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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 153
ESTUDO ELABORADO POR ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO:
Cristiane Penhalver Jensen
Daniel Torres de Melo Ribeiro
Jefferson Nascimento
Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Mariana Augusta dos Santos Zago
Maybi Rodrigues Mota
Renata Chiarinelli Laurino
Victor Marcel Pinheiro
Elaboração do estudo1
O presente estudo é resultado do envolvimento de alunos de graduação em disciplina de extensão
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Amicus DH), especialmente voltada à sua
elaboração, organizada pelo professor de direito constitucional Virgílio Afonso da Silva e pela
doutoranda Evorah Cardoso. Sua elaboração contou também com a participação de Daniel Ribeiro
e Jefferson Nascimento, respectivamente, especialistas em direito penal internacional e sistema
interamericano.
1 Originalmente, tal estudo tinha por objetivo ser apresentado como amicus curiae ao Supremo
Tribunal Federal. O presente documento mantém a formatação e argumentação originais.
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EXCELENTÍSSIMO SENHOR RELATOR DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL 153
Min. Eros Grau
O CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO, entidade representativa dos estudantes
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, inscrita no CNPJ sob o nº XXXXXXX,
com sede à Rua Riachuelo, 194, CEP: 01007-000, em São Paulo-SP (doc. 01), por seu
presidente Marcelo Chilvarquer (doc. 02), vem perante Vossa Excelência, através de seus
procuradores devidamente habilitados (doc. 01), nos autos da ARGUIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 153 – sobre a “Lei de Anistia”, –
propor o presente AMICUS CURIAE pelos fundamentos apresentados a seguir.
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I. ADMISSIBILIDADE DO CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO PARA A PROPOSITURA DO
PRESENTE AMICUS CURIAE
O CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO é a entidade representativa dos estudantes da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, associação civil, sem fins lucrativos, apartidária,
declarada de utilidade pública pela Lei Estadual 3287/55 e pelo Decreto Municipal 3883/38.
A entidade possui como seus principais objetivos o aperfeiçoamento constante das condições do
ensino jurídico e o desenvolvimento cultural e político dos estudantes de direito (art. 3º, b do
Estatuto Social – doc. 01) e também a luta pelo aperfeiçoamento do direito e das instituições
jurídicas, para que toda a população goze de justiça e de igualdade social (art. 3º, h do Estatuto
Social).
Nesse sentido, mostra-se significativa a participação do CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO na
presente ação, pois a entidade assume um propósito diferenciado de ensino de direito e
intervenção social diferenciada, baseada no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão nas universidades (art. 207, caput, Constituição Federal). Vale ressaltar que o presente
amicus curiae é resultado do envolvimento de alunos em disciplina de extensão da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (Amicus DH), especialmente voltada à sua elaboração.
A participação de uma entidade estudantil universitária na condição de amicus curiae em ação
direta de constitucionalidade adéqua-se efetivamente à previsão constitucional e estatutária
supra, por atender ao propósito de ensino e pesquisa do direito e das instituições jurídicas de
forma diferenciada, por buscar incidir qualificadamente no processo de interpretação
constitucional em um tema de extrema relevância para toda sociedade, como o tratado na ADPF
153, sobre a “Lei de Anistia”. O amicus curiae, assim como o amicus curiae, pode ser considerado
um instrumento apto à promoção da participação da sociedade no processo de interpretação
constitucional em questões de grande impacto e relevância social que estão na pauta do Supremo
Tribunal Federal. Tais instrumentos possuem, portanto, marcado caráter democrático e sua
recepção reforça a legitimidade do processo decisório do tribunal.
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Do mesmo modo, conforme afirma o Ministro Celso de Mello em relação ao caráter democrático
do amicus curiae na decisão monocrática da ADI 3268/RJ:
“Impõe-se registrar, neste ponto, que a razão de ser que primordialmente justifica
a intervenção do "amicus curiae" apóia-se na necessidade de pluralizar o debate
em torno da constitucionalidade, ou não, de determinado ato estatal, em ordem a
conferir maior coeficiente de legitimidade democrática ao julgamento a ser
proferido, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de fiscalização normativa
abstrata, consoante pude enfatizar em decisão que proferi, como Relator, na ADI
2.130-MC/SC (DJU de 02/02/2001)”.
