SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino –...

81
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ IGOR GUILHERME ROMKO SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO CURITIBA 2016

Transcript of SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino –...

Page 1: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

IGOR GUILHERME ROMKO

SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO

CURITIBA

2016

Page 2: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

IGOR GUILHERME ROMKO

SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito à obtenção dos títulos de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, curso de Ciências Sociais, setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná. Prof. Dr. Rafael Ginane Bezerra

CURITIBA

2016

Page 3: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

IGOR GUILHERME ROMKO

SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito à obtenção dos títulos de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, curso de Ciências Sociais, setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná.

Aprovado em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

Professor Dr. Rafael Ginane Bezerra (Orientador) Universidade Federal do Paraná – UFPR

_______________________________________

Professor Ms. Sandro Luís Fernandes Rede de Ensino da Prefeitura Municipal de Curitiba

_______________________________________

Professora Dra. Deisily de Quadros Centro Universitário Internacional - UNINTER

Page 4: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

“Todos sabemos que el arte no es la verdad. Es una mentira que nos hace ver la verdad, al menos aquella que nos es dado comprender. El artista debe saber el modo de convencer a los demás de la verdad de sus mentiras.”

Pablo Picasso

Page 5: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

RESUMO

O presente trabalho realiza uma análise de documentos oficiais responsáveis por reger o desenho institucional da disciplina de Sociologia no Ensino Básico após a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996, concluindo que esses documentos se preocupam em pensar o currículo, mais do que a metodologia de ensino. Assim, a necessidade de adequação do ensino às demandas do mundo contemporâneo, postulada pela nova legislação, não encontra reflexos significativos na prática pedagógica. A partir desta constatação, propomos uma metodologia alternativa que consiste em trabalhar noções sociológicas a partir do uso de textos literários, inspirada nas ideias de Michèle Petit e Daniel Pennac. Concluímos o texto com um relato de experiência, baseado na aplicação da metodologia descrita, enfatizando as potencialidades desse recurso.

Palavras-chave: Ensino de Sociologia. Metodologia de ensino. Literatura.

Page 6: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

ABSTRACT

This paper analyzes the official documents responsible for the institutional framework of Sociology in the Basic Education, following the publication of the Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (law responsible for the guidelines and basis of the national education) in 1996. We conclude these documents are concerned with curriculum, more than with teaching methodology. The need to adapt education to the contemporary world’s demands, established by the new legislation, does not find a significant parallel in the educational practice. Having this in mind, we propose an alternative methodology that consists in working sociological notions through literary texts, inspired by the ideas of Michèle Petit and Daniel Pennac. As a conclusion, we present an experience report, based on the application of the described methodology, looking to highlight this resource’s potential. Keywords: Sociology Teaching. Teaching Methodology. Literature.

Page 7: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 8 1.1 HISTÓRICO DA DISCIPLINA DE SOCIOLOGIA ................................................. 8

1.2 JUSTIFICATIVA ................................................................................................. 11

1.3 ESTRUTURA E OBJETIVOS DO TRABALHO .................................................. 12

2 ANÁLISE DE DOCUMENTOS OFICIAIS .......................................................... 14 2.1 PANO DE FUNDO PARA A ANÁLISE DOS DOCUMENTOS ........................... 14

2.2 ANÁLISE DOS DOCUMENTOS OFICIAIS ........................................................ 16

3 PROPOSTA METODOLÓGICA ......................................................................... 30 3.1 JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO ....................................................... 30

3.2 BASE TEÓRICA ................................................................................................. 34

3.3 A LITERATURA ENCONTRA A SOCIOLOGIA .................................................. 40

4 RELATO DE EXPERIÊNCIA ............................................................................. 46 4.1 COLÉGIO ESTADUAL BARÃO DO RIO BRANCO ........................................... 46

4.2 COLÉGIO ESTADUAL ROMÁRIO MARTINS .................................................... 51

5 CONCLUSÃO .................................................................................................... 65 5.1 CONCLUSÃO SOBRE A PRÁTICA ................................................................... 65

5.2 CONCLUSÃO GERAL ........................................................................................ 69

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 71

ANEXO 1 – TODA DOR TEM FIM ..................................................................... 73

ANEXO 2 – A LOTERIA .................................................................................... 74

Page 8: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

8

1 INTRODUÇÃO 1.1 HISTÓRICO DA DISCIPLINA DE SOCIOLOGIA

Se olhamos para o histórico da Sociologia no Brasil vemos que no nível do

ensino básico a disciplina sempre apareceu com esta mesma nomenclatura,

enquanto no ensino superior a disciplina aparece dentro da grande área, mais

abrangente, de Ciências Sociais, que se ramifica em diferentes subáreas.

Dependendo do país e da tradição intelectual que levamos em consideração o leque

de disciplinas que são abarcadas pode variar. Além das tradicionais áreas de

Sociologia, Ciência Política e Antropologia podemos ter ainda, dentro do campo

geral, a presença da Economia, da Psicologia Social, da Estatística Social, da

Geografia Social, entre outras.

Como nos mostra a professora Ileizi Luciana Fiorelli Silva em seu histórico

das Ciências Sociais no Brasil1, fomos influenciados pela tradição anglo-americana.

Esse histórico inicia-se no século XIX, ainda sem a institucionalização da disciplina

no Brasil, mas já sendo realizada, em 1891, a primeira proposta formal de inserção

da mesma no nível secundário. O que fica claro, a partir da análise desse histórico, é

que a divisão que temos entre o nível da educação secundária e o da educação

superior ultrapassou uma diferença entre níveis de ensino e pesquisa para uma

distinção qualitativa e distintiva, resultando em dois eixos desarticulados de uma

mesma disciplina. Temos no nível superior (Ciências Sociais) a preparação de

profissionais que irão ocupar cargos públicos e privados, além da formação de

pesquisadores para a área, deixando a formação de professores para a educação

básica em segundo plano.2

Considerando a história mais recente, temos uma expansão da presença da

disciplina nos currículos escolares durante a década de 80, pós ditadura militar. A

tendência começa em alguns estados isoladamente, sendo o estado de São Paulo o

primeiro a reinserir a disciplina nas escolas desde a exclusão da disciplina do nível 1 SILVA, I. L. F. O Ensino das Ciências Sociais/Sociologia no Brasil: histórico e perspectivas. In: MORAES, A. C. (Coord.). Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, Vol. 15. Brasília: Ministério 2 MORAES, A. C. – Ensino de Sociologia: Periodização e Campanha pela Obrigatoriedade. In: Cadernos Cedes. Campinas, vol. 31, n. 85, set-dez, 2011. p. 359-382.

Page 9: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

9

secundário em 1942. Em 1989 temos a obrigatoriedade da disciplina nas escolas

nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Só em 1996, com a publicação da

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica (LDB) foi que essa expansão passou

para o nível nacional. Gradativamente a disciplina passou a ser cobrada em

vestibulares de determinadas universidades estaduais e federais, sendo incluída em

2007 no vestibular da Universidade Federal do Paraná. Consequentemente vemos

as escolas passando a incluir cada vez mais a Sociologia em seus currículos.

Entretanto, com a LDB, não temos ainda a obrigatoriedade da presença da

disciplina no ensino médio. A lei afirma apenas que os alunos, concluindo essa

etapa, deverão apresentar um “domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia

necessários ao exercício da cidadania”3, porém esses conhecimentos ainda eram

passíveis de serem trabalhados de forma transversal, diluídos entre as outras

disciplinas que já possuíam seu espaço no currículo. Essa mesma tendência ainda é

verdade com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) de

1998, com a proposta da divisão do ensino não por disciplinas, mas por áreas do

conhecimento, e posteriormente com os Parâmetros Curriculares Nacionais do

Ensino Médio (PCNEM) de 1999, que também incluem a Sociologia e a Filosofia na

área das “Ciências Humanas e suas Tecnologias”. Fica claro, portanto, que a

Sociologia ainda é tratada de forma interdisciplinar e não assume o mesmo status de

outras disciplinas já consagradas.

Existe, entretanto, um movimento que fez um extenso trabalho defendendo a

sociologia enquanto disciplina curricular, argumentando que sua presença no ensino

médio não deveria ficar limitada à abordagem transversal. A crítica ao tratamento

que vinha sendo dado à questão ganha materialidade e força em 2004, com o

documento Orientações Curriculares do Ensino Médio, organizado por Amaury

Moraes, Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para além

do clichê, “formar o cidadão crítico”, a importância da sociologia vai além, “quer

aproximando esse jovem de uma linguagem especial que a Sociologia oferece, quer

3 BRASIL. Ministério da Educação. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC, 1996. Seção 4, p. 13.

Page 10: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

10

sistematizando os debates em torno de temas de importância dados pela tradição ou

pela contemporaneidade.”4

A abordagem transversal segue sendo aceita até 2006, quando o Conselho

Nacional da Educação aprova o Parecer 38/2006 que estabelece a obrigatoriedade

da disciplina no ensino básico a nível nacional. O parecer argumenta que havia até

então um acesso desigual à sociologia (e à filosofia) no ensino médio nacional. Os

documentos acima mencionados, que serviam de base jurídica para a organização

curricular, deixavam a inclusão da disciplina como facultativa, o que resultava numa

heterogeneidade do tratamento da questão nos diferentes estados da nação. É

verdade que em muitos estados do país, a tendência à introdução da sociologia é

anterior ao parecer, mas a obrigatoriedade vem para torná-la norma, garantindo

assim o acesso aos conhecimentos de sociologia e filosofia para todos os jovens da

educação básica. Posteriormente, estabeleceu-se que o prazo limite para a

adequação dos currículos seria o ano de 2011.

Fica reconhecido, agora na legislação, que as Diretrizes Curriculares

Nacionais do Ensino Médio de 1998 não estavam materializando as expectativas

postas pela LDB, ou seja, que o aluno terminasse o ensino médio com um domínio

da área de Sociologia. A partir desse parecer, a concepção que ganha força é a de

que isso só seria possível quando as ciências de referência fossem valorizadas, e

que, portanto, as Ciências Sociais deveriam ganhar seu espaço no ensino básico,

através da disciplina de Sociologia.

É natural que, passada a fase do debate político, e consequentes tomadas

de decisões burocráticas que regem, no campo legislativo, a estrutura do ensino,

chegamos à fase das considerações sobre o cotidiano escolar da disciplina. Como

implementar a sociologia de fato no Ensino Médio? Novamente temos a demanda

por documentos oficiais, dessa vez esperando algum tipo de instruções de como

proceder. Qual será o conteúdo abordado pela sociologia e a partir de qual material?

Cada um dos documentos oficiais tenta responder essa pergunta de alguma forma,

com mais ou menos ênfase.

4 BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Volume 3 – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2006.

Page 11: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

11

1.2 JUSTIFICATIVA

A análise que faremos aqui irá se concentrar em alguns dos documentos

responsáveis pelo desenho da disciplina de Sociologia no Ensino Médio, tentando

avaliar qual a perspectiva de cada um deles, além das mudanças e especificidades

notáveis. Serão abordados aqui os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), as

Orientações Curriculares Complementares (PCN+), e as Orientações Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (OCN).

Procuramos argumentar, como ficará claro no capítulo seguinte, que os

documentos aqui apresentados possuem uma tendência a discutir extensivamente a

questão curricular, em detrimento de questões pedagógicas. Argumentaremos

também que a Sociologia, ao abordar temas delicados, necessita de um cuidado

metodológico bastante específico para que seja trabalhada em sala de aula. Dada

essa fragilidade no campo da metodologia, aliada a essa característica intrínseca

aos temas da Sociologia, o presente trabalho preocupa-se com duas questões

principais: primeiro, a proposição e justificativa teórica de uma metodologia

alternativa para ser usada em sala de aula pelos professores de Sociologia no

Ensino Médio, visando preencher parcialmente a lacuna aqui destacada; segundo,

um relato de experiência baseado na aplicação dessa metodologia.

Tal metodologia, inspirada nos trabalhos de Daniel Pennac5 e Michele Petit6,

consiste em trabalhar os conteúdos curriculares da Sociologia a partir do uso de

textos literários selecionados, numa dinâmica em que os alunos são “convidados” à

leitura coletiva. A leitura é feita em voz alta, e todos acompanham o enredo juntos,

enquanto diferentes colegas dão sequência à narrativa. Terminada, vamos então a

um segundo momento, no qual, a partir da história lida, passamos a uma conversa

na qual os alunos podem relatar seus pensamentos sobre o conto, resultando em

manifestações subjetivas que dialogam com a ficção, com a sociologia, e com a

realidade individual de cada estudante.

5 PENNAC, D. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. 6 PETIT, M. A arte de ler. São Paulo: Ed. 34, 2009.

Page 12: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

12

O relato de experiência aqui apresentado deriva de intervenções realizadas

em duas escolas diferentes, durante o primeiro semestre de 2016: a primeira foi

realizada no Colégio Estadual Barão do Rio Branco, em Curitiba, em três turmas do

Ensino Médio, e foi guiada pelo professor orientador deste trabalho. Com ela,

pudemos nos preparar e chegar a conclusões que foram colocadas em prática num

segundo momento, quando fomos ao Colégio Estadual Romário Martins, em

Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, e aplicamos novamente a atividade em

duas turmas de terceiro ano, desta vez sendo conduzidas pelo autor deste trabalho.

Essas duas atividades resultaram no relato aqui apresentado, e fundamentam as

considerações finais acerca das possibilidades e limites do recurso metodológico

proposto.

No colégio Barão do Rio Branco, o conto utilizado chama-se Toda Dor Tem

Fim, de Maria Valéria Rezende7, que foi trabalhado paralelamente às ideias

sociológicas de “afastamento de pré-noções” e “olhar objetivo”, em oposição ao

“senso comum”. Na escola Romário Martins trabalhamos com o conto A Loteria8, de

Shirley Jackson, paralelamente a noções sociológicas de “coesão social” e

“mecanismos de controle”. Como ficará claro no relato, apesar de termos escolhido

antecipadamente alguns conceitos sociológicos que acreditávamos poderem ser

trabalhados a partir da atividade, cada prática, em função de seu caráter

metodológico, resultou numa manifestação rica e plural por parte dos alunos, que

acabou indo além, possibilitando o trabalho com um grande apanhado de temas.

1.3 ESTRUTURA E OBJETIVOS DO TRABALHO

Dado o conteúdo apresentado até aqui, sumarizamos agora o desenho

formal do trabalho. O tema central aqui trabalhado é metodologia de ensino em

Ciências Sociais, mais especificamente no nível da Educação Básica, na disciplina

de Sociologia. O problema aqui levantado é que os documentos oficiais que servem

de guia aos professores não privilegiam a prática pedagógica de sala de aula. Dito

isso, propomos uma metodologia alternativa, explicada e justificada no nível da 7 REZENDE, M. V. Toda dor tem fim. In: Modo de apanhar pássaros à mão. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2006 8JACKSON, S. The Lottery. The New Yorker, Nova Iorque, 26 de Junho de 1948, p. 25. Tradução própria.

Page 13: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

13

teoria, e acompanhada de um relato de experiência. Como pano de fundo temos as

noções de Basil Bernstein9 (apud SILVA, 2007), que nos auxiliam na análise dos

documentos, e noções de Michele Petit10 e Daniel Penac11, que nos auxiliam na

concepção da metodologia esboçada e aplicação. Finalmente, concluiremos o

trabalho com as considerações finais acerca de nossa experiência, refletindo sobre

as possibilidades e limitações dessa metodologia. Quanto aos objetivos, o presente

trabalho procura: 1. Demonstrar, a partir da análise dos documentos, a insuficiência

das preposições oficiais no que diz respeito à pedagogia; 2. Propor uma metodologia

que pode servir de ferramenta pedagógica aos professores de Sociologia; e 3.

Demonstrar, a partir de um relato, a especificidade da metodologia proposta.

Finalmente, O trabalho divide-se nos seguintes capítulos: Capítulo 1 -

Introdução; Capítulo 2 - Análise dos Documentos Oficiais; Capítulo 3 – Proposta

Metodológica; Capítulo 4 – Relato de Experiência; e Capítulo 5 – Conclusão. No

segundo capítulo apresentaremos as ferramentas de análise extraídas de Bernstein

e realizaremos a análise de uma série de documentos que regem a organização da

educação básica. No terceiro abordaremos as considerações pedagógicas de Petit e

Pennac e apresentaremos nossa proposta metodológica, inspirada nos trabalhos

desses autores. No quarto capítulo relataremos nossa experiência em sala de aula

utilizando a metodologia exposta no capítulo anterior. E, finalmente, no último

capítulo traremos as conclusões acerca da aplicação, seguindo com uma conclusão

geral sobre o trabalho.

Fazendo às vezes de pós-escrito dessa introdução, para que o leitor possa

tirar suas próprias conclusões acerca das possibilidades levantas por nossa

experiência, sugerimos que a leitura dos dois contos anexados seja realizada, uma

primeira vez, antes da leitura de nosso trabalho e de suas conclusões.

Posteriormente, concluída a leitura do nosso relato de sala de aula, sugerimos uma

segunda leitura dos contos, para que assim, o próprio leitor seja capaz de avaliar em

que medida nossa atividade é capaz de alterar a percepção inicial dos contos e de

sugerir possíveis associações com noções sociológicas. 9 BERNSTEIN, B. apud SILVA, T. T. Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein. In: Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. P. 71-81. 10 PETIT, M, op. cit. 11 PENNAC, D., op. cit.

Page 14: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

14

2 ANÁLISE DOS DOCUMENTOS OFICIAIS 2.1 PANO DE FUNDO PARA ANÁLISE DOS DOCUMENTOS

Para tornar essa análise possível, faremos uso de um leque de proposições

elaboradas por Basil Bernstein, conforme compiladas por Tomás Tadeu da Silva.12

Essa base nos servirá para direcionar o olhar e criar pontos de articulação entre os

diferentes documentos. A tríade pedagogia – currículo – avaliação nos servirá de

bússola, possibilitando extrair leituras de cada documento, e resultando numa

análise comparativa.

Segundo Basil Bernstein13 (apud SILVA, 1999) a educação formal se

concretiza através de três eixos de funcionamento. Temos em primeiro lugar o

currículo, que define qual o conteúdo que deve ser trabalhado em cada uma das

disciplinas; em segundo lugar a pedagogia (ou metodologia) que diz respeito à forma

adequada de transmitir o conhecimento; e por último a avaliação, que define as

formas de expressão do conhecimento por parte dos alunos. As questões que regem

esses três eixos não podem ser tratadas isoladamente, pois as escolhas relativas a

cada um deles influenciam e são influenciadas pelas práticas relativas aos outros

dois eixos. Exemplificando, se definimos que o objetivo final do aluno é ser aprovado

no vestibular, iremos alterar o conteúdo passado em função dessa avaliação, e

otimizaremos a metodologia para que o desempenho do aluno nesta prova

específica seja o melhor possível.

Um segundo grupo de conceitos apresentados por Bernstein diz respeito à

organização estrutural do currículo no que tange o limite mais ou menos claro entre

as disciplinas. De um lado, temos currículos do tipo coleção, de outro o currículo

integrado. No primeiro caso, temos nitidamente traçadas as áreas do conhecimento,

e a permeabilidade e o diálogo entre cada uma delas é baixo. No segundo caso

essas barreiras não estão tão claramente definidas. Temos princípios mais

abrangentes que guiam todas as disciplinas, existindo assim um “norte” comum

entre elas e uma comunicação entre as diferentes áreas. O autor usa aqui a ideia de

12 BERNSTEIN, B, apud SILVA, T. T., op. cit. 13 Id.

Page 15: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

15

classificação. Os currículos que obedecem à lógica da coleção são mais

classificados, e os que seguem a lógica da integração são menos classificados.

Ainda seguindo as conceituações de Bernstein vemos um terceiro grupo

conceitual que irá nos auxiliar na tarefa de análise dos documentos oficiais. Aqui

temos as ideias de poder e de controle. Segundo sua visão, o poder é responsável

pela organização curricular: determinar os conteúdos que serão abordados e se

teremos uma organização mais ou menos classificada do currículo. Já o controle

determina a organização prática do dia a dia da sala de aula, estando assim ligado à

transmissão do conhecimento. Ele é responsável por determinar, por exemplo, a

disposição dos alunos na sala, o ritmo com que os conteúdos são trabalhados, e a

relação entre professor e aluno em sala de aula. Esse viés analítico se aproxima de

uma leitura foucaultiana, em que temos o exercício de poder ramificado e espalhado

pelo tecido social, e não concentrado nas mãos de uma instituição centralizadora.

Seja o currículo mais, seja menos classificado, temos sempre escolhas que são

tomadas por diferentes agentes que entram em conflito para a tomada de decisões.

