SOBREVIVÊNCIA E RENOVAÇÃO: ESOPO, FEDRO E · Esopo seria um companheiro de servidão ... em sua...

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Esta obra utiliza uma licença Creative Commons CC BY: https://creativecommons.org/lice http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2018v38n2p97 SOBREVIVÊNCIA E RENOVAÇÃO: ESOPO, FEDRO E LA FONTAINE Juan Manuel Terenzi Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, Santa Catarina, Brasil Telma Scherer Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes Florianópolis, Santa Catarina, Brasil Resumo: Este artigo aborda o percurso de três fábulas atribuídas a Esopo, e que foram traduzidas ao latim por Fedro e ao francês por La Fontaine. Inicialmente, efetuamos um breve percurso histórico a fim de acompanhar o nascimento desse gênero já na Antiguidade. Em seguida, nos dedicamos à análise das fábulas “A raposa e as uvas”, “O cão e o pedaço de carne” e “A raposa e a máscara” nas três línguas, com o intuito de verificar possí- veis continuidades e mudanças que renovam a persistência do gênero nas diversas temporalidades. Palavras-chaves: Esopo; Fedro; La Fontaine SURVIVAL AND RENEWAL: AESOP, PHAEDRUS AND LA FONTAINE Abstract: This article accompanies the path of three fables credited to Aesop that were translated to Latin by Phaedrus and to French by La Fontaine. First, we make a brief historical course to accompany the birth of this genre in Antiquity. Then, we analyze all the chosen fables: “The fox and the grapes”, “The dog and the shadow”, “The fox and the masque” in all three languages, in order to identify possible continuities and changes that renew the persistency of this genre at different times. Keywords: Aesop; Phaedrus; La Fontaine

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  • Esta obra utiliza uma licena Creative Commons CC BY:https://creativecommons.org/lice

    http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2018v38n2p97

    SOBREVIVNCIA E RENOVAO: ESOPO, FEDRO ELA FONTAINE

    Juan Manuel TerenziUniversidade Federal de Santa Catarina

    Florianpolis, Santa Catarina, Brasil

    Telma SchererUniversidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes

    Florianpolis, Santa Catarina, Brasil

    Resumo: Este artigo aborda o percurso de trs fbulas atribudas a Esopo, e que foram traduzidas ao latim por Fedro e ao francs por La Fontaine. Inicialmente, efetuamos um breve percurso histrico a fim de acompanhar o nascimento desse gnero j na Antiguidade. Em seguida, nos dedicamos anlise das fbulas A raposa e as uvas, O co e o pedao de carne e A raposa e a mscara nas trs lnguas, com o intuito de verificar poss-veis continuidades e mudanas que renovam a persistncia do gnero nas diversas temporalidades. Palavras-chaves: Esopo; Fedro; La Fontaine

    SURVIVAL AND RENEWAL: AESOP, PHAEDRUS AND LA FONTAINE

    Abstract: This article accompanies the path of three fables credited to Aesop that were translated to Latin by Phaedrus and to French by La Fontaine. First, we make a brief historical course to accompany the birth of this genre in Antiquity. Then, we analyze all the chosen fables: The fox and the grapes, The dog and the shadow, The fox and the masque in all three languages, in order to identify possible continuities and changes that renew the persistency of this genre at different times.Keywords: Aesop; Phaedrus; La Fontaine

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    Atribui-se a Hesodo a primeira fbula do Ocidente, inserida em Os trabalhos e os dias (202-212)1 em um momento crucial da narrativa, em que se discute sobre o papel da justia. A pa-lavra utilizada por Hesodo para designar a histria do rouxinol () e do gavio () , que significa um discurso importante, conto ou provrbio. Contudo, o conjunto de fbulas que versam sobre os mais diversos animais, e inclusive rvores, so imputadas a Esopo (por volta do sculo VII a.C.), e ainda hoje sobrevivem no imaginrio dos mais diversos povos. Se a Ilada e a Odisseia so consideradas como frutos da atividade potica de Homero um aedo cego que oralmente transmitia os feitos ocorridos antes, durante e aps a guerra de Troia as f-bulas gregas s quais estamos aqui nos referindo, foram confe-ridas a Esopo, apesar de ele, provavelmente, jamais ter escrito uma s linha delas, sendo a transmisso oral o instrumento para sua longevidade.

    Fontes provenientes da Grcia Antiga, como Herdoto, Aris-tteles, Plato, Aristfanes e Demcrito referem-se ao seu nome, indicando-o como origem das fbulas. O primeiro, afirma no livro II de suas Histrias que ele fora escravo de um filsofo cujo nome era Xanto, proveniente de Samos. Da mesma fonte, lemos que sua morte fora violenta, tendo sido linchado pelo povo de Del-fos, provavelmente em virtude de seu sarcasmo. Por seu turno, Aristteles na Retrica relata que ele discursara na Assembleia de Samos defendendo um demagogo. Enquanto Plato, no dilogo F-don, e Aristfanes, na comdia As aves (471), citam de passagem

    1 Agora uma fbula () falo aos reis mesmo que isso saibam./Assim disse o gavio () ao rouxinol () de colorido colo/No muito alto das nuvens levando-o cravado nas garras;/Ele miservel varado todo por recurvadas garras/Gemia enquanto o outro prepotente ia lhe dizendo:/Desafortunado, o que gritas? Tem a ti um bem mais forte;/Tu irs por onde eu te levar, mesmo sendo bom cantor ();/Alimento, se quiser, de ti farei ou at te soltarei./Insensato () quem com mais fortes queira medir-se/De vitria privado e sofre, alm de penas, vexame.(.). In: HESODO. Os trabalhos e os dias. Traduo, introduo e comentrios de Mary de Camargo Neves Lafer. So Paulo: Ilumi-nuras, 2006, pp. 34, 37.