Além disso, o CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO tem em seu estatuto o
compromisso de organizar e orientar a luta dos estudantes, ao lado do povo, no sentido da
construção de uma sociedade livre, democrática e sem exploração (art. 3º, e do Estatuto Social).
Considerando a importância do tema da ADPF 153, sobre a “Lei de Anistia”, para a
democracia, mostra-se relevante a participação da entidade nesse caso.
Por outro lado, destaca-se o fato de que o CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO já
vem estudando e discutindo o tema desta ação entre seus associados, por meio principalmente da
promoção de eventos, debates e palestras sobre a “Lei de Anistia”. Isso demonstra efetivo
interesse da entidade sobre o assunto.
Também a história política nacional registra sua participação efetiva em grandes
eventos políticos. O CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO é uma das entidades estudantis
universitárias mais antigas do país, tendo sido fundado em 11 de agosto de 1903 e com notória
relevância no movimento estudantil nacional.
Posto isso, entende a requerente que está legitimada a pleitear o ingresso nos
autos da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4077 na condição de amicus curiae, ademais
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de atender os critérios de relevância da matéria e representatividade do postulante (art7º, §2º, da
Lei 9.868).
II. ESTRUTURA DO AMICUS CURIAE
O presente amicus curiae tem por objetivo demonstrar a inconstitucionalidade da interpretação
dada pelos tribunais brasileiros (em especial pelo Superior Tribunal Militar) à Lei 6.683 de 28 de
agosto de 1979 – "Lei de Anistia") –, ao compreenderem como anistiadas determinadas condutas
consideradas como crimes contra a humanidade, que são em essência crimes imprescritíveis e não
anistiáveis.
Ademais, acredita-se que esta lei ainda promove uma política de esquecimento dos crimes
cometidos durante o período da ditadura no Brasil, o que trouxe uma série de efeitos não
sustentáveis constitucionalmente que perduram até os dias de hoje. Por ser a interpretação dada
à anistia "ampla, geral e irrestrita", ela impossibilita não apenas a punição penal dos autores
destes ilícitos como qualquer forma de responsabilização, impedindo diversas respostas possíveis
do Estado brasileiro a estes crimes.
O debate sobre a interpretação dada à extensão dos efeitos da anistia brasileira encontra-se
atualmente no Poder Judiciário brasileiro. Há ações judiciais que demandam a responsabilização
civil, apenas em seus efeitos declaratórios, dos autores de determinados crimes cometidos no
período da ditadura; outras ações judiciais, promovidas pelo Ministério Público Federal, baseiam-
se na imprescritibilidade de acões de ressarcimento do erário público para reaver dos autores dos
crimes as indenizações que têm sido pagas pela União às vítimas e familiares. Além disso, reflexos
do debate sobre a Lei da Anistia são sentidos em outras ações judiciais perante este Supremo
Tribunal Federal, como é o caso das ações diretas de inconstitucionalidade 4077 e 3987 – sobre
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sigilo de documentos públicos2 –, e da Extradição 9743. Tais ações judiciais ilustram as
repercussões jurídicas deste debate.
Deste modo, o presente amicus curiae buscará esclarecer a distinção entre os momentos de
responsabilização e punição, termos infelizmente utilizados de forma indistinta, até aqui, nos
debates brasileiros sobre a revisão da Lei de Anistia e sobre direito penal de modo geral – além de
apresentar ao Supremo Tribunal Federal algumas alternativas de interpretação constitucional
desta lei com relação a seus efeitos, apresentando as diferentes gradações possíveis das respostas
do Estado brasileiro a estes crimes conforme seus efeitos punitivos penais ou civis e declaratórios.
