que passariam a intervir decisivamente nos processos de decisão;

8. uma sala de aula menos ordeira e silenciosa, em que têm lugar a experimentação, a espontaneidade, o ruído e a inquietação do aluno;

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9. um ambiente escolar adequado aos desafios da revolução informacional, mais propício ao desenvolvimento do chamado “novo paradigma de conhecimento”.

Esses princípios e suas conseqüências apresentam vários desdobramentos, quando confrontados com uma realidade em que as necessárias condições para o seu exercício eram diferenciadas (“currículo oculto” dos alunos, condições físicas e equipamentos das escolas, “currículo oculto” do professor, qualificação e valorização do professor, entre outros). No estudo de caso comparativo realizado, verificou-se que:

- nas escolas em que essas questões eram suficientemente equacionadas (a da rede particular, destinada a alunos de alta renda, por exemplo), era possível identificar maior proximidade com a caracterização acima das pedagogias psicológicas, quando comparadas com as escolas municipal e estadual e com a particular para alunos de classe média baixa. Essa afinidade com os preceitos construtivistas, no entanto, não era assumida por inteiro, como, por exemplo, com referência aos aspectos disciplinares (regras morais e procedimentos padronizados para alunos e professores), em que havia grande ênfase nos padrões “tradicionais”, sem que isso parecesse entrar em choque com o ideário “construtivista”. Pode-se afirmar que o construtivismo dessas escolas era autolimitado;

- nas escolas em que as condições materiais e humanas não eram dadas, em contrapartida, a disposição para ser construtivista era ilimitada, pois este era um ideal a ser atingido, que, como toda idealização, era praticamente intangível. Esse ideal, sem o adequado suporte e sem concepções e limites claros, convivia com uma prática pedagógica bastante diferenciada e distanciada da caracterização acima. A escola estadual, precária em

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todos os seus aspectos, era a “mais tradicional” entre todas.

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Apesar dos diferentes níveis de aproximação dos princípios ecaracterísticas das pedagogias psicológicas, verificaram-se, de modo geral, as seguintes tendências, mais ou menos consolidadas conforme a escola, mas sempre presentes como perspectivas a serem alcançadas:

1. mudança na configuração física da sala de aula, constituindo um espaço de circulação e convivência diferenciado;

2. mudança no padrão, na estrutura e na dinâmica da aula;3. valorização da ação no processo de aprendizagem pela

utilização da “tarefa escolar”; essa tarefa é um simulacro da noção de ação e de atividade formulada pelas teorias psi cológicas do desenvolvimento e da aprendizagem;

4. grande importância dada à “pesquisa” como estratégia de aprendizagem;

5. redução e secundarização da presença do professor na condução do processo de ensino;

6. grande ênfase na produção de textos por parte dos alunos, com conseqüente diminuição da presença do livro-texto;

7. grande ênfase no desenvolvimento da leitura e da escrita, com evidente perda de espaço para o ensino das demais disciplinas; as tentativas de interdisciplinaridade são puerise incipientes;

8. simplificação e redução dos conteúdos;9. menor controle no aspecto disciplinar;10. mudança na noção e na prática de avaliação.

Essas tendências não chegam a configurar uma escola construtivista segundo seus idealizadores, mas já carregam consigo, com grandes variações, um ideário bem caracterizado, definindo mudanças significativas na escola. Persistem, nas práticas verificadas, as manifestações de um discurso sobre como deve ser a ação pedagógica do professor, sobre o qual parece que não pairam incertezas. Raras vozes se lançam à crítica desses pressupostos. Predominam os questionamentos situados no âmbito da defesa da ação construtiva do professor junto a seus alunos, já muito bem incorporados pelos

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professores em seu ideário, ainda que não ne-

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cessariamente incorporados à sua prática ou à prática da escola. Tudo isso tendo como ciência justificadora a psicologia em seus distintos aportes teóricos que, por sua vez, se esvazia e se distancia sob o manto unificador da retórica hoje predominante na educação em seus distintos lugares de concepção e realização.

A presença determinante das pedagogias psicológicas na educação se afirma, portanto, tanto na prática pedagógica quanto na retórica reformista. Nesse sentido, as pedagogias psicológicas – em particular, na sua feição construtivista – estariam bastante vivas e atuantes. Compreender isso é fundamental para que se possa perceber em que direção estão orientadas as reformas educacionais contemporâneas. Se as mudanças evidenciadas se sustentam nos pressupostos construtivistas, cabe discutir o significado e as implicações sociais dessas mudanças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES SOB A ÓTICA CONSTRUTIVISTA 41

O

C A P Í T U L O - T R Ê S

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

SOB A ÓTICA CONSTRUTIVISTA

PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES E

ALGUNS QUESTIONAMENTOS*

Alessandra Arce**

O construtivismo no Brasil vem sendo considerado por boa parte dos educadores um grande avanço como concepção sobre o processo educativo, concepção essa que deveria agora ser empregada na própria formação de professores. Para que alguém torne-se um bom professor construtivista seria necessário que sua formação também ocorresse através de um processo construtivista. Isso permitiria aos professores desenvolverem uma prática profissional coerente com os pressupostos dessa corrente. O presente artigo possui como objetivo apresentar de forma sucinta algumas das principais concepções construtivistas direcionadas para a formação de professores, apontando para suas ligações com o movimento pós-moderno e as políticas neoliberais para a educação. Nesse sentido é questionado o pretenso caráter progressista das proposições construtivistas para a formação de professores no Brasil, bem como levantada a hipótese de que tais proposições constituiriam mais um retrocesso do que um avan-

* Este trabalho faz parte do Projeto de Pesquisa Integrado financiado peloCNPq sob coordenação do professor doutor Newton Duarte, intitulado: “O construtivismo: suas muitas faces, suas filiações e suas interfaces com outros modismos”.

** Mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, doutoranda e bolsista CNPq do Programa de Pós-Graduação em

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Educação área de concentração Educação Escolar da UNESP/FCL – Araraquara.

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ço, pois conduziriam à negação da importância da apropriação do conhecimento por parte do professor em seu processo formativo, contribuindo assim o construtivismo para a desqualificação e a des- profissionalização do professor.

Para tanto o artigo divide-se em duas partes: a primeira parte está dedicada a uma breve aproximação dos principais pilares do construtivismo com as políticas neoliberais e o universo pós-moderno, destacando-se suas ligações com as políticas para formação de professores; na segunda parte apresentaremos, de forma preliminar, como autores construtivistas têm pensado a formação de professores e as conseqüências nefastas dessa visão para a carreira docente no Brasil.

1. CONSTRUTIVISMO, NEOLIBERALISMO E PÓS-MODERNISMO:IRMÃOS IDEOLÓGICOS A SERVIÇO DO CAPITAL?

No capítulo II do livro Vigotski e o “Aprender a Aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana, Duarte (2000) formula a tese de que construtivismo, neoliberalismo e pós-modernismo pertenceriam a um mesmo universo ideológico. A análise apresentada neste item compartilha da mesma tese.

Estamos no ano 2000, há 500 anos do descobrimento do Brasil

e a educação está no ápice desta comemoração encampada pela Rede Globo de televisão: o projeto “Brasil 500 anos” traz a figura do professor como chave. Durante todo ano de 1999 fomos presenteados a cada mês com a escolha de um professor-“modelo”, que, quase sempre, era alguém que trabalhava em lugares isolados com populações extremamente carentes e fazia muito mais do que “ensinar”: trazia “esperança” para aquela população, trazia a possibilidade de um “futuro melhor”. Muito pouco esse professor ensinava do “conteúdo escolar”, pois ele geralmente se dedicava a extrair a criatividade e o conhecimento que os alunos já possuíam. Um professor de história apresentado nesse programa ilustra muito bem esse

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fato: ele trabalhava em condições precárias dentro de verdadeiros contêineres apertados e superlotados, mas apesar de tudo isso esse professor não “enchia” a cabeça dos alunos com coisas “arcaicas” de história; ele dava aulas diferentes

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em que cada um descobria a sua própria história e da sua famíliaao mesmo tempo em que descobria que falar e escrever sobre sua história e ouvir a história de seus colegas é mais importantedo que amontoados de fatos passados com outras pessoas emoutros tempos e em outros locais. Assim a aula se tornava mais“criativa”, “realista”, “dinâmica” e “interessante”.

Durante 12 meses as características principais do trabalho do professor de história foram sendo repetidas através da escolha deoutros docentes: o trabalho em condições precárias e a busca dos conteúdos no cotidiano dos alunos. Esculpindo aos poucos a figura do professor não como um profissional qualificado que necessita de um ambiente equipado para o trabalho, mas como a de um missionário que trabalha incansavelmente para educar os mais pobres dando o pouco que possui, doando-se com amor e fé para que este país “vá pra frente”. A cada mês podia-se quase que ouvir a expressão da maioria dos telespectadores diante desses exemplos exclamando: “Ah... que lindo!!!”. Dinheiro nunca foi e pelos exemplos nunca será problema para tais professores, formados na prática (afinal a universidade não serve para quase nada, porque “a teoria na prática é outra coisa”), mergulhados em suas comunidades, sábios não-intelectuais porque conhecem a cultura popular, guiados não pelo conhecimento científico mas por uma sabedoria construída em seu cotidiano e pelos cordões invisíveis e maravilhosos do “amor ao próximo”. Eles são exemplos de felicidade e dedicação que deveriam ser seguidos. O ponto culminante dessa campanha viria a ocorrer ao final do ano com o incentivo ao trabalho voluntário na escola, afinal “Voluntário na Educação é Amigo da Escola”. Clama-se por mais pessoas dedicadas (pedreiros, juízes, padeiros, modelos, costureiras etc.) para que o professor possa dividir esse trabalho lindo que ele e todo corpo técnico da escola realizam. A instituição educacional escola torna-se o lugar onde qualquer pessoa de boa vontade pode atuar; ensinar é algo simples e depende do querer de cada um e um pouco de prática, pois, do contrário, como poderia uma modelo tornar-se uma contadora de histórias ignorando todos os estudos e pesquisas existentes a respeito do uso da literatura infantil na

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escola?

O ano 2000 inicia-se com o “Obrigado” do MEC a toda essa gigantesca onda de colaboração. Crianças aparecem na propagan-

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da veiculada na TV cantando através do uso do alfabeto as palavras que regaram toda campanha de 1999 pelo trabalho voluntário na escola: amizade, boa vontade, companheiro, dedicação, escola, força, harmonia, igualdade... Talvez numa breve provocação poderíamos substituir algumas palavras por outras que seriam mais adequadas ao processo pelo qual vêm passando a escola e o professor: apatia, baixa qualificação, destruição, exploração, opressão, ignorância...

Ao final desse mesmo ano a revista Nova Escola, em sua edição de dezembro, trazia como reportagem intitulada “É Hora de Cuidar da Sua Carreira”, o professor como figura central, e, em nome de uma “nova sociedade” muito mais “tecnológica” onde a informação chega pela via da Internet e de forma muito rápida, dá dicas de como o professor deve procurar se portar para conseguir garfar uma fatia do mercado educacional que cresce a cada dia. Iara Prado, Secretária do Ensino Fundamental, afirma que os professores não podem continuar como meros transmissores de conhecimentos mas devem procurar desenvolver em seus alunos a criatividade e a autonomia na busca desses conhecimentos. A culpa desta persistência do professor em trabalhar de forma antiquada estaria, segundo a mencionada Secretária, na formação excessivamente acadêmica recebida na universidade, que se tornou arcaica perante as inovações tecnológicas e metodológicas que hoje possuímos. Este quadro precisa ser mudado e o professor ser formado de acordo com as exigências colocadas para o exercício da profissão hoje, cujo principal alicerce está na formação do sujeito autônomo. Enfatiza-se que “o professor deve ensinar o aluno a buscar a informação, a interpretá-la, a estabelecer relações e tirar suas conclusões”, define Iara Prado (NOVA ESCOLA, 1999, pp. 10-15).

A reportagem ainda vem seguida de um pequeno teste, tal qual aqueles que certo tipo de revistas voltadas para o público feminino utilizam para que a mulher possa saber se encontrou o parceiro ideale outras coisas mais. Assim como nos testes das revistas femininas,

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também nesse da revista Nova Escola é extremamente fácil acertar as respostas, quando se está sintonizado com a retórica dominante atualmente no meio educacional, neste caso, as características que formarão o perfil ideal do professor para o ano 2000. Bem, mas como é esse professor ideal? Segundo o teste é aquele que se man-

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tém informado para enfrentar os desafios do cotidiano escolar, capaz de trabalhar em equipe e que possui uma alta capacidade de adaptação às mudanças que vêm se impondo nesta “nova sociedade”.

A esta altura o leitor poderia perguntar: mas afinal o que tudo isso tem a ver com este artigo? Esses dois movimentos apresentados são reflexos diretos, no dia-a-dia das escolas e na vida dos professores, das políticas neoliberais aliadas à filosofia pós-moderna e às concepções pedagógicas baseadas no construtivismo. Já existe um número considerável de estudos que procuram caracterizar e denunciar as conseqüências das políticas neoliberais tanto para a economia quanto para as questões sociais, nestas incluída a educação. Entretanto, a maior parte desses estudos não estabelece relações entre os três universos com os quais estaremos trabalhando neste artigo. Visando salientar o quanto as políticas neoliberais estão articuladas às proposições construtivistas no campo da formação de professores, destacaremos primeiramente alguns aspectos importantes das políticas neoliberais em educação:

- Por serem totalizantes e totalitárias as políticas neoliberais apresentam-se como “pensamento único”, “verdade incontestável” e possuem toda a mídia a seu favor. O ideário neoliberal, por meios extremamente autoritários, bane qualquer pensamento contrário em nome da “liberdade” que ele alega preservar (Malagutti, Carcanholo e Carcanholo, 1998, pp. 7-17). Se observarmos a forma como as políticas para a educação têm sido estabelecidas e a forma pela qual campanhas como a já aqui citada da Rede Globo de televisão são feitas, ficará nítido seu caráter autoritário e arbitrário, não havendo espaço para contestar.

- Como todo ideário neoliberal é baseado na ilusão de que tudo depende apenas do indivíduo, divulga-se a idéia de que o sistema social colocaria acima de tudo os interesses individuais e sua realização, sendo as relações entre os indivíduos reguladas apenas pelo mercado que levaria,

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através da união de todos esses interesses distintos, à harmonia social. As desigualdades são vistas como naturais e sua fonte vem do esforço de cada um e de uma certa “sorte

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na vida”. O indivíduo deixa de ser fruto dos processos sociais, dissolvem-se as distinções entre história e destino e o indivíduo vê-se obrigado a resignar-se com a miséria, pois ela é fruto do seu pouco empenho social ou da sua falta de sorte (MALAGUTTI, CARCANHOLO e CARCANHOLO

1998, p. 64). Se pensarmos nas condições de trabalho do professor do mês da Rede Globo de televisão, veremos que jamais uma educação de qualidade poderia ocorrer daquela forma. No entanto, esta imagem do professor que é membro de uma determinada comunidade, dá aulas em locais improvisados, é pobre tal qual seus alunos que jamais terão chance (assim como ele não teve) de alterar sua condição social é uma imagem que aparece como algo natural e saudável. Quem sabe se toda comunidade se esforçar, essa situação não possa ser mudada? Entretanto, as provas mais cabais de que o esforço individual, ou mesmo comunitário, por si mesmo não alterará a vida dos indivíduos são a própria vida dos professores apresentados como exemplos e as precárias condições nas quais eles trabalham.