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    seu nome2. Finalmente, Demcrito faz referncia fbula do co que carrega entre os dentes um pedao de carne, uma das fbulas que iremos analisar aqui. Eis o fragmento do filsofo: El deseo () de (tener) ms pierde lo presente (), a seme-janza del perro de Esopo.3

    Todas estas referncias fazem com que o nome de Esopo ga-nhe fora e identifique o papel desempenhado pelo conjunto de suas fbulas, estando vinculadas, sobretudo, com a paideia grega, da mesma maneira que os versos homricos. Ao longo dos anos, as fbulas foram sendo associadas com seu aspecto moral apenas. Figura to incerta como a grande maioria proveniente de tempos

    2 Em relao a Herdoto, podemos ler nas ltimas frases do captulo 134 do livro II que Esopo seria um companheiro de servido () de Rdope, a qual mais tarde seria comprada por Xanto para ir servir no Egito, embora rapidamente fosse libertada pelo irmo da poeta Safo (cf. Herdoto, livro II, cap. 135). Herdoto refere tambm que ele era um compositor de histrias () do substantivo . Quanto ao fato de Esopo ter tido uma morte violenta em Delfos, lemos no desfecho do captulo 134 que por meio de um orculo () os delfos deram morte a Esopo, mas a informao sucinta e nada mais acrescenta-se a respeito deste fato terrvel. Em Plato, a meno ao fabulista rpida tambm. Logo no incio do dilogo Fdon (60c-61b), ao discorrer sobre o prazer () e a dor (), Scrates afirma que tal debate seria caro a Esopo, e este teria criado uma fbula (). Poucas linhas adiante, Cebes interrompe Scrates dizendo que este transpusera para o metro cantado os contos () de Esopo. Importante destacar aqui a palavra lgos, a qual muitas vezes, alternando com mythos, est marcada no eplogo das fbulas. A ltima apario do nome de Esopo neste dilogo uma passagem belssima, quando Scrates afirma que para poder vir a ser poeta () no basta que ele saiba escrever em versos, mas tambm ser apto a inventar fices (), literalmente criar mitos e no lgos. Aristteles, no captulo 20 do livro II da Retrica, utiliza a palavra lgos para designar as fbulas escritas por Esopo (), e nos relata uma fbula que Esopo teria utilizado para defender um lder popular ( ). A fbula retrata uma raposa que ao atravessar um rio fica presa num buraco rochoso, e com o tempo fica infestada de pulgas. Um ourio, vendo a situao desagradvel da raposa, decide ajud-la, oferecendo-se para retirar as pulgas. A raposa nega a ajuda, afirmando que aquelas pulgas j esto fartas dela, e se as retirasse, novas pulgas viriam sugar-lhe o sangue. Aristfanes, na comdia As aves, menciona o nome de Esopo em duas ocasies (471 e 651), na primeira delas chamando seu interlocutor de ignorante () por no conhecer a fbula de Esopo sobre a cotovia (), e na segunda para chamar a ateno entre a aliana que a raposa trava com a guia, convidando seu interlocutor a prestar ateno na fbula (,). Novamente, vemos aqui a palavra lgos.3 FILSOFOS PRESOCRTICOS. Fragmentos II. Traduccin de Ramn Cornavaca. Bue-nos Aires: Losada, 2009, p. 461.

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    remotos, Esopo identificado diretamente com as fbulas, restan-do praticamente nula qualquer informao sobre sua vida pessoal, como lemos nesta passagem escrita por Chambry na introduo sua traduo:

    On sait que chez les Grecs tout genre littraire devait avoir un inventeur, un . Il en fallait un la fable comme aux autres genres: dfaut dun inventeur authentique, nen a-t-on pas imagin un faux? En tout cas, il sest rencontr plus dun savant pour soutenir qusope tait un nom sans realit, destine server de patron la fable.4

    Porm, o que procuramos destacar neste artigo como estas fbu-las foram se modificando e sendo traduzidas para outras lnguas. Inte-ressa-nos, principalmente, a passagem, ou recontextualizao destas fbulas, para o universo latino atravs de Fedro, e para o universo francs do sculo XVII com La Fontaine, o qual ainda lhe rende uma bela homenagem ao escrever uma biografia sobre sua pessoa.

    Existe a hiptese de que o prprio nome de Esopo seria originrio da palavra etope, utilizada pelos gregos para designar qualquer indivduo proveniente da frica. A controvrsia em torno de Esopo e de sua provenincia no ser discutida aqui, apesar do interesse que suscita considerando-se que muitos dos animais que aparecem nas suas fbulas eram desconhecidos no continente europeu.