1. ADMISSIBILIDADE DA ADPF E PRECEITOS FUNDAMENTAIS
Pressupostos de admissibilidade da ADPF
A Lei da Anistia é apenas uma das respostas do Estado brasileiro aos crimes cometidos durante o
período da ditadura, que compreende o período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
19794. Infelizmente, a interpretação dada a esta lei foi a mais extensiva possível: a anistia
2 Os casos referentes a crimes cometidos no período da ditadura militar sofrem com a falta de acesso à
informação a documentos públicos da época. A negativa atual do acesso à informação de órgãos públicos é em parte respaldada, de modo equivocado, na atual regulamentação que possibilita o sigilo de documentos públicos. Tais ações diretas de inconstitucionalidade foram objeto de amicus curiae também elaborado pelos alunos da disciplina optativa de extensão Amicus DH, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. As ações judiciais correm o risco de serem prejudicadas pela possível perda do objeto com a aprovação do Projeto de Lei 5228/2009, que não apenas dá nova regulamentação ao sigilo de documentos públicos, mas também cria uma Lei de Acesso à Informação, até hoje inexistente no país. 3 Trata-se de extradição de militar uruguaio acusado na Argentina de participar da Operação Condor. A
extradição foi decidida pelo pleno do Supremo Tribunal Federal como procedente em parte, no dia 06.08.2009. Até o momento do envio destes memorias, o acórdão ainda não havia sido publicado. “STF autoriza extradição de major da Operação Condor à Argentina”, Notícias STF, disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=111608&caixaBusca=N. 4 Entre outras respostas do Estado brasileiro, duas leis merecem destaque, ainda que com objetivos e com
cobertura temporal distintos: a lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995, reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e a lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, que regulamenta a indenização dos anistiados políticos e abrange situações ocorridas no período entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. É preciso ressaltar que o reconhecimento da
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brasileira seria "ampla, geral e irrestrita", englobando todos os crimes políticos e conexos a
políticos – inclusive crimes contra a humanidade, que são por natureza imprescritíveis e não
anistiáveis.
A presente ADPF, portanto, tem por objeto a declaração de que esta interpretação é incompatível
com a Constituição Federal de 1988. Obviamente, um pedido como este parte do pressuposto de
que existem pelo menos duas interpretações possíveis da lei, sendo que apenas aquela
interpretação mais restrita – que obedece os compromissos assumidos pelo Brasil
internacionalmente e que respeita os direitos fundamentais reconhecidos e garantidos pelo seu
ordenamento jurídico – é constitucional.
1.1. Lei de Anistia e as duas possibilidades de interpretação discutidas até o momento
Concede o artigo 1º da Lei nº 6683/1979 anistia a todos aqueles que, no período entre 1961 e
1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, entre outros, in verbis:
“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com
estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores
da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos
Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
inconstitucionalidade da interpretação dada até hoje à Lei de Anistia, questionada nesta ADPF, não tornam as outras respostas do Estado brasileiro aos crimes cometidos durante a ditadura inconstitucionais.
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§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato
Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-
se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.” (grifos nossos)
Em relação ao caput e ao § 1º do dispositivo em questão, há pelos menos duas possibilidades de
interpretação da Lei sob exame.
A primeira – exposta, por exemplo, no Parecer da Advocacia Geral da União (AGU) – dá-se no
sentido de que houve anistia ampla e irrestrita a todos os opositores do regime militar instalado,
bem como dos agentes do regime que tenham praticado crimes contra esses opositores.
Entendeu-se que estes teriam cometido crimes conexos aos crimes políticos cometidos pelos
opositores do regime. Essa interpretação teria sido acolhida na jurisprudência do Superior Tribunal
Militar (STM), como se pode perceber na decisão transcrita a seguir:
“Anistia. Condenação por crime politico. Pena cumprida. Instituto de amplíssima
abrangência, a anistia produz efeitos 'ex tunc' apagando a sentença irrevogável para
alcançar o crime cujas conseqüências faz desaparecer. O anistiado pela EC 26, prescinde
da reabilitação decretada pelo juiz 'a quo'. Recurso provido para desconstituir o despacho
concessório de reabilitação. Extinção da punibilidade decretada 'de ofício' face os temas
do artigo 650 da lei adjetiva penal e EC 26 de 1985.”5
A segunda possibilidade de interpretação do caput e § 1º da Lei 6.683/1979 é a expressa na
petição inicial da presente ADPF, firmando que determinados crimes não foram anistiados –
devendo-se, portanto, responsabilizar os agentes dessas condutas no âmbito penal e civil. Assim,
seria "irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos
pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da
repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode[ria] ser reconhecida, nas hipóteses de
5 STM Acórdão 1986.01.005751-7. Em sentido semelhante, ver STM 1984.01.032222, 1985.01.005666-9.
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crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal),
ou por várias pessoas em co-autoria. No caso, portanto, a anistia somente abrange[ria] os autores
de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de crimes comuns a eles
ligados pela comunhão de objetivos. É fora de qualquer dúvida que os agentes policiais e militares
da repressão política, durante o regime castrense, não cometeram crimes políticos"6.