- Diante do crescente aumento do desemprego e da exacerbação da luta individualista por um lugar ao sol, os sindicatos aos poucos minguam e os trabalhadores abrem mão de direitos sociais para poder manter seus empregos; “o cada um por si” aumenta a exploração e a volta do trabalho escravo em todos os sentidos. Dentro da carreira docente esse processo é muito violento. Se fôssemos perguntar aos professores quanto eles ganham por mês, verificaríamos que o salário é irrisório e que, para compensá-lo, eles são obrigados a submeter-se a jornadas triplas de trabalho sempre em condições péssimas, o que prejudica seu desempenho profissional. Por outro lado, a citada reportagem da revista Nova Escola, com seu também citado teste, colabora para a manutenção do silêncio desses professores, ao eleger como característica principal para manutenção e obtenção de emprego a capacidade de “adaptação” do

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indivíduo às condições de trabalho a ele oferecidas, reforçando o medo da exclusão do mercado

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de trabalho caso o indivíduo deseje começar a criar muito“caso” para exercer sua função. Neste momento do “salve-se-quem-puder” os sindicatos perdem a força, acabando por se imporem o silêncio e a apatia que facilitam a destruição dos direitos adquiridos pelos trabalhadores.

- A educação torna-se a chave e o ponto principal de qualquer pauta, pois ela será um dos principais mecanismos a garantiro sucesso do indivíduo, mas, por outro lado, o corte de gastos com políticas sociais (nelas está incluída a educação) leva ao incentivo e ao incremento do trabalho voluntário. A comunidade e o indivíduo devem arcar com os custos desse acesso precioso ao sucesso. Não é por acaso que o Ministério da Educação veicula na mídia tanta propaganda e trabalha em parceria com a Rede Globo de televisão em campanhas. Assim como no período da ditadura militar, a educação ocupa um lugar decisivo na retórica neoliberal, que procura convencer o povo de que a miséria grande na qual ele vive pode ser resolvida através da educação, mas precisa haver colaboração da comunidade dividindo com o governo os custos e as responsabilidades dessa educação.

- Malagutti (em MALAGUTTI et al. 1998, p. 8) mostra que as políticas neoliberais, além de constituírem a tragédia do nosso tempo no plano das políticas econômicas e no plano das idéias, também produzem conseqüências no plano da consciência e das atitudes dos indivíduos, gerando “o individualismo e o egoísmo exacerbados”. Segundo o autor, estes são fenômenos perversos que “conquistam” pessoas de todas as idades, reproduzindo-se e difundindo-se por uma espécie de mecanismo automático. Essa “patologia sociopsicológica” complementaria as políticas neoliberais por induzir à passividade, à busca de segurança nos lares, à indiferença às questões políticas, o que facilitaria o controle, por parte dos que ganham com as atuais regras do jogo, daqueles que poderiam se rebelar. Enfim, o

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enfraquecimento do tecido social seria o complemento necessário à reprodução dos processos excludentes das políticas neoliberais.

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A este quadro caótico articula-se o universo ideológico pós-moderno com seu irracionalismo, negando a continuidade temporal, a história, a universalidade. A realidade passa a constituir-se por diferenças, alteridades, subgrupos com subculturas e micro-poderes invisíveis que disciplinam e regulam a vida social (Chauí, 1993, pp. 22-23); a subjetividade toma o lugar da objetividade e, mergulhado em si mesmo, o indivíduo torna-se incapaz de perceber o conjunto de medidas e idéias que regem o cotidiano. O pós-modernismo acaba por reforçar o individualismo cego e exacerbado apregoado pelas políticas neoliberais. Nesse contexto pós-moderno da morte da razão, avulta aos indivíduos a idéia de que o presente é contínuo, sem rupturas, sem lutas, sem slogans, levando a realidade à total fragmentação impossível de ser apreendida em sua totalidade (FREDERICO, 1997). Também analisando o ideário pós-moderno, Evangelista (1997, p. 24) mostra que, nele, ciência, verdade, progresso e revolução cedem lugar “à valorização do fragmentário, do macroscópico, do singular, do efêmero, do imaginário”. Retirando-se o sentido da história o futuro deixa de ser preocupação para os indivíduos, que, mergulhados no cotidiano fragmentado, trocam as grandes lutas da humanidade por “pequenas lutas”, transformações particularizadas de cotidianos particularizados, “o imediato toma o lugar do mediato” e o ser humano perde a noção de humanidade.

Instala-se a era das incertezas, com a exacerbação do particular e a demolição de tudo o que possa se opor a essa nova religião. As idéias aludidas pelos pós-modernos tornam-se reais e são propagadas pelos intelectuais brasileiros sob o rótulo de avançadas, de progressistas; é pregado o surgimento de novos paradigmas, acabando por referendar a fragmentação nos seus mais diversos níveis. Pode-se concluir que tanto no plano econômico como no plano das idéias o neoliberalismo é implacável. Segundo Freitas (1995, p.120), a “ausência de referência” passa a ser a referência elegendo a incerteza como única verdade e realizando uma espécie de assepsia das relações sociais.

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Mas como tudo isso invade o professor no seu dia-a-dia escolar? Nesse ponto o construtivismo desempenha papel decisivo. Mas para que possamos compreender melhor as ligações entre

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neoliberalismo, pós-modernismo e construtivismo, precisamosentender um pouco como o construtivismo é constituído, lembrando que aqui não apresentaremos mais do que algumas primeiras aproximações a esse tema pois a análise mais aprofundada, detalhada e extensiva do construtivismo vem sendo produzida pelo já citado projeto de pesquisa “O construtivismo: suas muitas faces, suas filiações e suas interfaces com outros modismos”, do qual este artigo é apenas um dos frutos.

Comecemos com a definição de A. Hernández (1997, pp. 196-197) que contempla pontos importantes para nossa análise. Segundo esse autor “[...] o construtivismo é um enfoque que se contrapõe à visão universalista do objetivismo, caracterizado pela correspondência entre conhecimento e realidade”. Mas esse autor assinala que o construtivismo não é unívoco nem homogêneo, sendo constituído ao menos por duas vertentes: uma moderada e outra radical1, que possuiriam diferenças e concordâncias: as concordâncias estariam na negação do conhecimento absoluto, no caráter interpretativo do mundo circundante e na construbilidade do conhecimento; as discordâncias estariam na relação entre conhecimento e realidade: enquanto para os moderados ambos teriam uma relação semelhante “à de um mapa e seu território”, para os radicais não existiria conhecimento possível pois a realidade nãopassa de uma ficção

Ao apontar o que haveria de comum entre a vertente moderada e a vertente radical do construtivismo, A. Hernández explicita, na verdade, um importante ponto de aproximação entre o construtivismo e o ideário pós-moderno. Mas para compreender melhor essa aproximação e também algumas das razões que explicam a grande difusão do construtivismo em tempos pós-modernos e neoliberais2, é necessário que assinalemos alguns pontos importantes do construtivismo:

1. Para uma análise mais detalhada do construtivismo radical e seus vínculos com

o pós-modernismo, veja-se o artigo de Newton Duarte nesta coletânea.

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2. Em artigo desta coletânea, João Henrique Rossler aponta para algumas das origens do poder de sedução dos educadores exercido pela retórica construtivista.

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1. Embora exista concordância quanto a apontar Piaget comoo ponto de partida do construtivismo, vários autores3

afirmam que o construtivismo é hoje mais amplo que a psicologia genética piagetiana, pois a esta teriam sido agregadas outras teorias tais como as de Ausubel (teoria da aprendizagem verbal significativa); Gardner, Bruner, Putnam e outros (ciência cognitiva, processamento humano de informações); Wittorock (aprendizagem gerativa); Harel e Papert (construcionismo); Cuningham (semiótica educativa); Brown, Collins, Duguid (aprendizagem situada e ensino autêntico) e Vigotski (teoria sociocultural);

2. Para o construtivismo a aprendizagem seria um processo de construção individual do sujeito e este não copia a realidade mas a constrói a partir de suas representações internas. A interpretação pessoal rege o processo de conhecer, o qual desenvolve seu significado através da experiência. A aprendizagem é situada e deve dar-se em cenários realistas; o cotidiano do sujeito e ele próprio trazem os conteúdos necessários para que ocorra a aprendizagem;

3. O conhecimento é fruto da interação com o meio e da construção adaptativa que cada pessoa realiza. O sentidoé sempre resultado de negociações entre o que vem do externo e o que existe no interior do aluno. Não existe conhecimento objetivo e absoluto (COBB, 1998; FOSNOT,1989, 1998). Destacamos a afirmação de Tolchinski (1997, p. 118) em seu artigo intitulado “Construtivismo em educação: consensos e disjuntivas”, que ao criticar o iluminismo pela sua tentativa de aproximar o conhecimento do cotidiano declara-se pós-moderna:

[...] Nós pós-modernos, estamos nos perguntando se a solução não deveria ser o contrário: aproximar os filósofos do ponto em que está a sabedoria popular. No caso de comunidades

3. Delval (1998a, 1998b); Coll (1994, 1998a,b); Merril (1998); Tolchinsky

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(1997); Hernández, P. (1997), Hernández, A (1997); Carretero & Limón(1998).

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multiculturais, incluindo obviamente a privação cultural como umcaso específico de diferença cultural, a proposta é incorporar a escola à sabedoria popular.

4. O ensino a escola devem levar o aluno a “aprender a aprender”. Sua realidade e seu cotidiano são as referências. Conteúdos devem ser reduzidos aos que puderem ser realmente compreendidos pelo aluno. A educação é uma prática social da mesma forma que a família, o clube, masé artificial por tentar impor ao aluno “conteúdos” que estão fora do seu mundo ignorando os conhecimentos que ele possui. Isso deve ser eliminado;

5. Professor não ensina – “[...] a afirmação de que o professor é que ensina é contrária a uma posição construtivista” [DELVAL, 1997, p. 34]. O professor ajuda o aluno a construir o conhecimento a partir de seus conhecimentos prévios, e diante de algo novo deve, segundo Tolchinski (1997, p. 111), reconhecer que a única possibilidade para que as experiências escolares fiquem em pé de igualdade com as não-escolares reside no conhecimento de que a atribuição de significado está sempre em função do que o aluno já sabe, sendo que estes saberes prévios devem encontrar na escola situações para sua manifestação constante.

Com esta breve apresentação das principais características do construtivismo aceitas por boa parte dos próprios construtivistas, podemos notar que ele está mergulhado no universo pós-moderno e neoliberal. Quando se afirma que o construtivismo não aceita que exista conhecimento objetivo, universal, e que a atribuição de sentidos e significados para a realidade é fruto de constructos pessoais, vemos o cerne da questão pós-moderna presente, pois esta também nega a capacidade do ser humano de conhecer a realidade de forma objetiva e, conseqüentemente, também transforma o conhecimento em uma construção individual. Com isso é destruída toda possibilidade de conhecimento racional e de uma visão que possibilite abarcar a

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totalidade da produção humana, o que resulta na impossibilidade de um processo de controle cole-

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tivo consciente dos rumos da sociedade como um todo. Neste ponto pós-modernos e construtivistas disponibilizam para o neoliberalismo uma ferramenta poderosa para explicar as diferentes condições socioeconômicas dos indivíduos que não são mais frutos da história mas artimanhas do destino, do cotidiano fragmentado, do presente. A educação, portanto, não precisa também ser a mesma para todos já que cada um percebe o mundo ao seu redor de modo diferente. Por isso o construtivismo, alicerçado nas discussões pós-modernas, pode afirmar de modo categórico que a educação escolar deve ter como fonte principal do processo de ensino-aprendizagem a construção individual do conhecimento, a negociação de significados, centrando no cotidiano os conteúdos, não falando em privação cultural mas em diferenças culturais, assim como o discurso neoliberal não fala em exploração econômica mas em diferenças econômicas saudáveis, frutos da competitividade domercado. Sem referências, a assepsia das relações sociais fica perfeita e o discurso educacional se torna poderoso, propagando de forma geracional, como muito bem afirmou Carcanholo (em MALAGUTTI et al. 1998), toda a indiferença e a apatia geradas pelas políticas neoliberais.

Fragmenta-se para destruir qualquer possibilidade de união e mudança no quadro político, econômico e social. O construtivismo apresenta de forma exemplar a função máxima que a educação pode exercer neste contexto: desenvolver cada vez mais a capacidade adaptativa imposta pela sociedade aos indivíduos, que precisam desenvolver tal capacidade adaptativa para poderem sobreviver. A escola empobrece-se cada vez mais; o conhecimento acumulado pela humanidade torna-se algo para poucos; o senso comum invade a escola disfarçado de “sabedoria popular” (sabedoria esta cheia de crendices mistificadoras e retrógradas), e o professor deixa de ser um intelectual para se tornar um mero “técnico” ou “acompanhante” do processo de construção do indivíduo. Mas a formação desse professor ainda não se adaptou a esse novo modelo; a formação universitária arcaica e acadêmica impede o professor de exercer na sua plenitude o construtivismo e dar vazão a todas as

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conseqüências nefastas até aqui apontadas. Por isso faz-se necessário rever a formação docente e ela também deve ser construtivista.

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[...] Por último, na hora de abordar a formação do corpo docente, não devemos nos esquecer de que também é preciso ser construtivista com o professorado, partindo de suas concepçõese de sua prática, valorizando o que ele possui de positivo e construindo em cima disso as novas perspectivas pedagógicas. Também não podemos esquecer que, de alguma maneira, sempre existiram professores construtivistas na história, e eu mesmo tenho de reconhecer e agradecer a vários professores [P. HERNÁNDEZ, 1997, p. 158].

2. COMO FORMAR O PROFESSOR CONSTRUTIVISTA?

Para os construtivistas, a formação dos professores de modo construtivista é fundamental para seu sucesso nas escolas. É então desfechado um ataque maciço à formação fornecida pela universidade, que se caracterizaria por uma abordagem “empirista”, a qual levaria à tentativa de “encher” a cabeça dos futuros professores com uma série de conteúdos que de nada servirão para sua prática. A. Hernández, (1997, pp. 202-206) aponta como esse tipo de formação pode ser superado por uma formação construtivista, que deveria enfatizar a epistemologia dentro dos programas de formação inicial e continuada do professor. Essa epistemologia seria trabalhada a partir da prática e transformaria o sentido e o significado da formação de professores. Mauri e Goméz (1997); Solé e Coll (1998) acrescentam ainda que a análise da prática do professor é fundamental e a crença de que aprender é construir proporciona no processo de ensino-aprendizagem um deslocamento fundamental de eixo e controle do professor para o aluno, modificando todo trabalho a ser realizado na escola. O conteúdo não mais estaria restrito a fatos e conceitos mas também a procedimentos e atitudes (COLL, 1998b), reforçando-se assim seu caráter de significativo e utilitário para a vida do aluno. Por essa razão os conhecimentos deverão sempre ser compartilhados e seus significados negociados através do respeito à interpretação pessoal e única da realidade que o aluno irá fornecer ao professor. Reforça-se aqui a idéia de que o “exemplo” e a “atitude” do professor são mais importantes e muito mais significativos para a formação do aluno do que as

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informações que possam vir a ser transmitidas.

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[...] Os conteúdos escolares constituem um reflexo e uma seleção (cujos critérios sempre são discutíveis e revisáveis) daqueles aspectos da cultura cuja aprendizagem considera-se que contribuirá para o desenvolvimento dos alunos em sua dupla dimensão de socialização – na medida em que os aproximam da cultura do seu meio social – e da individualização, na medida em que o aluno construirá com esses aspectos uma interpretação pessoal, única, na qual sua contribuição é decisiva [SOLÉ e COLL, 1998, p. 21].