    As fbulas de Esopo que estaremos utilizando, estimadas em um total de 358, so aquelas que foram recolhidas em uma edio crtica a cargo de mile Chambry, e que se concentram em um ncleo central ao qual foram sendo acrescentadas outras de diver-sas origens. As fbulas vertidas ao latim por Fedro sero retira-das da edio de Lucian Mller Phaedri Fabulae Aesopi (Fbulas Espicas de Fedro). Interessante notar, portanto, que estas fbulas

    4 SOPE (Texte tabli et traduit par mile Chambry, 1927). Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1967, p.ix.

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    latinas so devedoras diretas da fonte grega, como fica explcito j a partir do ttulo. Todavia, Fedro inventa novas fbulas, incor-porando inclusive Esopo como personagem em algumas delas5. E mais de dois mil anos depois, veremos ainda como La Fontaine lidou com a temtica das fbulas, incrementando-as no que tange ao seu recheio, denominado tecnicamente de corpo central, ape-sar de tambm ser devedor direto das fbulas atribudas a Esopo. H uma mudana em relao ao aspecto moral em La Fontaine: Em suma, com La Fontaine a retrica poetiza-se, abandonando o seu estatuto oratrio e forense para se transformar numa arte das figuras e ornamentos, onde a forma desempenha um papel deter-minante, relegando o contedo moral para segundo plano [...] 6. No entanto, a composio bsica de uma fbula prlogo, corpo central e eplogo de teor moral mantm-se praticamente intacta ao longo destes trs autores.

    Decidiu-se escolher trs fbulas que obrigatoriamente estives-sem presentes nas trs lnguas aqui abordadas grego, latim e francs , com a finalidade de observar mudanas tanto no aspecto lexical, quanto na estrutura sinttica, como ficar claro ao vermos as rimas e o contedo lingustico mais enriquecido presente nas fbulas de La Fontaine.

    Para comear, no poderamos deixar de mencionar a famosa fbula da raposa e das uvas. Vejamos, ento, como ela se apresenta em sua verso grega, lembrando que o texto estabelecido seguir sempre a edio de Chambry mencionada anteriormente:

    .

    ,,

    5 Conforme a edio de Chambry, podemos ver que o prprio Esopo tambm se coloca como personagem em pelo menos uma das suas fbulas: Esopo no estaleiro.6 NEVES, Mrcia Seabra. Fbulas na gora: De Aristteles ao sculo das Luzes. Matra-ga. Rio de Janeiro, v. 20, n33 jul./dez. 2013, p. 149.

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    . . O .7

    A primeira palavra da fbula exatamente o substantivo feminino raposa (), seguida de seu estado fsico no momento em que se desenrola a fbula. Ela est esfomeada, como bem nos mostra o particpio presente do verbo (padecer fome) e se dirige, aps v-la (), a uma vinha contendo uvas dependuradas (). A expresso em grego para a vinha ex-pressa pela preposio seguida do genitivo , sendo que o substantivo poderia ser traduzido por vitis arbustiva8 em latim, mas como veremos, Fedro reordenar para en-caixar em seus versos senrios com a expresso in vinea. Seguindo a leitura da fbula, podemos testemunhar que a raposa decide colher as uvas, mas ela no consegue (). Esta palavra, presente tambm na filosofia aristtelica, na famosa oposio ato () x potncia (). Porm, aqui ela est empregada no sentido mais simples de que a raposa no possua condies fsicas poder, fora suficientes para recolher as uvas que tanto lhe ape-teciam. Logo em seguida, a raposa efetua um movimento de retirada (), mostrando toda sua frustrao em no poder obter o alimento que satisfaria sua fome. Interessante notar que a palavra que sinaliza o movimento de retirada contm em sua construo a preposio, a mesma que estava presente quando a raposa se aproximara das uvas. Por fim, desdenhando sua impotncia, ela afir-ma que aquelas uvas estavam verdes, azedas ( .). A frase que fecha a fbula o eplogo procura dar um aspecto moral para a atitude da raposa, generalizando-a para aqueles homens () que por debilidade () no podem

    7 SOPE (Texte tabli et traduit par mile Chambry, 1927). Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1967, pp. 17, 18.8 Informao retirada do dicionrio BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Franais. Paris: Librairie Hachette, 1950, p.120.

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    () atingir seus propsitos () e respon-sabilizam as circunstncias (). Notemos a retomada da palavra ao final da fbula, relacionando esta impotncia com a debilidade de certos homens. Haveria, portanto, uma relao de causa-efeito entre e , em que a debilidade geraria a falta de potncia. Em linhas gerais, Esopo buscaria utilizar uma linguagem no muito rebuscada, contendo uma mensagem que seria quase imediata para o leitor.

    Na traduo ao latim, Fedro adverte aos seus leitores que ele adotara uma mtrica distinta visto que Esopo sequer escrevera em versos , a dos versos senrios (de seis ps) jmbicos:

    Aesopus auctor quam materiam repperit, Hanc ego polivi versibus senariis.

    Duplex libelli dos est: quod risum movet, Et quod prudenti vitam consilio monet.

    Calumniari si quis autem voluerit, Quod arbores loquantur, non tantum ferae,

    Fictis iocari nos meminerit fabulis.9

    Com isto, ele contribui para que a fbula se afirme ainda mais como gnero: Puis la fable se fait sa place part avec Phdre qui met en vers snaires les fables dsope.10 Como podemos ler na passagem que segue, este tipo de metrificao j se encontra difun-dido em Roma, principalmente no teatro latino arcaico: El senario

    9 PHAEDRUS. Fabulae Aesopiae. L. Mueller. Leipzig. B. G. Teubner. 1876. Disponvel em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0118. Acesso em 07/08/2016.Na traduo de Nicolau Firmino: Eu poli em versos senrios esta matria que o autor (= primeiro) Esopo inventou. A vantagem do livrinho dupla, (por)que move o riso (= faz rir) e porque adverte (= dirige) a vida por um conselho prudente (= assisado). Se algum, porm, quiser censurar (por) que falem (at) as rvores, (e) no somente os animais, lembre-se de que ns (nos) divertimos com narrativas fingidas (= aplogos). In: FEDRO. Traduo literal das fbulas de Fedro. Traduo de Nicolau Firmino. So Paulo: Lusitnia, 1941, p. 1.10 SOPE (Texte tabli et traduit par mile Chambry, 1927). Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1967, p.xxxi.