Da mesma forma, não é porque os alunos possuem voz na hora de definir a

dinâmica de sala de aula que o controle está ausente. O conflito entre diferentes

agentes ainda está presente, “simplesmente estão em ação outros princípios de

controle, mais sutis, mas nem por isso menos eficazes.” (SILVA, 2007)14

Essas proposições de Bernstein, tal como resenhadas por Tomás Tadeu da

Silva, não tem a pretensão, neste trabalho, de fornecer os elementos que

caracterizam um referencial teórico. Mantida como pano de fundo, ele oferece uma

chave de leitura para compreender porque as discussões sobre currículo

estabelecidas até aqui, tendo como base os textos oficiais, têm um caráter limitado.

Como veremos, os documentos levantados colocam-se mais voltados para o

conteúdo, o que ensinar, do que para a pedagogia e para a avaliação.

Assim, o vocabulário aqui utilizado não busca construir categorias analíticas

com poder explicativo, mas sim trazer palavras chaves que nos auxiliarão na

aproximação de textos, a princípio, heterogêneos. A base de Bernstein serve aqui à

14 BERNSTEIN, B, apud SILVA, T. T., op. cit.

Page 16: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

16

tarefa de colocar os diferentes documentos em diálogo, mostrando que posição o

conteúdo de cada um deles assume dentro dessa ferramenta de leitura unificadora.

Ao analisar os documentos aqui apresentados teremos portanto em mente:

1. Os três pilares – currículo, pedagogia e avaliação – que juntos definem o processo

e os resultados obtidos pela educação de nossos alunos; 2. O grau de classificação

do currículo; e 3. Dinâmicas relativas ao poder e ao controle. A análise aqui parte

das proposições oficiais, da forma como a prática escolar é proposta pelos

responsáveis em documentos válidos a nível nacional. Estaremos olhando para as

bases do ensino em seu desenho formal, aquilo que se coloca como o ideal de

educação e como esse desenho foi-se construindo ao longo dos anos, a cada

publicação. Pensar a educação significa mais do que pensar sobre qual o conteúdo

julgamos ser válido ou não válido em nossas disciplinas; significa também pensar

como esse conteúdo será transmitido, e o que esperamos de resposta por parte dos

alunos; significa entender as dinâmicas que aproximam e afastam as diferentes

disciplinas; e também observar a posição que se espera que alunos e professores

ocupem nesse quadro geral.

2.2 ANÁLISE DOS DOCUMENTOS OFICIAIS

Dado os conceitos sugeridos por Bernstein, que aqui servem de pano de

fundo para o desenvolvimento do capítulo, é conveniente iniciar a análise pela

categoria de poder. Se poder implica para Bernstein na capacidade de influência

sobre o conteúdo/desenho do currículo, no caso brasileiro, mais especificamente no

caso do ensino de sociologia, é conveniente destacar que diferentes instâncias de

poder desempenham um papel concorrente.

Num primeiro momento destaca-se o MEC, que de um lado edita os textos

balizadores dos currículos, tal como os parâmetros, por exemplo, e de outro elabora

e executa os editais do plano nacional do livro didático (PNLD). Escapa aos limites

desse trabalho estabelecer em que medida os textos balizadores e os livros

didáticos escolhidos através do PNLD apresentam em alguma medida conformidade

Page 17: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

17

paradigmática. A esse respeito Meucci e Bezerra15 (2014) argumentam que essa

conformidade é pequena. Ou seja, no caso do ensino de Sociologia o próprio MEC,

em seu interior, abriga instâncias com disposições curriculares discrepantes. Em

seguida é conveniente destacar o papel do Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, que edita a matriz de habilidades e

competências do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), convertendo-a

anualmente em exame aplicado ao universo de alunos que encerram essa etapa de

ensino. Nessa instância, dadas as características da referida matriz, observa-se um

desenho curricular de tipo integrado, dado que a classificação ou fronteira entre as

disciplinas é muito pequena. Trata-se de um documento organizado em função de

áreas de conhecimento e no qual não se encontra a formalização de conteúdos (ou

mais adequadamente, habilidades e competências) identificados com as disciplinas

correspondentes. E finalmente, sem a pretensão de ser exaustivo, é conveniente

destacar o papel desempenhado pelas licenciaturas na formação de novos

professores. Sabe-se que no caso brasileiro os novos professores são formados

segundo uma lógica predominantemente disciplinar, ou seja, que se encontra em

franca oposição ao que é previsto, por exemplo, na matriz do ENEM tal como

observado anteriormente. Apesar dessa disposição de concorrência entre as

diferentes instâncias citadas observa-se que dificilmente a discussão dos conteúdos

e desenhos curriculares é acompanhada pela discussão sobre os procedimentos

metodológicos mais adequados ao trabalho com o conteúdo previsto.

Feito esse comentário inicial acerca das instituições responsáveis pela

educação básica no nível federal, passamos aos documentos que serão analisados

no presente trabalho. O desenho formal da disciplina de sociologia no ensino médio

definiu-se a partir de uma série de documentos oficiais publicados ao longo de um

período de aproximadamente 20 anos, desde meados da década de 90. Se

considerarmos essas publicações, observamos que existem abordagens

heterogêneas e diferentes pontos de vista normativos acerca da organização e

condução da disciplina de Sociologia. A análise aqui irá se concentrar em três

documentos: os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCN-EM);

as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares

15 MEUCCI, S.; BEZERRA, R. G. Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículo. Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 1, p. 87-101, 2014.

Page 18: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

18

Nacionais (PCN+); e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCN-EM).

Além disso, aparecerão comentários acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio (DCN-EM), e utilizaremos a Base Nacional Curricular Comum

(BNCC) para orientar nossa escolha dos temas trabalhados com nossos contos.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio16 (DCNEM),

publicadas em 1998, apresentam alguns princípios que servem de guia à

estruturação desse nível de ensino. Temos aqui um parecer do Conselho Nacional

de Educação que está preocupado em orientar, através de princípios, o que se

espera do Ensino Médio. O documento tem uma visão normativa de um currículo

integrado, interdisciplinar, e a partir desse tratamento, as propostas pedagógicas da

escola devem garantir o domínio de “conhecimentos de filosofia e sociologia

necessários ao exercício da cidadania.”17

Temos já nesse documento a ideia de “competências e habilidades”, que

são colocadas como prioridade, mantendo o “conteúdo” ou a “informação” em

segundo plano. O currículo, espera-se, deverá ser organizado em grandes áreas do

conhecimento, como definido no artigo 10 do documento, sendo a Sociologia

encaixada dentro da área de Ciências Humanas e suas Tecnologias. Enquanto

vemos que a Arte e a Educação Física recebem o tratamento de disciplinas

“obrigatórias”, o mesmo não é verdade para a Sociologia.

Vemos que as DCNEM não tem a pretensão de abordar questões práticas,

mas sim de estabelecer princípios guia, e não cabe aqui uma análise exaustiva

deste parecer. Melhor para nós, conforme os objetivos desse trabalho, é seguir para

a análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM)18

de 1999, que, baseados nos princípios estabelecidos pelas DCN, visa agora abordar

as questões específicas de cada disciplina, interessando-nos especificamente a

parte IV deste documento, que aborda a área das Ciências Humanas e suas

16 BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CEB nº 3, de 26 de Junho de 1998 - Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Conselho Nacional de Educação. Brasília, DF, 26 jun. 1998. 17 Ibid., p. 7. 18 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Parte IV – Ciências Humanas e suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMT, 1999.

Page 19: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

19

Tecnologias, trazendo, dentro dessa área, os conhecimentos de Sociologia que

deverão ser trabalhados no Ensino Médio.

Dentro dos PCNEM vemos dois eixos fundamentais que orientam os

“Conhecimentos de Sociologia” no Ensino Médio: 1. A relação entre indivíduo e

sociedade, e 2. A dinâmica social, ou seja, a manutenção ou a transformação da

ordem social vigente. A disciplina é apresentada aqui com pretensões de

instrumentalizar o aluno, que conseguiria, através dela, ser capaz de “decodificar a

complexidade da realidade social”19. Espera-se que o aluno perceba que ele é capaz

de assumir uma posição ativa, capaz de transformar as dinâmicas sociais nas quais

ele está inserido. Novamente, as competências e habilidades aqui são trabalhadas

de uma forma geral e abrangente, pois alcançá-las depende de um trabalho

interdisciplinar, e não de disciplinas isoladas.

O documento traz principalmente orientações relativas ao conteúdo que

deve ser trabalhado em sala de aula, não mencionando em nenhum momento a

forma como trabalhar esse conteúdo, ou de que maneira esse conteúdo deve ser

avaliado. O norte colocado pelo documento aparece quando ele nos apresenta as

competências e habilidades a serem desenvolvidas pela disciplina. Temos uma

preocupação exclusivamente orientada para o “o que ensinar?” e com quais

objetivos, e em nenhum momento a discussão de “como ensinar?” ou “como

avaliar?”, demonstrando que, se considerarmos os três eixos de Bernstein, valoriza-

se o currículo, em detrimento da pedagogia e da avaliação.

Com relação à classificação, como mencionado, o documento é dividido em

grandes áreas, estando a Sociologia incluída na área das “Ciências Humanas e suas

Tecnologias”. Essa opção pela divisão baseada em grandes áreas do conhecimento

já datava do ano anterior, 1998, quando proposta pela primeira vez nas DCNEM. Em

diversos momentos, os PCNEM trazem referências a áreas que não aparecem

enquanto disciplinas no currículo - como a antropologia, a política, o direito, a

economia e a psicologia. Apesar desse fato, considera-se que elas são

indispensáveis para a formação do cidadão, objetivo primordial do ensino. Espera-se

19 Ibid., p. 37.

Page 20: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

20

portanto que tais disciplinas apareçam diluídas no corpo daquelas que já compõe o

currículo formal da educação, ficando clara, assim, a orientação interdisciplinar

proposta.

O documento possui uma orientação curricular, no sentido de apresentar um

grande leque de conteúdos que fazem parte da disciplina de Sociologia. Temos a

presença de Marx, Durkheim e Weber, além das categorias “Família”, “Estado”,

“Trabalho” e “Cultura”. A preocupação aqui é de estabelecer temas que sirvam de

uma base comum ao currículo de Sociologia no Ensino Médio, trabalhando uma

diversidade de temas de forma breve, porém não superficial, utilizando-se de um

vocabulário oriundo das áreas de Sociologia, Antropologia e Política.

Após essa apresentação, os PCN retornam novamente à abordagem

interdisciplinar, trazendo as “Competências e Habilidades” que se espera

desenvolver nos estudantes com os temas da disciplina de Sociologia. Apesar do

vocabulário sociológico, este não é fim em si mesmo, pois se deve ter em mente a

formação transdisciplinar do aluno, e como a Sociologia está contribuindo para esta

formação.

As competências desenvolvidas a partir do ensino da Sociologia são

divididas em 3 subáreas. As relativas à Representação e Comunicação incluem a

habilidade de analisar os diferentes discursos sobre a realidade (científico e senso

comum), além da capacidade de produzir novos discursos. As relativas à

Investigação e Compreensão trazem a necessidade de instrumentalização para

compreensão da vida cotidiana, o desenvolvimento de uma visão crítica da indústria

cultural e a habilidade de compreensão e valorização de diferentes manifestações

culturais. Finalmente, nas habilidades relativas à Contextualização Sociocultural

temos a capacidade de compreensão do mundo do trabalho e de construção

identitária, visando ao exercício da cidadania.

Concluímos que num primeiro momento, considerando a Lei de Diretrizes e

Bases (LDB) e as DCNEM, tínhamos uma preocupação voltada para estabelecer as

bases legais e os princípios responsáveis por reger a Educação Básica, e dentro

dela o Ensino Médio, fase final da educação fundamental para o exercício da

Page 21: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

21

cidadania. Quando passamos aos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1999,

vemos que a preocupação nesse momento vai além de legislar, e passa a visar

também ao estabelecimento dos temas que deverão guiar a organização individual

das diferentes disciplinas, apesar de, como objetivo central da educação, ainda

termos as Habilidades e Competências gerais, que são colocadas como necessárias

ao exercício da cidadania.

Tendo isso em mente, é possível concluir que o documento não traz

recomendações pedagógicas práticas, ou, da mesma forma, recomendações no que

tange a prática avaliativa. Entretanto, vemos que, no que tange a categoria poder, o

documento tem como princípio oferecer “maior liberdade aos professores e alunos

para a seleção de conteúdos mais diretamente relacionados aos assuntos ou

problemas que dizem respeito à vida da comunidade”.20 Podemos atribuir essa

maior liberdade ao fato de que a legislação agora está mais preocupada com a

instrumentalização do aluno, ou seja, com suas “Competências e Habilidades”, o que

justifica, em princípio, um currículo menos fixo.

Se seguirmos para a análise dos PCN+, as Orientações Educacionais

Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais21, publicadas em 2008,

temos comentários dedicados tanto à articulação entre as três grandes áreas quanto

à articulação entre as disciplinas dentro de cada uma das grandes áreas. Essas

articulações trazem objetivos comuns às diferentes disciplinas, pensando, como

anteriormente, no desenvolvimento das Competências e Habilidades gerais dos

alunos. Entre as diferentes disciplinas de uma área deve-se encontrar os pontos de

contato e de afastamento, estabelecer “as pontes e o trânsito entre as disciplinas” e

ao mesmo tempo “analisar e desfazer falsas semelhanças”.22

Vemos que esse documento não dá uma ênfase somente aos benefícios do

trabalho interdisciplinar ou à defesa dos limites e atribuições de cada disciplina; mas

20 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. – Parte 1 – Bases Legais. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. p. 22. 21BRASIL. Ministério da Educação. PCN+ Ensino Médio: Orientações Educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002. 22 Ibid., p. 18.

Page 22: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

22

busca uma abordagem em que cada uma das matérias traz contribuições para os

objetivos gerais da grande área de Ciências Humanas. O próprio documento

reconhece que “há nisso uma contradição aparente, que é preciso discutir, pois

específico e geral são adjetivos que se contrapõem”23, mas esse aparente paradoxo

é resolvido quando consideramos que o objetivo do ensino é desenvolver

habilidades e competências, e não a absorção do conteúdo por si só, que, sob esse

ponto de vista, é o meio para o fim maior: a capacitação do aluno. As competências

que estão em jogo aqui se dividem em três grupos, e seguem sendo aquela dos

PCN: Comunicar e Representar; Investigar e Compreender; e a habilidade de

Contextualização Sociocultural. A contribuição da sociologia parte de três conceitos-

base que orientam o que será trabalhado pela disciplina em sala de aula: os

conceitos de Cidadania, Trabalho e Cultura.24

O ensino deve assim partir dos conceitos orientadores da disciplina

específica, e ter como norte as competências gerais. O documento nos apresenta

explicitamente o que será trabalhado para que consigamos chegar a esse objetivo.

Para que o aluno seja capaz de comunicar e representar iremos mostrar como

existem diferentes formas de interpretar o mundo, inclusive a própria sociologia, que

coloca-se como a forma científica, em oposição ao senso comum.25 Para que o

aluno consiga investigar e compreender, cabe a nós fornecer ferramentas

conceituais, capazes de facilitar a análise dos fenômenos sociais, além de debater

os temas da comunicação de massa e de manifestações culturais de minorias.26 Por

fim, o desenvolvimento da habilidade de contextualização será trabalhada pela

análise do mundo trabalho e a identificação de sua própria posição social, que

servirá de auxílio ao exercício da cidadania.27

Além da organização curricular baseada nos princípios acima mencionados,

temos ainda os eixos temáticos apresentados para guiar o trabalho em sala de aula.

Nesse nível organizacional temos o contato mais específico com a disciplina de

sociologia em seu aspecto prático. Saímos aqui dos objetivos mais gerais e

23 Ibid., p. 15. 24 Ibid., p. 88. 25 Ibid., p. 89. 26 Ibid., p. 90. 27 Ibid., p. 91.

Page 23: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

23

entramos para o campo do conteúdo prático com o qual devemos trabalhar. Esses

eixos são os seguintes: 1. Indivíduo e Sociedade, 2. Cultura e Sociedade, 3.

Trabalho e Sociedade, e finalmente, 4. Política e Sociedade. Cada eixo divide-se em

temas em subtemas, do mais geral ao mais específico.

Brevemente, vemos que o primeiro eixo busca fazer com que o aluno se veja

como parte do todo social, que ele diferencie o senso comum do conhecimento

sociológico, que ele compreenda o papel das regras e da manutenção da ordem

social, e como ocorrem as mudanças nas estruturas sociais. O segundo eixo objetiva

desenvolver um olhar crítico frente à indústria cultural, entender qual a relação entre

cultura e ambiente escolar, e perceber a relação entre o sistema econômico vigente

e as práticas de consumo cultural. O terceiro eixo trabalha no sentido de mostrar o

papel central ocupado pelo trabalho enquanto organizador social, os possíveis

resultados de desigualdade social advindos dessa organização, e quais as

possibilidades no que tange a mobilidade social e econômica dos indivíduos. Por

último, o quarto eixo aparece para ampliar as concepções do aluno de o que é

política, trabalhando as diferentes formas de Estado, o papel dos movimentos

sociais no jogo político, e por último a legitimidade do poder no âmbito democrático

Através dessa análise do PCN+, percebemos que o documento preocupa-se

com a posição da sociologia em relação às outras disciplinas, e também com a

forma como deve ocorrer o diálogo entre as áreas. Também é possível notar que o

documento, assim como os PCNEM, está voltado para a organização curricular do

ponto de vista do conteúdo a ser trabalhado e com quais objetivos. Considerando o

vocabulário de Bernstein, podemos dizer, novamente, que se preza por um currículo

menos classificado, ou seja, com limites mais flexíveis entre as disciplinas.

Novamente, tendo em mente o aspecto pedagógico, não temos uma ênfase

no aspecto prático do trabalho em sala de aula. Vemos que “professor e aluno

devem executar suas tarefas de maneira inovadora, rompendo a tradição da entrega

de trabalhos escritos”28, mas não somos guiados em como realizar essa quebra. As

orientações são guiadas mais por princípios, e menos por proposições práticas

28 Ibid., p. 91.

Page 24: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

24

palpáveis. De fato, os pontos apresentados são válidos e devem ser levados em

consideração, mas a reflexão sobre a prática do ensino no dia a dia ainda deixa

lacunas para o professor preocupado com aspectos metodológicos.

Diz-se que o trabalho deve estar relacionado com o cotidiano do aluno e que

ele deve ter uma voz ativa no processo de aprendizagem, o que, novamente em

concordância com os PCN, traz elementos para a análise relativa à categoria poder.

Nesse sentido, a reflexão retoma a abordagem de que, numa visão tradicional de

escola, professor e aluno têm pouco espaço de tomada de decisão, o que resulta

num distanciamento entre escola e cotidiano do estudante. Assim, temos a

recomendação de que o projeto pedagógico da escola seja aberto à comunidade,

incluindo as necessidades reais e subjetivas dos alunos.

Com a mudança de governo em 2003, há uma reestruturação da esquipe

responsável pelo Ministério da Educação, e em 2004 uma equipe é formada para

analisar e reformular os PCNEM. Nesse contexto passam a ser elaboradas as das

Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM)29, que tem na

figura de Amaury Moraes a representação para a área de Sociologia. No campo

legislativo, um parecer é encaminhado ao Conselho Nacional de Educação em 2005,

e em 2006 temos a aprovação da obrigatoriedade da disciplina de Sociologia no

Ensino Médio.

A tendência para a valorização das especificidades da sociologia adquire

contornos mais concretos com a publicação das OCNEM em 2006. Em comparação

com os PCNEM, vemos que entre uma Sociologia pensada a partir da

interdisciplinaridade e uma sociologia pensada pela ótica da compartimentalização

das disciplinas, pende-se agora para a segunda opção, com a valorização do que

ela tem de específico em contraste com o restante do currículo. No lugar da

comunicação entre as disciplinas, a partir da abordagem de grandes temas

genéricos que seriam trabalhados por todas elas, vemos agora uma abordagem

sobre temas mais específicos e particulares da sociologia. E como consequência

29 BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Volume 3 – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2006.

Page 25: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

25

lógica, quanto mais específico e aprofundado o tema dentro de uma dada área de

conhecimento, mais complicado torna-se a comunicação com outras áreas.

Nas Bases Legais dos PCNEM observamos a proposta de revigorar “a

integração e articulação dos conhecimentos, num processo permanente de

interdisciplinaridade e transdiciplinaridade”.30 Já nas OCNEM, pendendo para o

outro lado, vemos que “muitas vezes – e particularmente nas DCNEM – se pensa

que os ‘conhecimentos’ da Sociologia possam ser tratados pelas outras disciplinas

de modo ‘interdisciplinar’. Isso pode constituir um equívoco.”31 Nas Orientações,

considera-se que a Sociologia, tanto quanto disciplina acadêmica quanto como

disciplina na educação básica, é uma área de conhecimento relativamente recente

se comparada às áreas já consagradas.

Historicamente, é uma disciplina que teve que lutar contra a

interdisciplinaridade para assumir sua posição e demonstrar que a relação entre

sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento necessitam de uma

epistemologia própria. Portanto, para que a sociologia assuma sua posição é

necessário ressaltar primeiramente o que há de específico nela. Como ela possui

características próprias que a justificam enquanto disciplina isolada da história, da

geografia, da economia, etc. Esse ponto de vista supõe que um ambiente que

ressalta a interdisciplinaridade de abordagens não contribui para essa afirmação da

Sociologia, mantendo o estudo das relações sociais diluídos em outras disciplinas e

abordagens.