Como o cotidiano é fragmentado e multicultural, os conteúdos não podem mais pretender a universalidade, devendo estar voltados para a cultura local da escola e da comunidade totalmente mergulhados no dia-a-dia das crianças, dos pais e dos professores, pois só assim poderão possuir a utilidade necessária que os torne significativos dentro do contexto escolar. Portanto nos cursos de formação de professores não caberia ficar “gastando tempo” inculcando conteúdos; o professor precisa entender como o aluno conhece, por isso a ênfase na epistemologia e na prática, pois ambas serão as fontes da sua formação, tal como afirma Fosnot (1998, p. 228): “Em outras palavras, uma grande porcentagem do trabalho em educação de professores precisa ocorrer diretamente nos locais de trabalho e estágio, a partir das indagações dos próprios aprendizes”. Para que isso ocorra de forma exemplar a formação do professor deve imprimir um sentido de trabalho sociale ser dirigida para a diversidade dos alunos com ênfase no trabalho cooperativo e em grupo. Esse futuro professor deve ser provocado e colocado frente a frente com visões tradicionalistas de ensino (nas quais o professor é um “déspota do conhecimento” e o aluno, um ser passivo e escravizado pelos processos de ensino)para que possa distingui-las com clareza das práticas construtivistas, as quais, segundo Solé e Coll (1998, p. 19), seriam consideradas consensualmente no meio educacional um avanço em relação às práticas tradicionais. Tendo como pressuposto esse pretenso consenso quanto ao avanço que o construtivismo significaria para a formação do professor (qualquer semelhança com as “verdades incontestáveis” do neoliberalismo não terá sido mera coincidência), formar professores de maneira construtivista seria um imperativo decorrente da necessidade de

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o futuro docente atuar com competência dentro da sociedade, formando indivíduos autônomos:

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[...] a concepção construtivista assume todo um conjunto de postulados em torno da consideração do ensino como um processo conjunto, compartilhado, no qual o aluno, graças à ajuda que recebe do professor, pode mostrar-se progressivamente competente e autônomo na resolução de tarefas, na utilização de conceitos, na prática de determinadas atitudes e em numerosas questões.[...] A concepção construtivista é um referencial útil para a reflexão e tomada de decisões compartilhadas, que pressupõe o trabalho em equipe de uma escola; como referencial, é ainda mais útil quando esse trabalho for articulado em torno das grandes decisões que afetam o ensino e que estão sistematizadas nos Projetos Curriculares das escolas [SOLÉ e COLL, 1998, pp. 22-25].

A citação acima não deixa dúvidas de que o professor construtivista deve ter subtraídos da sua formação os conteúdos escolares em prol do desenvolvimento de habilidades que o levem a gerar a autonomia no aluno. Caberia questionar como o aluno pode tornar-se autônomo se sua visão do mundo é tão restritiva. Como ele seria capaz de desvencilhar-se das armadilhas ideológicas tão requisitadas pelos governos com uma bagagem cultural tão ínfima?

Eleanor Duckworth (1989, p. IX), na apresentação do livro de Fosnot (1989) Enquiring Teachers, Enquiring Learners – A Constructivist Approach for Teaching, acresce aos itens já apresentados um outro muito valioso para se proceder a mudança na educação do professor: o professor ensina da mesma forma que foi ensinado. Ele imita, copia os seus professores. Opera-se, assim, um reducionismo enorme em prol da idéia segundo a qual o exemplo ensina mais do que qualquer teoria. Gostaríamos de questionar o seguinte: se tal afirmação fosse verdadeira, como então seria explicado o fato de que esses pesquisadores e professores que defendem o construtivismo teriam rompido com o modelo de educação tradicional no qual, por certo, eles foram formados? De onde eles extraíram para si mesmos o modelo de professor construtivista?

O livro mencionado é importantíssimo para entendermos como os construtivistas pretendem formar os professores, por se tratar do relato de uma experiência da

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autora que forma professores segundo o padrão construtivista, fato este não observado nos demais autores citados neste artigo. Fosnot (1989) parte em seu

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livro de um pressuposto (caro não só aos construtivistas mas também aos escolanovistas) de que os problemas da educação são endêmicos, pois a criança – assim como o futuro professor – passa boa parte de sua vida na escola ouvindo professores e memorizando fatos e informações para depois “vomitá-los” em testes. A grande mudança ocorreria quando percebêssemos que isso não é ser inteligente, que a inteligência não se mede quantitativamente, ela se revela na capacidade que o indivíduo possui de propor e solucionar problemas em seu cotidiano, e se o professor não adquirir essa habilidade ele nunca conseguirá ser construtivista. Por isso os modelos de “professor pesquisador” ou de “professor prático reflexivo” (conceitos retirados das teorias de Duckworth e Schön) devem, segundo a autora, ser implementados nos cursos de formação. Entenda-se aqui por “pesquisador” aquele que em sua atividade docente procura descobrir e interrogar-se sempre como a criança conhece, quais mecanismos cognitivos estão presentes no ato de construção e interpretação do mundo que a rodeia. Para tanto Fosnot (1989, pp. 13-20 e 1998, pp. 229-236) apresenta os principais alicerces de um curso que pretenda formar professores construtivistas:

- O curso deve fornecer ao futuro professor um aprofundamento na epistemologia genética e no desenvolvimento infantil a partir da visão construtivista levando em consideração os seguintes itens: a) o conhecimento da realidade não se constitui em cópia objetiva dessa realidade, dependendo sempre das interpretações pessoais; b) as construções ocorrem dentro dos processos de acomodação e assimilação; c) aprender é um processo de construção não de acumulação; d) o significado da aprendizagem é reflexo da resolução de conflitos que ela provoca;

- A metodologia de trabalho com os futuros professores deve estar baseada no trabalho em grupo e na resolução de problemas;

- O trabalho de campo cooperativo deve constituir o cerne da formação e estar alicerçado na pesquisa e na

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compreensão do pensamento da criança. O trabalho de campo deve

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ser reflexivo, pois assim como o aluno não aprende lendotoneladas de livros que não vão ao encontro de suas necessidades práticas futuras, também o futuro professor não aprende dessa forma. Suas necessidades e seus interesses devem estar sempre em primeiro plano. Fosnot (1998, p. 238) ilustra muito bem este fato quando afirma:

os alunos aprendem a escrever escrevendo, para preencher suas próprias necessidades e o desejo de se comunicar. Eles aprenderam a ler lendo livros e impressos interessantes. Eles aprendem sobre “vizinhos e comunidades” investigando suas próprias vizinhanças e comunidades. Isso não acontece lendo tudo sobre o assunto em livros de estudos sociais ou sendo informado oralmente, mas pelo estabelecimento de um sentido construtivo.

Este terceiro item apresentado por Fosnot lembra-nos uma discussão da qual participamos em 1999 (a respeito do conceito de “professor reflexivo” proposto por Perrenoud, Novoa e Schön, conceito esse incorporado por Fosnot ao movimento construtivista) durante a qual uma colega afirmou que assim como não se aprende a nadar em livros, o professor também não aprende seu ofício em livros. Até aquele momento não sabíamos o quão construtivista nossa colega estava sendo ao fazer tal afirmação sobre a formação de professores. Parece-nos haver um problema nessa definição, porque a atividade intelectual se faz em sua grande maioria através de leitura, análise e interpretação, o que muitas vezes não é prazeroso mas necessário. Se partimos do pressuposto de que o professor, assim como o aluno, aprende somente exercendo uma atividade prazerosa, útil e prática, retiramos da atividade de estudo sua natureza intelectual e a transformamos em atividade puramente instrumental, fato este que acaba por descaracterizar o trabalho do professor como trabalho intelectual. Então seríamos obrigados a concordar com a afirmação de Schwartz (1996, p. 3) de que ser professor é exercer uma arte instrumental. Neste caso poderíamos afirmar que não necessitamos realmente de cursos de longa duração e com muita teoria, pois o professor seria

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formado efetivamente ao exercer a atividade prática. Sobraria espaço apenas para um pouquinho de teoria necessária, que viria da psicologia

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alicerçada no construtivismo. Poderíamos neste ponto formular algumas perguntas: 1) Por que “encher” a cabeça do futuro professor com a epistemologia genética e a psicologia do desenvolvimento quando ele poderia, segundo a própria lógica da retórica construtivista, adquirir isto através de sua prática com as crianças? 2) Somente através de trabalhos em grupo e problematizações se conseguiria abarcar todo arcabouço teórico construtivista? 3) O método de trabalho em grupo não pertence ao movimento escolanovista, isto é, a ênfase nesse método não seria um dos indicadores da filiação do construtivismo em relação ao movimento escolanovista?

Apesar de os construtivistas ressaltarem o autoritarismo da “escola tradicional”, seu discurso sobre formação de professores é todo ele pautado na convicção de que as proposições construtivistas são únicas e incontestáveis. O autoritarismo é patente no processo pelo qual procura-se convencer os educadores de que as características de um professor construtivista seriam naturalmente aquelas requeridas por uma educação à altura dos desafios do próximo século. Tal convicção é claramente expressa por Barone e outros (1996, pp. 11-18): “ensinar deve ser algo nobre e determinado, interativo e holístico, construtivista em sua natureza, ativo e engajado. No futuro a formação de professores deverá necessariamente ser alicerçada nestes ideais”. Esse processo de naturalização operado pelo construtivismo assemelha-se em muito ao utilizado pelas políticas neoliberais; retira-se também da profissão professor a sua construção histórica e social; apaga-se a tragédia que tem-se perpetuado da baixa qualidade do ensino por falta de formação teórica consistente do professor, substituindo-a pelo construtivismo e a psicologização dessa formação.

Esse reducionismo espontaneísta apresentado pelo construtivismo para os professores e para a educação abre as portas para um processo de alienação violento dos indivíduos dentro da escola, levando à total apatia, além do egoísmo fruto desse individualismo exacerbado. A educação, assim como o professor, tem sua função diluída e indiferenciada da função

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exercida pela mídia. Se levássemos às últimas conseqüências o discurso aqui apresentado diríamos que a escola é uma instituição dispensável, pois a TV, a Internet, a família, o clube realizariam a sua atual tarefa de forma mais eficaz e barata.

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Mas que tipo de educação e professor buscamos, se não concordamos com o modelo construtivista? Concordamos com Duarte (1993 e 1996) que educar é produzir, de maneira intencional, necessidades cada vez mais elevadas nos alunos e nos futuros professores; é lutar contra a alienação produzida no cotidiano alienado e alienante no qual a sociedade capitalista contemporânea procura mergulhar a todos nós; é colocar os alunos em contato com o não-cotidiano, através da transmissão daquilo que de mais elevado tenha sido produzido pelo gênero no campo da cultura intelectual. Entretanto, como alerta o próprio Duarte (1996, pp. 40-41), não se trata de supor ingenuamente que a educação possa, por si só, superar a alienação produzida pelas relações sociais capitalistas.

Nessa perspectiva do papel da educação escolar na luta pela superação da sociedade capitalista, concordamos com Saviani(1997, pp. 9-14) que existe sim um conhecimento objetivo da realidade natural e social, conhecimento esse que deve ser transmitido pela escola. Acreditamos sim que é possível conhecer a realidade de forma objetiva e abarcar a totalidade. Os parâmetros não são o cotidiano de cada indivíduo mas a humanidade, seu desenvolvimento e seus patrimônios intelectuais e culturais que devem ser disponibilizados para todos. Só assim o indivíduo poderá conseguir enxergar a condição de exploração na qual se encontra; enxergar que é sim privado culturalmente, que as diferenças não são naturais mas frutos da história, foram criadas e são mantidas pelos homens; enxergar, por fim, que a mudança pode e deve ocorrer. O trabalho educativo, tal como foi definido por Saviani (1995, p. 17), passa a possuir um significado muito mais profundo tocando na essência do ser humano, não sendo mero instrumento de adaptação mas condição imprescindível para a mudança.

A assepsia das relações sociais deve chegar ao fim e a educação, assim como a figura do professor, deve ser inserida num contexto de luta política clara e declarada. Nessa perspectiva há que se fazer uma análise crítica detalhada e aprofundada dos preceitos construtivistas com sua psicologização da carreira docente. A formação do professor precisa contemplar as diversas áreas de conhecimento humano para que

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sua cultura seja vasta. Fornecendo-lhe assim elementos para que possa ensinar os alunos, possibilitando-lhes enxergar a humanidade, seus anseios e necessidades e não somen-

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te os seus próprios interesses imediatos. O conhecimento deve inquietar, ser uma vacina contra a apatia e o egoísmo. Ainda não possuímos melhor forma para fazer isso do que a leitura e o ensino. Como disse um camponês do romance Mãe de Máximo Gorki (1982, p. 343): “arranje-me livros que uma vez lidos não dêem paz ao homem. É preciso botar ouriços sob o crânio, mas ouriços afiados!” Eis o que a educação do professor deveria fazer. O leitor pode achar um tanto exagerada a citada passagem do romance Mãe, mas ela é contundente e violenta como devem ser as investidas contra o neoliberalismo, o pós-modernismo e o construtivismo, que, por sinal, não são menos contundentes ao atacar seus adversários políticos e ideológicos.

Neste artigo procuramos expor de maneira breve parte dos questionamentos e conclusões a que temos chegado nesse trabalho de pesquisa que ainda não se concluiu e que oferece muito material necessário para que nós também possamos respirar um pouco além do microscópico cotidiano no qual estamos sendo aprisionados.

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55, pp. 174-187, novembro.

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CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO 63

A

C A P Í T U L O - Q U A T R O

CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO

CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS À

CONCEPÇÃO DE SUJEITO E OBJETO*

Lígia Regina Klein**

A influência da psicologia na educação contemporânea não é um fato recente. A tentativa de revestir a prática pedagógicade um caráter “científico” levou à submissão da pedagogia às chamadas “disciplinas científicas”: sociologia, biologia e psicologia. Dado

o empenho em acolher a elaboração teórica produzida no seio dessas duas primeiras áreas do conhecimento, a psicologia absorveu aqueles conhecimentos e, como resultado, passou a ser a ciência, dentre elas, que, em última análise, mais se firmou no Brasil como norteadora da educação, a exemplo do que ocorreu também em outros países. De fato, não obstante sua presença em outras áreas, foi na educação que mais marcadamente a psicologia exerceu, desde o início, a mais sólida influência. Não é por acaso, por exemplo, que o ensino desta disciplina aconteceu, num primeiro momento, apenas nos cursos de educação.

* Este trabalho constitui um dos capítulos da tese de doutorado defendida noPrograma de Pós-Graduação em Educação: História e Filosofia da Educação da PUC de São Paulo, em 1996, sob o título “Uma leitura de Piaget sob a perspectiva histórica”.

** Doutora em História e Filosofia da Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. Autora do

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livro Alfabetização: quem tem medo de ensinar.

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Por outro lado, a tendência da psicologia que, desde há muito, mas mais fortemente desde a década de 1980, vem ocupando um lugar privilegiado nas discussões educacionais é, sem dúvida, o construtivismo piagetiano.

Nas discussões sobre os desdobramentos da obra piagetiana no campo da educação sempre é lembrado o fato de que ele não era pedagogo, não se dedicou diretamente às questões educacionais, nem, muito menos, elaborou qualquer método pedagógico. Argumenta-se, também, que seus escritos voltados para a educação foram produzidos menos por interesse científico e mais por contingência do seu cargo de diretor do Bureau Internacional da Educação da UNESCO.

Em que pese a veracidade dessas ponderações, é no entanto forçoso reconhecer que esses escritos, ainda que raros comparativamente à extraordinária produção do autor, nunca foram por ele renegados e, por outro lado, são absolutamente coerentes com sua epistemologia genética, prestando-se, perfeitamente, para uma análise sob o ponto de vista pedagógico. Não bastasse isso, o conjunto de sua obra, ainda que não tratando diretamente de educação, determina um profundo impacto na ação educativa ao propor uma teoria para o conhecimento e, por decorrência, para a aprendizagem.

É por esta razão que entendemos pertinente aprofundar a reflexão acerca de algumas idéias contidas na teoria do epistemólogo suíço. Para este artigo, elegemos como questões relevantes os conceitos de sujeito e objeto que subjazem à obra piagetiana. Por outro lado, é importante ressaltar que a referência teórica segundo a qual intentaremos a crítica a esses conceitos está fundada na perspectiva marxiana.

1. CONCEPÇÃO DE SUJEITO

Seguindo uma tendência predominante no pensamento

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contemporâneo, Piaget trata o sujeito (o homem) sob três perspectivas: biológica, psicológica e social. Esse tratamento é o indicador

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de sua concepção de homem como um ser bio-psico-social1. Talinterpretação tem-se mostrado bastante presente na produção teórica educacional, razão pela qual entendemos pertinente desenvolver uma reflexão sobre seu conteúdo na obra piagetiana.