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    ymbico est presente en Roma mucho antes que el trmetro; es sobre todo el verso del teatro latino arcaico (tanto comedia como tragedia) [...]. En poca clsica es el verso de las fbulas de Fedro. Despus de Fedro, el senario prcticamente desaparece [...].11

    Por sua vez, o estudioso do latim Napoleo Mendes de Almei-da, em sua Gramtica Latina, explica de maneira sucinta porm, clara a caracterizao do que viria a ser o verso jmbico que encontramos na poca clssica tanto em Fedro, quanto em Sneca:

    O mais usado dos versos jmbicos o jmbico senrio, que exige o jambo [uma slaba breve seguida de uma longa, ex.: vrs] somente no 6 p; os outros ps podem ser dctilos (longa, breve, breve), espondeus (longa, longa), anapestos (breve, breve, longa), trbracos (breve, breve, breve) e, em Fedro e em Sneca, proceleusmticos (breve, breve, breve, breve); a cesura se d no meio do 2, do 3 ou do 4 p.12

    Feita esta introduo, vejamos como lemos em latim a fbula da raposa e das uvas:

    De vulpe et uva

    Fame coacta vulpes alta in vineaUvam appetebat summis saliens viribus;

    Quam tangere ut non potuit, discedens ait:Nondum matura est; nolo acerbam sumere.Qui facere quae non possunt, verbis elevant,Adscribere hoc debebunt exemplum sibi.13

    11 CECCARELLI, Lucio. Prosodia y mtrica del Latn Clsico. Con una introduccin a la mtrica griega. Traduccin de Roco Carande. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999, p. 66.12 ALMEIDA, Napoleo Mendes de. Gramtica Latina: curso nico e completo. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 430.13 PHAEDRUS. Fabulae Aesopiae. L. Mueller. Leipzig. B. G. Teubner. 1876. Disponvel em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0118%3Abook%3D4%3Apoem%3D3. Acesso em: 07/08/2016.

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    Curiosamente, a fbula vertida ao latim possui igualmente 36 palavras se considerarmos a contrao + =- , que ocorre no grego, como conformando apenas uma palavra. Fedro opta por posicionar em primeiro plano a condi-o famlica da raposa, a qual estava coagida pela fome (fame coacta) e j antecipa o lugar em que as uvas se encontram (alta in vinea). A raposa, com todas as suas foras, ou melhor, com as mximas foras (summis viribus) saltava (saliens, literalmente saltando ou que saltava) a fim de obter as uvas apetitosas (uvam appetebat). No latim utiliza-se o acusativo singular, pois o substantivo uva,-ae tambm se refere videira.

    Podemos perceber que em Fedro aparece com mais clareza o esforo empreendido pela raposa atravs do emprego do verbo salio,-ire (saltar) no particpio presente, aqui podendo ser traduzi-do para o gerndio saltando. A fbula segue tal como no grego, ela intenta agarrar as uvas (tangere), no consegue (non potuit) o grego tambm enfatizava a condio impotente da mesma (-), como havamos dito anteriormente e se retira (discedens). No entanto, a fala da raposa em latim mais eloquente, visto que ela utiliza duas palavras para descrever a falsa condio das uvas (nondum matura est e acerbam). Como, devido a sua impotncia, no as consegue colher (sumere), a raposa afirma que as uvas ain-da no se encontram maduras, e que por esse motivo ela no as deseja comer. Os ltimos dois versos esto dedicados ao contedo moral da fbula, quando se afirma que ela (hoc exemplum) deve (debebunt, aqui o futuro simples pode ser traduzido no presente devem) ser tida como exemplo para aqueles (qui) que desprezam com palavras (verbis elevant) o que no esto aptos a conseguir (facere quae non possunt). Ou seja, o carter reflexivo da moral (adscribere ... sibi) para os prprios impotentes deveria ser tida em considerao como um exerccio.

    Analisando agora a passagem desta fbula para os versos de La Fontaine, confirmaremos aquilo que destacvamos acima, de que a retrica poetiza-se, isto , a ars predomina sobre a utilitas. Se em Fedro j h um trabalho maior com a sintaxe, na verdade

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    vimos que se trata de uma inteno dupla: mover ao riso (quod ri-sum movet) e adverte a vida com um conselho prudente (quod pru-denti vitam consilio monet), veremos que La Fontaine pule ainda mais a lngua, e nas suas palavras, procura dar um tom mais alegre (gaiet) e teatral s fbulas, tornando-as, por assim dizer, novas. Trata-se da fbula mais curta que o francs escreveu:

    Le renard et les raisins

    Certain Renard gascon, dautres disent normand, Mourant presque de faim, vit au haut dune treille

    Des raisins mrs apparemment, Et couverts dune peau vermeille.