Portanto, no que diz respeito à classificação, vemos que este é o primeiro

documento que pende contrário ao tratamento interdisciplinar da Sociologia,

buscando marcar sua posição de obrigatoriedade no currículo. Mais que isso,

sugerindo possíveis pontos de conexão entre as disciplinas, o documento nos

lembra que a Sociologia é a única das disciplinas que possibilita tomar a escola (e

as outras matérias) como objeto de análise.

30 BRASIL, 1999, op. cit., p. 17. 31 BRASIL, 2006, op. cit., p. 111.

Page 26: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

26

Justifica-se a presença da sociologia no currículo não só pela tradicional

leitura de que ele é capaz de contribuir para o exercício crítico da cidadania, mas

também por ela tornar possível a compreensão de “um modo de ser de uma

sociedade, classe, grupo social e mesmo comunidade” (p.105). A expectativa de que

a escola forme cidadãos críticos toma formas mais concretas com sua presença na

grade curricular, que irá trabalhar através da sociologia, da política e da

antropologia, temáticas que abrangem desde as mudanças associadas à revolução

industrial até questões sobre a política contemporânea. Mas não apenas isso, a

Sociologia contribui também, na pluralidade do mundo contemporâneo, para a

compreensão identitária, nossa, e de outros grupos.

Ela é, em seu princípio fundamental, uma área do conhecimento que se

coloca em oposição ao senso comum, a concepções infundadas (ou fundadas no

conhecimento não-científico) sobre a sociedade e os fenômenos sociais. As OCN

colocam dois princípios como pontos de partida para o trabalho do professor de

Sociologia. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que ela busca realizar uma

“desnaturalização das concepções ou explicações dos fenômenos sociais.”32 e em

segundo lugar, deve-se produzir um estranhamento com relação a esses mesmos

fenômenos.33

O primeiro ponto, relativo à desnaturalização, tem como princípio colocar em

evidência que as “relações sociais, as instituições, os modos de vida, as ações

humanas, coletivas ou individuais, a estrutura social, a organização política possuem

uma historicidade”.34 Ou seja, deve haver uma quebra com a visão que naturaliza

instituições e fenômenos sociais, colocando em seu lugar a visão sociológica de que

as formas com que as relações sociais operam também são guiadas por princípios

sujeitos à passagem do tempo e a transformações, e mais importante, esse

processo de transformação pode ser objetivamente analisado por meio da

Sociologia. Nada pode ser tomado como natural, como dado; tudo é construído

socialmente e passível de ser analisado.

32 Ibid., p. 105. 33 Ibid., p. 106. 34 Id.

Page 27: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

27

O segundo ponto, o estranhamento, diz respeito a uma mudança na forma

como olhamos para os fenômenos sociais à nossa volta. Salienta-se aqui a

pretensão de objetividade que orienta a prática científica. O objeto de estudo da

Sociologia não é algo que está alheio à vida das pessoas; pelo contrário, muitas

vezes é o que há de comum e o que nos une: o trabalho, a escola, a etnia. São

temas sobre os quais, sociólogos ou não, costumamos construir opiniões. A

constância dos fenômenos sociais em nossas vidas não tem como consequência

direta um entendimento do funcionamento desses fenômenos. A Sociologia afirma

então que existe essa outra forma de ver o mundo, a da análise científica da

sociedade, que é possível e distinta do senso comum. Citando o exemplo da análise

de Durkheim sobre o suicídio, o autor nos diz que:

Suas causas estão fora do indivíduo, constituindo um fato social tal como o autor o define: exterior, anterior, coercitivo aos indivíduos. Estranhar o fenômeno ‘suicídio’ significa, então, tomá-lo não como um fato corriqueiro, perdido nas páginas policiais dos jornais ou boletins de ocorrência de delegacias, e sim como um objeto de estudo da Sociologia. (MEC, 2006)35

Segundos as OCNEM o trabalho do professor deve estar assentado na

interlocução de três recortes em sala de aula: conceitos, temas e teorias. Na prática

da sala de aula, esses três recortes serão trabalhados em diálogo, e não

isoladamente. Conceitos (como burguesia ou ideologia) são palavras chave que

buscam traduzir a realidade social, atribuir nomes e uma qualidade abstrata ao

mundo dos fenômenos sociais.36 Eles possuem uma história e referências teóricas,

podendo ter diferentes definições de acordo com a época em que estão sendo

trabalhados e autor de referência utilizado. Por sua vez, a opção de trabalhar a partir

de temas (como violência e globalização) aproxima a sociologia de problemas

concretos que estão presentes na realidade dos alunos.37 Por fim, as teorias são

“modelos explicativos”, os paradigmas que buscam explicar o fenômeno social. No

documento, são considerados no nível do ensino médio principalmente as teorias de

Marx, Weber e Durkheim.38 Cabe salientar que é necessário ser feito um recorte:

35 Ibid., p. 107. 36 Ibid., p. 117. 37 Ibid., p. 121. 38 Ibid., p. 123.

Page 28: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

28

Não parece razoável e exequível, ou mesmo interessante, percorrer todos os

pressupostos de uma teoria, nem todos os conceitos que ela encerra ou seus

desdobramentos. Aqui cabe sempre uma seleção, pode-se dizer que a

“reconstrução” de uma teoria científica, nas ciências humanas ou naturais, que deve

atender aos fins didáticos específicos do nível de ensino em que se insere.39

Nos três documentos analisados até aqui temos pela primeira vez uma

preocupação metodológica, pensando a prática de sala de aula. Além da

metodologia sugerida acima, assentada nas ideias de Conceito, Temas e Teorias,

argumenta-se contra o formato de aula “palestra”, onde temos a aula reduzida a uma

transmissão de conhecimento sentido professor-aluno, e somos lembrados que o

meio com que se apresenta a mensagem é tão importante quanto a mensagem em

si. Ora, essa é uma afirmação que exige uma preocupação pedagógica: exige

pensar sobre a metodologia com que vamos trabalhar em sala de aula. Vemos que

esse é o primeiro dos documentos que traz esse tipo de preocupações, fugindo do

debate meramente curricular, e aproximando-se do pedagógico.

Ao final do documento temos, na sessão “Práticas de Ensino e Recursos

Didáticos”, uma lista de sugestões de recursos pedagógicos.40 São eles: 1. Aula

expositiva, 2. Seminários, 3. Excursões, visitas a museus e parques ecológicos, 4.

Leitura e análise de textos, e 5. O uso de cinema, vídeo ou DVD, e TV, 6. Fotografia,

e 7. Charges, cartuns e tiras. Especificamente sobre o tema número quatro, leitura e

análise de textos, que interessa mais ao presente trabalho, nos diz o autor que os

textos (acadêmicos ou didáticos):

...não "falam" por si sós, dependem de ser contextualizados e analisados no conjunto da obra do autor, precisando da mediação do professor. Ou seja, os alunos precisam saber quem escreveu, quando e em vista do que foi escrito o texto, a fim de que este não seja tomado como verdade nem tenha a função mágica de dizer tudo sobre um assunto. A leitura e a interpretação do texto devem ser encaminhadas pelo professor, despertando no aluno o hábito da leitura, a percepção da historicidade e a vontade de dizer algo também sobre o autor e o tema abordado. (MEC, 2006)41

39 Ibid., p. 124. 40 Ibid., p. 127. 41 Ibid., p. 128.

Page 29: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

29

São citados princípios básicos que devem orientar cada uma dessas

possibilidades, mas o documento não chega a propor rotinas concretas de trabalho.

Os recursos apresentados são comentados brevemente, e o foco da apresentação

caminha mais no sentido de nos mostrar os benefícios de cada um deles, e portanto

não temos propostas metodológicas aprofundadas. Na prática, um professor não

conseguiria usar este documento para preparar uma aula, por exemplo. Ele teria

sugestões de como fugir da tradicional aula expositiva, mas dependeria de seus

próprios esforços para desenvolver do zero um recurso pedagógico.

Em suma, seja no campo de princípios orientadores, seja no campo da

prática de sala de aula, os documentos pouco contribuem para guiar o professor que

deseja pensar em metodologia de ensino. A adaptação do ensino ao mundo

contemporâneo, objetivo tácito dos documentos que dão sequência à publicação da

Lei de Diretrizes e Bases, não encontra uma discussão metodológica que a

sustente, pois, como observado, as publicações oficiais limitam-se a pensar

currículo. Uma nova proposta educacional que leve em conta a subjetividade do

estudante, torna-se mais fácil se fizermos uma reflexão acerca da pedagogia, pois

de outra forma, os professores seguirão a ensinar conteúdos revistos, através de

metodologias ultrapassadas.

Page 30: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

30

3 PROPOSTA METODOLÓGICA 3.1. JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO

A atual organização da educação nacional tem como referência central a

publicação, em 1996, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica. A lei, que

passa a incluir o Ensino Médio dentro daquilo que é considerado Educação Básica,

surge num contexto em que se discute a transformação de paradigmas, nos quais

vemos estilhaçados os discursos educacionais que sustentavam as antigas

concepções de ensino. (BRANDÃO, 1999). O período pós-LDB é marcado, portanto,

por uma multiplicidade de discursos normativos acerca da educação e da

pedagogia, que apesar de heterogêneos, concordam que o modelo tradicional de

escola deveria ser revisto e atualizado, conforme as novas concepções de ensino, e

a função deste na sociedade.

Art. 2º . A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1996)42

Tem-se em mente um novo modelo de sociedade, em que a valorização do

indivíduo e da pluralidade de crenças deve ser respeitada em levada em

consideração. Não basta a formação para o mercado, deve-se formar o cidadão,

capaz de refletir criticamente e ter voz ativa nesse mundo plural. A escola tradicional,

segundo essa lógica, não seria capaz, seja pela sua organização estrutural e

curricular, seja pelas metodologias pedagógicas utilizadas, de dar conta dessa

formação exigida pela nova realidade.

É responsabilidade do governo federal legislar acerca do padrão de ensino,

garantindo a uniformidade da educação básica ao longo do território nacional,

através do estabelecimento de “competências e diretrizes” que norteiam a prática, e

prestando assistência, técnica e financeira, aos estados e municípios. Seguindo a

publicação da LDB, a tendência é cada vez mais que o ensino seja pensado a partir

da lógica de “Habilidades e Competências”, e o desenvolvimento destas é colocado

42 BRASIL, 1996, op. cit., Art. 2°

Page 31: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

31

acima da lógica do conhecimento como fim em si mesmo. Não se coloca mais como

objetivo que o aluno conheça os conteúdos de cada uma das disciplinas, mas sim

que, a partir do trabalho disciplinar, ele se instrumentalize, tornando-se um cidadão

capacitado e competente, capaz de exercer a cidadania e achar seu lugar no mundo

do trabalho.

Esta constatação, enquanto princípio orientador, muda o foco das análises

que se fazem do ensino. Torna-se menos importante discutir qual o conteúdo que

será ensinado, e mais importante pensar acerca de metodologias capazes de

desenvolver tais competências nos alunos. A pedagogia tradicional, por estar muito

preocupada com o conteúdo que seria transmitido, acomodou-se com o modelo

expositivo, no qual era incumbência do professor transmitir todo o conteúdo que era

considerado essencial à educação. Agora, sob a nova ótica, fica em segundo plano

que o aluno “aprenda algo”, e ganha espaço a lógica do “aprender a aprender”.

O problema reside no fato, como apontado por João Valdir Alves de Souza43

(2008), de que essa mudança de ótica, que se configura no plano legislativo e tem

grandes impactos sobre a organização da estrutura de ensino a nível nacional, não

encontra correspondência dentro da formação dos professores no ensino superior.

Esse descompasso pode ser apontado em dois planos diferentes, porém

complementares. Em primeiro lugar, não há uma valorização da área da licenciatura,

e o campo da pesquisa é mais reconhecido, recebendo mais investimentos e

orientando a estruturação das grades curriculares dentro dos diferentes cursos. Em

segundo lugar, os professores universitários, presos à metodologia tradicional da

aula expositiva, não abrem a imaginação dos alunos para novas possibilidades, não

servindo de exemplo para os futuros professores, que assistem durante quatro ou

cinco anos a aulas tradicionais. No limite, expõem-se a metodologia alternativa

passando o conteúdo no quadro negro, para que seja copiado pelos alunos.

Essa tendência é apresentada por Ángel Oliva, Ángel Martínez e Rosa del

43 SOUZA, J. V. A. Formação de professores para a Educação Básica – Dez anos de LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Page 32: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

32

Pozo44 (2016), que argumentam que os estudantes universitários de licenciatura,

ensinados no cotidiano da prática universitária o que é que se entende por "aula",

levam as técnicas de ensino expositivas para a Educação Básica. Assim, apesar da

mudança de ótica proposta a partir da LDB, e presente nos documentos oficiais

subsequentes, em termos de metodologia assistimos a um conservadorismo e

resistência à transformação que é propagado dentro da academia e reproduzido

dentro das escolas.

Os mesmos autores apontam para alguns princípios capazes de facilitar a

aprendizagem, e que devemos ter em mente se temos a pretensão de pensar em

metodologias alternativas. Em primeiro lugar, uma mudança de foco, em que a aula

não está centrada no professor, como aquele responsável por expor o conteúdo,

mas no aluno, como aquele que está ali para aprender, e que deve ter suas ideias,

afetos e necessidades valorizados. Segundo, deve-se favorecer um ambiente de

aprendizagem baseado nas interações e trocas. E por último, o conhecimento deve

construir-se a partir de uma "negociação democrática", que implica em questionar a

ideia de um professor que detém um conhecimento puro, que está ali para iluminar

seus alunos. Isso implica num "relativismo epistemológico", em que as opiniões e

concepções de mundo dos alunos não podem ser simplesmente descartadas e

substituídas pelas "corretas".45 (OLIVA, MARTÍNEZ, POZO, 2016)

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC)46 aponta como um dos objetivos

da área das Ciências Humanas no ensino básico “problematizar o papel e a função

de instituições sociais, culturais, políticas, econômicas e religiosas”47, e somos

lembrados mais uma vez da importância das ideias de “desnaturalização” e

“estranhamento” estarem presentes no currículo de Sociologia.

Um ponto importante que deve ser levado em consideração, e que tem

impactos evidentes sobre nossas opções metodológicas, é que as “instituições” que

44 OLIVA, A. J., MARTÍNEZ, A. E., POZO, R. M. Tendencias metodológicas en los docentes universitarios que forman al profesorado de primaria y secundaria. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 65, abr-jun 2006. p. 391-409. 45 Ibid., p. 394. 46BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2015.47 Ibid., p. 237

Page 33: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

33

nossa disciplina busca problematizar são ocupadas justamente pelos estudantes

com os quais devemos dialogar. Cada um deles, com suas diferentes origens,

carrega uma trajetória específica e participa de diferentes grupos. Devemos estar

atentos ao fato de que, por exemplo, quando tratamos o tema da homofobia em sala

de aula, teremos nessa sala, muito possivelmente, alunos que vem de um convívio

familiar no qual relações homoafetivas são tratadas como condenáveis. Este é um

exemplo, mas podemos pensar em situações semelhantes quando tratamos grande

parte dos temas da Sociologia.

Tendo isso em mente, podemos levar nossa reflexão acerca da pedagogia

além. Considerando os conceitos que norteiam a sociologia, as competências da

área no ensino médio, e os eixos temáticos que devem ser trabalhados em sala,

cabe a pergunta: como trabalhar os conteúdos sugeridos de forma significativa?

Como tornar possível, inclusive para o aluno que assistiu durante toda sua vida à

condenação moral da homoafetividade, uma reflexão sobre o tema em concordância

com o “afastamento de pré-noções” defendido pela Sociologia? Como realizar a

"negociação democrática" que comentamos acima?

Olhando por essa perspectiva podemos dizer que temos um grande desafio

em sala de aula ao tratar com esses temas “delicados”. Qual seria a abordagem

correta, se estabelecemos que o objetivo de nossa aula é que o aluno “problematize”

essas questões? Devemos ter clareza nesse objetivo. Estamos ali para afastar o

aluno do senso comum e de crenças que, possivelmente, encontram nele próprio um

representante. Dito de outra forma, o professor deve encontrar maneiras de baixar a

guarda do aluno, de contornar a resistência que o aluno traz de outras esferas

sociais, se quiser proporcionar uma aprendizagem significativa.

Apesar das considerações metodológicas que vimos nas OCN, fica claro que

essas são insuficientes, além de não levarem em conta este argumento relativo à

especificidade dos temas da Sociologia. A partir dessa constatação, passamos

então à busca por alternativas, um dos objetivos do presente trabalho.

Argumentaremos aqui a favor da metodologia da leitura de textos literários como

uma – mas não a única – possível forma de abordar temas delicados em sala de

Page 34: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

34

aula. Essa abordagem, como veremos, evita um choque direto das interpretações

sociológicas com os pontos de vista pré-concebidos de nossos alunos.

3.2 BASE TEÓRICA

O texto literário consegue evitar o choque, baixando a guarda de nossos

alunos, na medida em que ele não tem pretensões de verdade objetiva, como pode

ser o caso da teoria sociológica. A literatura traz o ar lúdico, imaginativo, e somos

levados para um mundo que não é mais o nosso, e, consequentemente, abrimos

nossa imaginação ao novo, ao absurdo, ao fantástico. Por outro lado,

argumentamos, é possível que esse exercício de imaginação, que parte de um

mundo imaginado, possibilite conclusões, bastante concretas, sobre o mundo real.

A importância da leitura para a educação do indivíduo, seja ela formal ou

não, já foi extensamente discutida. Dentre os autores que trabalham com o tema,

tomaremos Michèle Petit48 e Daniel Pennac49 como referências. Ambos os autores

trazem uma visão compatível, em muitos aspectos, sobre o uso do texto literário

como um fim em si mesmo. Não temos no presente trabalho a pretensão de esgotar

a teoria dos dois autores, ou de nos aventurarmos no debate teórico sobre o tema.

Limitamo-nos a reconhecer a inspiração que pudemos encontrar nos textos desses

autores, e trazemos, a seguir, os pontos que julgamos importantes para nosso

trabalho. Ficará claro no capítulo seguinte, a partir do relato de nossa experiência,

como os argumentos apresentados nos auxiliaram com nossa prática.

Para começar, trazemos um princípio apresentado por Daniel Pennac: o

verbo “ler”, assim como os verbos “amar” e “sonhar”, é um verbo que “não suporta o

imperativo.”50 (PENNAC, 1993). A afirmação, a princípio inocente, foi a fundação

sobre a qual nossa prática se assentou. Nossa metodologia parte de uma quebra,

um afastamento daquilo que os alunos definem tradicionalmente como sendo

educação. Não faz parte do ambiente escolar, normalmente, a possibilidade de

escolha, e quando pretendemos trabalhar com textos, como Pennac nos lembra,

48 PETIT, M., op. cit. 49 PENNAC, D., op. cit. 50 Ibid., 13.

Page 35: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

35

essa é a única opção: não podemos obrigar nossos alunos a ler e esperar que

teremos bons resultados; devemos convidá-los à leitura.

No mesmo sentido, Michèle Petit nos diz que “a leitura é uma arte que se

transmite, mais do que se ensina”.51 (PETIT, 2009) A partir dessa afirmação, ao lado

do argumento de Pennac, fica claro que podemos realizar uma mudança de

perspectiva da forma como encaramos a leitura, e, mais ainda, a educação como um

todo. Não devemos partir da leitura forçada e não podemos correr o risco de manter

o fluxo de transmissão de conhecimento professor-aluno, tradicional de uma aula

expositiva, e esperar uma reprodução dos textos lidos ao final da atividade. Quando

Petit troca o “ensinar” pelo “transmitir”, é justamente para fugir da ausência de

diálogo que estamos tão acostumados a presenciar em sala de aula.

De um lado, Pennac (1993) coloca o entusiasmo acima da prova de

competência, o aprender acima do recitar, o perder noites acima do ganhar tempo, e

finalmente o prazer acima do dever.52 Do outro, Petit (2009) sugere que devemos

colocar o “emocional” do leitor acima do “cognitivo”.53A leitura deve ser proposta

deixando claro que não estamos ali para passar um “conteúdo” de Sociologia. Não

esperamos que os alunos memorizem trechos do enredo para que possamos cobrá-

los mais tarde, esperando que escolham a alternativa certa num exercício de

múltipla escolha.

Basta pensarmos em como é comum no ambiente escolar que

apresentemos aos alunos, assim que iniciada determinada temática ou atividade, a

data do vestibular ou da avaliação que se coloca no horizonte próximo. Junto a

textos clássicos da literatura, temos o guia de leitura que os acompanham,

certificando-se de que o aluno “entendeu bem o que se gostaria que ele

entendesse”.54 (PETIT, 2009) Essa é uma prática recorrente em todas as disciplinas

do ensino médio, e muitas vezes esperamos que essa cobrança sirva de motivação

à leitura e à participação, ou, pelo menos, à decoreba.