Embora, para Piaget, essas três instâncias (bio-psico-social) apresentem características diferentes – e, portanto, suscitem explicações diferentes –, podem-se distinguir duas ordens de constituintes do sujeito: uma referida ao biológico e outra referida às dimensões psicológica e sociológica. Essas duas ordens se distinguem porque entre o biológico e o social há laços de superposição ou de sucessão hierárquica, enquanto entre o psicológico e o social se constata um paralelismo acentuado, posto que as ligações são de coordenação ou mesmo de interpenetração. Por outro lado, a instância psicológica aparece como um elemento mediador entre o biológico e o social, sem, contudo, configurar um momento especial, antes combinando-se com as influências sociais (PIAGET, 1977).

Comentando as relações existentes entre as três disciplinas que, segundo ele, mais de perto interessam à epistemologia – quais sejam biologia, psicologia e sociologia –, Piaget procede a considerações que ajudam a esclarecer esta questão:

Dito de outra forma, não existe uma série de três termos sucessivos: biologia psicologia sociologia, mas uma passagem simultânea da biologia à psicologia e à sociologia reunidas; estas duas últimas disciplinas tratando do mesmo objeto mas com dois pontos de vista distintos e complementares. A razão disto é que não há três naturezas humanas, o homem físico, o homem mental e o homem social, se superpondo ou se sucedendo como as características do feto, da criança e do adulto, mas há, por um lado, o organismo, determinado pelas características herdadas, assim como pelos mecanismos ontogenéticos e, por outro lado, o conjunto das condutas humanas, da qual uma comporta, desde o nascimento e em graus diversos, um aspecto

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1. Posto que traduzindo um “espírito da época”, não é à toa que essa formulação

aparece literal e reiteradamente nos textos de psicologia ou de educação, vinculados ou não ao construtivismo piagetiano.

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mental e um aspecto social. A psicologia e a sociologia são, pois, comparáveis, em sua interdependência, ao que representa uma em relação às outras ciências biológicas conexas, tais como a embriologia descritiva e a anatomia comparada, ou a embriologia causal e a teoria da hereditariedade... [PIAGET, 1977, pp. 18-19].

Acreditamos legítimo concluir, dadas as afirmações acima, que para Piaget há no homem “duas naturezas” que se complementam: uma biológica e outra que articula o psicológico e o social.

Se, por um lado, essa formulação contém, na obra do autor, a idéia de três instâncias que se relacionam entre si, é evidente, ao longo de sua teoria, que há uma ordem de precedência entre elas, de modo que o elemento que aparece como primacial é o biológico, tanto que o modelo explicativo empregado na análise das três instâncias é extraído da biologia. É esclarecedor o fato de Piaget declarar seu desejo de fundar uma teoria biológica de conhecimento (PIAGET, 1976, p. 38), seguindo uma intuição que lhe ocorrera quando, ainda menino, pôs-se a estudar moluscos no Cantão de Valais, e que se firmara como hipótese na formação acadêmica: a idéia de que a inteligência constitui uma forma especial de adaptação biológica que se efetiva graças a um mecanismo de auto-regulação. Toda sua vida é dedicada a esse projeto que ele pretende realizado algumas décadas depois. “Uma síntese destes interesses” – diz ele num texto autobiográfico – “acaba de ser completada recentemente, em um volume publicado pela Editora Gallimard, sob o título Biologie et Connaissance (1967). Lá se encontra a teoria biológica do conhecimento que sempre imaginei” [FURTH, 1974, pp. 285-288].

De fato, ainda que sustente que os fatos psicológicos e sociais têm outra natureza, é no mesmo modelo biológico de autoregulação do organismo que vai sustentar sua interpretação psicológica e sociológica.

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Para melhor entendermos o modelo explicativo piagetiano, é necessário analisar suas idéias acerca dos processos psicológicos e sua relação com a biologia. Elas se fundamentam em dois conceitos básicos: adaptação e organização.

No desenvolvimento das suas pesquisas, que integram diferentes campos da ciência, Piaget se pauta por duas idéias que se

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mostrarão diretrizes de toda sua teoria, conforme ele mesmodeclara:

Eu tinha chegado a duas idéias, centrais segundo meu ponto de vista e que inclusive jamais abandonei depois. A primeira é que, todo organismo possui uma estrutura permanente, que pode modificar-se sob as influências do meio mas não se destrói jamais enquanto estrutura de conjunto, todo conhecimento é sempre assimilação de um dado exterior às estruturas do sujeito... A segunda é que os fatores normativos do pensamento correspondem biologicamente a uma necessidade de equilíbrio por auto-regulação: assim a lógica poderia corresponder no sujeito a um processo de equilibração [PIAGET, 1992, pp. 15-16, grifos do autor].

Ao declinar as duas idéias que orientam toda sua pesquisa, Piaget já nos coloca diante de alguns importantes conceitos delas oriundos. Em primeiro lugar, está implícita nessa formulação a idéia de organização biológica, a qual está nos fundamentos de toda sua epistemologia genética.

Para a biologia, todo fenômeno biológico constitui uma organização interna ao próprio fenômeno, e que se caracteriza pela interdependência entre suas partes e, como totalidade, pela dependência em relação a uma totalidade maior. Essa característica determina a inexistência de um ponto de partida, e a impossibilidade de se isolar a organização particular de sua totalidade global. Na expressão de Hans Furth (1974, p. 276) um fenômeno biológico é “a totalidade organizada que, em sua dependência genética e funcionamento real, manifesta uma estrutura interna de organização”, o que implica um processo de auto-regulação. O organismo vivo admite um comportamento que consiste nas formas de troca entre o organismo e o meio. O conteúdo da estrutura interna de organização biológica se define em termos de adaptação e, na sua forma ativa, comporta dois processos distintos mas inseparáveis: a assimilação, que se verifica quando o organismo passa a incorporar na sua própria organização elementos que lhe são externos; e a acomodação, que é o processo pelo qual o organismo adapta sua organização

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interna às demandas do meio. Para que

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esse processo de adaptação se realize, o organismo conta com mecanismos auto-reguladores que possibilitam a conservação constante do seu estado em relação às modificações impostas pelo meio. Esse processo de conservação denomina-se homeostasia, quando se refere ao meio fisiológico interno, e equilibração, quando se refere ao comportamento.

É este mecanismo de adaptação que Piaget (1975, p. 15) toma como fundamento do processo cognitivo, afirmando a inteligência como “um caso particular de adaptação biológica”. Estudando os diversos tipos de conhecimento desde as raízes do processo progressivo de estruturação, Piaget neles reconhece os mesmos mecanismos que atuam no processo de interação biológica:

A inteligência é uma adaptação. Para apreendermos as suas relações com a vida, em geral, é preciso, pois, definir que relações existem entre o organismo e o meio ambiente. Com efeito, a vida é uma criação contínua de formas cada vez mais complexas e o estabelecimento de um equilíbrio progressivo entre essas formas e o meio. Afirmar que a inteligência é um caso particular de adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é, essencialmente, uma organização e que a sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo estrutura o meio imediato. Para descrever o mecanismo funcional do pensamento em verdadeiros termos biológicos, bastará, pois, destacar as invariantes comuns a todas as estruturações de que a vida é capaz [PIAGET, 1975, p. 15].

Segundo essa compreensão, o indivíduo nasce, pois, com um conjunto de mecanismos sensório-motores, os quais comportam funções e estruturas. As funções consistem nos modos biologicamente herdados de interação do indivíduo com o ambiente, e, entre elas, duas são básicas: a função de organização e a função de adaptação. Ao longo do desenvolvimento, enquanto as funções permanecem inalteradas, as estruturas se inserem num movimento ininterrupto de mudanças. Esse movimento de passagem é designado como

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“processo de equilibração”, devendo resultar num estado de equilíbrio, o qual, sendo sempre dinâmico, pode deflagrar novas desequilibrações e, portanto, novo processo de

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busca de equilibração, dirigido por um mecanismo de auto-regulação. Em outras palavras, as estruturas encontram-se em permanente movimento em direção ao seu próprio delineamento, o qual se efetiva quando atingido um estado de equilíbrio. Contudo, uma vez atingido um certo equilíbrio, em vez de uma estabilização definitiva da estrutura verifica-se que, diante de novas demandas colocadas pelo ambiente, manifestam-se lacunas e inconsistências que imediatamente provocam desequilíbrio, acionando um novo esforço de equilibração. Destaquemos que, nesse sentido, concepção piagetiana não comporta a idéia de transformação, mas apenas de mudança, pois enquanto a primeira implica uma alteração radical, sobretudo da base sobre a qual o dado da realidade se constrói, a segunda admite apenas modificações que, no entanto, se processam sobre uma base inalterada. Por outro lado, diz Piaget, a própria noção de adaptação nos conduz à função de organização, posto que indissociáveis: todo ato é organizado e a adaptação constitui o aspecto dinâmico da organização. Nesse sentido, explica:

Do ponto de vista biológico, a organização é inseparável da adaptação: são os dois processos complementares de um mecanismo único, sendo o primeiro o aspecto interno do ciclo do qual a adaptação constitui o aspecto exterior. Ora, no tocante à inteligência, tanto sob a sua forma reflexiva como prática, vamos reencontrar esse duplo fenômeno da totalidade funcional e da interdependência entre a organização e a adaptação. No que diz respeito às relações entre as partes e o todo, que definem uma organização, é sabido que cada operação intelectual é sempre relativa a todas as outras e que os seus elementos próprios são regidos por essa mesma lei [PIAGET, 1975, pp. 18-19].

Considerando que o mecanismo de conhecimento consiste na passagem de uma estrutura para outra, e identificando esse mecanismo com o processo de adaptação-organização, Piaget conclui por uma continuidade entre o organismo e a inteligência, afirmando esta última como um caso particular de adaptação biológica. É clara, na sua obra, a importância atribuída à organização biológica como ponto de partida do estudo do

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conhecimento.

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Tomando o conhecimento como um caso particular das trocas entre sujeito e objeto, Piaget define que os instrumentos de conhecimento constituem órgãos especializados de regulação no que diz respeito às trocas funcionais entre o organismo e o meio. No processo de desenvolvimento, as regulações cognitivas prolongam as regulações orgânicas e, embora todas as funções gerais do organismo (organização, adaptação e assimilação, conservação e antecipação, regulação e equilibração) se encontrem numa e noutra, as primeiras apresentam-se enriquecidas com propriedades originais, atingindo estruturas bastante complexas e requintadas. Do ponto de vista da organização, diz Piaget, a inteligência chega a estruturas muito mais notáveis, ao mesmo tempo que muito mais diferenciadas, porque se é possível conceber a matematização de todas as estruturas biológicas, todas as estruturas matemáticas não são realizáveis no plano orgânico (PIAGET, 1992b).

A inteligência, sob essa perspectiva, comporta um processo que se desenvolve, portanto, numa seqüência evolutiva de etapas decorrentes de situações adaptativas. Partindo da inteligência sensório-motora, esse processo avança em complexidade até alcançar, na idade adulta, o raciocínio lógico-matemático, isto é, o pensamento científico. Aqui se insere o segundo grande aporte teórico do pensamento piagetiano: a lógica. Para Piaget, a forma mais desenvolvida de inteligência, o pensamento científico, é definida em termos do raciocínio lógico. Todo o desenvolvimento cognitivo constitui um avançar progressivo em direção ao domínio do raciocínio lógico, das operações lógico-formais ou lógico-matemáticas.

Por outro lado, a dimensão social do indivíduo se apresenta como uma forma paralela, embora mais complexa, do mesmo mecanismo psicológico. Assim, uma vez que a terceira instância constituinte do homem – sua condição de ser social – é explicada através do mesmo modelo, no paralelismo já mencionado com a psicologia, ela também comporta uma

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relação de adaptação, constituída por processos de assimilação/acomodação, nos mesmos moldes que na adaptação biológica e lógica, mas que se caracterizam por adaptar os indivíduos entre si, em situações de ações

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coletivas, através de regras, valores de troca e signos que emergem do próprio processo coletivo de ação/adaptação. A importância atribuída ao substrato biológico caracteriza um materialismo de tal modo acentuado que as leis da natureza se deslocam para o campo psicológico e social. Por decorrência, o sujeito piagetiano se apresenta portador de uma infra-estrutrura biológica, sobre a qual se elevam – solidárias no mesmo nível – as dimensões mental e social.

Daí por que, partindo de uma idéia de totalidade autoregulável, Piaget define a inteligência como adaptação e a sociedade como coletividade, no sentido de convivência entre indivíduos. Sua concepção de sociedade é, pois, diversa daquela que fundamenta a perspectiva histórica. Com efeito, os elementos da sua teoria derivam de uma mesma raiz: uma concepção de realidade que, abandonando o terreno do processo histórico, vai assentar-se no terreno da biologia. Sua teoria constitui uma concepção materialista cujos fundamentos são extraídos das ciências naturais – de caráter evolucionista –, com a conseqüente abstração da história. A teoria piagetiana se identifica, portanto, com o que Marx denomina materialismo abstrato.

Assentado no seu materialismo abstrato, Piaget não vê na condição humana senão o prolongamento do desenvolvimento natural do processo de adaptação, comum a todo organismo vivo. Numa famosa entrevista, concedida em 1969, desenvolve o seguinte diálogo com Jean-Claude Bringuier acerca da psicologia:

J.P. – Minha convicção é de que não há nenhuma espécie de fronteira entre o vital e o mental ou entre o biológico e o psicológico. Desde que um organismo tenha consciência de uma experiência anterior e se adapte a uma situação nova, isto se assemelha muito à psicologia.

J. Cl. B. – Então, quando os girassóis, por exemplo, se voltam para o Sol, eles fazem psicologia?J.P. – Eu penso, com efeito, que é um comportamento. J. Cl. B. – Entre os girassóis e nós, não há fronteira?J. P. – Não. É a tese central de meu livro Biologia e

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Conhecimento, onde eu experimento mostrar os isomorfismos...

J. Cl. B. – As analogias?

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J. P. – Sim, entre as regulações orgânicas e os processos cognitivos, os processos de conhecimento. Há estruturas do organismo e há estruturas da inteligência: eu experimento mostrar que umas procedem das outras, e que a lógica, por exemplo, nasce da coordenação geral das ações e que a coordenação geral das ações apóia-se sobre as coordenações nervosas, apoiando-se elas mesmas, sobre coordenações orgânicas [BRINGUIER, 1978, p. 11, grifo nosso].

Essa mesma lógica evolucionista permite ao epistemólogo suíço estabelecer uma identidade entre os fundamentos da sociedade humana e dos grupamentos animais. Da mesma forma que não há fronteira entre “os girassóis e os homens”, também não há entre os agrupamentos animais e a sociedade humana: esta é apenas mais uma das inúmeras formas – ainda que a mais complexa – de coletividade que se encontram na natureza. Esta idéia de mera agregação, ajuntamento ou coletividade – assentada sobretudo nas idéias de comunicação e de descentração2 – está manifesta repetidamente na obra piagetiana (PIAGET, 1971, 1986, 1990).

No entanto, é na sua explicação sobre sociologia que podemos apreender mais claramente o caráter reducionista dessa noção de sociedade como mera coletividade:

As relações da sociologia com a biologia já anunciam a complexidade das que ela mantém com a psicologia. Primeiramente, há uma sociologia animal como uma psicologia animal (as duas disciplinas estando, aliás, estreitamente ligadas, porque as funções mentais dos animais que vivem em sociedade são naturalmente condicionadas por esta vida social), e suas pesquisas são de natureza a mostrar a estreita interação da organização viva e das organizações sociais elementares: cada uma sabe, com efeito, que não se consegue, entre alguns organismos inferiores (Celenterados, etc.), distinguir por critérios precisos os indivíduos, as “colônias” (ou reunião de elementos semi-individuais interdependentes) e as sociedades propriamente ditas. Mas, desde a sociologia animal, o modo de explicação propriamente

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2. Descentração entendida como capacidade de colocar-se no ponto de vistado outro.