    Le Galand en eut fait volontiers un repas; Mais comme il ny pouvait point atteindre:

    Ils sont trop verts, dit-il, et bons pour des goujats. Fit-il pas mieux que de se plaindre?14

    Percebe-se, desde o primeiro verso, que a raposa grega () ou latina (vulpes) adquire novas qualidades, com tonali-dades autctones marcadas. uma raposa proveniente da regio da Gascnia (Certain Renard gascon) sudoeste da Frana, fronteira com o pas basco na Espanha , porm, dizem (dautres disent) que ela da Normandia (normand) localizada no noroeste. Os dois versos que seguem so muito prximos dos que j lemos em grego e latim, pois a raposa v certas uvas (des raisins) que pare-cem maduras (mrs), enfatizando sua condio madura no quarto verso ao ser dito que elas esto cobertas de uma casca vermelha (peau vermeille). Mais um epteto conferido raposa, chamada de galante (Galand), e o verbo em francs empregado aqui para mostrar a impotncia da raposa em capturar aquelas uvas muito prximo ao usado em latim, pouvoir. Ela no consegue alcanar

    14 LA FONTAINE, Jean de. Fables. Paris: Flammarion, 1995, p. 32.

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    as uvas (il ny pouvait point atteindre), e diz que elas esto muito verdes (trop verts). No entanto, a raposa no se contenta em dizer que elas esto verdes, como as raposas de Esopo e Fedro, visto que ela acrescenta uma colocao que hoje soaria preconceituosa: elas so boas para os cabos (goujats15) no mbito militar que teriam um paladar grosseiro. E finaliza interrogando ao leitor se a sua atitude no tinha sido melhor (Fit-il pas mieux) do que simples-mente lamentar-se (se plaindre). Os versos seguem um esquema de rimas ABAB/CDCD, ornamentando o contedo moral da fbula com uma linguagem rica em sonoridade.

    A prxima fbula que vamos analisar aquela que Demcrito inserira entre seus escritos morais no fragmento citado anterior-mente sobre o co que carrega um pedao carne:

    , . . ,,,,..16

    A fbula inicia com uma cadela17 () que atravessava um rio () com um pedao de carne (). Essas pa-lavras esto em ntimo contato, uma seguida da outra cadela e carne. Ao ver seu reflexo () na gua, pensou que outra cadela

    15 A palavra goujat est empregada aqui com a acepo antiga de um posto militar de grau menos elevado .valet militaire.16 SOPE (Texte tabli et traduit par mile Chambry, 1927). Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1967, p. 81.17 Inicialmente o sexo do animal permanece ambguo, e este s ser resolvido quando ler-mos a declinao do pronome demonstrativo , confirmando que aqui se trata de uma cadela.

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    () tambm segurava entre os dentes um pedao de carne ainda maior (, comparativo do adjetivo ). Este um momento capital da fbula, pois possvel que o pedao realmente parecesse maior com a gua. Tal descrio no aparecer na verso latina de Fedro. Por esse motivo, a cadela decide obter o pedao de carne da outra (, como a palavra carne em grego neu-tra, aqui ela aparece representada pelo artigo neutro , enquanto a cadela est representada no pronome demonstrativo declinado no genitivo singular feminino: ) ; mas antes, abandona o seu (, a palavra carne aqui omitida, sendo subentendi-da pela palavra prprio ). A tenso criada entre o prprio e o alheio est caracterizada no grego atravs dos vocbulos e . Ser justamente isto que marcar a moral da fbula, pois a sua ambio ou avidez lhe tirar ( ... ) ambos os pedaos de carne (). Um deles pela sua inexistncia (, literalmente no era/existia/havia), e outro fora levado pelo rio (). A ltima frase est reservada para a moral que afirma que o que foi contado () oportuno ou aplica-se bem tendo em considerao o prefixo () , ao homem ambicioso ().

    Na verso latina de Fedro, lemos:

    Canis per fluvium carnem ferens

    Amittit merito proprium qui alienum adpetit. Canis per flumen carnem cum ferret natans,

    Lympharum in speculo vidit simulacrum suum, Aliamque praedam ab altero ferri putans Eripere voluit; verum decepta aviditas

    Et quem tenebat ore dimisit cibum, Nec quem petebat potuit adeo adtingere.18

    18 PHAEDRUS. Fabulae Aesopiae. L. Mueller. Leipzig. B. G. Teubner. 1876. Disponvel em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0118%3Abook%3D1%3Apoem%3D4. Acesso em 07/08/2016.

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    Logo no primeiro verso verificamos o contedo moral do que ser contado. A primeira palavra evidencia a perda gerada pela ambio (Amittit). Assim, perde o que se possui (merito proprium) pelo desejo do que pertence a outro (alienum). Os versos segundo e terceiro so semelhantes ao que se l em Esopo, um co (canis)19 que enquanto (cum) atravessa a nado (natans) um rio (per flumen) carregando um pedao de carne (carnem ... ferret) v no espelho das guas (Lympharum in speculo) o seu simulacro. E pensando ser outra presa (Aliamque praedam) trazida por outro co (ab al-tero ferri) teve vontade de arranc-la (Eripere voluit). As palavras seguintes contero a palavra-chave da fbula aviditas. Trado (Decepta), em verdade (verum), pela sua ambio, o co perde o pedao de carne que possua em sua boca (Et quem tenebat ore di-misit cibum), ficando tambm sem a presa que de tal modo (adeo) cobiava (quem petebat).