51 PETIT, M., op. cit., p. 23. 52 PENNAC, D., op. cit., p. 55. 53 PETIT, M., op. cit., p. 58. 54 PENNAC, D., op. cit., p. 43.

Page 36: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

36

Em um ambiente onde os alunos muitas vezes não têm o costume, a

motivação necessária, ou a mínima vontade de ler os textos que estamos

apresentando, é um desafio achar o melhor caminho para abordar a leitura.

Pensamos, em consonância com os autores aqui citados, que essa abordagem de

cobrança não seja o melhor caminho. Se estamos lidando com alunos que, por

diferentes motivos, possuem de saída uma dificuldade com a leitura, não é possível

imaginarmos que teremos bons resultados pedindo ao estudante que ele se engaje

numa atividade com a qual ele não se sente confortável, e mais, esperando que ao

final ele realize uma prova que comprovará, com uma nota de zero a cem, o seu

(in)sucesso.

Tradicionalmente a leitura é apresentada como um dogma, algo a que todo

aluno deve se submeter, e seria inconcebível pensar o contrário. Nesse visão, o

conhecimento resultante dos estudos é necessariamente fruto do sofrimento, e

prazer e educação são, a princípio, incompatíveis.55 (PENNAC, 1993). Aqui

encontramos um ponto importante para nossa atividade. E se a leitura não for

obrigatória? E se apresentarmos a leitura como algo prazeroso? Quando realizamos

essa abordagem, ao aluno acostumado a associar educação a sofrimento, parece

até que não estamos ali para ensinar alguma coisa; mas obviamente estamos. Está

aí o segundo princípio de nossa atividade. Além do caráter de convite, estamos ali

para propor um momento no qual, dentro da escola, é possível uma conduta distinta

da que é usualmente esperada da escola.

Apenas para termos uma ideia dessa leitura nada convencional (leia-se:

nada obrigatória) proposta por Pennac, serve-nos de inspiração seu guia de “10

direitos do leitor”, no qual encontramos o “direito de pular páginas”, o “direito de não

terminar um livro”, e acima de todos o “direito de não ler”.56 (PENNAC, 1993). Este

último, veremos em nosso relato, foi explicitamente colocado para nossos alunos ao

início das atividades. Todos os presentes, nas diferentes ocasiões, tinham o direito

de ignorar o texto que havíamos entregue a eles. Felizmente, este direito parece ter

o efeito contrário, estimulando os alunos a participarem da atividade. A mudança

proposta vale para ambas as partes: professores e alunos. Esperar uma relação

55 Ibid., p. 78. 56 Ibid., p. 139.

Page 37: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

37

diferente dos alunos com os livros implica em propostas diferentes de como

trabalhar a literatura, estas últimas, responsabilidade do professor.

Sobre a importância da leitura na formação, Petit, que trabalha com a leitura

em contextos traumáticos, nos diz:

...as leituras abrem para um novo horizonte e tempos de devaneio que permitem a construção de um mundo interior, um espaço psíquico, além de sustentar um processo de autonomização, a construção de uma posição do sujeito. Mas o que a leitura também torna possível é uma narrativa: ler permite iniciar uma atividade de narração e que se estabeleçam vínculos entre os fragmentos de uma história, entre os que participam de um grupo e, às vezes, entre universos culturais. Ainda mais quando essa leitura não provoca um decalque da experiência, mas uma metáfora.57 (PETIT, 2009)

Esse poder de metáfora ao qual a autora se refere é o potencial da literatura

de dar nomes às nossas emoções e angústias. Ao escutar uma história,

conseguimos nos identificar, nos colocar na posição dos personagens sem que seja

necessário que a experiência narrada tenha ocorrido conosco. Pensamos nas

formas como as emoções “ficcionais” são expressas pelas palavras e aprendemos a

lidar melhor com nossas emoções “reais”. Ou seja, a leitura nos dá ferramentas

para pensarmos sobre quem somos e sobre como lidamos e podemos lidar com

nossa realidade e com o outro.

Por um momento somos levados a um mundo abstrato e suspendemos a

materialidade do mundo à nossa volta para darmos lugar à imaginação. Existe aí um

aspecto paradoxal: somos capazes, numa leitura solitária, de ir ao encontro de um

mundo que até então não imaginávamos, de nos identificarmos com personagens,

de sentirmos compaixão por um autor que só conhecemos através de suas palavras,

e finalmente de nos identificarmos como uma comunidade de leitores com a qual

julgamos ter algo em comum.58 (PETIT, 2009). Pennac (1993) tem a mesma

interpretação, dizendo que é na abstração do mundo realizada através da leitura que

atribuímos um sentido a ele.59

57 PETIT, M., op. cit., p. 32.58 Ibid., p. 80. 59 PENNAC, D., op. cit., p. 19.

Page 38: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

38

O foco aqui não é uma fuga da realidade, no sentido de esquecer nossos

males, utilizando o livro como um analgésico em meio a possíveis dores do dia a dia.

A leitura responde menos pelo “fechamento” de nossa realidade, e mais pela

“abertura” de novas possibilidades em nossas vidas. Exercitamos nossa imaginação

e a construção de novos mundos, aprendemos a lidar com o que conhecemos

através de formas até então inimagináveis. Nos ensina também a liberdade, a

autonomia, dado que é uma escolha consciente que tomamos quando decidimos

mergulhar nesses mundos imaginados: “ler tem a ver com a liberdade de ir e vir,

com a possibilidade de entrar à vontade em outro mundo e dele sair”.60 (PETIT,

2009)

Esperamos então que nossa atividade ative essas possibilidades nos alunos.

Esperamos que eles acessem os mundos fictícios que estamos trazendo a eles com

nosso convite, e que desse mundo eles consigam tirar novas possibilidades de

imaginação de seus próprios mundos. Veremos em nosso relato como isso torna-se

possível. Nós, enquanto guias da atividade, estamos ali para buscar traçar esses

pontos de conexão. Indagamos aos nossos alunos: “vocês já estiveram nessa

posição em que se encontra o personagem?”. Ouvimos, repetidamente, que sim,

eles já estiveram nessa posição, e está gerada a identificação, não só com o

personagem, mas com os colegas que também responderam afirmativamente.

São centrais esses dois momentos, e eles devem caminhar paralelos. Ao

invés de irmos direto à posição do aluno, buscando trazer análises sobre sua vida e

os grupos do qual ele faz parte, gerando resistência por nossa intrusão, realizamos

um contorno através da metáfora (primeiro momento). Damos a eles uma história,

personagens e um mundo fantástico, onde a realidade dos estudantes não é, a

princípio, o alvo de nossa análise. Mesmo assim, a identificação com esse universo

(segundo momento), possibilita trabalharmos os importantes e delicados temas que

capacitam os alunos a refletir sobre suas próprias vidas.

A literatura é capaz de nos ensinar que aquilo que sentimos, os dramas que

vivemos, são compartilhados com o restante das pessoas, nesse caso, com nossos

60 PETIT, M., op. cit., p. 92.

Page 39: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

39

colegas de turma. O livro é capaz de criar uma identificação, de fazer-nos perceber

que possuímos uma conexão com o “outro”, e através dessa conexão, de aproximar.

Essa conexão inicia-se ainda antes, durante a leitura em voz alta, quando ouvimos

as vozes de nossos colegas, talvez de uma maneira que nunca havíamos ouvido

antes. Como nosso relato deixará claro, ouvir nosso colega lendo, ou, mais tarde,

contando um relato próprio, gera um grande interesse, pois passamos a conhecer

algo novo sobre aquele que estava ao nosso lado o tempo todo, mas que, por

motivos distintos, não havíamos parado para dar ouvidos.

Essa dinâmica de leitura em voz alta tem como ponto importantíssimo de

apoio, talvez contra intuitivamente, o silêncio. Quando lemos aprendemos a ouvir e

ser ouvidos. Percebemos através dessa prática que nossa voz tem valor, indicado

pelo silêncio de nossos colegas que acompanham a leitura. Mais que isso, entre

aqueles que não possuem o costume da leitura, a leitura em voz alta vem como uma

estratégia de “emprestar uma voz” ao livro. Aos poucos o suporte impresso vai

sendo desvendado, mas até lá, a familiaridade da voz de um colega é capaz de

carregar sentido e obter resultados expressivos.61 (PETIT, 2009).

Petit, ao abordar os fundamentos psicanalíticos que sustentam a leitura e a

narrativa, considera as vantagens e possíveis resultados positivos que elas podem

trazer para os indivíduos. Percebe-se que muitas vezes a importância da narrativa

está no narrar, na prática em si, mais que no conteúdo sendo narrado. Ou seja, a

experiência da narrativa, o lidar com as palavras é capaz de trazer benefícios, por

vezes independente do conteúdo que está sendo trabalhado. Um exemplo

interessante apresentado pela autora é o caso do debriefing, uma conversa com fins

terapêuticos realizada logo após uma experiência traumática. O que se percebeu foi

que os resultados positivos das sessões eram obtidos não devido ao tema das

conversas, mas devido ao fato da presença de uma pessoa disposta a escutar e

relatar sem julgamentos. Vale mais a confiança que é transmitida do que o relato

especificamente.62 (PETIT, 2009)

61 Ibid., p. 59. 62 Ibid., p. 129.

Page 40: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

40

As origens desse poder da narrativa, segundo a autora, podem ser

associadas à nossa relação ainda bebês com nossas mães, ainda quando estamos

aprendendo a nos comunicar. Antes de atribuirmos sentido e cognição às palavras,

estamos atribuindo ritmo e sentindo compaixão pela mãe que porta a voz

responsável por nosso conforto e segurança. Nos primeiros meses a narrativa nos

ensina a lidar com o espaço ausente, com a separação que inicialmente não

entendemos. Damos nome àquilo que está ausente, e consequentemente

aprendemos que também existe o retorno. A narrativa tem portanto um poder

confortador central para o bebê que está aprendendo a lidar com as idas e vindas de

sua mãe.63 (PETIT, 2009)

3.3 A LITERATURA ENCONTRA A SOCIOLOGIA

Dadas essas virtudes que os autores atribuem à leitura, partimos então às

possibilidades que nós, enquanto professores de Sociologia, podemos imaginar para

a sala de aula a partir delas. O objetivo prático de nosso trabalho consiste em tomar

essas virtudes e utilizá-las no ensino da Sociologia, resultando numa metodologia

alternativa à aula expositiva tradicional, e que, como veremos, possibilita um

contexto de interação favorável à construção do conhecimento através de

aprendizagens significativas.

A estratégia consiste em valer-se da literatura para que não entremos em

choque direto, de um lado nossas noções sociológicas, do outro as concepções pré-

estabelecidas de nossos estudantes, oriundas do senso comum. Através da

literatura, contornamos a guarda emocional que dificulta o trabalho de certos temas,

e alcançamos, com mais sutileza, um ponto que possibilita um trabalho menos

conflituoso, gerando resultados que vão muito além do entendimento de Sociologia,

mas que também trazem benefícios no campo da leitura, da comunicação, do

trabalho em grupo, da capacidade de expressão, e que contribuem para gerar

respeito mútuo, através da prática coletiva de ouvir e ser ouvido.

63 Ibid., p. 123.

Page 41: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

41

Apresentamos agora os passos que seguimos para desenvolver essa prática

em sala de aula. Ainda na fase preparatória, devemos escolher os textos literários

que serão trabalhados, e aqui tivemos alguns cuidados específicos. Primeiro, o texto

deve trazer um enredo que possibilite a abordagem de temas da sociologia e, claro,

deve ter um conteúdo, abordagem e estilo literário apropriados para o nível de leitura

dos alunos com os quais estamos trabalhando. Para os dois textos que escolhemos,

nos valemos das temáticas sociológicas que estavam presentes nos documentos

oficiais apresentados aqui. Também, tendo em mente que estaríamos tendo um

primeiro contato com as turmas, prezamos pelos temas introdutórios e fundadores

da Sociologia.

Com o conto Toda dor tem fim64 (REZENDE, 2006), prezamos pelas noções

de “afastamento de pré-noções” e “olhar objetivo”, em oposição ao olhar baseado

nas paixões e no “senso comum”. Tal abordagem está em conformidade com a Base

Nacional Comum Curricular, que coloca, dentre os componentes curriculares da

Sociologia no Ensino Médio, “compreender os princípios que tornam uma

abordagem sociológica diferente do senso comum”.65 (MEC, 2015).

Com o conto A loteria66 (JACKSON, 1948), trabalhamos as noções de

“coesão social”, “mecanismos de controle social” e “instituições” assentadas na

“tradição”, em conformidade com o componente curricular de “problematizar os

fenômenos sociais de modo a desnaturalizar modos de vida, valores e condutas

sociais”, e também com o componente “problematizar processos de mudança de

diferentes instituições sociais, tais como família, igrejas e escola”, ambos presentes

na BNCC.67 (MEC, 2015)

A rotina inicia-se com a apresentação dos professores responsáveis e do

projeto, e devemos esclarecer, já nesse momento, que nossa atividade tem

metodologias distintas e objetivos distintos daquilo que os alunos estão

acostumados. Realizamos um convite à participação, e os alunos que não estiverem

afim de participar podem manter-se em silêncio, dedicando-se a outra atividade 64 REZENDE, M. V., op. cit. 65 BRASIL, 2015, op. cit., p. 298. 66 JACKSON, S., op. cit. 67 BRASIL, 2015, op. cit., p. 298.

Page 42: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

42

qualquer. De início, garantimos que os alunos não serão cobrados acerca da leitura,

e não teremos uma nota para atribuir à atividade realizada.

Encaminhamos então a leitura do texto: a leitura será realizada em voz alta,

iniciada pelo professor, e seguida pelos alunos que quiserem participar. A única

coisa que pedimos nesse momento é o respeito pela leitura do colega, e todos têm

total liberdade para interromper, tomar a voz da leitura para si, e dar continuidade.

Alguns “encontrões” podem ocorrer, com duas ou mais pessoas iniciando trechos

juntas, mas isso não constituí um problema, e a dinâmica deve seguir seu ritmo até a

conclusão do texto. Concluída a leitura, seguimos com uma conversa bastante

informal e aberta, em que, novamente, o convite à participação é estendido a todos

os estudantes.

Como fomos ensinados por Michèle Petit, a pergunta que dá início a

discussão demonstra a fuga à cobrança e à exigência puramente cognitiva, indo

para o lado emocional: “Vocês gostaram do conto?”. A pergunta estimula a

participação, pois não estamos exigindo conhecimentos específicos sobre

determinado assunto, ou solicitando informações sobre a narrativa. Pedimos apenas

que os alunos manifestem as sensações levantadas pela leitura, não existindo o

certo ou o errado.

Na sequência, passamos à identificação, perguntando se os alunos

conseguem imaginar, ou passaram por situações como aquelas narradas pelos

contos. Nesse momento podemos lembrar de outras histórias, ou nos colocar na

posição dos personagens, imaginando suas alegrias e angústias. Se o personagem

do conto é julgado e condenado pelas outras pessoas, num momento em que ele

precisaria de alguém que o ouvisse e entendesse sua situação, perguntamos aos

nossos alunos se eles já passaram por isso, se já foram julgados, já julgaram ou já

deram atenção a alguém que passava por necessidade.

Importante nesse momento é demonstrar aos alunos que as experiências

subjetivas deles podem contribuir para o desenvolvimento da dinâmica, e que toda

contribuição é bem-vinda. Aos poucos, constrói-se um ambiente de diálogo, onde as

vozes se multiplicam e encontram, em seus colegas, um reflexo. A identificação com

Page 43: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

43

o conto logo gera uma identificação entre todos aqueles que participam da dinâmica,

e, aos poucos, mais e mais alunos devem sentir-se confortáveis para falar.

O professor atua como guia, mantendo a conversa nos trilhos, em direção ao

objetivo final da dinâmica, quando conseguimos aproveitar tanto o conto trabalhado,

quanto os relatos dos estudantes, para abordar noções sociológicas. Quando

trabalhamos os relatos de forma informal, antes de tentar teorizar sobre eles,

estamos buscando colocar em evidência situações em que é possível encontrar

manifestações concretas daquilo que a teoria Sociológica descreve. Ao apresentar o

exemplo concreto antes da conceituação científica, evitamos o choque sobre o qual

comentávamos anteriormente.

Ao final, chegamos às noções sociológicas, apresentadas não através de

definições conceituais abstratas, próximas do universo acadêmico e distantes da

realidade daqueles jovens; mas sim através dos exemplos concretos que eles

mesmos apresentaram ao grupo. A frieza da objetividade científica impessoal é

quebrada com o calor da subjetividade de cada um deles, que nos trazem diferentes

ângulos possíveis, que unidos, tornam possível o reconhecimento de fenômenos

sociais, conforme definidos pela Sociologia.

Abaixo apresentamos um quadro com as equivalências que estabelecemos

previamente entre os textos literários e os seus equivalentes sociológicos. Cabe

ressaltar que durante a prática acabamos abordando temas que vão muito além dos

componentes curriculares citados acima, pois a leitura subjetiva dos alunos abriu

portas para que um leque de temas fosse trabalhado.

Page 44: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

44

Trechos de “A Loteria” Noções sociológicas mobilizadas

“Sr. Summers frequentemente comentava com os habitantes da vila a ideia de fazer uma caixa nova, mas ninguém queria abandonar nem mesmo aquele resto de tradição que era representado pela caixa preta.” (p.2)

Tradição: Resistência à transformação.

“ ‘Andam dizendo por aí’, disse o Sr. Adams para o Velho Warner, que estava ao seu lado, ‘Que pros lados da vila norte eles tão pensando em acaba com a loteria’.O Velho Warner resmungou. ‘Bando de maluco’ (...) ‘Desse jeito vamo acaba todo mundo comendo ensopado de moruge e noz de carvalho. A loteria sempre existiu’ “ (p.7)

Tradição, Controle: Resistência à mudança e justificativa baseada na tradição. Controle discursivo – classifica-se o diferente como anormal.

“Tessie Hutchinson berrou para o Sr. Summers: ‘Você não deu tempo suficiente pra ele tira o papel que ele queria! Eu vi tudo! Não foi justo!’.‘Não exagera, Tessie’, respondeu a Sra. Delacroix, e o Sr. Graves disse, ‘Todo mundo teve a mesma chance’.‘Cala a boca, Tessie’, falou Bill Hutchinson num tom seco.” (p.8)

Controle, Conformidade: conforma-se aos mecanismos sociais de controle, mesmo que eles voltem-se contra nós mesmos.

“O Sr. Graves pegou a mão do garotinho, que foi de boa vontade com ele até a caixa. ‘Pegue um papel de dentro da caixa, rapazinho’, disse o Sr. Summers. O menino colocou a mão pra dentro da caixa e abriu um sorriso. ‘Pegue só um papel’, orientou o Sr. Summers.” (p.10)

Socialização; Coesão: Desde criança as normas sociais são aplicadas, coagindo à normalidade.

“e ela levantava suas mãos desesperada enquanto os moradores da vila iam para cima dela. ‘Não é justo!’, ela gritava. Uma pedra atingiu a lateral de sua cabeça.” (p.12)

Coesão; Mecanismo de controle: O grupo agindo como unidade para assegurar o cumprimento dos mecanismos de controle.

Tabela 1 – Relação entre trechos do conto “A Loteria” e possíveis noções sociológicas para serem trabalhadas com os alunos.

Trecho de “Toda Dor Tem Fim” Noções Sociológicas Mobilizadas

“meus olhos sempre foram claros, completamente videntes, porque nunca houve em mim sentimento soberano que os turvasse, nem desejos prementes que distorcessem os objetos e os fatos” (p.1)

Objetividade do olhar: O olhar objetivo da sociologia em oposição ao senso comum.

“é preciso que alguém, em algum lugar, contenha o repertório inteiros das paixões humanas sem se deixar aniquilar por elas. Alguém que as conheça e as olhe sem paixão” (p.1)

Afastamento de pré-noções: O afastamento das paixões necessário ao olhar sociológico.

“Digo-te tudo isso agora não para recriminar-te, mas apenas para provar-te que de fato tudo vejo e tudo sei” (p.2)

Análise sociológica: A Sociologia tira conclusões, mas não julga o fato social analisado.

Tabela 2 - Relação entre trechos do conto “A Loteria” e possíveis noções sociológicas para serem trabalhadas com os alunos.

Para concluir, no campo da avaliação, desenvolvemos uma atividade para

ser aplicada entre os alunos, que pode ser encontrada entre os anexos. Pensando a

Page 45: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

45

partir das ideias de Petit e Pennac, relativas ao “convite” à leitura, não nos pareceu

justo incluir uma atividade obrigatória, pela qual os alunos receberiam uma nota. A

atividade avaliativa que desenvolvemos, portanto, também foge do tradicionalismo.