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sociológico começa a se distinguir da análise biológica, o que significa dizer que o fato social já se diferencia do fato orgânico e requer, por conseguinte, um modo de interpretação especial. Ao lado das condutas propriamente instintivas (quer dizer, montagem hereditária ligada às estruturas orgânicas) que constituem o essencial dos comportamentos animais, há, com efeito, já nos animais sociais interações “exteriores” (em relação às montagens inatas) entre indivíduos do mesmo grupo familiar ou gregário, e que modificam mais ou menos profundamente sua conduta: a linguagem por gestos (danças) das abelhas, descoberta por V. Frisch, a linguagem por gritos dos vertebrados superiores (chimpanzés, etc.), a educação à base de imitação (canto dos pássaros) e de adestramento (condutas predatórias dos gatos, estudadas por Kuo), etc. Estes fatos propriamente sociais constituídos por transmissões externas e interações que modificam o comportamento individual supõem então um método de análise novo, dirigido ao conjunto do grupo considerado como sistema de interdependências construtivas, e não somente uma explicação biológica das estruturas orgânicas ou instintivas [PIAGET, 1977, pp. 15-16].

Dessa citação podemos destacar algumas idéias das quais derivam importantes conclusões: primeira, que a sociologia, que trata genericamente da sociedade, engloba uma disciplina cujo objeto são as sociedades animais, o que implica reconhecer a existência de organização social no mundo animal. Segunda: que a sociologia mantém uma interação tão estreita com a biologia a ponto de ficar difícil, nas espécies inferiores, distinguir o indivíduo da sociedade – o que contém a idéia de que a sociedade é fundamentalmente ajuntamento de indivíduos, grupo, agregação, coletividade. Terceira: que, mesmo entre os animais, os fatos sociais se distinguem dos fatos biológicos porquanto estes constituem montagens inatas enquanto aqueles são produto de interações “exteriores” entre indivíduos do mesmo grupo familiar ou gregário, e determinam uma modificação na sua conduta. Esta afirmação obriga admitir que os animais são capazes de, dentro do grupo, tanto agir quanto sofrer uma ação transformadora da sua própria natureza – o que os coloca numa perturbadora identidade com o homem e sua natureza social. Quarta: não são explicadas as causas que le-

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vam os animais gregários à prática das interações sociais, o que pressupõe que eles são naturalmente sociais.

Todas essas conclusões deságuam numa única idéia: o homemé social da mesma forma e pelas mesmas razões que os animais.A diferença entre aquele e estes é apenas uma questão de grau de desenvolvimento do sistema de interdependências construtivas, ou seja, da complexidade das interações em jogo.

Assim, para Piaget, os mecanismos e leis da organização social humana são, na origem, idênticos aos mecanismos e leis da organização gregária animal em geral, que, por sua vez, são da mesma natureza que as leis e os mecanismos da organização biológica. Inclusive, posto que ele se refere em termos idênticos às interações entre os animais e às interações humanas, parece lícito supor, após a leitura da citação anterior, que os animais também produzem cultura, uma vez que entre eles também se verifica a existência de condutas transmitidas de geração a geração, do exterior e com modificações dependentes do conjunto do grupo social.

Entendemos estar aqui uma das discordâncias fundamentais com a concepção de homem marxiana, tal como desenvolvida ao longo de diversos textos de Marx e Engels, mas especialmente emA Ideologia Alemã. Sob uma perspectiva marxiana, o homem é um ser social. Essa concepção não carece ser completada com outros predicativos porque, ainda que o homem seja carne e pensamento, são as relações sociais que definem o conteúdo humano (vale dizer, social) tanto de sua dimensão biológica quanto psicológica (atribuindo-lhe justamente outras funções que se distinguem das inatas). Em outras palavras, aquilo que o biológico e o psicológico contêm de humano só pode ser explicado pelas determinações sociais. É preciso, portanto, distinguir, nessas esferas, aquilo que é natural daquilo que é humano, ou seja, social. O problema, na teoria piagetiana, é que ela mantém entre o homem e a natureza uma relação de continuidade que foi definitivamente rompida, como condição

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mesma de emergência da humanidade. Embora a história dos homens e a história da natureza se condicionem reciprocamente, a relação do homem com a natureza não é de continuidade, mas de ruptura. Isto é, ele não se humaniza segundo a lógica ou as leis naturais, mas exatamente na medida em que

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não mais se submete aos seus desígnios, antes impondo a ela asua dominação. O que significa isto, tomando-se o homem como espécie? Significa que ele não mais recebe da natureza, graciosamente, as suas condições de existência, como ocorre com qualquer outra espécie. Significa que sua vida está, agora, condicionada à sua própria capacidade de produzir os bens necessários à sua existência. Entretanto, conforme esclarecem os autores da Ideologia Alemã, é preciso entender essa produção para além dos limites da mera reprodução física, isto é, cabe entendê-la como um modo determinado de produção.

Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção [MARX e ENGELS, 1993, pp. 27-28, grifos dos autores].

Por outro lado, o homem não só cria, produz esses bens, como cria também, ao produzi-los, novas necessidades, em nenhuma medida naturais. Deste modo, a vida humana, naquilo que ela contém de humano, consiste numa forma artificial, antinatural, portanto histórica, de existência. O conceito de historicidade, aqui, não se restringe à seqüência cronológica dos fatos, mas pressupõe justamente um processo permanente de luta contra a condição de submissão à natureza. A condição humana é histórica porque não mais natural, não mais espontânea, não mais instintiva, mas resultado do próprio esforço humano de criação dos seus meios de existência (MARX

e ENGELS, 1993, p. 39).

Deste modo, o desenvolvimento do homem, isto é, sua humanização, é proporcional à sua independência em relação à natureza. Entretanto, se a única possibilidade de romper com a

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submissão à natureza é produzindo forças que se lhe anteponham, onde o homem vai buscar tais forças? A resposta é, sem dúvida, na organiza-

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ção social, que transforma, potencializando, a capacidade individual, natural. Daí a “natureza” social do homem: é somente através do intercâmbio que o homem se alça à condição de espécie criadora, não mais meramente coletora das benesses naturais. Esse intercâmbio, entretanto, não deve ser pensado em termos de mera agregação – como está claramente presente na teoria piagetiana – mas de uma relação de efetiva interdependência material entre os homens, ou seja, entendendo-se que as condições de produção de vida do indivíduo não podem ser supridas por ele próprio, mas demandam o concurso de outros homens, isto é, da sociedade. “Vê-se aqui”, afirmam Marx e Engels, “que os indivíduos fazem-se uns aos outros, mas não se fazem a si mesmos”. Isto quer dizer que o indivíduo, embora participe da produção de bens que serão utilizados por outros, não é capaz de produzir para si mesmo tudo aquilo de que necessita. E mais, que qualquer coisa de que necessite demanda oconcurso não apenas de um ou de alguns indivíduos à sua volta, masde uma teia significativamente ampla de indivíduos ligados entre si pelo processo de produção. A título de exemplo, pensemos num ato cotidiano qualquer: beber água. Para realizá-lo, na forma como este ato costuma ser realizado hoje, o indivíduo utilizar-se-á de um copo, de uma torneira, de um sistema de encanamento etc. Agora, pensemos no copo: quantos indivíduos participam de sua produção? Se tentássemos reproduzir a teia dos indivíduos nela envolvidos, provavelmente não conseguiríamos concluí-la. Teríamos os sujeitos envolvidos na extração da matéria-prima; estes, por sua vez, dependeriam dos sujeitos que fabricaram seus instrumentos, o que também envolve matéria-prima extraída por outros; todos os envolvidos diretamente na extração e no fabrico dependeriam de um sem-número de outros sujeitos que se dedicassem à produção de alimentos; teríamos a comercialização, envolvendo outro contingente de pessoas... enfim, como já afirmamos, não é possível reconstituir a teia, mas é óbvio que podemos presumir que ela envolve, direta ou indiretamente, todos os sujeitos de uma dada sociedade. Ora, se assim é com apenas um dos objetos necessários à prática de um único ato

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cotidiano, que dizer de todos os atos necessários de serem realizados ao longo do dia? Enfim, para atender à necessidade mais prosaica, o indivíduo põe em curso todo o conjunto da socie-

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dade, isto é, depende de que a rede de relações sociais esteja constituída e em ação produtiva.

Nesse sentido, aquilo que, no indivíduo, caracteriza sua condição humana só pode ser explicado a partir das relações sociais de produção vividas por esse indivíduo, e não, como quer Piaget, por um modelo biológico, inalterável na sua funcionalidade. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção – ensina a teoria marxiana. E essas condições materiais não são a matéria em sentido abstrato, mas a materialidade como produto da práxis.

O abandono da compreensão da atividade humana como práxis acentua o caráter abstrato da teoria piagetiana. Nesta, a atividade humana é comportamento, tanto quanto o é a atividade de qualquer outro ser vivo, vegetal ou animal. Na perspectiva marxiana, a ação humana é, acima de tudo, criação de um modo próprio de vida que se estende a toda a realidade, o que difere da simples idéia de construção de alguns produtos para a sobrevivência, como ocorre entre os animais. No mundo animal, a produção é idêntica ao longo de milhares de anos e não implica a alteração radical do conjunto da realidade, nem sequer do modo de vida da própria espécie. Pensemos nas abelhas, formigas etc., cujo modo de vida permanece igual há milhares de anos. Na sociedade humana, pelo contrário, o que temos é a criação de uma nova realidade: de uma nova natureza para o homem e de um novo conteúdo para a própria natureza com a qual ele se defronta. O homem, efetivamente, não transforma apenas a si mesmo, mas a realidade no seu conjunto.

Sob o ponto de vista piagetiano a sociedade aparece como fruto altamente desenvolvido de um processo natural; sob a concepção marxiana, ela resulta de um princípio inteiramente novo, não só diferente mas contrário às “leis” naturais: a força criadora do homem resultante da sua organização social, sob cujo peso a própria natureza é subjugada (MARX, 1985).

Enquanto, sob o ponto de vista histórico, tal como afirmado

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por Marx e Engels, a realidade é o produto da ação criadora dos homens, para Piaget, pelo contrário, existem a natureza e, produto dela, uma obra admirável: o homem. O mundo objetivo é,

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para ele, a realização de leis naturais, de modo que a própria criação humana se encontra a elas subjugada.

2. CONCEPÇÃO DE OBJETO

O entendimento da realidade acima analisado determina a concepção piagetiana acerca do objeto do conhecimento e da ciência. Primeiramente, é preciso lembrar que Piaget distingue conhecimento científico e sabedoria, atribuindo o primeiro à ciência e o segundo à filosofia. Essa distinção se explica pelo próprio conceito de conhecimento do autor, para quem, conhecer é elaborar continuamente estruturas de assimilação-acomodação diante de um objeto exterior que reage, segundo suas características, às ações do sujeito. Embora considere importante a reflexão filosófica como ponto de partida da pesquisa na medida em que permite a elaboração de hipóteses, esse pesquisador coloca sérias dúvidas quanto aos seus resultados no campo do conhecimento científico porque sem a verificação experimental o critério de verdade permanece subjetivo, correspondendo a uma satisfação intuitiva, uma “evidência” (PIAGET, 1992, p. 21). Enquanto a reflexão filosófica permanece inteiramente vinculada à personalidade dos pensadores, o conhecimento científico, por seu turno, reivindica critérios objetivos ou interindividuais de verdade.

Dado que há duas ordens de objetos – os físicos e os conceituais –, esses critérios se realizam na forma do estabelecimento experimental de um conjunto de fatos ou através de uma dedução regulada por algoritmos precisos. Essas ponderações explicam as três causas que o levam a renegar a filosofia e converter-se à ciência experimental: primeira: o conflito entre os hábitos de verificação, decorrentes do exercício da biologia e da psicologia, e a impossibilidade de controle objetivo da reflexão especulativa; segunda: a dependência das correntes filosóficas em relação às transformações sociais; terceira: a reação aos filósofos que, interpretando ou criticando sua obra, promoviam uma ingerência filosófica no campo da pesquisa científica. Todas essas três razões resumem-se, de fato,

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numa única: a convicção de que a verificação objetiva (seja na forma experimental, seja no campo formal, como aplica-

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CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO 79

ção de um algoritmo), capaz de promover a assepsia do sujeitopesquisador e do objeto pesquisado relativamente às determinações sociais, é o critério de verdade para o conhecimento.

Assim, opondo-se às tendências metafísicas, Piaget se empenha em afirmar o caráter objetivo da realidade, no sentido mais corrente do termo: como aquilo que pertence à exterioridade, em oposição à subjetividade ou interioridade do sujeito. Defende, em síntese, que as coisas têm uma existência exterior à consciência. Entretanto, qual é, enfim, o aspecto questionável dessa perspectiva piagetiana? Efetivamente, não procede a afirmação contrária de que as coisas, uma vez fora da consciência, deixariam de existir. Entretanto, Piaget aposta demasiado, segundo nosso entendimento, na existência autônoma do objeto, pois, se a coisa independe da consciência individual para permanecer existindo – como coisa –, o objeto tem sua existência inteiramente determinada pelas relações sociais. A simples existência física – ou natural – não confere a nada o estatuto de objeto, pois este só se realiza em face de uma ação humana que converte a “coisa” em objeto humano. E é enquanto tal que ele precisa ser conhecido. D´Alembert, o famoso iluminista francês, criticando a esterilidade e a verdade pueril de afirmações axiomáticas, refere-se a um axioma que se presta ao ponto que estamos discutindo:

[...] o que significa este princípio tão comum que diz que é preciso simplesmente existir, antes de existir desta ou daquela maneira... como se a existência real não implicasse uma certa maneira determinada de existir?... A idéia da simples existência, sem qualidade nem atributo, é uma idéia abstrata que só existe em nosso espírito, que não tem nenhum objeto exteriormente... [D’ALEMBERT, 1994, pp. 18-19].

Pois bem, quem confere qualidade e atributo às coisas são os homens. Sem esses atributos humanos não há existência real, o objeto vira pura abstração. É por isso que se diz que tomar abstratamente um objeto é abstraí-lo das relações humanas. As

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mesmas coisas, ao longo da história, recebem diferentes interpretações porque os homens de cada época lhes conferem qualidades e atributos diferentes.

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Mas, evidentemente, não é assim que nosso autor vê a questão. Para ele, o que explica as diferentes interpretações é o movimento permanente e progressivo de aproximação em direção ao objeto inatingível. O objeto existe, diz ele, “independentemente de nós, mas jamais completamente atingido” (PIAGET, 1983, p. 5). Os objetos estão “lá fora”, imóveis, eternos, e cada época que se sucede à anterior desenvolve um pouco mais a conquista deste mundo objetivo. Segundo nos parece, em nome da verdade objetiva, Piaget sacrifica o próprio fundamento da realidade que se propõe conhecer: as determinações sociais.

Falando sobre a consciência, no livro A Ideologia Alemã, diz Marx: “A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real”. E, mais adiante: “(...) os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar”. (MARX, 1993, p. 37, grifo nosso). Ou seja, não apenas o conteúdo – isto é, o produto – do pensamento se modifica, mas o próprio pensar, isto é, o modo e os meios de pensar se alteram historicamente.

Efetivamente, se o homem se faz a si mesmo, sua consciência tanto quanto os objetos de que toma consciência não podem ser senão produto desse seu fazer. Por outro lado, esse fazer se encontra em permanente movimento, daí a transitoriedade tanto do real quanto da consciência sobre ele. O conhecimento, entendido na perspectiva da práxis, só é possível se a consciência individual se defrontar com a teia de relações sociais que institui o objeto, posto que, sem elas, ele inexiste como objeto humano. Sua existência física não é suficiente para instituí-lo enquanto tal. “O concreto”, diz Marx, “é síntese de múltiplas relações”. Fora destas relações, o objeto se transmuda em coisa, que a sabedoria popular muito apropriadamente entende como aquilo cuja natureza é desconhecida porque alheia à sua humanidade. A simples materialidade não constitui, por si mesma, o objeto. As características físicas não

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dizem nada do objeto, senão no interior de relações que dão determinado sentido àquelas características ou àquela materialidade.