    Analisemos agora a fbula de La Fontaine:

    Le chien qui lche sa proie pour lombre

    Chacun se trompe ici-bas. On voit courir aprs lombre

    Tant de fous quon nen sait pasLa plupart du temps le nombre.

    Au chien dont parle sope il faut les renvoyer. Ce Chien, voyant sa proie en leau reprsente,

    La quitta pour limage, et pensa se noyer; La rivire devint tout dun coup agite.

    toute peine il regagna les bords,

    Et neut ni lombre ni le corps.20

    19 Em latim a traduo correta co, pois a expresso ab altero em latim est no masculino (por outro [co]). 20 LA FONTAINE, Jean de. Fables. Paris: Flammarion, 1995, p. 71.

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    J em La Fontaine lemos desde o ttulo uma fuso entre Esopo e Fedro, pois daquele toma emprestada a palavra sombra (ombre, ), e deste a palavra presa (proie, praeda). Os quatro primei-ros versos esto dedicados a uma releitura alegrica do espao hu-mano, caracterizado pelos erros (se trompe) dos habitantes daqui debaixo (ici-bas). Em seguida, mostra-se qual a causa desses erros: tantos doidos (Tant de fous) correm atrs da sombra que no se sabe na maioria das vezes (La plupart du temps) os seus nomes. A homenagem a Esopo aparece no quinto verso, quando La Fontaine afirma que os doidos devem ser remetidos fbula do cachorro (il faut les renvoyer). curioso, todavia, que La Fontaine traduza por Chien e no por Chienne, uma vez que ele mesmo nos convida a ler Esopo. Entretanto, a diferena em relao a Esopo e Fedro reside no fato de que o co toma a imagem de sua presa, refletida na gua, pela presa mesma, largando o pedao que mantinha entre os dentes (la quitta) achando que ela est afundando (se noyer). Devido aos seus movimentos, as guas se agitam (la rivire devint tout dun coup agite), e o final j nos conhecido, o co fica sem nada (ni lombre ni le corps). Chama a ateno a riqueza de deta-lhes presentes na fbula de La Fontaine, quando comparada com as anteriores: o movimento das guas e a dificuldade com que o co chega margem intensificam a sensao da perda.

    Por ltimo, destacamos a fbula em que uma raposa se depara com uma mscara de teatro:

    ,-,,.,.21

    21 SOPE (Texte tabli et traduit par mile Chambry, 1927). Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1967, p.22.

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    Certa raposa caminhava em direo casa de um ator de teatro (). Chegando l, revirou cuidadosamen-te () seus pertences (), e encontrou () uma mscara trabalhada de forma muito bela (). To-mando-a entre as suas patas (), disse (): Oh, que bela cabea (), mas no tem crebro (). Aqui reside o cerne da fbula, uma vez que o jogo entre as palavras cabea () e crebro () fica explcito somente na ver-so em grego, mostrando a relao entre uma pura forma exterior e o contedo que lhe d vida. Esta analogia colocada em evidncia nas palavras dedicadas ao tom moral, em que se faz uma diferenciao entre o corpo () e a alma (), e a fbula, aqui designada pela palavra , seria conveniente para os homens que so magnficos () no que concerne ao corpo (), mas pobres () de esprito (). A tenso entre corpo e alma tambm pode ser visualizada pelas partculas ..., que signi-ficam por um lado... por outro...).

    Quanto verso latina, vemos que ela extremamente sinttica:

    Vulpis ad personam tragicam

    Personam tragicam forte vulpis viderat:O quanta species, inquit, cerebrum non habet!

    Hoc illis dictum est, quibus honorem et gloriamFortuna tribuit, sensum communem abstulit.22

    A marcao temporal certa vez, que antes em grego no aparecia, insere-se aqui (forte). E j no segundo verso encontra-mos o vocativo introduzido pelo em Esopo e agora pelo O em Fedro. Como comentvamos antes, o jogo de palavras no se repetir, pois ser vertido em latim como quanta

    22 PHAEDRUS. Fabulae Aesopiae. L. Mueller. Leipzig. B. G. Teubner. 1876. Disponvel em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0118%3Abook%3D1%3Apoem%3D7. Acesso em 07/08/2016.

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    species (um exemplar nico, belo, que a nica palavra grega j d conta). Fedro no utiliza a palavra caput,-itis para traduzir . A raposa surpreende-se, afirmando que apesar de bela, a mscara no possui crebro (cerebrum non habet). O contedo moral modificado levemente aqui, pois se afirma que a fbu-la (Hoc) dirigida para aqueles (quibus) que a sorte (Fortuna) brindou com honra e glria (honorem et gloriam ... tribuit), mas retirou-lhes (abstulit) a inteligncia (sensum communem). O ele-mento do acaso representado pela palavra Fortuna d o tom da fbula em Fedro.

    Em francs, a mesma fbula est extremamente enriquecida, de modo oposto ao que fizera Fedro:

    Le renard et le buste

    Les Grands, pour la plupart, sont masques de thtre; Leur apparence impose au vulgaire idoltre.

    Lne nen sait juger que par ce quil en voit. Le Renard, au contraire, fond les examine,

    Les tourne de tout sens ; et, quand il saperoit Que leur fait nest que bonne mine,

    Il leur applique un mot quun Buste de hros Lui fit dire fort propos.

    Ctait un Buste creux, et plus grand que nature. Le Renard, en louant leffort de la sculpture:

    Belle tte, dit-il, mais de cervelle point.