Reconhecemos que, se passarmos a pensar essa metodologia como componente

curricular padrão numa escola, atenção extra deverá ser dada ao quesito avaliação,

no sentido de imaginar como adaptar a atividade para que possamos aferir uma nota

para cada aluno dentro do padrão de provas e testes hoje vigente no sistema de

ensino.

As questões presentes na atividade foram todas, de uma forma ou de outra,

baseadas na parte prática da atividade, e não aparecem novidades para além

daquelas acima já descritas. O que temos é a transcrição de algumas das questões

que já apareceram, agora apresentadas na forma escrita. Nosso intuito aqui foi mais

de ter um registro escrito daquilo que os alunos nos disseram verbalmente do que

atribuir uma nota a eles. Dito isso, recomendamos a leitura da atividade anexa para

que depois, durante o relato da experiência, leia-se os relatos escritos dos alunos

sabendo que foi dessa atividade que eles foram retirados.

Page 46: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

46

4 RELATO DE EXPERIÊNCIA 4.1 COLÉGIO ESTADUAL BARÃO DO RIO BRANCO

O projeto de leitura de contos em sala de aula não é inteiramente novidade.

Já foi aplicado por alunos do PIBID de Ciências Sociais em diversas salas de aula,

num trabalho envolvendo o conto A noite dos feios de Mario Benedetti, buscando

trabalhar a ideia de estigma a partir da discussão do conto. Pude acompanhar essa

prática algumas vezes, e daí surgiu a inspiração para o trabalho que estou

desenvolvendo atualmente. Um dos responsáveis pelo trabalho realizado pelo PIBID

foi o professor orientador deste trabalho, Rafael Ginane Bezerra, que portanto já

possui experiência com esse tipo de atividades.

Em maio deste ano, desta vez desligado do PIBID, Rafael realizou

novamente a atividade de leitura em sala de aula, utilizando o conto Toda dor tem

fim, de Maria Valéria Rezende. A atividade foi realizada no colégio Barão do Rio

Branco no centro de Curitiba, em três turmas de Sociologia cedidas pelo professor

Alexandre. Pude acompanhar a prática como observador, o que me serviu de

preparo para o exercício que eu viria a desenvolver em breve. A descrição dessa

parte, para mim mais preparatória, será mais breve e abordará principalmente as

questões metodológicas, e portanto não abordarei extensivamente as falas dos

alunos como farei num momento posterior.

O conto de Maria Rezende é uma narrativa em primeira pessoa, em que a

narradora, uma “velha tia silenciosa e apagada” dirige suas palavras a uma pessoa

que possui um “olhar dolorido”. Sabemos de início apenas que alguém passa por

uma situação difícil, e as palavras da narradora estão ali para servir de consolo. A

característica que marca o olhar da narradora é a objetividade, o olhar desprovido de

paixão, que é capaz de enxergar e entender, sem julgamentos, a tristeza que assola

nosso personagem sem nome. Ao fim descobrimos que a origem da mágoa deve-se

a uma paixão incestuosa de um irmão por sua irmã. Hoje, no dia do casamento dela

com outro homem, o sentimento melancólico toma conta do rapaz, que é então

consolado pela narradora.

Page 47: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

47

O exercício aqui realizado por Rafael serviu-me de modelo para a atividade

que eu viria a realizar na semana seguinte, e através da observação pude tirar

conclusões sobre qual seria a melhor forma de realizá-lo e reunir um leque de

“ferramentas” que poderiam ser utilizadas para um bom andamento da prática futura,

coordenada por mim.

O conto trabalhado era relativamente curto. Possui três páginas e pode ser

lido em até cinco minutos. A apresentação feita por Rafael seguiu um modelo

comum para todas as turmas. Ele já havia acompanhado algumas aulas nas turmas

em semanas anteriores e portanto já sabia o nome de alguns alunos e conhecia o

perfil de cada uma das turmas, mesmo assim fez questão de perguntar o nome dos

alunos individualmente ao entregar as cópias dos contos. Esse esforço visando a

quebra com o anonimato e a demonstração de interesse em conhecer os estudantes

traz bons resultados e parece deixar os alunos mais dispostos a participar da

atividade proposta. Durante todo o período eles eram chamados pelo nome, e creio

que esse pequeno gesto traz grandes contribuições, ainda mais considerando que

somos professores que estão ali de passagem e não possuímos a intimidade do dia

a dia para auxiliar com o trabalho.

O caráter de “convite” à participação foi deixado sempre bastante claro.

Ninguém seria forçado a participar, e aqueles que assim o desejassem estavam

livres para apenas ouvir a leitura dos colegas ou dedicar-se a outra atividade. A

única regra, ressaltada com ênfase nas três salas, é que os alunos não poderiam

tirar sarro de seus colegas durante a leitura, independente das possíveis

dificuldades e gaguejos dos colegas. A rigor, essa regra foi seguida por todos, e não

surgiram problemas nesse sentido em nenhumas das três turmas. Apesar do

“convite” deixar aberta a possibilidade a não participação, logo ficou claro que

pouquíssimos alunos não se interessavam pela atividade, e, em salas de

aproximadamente trinta alunos, tínhamos, em cada uma delas, uma média de dois

ou três que pareciam menos interessados, não acompanhando a leitura ou mexendo

em seus celulares.

Pude perceber a importância de deixar claro aos alunos que esperávamos a

participação deles na leitura. Na primeira turma, apesar do convite à participação,

Page 48: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

48

Rafael leu o conto sem que os alunos o interrompessem. Na segunda, parece-me

que ele deixou mais claro esse convite, esclarecendo que eles possuíam total

liberdade para interrompê-lo, e logo uma das meninas resolveu fazer isso e dar

sequência à leitura, seguida por outros colegas. A partir desse fato pude concluir a

importância de frisar no momento da apresentação a dinâmica de constante troca de

vozes que deveríamos ter durante a leitura, gerando assim mais envolvimento.

Também na primeira turma, tivemos a sensação de que os alunos não

conseguiram acompanhar com exatidão o enredo da narrativa. Em partes isso deve-

se ao estilo de escrita e ao vocabulário do conto de Maria Rezende, porém esse

fator não resultou em grandes complicações, pois após o término da leitura, foi feita

uma recapitulação dos pontos da narrativa, releitura de alguns trechos e discussão

acerca dos possíveis pontos que geraram confusão, até que os acontecimentos do

conto ficassem claros a todos os participantes. Tendo isso em mente, e agora ciente

dos pontos que poderiam gerar interpretações divergentes, na segunda e terceira

turmas em que trabalhamos a atividade, fez-se questão de reler alguns pontos do

conto junto com eles assim que a primeira leitura foi concluída, e os resultados foram

positivos, pois as duas turmas posteriores pareciam em maior sintonia quanto à

estrutura da narrativa.

Perceber isso também trouxe encaminhamentos para o conto que

escolhemos trabalhar na atividade futura. O conto A Loteria possui uma linguagem e

estrutura narrativa mais simples, apesar de ser mais longo. Mais ainda, nesse caso

tínhamos a vantagem de que eu mesmo fui responsável pela tradução do conto do

inglês para o português, e portanto pude fazer determinadas escolhas no momento

da tradução, que levavam em conta o perfil dos leitores para quem o conto estava

dirigido. Nesse sentido, existindo sinônimos mais acessíveis, ou formas que eu

julgava serem mais claras e objetivas de construir determinadas frases, pude chegar

a um resultado final que estava de acordo com o perfil dos alunos que estaríamos

encontrando em sala de aula.

Acompanhando a atividade tive a primeira percepção da importância da

quebra com a imagem tradicional que temos de uma aula e do professor. A pergunta

após o término da leitura foi a mesma que, há alguns anos, Rafael fazia durante a

Page 49: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

49

atividade do PIBID: “Vocês gostaram do conto?”. Apesar de ser um questionamento,

essa pergunta tem um peso de afirmação. Com ela, colocada como marco de

abertura da conversa, declaramos aos nossos alunos que não estamos ali para

cobrar deles determinado conteúdo. Não esperamos uma reprodução de algo que foi

memorizado, mas sim a exposição de suas motivações subjetivas. Quando

perguntamos se alguém gosta ou não de determinada história, obviamente não

podemos atribuir um “certo” ou “errado” à resposta, daí a importância dessa simples

pergunta. Fica demonstrado então que nós, enquanto professores, estamos

dispostos a receber uma resposta distinta (para uma pergunta também distinta) da

tradicional resposta memorizada. Posteriormente voltarei a tocar nesse ponto,

paralelamente a outras rupturas com um modelo habitual de educação que creio

termos alcançado com essas atividades.

Uma das perguntas que seguiram, e que também revela muito sobre a

abordagem metodológica aqui proposta, foi quando Rafael perguntou a eles se eles

já haviam se visto na posição de algum dos personagens do conto: seja na posição

da narradora, conselheira que é capaz de escutar um relato sem julgar; seja na

posição do irmão incestuoso, uma vítima que atravessa uma situação delicada e que

necessita de alguém capaz de entender sem taxar. Ela demonstra como é possível a

aproximação do mundo fictício oferecido pela literatura com a vida dos estudantes. É

possível notar que quando o aluno começa seu relato, já o conto que possibilitou

aquele momento desloca-se para segundo plano, pois foi utilizado apenas como

premissa para acessar aquilo que é mais significativo: a subjetividade do aluno.

Relato aqui a fala de um dos alunos, que por si só é capaz de certificar a

eficácia do método. Um dos rapazes que se sentava na última cadeira do canto

esquerdo da sala relatou, de forma extensa e bastante passional, a leitura em voz

alta, realizada num ônibus lotado, de uma declaração de amor para a garota por

quem ele estava apaixonado. Cegado pela paixão que lhe atingia, o rapaz resolveu

desabafar dentro do “santa cândida/pinheiro, porta 4”. Agora, olhando

retrospectivamente, ele nos confessou que agia por impulso, e que como resultado

do amor não correspondido sofreu muito e passou por um longo período de mágoas.

Nessa estado, encontrando-se “sem um alicerce”, uma base que lhe servisse de

apoio para seguir em frente, ele precisava seriamente de alguém que o ouvisse,

Page 50: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

50

como a narradora de nosso conto. O relato do rapaz prendeu a atenção dos colegas,

que estavam visivelmente surpresos com a capacidade de articulação e uso de

vocabulário do colega. Claramente aquelas eram palavras de alguém apaixonado –

pela leitura, como ele mesmo revelou ao fim de sua exposição.

O ponto mais interessante do episódio, entretanto, ficou para o fim da aula,

quando conversamos com o professor Alexandre: o rapaz não havia se manifestado

uma única vez sequer durante as aulas até aquele momento. Era a primeira vez que

o professor ouvira a voz do garoto. Este caso ocorreu na primeira turma de que

acompanhei o relato, e após essa mesma aula ouvi de Alexandre que ele nunca

havia presenciado um grau de envolvimento daquele nível por parte dos alunos.

Ficou claro que a aceitação da proposta não limitou-se aos alunos, pois foi notável a

satisfação que o exercício trouxe ao professor, que nos apresentou de forma muito

mais entusiasmada nas duas turmas que vieram em seguida.

O momento final de cada uma das aulas ficou reservado para a aproximação

de ideias oriundas da Sociologia à discussão. O objetivo sociológico por traz do

conto aqui trabalhado está no olhar capaz de analisar sem julgamentos da

narradora. Assim como ela, que possui a habilidade de colocar suas paixões e olhar

objetivamente para a situação do rapaz, a Sociologia também é capaz de olhar para

a realidade e descrevê-la, apoiada no afastamento das pré-noções, como nos

ensina Durkheim. Um ponto central de nossa abordagem metodológica aparece

aqui. A partir de um texto literário, trabalhado em paralelo aos relatos do cotidiano

dos alunos possibilitados por ele, podemos tornar mais fácil a absorção de noções

sociológicas.

Ficou evidente para mim que a atividade proposta era riquíssima em

possibilidades. Os alunos participavam animados; ela funcionou em turmas de

diferentes perfis; o potencial foi reconhecido pelo professor regular da escola; e os

alunos, ao fim, tinham um contato com temáticas da sociologia que podiam

assentar-se, não na memorização e na leitura de textos técnicos, mas nas

experiência reais que haviam sido trocados por eles durante nossa conversa. Outro

ponto que facilitou nosso trabalho: aproximar-se da Sociologia – ou de qualquer

outra disciplina – com uma turma vibrante e alegre é tarefa consideravelmente mais

Page 51: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

51

fácil do que apelar para uma aula expositiva numa turma que está desanimada e

entediada com o ambiente monótono e repetitivo da escola, e isso por si só bastaria

para convencer-me do sucesso da atividade.

Com essas temáticas em mente, segui para a preparação da atividade que

relato a seguir, agora mais detalhadamente, e aprofundando os elementos até aqui

deixados em segundo plano.

4.2 COLÉGIO ESTADUAL ROMÁRIO MARTINS

Desde o início do projeto tínhamos em mente que o que era proposto por

nossa atividade era uma quebra. A atividade aconteceu dentro do ambiente escolar,

dentro de uma sala de aula, e portanto ainda estávamos sujeitos às limitações – e

possibilidades – que esse ambiente nos impõe. A quebra com a visão de uma visão

tradicional de educação era condição necessária, acreditávamos, para os bons

resultados que esperávamos encontrar.

O início das diferentes aplicações foram bastante similares nesse sentido.

Na quarta-feira, 25 de maio, fomos recepcionados pela professora Andressa na

escola Romário Martins em Piraquara, região metropolitana de Curitiba. A “aula”

nessa ocasião teria início às oito e quarenta da noite, véspera de feriado, numa

turma de terceiro ano. Conseguimos na ocasião organizar para que tivéssemos

aproximadamente uma hora e vinte de tempo disponível. Como nos outros casos,

tivemos uma breve apresentação. Nessa ocasião, fui apresentado como colega de

curso, e Rafael como professor. A apresentação durou pouco, e sugeria uma

“atividade diferenciada”. Em todas as ocasiões, os professores pediam a

colaboração dos alunos e a receptividade dos mesmos frente aos desconhecidos

que ali chegavam. Enquanto distribuíamos os textos que seriam trabalhados, os

responsáveis pela turma faziam a chamada, que de fato esteve presente em todas

as atividades realizadas, mas pela qual nós nunca ficamos responsáveis.

Quanto à turma desse dia, soubemos de antemão que era considerado um

excelente grupo, com um alto nível de participação nas atividades propostas. O 3°A

estava bastante cheio, com 34 presentes de um total de 38 alunos. Considerando a

Page 52: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

52

véspera de feriado chuvosa pela qual passávamos, ficou claro que o

comprometimento dos alunos ali era alto. Devemos agradecer nesse sentido

também à professora Andressa, que os avisou com antecedência sobre nossa vinda

e há uma semana já pedia a eles que se esforçassem para estar ali no dia da

atividade. Enquanto distribuíamos os textos, mais alguns alunos iam chegando, de

modo que quando finalmente iniciamos a leitura poucas mesas haviam sobrado e

cinco alunos posicionaram cadeiras próximas à entrada da sala, dificultando a

entrada e saída.

O Colégio Estadual Romário Martins foi a primeira instituição de ensino de

primeiro grau do município de Piraquara, e foi fundado em março de 1950.68 É uma

escola central, frequentada por alunos de diferentes origens e perfis sociais. Alguns

vêm de bairros mais distantes, mais pobres, outros possuem maior poder aquisitivo,

carregando celulares recém lançados e usando roupas de marca. Nessa turma em

particular, existia um bom entrosamento entre todos, e as conversas entre grupos

isolados não foi um problema durante o decorrer do exercício. Ao entregar as cópias

do texto, também fiz questão de perguntar o nome de cada um deles, tentando

quebrar com o desconhecimento completo, e dar brechas às apresentações

informais. Um dos rapazes, mais receptivo, disse que eu e Rafael éramos “sérios e

bonitos”, o que foi recebido com risadas e deixou o ambiente mais leve. Retribuí o

elogio e seguimos a distribuição do material.

Tendo a palavra, o esforço de nossa parte, era sempre o mesmo: mostrar já

de início aos alunos que não estávamos ali para desenvolver uma atividade que se

encaixava nos moldes daquilo que eles já conheciam como escola ou educação.

Nós não estávamos ali para avaliar os estudantes. Não teríamos um questionário

que deveria ser obrigatoriamente respondido por eles ao final da atividade, e

consequentemente não teríamos uma nota atribuída a cada um. A leitura do texto,

seguindo as instruções de Pennac, não seria obrigatória; participariam aqueles que

estivessem interessados, e estavam livres para ignorar a leitura os que assim o

desejassem. Ao final da leitura teríamos uma conversa aberta, em que todos

68 Histórico disponível em: <http://www.pqaromario.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=9> acessado em 17 de maio de 2016.

Page 53: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

53

estariam convidados a participar. O caráter de convite era imprescindível. Fizemos

sempre questão de deixar claro que eles estavam sendo convidados a participar, e

possuíam total liberdade para negar.

O primeiro dos convites era o chamado à leitura. Ela seria feita em voz alta,

e cada um dos alunos tinha uma cópia do texto em mãos. Eu iria iniciá-la, e todos os

alunos estavam autorizados a “intrometer-se”, tomar a palavra, e dar sequência ao

texto, lendo em voz alta para que todos acompanhassem. Se durante a primeira

página do texto tínhamos um ou dois alunos se arriscando na leitura, com pequenos

momentos de silêncio entre os parágrafos enquanto esperávamos para ver quem

seria o próximo a se arriscar; chegando à última página eram comum os risos

decorrentes dos encontrões, quando dois alunos iniciavam juntos o parágrafo

seguinte, logo após o término do anterior. Ficou claro o progressivo envolvimento de

todos os presentes. A leitura de “A loteria” levou pouco menos de vinte minutos, e

por vezes levantei os olhos do texto para avaliar o nível de envolvimento e

concentração dos alunos e alunas ali presentes. Dos mais de trinta que ali estavam,

apenas três meninos pareciam estar menos interessados até o momento, sentados

no canto esquerdo ao fundo da sala. Ainda assim, pude ver que eles

acompanhavam por vezes a leitura de trechos do texto com as cópias que haviam

recebido.

A leitura seguiu com um ótimo ritmo. Meninos e meninas participavam

igualmente e todos liam muito bem, de forma audível, e eram respeitados pelos

colegas, que se mantinham em silêncio. Alguns risos surgiram, porém, quando

aconteciam deslizes na pronúncia dos nomes de alguns dos personagens. Nomes

estrangeiros como “Hutchinson”, “Graves” e “Dellacroix” causavam alguma

dificuldade entre alguns, mas retornaremos em breve a esse ponto.

A conclusão inesperada do conto definitivamente os pegou desprevenidos.

“A loteria” nos conta a história de um sorteio que acontece em uma pequena cidade

americana genérica. Esse vilarejo possui cerca de trezentos moradores que se

reúnem periodicamente para a realização da “loteria”. Não sabemos, durante o

decorrer da história, qual o prêmio que o vencedor irá receber, mas passamos a

perceber, conforme progride a narração, que nenhum dos moradores deseja ser o

Page 54: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

54

vencedor, e já no final, a ganhadora, Sra. Hutchinson, reclama que o sorteio foi

injusto e que deveria ser recomeçado. Enquanto leitores, o que motiva a leitura do

conto é a curiosidade crescente sobre qual será o “prêmio” dessa loteria, enquanto a

possibilidade de uma premiação tradicional se afasta a cada parágrafo. Finalmente,

nas últimas linhas do texto, descobrimos que o “vencedor”, aquele que tirasse o

único papel marcado de dentro da caixa, seria apedrejado e morto pelos outros

moradores. Um dos últimos momentos do conto é o filho pequeno da vítima

recebendo suas pequenas pedras para participar do apedrejamento de sua mãe.

A reação inicial demonstrou o envolvimento dos alunos na leitura. De súbito

a sala inteira foi do silêncio, padrão durante a leitura, à explosão de

questionamentos e à discussão tumultuada enquanto cada aluno tentava arrancar

conclusões de seu colega mais próximo. Eles pareciam querer confirmar o absurdo

que tinham acabado de ler. Perguntas como “Foi isso mesmo?”, “Será que ela

morreu?” e “Eles mataram ela?” surgiram em meio à agitação, e eu continuei em

silêncio por algum tempo enquanto eles digeriam as últimas linhas do conto.

Entre eles, os próprios alunos respondiam que sim, a Sra. Hutchinson havia

sido apedrejada, e que não, ela não havia sobrevivido. As primeiras perguntas dos

alunos após a leitura foram no sentido de elucidar a forma pela qual o sorteio havia

sido realizado: primeiro ocorria um sorteio entre os chefes de família, todos homens,

e depois disso um sorteio entre os membros da família sorteada. Dentre os cinco

familiares de Bill Hutchinson, a sorteada foi sua esposa, Tessie Hutchinson, pois foi

ela quem tirou o papel marcado pelo ponto preto, enquanto os outros membros

tiraram papéis em branco de dentro da caixa de sorteio. O conto usa uma linguagem

acessível, e pareceu-me, naquele momento, que as dúvidas quanto à narrativa

deviam-se mais ao desfecho e à incredulidade dos alunos, do que a possíveis

entraves com a leitura. “A loteria estava sorteando a morte?!”, eles perguntavam em

tom descrente.