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Tomemos, por exemplo, uma caneta. Numa sociedade ágrafaa existência do objeto caneta, enquanto tal, é impossível, pois, para que a “coisa” física se transmude no objeto caneta é necessária uma teia de relações que tem, como corolário, a escrita, a qual poderá3, por sua vez, dar sentido à caneta.

Ou ainda, num dado conjunto de relações a caneta pode transmudar-se no objeto “mercadoria”. Ora, o ser mercadoria não está na materialidade da coisa, mas nas relações entre os homens que fazem dela um objeto de mercado. Da mesma forma, no interior das relações próprias de uma sociedade primitiva jamais uma flecha vai tornar-se mercadoria – embora possa ser objeto de troca – porque lá não estão dadas as relações de mercado. Eis, entretanto, que o que define os objetos e a consciência humanos são as relações sociais, que se manifestam na vida prática, isto é, manifestam-se no mundo material e na consciência dos homens (KLEIN, 1997).

Entretanto, no objeto piagetiano não estão contempladas essas relações. Muito ao contrário, considerando que as relações sociais (políticas, econômicas etc., conforme mencionadas por ele) agem sobre a consciência deturpando o verdadeiro sentido do mundo objetivo, propõe que o procedimento científico forneça as salvaguardas contra essas ingerências que se antepõem entre o objeto real e a consciência, de tal modo que, para conhecer, o homem precisa ter sua consciência anulada, expurgada de toda contaminação humana. Os instrumentos para tal expurgo vêm do método e da lógica, caracterizando uma ciência que se pretende neutra em relação aos embates sociais.

Com efeito, todo rigor científico de Piaget está orientado pelo esforço de descarnar radicalmente o objeto de toda sua humanidade, investindo contra a consciência maculada do pesquisador ou contra o impuro mundo da existência humana.

3. Enquanto a escrita é condição para a existência da caneta, o inverso não é

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verdadeiro. A caneta não é exigida pela escrita, senão num determinado momento da história. Outras relações sociais poderão obrigar a escrita a assumir outra forma de ser, tornando a caneta obsoleta. Parece que, com a computação, esse novo momento já dá sinais de vida.

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Entretanto, a assepsia não se limita à consciência do pesquisador; ela deve incidir também sobre o objeto pesquisado, o qual deve estar, tanto quanto possível, incontaminado pela civilização. É por esse motivo que Piaget renega o adulto contemporâneo como alvo da pesquisa, posto que este se encontra demasiadamente marcado “por séculos de cultura e de formação” (PIAGET, 1990, pp. 33-34).

Por conseguinte, se a verdade científica está calcada num método cuja razão primeira é desembaraçar radicalmente das marcas sociais tanto o pesquisador quanto o objeto, a verdade não pode, então, ser outra coisa senão pura abstração.

Penso caber a ele a mesma crítica dirigida por Marx aFeuerbach:

O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente. Eis por que, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo, que, naturalmente, desconhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis – realmente distintos dos objetos do pensamento: mas não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva [MARX e ENGELS, 1993, p. 11].

De fato, na sua tentativa de descobrir a “verdade” sobre a consciência humana ele passa a tomá-la abstratamente, como expressão de uma lei natural, descolada das condições reais de produção humana, como algo em si, como realidade acabada e, portanto, a-histórica. Enfim, como uma verdade preexistente, ou independente da ação propriamente humana, à espera de ser descoberta.

A independência dos fatos em relação às determinações sociais – tal como as entendemos – permeia sua obra. Esse ponto de vista é marcante quando ele se refere à existência das

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fases de desenvolvimento da consciência, afirmando-as imutáveis, ainda que flexíveis no tempo.

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Entretanto, se o mundo humano se encontra em construção,está, por isso mesmo, em permanente movimento, do que resulta que as leis que o regem são sempre transitórias, tanto quanto o são os homens e seus objetos. Assim, definir que as leis de organização, adaptação, auto-regulação, descentração explicam a emergência da consciência dos homens de qualquer época histórica e que os homens mantêm sempre o mesmo padrão de desenvolvimento é estabelecer leis imutáveis, que se mantêm à revelia das transformações históricas.

Contra a afirmação de que Piaget se ocupa de um mundo objetivo definido por leis imutáveis, poder-se-ia alegar que ele se refere à transitoriedade das verdades científicas, o que é correto. Ele sai, efetivamente, em defesa da idéia de movimento, por oposição às concepções imobilistas e à idéia de uma verdade absoluta. Argumentando com a idéia de “novidades”, busca na dialética o fundamento necessário para realizar sua perspectiva de movimento. A dialética, por sua vez, articula-se, na sua obra, com o método histórico-crítico, com o qual pretende dar conta da gênese dos conhecimentos, estabelecendo, inclusive, um paralelismo entre a ontogênese e a filogênese. A junção desses dois métodos, no entanto, só confirma o caráter evolutivo da sua teoria, pois, ainda que insista em negar o imobilismo, bem como um movimento de linearidade, fica definida, em sua obra, a existência de um movimento sempre ascendente – ainda que circular –, do menos para o mais desenvolvido, determinado, na sua origem, por uma lei permanente. Por outro lado, a crítica às teorias que defendem a existência de verdades absolutas não o impede de formular uma teoria que ele pretende absolutamente verdadeira por oposição a todas as “falsas” teorias contra as quais se levanta.

Enfim, a transitoriedade a que ele se refere diz respeito à evolução e à acumulação das descobertas científicas e ao caráter precário das formulações teóricas em cada etapa desse desenvolvimento ascendente. Essas formulações, graças aos avanços da ciência, vão, por aproximações sucessivas, “descobrindo” um dado objeto. Essa compreensão, ainda que

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suponha um objeto não acabado, implica a aceitação de que ele se realiza segundo leis fixas que os homens, através de sucessivas tentativas, vão “desco-

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brindo”. A teoria deixa, então, de ser expressão da produção real da vida dos homens, para se tornar, meramente, a revelação de uma realidade que lhes é exterior, ainda que dela façam parte, e cujas leis são permanentes. Quanto a nós, a transitoriedade que reivindicamos como histórica não é a transitoriedade das descobertas científicas, nelas mesmas, mas aquela que resulta do movimento transformador que se verifica nas formas de produção humana de vida e que pode, inclusive, expressar-se na transitoriedade de tais “descobertas”.

Ora, é preciso pensar também a verdade como uma produção da história. Ou seja, é preciso pensar, historicamente, que os homens produzem as verdades que melhor expressam seu mundo real. Não estamos, nem de longe, defendendo a tese de que os homens não podem afirmar verdades sob a alegação de que elas são transitórias. Estamos chamando a atenção para o fato de que as verdades humanas se referem a relações humanas e, enquanto tais, são explicadas antes por essas relações que por “leis” intrínsecas aos objetos a que se referem. E, ainda, que são transitórias porque transitórios são os objetos e fatos produzidos pela humanidade.

3. À GUISA DE CONCLUSÃO

Admitindo-se que a concepção de homem e de objeto do conhecimento constitui conteúdo fundamental de uma concepção de educação, entendemos que não é possível pensar uma prática pedagógica que se pretenda progressista, transformadora, comprometida com os avanços que a humanidade está a exigir – o que pressupõe uma perspectiva histórica e social –, sem questionar a coerência desses conteúdos relativamente à proposta educacional. Assim, fazendo coro com os educadores que clamam por uma educação mais articulada com as necessidades concretas deste momento histórico, reivindicamos, como essencial e urgente, a busca incansável dessa coerência.

Posto que, na literatura educacional brasileira mais recente,

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se tem enfatizado o compromisso dos educadores com uma pedagogia progressista, e que boa parte dessa literatura se estriba na

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epistemologia genética de Piaget, consideramos pertinente umaanálise mais aprofundada dos fundamentos de sua teoria, das conseqüências de sua aplicação nas propostas educacionais e, sobretudo, da coerência de seus pressupostos com o que se tem proclamado como prática pedagógica transformadora. Nesse sentido, pretendemos, com as considerações apresentadas neste artigo, acrescentar alguma contribuição a um debate que ainda está a requerer análises cuidadosas e fecundas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Difel. D’ALEMBERT (1994). Ensaio sobre os elementos da filosofia.

Campinas:Unicamp.

FURTH, Hans (1974). Piaget e o conhecimento. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária.

KLEIN, Lígia Regina (1997). Alfabetização: quem tem medo de ensinar? SãoPaulo: Cortez.

LAMPEDUSA, G.T. (1979). O leopardo. São Paulo: Abril Cultural.

MARX, Karl (1985). Manuscritos: economia y filosofia. Madrid: Alianza Editorial.

MARX, K. e ENGELS, F. (1993). A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec.

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O CONSTRUTIVISMO SERIA PÓS-MODERNO...? 87

E

C A P Í T U L O - C I N C O

O CONSTRUTIVISMO SERIA

PÓS-MODERNO OU O PÓS -MODERNISMO

SERIA CONSTRUTIVISTA ?(ANÁLISE DE ALGUMAS IDÉIAS DO “CONSTRUTIVISMO

RADICAL” DE ERNEST VON GLASERSFELD )

Newton Duarte*

Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa de natureza crítico-analítica, que estamos desenvolvendo em projeto integrado intitulado “O construtivismo: suas muitas faces, suas filiações e suas interfaces com outros modismos”1. Trata-se de uma pesquisa que aborda um amplo espectro de temas, sendo que neste artigo focalizaremos especificamente o tema das relações entre construtivismo e pós-modernismo através da análise de idéias defendidas pelo pesquisador Ernest Von Glasersfeld2, defensor de uma vertente do construtivismo por ele denominada de “construtivismo radical”. Nosso objetivo será o de defender a tese de que o construtivismo e o pós-modernismo pertencem a um mesmo universo ideológico e as interfaces entre ambos são tantas e em aspectos tão fundamentais que, em muitos momentos, não faz diferença caracterizar o pensamento de um autor como construtivista ou como pós-moderno.

* Professor da Universidade Estadual Paulista, câmpus de Araraquara. Livre-docente em Psicologia da Educação.

1. Projeto integrado financiado pelo CNPq no período de agosto de 1998 a julho de 2000.

2. Ernest von Glasersfeld é, atualmente, pesquisador do Scientific Reasoning Research Institute (University of Massachusets) e do Institute of Behaviorial Research (University of Georgia), nos EUA.

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Certamente a tese enunciada pode causar alguma estranheza tanto a alguns construtivistas, que não se consideram pós-modernos, como a alguns pós-modernos, que não se consideram construtivistas. Não pretendemos esgotar aqui essa questão, mas sim procurar provocar um debate mais amplo sobre ela.

Iniciaremos nossa argumentação apresentando um trecho do historiador marxista Eric Hobsbawm, extraído da apresentação do prefácio de seu livro intitulado Sobre História:

Nas últimas décadas, tornou-se moda, principalmente entre pessoas que se julgam de esquerda, negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que chamamos de “fatos” apenas existem como uma função de conceitos e problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que estudamos é só um construto de nossas mentes. Esse construto é, em princípio, tão válido quanto outro, quer possa ser apoiado pela lógica e por evidências, quer não. Na medida em que constitui parte de um sistema de crenças emocionalmente fortes, não há, por assim dizer, nenhum modo de decidir, em princípio, se o relato bíblico da criação da terra é inferior ao proposto pelas ciências naturais: apenas são diferentes. Qualquer tendência a duvidar disso é “positivismo”, e nenhum termo desqualifica mais do que este, exceto empirismo. [...] Na verdade, poucos relativistas estão à altura plena de suas convicções, pelo menos quando se trata de responder, por exemplo, se o Holocausto de Hitler aconteceu ou não. Porém, seja como for, o relativismo não fará na história nada além do que fez nos tribunais. Se o acusado em um processo por assassinato é ou não culpado, depende da avaliação da velha evidência positivista, desde que se disponha de tal evidência. Qualquer leitor inocente que se encontrar no banco dos réus fará bem em recorrer a ela. São os advogados dos culpados que recorrem a linhas pós-modernas de defesa[HOBSBAWM, 1998, pp. 8-9].

Ao afirmar que o pós-modernismo fará no campo da pesquisa histórica o mesmo papel que desempenha nos tribunais, Hobsbawm permite-nos inferir de suas palavras que o

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pós-modernismo não é útil aos “advogados dos culpados” apenas nos tribunais, mas também em toda a sociedade capitalista contemporânea. O pós-modernismo é útil à classe dominante do capitalismo con-

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temporâneo que não deseja ver a verdade revelada aos olhos dasclasses dominadas. O pós-modernismo é útil aos defensores do projeto político e econômico neoliberal. Aqueles que, pretendendo ser de esquerda, aderem ao pós-modernismo acabam, mesmo não o admitindo, fazendo também esse papel de advogado de defesa do culpado.

Essa passagem de Hobsbawm poderia, perfeitamente, estar referida à epistemologia construtivista e suas influências no campo educacional, embora o autor esteja tratando de outra questão: a das influências do pós-modernismo no campo da pesquisa em história. Mas, fazer referência à epistemologia construtivista significa, inevitavelmente, fazer referência à epistemologia genética de Jean Piaget. E então surge a pergunta: Piaget poderia ser considerado um pós-moderno?

Não há consenso quanto a esse ponto entre os autores construtivistas, havendo aqueles que explicitamente associam o pensador suíço ao relativismo pós-moderno e aqueles que associam Piaget ao pensamento iluminista.

No campo dos estudos sobre currículo, por exemplo, podemos citar W.E. Doll Jr. que, em seu livro intitulado Currículo: uma perspectiva pós-moderna, apresenta a teoria piagetiana como uma das que fundamentariam uma abordagem pós-moderna do conhecimento e, conseqüentemente, do currículo escolar (cf. DOOL

JR., 1997).

Numa direção diferente, podemos citar o livro de Bárbara Freitag (1991, pp. 8-9) intitulado Piaget e a filosofia, no qual a

autora apresenta o pensador genebrino como um defensor da razão, da ciência, um herdeiro do Iluminismo. A autora argumenta

que Piaget, em seu célebre livro Sabedoria e ilusões da filosofia(1969b), não estaria se opondo a toda e qualquer filosofia, mas sima um certo tipo de filosofia, com suas tendências irracionalistas. Vistaa questão dessa forma, Piaget seria uma possível referência para a luta contra o irracionalismo pós-moderno. Nessa linha de raciocínio Bárbara Freitag vê Piaget como um herdeiro do

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Iluminismo e um precursor da “teoria da verdade processual e da ética discursiva de Jürgen Habermas e K. O. Apel” (FREITAG, 1991, p. 9).

Nossa posição perante essa questão é a de que Bárbara Freitag equivoca-se ao ver na luta de Piaget com a filosofia uma defesa da

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razão. Os estudos que até aqui realizamos da obra do pensador suíço levaram-nos a formular, em Duarte (2000), uma hipótese que pretendemos submeter a exame rigoroso e detalhado na seqüência de nossos estudos e pesquisas: a de que a epistemologia piagetiana seria toda ela perpassada por uma ambigüidade entre, por um lado, uma tendência a um cientificismo positivista, e, por outro, uma tendência a um relativismo subjetivista. Segundo essa hipótese, onde Bárbara Freitag vê uma defesa da razão e da ciência, existiria isto sim uma defesa da neutralidade positivista. A tendência, existente na obra piagetiana, a um cientificismo positivista pode ser constatada justamente na oposição que Piaget estabelece entre a filosofia e a ciência no citado livro Sabedoria e ilusões da filosofia (PIAGET, 1969b) e na oposição que ele estabelece entre ciência e ideologia na coletânea Estudos sociológicos (PIAGET, 1973, pp. 79-80). Piaget mostra-se positivista por identificar objetividade com neutralidade. Cabe aqui lembrar a argumentação de Dermeval Saviani (1997, pp. 66-68), quando este mostra que a identificação entre objetividade e neutralidade é uma armadilha criada pelo pensamento positivista, armadilha essa na qual caem aqueles que pretendem atacar o positivismo negando a possibilidade do conhecimento objetivo.