    Combien de grands Seigneurs sont Bustes en ce point!23

    Com esta fbula, fica mais evidente o processo de estetizao levado a cabo por La Fontaine, que confere histria um grau de complexidade que no existia em Fedro e em Esopo. La Fon-taine at mesmo inclui um animal nesta fbula: o asno (Lne).

    23 LA FONTAINE, Jean de. Fables. Paris: Flammarion, 1995, p. 43.

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    Em contraste com a ingenuidade deste, a inteligncia da raposa se sobressai ( fond les examine). Essa fbula direcionada aos grandes homens (Les Grands, grands Seigneurs), ou seja, aos poderosos, mas no existe qualquer meno ao acaso ou ao desti-no. Este direcionamento reiterado por duas menes: a primeira abre o texto, a segunda o conclui. A fbula de Fedro j era dirigida aos homens que o destino premiou com honra e glria, de modo mais discreto e nuances polticas menos demarcadas; em La Fon-taine, dentro de um contexto social e poltico diverso, no qual os grandes homens, a massa ingnua e a classe intelectual so outros, a moralidade da fbula reinventada. Sobrevive s modificaes contextuais, persistindo a sua pertinncia, porm deixa uma mar-gem generosa de aplicao e de mltiplos entendimentos. La Fon-taine utiliza uma histria da Antiguidade para criticar os homens do seu tempo, reatualizando a moralidade e redirecionando-a para um novo contexto histrico.

    notria esta virtude da fbula de poder ser aplicada s mais diversas situaes, e esta flexibilidade uma caracterstica que contribui para a sobrevivncia do gnero atravs dos sculos. Aps considerarmos as verses dessas trs fbulas em diferentes per-odos histricos, cabe pensarmos sobre a relao das fbulas com o tempo, este entendido no apenas no seu sentido cronolgico, mas na complexidade de relaes que engendra. Para Benjamin, A histria objeto de uma construo cujo lugar no o tempo homogneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras. 24 Cada agora da fbula, ao mesmo tempo em que recupera a tradio do gnero, o reinventa.

    A complexidade temporal da fbula se faz ouvir desde o seu surgimento, marcado pela transmisso oral. A obsesso por ci-tar Esopo como pai do gnero, como comentado anteriormente, um agora que se multiplica e no qual uma tradio annima de transmisso oral reinventada e se plasma na materialidade de um

    24 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de Histria. In.: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. (Obras escolhidas volume I). Traduo de Srgio Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1994, pp.222-232, p.229.

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    nome. A fbula nasce da reinveno de psicodinmicas da orali-dade25, sendo a sua origem difusa e equvoca. Sempre que ela resgatada, h um gesto de afirmao de uma tradio, porm essa tradio reinventada. Assim como no existe um tempo homo-gneo, tambm no existe uma tradio homognea da fbula. O papel da imaginao de cada um dos fabulistas em relao a essa tradio deve ser levado em conta, e tambm as relaes novas que as fbulas adquirem com o seu contexto.

    Mrcia Seabra Neves tambm pontua as diferenas entre a f-bula de Esopo, Fedro e La Fontaine, discutindo a maneira pela qual cada um dos autores contribuiu para o gnero26. Enquanto em Esopo a linguagem era mais direta, e a funo perlocutria preva-lecia, em Fedro os recursos estticos passam a ganhar mais nfase; tanto na forma em versos escolhida quanto na elaborao de uma sentena moral mais sofisticada:

    Com efeito, quanto mais se avana na diacronia do gnero fabulstico, mais flagrante se torna a importncia conce-dida narrativa em detrimento da moralidade da fbula, que progressivamente v decrescer o seu tom sentencioso e pedaggico em benefcio do travejamento diegtico.27

    Fedro, como vimos, faz uma recontextualizao das fbulas de Esopo, por vezes comentando para o seu leitor as questes do seu prprio trabalho e a postura de tradutor que adotou: fiel sabedoria

    25 Cf. ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: tecnologias da palavra. [Trad. Enid Abreu Dobrnsky]. Campinas: Papirus, 1998. Ong mostra que a forma como as comunidades se relacionam com a palavra escrita, puramente oral ou mista se reflete em um conjunto de caractersticas do pensamento, em um conjunto de psicodinmicas. A escrita uma tecnologia que transforma o modo de conhecer do homem, antes centrado na memria. As psicodinmicas da oralidade inclem a memorizao pelo ritmo, o carter coletivo dos saberes e dos textos, e sua dimenso ritual. 26 NEVES, Mrcia Seabra. Fbulas na gora: de Aristteles a sculo das luzes. Matraga, Rio de Janeiro, v.20, n.33, jul/dez 2013.27 NEVES, Mrcia Seabra. Fbulas na gora: de Aristteles a sculo das luzes. Matraga, Rio de Janeiro, v.20, n.33, jul/dez 2013, p.146.

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    do Velho, porm adicionando o que julgava conveniente para que a variedade dessas palavras deleite os sentidos28. O esmero na formulao esttica ir culminar, entretanto, com La Fontaine, que sculos mais tarde tambm desejou tornar as fbulas novas e aca-bou por consagrar definitivamente o gnero. Vimos, por exemplo, na fbula do co com o pedao de carne, que La Fontaine introduz a histria com quatro versos que tecem um comentrio alegrico sobre a vida presente, remetendo histria de Esopo apenas no quinto verso. Desta forma, o autor cria um jogo temporal no qual o leitor levado primeiramente a pensar no seu prprio tempo e depois aplica a ele a moralidade desentranhada da fbula antiga.