Sim, ela estava sorteando a morte. E esse foi um dos motivos pelo qual o

conto em questão foi escolhido. O absurdo com que encaramos o fato é uma das

sensações que buscávamos trazer aos alunos com esse conto. Como seria possível

justificar ato tão repugnante aos nossos olhos? O que motivava os moradores da vila

Page 55: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

55

a matarem a sangue frio um dos membros de sua própria vila, ainda mais através de

um sorteio aleatório, realizado periodicamente? E, claro, o que seria possível

concluir sobre nossa própria realidade a partir daquele trabalho de ficção?

O limite entre ficção e realidade não é algo dado. Uma das primeiras

perguntas que foi feita por uma das alunas foi: “Isso aconteceu de verdade?”. Não

era dado de antemão àqueles alunos que um texto literário como aquele retratava

uma ficção, um mundo inventado a partir da imaginação da escritora (porém

baseado nas inspirações bastante reais que ela possuía). Tínhamos já de início ao

nosso favor essa questão. Por mais asqueroso que fosse o ato, por mais alheio à

nossa realidade, a possibilidade de que aquele conto retratava um acontecimento

real passou pela imaginação daquela aluna e de seus colegas.

Assim estava iniciada nossa conversa. Logo uma aluna ressaltou a

importância do “olhar” na interpretação do conto. A reflexão dela trouxe dois olhares

possíveis: em primeiro lugar o nosso, que julgava absurda e inconcebível a tradição

de apedrejamento sustentada pelos moradores da vila retratada. O olhar que causou

o choque inicial nos alunos e que torcia para que aquela fosse uma obra de ficção

que não encontrasse paralelos no mundo real. Porém, a mesma aluna considerou

um segundo olhar, o olhar dos próprios moradores da vila, que, mergulhados em

suas próprias crenças, haviam naturalizado aquele ritual e viam-no como algo

perfeitamente normal e aceitável. A aluna ressaltou que da mesma forma que nós

olhávamos para eles e éramos incapazes de entender o motivo que levava os

moradores a repetir, periodicamente, aquele ato bárbaro; era perfeitamente possível

imaginar uma situação oposta, no qual os fictícios moradores olham para os nossos

próprios rituais e tradições e chegam à mesma conclusão que nós chegamos: “Isso

não faz sentido”.

Indo além, a aluna lembrou aos seus colegas o exemplo da mutilação genital

feminina, prática comum em grande número de países africanos, Oriente Médio e

Ásia. Assim como o apedrejamento irreal que encontramos em nossa leitura, este

também era um ritual assentado na tradição e possuía raízes antigas, sendo

passado de geração em geração até que se torna justificável por não conhecermos

um mundo sem essa prática. Assim nos lembra o personagem Velho Warner no

Page 56: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

56

conto: “A loteria sempre existiu”, e logo ele segue reclamando sobre a ideia absurda

de tentar acabar com ela. Com a reflexão da aluna, já temos um claro exemplo de

como a ficção nos traz ferramentas para explorarmos o real. O texto literário nos traz

uma infinidade de analogias e comparações possíveis de serem trabalhadas em sala

de aula, e aos poucos elas começaram a aparecer e enriquecer nossa conversa.

Passaram a pensar então sobre seus próprios rituais. Todos nós temos

nossas celebrações, comemoradas ano a ano, que não sabemos ao certo quais são

suas origens, e não sabemos explicar com exatidão os propósitos aos quais elas

servem. O Natal e outras festas religiosas apareceram na discussão. Alguém

poderia dar uma simples explicação dizendo que o Natal serve para dar e receber

presentes, assim como a loteria serve para apedrejar um membro da vila. Mas

poderíamos muito bem dar presentes em qualquer outra data, e mesmo assim

aguardamos a chegada de um momento específico para que isso seja feito. Da

mesma forma que a extinção da loteria parecia absurda aos membros da vila, a ideia

de extinguir a comemoração do Natal também poderia causar choque entre nós.

Exemplos concretos como esse mostraram aos alunos que não poderíamos olhar

para o apedrejamento como fim em si mesmo. Existia algo por traz dele que o

justificava, que fazia com que todos os membros daquele grupo participassem do

evento e que fazia com que fosse inimaginável deixá-lo de lado.

Assim chegamos ao tópico da coesão social, aproximando a ficção da teoria

sociológica. Todos pertencemos a grupos que são regidos por determinadas regras

de conduta. Espera-se e impõem-se determinado comportamento aos seus

membros, existindo uma coesão social, como nos explica Durkheim, que mantém a

unidade de um grupo. Os que decidem ir contra às crenças morais que sustentam

essa unidade são punidos, ou no limite, excluídos do grupo. A tradição aliada à

coesão possibilita com que os grupos sigam praticando rituais considerados

absurdos, sem que ninguém consiga se opor a essas práticas.

Durante nossas conversas consideramos também o ambiente escolar.

Jovens de diferentes origens, com diferentes pontos de vista, posicionados dentro

dessa engrenagem. O modelo escolar que se organizou visando aos interesses da

organização econômica industrial, e à sua imagem e semelhança, espera um

Page 57: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

57

determinado comportamento de seus alunos.69 A organização por diferentes

matérias, com alunos de determinadas idades em cada série, seguindo a

acumulação de conhecimentos a cada ano, muito nos lembra uma linha de produção

de uma fábrica, e para que essa fábrica funcione cada um de seus trabalhadores,

alunos e professores, precisa ocupar uma posição que está de acordo com a

organização geral. Quando avaliamos que um aluno está fora do padrão esperado –

e essa constante avaliação faz parte da lógica dessa organização – ele é reprovado,

se isso não solucionar o problema, ele pode eventualmente ser expulso. Essas

considerações foram levantadas pelo professor Rafael para demonstrar que, mesmo

nesse ambiente no qual eles estavam inseridos, a lógica da coesão social exercia

seu papel. Há, dentro desse ambiente, pouco espaço para questionarmos a lógica

que o rege, assim como na vila do conto, onde não há margem para questionar a

loteria e sua lógica.

A reflexão acima serviu-nos a dois propósitos. Primeiramente, trabalhar a

ideia de coesão social analisando um ambiente familiar aos alunos, aproximando

teoria social da realidade próxima a eles. Em segundo lugar, relembrar a lógica

responsável pelo funcionamento daquele ambiente, deixou mais claro, esperamos, a

posição que a atividade que nós havíamos trazido para eles ocupava. Nosso

exercício alimentava-se da diversidade de pensamentos, e não de sua

padronização. Tivemos, durante a prática, muitas formas de interpretar as perguntas

que surgiam, e, mais importante, muitas formas de respondê-las. Desde o princípio,

a lógica não avaliativa da atividade tinha como consequência direta a ausência de

respostas certas e erradas: o aprendizado que esperávamos obter era fruto de uma

conversa e da reflexão, aliada à pluralidade de opiniões ali manifestadas.

Dois outros paralelos apareceram. Primeiramente, com a história do filme

Jogos Vorazes, em que anualmente jovens de diferentes distritos são selecionados

para batalharem uns contra os outros até que apenas um deles sobreviva, e em

segundo lugar, o paralelo com o evangelho bíblico, quando Jesus impede o

apedrejamento de uma mulher que havia cometido adultério. Fomos de referências

contemporâneas a referências religiosas rapidamente, e a cada debate que brotava

69 ROBINSON, K. Changing Education Paradigms. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zDZFcDGpL4U> Acesso em: 17 de maio de 2016.

Page 58: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

58

por meio dessas associações o choque inicial transformava-se em reconhecimento e

familiaridade. Tínhamos de um lado o sacrifício em função do desvio frente ao

comportamento moralmente aceitável, e do outro o sacrifício tradicional ritualístico.

De um lado o sacrifício devido à fuga à normalidade, e do outro o sacrifício, ele

próprio, como a normalidade.

Chegamos a conclusão que a coesão social está disseminada por nossas

vidas, como numa simples prova que busca avaliar e nivelar, e que quando não nos

adequamos às exigências delas, somos, cada um a sua maneira, apedrejados.

Sofremos castigos e punições por agirmos ou sermos diferentes de uma norma

padrão. Perguntamos nesse momentos aos estudantes se eles já haviam passado

por isso, se já haviam sido castigados por não se adequarem às expectativas.

Começamos com um relato mais leve: uma das alunas contou-nos que

costumava ser excluída dos jogos de vôlei do colégio por não ser muito boa no

esporte. Terminou, entretanto, em tom animado, dizendo que estava praticando e

que aos poucos estava superando o problema. Para ela, a decisão dos colegas de

manterem-na fora das quadras revelava as exigências impostas por aqueles mais

experientes, que comandavam as dinâmicas do jogo. Aos poucos as temáticas

caminharam no sentido dos conteúdos curriculares da Sociologia, e os alunos e

alunas compartilhavam momentos de constrangimento vivenciados por eles ou por

colegas.

Uma menina negra contou-nos que desde pequena ela passava pela

experiência de ser chamada por apelidos pejorativos, e que havia se sentido

“apedrejada” muitas vezes devido à cor de sua pele. Por ser diferente dos demais

em determinados contextos, por não se enquadrar na estética “normal”, ela foi

repetidas vezes tratada de uma forma desrespeitosa, inclusive dentro do ambiente

escolar.

Mais um relato de exclusão teve como tema a homofobia. Um rapaz relatou

o que ocorreu com um colega dele, que depois de muito tempo escondendo sua

orientação sexual decidiu contar a verdade aos colegas. O rapaz em questão fazia

parte de um grupo de amigos que, depois da revelação, passou a afastá-lo,

Page 59: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

59

deixando-o de fora dos encontros do grupo. Rapidamente ele não mais fazia parte

do grupo, pois o comportamento dele não estava de acordo com o que aquele grupo

considerava aceitável.

Cada exemplo que era apresentado para o grupo deixava clara a metáfora

do apedrejamento. Os mecanismos de controle social saem do nível da abstração e

se materializam nas experiências cotidianas dos alunos. Eles percebiam a existência

de algo semelhante em todos os casos que estavam sendo narrados. Tínhamos

sempre um grupo, coeso, em que existe um padrão, seja ele estético ou de

comportamento, que exige que seus membros o sigam. Esse controle faz com que

aqueles que já fazem parte do grupo não se arrisquem em fugir da norma, pois

correm o risco de perderem legitimidade e no limite serem excluídos. Por outro lado,

esse mesmo controle mantém afastados aqueles de fora do grupo, que, não

possuindo as características exigidas, não conseguem se misturar com seus

integrantes.

As pedras podem ser entendidas, portanto, como a forma como afastamos e

excluímos. O absurdo que parecia àqueles alunos o apedrejamento de uma pessoa,

agora com um olhar metafórico, não soava mais tão absurdo. Vemos, diariamente, a

dinâmica de exclusão, por vezes como vítimas, outras como testemunhas.

Entendendo isso, ressaltamos também que devemos estar atentos às pedras que

nós próprios lançamos. Cabe sempre refletir sobre nossas próprias ações, quando

nós próprios agimos no sentido de recriminar e excluir. A reflexão começa num plano

geral e aproxima-se aos poucos de nossas próprias vidas e ações pessoais.

Repetimos a atividade na quinta-feira da semana seguinte, dia 2 de junho,

quando novamente fomos ao colégio Romário Martins em Piraquara, dessa vez no

3° ano B. A professora Andressa alertou-nos que a turma era mais agitada, e por

vezes menos participativa. Novamente ela fez o trabalho de pedir com antecedência

à turma a colaboração, e novamente chegamos como desconhecidos tendo o

primeiro contato com a turma apenas no momento da atividade. A turma não estava

tão cheia quanto a última, e, durante a atividade, ficou evidente que as meninas

eram mais participativas. Os meninos, apesar do interesse aparente, manifestaram-

se menos.

Page 60: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

60

Iniciamos novamente com as apresentações e logo fomos à leitura. Essa

sala pareceu-me mais confortável com a leitura em grupo. Desde o início a

participação era bastante generalizada e todos mantiveram-se em silêncio,

respeitando a voz de seus colegas. Novamente ressalto que as meninas

participaram mais, tanto nesse momento de leitura quanto na discussão que a

seguiu. Concluindo o conto a reação foi bastante semelhante à que já havíamos

presenciado na outra turma. O espanto espalhou-se pela turma, que foi pega de

surpresa pela morte da Sra. Hutchinson. No final da atividade uma das meninas

ressaltou que gostou bastante da leitura coletiva, pois ela tinha a sensação de que

eles estavam fazendo algo coletivamente. Ler e ouvir a voz de seus colegas, em

silêncio, trazia a ela um sentimento de colaboração e unidade.

Essa turma possuía duas meninas mais velhas que o restante da turma, que

pareciam mais confortáveis desde o princípio, e exprimiam suas opiniões com

naturalidade, participando ativamente ao longo de toda a atividade. Uma delas foi

responsável pela primeira fala, registrando como era inesperado e chocante a ideia

de um sorteio que tem como prêmio algo negativo. O conto quebra com nossas

expectativas ao trazer um evento que costumamos enxergar como positivo.

Segundo nossa visão, um sorteio terá necessariamente um prêmio positivo como

resultado.

Inicialmente a leitura deles ficou atrelada à ideia de sacrifício, e eles

lembraram da fala do Velho Warner, concluindo que o que motivava os moradores a

cometerem aquele sacrifício periodicamente estava associada à crença de que ele

era necessário para que a colheita fosse bem-sucedida. As ideias de fé e crença

apareceram de diferentes formas, e um dos meninos perguntou qual seria a fé

desses moradores, acreditando que a solução para entendermos as ações deles

estaria no campo da esfera religiosa.

Rapidamente a ideia de tradição apareceu e passamos a trabalhar com ela.

Os alunos concordaram que por vezes fica difícil achar explicações racionais para os

fenômenos que vemos a nossa volta. Justificar a existência daquele ritual parecia

muito mais fácil se considerarmos o aspecto tradicional do mesmo. Lembramos

Page 61: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

61

então das passagens do conto que traziam à tona esse aspecto. As atribuições do

responsável pela loteria aparecem conectadas com o aspecto histórico, e a narrativa

nos diz, que apesar de eles terem esquecido partes do ritual, os moradores ainda se

prendiam a determinados aspectos que só se explicavam pelo aspecto tradicional.

Aqueles que haviam sido abandonados, foram deixados de lado com alguma

resistência.

Conversamos sobre como um dos aspectos que marcam rituais tradicionais

é a resistência à transformação, e em nosso texto ela ficava ilustrada pela fala do

Velho Warner, que chamava os moradores das vilas que pensavam em acabar com

a loteria de “bando de maluco”. Essa resistência é a mesma sobre a qual estávamos

conversamos com o 3°A, quando abordamos os mecanismos de controle que

operavam nos diferentes grupos. Perguntamos então se eles conseguiam identificar

momentos quando eles fizeram ou disseram algo que foi encarado como impróprio

por algum dos grupos de que eles faziam parte.

Uma menina nos contou sobre a relação dela com a família de seu marido.

Ela relatou um caso em que ela estava tendo uma discussão com seu parceiro,

numa ocasião em que a família dele estava presente. A “raiva” da moça foi

contestada por sua sogra, que tinha uma leitura do papel da mulher assentada na

visão evangélica tradicional. A mulher deveria ser submissa ao homem, e nada

justificava que ela se impusesse ao marido daquela forma. O ato dela foi

repreendido. A aluna reconheceu que ela estava indo contra a visão tradicional do

papel da mulher na sociedade, e que essa era a ideia corrente na família do rapaz.

Logo outras meninas da sala manifestaram-se, lembrando que é bastante comum

que mulheres que exprimem sua opinião e opõem-se a alguma ideia tradicional são

taxadas de “malucas”, “doidas”, e que estão “surtando”.

Outra moça, mais velha que as outras, trouxe um caso que ocorreu com ela

numa empresa em que trabalhava. Ela era responsável por um setor da empresa e

possuía colaboradores pelos quais ela era responsável. Associando à discussão que

estávamos tendo, ela reconheceu o tradicionalismo na cultura de gestão da

empresa. Alguns dos empregados estavam chegando atrasados ou não

comparecendo em seus turnos, e esperava-se dela, enquanto responsável, que

Page 62: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

62

fosse rigorosa, aplicando punições e tratando do problema com rigidez. A empresa

funcionava a partir de uma cultura de autoridade e subordinação. Ela sofreu

objeções quando tentou argumentar que seria melhor ter conversas mais flexíveis

com os empregados, a fim de entender o problema e dar espaço para que eles

manifestassem suas opiniões.

Um terceiro exemplo veio de outra aluna que relatou sua experiência dentro

de um grupo de jovens da igreja de qual ela fazia parte. O tradicionalismo em

questão aqui também envolvia uma questão de gênero, ligada às vestimentas das

mulheres. Dentro da visão do grupo, as mulheres não podiam se vestir de uma

maneira considerada “ousada”. Isso incluía a proibição tácita do uso de joias,

maquiagem e determinado tipos de roupas “vulgares”. Porém, essa jovem nos

explicou, assim como tentou explicar ao grupo em questão, que as roupas que uma

pessoa usa não influenciam no caráter, e que ela acreditava que aos olhos de Deus

isso não seria relevante. A jovem continuou usando seus brincos, e como resultado

foi afastada do grupo, perdendo o relacionamento com os antigos colegas.

Essa mesma jovem alegrou sua professora de Sociologia, que

acompanhava em silêncio o desenrolar da atividade. Após a discussão sobre

coerção social, a aluna, sem que houvéssemos tocado no assunto até então,

associou a discussão que fazíamos aos três tipos de dominação legítima de Weber,

pensando mais especificamente na dominação tradicional, em que o poder se

exerce pelo respeito e fidelidade, diferentemente da dominação legal. A conversa

seguiu com uma fala do professor Rafael, que concordou com a aluna, e fez uma

breve descrição dos tipos de dominação, enquanto os alunos acompanhavam em

silêncio o desenvolvimento de sua explicação.

A surpresa, entretanto, apareceu quando uma das alunas deu sequência à

conversa, tomando a dominação “legal” como exemplo. Para ela, esse tipo de

dominação aparecia, por exemplo, em festas de casamento, pois, nesse caso,

temos algo que todos aceitam por acharem “legal”, divertido. A aluna tomou o

conceito weberiano, ligado à legalidade, à lei, e, através de sua leitura subjetiva,

transformou o “legal” no divertido, bacana. Obviamente, a leitura da aluna é

incorreta; mas podemos aproveitar esse episódio para argumentar que a

Page 63: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

63

metodologia que usamos leva os alunos a exporem as suas ideias, argumentos e,

inclusive, leituras subjetivas de conceitos sociológicos. Nesse sentido, encontramos

uma possibilidade concreta de corrigir a leitura equivocada sem a necessidade de

recorrer ao argumento de autoridade. Concluímos o ocorrido fazendo apenas um

reparo para esclarecer o que o autor pretendia mostrar com o tipo puro de

dominação legal e demos sequência.

Em todos os relatos ficava claro que a relação entre tradição, mecanismos

de controle e as consequências do pensamento divergente adquiriam contornos

reais, baseados nas experiências pessoais concretas. A conversa que tivemos foi

proveitosa no sentido de tomar ideias e conceitos da Sociologia, que por vezes

podem parecer distantes aos alunos, ainda mais quando tratados através de

definições abstratas ou quando tratados em relação à “sociedade”, tratada como um

todo, que também contribui para a intangibilidade da discussão. Em nossa atividade,

eles eram encorajados a apresentarem as suas histórias, e os contornos de

definições conceituais eram moldados por cada relato. O resultado de cada um dos

confrontos relatados deixava mais claro para todos que ouviam como os grupos dos

quais fazemos parte têm uma força de coesão que está ligada a uma lógica de

unidade de crenças, e que estamos sujeitos a determinados mecanismos de

controle se queremos fazer parte desses coletivos.

Nessa turma, assim como havia acontecido no 3°A, também a própria escola

foi colocada como objeto de análise. No quadro negro víamos uma fórmula da área

de eletrofísica, deixada pelo professor que havia dado a aula anterior, e a partir

disso pude fazer alguns questionamentos, tendo como objetivo mostrar que mesmo

no ambiente escolar, que frequentamos diariamente, estamos sujeitos ao controle e

às regras. As individualidades eram deixadas de lado naquele ambiente e devíamos

nos adequar a regras de comportamento pré-determinadas. Podíamos observar a

tradição ao olhar para o modo como a sala estava disposta, ou mesmo se

tomássemos o próprio conteúdo disciplinar; ou algum deles havia escolhido por livre

vontade aprender a fórmula que estava exposta agora no quadro? Tradicionalmente

os conteúdos são trazidos pelos professores, que se apoiam num currículo

construído ao longo de anos de idas e vindas, mas não se espera que os alunos

opinem sobre o assunto. Os mecanismos de controle para lidar com os desviantes

Page 64: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

64

também são evidentes: começamos com as provas e notas, chegamos

eventualmente a uma reprovação, e por fim, no limite, temos a expulsão do aluno,

tudo para assegurar o enquadramento e a normatização.