Quanto ao relativismo subjetivista que seria outra tendência presente na obra Piaget, tal relativismo pode ser constatado, por exemplo, quando Piaget (1969a, p. 332), em seu livro Biologia e conhecimento, procura responder à questão de como é possívela verdade, o conhecimento, recorrendo à afirmação de que o conhecimento é construção, por analogia ao processo de evolução dos seres vivos. Nesse sentido, o decisivo deixa de ser a questão de se um conhecimento é mais verdadeiro do que outro, mas sim a de se um conhecimento é mais desenvolvido, mais evoluído do que outro. A própria superação do egocentrismo cognitivo em Piaget não implica necessariamente a noção de abandono de um conhecimento menos verdadeiro e sua superação por um conhecimento que corresponda mais à realidade, mas sim a noção de que os indivíduos tornem-se capazes de coordenar os vários pontos de vista. Num texto de

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1932, Piaget justificou a necessidade de desenvolvimento da reciprocidade nas relações entre

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os indivíduos, como forma de conciliação entre a necessidade deobjetividade (que implica a universalidade) e o caráter particular do conhecimento de cada indivíduo, grupo ou nação:

[...] não pretendo que abandonemos nossos pontos de vista pessoais. Creio que cada um deve manter sua perspectiva particular, pois ela é, em última instância, o único laço que existe com o real. O que há por fazer, mas é exatamente isso que é difícil, é compreender que o ponto de vista próprio não é o único possível [PIAGET, 1998, p. 103].

O relativismo e o subjetivismo que constituiriam uma das tendências presentes na epistemologia de Jean Piaget acabaram resultando, ao contrário do que afirmou Bárbara Freitag, não na defesa da razão mas sim no fortalecimento do irracionalismo pós-moderno. Dados os limites deste artigo, não nos deteremos numa análise detalhada dessa característica do pensamento pós-moderno, a de ser um pensamento irracionalista, subjetivista e relativista3.

A escolha por analisarmos neste texto algumas idéias do construtivismo radical de Ernest Von Glasersfeld visa justamente mostrar o quanto construtivismo e pós-modernismo pertencem a um mesmo universo ideológico, a um mesmo universo de defesa de concepções relativistas, subjetivistas e, em última instância, irracionalistas, sobre o conhecimento humano. As implicações dessa temática são muitas e elas levam ao questionamento até mesmo de certas tentativas que têm sido levadas a cabo, de análise crítica do construtivismo, como é o caso de textos produzidos por Tomaz Tadeu da Silva que, por um lado, anunciou o adeus às metanarrativas educacionais, mostrando que uma pedagogia pós-moderna ou pós-estruturalista não admite as metanarrativas (SILVA, 1996), e, por outro lado, apontou o construtivismo como uma ilusória tentativa dos educadores de apoiarem-se ainda em alguma metanarrativa (SILVA, 1998).

3. Para uma análise mais detalhada dessa questão, recomendamos a leitura de

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Chauí (1993), Duarte (2000), Evangelista (1997) e Frederico (1997).

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A análise de Tomaz Tadeu da Silva não leva em conta a possibilidade de o construtivismo ser parte integrante do mesmo universo ideológico integrado pelo pós-modernismo/pós-estruturalismo. Uma das obras acima mencionadas intitula-se Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu (SILVA, 1998a), constituindo-se em coletânea organizada por Tomaz Tadeu da Silva e composta por artigos de vários autores que analisam criticamente o construtivismo numa ótica pós-estruturalista. Considerando-se que o próprio organizador dessa coletâneajá afirmara em outro texto não existirem diferenças significativas entre pós-modernismo e pós-estruturalismo (SILVA, 1996), o problema que se apresenta é o de que os autores integrantes da citada coletânea poderiam estar fazendo uma crítica à pedagogia e à psicologia construtivista a partir de um referencial que guardaria afinidades com o construtivismo. Estariam então esses autores mais próximos do construtivismo do que eles imaginam? Seriam suas afinidades com o construtivismo maiores que suas divergências? A formulação dessas perguntas tem aqui o objetivo de evidenciar a necessidade de estudos detalhados e aprofundados sobre o construtivismo, numa perspectiva que não se reduza a considerá-lo como mais uma concepção psicologizante em educação.

Passemos então à análise de algumas idéias de Ernest Von Glasersfeld na busca de elementos que possam lançar luz sobre essas relações entre construtivismo e pós-modernismo.

Em primeiro lugar cabe destacar que esse autor não apresenta o construtivismo radical como uma corrente dentro do construtivismo. Na verdade, Von Glasersfeld entende que o construtivismo é radical e que essa radicalidade estaria presente já na obra de Piaget. Nessa perspectiva, uma leitura correta da obra de Piaget revelaria necessariamente essa radicalidade, a qual consistiria na separação absoluta entre ontologia e epistemologia:

O construtivismo não formula declarações ontológicas. Não nos

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diz como é o mundo, só nos sugere uma maneira de pensá-loe nos fornece uma análise das operações que geram uma análise a partir da experiência. Provavelmente, a melhor maneira de caracterizá-lo seja dizer que é a primeira tentativa séria de sepa-

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rar a epistemologia da ontologia. Na história de nossas idéias, aepistemologia (o estudo do que sabemos e como chegamos a sabê-lo) sempre esteve ligada à noção de que o conhecimentodeva ser a representação de um mundo ontológico externo. Oconstrutivismo procura prescindir de tal idéia. Exclui esta condição e afirma, em troca, que o conhecimento só tem que ser viável, adequar-se a nossos propósitos. Tem que cumprir uma função. Por exemplo, tem que se encaixar no mundo tal como o vemos, e não no mundo tal como deveria ser [VON GLASERSFELD, 1996, pp. 82-83].

Na citada passagem aparecem algumas idéias que são importantes na concepção desse autor. A primeira delas, que instaura a separação entre epistemologia e ontologia, é a de que o conhecimento, numa perspectiva construtivista, não deveria ser considerado uma representação de uma realidade exterior, mas sim um instrumento mental empregado no processo de adaptação do indivíduo ao meio. A segunda idéia, decorrente da primeira, é de que o conhecimento não deve ser avaliado através da categoria verdade, isto é, não se trata de avaliar o quanto o conhecimento seria verdadeiro, o quanto ele representaria corretamente a realidade exterior ao pensamento, mas sim o quanto ele constitui-se em um mapeamento das ações que viabilizam a adaptação do indivíduo ao meio. A terceira idéia é a de que a adaptação é um processo de encaixe “no mundo tal como o vemos”. Adaptação, viabilidade e encaixe seriam três idéias inseparáveis na epistemologia construtivista, segundo a interpretação de Ernest Von Glasersfeld. Ele afirma que tais idéias encontram respaldo na epistemologia piagetiana. Sua leitura da obra de Piaget parte do fato, a nosso ver incontestável, de que o pensador suíço via o processo de conhecimento como um processo de adaptação. A partir disso Ernest von Glasersfeld entende que conceber o conhecimento como adaptação estabeleceria uma ruptura radical com a epistemologia tradicional, que conceberia o conhecimento como representação de uma realidade externa ao pensamento:

Ao longo de todas as suas obras, Piaget reiterou que a cognição

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era uma atividade adaptativa. Entretanto, em minha opinião, mui-

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tos dos leitores de Piaget nunca levaram a sério esse ponto e, ainda hoje, a maioria o lê como se ele estivesse se referindo ao conhecimento da velha espécie, a um conhecimento que é representacional. Se alguém interpreta Piaget de forma coerente, chega à conclusão de que isto só é possível modificando o conceito do que é conhecer e do que é conhecimento, e esta modificação implica passar do representacional ao adaptativo. De acordo com esta nova perspectiva, então, o conhecimento não nos brinda uma representação de um mundo independente, e sim, melhor dizendo, um mapa que se pode fazer no ambiente no qual se tiveram experiências [VON GLASERSFELD, 1996, p. 79].

Se o conhecimento é adaptação, então é preciso esclarecer em que consiste a adaptação:

O conceito de adaptação se origina da biologia e indica um relacionamento específico entre organismos vivos ou espécies, e seu ambiente. Dizer que eles são adaptados significa nada menos mas também nada mais do que terem sido capazes de sobreviver em meio às condições e restrições do mundo em que por acaso estão vivendo. Em outras palavras, eles conseguiram fazer evoluir uma forma de ajuste ou, como prefiro dizer, suas características físicas e seus modos de comportamento provaram, até o momento, serem viáveis no seu meio ambiente [VON GLASERSFELD, 1998, p. 20].

Note-se que o autor assinalou o elemento de casualidade nas relações entre organismo e meio ambiente. O organismo “por acaso” está inserido em determinado ambiente. Em outra passagem esse autor afirma que também é casual o fato de esse organismo ser ou não viável naquele meio ambiente:

Segundo a teoria de Darwin, o organismo tem uma forma físicae uma modalidade de comportamento que encaixam no ambiente em que lhe toca viver. Como todos sabem, no sentido darwiniano do termo, a adaptação biológica não é uma atividade dos organismos ou das espécies, mas um estado de coisas: tudo o que tem possibilidade de sobreviver num determinado ambiente “tem adaptação” com respeito a ele. [...] Em princípio, ter “encaixe” significa ser capaz de

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sobreviver. É esta a rela-

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ção de encaixe num conjunto de limitações que chamamos derelação de “viabilidade”. Os organismos, por exemplo, são viáveis se se organizam para sobreviver apesar das limitações que o meio impõe à sua vida e à sua reprodução. Não se trata, pois, de uma relação de representação, mas de uma relação de encaixe em determinadas circunstâncias [VON GLASERSFELD, 1996, pp. 78-79].

As conseqüências ideológicas desse tipo de raciocínio são bastante sérias. O conhecimento humano resultaria, nesse caso, desse processo puramente casual, pelo qual os indivíduos se encaixam no meio ambiente que lhes tocou viver e no qual devem sobreviver. O conhecimento não resulta de um esforço por representar corretamente a realidade para então transformá-la, mas sim da adaptação ao meio tal como ele é. Não podemos deixar de perguntar: nessa perspectiva, o que ocorre com os indivíduos quando eles não se encaixam no meio social imediato, tal como este se apresenta a esses indivíduos e em particular num contexto social de relações sociais alienadas e alienantes? Essa pergunta é aqui puramente provocativa pois ela não tem sentido no escopo do construtivismo radical, já que respondê-la significaria admitir a possibilidade de afirmar algo sobre o que a realidade é (por exemplo, afirmar que a realidade da sociedade capitalista é alienada e alienante) e tal possibilidade é negada pelo construtivismo radical.

A eliminação da ontologia no construtivismo, operada através da eliminação da questão da verdade e da questão do quanto o conhecimento representaria uma realidade objetivamente existente, é radicalizada, levando Von Glasersfeld a fazer a seguinte leitura do que seja, em Piaget, a interação entre sujeito e objeto:

[...] na teoria construtivista de Piaget não se pode extrair conclusões sobre o caráter do mundo real, da adaptatividade de um organismo ou da viabilidade dos esquemas de ação. Em sua visão, o que nós vemos, ouvimos e sentimos – ou seja, nosso mundo sensorial – é o resultado das nossas

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próprias atividades perceptivas e, portanto, específico dos nossos modos de perceber e conceber. O conhecimento, para ele, surge de ações e da reflexão do agente sobre elas. As ações ocorrem em um ambiente e são embasadas em objetos – e a eles dirigidas – que

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constituem o mundo experiencial do organismo, não em coisas que tenham, por si mesmas, uma existência independente. Portanto, quando Piaget fala de interação, isso não explica um organismo que interage com objetos como eles realmente são, mas antes, um sujeito cognitivo que está lidando com estruturas perceptivas e conceituais anteriormente construídas [VON GLASERSFELD, 1998, pp. 20-21].

Poderíamos então dizer que o sujeito interage com seus construtos sobre o mundo (recordamos a passagem de Hobsbawm citada no início deste artigo) e que os resultados positivos ou negativos de suas ações nada dizem sobre o quanto esses construtos seriam verdadeiros, mas apenas o quanto eles mostraram-se viáveis ou não. Por essa razão Von Glasersfeld vê a concepção construtivista como um reconhecimento do argumento defendido pelos céticos pré-socráticos que, segundo o autor em pauta, seria um argumento “logicamente irrebatível” (VON GLASERSFELD, 1996, p. 77). Tal argumento, que aproximaria o construtivismo e os céticos pré-socráticos, seria o seguinte:

Os céticos sustentavam que o que chegamos a conhecer passa por nosso sistema sensorial e o nosso sistema conceitual, e nos brinda com um quadro ou imagem, mas, quando queremos saber se esse quadro ou imagem é correto, se é uma imagem verdadeira de um mundo externo, o que vemos é visto de novo, através de nosso sistema sensorial e nosso sistema conceitual. Fomos apanhados, pois, num paradoxo. Queremos acreditar que somos capazes de conhecer algo sobre o mundo externo, mas jamais poderemos dizer se tal conhecimento é ou não verdadeiro, já que, para estabelecer esta verdade, deveríamos fazer uma comparação que simplesmente não podemos fazer. Não temos maneira de chegar ao mundo externo senão através de nossa experiência dele; e, ao ter essa experiência, podemos cometer os mesmos erros; por mais que o víssemos corretamente, não teríamos como saber que nossa visão é correta [VON GLASERSFELD, 1996, p. 77].

Como nunca seria possível saber se nossa visão da realidadeé correta ou não, mas apenas verificar, de forma pragmática, se

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elaé viável ou não, se ela é útil ou não, Von Glasersfeld, de maneira

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coerente, afirma que, se fosse possível, os construtivistas jamaisdeveriam afirmar que “algo é” mas sempre apenas afirmar que“percebo algo como”, sendo tal percepção decorrente das experiências individuais (idem, p. 82). Esse autor chega a lamentar que nossos idiomas não nos permitam prescindir do uso do verbo ser. Quando afirmamos “isto é um copo” haveria, nessa afirmação, uma ambigüidade, pois, embora alguém só possa afirmar algo sobre o copo a partir de suas próprias experiências, a afirmação “isto é um copo” poderia, segundo Von Glasersfeld, produzir no interlocutor a compreensão equivocada de que se estivesse afirmando que o copo existisse “como uma entidade independente da experiência de outrem” (idem, p. 82). Em outras palavras, jamais poderíamos afirmar “isto é um copo”, mas sim afirmar algo mais ou menos assim: a partir de minhas experiências anteriores, a imagem que mentalmente construo sobre este objeto que vejo à minha frente é a de um copo.

Essa concepção gera conseqüências também para a comunicação entre os indivíduos. Se o indivíduo não poderá jamais saber se sua imagem da realidade exterior é ou não verdadeira, esse problema aparece também em relação ao que diz outro indivíduo, ou seja, um determinado indivíduo, chamemos de indivíduo A, jamais poderá saber se a imagem que ele constrói sobre o que disse o indivíduo B corresponde ou não à imagem que o indivíduo B tentou expressar através da linguagem. Por essa razão Von Glasersfeld critica aqueles que falam em significados partilhados ou compartilhados:

As estruturas conceituais que constituem significados ou conhecimentos não são entidades que poderiam ser usadas alternativamente por indivíduos diferentes. Elas são construtos que cada usuário tem que construir para si mesmo. E porque são construtos individuais, jamais se pode dizer se uma ou duas pessoas produziram o mesmo construto. No máximo podemos observar que em um determinado número de situações, seus construtos parecem funcionar da mesma forma, ou seja, eles parecem compatíveis. Por isso, os que estão enfatizando a dimensão social da linguagem e do conhecimento deveriam usar a expressão de Paul Cobb taken-

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as-shared (tido-como-partilha-

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do), que acentua o aspecto subjetivo da situação. Pois é uma coisa afirmar que, no que se refere à experiência da pessoa, o sentido que os outros atribuem a uma palavra parece ser compatível com a nossa própria, mas uma outra bem diferente supõe que ele tem que ser o mesmo [VON GLASERSFELD, 1998, pp. 21-22].