    A sinuosidade, a interpretao labirntica, o modo no direto de enunciar a moralidade so caractersticas que revelam o agora no qual La Fontaine escreveu. Sua linguagem tem o trao exuberante do barroco que Deleuze props em A dobra29, livro no qual o filsofo francs oferece uma leitura das condies epistemolgicas que po-dem ser derivadas da substituio da linearidade objetiva como padro formal pela complexidade das dobras proliferantes do barroco. Essa forma complicada e ornamental em tudo contrasta com a objetividade sinttica, ainda que esteticamente elaborada, levada a cabo por Fedro.

    A presena dessas novidades esto tanto na forma escolhida por La Fontaine quanto na apropriao e remodelao dos promtios e epitmios. Estes so, muitas vezes, completamente modificados ou at mesmo suprimidos quando no foi possvel encaix-los com graa no texto. La Fontaine privilegia a gaiet, sem dispen-sar o carter pedaggico dos seus textos. De fato, este carter pedaggico que distingue a fbula enquanto gnero, no permi-tindo que ela se misture com os demais tipos de narrativa breve. A estetizao e a relativizao da aplicao moral da fbula no implicam a sua destituio. Quando, no sculo 18, o gnero ir se desenvolver consideravelmente, esse trao persistir, ainda que em

    28 FIRMINO, Nicolau. Traduo literal das fbulas de Fedro. So Paulo: Livraria Lusitana, 1941, p.21.29 DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o Barroco. Traduo de Luiz B. L. Orandi. Campinas: Papirus, 1991.

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    nova feio. Com G.H. Lessing, por exemplo, a funo pblica e poltica da fbula ser restaurada, trazendo novamente as propostas de Aristteles tona. Um possvel desdobramento deste trabalho poderia levar em considerao as contribuies de Lessing, verifi-cando como a sua recusa da ornamentao e o seu distanciamento do modo de narrar de La Fontaine conformam uma nova materia-lidade lingustica para as antigas histrias de Esopo. A irrupo do Romantismo far com que a fbula acabe sendo relegada a segundo plano. Tambm o cientificismo do sculo 19 ir contribuir para o obscurecimento do gnero. Ainda assim, possvel sondar a for-mulao de um contexto que possa trazer novamente circulao a antiga fabulstica, sem os ranos de uma educao opressora e excessivamente racionalizante, mas no contexto de uma novo pro-cesso de aprendizado no qual os animais possam figurar novamente como personagens e exemplos de prticas humanas.

    A relao do homem com os animais, mais especificamente a tendncia a antropomorfizar gestos e reaes dos bichos, tem aparecido nas discusses contemporneas. Prova disso o artigo de Mario Perniola Animali quasi saggi, animali quasi pazzi. O filsofo italiano empreende uma investigao acerca da rela-o do homem com os animais desde a Antiguidade, mostrando como a postura dos estoicos nos revela traos da percepo con-tempornea: a ideia de animalidade no independente da ideia de humanidade.30 A condio animal aproximada da dos sbios, fornecendo exemplos, que desde os filsofos cnicos esto presen-tes e apresentam ao homem uma viso seja da virtude, seja dada felicidade. H tanto os animais quase sbios quanto aqueles quase loucos, os animais que so exemplos da bela alma e tambm os super-animais, formando um conjunto de exemplos dos quais se desentranham importantes conhecimentos ticos para o homem. As consideraes de Perniola nos levam a crer que uma renovao da fbula tambm possvel no mundo contemporneo.

    30 PERNIOLA, Mario. Animali quasi saggi, animali quasi pazzi. Scienza & Filosofia. Napoli: Universita degli studi de Napoli Federico II, n7, , pp.11-26, junho de 2012, p.12.

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    Sobrevivncia e renovao: Esopo, Fedro e La Fontaine

    A sobrevivncia da fbula est profundamente ligada sua vir-tude de se renovar em mltiplos agoras, os quais, ao resgat-la, tambm recriam o seu passado e se constituem em atos de fundao. impossvel ser fiel fbula, pois ela um objeto movente, que ao reiterar-se tambm se inventa. Essa permeabilidade da fbula ao tempo uma marca que a acompanha desde as suas funes na psicodinmica da oralidade e que se demonstra nos gestos de recuperao e reatualizao recorrentes nos diversos agoras que constituem, sua maneira, tambm os atos de origem desse gnero.

    A fbula comporta, assim, uma dualidade: pois atravs dessas descontinuidades que ela se conserva, chegando at ns como uma das feies mais populares com que a narrativa breve se apresenta. A sobrevivncia das historietas de Esopo podem nos indicar tanto a sua transformao no tempo quanto a prpria fluidez dos tempos em si, sendo cada termo latino e francs utilizado por Fedro e La Fontaine tambm um gesto de inveno de cada termo grego pre-sente nas diversas verses dos textos atribudos a Esopo, os quais renascem atravs dos textos ulteriores tambm naquilo que no foi traduzido e que renasce para a percepo contempornea.

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    Sobrevivncia e renovao: Esopo, Fedro e La Fontaine

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    Site consultado:http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0118 (consulta s fbulas de Fedro em latim, edio de Lucian Mller).

    Recebido em: 02 de novembro de 2017Aceito em: 08 de fevereiro de 2018

    Publicado em: maio de 2018

    Juan Manuel Terenzi. E-mail: [email protected] Scherer. E-mail: [email protected]