Vamos a um último ponto antes de passarmos às conclusões sobre a

experiência. Já destacamos em diferentes momentos a receptividade dos alunos, e

agora comento como foi o final da atividade nas diferentes turmas. Na primeira

turma, 3°A, eu e o orientador desse trabalho terminamos a aula sendo aplaudidos

pelos alunos, o que, às dez e pouco da noite de uma noite gelada e chuvosa como

aquela definitivamente me trouxe uma sensação de tarefa cumprida e a motivação

extra para escrever o relato aqui exposto. Depois de mais de uma hora de atividade

os alunos ainda pediram para que ficássemos mais tempo com eles – se eles

gostavam ou não da professora que daria a aula seguinte não cabe a nós julgarmos

– e, quando perguntamos se eles gostariam que voltássemos para realizar mais

atividades semelhantes àquela, tivemos um grito de “sim” geral como resposta.

Tivemos um retorno semelhante na segunda turma. Os alunos do 3°D também

pediram para que voltássemos com novas atividades, e a professora Andressa

passou-me a seguinte mensagem que ela recebeu, no mesmo dia da atividade, de

uma de suas alunas:

“Oi prof

Td bem?

Então queria dizer que amei a aula de hj

Gostei mt

Sabe posso dizer que fiquei fascinada com a aula

Bom era isso

Boa noite prof”

Page 65: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

65

5 COCLUSÃO 5.1 CONCLUSÃO SOBRE A PRÁTICA

No total, as atividades de leitura e discussão foram realizadas em cinco

turmas diferentes: três turmas no colégio Barão do Rio Branco, com o conto Toda

dor tem fim, e duas no colégio Romário Martins, com o conto A loteria. Agradecemos

ao professor Alexandre, por nos ceder as aulas no colégio Barão do Rio Branco em

Curitiba e à professora Andressa, por nos ceder as aulas no colégio Romário Martins

em Piraquara. Acima de tudo, agradecemos aos alunos e alunas que nos receberam

cheios de disposição e que aceitaram nosso convite, participando de nossas leituras

e conversas.

Ficou evidente, a cada atividade que realizávamos, que tínhamos uma

aceitação bastante elevada entre os alunos. No Barão do Rio Branco ouvimos do

professor Alexandre que aquele era o nível mais alto de envolvimento que ele já

havia presenciado em uma das salas. No Romário Martins, ouvi de uma das alunas

que ela nunca havia visto toda a sala em silêncio daquela forma, com todos os

colegas participando da atividade. De fato, apenas em uma das salas, que era mais

concentrada em “panelinhas”, pude notar alguma dispersão dos alunos no momento

do bate-papo, quando eles viravam-se para seu próprio grupo de colegas e

continuavam o debate num círculo mais fechado. Ainda assim, nada que tenha

atrapalhado o desenvolvimento da atividade.

Durante a leitura, rigorosamente, os alunos ficavam em silêncio e ouviam

seus colegas de boa vontade. Foi interessante notar em uma das ocasiões de leitura

de Toda dor tem fim, um aluno que aparentava estar desinteressado quando o

Rafael iniciou a leitura do conto. Ele estava com o conto em mãos, mas brincava

com seu cabelo e parecia bastante interessado no teto da escola. Isso até uma de

suas colegas assumir a leitura. A partir desse momento, o mesmo aluno grudou os

olhos no texto, e pude vê-lo acompanhar a leitura, mexendo seus lábios para

acompanhar quem quer que estivesse lendo no momento.

Page 66: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

66

Existe na leitura em conjunto um fator que inevitavelmente desperta atenção

na maioria dos estudantes. Vendo a atitude daquele rapaz, e escutando os

comentários deles sobre a leitura, penso em algumas possibilidades. Primeiramente,

não estamos acostumados a ouvir nossos colega dessa forma. A leitura em voz alta

revela algo de novo sobre aquela pessoa que vemos todos os dias, mas que nunca

havíamos visto naquela posição. Há uma auto-exposição por parte daquele lê, e um

interesse por parte daqueles ao seu redor. Segundo, os estudantes identificam-se

em seus colegas. Se um deles é capaz de ler, todos são capazes. Assim entendi o

comportamento do rapaz que passou a acompanhar a leitura quando uma de suas

colegas resolveu arriscar-se. Se um de meus colegas, alguém que possui as

mesmas capacidades que eu, consegue fazer isso, logo eu também consigo, e

assim consigo colocar-me naquela posição. Percebendo, na imagem de meu colega,

que sou capaz de participar, encurto a distância que leva à participação de fato.

Outro fator de motivação são todas as quebras com aquilo que os alunos

estão acostumado, o fator novidade, que julgo ter um peso considerável. No atual

estágio só podemos imaginar o que seria uma disciplina de Sociologia ministrada

exclusivamente a partir do método aqui utilizado, mas por enquanto nossas

intervenções ainda tem o ar de não-convencional, de oposição ao cotidiano de sala

de aula que eles estão acostumados, e isso acaba nos favorecendo, pois creio que

para os alunos mudanças e tentativas de transformação são naturalmente bem-

vindas.

Dito isso, a primeira quebra evidente é a metodológica. Não temos uma aula

expositiva, em que temos um fluxo de conteúdo sentido professor-aluno – o primeiro

como emissor, o segundo como receptor. O material utilizado, a princípio, não é um

texto sociológico, e não foi pensado inicialmente para o trabalho que realizamos a

partir dele. É, antes de tudo, um texto de literatura, um trabalho no campo da arte, e

não cabe aqui pensar qual seria a finalidade, em essência, de tal trabalho. O que

sabemos é que, excluindo talvez as aulas de literatura e língua portuguesa, textos

como esse não costumam ser levados para sala de aula, e, excluindo agora todas

as disciplinas, pensamos que deve ser um alívio aos alunos ouvir que não serão

cobrados quanto ao texto. Não iremos elaborar questões sobre o enredo, não

estamos interessados nas classificações do tipo de narrador, não teremos respostas

Page 67: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

67

A, B, C ou D, e, consequentemente, não teremos uma nota ao final da atividade. O

que esperamos deles – e deixamos isso claro desde o início – é uma participação na

leitura e na conversa que a segue. E só. O material é diferente, o que esperamos

deles é diferente, e a dinâmica entre professor e aluno também.

O caráter de conversa, com ares informais, é outro fator que vale ser

comentado. Qual seria o papel do professor quando deixamos claro que não temos

um conteúdo sociológico curricular fixo, um conhecimento, que será transmitido de

professor para aluno, devendo o segundo absorver, registrar, memorizar e reproduzir

esse conteúdo num momento posterior? Baseando-se nas experiências que tive,

acompanhando meu orientador, e eu mesmo desenvolvendo a atividade, posso dizer

que enxergo, nessas situações, o professor como um mediador: alguém que está ali

para manter um norte mais ou menos fixo. De cada comentário surgem mais

perguntas, a cada pergunta que surge, mais envolvimento, e dos relatos descritos

pelos estudantes chegamos a pontos comuns de identificação. O professor está ali

para conectar os pontos, tornar evidente o lugar comum, mais do que criá-lo. Talvez,

mais próxima da ideia convencional que temos de um professor, está o papel de

trazer alguma nomenclatura da área da sociologia, como “coesão social” e

“mecanismo de controle social”, mas essa nomenclatura não é trabalhada a partir de

definições pré-estabelecidas, e sim construída a partir das experiências subjetivas

trazidas para dentro da sala de aula.

Claro, aqui caberiam críticas, se entendermos que o objetivo da Sociologia

em sala de aula é fazer com que o aluno conheça os autores, teorias e conceitos da

área de Ciências Sociais. Pela nossa concepção, entretanto, mais do que conhecer

o vocabulário sociológico, pensamos que a presença da Sociologia no Ensino Médio

está mais associada a trabalhar a capacidade de reflexão do aluno, estando essa

voltada para a realidade vivida por ele em seu cotidiano. Nesse sentido, interessa-

nos menos que um estudante de Ensino Médio seja capaz de nos dar as diferentes

formas como as Ciências Sociais definem a relação entre indivíduo e sociedade, e

mais que ele seja capaz de enxergar, no universo conhecido por ele, como essa

relação ocorre, e que ele tenha consciência de que é possível refletir sobre ela.

Ficou claro para nós que os alunos conseguiram perceber, por exemplo, a

resistência à transformação nos grupos dos quais eles fazem parte, seja na igreja,

Page 68: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

68

na família, na escola ou em qualquer outro ambiente. A partir dos diferentes relatos,

ficou evidente que todos eles eram capazes de identificar essa resistência, e unindo

suas vozes, foram capazes de perceber sua disseminação constante e irrestrita.

Seguindo os comentários sobre os diferentes momentos de quebra, cabe

mencionar a humanização do professor que deixamos evidente, beirando a inversão

de papéis em alguns casos. Quando dizíamos que não iríamos avaliá-los,

comentávamos que quem estava sendo avaliado naquele momento éramos nós

mesmos, professores. No meu caso, eu explicava minha posição de aluno dentro da

universidade, e que aquele projeto que eu estava desenvolvendo resultaria numa

nota para mim; e não para eles. De forma descontraída dizia que o professor Rafael

estava ali para me avaliar e pedia a colaboração deles para que eu não fosse

reprovado. Da mesma forma, quando Rafael desenvolvia sua atividade, na minha

presença, do professor Alexandre, e de mais uma aluna da universidade, ele

salientava que nós estávamos ali para avaliá-lo. Essa inversão de papéis parece

algo banal, mas humaniza o professor, gera sorrisos entre os alunos, e uma

identificação, pois estamos falando de um sentimento com o qual eles estão

acostumados.

A quebra com a figura de autoridade do professor, nesse contexto, pareceu-

me bastante benéfica para o andamento da atividade. Frequentemente, pensando

numa aula tradicional, temos a imagem do professor pedindo para que os alunos

fiquem quietos, não interrompam a aula, mantenham-se atentos e concentrados.

Uma das primeiras coisas que falamos, quando estamos prestes a iniciar a leitura, é

que aquele aluno que quisesse poderia inadvertidamente interromper o professor, e

dar sequência ao texto por si mesmo. Novamente temos a inversão, com o aluno

interrompendo o mestre, tirando a palavra e tomando-a para si. Tal comportamento

não é censurado; pelo contrário, é encorajado e acontece durante toda a atividade.

Um último ponto, e talvez o pilar central que guia todo o processo, é a

valorização da subjetividade do aluno. Não é comum para o aluno que suas

experiências pessoais tenham tamanha serventia para o desenvolvimento de uma

aula. Talvez isso seja menos verdade para as disciplinas da área de humanas do

que para as da área de exatas, mas de qualquer forma, a aula expositiva,

Page 69: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

69

independente da área do conhecimento, pouco contribui para que essa valorização

aconteça. É imensurável a motivação e o impulso adicional que isso traz para o

aluno no decorrer da atividade. A sensação de que a aula está sendo construída a

partir daquilo que ele e seus colegas estão dizendo gera resultados singulares.

Destaco aqui dois resultados possíveis gerados por essa sensação de ser

ouvido. Primeiro o envolvimento já mencionado acima. A cada fala ressurge o ânimo

em levar a discussão adiante. Em segundo lugar, algo que pude perceber nas

diferentes turmas, é que quando somos ouvidos, temos, em contrapartida, alguém

que nos ouve. Aprendemos assim que para sermos ouvidos devemos também ouvir

o que os outros têm a dizer, e isso fica claro já nos primeiros momentos da leitura. O

respeito que os alunos demonstraram pelos seus colegas foi fundamental para o

bom funcionamento de nossa atividade. Cada voz teve seu espaço e foi respeitada.

Nada mais necessário para que um diálogo pleno ocorra: alguém disposto a falar;

outro disposto a ouvir.

5.2 CONCLUSÃO GERAL

O presente trabalho se propôs a elaborar um relato de experiência. A

atividade elaborada, inspirada em metodologia de ensino alternativa, buscou

trabalhar temas sociológicos através da leitura de textos literários.

Num primeiro momento, efetuou-se a análise de documentos oficiais com o

objetivo de argumentar que os mesmos dedicam mais atenção a questões

curriculares do que a questões metodológicas. Sobre isso, acrescente-se, também

argumentamos que o conteúdo específico de Sociologia, dada a sua natureza

delicada, demanda cuidados metodológicos mais atentos. Num segundo momento,

mantendo em mente o aspecto estratégico da metodologia para o trabalho com tais

temas delicados, com o auxílio dos argumentos de Daniel Pennac e Michèle Petit,

elaboramos uma proposta metodológica para fundamentar o trabalho de leitura com

os estudantes.

No caso do relato, trabalhamos com os contos Toda dor tem fim e A loteria,

nesta conclusão julgamos pertinente salientar como principais aspectos positivos: 1.

Page 70: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

70

O alto nível de envolvimento e participação dos alunos; 2. A potencialidade contida

na construção do conhecimento a partir da subjetividade do aluno; e 3. Os bons

resultados que uma quebra com metodologias tradicionais de ensino traz para a

educação.

Ao invés de aspectos negativos, podemos apontar limitações: 1. A escola

segue organizada em função do encadeamento linear de conteúdos, incompatível

com nossa metodologia; 2. Trabalhamos com a precariedade do tempo, pois uma

atividade como essa demanda mais do que cinquenta minutos, duração padrão de

uma aula; e 3. Trata-se de atividade cuja a natureza é evidentemente interdisciplinar,

no entanto, as disciplinas permanecem distribuídas de maneira demasiadamente

isolada (a ruptura dessa barreira depende muito mais da boa vontade dos

professores do que de processos institucionalizados).

Ressaltamos que a atividade aqui relatada pressupõe que cada aluno tenha

acesso ao texto que está sendo lido. Trabalhamos com a produção e distribuição de

cópias dentro de uma lógica que dificilmente poderia ser suportada pela estrutura de

nossas escolas públicas. Isso nos leva a perceber que a biblioteca escolar é um

espaço que, ausente deste trabalho, merece a nossa atenção em trabalhos futuros.

Encerrando, cabe uma observação em relação à metodologia no que diz

respeito ao processo de formação de novos professores. Dentro de nosso curso, o

desenvolvimento e o estímulo a metodologias como essa ainda dependem de

motivações individuais, mais que do contato que temos com elas em nossa grade

curricular. Sem esse apoio institucional, continuarão sendo raras as oportunidades e

os futuros professores interessados em trilhar esse caminho.

Page 71: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

71

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília:

MEC, 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Volume 3 – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2006. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. – Parte I – Bases Legais. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Parte IV – Ciências Humanas e suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMT, 1999. BRASIL. Ministério da Educação. PCN+ Ensino Médio: Orientações Educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CEB nº 3, de 26 de Junho de 1998 - Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Conselho Nacional de Educação. Brasília, DF, 26 jun. 1998. MEUCCI, S.; BEZERRA, R. G. Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículo. Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 1, p. 87-101, 2014. MORAES, A. C. – Ensino de Sociologia: Periodização e Campanha pela Obrigatoriedade. In: Cadernos Cedes. Campinas, vol. 31, n. 85, set-dez, 2011. p. 359-382. BRASIL. Ministério da Educação. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC, 1996. Seção 4, p. 13. OLIVA, A. J., MARTÍNEZ, A. E., POZO, R. M. Tendencias metodológicas en los docentes universitarios que forman al profesorado de primaria y secundaria. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 65, abr-jun 2006. p. 391-409. PENNAC, D. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. SILVA, I. L. F. O Ensino das Ciências Sociais/Sociologia no Brasil: histórico e perspectivas. In: MORAES, A. C. (Coord.). Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, Vol. 15. Brasília: Ministério da Educação, 2010.

Page 72: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

72

SILVA, T. T. Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein. In: Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. SOUZA, J. V. A. Formação de professores para a Educação Básica – Dez anos de LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Page 73: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

73

ANEXO 1 – Toda dor tem fim – Maria Valéria Rezende Conto retirado do livro do livro Modo de apanhar pássaros à mão. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2006.

Nunca fiz isto antes, mas o teu olhar dolorido desatou meu silêncio. Só eu vi,

só eu sei, sei a profundidade, a altura e a amplitude da tua dor. Eu, sim, a velha tia silenciosa e apagada, tranqüila como uma poça d’água que, não, nunca sofreu sua própria dor de amor, nem ardor de paixão, nunca sentiu punhal de ciúme, só sentimentos muito tênues, ínfimos encantos, pequenos dolorimentos em surdina, dos que nem arranham a pele da alma. Por isso mesmo meus olhos sempre foram claros, completamente videntes, porque nunca houve em mim sentimento soberano que os turvasse, nem desejos prementes que distorcessem os objetos e os fatos, nem expectativa ou ambição que me perturbassem a intenção do olhar; pude permanecer sempre atenta ao mundo fora de mim e por isso sempre vi os pequenos sinais, os detalhes que ninguém mais vê, laivos, leves traços, eflúvios, indícios, alusões, sutilezas, segredos. Vi, compreendi e guardei no meu próprio coração coisas belíssimas e coisas terríveis , tão belas e tão terríveis como só se encontram nos corações humanos. Muitas vezes me perguntei por que fui feita assim, que sentido teme essa minha invencível placidez, essa equanimidade, palavra que encontrei por acaso, num dicionário qualquer, e me ajudou a explicar-me a mim mesma. Sou assim, talvez, porque é preciso que alguém, em algum lugar, contenha o repertório inteiros das paixões humanas sem se deixar aniquilar por elas. Alguém que as conheça e as olhe sem paixão, apenas compaixão, talvez o único sentimento forte o bastante em mim para garantir minha humanidade.

Eu vi, durante anos, fugazes luzes de adoração nos teus olhos antes que

eles baixassem de novo ao chão no seu modo costumeiro, vi discretos rubores, cada vez mais freqüentes à medida que tu crescias, repentina palidez, rápido bater de pálpebras contendo lágrimas quando ela começou a freqüentar festas e grupos de amigos, ouvi teus passos hesitantes diante da porta do quarto dela e soluços abafados atrás da tua própria porta, vi leve roçar de mãos, beijos imperceptivelmente prolongados, seguidos de fugas inexplicadas, vi o brilho do suor em tuas palmas quando ela, inconseqüente, sentava-se no braço da tua poltrona e descansava a mão displicente na tua nunca, vi-te recolher furtivamente guardanapos de papel marcados de batom, frascos de perfume vazios, fotografias rasgadas na cesta de papéis, uma luva abandonada, um nada, vestígios, relíquias. Vi como depois do noivado buscaste o atordoamento naquela música ruidosa e irritante, vi como baixava da noite para o dia o nível do uísque nas garrafas da sala de jantar, como depois tentaste evadir-te mergulhado nos livros ou entregando-te com fúria às lutas de boxe, voltando para casa ferido, castigado. Vi tua angústia cada vez que teu irmão zombava da tua castidade e insinuava suspeitas sobre a tua masculinidade, vi teu amor, teu medo e tua culpa. Digo-te tudo isso agora não para recriminar-te, mas apenas para provar-te que de fato tudo vejo e tudo sei, para que me creias quando te digo que esta dor um dia passa, toda dor tem fim, e os amores loucos também passam. Sabia que te encontraria aqui, no quarto que era dela, e vim correndo, logo que percebi que não estavas na igreja para o casamento de tua irmã.

Page 74: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

74

Anexo 2 – A Loteria – Shirley Jackson Título original: The Lottery (Tradução: Igor Romko) Publicado originalmente no jornal The New Yorker em 26 de junho de 1948.

A manhã do dia 27 de junho estava sem nuvens e ensolarada, com o fresco calor de um pleno dia de verão. As flores desabrochavam em abundância e a cor da grama era de um verde vívido. Por volta das dez horas, os moradores do vilarejo começaram a se reunir na praça, entre a agência dos correios e o banco. Em algumas vilas existiam tantas pessoas que a loteria levava dois dias e tinha que começar no dia 20 de junho, mas nesse vilarejo, onde só moravam mais ou menos trezentas pessoas, a loteria inteira levava menos de duas horas, então ela podia começar às dez horas da manhã e acabar a tempo de os moradores irem para casa almoçar.

As crianças se reuniam primeiro, claro. As férias de verão da escola haviam iniciado recentemente, e o sentimento de liberdade ainda trazia uma agitação para a maioria delas. Reuniram-se calmamente, no início, mas acabaram, ao fim, explodindo em uma gritaria e brincadeiras por todos os lados. As conversas ainda eram sobre a sala de aula e os professores, sobre livros e castigos. Bobby Martin já tinha enchido seus bolsos de pedras, e os outros garotos logo seguiram seu exemplo escolhendo as pedras mais lisas e redondas. Bobby e Harry Jones e Dickie Delacroix – os moradores pronunciavam o nome como “Dellacroa” – finalmente juntaram uma grande pilha de pedras em um canto da praça e montaram guarda contra o ataque dos outros meninos. As garotas não se misturavam, conversavam entre elas, espiando os meninos por cima dos ombros, enquanto parte das crianças menores rolavam no chão e outras ficavam agarradas às mãos de seus irmãos ou irmãs mais velhas.