Por falar em Paul Cobb, há um artigo desse autor na mesma coletânea na qual se encontra um dos artigos de Von Glasersfeld por nós aqui utilizados, coletânea essa intitulada Construtivismo: teoria, perspectivas e práticas pedagógicas (FOSNOT, 1998). Nesse artigo, Paul Cobb defende ser possível, adotando-se uma atitude pragmática (ele defende a adoção dessa atitude), conciliar as abordagens que ele chama de “sociocultural” e “cognitivo-construtivista”. Essa segunda abordagem seria a defendida por Ernest von Glasersfeld, entre outros, e, segundo Paul Cobb, ela caracterizar-se-ia como uma abordagem instrumentalista do conhecimento e estaria próxima aos filósofos neopragmáticos contemporâneos como R. Rorty, R.J. Bernstein e H. Putnam (COBB, 1998, p. 54). Quanto às implicações, para a educação, da abordagem epistemológica de Von Glasersfeld, algumas delas são explicitadas pelo próprio autor (VON GLASERSFELD, 1998, pp. 21-23).

Em primeiro lugar seria necessário abandonar a “suposição ingênua de que o que nós mesmos percebemos e inferimos das nossas percepções está presente, pré-fabricado, para que os estudantes captem, se apenas tiverem a vontade de fazê-lo”. Essa é uma conseqüência lógica evidente da concepção epistemológica construtivista acima apresentada. Se os construtos mentais são sempre essencialmente individuais e subjetivos, se o sujeito nunca poderia fazer afirmações sobre a realidade exterior ao seu pensamento, então o professor não pode partir do pressuposto de que a representação que ele detém sobre algo possa ser conhecida de forma objetiva por seus alunos. O máximo que o professor pode fazer é criar as condições para que os alunos construam suas próprias representações sobre algo de tal maneira que, num determinado

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momento do processo educativo (seria melhor dizer construtivo), professor e aluno chegassem à conclusão de que acreditam estar partilhando significados semelhantes sobre algo.

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Em segundo lugar o professor precisa tentar construir “ummodelo hipotético dos mundos conceituais particulares dos estudantes, com os quais eles estão se defrontando”. Em outras palavras, o professor não pode esquecer nunca que os estudantes não estão se defrontando com o ambiente educativo fornecido pela escola, mas sim com seus construtos conceituais particulares sobre esse ambiente. Então o professor – que, evidentemente, não pode ter a pretensão de vir a conhecer esses construtos individuais – deve construir modelos hipotéticos sobre como ele acredita que seriam esses construtos. Lembremos que não faz sentido, na perspectiva construtivista radical, perguntar se esses modelos hipotéticos do professor são corretos ou não, mas sim apenas verificar, na prática, se eles tornam a ação docente viável ou não.

Em terceiro lugar, a concepção epistemológica do construtivismo radical levaria o professor a conceber de maneira diferente o papel da linguagem no processo educativo. Ela não seria vista como instrumento de transmissão de significados, não como instrumento de transmissão de conhecimentos, mas como instrumento para oferecer aos alunos oportunidades e incentivos para a construção de seu conhecimento individual.

Um ponto que merece ser aqui mencionado é a posição de Von Glasersfeld sobre o conhecimento racional e o conhecimento místico. Para esse autor, a concepção construtivista, ao estabelecer uma separação entre epistemologia e ontologia, isto é, ao limitar-se a falar sobre o conhecimento e a nada declarar sobre a realidade objetiva, estabelece também uma separação entre o conhecimento racional e o conhecimento místico (VON GLASERSFELD, 1996, pp. 77-78). A ciência construiria modelos racionais a partir da experiência humana e toda a discussão científica teria como objeto esses modelos e não a realidade exterior. É curioso que, em apoio a essa idéia, Von Glasersfeld apresente como exemplo a atitude de um cardeal católico perante o processo contra Galileu, no período da Inquisição:

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Como sabemos, Galileu foi acusado de heresia pelo Vaticano porque seu modelo do sistema planetário não era aquele que o Vaticano queria que fosse verdadeiro. Naquele tempo, o car-

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deal Bellarmino tentou advertir ao acusado sobre o que poderia suceder. Bellarmino, que havia sido o fiscal no processo contra Giordano Bruno, era um homem muito civilizado e, ainda que católico devoto, pensava que era uma lástima que alguns dos homens mais inteligentes de sua época tivessem que morrer na fogueira. Escreveu uma carta a um amigo de Galileu, dizendolhe que este deveria ser prudente e falar sempre em sentido hipotético, apresentando suas teorias como se fossem imaginadas para fazer cálculos e previsões, mas não como se fossem a descrição da obra de Deus. Este foi o começo da cisão entre o que eu chamaria de conhecimento racional e conhecimento místico [idem, p. 77].

Ou seja, caberia à ciência, ao pensamento racional, falar apenas sobre os modelos que constrói, a partir da experiência humana e não falar sobre o mundo objetivo, sobre “a obra de Deus”. Quem poderia falar sobre esse mundo seria o conhecimento místico. Mais do que depressa Von Glasersfeld esclarece que, ao separar conhecimento racional e conhecimento místico, não pretende estabelecer nenhuma valorização maior do pensamento racional:

[...] alguns suporiam que estivesse fazendo uma valorização, que valorizo o místico em menor grau que o racional. Não é assim. Neste sentido, atenho-me ao que disse o primeiro construtivista,o filósofo italiano Giambattista Vico, que opôs o conhecimento por via da razão ao conhecimento por via da “imaginação poética”, mas sem questionar o valor de nenhum dos dois. No princípio do século XVIII, Vico escreveu uma tese denominada “De Antiquissima Italorum Sapientia”, que é o primeiro manifesto construtivista, já que, referindo-se ao mundo real, ele disse bem claramente que os seres humanos só podem conhecer o que eles mesmos criaram. Cristalizou isto numa bela fórmula ao expressar que Deus é o “artíficie do mundo”, e o homem, “o deus dos artefatos” [VON GLASERSFELD, 1996, p. 78].

O conhecimento racional poderia apenas falar sobre os artefatos criados pela mente humana e não sobre o mundo. Na

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verdade, o autor em pauta acaba sim por valorar de forma distinta o pensamento racional e o pensamento místico, mas atribuindo uma superioridade a este segundo, dadas as enormes limitações que

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impõe ao pensamento racional, que nada pode dizer sobre o mundo objetivo. E o próprio autor dá testemunho desse fato:

[...] permita-me expor que estou totalmente preparado para acreditar que os bebês, desde que nascem, têm uma relação especial com suas mamães. Mas esta não é uma relação racional. Não é uma relação na qual eu possa, de alguma maneira, captar racionalidade. Na minha opinião, isso faz parte de um enorme entorno místico no qual vivemos; o ambiente é basicamente místico. Não sei como é este mundo. Tem todo tipo de formas e sentidos que não posso capturar racionalmente [VON GLASERSFELD, 1996, p. 87].

Assim, o construtivismo de Von Glasersfeld é radical em sua recusa em focalizar outra coisa que não sejam os modelos construídos pela mente humana. O conhecimento racional nada pode dizer sobre o mundo, sobre “a obra de Deus”. Apenas o conhecimento místico pode dizer algo sobre o mundo no qual vivem os homens. Assim reduzido, o conhecimento racional não pode, para Von Glasersfeld, fundamentar nenhum tipo de ética. Ao ser questionado sobre a questão dos propósitos ou objetivos que levariam as pessoas a agirem e a se adaptarem ao meio, Von Glasersfeld expõe suas idéias sobre a questão da ética na ótica do construtivismo radical:

Como ocorre seguidamente, sou obrigado a referir-me à ética, porque a escolha de propósitos mediante os quais operamos é, em definitivo, uma questão ética. Tudo o que posso dizer é que, se olharmos a história do meu ponto de vista, jamais alguma das teorias filosóficas racionais – desde os pré-socráticos – foi capaz de formular a base para uma ética. Esforçam-se muito, mas por fim fracassam porque são magníficas teorias se concordarmos previamente com os valores básicos que elas propunham, mas não há maneira de justificar esses valores racionalmente. Penso que isto pertence ao que denomino mundo místico – que, a longo prazo, é muito mais importante que o racional [...] Mas creio também que a maioria das pessoas que cresceram e se desenvolveram no mundo ocidental deve chegar por meio da razão, deve esgotar a razão a partir de dentro antes de poder provar algo diferente [VON GLASERSFELD, 1996, p. 85].

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As conseqüências, para a educação, de tal separação entre razão e ética são decisivas. Nenhuma educação pode deixar de guiar-se por valores, mas, para o autor em pauta, o estabelecimento desses valores não é um processo racional. Ao mesmo tempo nós, os ocidentais, deveríamos ir às últimas conseqüências dessa pobre e impotente razão para, um dia, sermos capazes de vivenciar o conhecimento nas suas formas místicas. É claro que uma racionalidade tão pobre, a qual não passa de um instrumento da “viabilidade” de um ser vivo, não poderia fundamentar uma ética. Esta só pode ser fundamentada racionalmente por uma filosofia que não separe ontologia e epistemologia e que construa uma concepção do homem como um ser social e, portanto, histórico. Mas até mesmo Von Glasersfeld admite que não pode levar seu solipsismo às últimas conseqüências e acaba tentando encontrar em seu construtivismo algum espaço para o interesse do indivíduo em outras pessoas:

Em benefício do construtivismo, gostaria de dizer que desenvolvio conceito de viabilidade de tal maneira que alcancei um segundo nível – que denomino viabilidade de ordem superior – que incluia construção dos outros e aquilo que eles construíram. No cons-trutivismo, há um elemento social e, adotando-se esta maneira de pensar sobre o conhecimento, os outros se tornam importantes. Necessitamos dos outros para confirmar algumas das coisas que construímos. Ao fazer isto, o construtivismo fornece ao menos um fundamento, que é mais do que outras teorias racionais do conhecimento e a ética têm feito, já que elas têm grande dificuldade, desde o princípio, para estabelecer por que se deveria estar interessado em outras pessoas. Sem dúvida, de nenhuma forma espero que o construtivismo possa formular preceitos ou regras éticas particulares [VON GLASERSFELD, 1996, p. 85].

Chega a ser heróica a tentativa de Von Glasersfeld em buscar, no interior de sua teoria, um motivo para que o indivíduo se interesse por outras pessoas: esse interesse decorreria da necessidade que esse indivíduo teria por vezes de confirmação de algumas de suas construções cognitivas. E o autor considera que isso é mais do que toda a filosofia e a ciência conseguiram

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até hoje avançar na tentativa de justificar racionalmente o interesse de um ser humano por outro ser humano!

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Neste ponto retomamos o início de nosso texto. As aproximações entre o pensamento de Von Glasersfeld e o pós-modernismo são por demais evidentes. Mas a questão é a de se esse autor constitui um caso isolado, se sua leitura da epistemologia piagetiana seria apenas um equívoco ou se o pensamento de Von Glasersfeld seriaa radicalização de tendências irracionalistas presentes na própria epistemologia piagetiana. A teoria de Piaget dá ou não sustentação a esse construtivismo radical? Nosso objetivo com este artigo, como dissemos, é o de instigar o debate sobre essas questões. E, dando início ao debate, lembramos que, na passagem anteriormente citada, o autor aqui analisado afirmou o seguinte: “de forma nenhuma espero que o construtivismo possa formular preceitos ou regras éticas particulares”. O construtivismo seria, portanto, neutro em relação aos valores, às crenças e às ideologias?

O já aqui mencionado construtivista espanhol Juan Delval assim responde a essa questão:

A escola deve permanecer afastada de todo o dogmatismo, poisa ciência é uma construção humana em permanente revisão e em aprimoramento constante e é assim que as crianças devementendê-la; as religiões devem ser abordadas como fenômenos históricos e sociais e situadas em seu contexto sem apresentar uma como a verdadeira; os sistemas políticos devem ser abordados da mesma forma e os jovens devem ser ensinados sobre eles, a avaliá-los, a analisar suas características e as vantagens e inconvenientes de cada um deles. O que deve ser transmitido são esses valores comuns, essas aspirações compartilhadas, como o sentido de liberdade, de justiça, de cooperação, de fraternidade, etc., que são idéias ou processos, mais do que conquistas definitivas e permanentes, aspirações que regulamentam a conduta positiva dos indivíduos [DELVAL, 1998, pp. 48-49].

As contradições e inconsistências do raciocínio desse autor são muitas e saltam aos olhos. Tomemos o exemplo do ensino de religião. O autor diz que as religiões devem ser abordadas como fenômenos históricos e sociais e nenhuma em particular deve ser apresentada como a verdadeira. Entretanto, isso

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exigiria que as religiões fossem analisadas a partir de uma ótica não-religiosa, uma ótica externa a todas as religiões. Mas para que alguém adote essa

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ótica, é necessário que sejam postos em questão os valores absolutos de cada uma e de todas as religiões. Em última instância, trata-se de questionar a própria existência de um ser divino ou de seres divinos. Ora, a existência de um deus ou de deuses é um dogma para as religiões. As religiões são dogmáticas. Como é possível ensinar religião sem crer em nenhum dogma em particular? O exemplo dos sistemas políticos não é menos problemático. Segundo o autor, eles devem ser ensinados da mesma forma adotada para o ensino das religiões, apresentando-se as vantagens e os inconvenientes de cada um. Mas quando o autor referiu-se ao ensino de religião não falou em vantagens e inconvenientes de cada religião, pois, obviamente, isso seria, no mínimo, insólito. Então, não cabe dizer que se deva ensinar sobre os sistemas políticos da mesma forma que se ensinaria religião. Parafraseando as palavras de Hobsbawm citadas no início deste artigo, perguntamos se uma escola construtivista, ao abordar os sistemas políticos, apresentaria aos seus alunos as vantagens e os inconvenientes do nazismo, da democracia representativa liberal, do comunismo, da ditadura militar no Brasil pós-64 etc., sem apresentar nenhum sistema como o melhor. Ou será que o modelo político ideal do autor não seria justamente o da democracia representativa liberal, que estaria implícito a essa concepção de escola? Em que o autor se apóia para considerar universais e indiscutíveis valores como liberdade, justiça, cooperação, fraternidade “etc.”? É curioso que ao listar valores pretensamente universais o autor utilize tranqüilamente o “etc.”. Além do mais, o educador não terá que definir o que entende, por exemplo, por liberdade e, ao fazer isso, não se posicionará em defesa de condições concretas para a liberdade e de formas também concretas de liberdade? Ele não terá, por exemplo, de posicionar-se sobre a tão propalada liberdade de mercado? Para encerrar este artigo, e ainda considerando a posição de Ernest Von Glasersfeld, sobre o fato de o construtivismo não poder apoiar nenhuma ética em particular, posto que isso o levaria a sair do campo do conhecimento racional e ingressar no campo do conhecimento místico, apresentaremos uma passagem onde Piaget, analisando as

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relações entre os dados psicológicos e os procedimentos da educação moral, faz a seguinte afirmação:

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Por último, podemos considerar, por uma legítima abstração,que o fim da educação moral é constituir personalidades autônomas aptas à cooperação; se desejarmos, ao contrário, fazer de uma criança um ser submisso, durante toda a sua existência, à coação exterior, qualquer que seja ela, será suficiente fazer o contrário do que diremos a seguir. Não nos cabe discutir aqui os fins da educação moral, mas somente classificá-los, para saber a que resultados conduzem os diferentes procedimentos pedagógicos que agora vamos estudar. Pela mesma razão, não temos de nos posicionar entre uma moral religiosa e uma moral laica: tanto numa como na outra encontram-se traços pertencentes à moral do respeito unilateral e outros pertencentes à moral da cooperação. Só difere a “motivação”. Propomo-nos, assim, a situar a discussão num terreno suficientemente objetivo e psicológico para que qualquer um, sejam quais forem os fins a que se propõe, possa utilizar nossa análise [PIAGET, 1998, pp. 32-33].

Até que ponto essa posição de Piaget se aproximaria ou se distanciaria da posição de Von Glasersfeld? Esse é um debate que está ainda por ser travado entre os educadores brasileiros.

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