Logo os homens começaram a se reunir, de olho em suas próprias crianças, falando de plantio e chuva, tratores e impostos. Agruparam-se num canto, longe da pilha de pedras. As piadas eram quietas e eles sorriam; mais do que davam risadas. As mulheres, usando velhos vestidos desbotados e suéteres, chegaram logo após os companheiros. Todos cumprimentavam uns aos outros e trocavam uma fofoca ou outra enquanto elas se juntavam aos maridos. Logo, as mulheres, ao lado dos maridos, começaram a chamar seus filhos e filhas, e eles vieram de má vontade, tendo que ser chamados quatro ou cinco vezes. Bobby Martin esquivou-se dos braços da mãe e correu dando risada em direção à pilha de pedras. O pai dele ergueu a voz com um tom ríspido, e Bobby voltou rapidamente e meteu-se no seu lugar, entre o pai e o irmão mais velho.

A loteria era conduzida – assim como as danças na praça, o clube de

jovens, o programa de Halloween – pelo Sr. Summers, que tinha tempo e energia para dedicar às atividades cívicas. Ele era um homem alegre de rosto arredondado, responsável pelo negócio de carvão, e as pessoas sentiam pena dele porque não tinha filhos, e sua esposa era uma mulher mal-humorada. Quando chegou à praça, carregando a caixa preta de madeira, os moradores do vilarejo trocaram sussurros entre eles, e ele acenou e cumprimentou. “Um pouco atrasado hoje, pessoal.” O diretor dos correios, Sr. Graves, seguia-o, carregando um banquinho de três pernas, que foi posicionado no centro da praça, e o Sr. Summers colocou a caixa preta em cima dele. As pessoas mantiveram uma certa distância, deixando um espaço entre elas e o banco, e quando o Sr. Summers disse, “Algum de vocês quer me dar uma mão?”, houve um pouco de hesitação até que dois homens, o Sr. Martin e seu filho

Page 75: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

75

mais velho, Baxter, se juntaram a ele seguraram a caixa em cima do banco, enquanto o Sr. Summers remexia os papéis dentro dela.

Toda a parafernália que era originalmente usada para a loteria tinha se

perdido muito tempo atrás, e a caixa preta que agora estava em cima do banco tinha começado a ser utilizada mesmo antes de ter nascido o homem mais velho da vila, o Velho Warner. Sr. Summers frequentemente comentava com os habitantes da vila a ideia de fazer uma caixa nova, mas ninguém queria abandonar nem mesmo aquele resto de tradição que era representado pela caixa preta. Existia uma história de que a caixa atual tinha sido feita com alguns pedaços da antiga caixa que era usada antes dela, a caixa que havia sido construída quando as primeiras pessoas se estabeleceram na região para fundar aquele vilarejo. Todo ano, após a loteria, o Sr. Summers começava a falar de novo sobre uma caixa nova, mas o assunto sempre acabava sendo deixado de lado sem que nada fosse feito. A caixa preta ficava mais gasta a cada ano: agora ela não era mais completamente preta, e sim lascada ao longo de uma das laterais, tornando possível ver a cor original da madeira, além de ela estar desbotada e manchada em outros pontos.

O Sr. Martin e seu filho mais velho, Baxter, seguraram firme a caixa preta em

cima do banco até o Sr. Summers terminar de revirar completamente os papéis lá dentro. Como grande parte do ritual tinha sido esquecido ou deixado de lado, o Sr. Summers tinha conseguido substituir os pedaços de madeira que haviam sido usados por gerações por pedaços de papel. Ele argumentava que pedaços de madeira eram bastante válidos quando a vila era pequena, mas agora que a população ultrapassava trezentas pessoas e provavelmente seguiria crescendo, era necessário usar algo que caberia mais facilmente dentro da caixa preta. Na noite anterior à loteria, o Sr. Summers e o Sr. Graves tinham cortado os pedaços de papel e os colocado dentro da caixa, que foi então levada para o cofre da empresa de carvão do Sr. Summers e trancada até a manhã seguinte, quando ele estava pronto para levá-la para a praça. Durante o resto do ano ela era guardada, às vezes em um canto, às vezes em outro. A caixa havia passado um ano no celeiro do Sr. Graves e outro ano encostada numa sala dos correios. Por vezes ela era colocada numa prateleira da mercearia Martin e deixada lá.

Havia muitas coisas que deviam ser feitas antes de o Sr. Summers declarar

a loteria iniciada. As listas deviam ser montadas – de chefes de família, chefes das casas de cada família, membros de cada casa em cada família. Também havia o juramento do Sr. Summers enquanto representante oficial da loteria, que deveria ser ouvido pelo diretor dos correios. Tempos atrás, algumas pessoas lembravam, também havia algum tipo de recital encarregado ao oficial da loteria. Um canto descuidado e desafinado era sempre recitado, ano a ano. Algumas pessoas acreditavam que o oficial da loteria tinha que ficar parado enquanto narrava ou cantava os versos, outros acreditavam que ele devia caminhar entre as pessoas, mas há muitos anos essa parte do ritual havia sido abandonada. Também já havia existido uma saudação ritual que o oficial da loteria tinha de usar ao se dirigir a cada pessoa que vinha sacar da caixa, mas isso também havia mudado com o tempo, e agora as pessoas acreditavam que era apenas necessário que o oficial falasse com cada pessoa que se aproximava. O Sr. Summers era muito bom em tudo isso, vestindo sua limpa camisa branca e calça jeans azul, com uma das mãos

Page 76: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

76

descansando relaxada sobre a caixa preta, ele parecia bastante adequado e importante enquanto conversava sem parar com o Sr. Graves e com a família Martin.

Assim que o Sr. Summers finalmente parou de falar e se virou para os

moradores reunidos, a Sra. Hutchinson surgiu correndo no caminho que levava até a praça, com o suéter jogado por cima dos ombros, e enfiou-se no fundo do grupo reunido. “Esqueci completamente que dia era hoje”, ela disse olhando para a Sra. Delacroix, ao seu lado, e ambas abriram leves sorrisos. “Achei que meu marido tava nos fundos empilhando lenha”, a Sra. Hutchinson continuou, “Olhei pela janela e as criança tinha sumido, aí que lembrei que era dia vinte e sete e saí correndo”.

A Sra. Hutchinson esticou o pescoço para enxergar por cima da multidão e

avistou o marido e os filhos de pé à frente do grupo. Ela deu um tapinha no braço da Sra. Delacroix para se despedir e começou a se enfiar entre as pessoas, indo em direção à sua família. De bom humor as pessoas abriam caminho para que ela passasse: duas ou três pessoas falaram, erguendo as vozes para que fossem ouvidas pelos outros moradores, “Aí vem sua patroa, Hutchinson!”, e “Bill, ela apareceu finalmente!”. A Sra. Hutchinson alcançou seu marido, e o Sr. Summers, que estava aguardando, disse animado. “Achei que a gente ia ter que seguir sem você, Tessie.” Com um largo sorriso a Sra. Hutchinson respondeu: “Você queria que eu deixasse a louça suja na pia, Joe?”, e um leve riso correu entre os habitantes da vila que voltavam para suas posições depois da chegada da última moradora.

“Vamos lá”, disse Sr. Summers em tom sério, “É melhor começar, acabar

com isso de uma vez, aí a gente consegue voltar pro trabalho. Tá faltando alguém?” “Dunbar”, várias pessoas disseram. “Dunbar. Dunbar.” O Sr. Summers consultou sua lista. “Clyde Dunbar”, ele leu. “É verdade. Ele

quebrou a perna, não foi? Quem vai tirar pra ele?” “Acho que eu”, uma mulher respondeu, e o Sr. Summers se virou para

conseguir enxergá-la. “Esposa tirando no lugar do marido”, disse Sr. Summers. “Você não tem um filho crescido pra fazer isso por você, Janey?” Embora o Sr. Summers e todo o resto dos moradores soubessem a resposta perfeitamente, era atribuição do oficial da loteria fazer esse tipo de perguntas explicitamente. O Sr. Summers esperou com um ar educado e de interesse enquanto a Sra. Dunbar respondia.

“O Horace só tem dezesseis anos”, disse a Sra. Dunbar desanimada. “Acho

que tenho que ir no lugar do marido esse ano.” “Certo”, concordou o Sr. Summers. Ele fez uma anotação na lista que tinha

nas mãos e então perguntou: “Garoto Watson vai tirar esse ano?” Um rapaz alto levantou a mão no meio da multidão. “Aqui”, ele chamou. “Vou

tirar pra mim e pra minha mãe.” Ele piscou nervosamente os olhos e abaixou a cabeça enquanto várias vozes se erguiam no meio do grupo dizendo coisas como: “Bom rapaz, Jack” e “Bom ver que tua mãe tem um homem pra fazer isso”.

Page 77: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

77

“Bem”, disse o Sr. Summers, “Acho que agora acabou. O Velho Warner apareceu?”.

“Aqui”, respondeu uma voz, e o Sr. Summers assentiu balançando a cabeça. Um silêncio brusco tomou conta da multidão. O Sr. Summers pigarreou e

analisou a lista. “Todos prontos?”, ele perguntou. “Pois bem, vou ler os nomes – chefes de família primeiro – e os homens vem até aqui e tiram um papel de dentro da caixa. Fique com o papel dobrado na sua mão sem olhar até que todos tenham tirado também. Tá claro?”

As pessoas haviam feito isso tantas vezes que eles mal prestavam atenção

nas instruções – a maioria estava quieta, molhando os lábios, sem olhar ao redor. Então o Sr. Summers levantou uma das mãos pro alto e disse: “Adams”. Um homem se separou do resto da multidão e foi até ele. “Olá, Steve”, disse Sr. Summers, e o Sr. Adams respondeu: “Oi, Joe”. Eles sorriram um para o outro em tom sério e com certo nervosismo. Na sequência o Sr. Adams esticou o braço para dentro da caixa preta e tirou um papel dobrado. Ele o agarrou firmemente por um dos cantos enquanto voltava apressado para o seu lugar no meio dos outros, parando próximo à sua família, sem olhar para a mão.

“Allen”, chamou o Sr. Summers. “Anderson ... Bentham.” “Parece que nem existe mais intervalo entre as loterias”, disse a Sra.

Delacroix para a Sra. Graves na fileira do fundo. “Parece que foi semana passada que a gente passou pela última loteria.” “O tempo passa ligeiro mesmo”, respondeu a Sra. Graves. “Clark... Delacroix.” “Lá vai meu marido”, disse a Sra. Delacroix. Ela prendeu a respiração

assistindo ao marido caminhar até a frente. “Dunbar”, disse o Sr. Summers, e a Sra. Dunbar caminhou com passos

firmes até a caixa enquanto uma das mulheres disse “Vamo, Janey”, e outra disse, “Lá vai ela”.

“Nós somos os próximos”, falou a Sra. Graves. Ela assistia enquanto o Sr.

Graves se aproximou pela lateral da caixa, cumprimentou o Sr. Summers de forma solene e selecionou um pedaço de papel de dentro dela. Agora já se viam, espalhados pela multidão, homens com pequenos pedaços de papel dobrados em suas grandes mãos, revirando-os entre os dedos com ansiedade. A Sra. Dunbar e seus dois filhos estavam juntos, ela segurando o pedaço de papel.

“Harburt... Hutchinson.” “Vai logo, Bill”, disse a Sra. Hutchinson, e as pessoas ao redor dela riram.

Page 78: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

78

“Jones.” “Andam dizendo por aí”, disse o Sr. Adams para o Velho Warner, que estava

ao seu lado, “que pros lados da vila norte eles tão pensando em acaba com a loteria”.

O Velho Warner resmungou. “Bando de maluco”, ele disse. “Esses jovem,

nada tá bom pra eles. Logo eles vão tá querendo volta a mora numa caverna, ninguém trabalha mais, e segue vivendo assim um tempo. Tinha um ditado que dizia: ‘Loteria acontece, colheita floresce’. Desse jeito vamo acaba todo mundo comendo ensopado de moruge e noz de carvalho. A loteria sempre existiu”, e ainda adicionou de mau humor, “já tá ruim vê esse moleque Joe Summers, lá de brincadeira com todo mundo”.

“Tem lugar que já acabô com a loteria”, retrucou o Sr. Adams. “Isso aí só dá problema”, falou o Velho Warner decidido. “Bando de

moleque maluco.” “Martin.” E Bobby Martin assistiu seu pai ir à frente. “Overdyke... Percy.” “Queria que eles apurasse”, falou a Sra. Dunbar para seu filho mais velho.

“Queria que eles apurasse.” “Eles tão quase no fim”, respondeu o filho dela. “Fica pronto pra corre contá pro pai”, disse a Sra. Dunbar. O Sr. Summers chamou seu próprio nome e deu um passo firme à frente,

tirando um papel de dentro da caixa. Então ele chamou: “Warner”. “Já tem setenta e sete anos que participo da loteria”, falou o Velho Warner

enquanto atravessava a multidão. “Setenta e sete.” “Watson.” O garoto alto atravessou desajeitado a multidão. Alguém disse,

“Não fique nervoso, Jack”, e o Sr. Summers disse, “Vá com calma, rapaz”. “Zanini.” Depois disso houve uma grande pausa, todos seguraram a respiração, até

que o Sr. Summers, erguendo seu pedaço de papel no ar, disse, “Certo, pessoal”. Por um momento ninguém se mexeu, e então todos os pedaços de papel foram abertos. De repente todas as mulheres começaram a falar de uma só vez, perguntando, “Quem foi?”, “Quem tirou?”, “Foram os Dunbars?”, “Foram os Warsons?”. Logo as vozes começaram a dizer, “É o Hutchinson. É o Bill”, “Bill Hutchinson tirou o papel”.

“Vai contá pro seu pai”, a Sra. Dunbar ordenou ao filho mais velho.

Page 79: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

79

As pessoas começaram a esticar os pescoços para encontrar os Hutchinsons. Bill Hutchinson estava parado, quieto, encarando o papel em sua mão. Do nada Tessie Hutchinson berrou para o Sr. Summers: “Você não deu tempo suficiente pra ele tira o papel que ele queria! Eu vi tudo! Não foi justo!”.

“Não exagera, Tessie”, respondeu a Sra. Delacroix, e o Sr. Graves disse,

“Todo mundo teve a mesma chance”. “Cala a boca, Tessie”, falou Bill Hutchinson num tom seco. “Certo, pessoal”, disse o Sr. Summers. “Chegamos até aqui bastante rápido,

e agora temos que nos apressar um pouco mais pra acabar na hora.” Ele consultou sua próxima lista. “Bill”, ele disse, “Você tira para a família Hutchinson. Tem alguma outra casa na família?”.

“Tem Don e Eva!”, se intrometeu a Sra. Hutchinson. “Eles também tem que

tira a sorte!” “Filhas participam com as famílias dos maridos, Tessie”, disse o Sr.

Summers gentilmente. “Você e todos aqui sabem muito bem disso.” “Não foi justo”, reclamou Tessie. “Acho que não, Joe”, respondeu finalmente Bill Hutchinson desanimado.

“Minha filha tira com a família do marido dela, é assim mesmo. E eu não tenho mais família fora as crianças.”

“Então, no que diz respeito ao sorteio da família, só tem você”, explicou o Sr.

Summers, “E no que diz respeito às casas da família, também é só você. Certo?”. “Certo”, respondeu Bill Hutchinson. “Quantas crianças, Bill?”, perguntou o Sr. Summers formalmente. “Três”, respondeu Bill Hutchinson. “Tem o Bill Jr., a Nancy e o pequeno Dave. E a Tessie e eu.” “Está certo então”, falou Sr. Summers. “Harry, você pegou os bilhetes deles

de volta?” O Sr. Graves concordou com a cabeça e levantou os pedaços de papel.

“Pode colocar eles dentro da caixa então”, ordenou o Sr. Summers. “Pegue o do Bill e coloque aí também.”

“Acho que tem que começa tudo de novo”, disse num tom calmo a Sra.

Hutchinson, se segurando pra não elevar a voz. “Tô te falando que não foi justo. Você não deu tempo suficiente pra ele escolhê. Todo mundo viu.”

Page 80: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

80

O Sr. Graves já havia juntado os cinco pedaços de papel e os colocado dentro da caixa, e assim ele jogou todos os papéis restantes no chão, que foram pegos pela brisa e levados embora junto com o vento.

“Escuta, todo mundo”, a Sra. Hutchinson suplicava às pessoas à sua volta. “Pronto, Bill?”, perguntou o Sr. Summers, e Bill Hutchinson, olhando de

relance para a esposa e os filhos, concordou com a cabeça. “Lembre”, disse Sr. Summers, “peguem os papéis e fiquem com eles

dobrados até que cada pessoa tenha pegado um. Harry, você ajuda o pequeno Dave”. O Sr. Graves pegou a mão do garotinho, que foi de boa vontade com ele até a caixa. “Pegue um papel de dentro da caixa, rapazinho”, disse o Sr. Summers. O menino colocou a mão pra dentro da caixa e abriu um sorriso. “Pegue só um papel”, orientou o Sr. Summers. “Harry, você segura pra ele.” O Sr. Graves pegou a mão da criança e tirou o papel dobrado do punho apertado e o segurou enquanto o pequeno Dave, parado ao seu lado, olhava para ele tentando entender o que estava acontecendo.

“Agora a Nancy”, disse o Sr. Summers. Nancy tinha doze anos, e seus

colegas de classe respiravam fundo enquanto ela foi até a frente balançando a saia e tirou um papel com delicadeza de dentro da caixa. “Bill Jr.”, disse o Sr. Summers, e Billy, com o rosto vermelho e os pés desajeitados, quase derrubou a caixa quando foi tirar o papel. “Tessie”, disse Sr. Summers. Ela hesitou por um momento, olhando à sua volta com um olhar desafiador, e então apertou os lábios e foi até a caixa, arrancou um papel de dentro dela e o segurou com as mãos para trás.

“Bill”, disse Sr. Summers, e Bill Hutchinson colocou a mão dentro da caixa,

tateou um pouco, e finalmente tirou a mão de dentro, segurando o último pedaço de papel.

A multidão estava quieta. Uma garota sussurrou: “Espero que não seja a

Nancy”, e o som do sussurro atravessou a multidão. “Não é do jeito que era antes”, disse o Velho Warner claramente. “Esse povo

não é mais como era antes.” “Certo”, continuou Sr. Summers. “Abram os papéis. Harry, você abre o do

pequeno Dave.” O Sr. Graves abriu o pedaço de papel e um suspiro generalizado passou

pela multidão quando ele levantou o papel, e todos conseguiram ver que estava em branco. Nancy e Bill Jr. abriram seus papéis ao mesmo tempo e ambos ficaram alegres e sorriram, virando-se para a multidão e erguendo seus pedaços de papéis acima das cabeças.

“Tessie”, disse o Sr. Summers. Houve uma pausa, e então o Sr. Summers

olhou para Bill Hutchinson, e Bill desdobrou e mostrou seu papel. Estava em branco.

Page 81: SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE … · Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, ... Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para ... Orientações

81

“Sobrou a Tessie”, disse o Sr. Summers, e sua voz ficou calma. “Nos mostre o papel dela, Bill.”

Bill Hutchinson foi até a esposa e arrancou à força o pedaço de papel da

mão dela. Havia uma marca preta nele, a marca preta que o Sr. Summers tinha feito na noite anterior com um lápis grosso no escritório da empresa de carvão. Bill Hutchinson ergueu o papel para que os outros pudessem ver, e todos ficaram agitados.

“Certo, pessoal”, disse o Sr. Summers. “Vamos acabar logo com isso.” Embora os moradores da vila tivessem esquecido do ritual e perdido a caixa

preta original, eles ainda se lembravam de como usar pedras. A pilha de pedras que os garotos haviam juntado antes estava preparada. Havia pedras no chão junto dos pedaços de papel tirados de dentro da caixa, que eram aos poucos levados pelo vento. Delacroix escolheu uma pedra tão grande que teve que usar as duas mãos para levantá-la, e então se virou para a Sra. Dunbar. “Vamo lá”, ela disse. “Se apresse.”

A Sra. Dunbar carregava pequenas pedras nas duas mãos e disse,

respirando com dificuldade, “Sem chance de eu consegui corrê. Você vai tê que ir na frente e eu te alcanço depois”.

As crianças já estavam com suas pedras, e alguém entregou ao pequeno

Dave Hutchinson algumas pedras menores. Nesse momento Tessie Hutchinson já estava no centro de um espaço que

havia sido liberado pelos outros, e ela levantava suas mãos desesperada enquanto os moradores da vila iam para cima dela. “Não é justo!”, ela gritava. Uma pedra atingiu a lateral de sua cabeça. O Velho Warner dizia, “Vamo, vamo lá, pessoal!”. Steve Adams estava à frente da multidão com o Sr. Graves ao seu lado.

“Não é justo, isso não tá certo!”, gritava a Sra. Hutchinson, e logo eles a

cercaram por todos os lados.