Em seguida, mostra-se que são possíveis outras interpretações dos dispositivos questionados para
além das duas acima mencionadas. Nesse sentido, no caso de mais de uma possibilidade de
interpretação de texto normativo – que, na lição de Eros Grau, implica a existência de mais de uma
norma jurídica possível7 –, resta saber qual delas se sustenta perante o atual sistema
constitucional mediante uma interpretação conforme à Constituição a ser realizada pelo STF.
Desse modo, o presente amicus curiae tem por objetivo revelar outras interpretações possíveis
dos dispositivos impugnados e identificar as conseqüências da adoção dessas outras
interpretações.
1.2. A admissibilidade da ADPF
1.2.1. A controvérsia judicial
Conforme o art. 2º, inciso V, da Lei 9.882/99, se for o caso, faz-se necessária a comprovação da
existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se
considera violado.
A petição inicial da presente ADPF demonstrou somente controvérsias doutrinárias envolvendo a
“Lei de Anistia”, mencionando ainda algumas reportagens que demonstram a repercussão do
tema nos principais meios de mídia; entretanto, não fez nenhuma menção às controvérsias
6 Petição inicial, p. 9.
7 Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, São Paulo: Malheiros,
2002, pp. 71 e ss. Mais recentemente, cf. Virgílio Afonso da Silva, "Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção", Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): pp. 615 e SS.
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judiciais às quais se refere o dispositivo legal supra citado, o que não significa que elas não
existam.
Por exemplo, há reiteradas decisões do Superior Tribunal Militar que extinguem a punibilidade de
determinados crimes com base na “Lei de Anistia”; ao mesmo tempo, foram propostas
recentemente ações judiciais buscando a responsabilização civil dos agentes militares que
cometeram determinados crimes contra a população civil durante a ditadura. É o caso das ações
promovidas pela família Teles e pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o Coronel Ustra, que
comandou o DOI-Codi em São Paulo, entre 1970 e 1974.
No que concerne ao caso da Família Teles8, trata-se de ação declaratória proposta por Janaina de
Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e
Criméia Alice Schmidt de Almeida em face de Carlos Alberto Brilhante Ustra, alegando terem sido
vítimas de tortura durante o regime militar. A sentença afastou, dentre outros questionamentos
preliminares relevantes, a preliminar acerca da falta de interesse processual em razão da aplicação
da Lei de Anistia. Por fim, acolheu e julgou procedente a ação declaratória em relação aos autores
César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida,
declarando que "entre eles e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de
responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais".9
O MPF, por sua vez, propôs Ação Civil Pública em face da União Federal, de Ustra e de Audir
Santos Maciel. Em face destes dois últimos requer-se (i) a perda da função pública que
eventualmente exerçam e ainda sejam impedidos de investidura em qualquer função pública, (ii) a
reparação pelos danos morais coletivos, (iii) a reparação regressiva pelos atos praticados no
comando do DOI/CODI, (iv) a declaração da existência de responsabilidade pessoal. Em face da
União, requer-se a declaração de existência da obrigação do exército de tornar públicas as
informações sobre o DOI/CODI do período de 1970 a 1985 e a omissão em promover as ações
regressivas pelas indenizações das vítimas e familiares que sofreram danos decorrentes dos atos
praticados no período da ditadura. Esta ação foi extinta sem julgamento do mérito. Segundo o
8 Processo 583.00.2005.202853-5.
9 Decisão monocrática, Juiz Gustavo Santini Teodoro.
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MPF, "a sentença aponta como um dos motivos para o indeferimento o fato da morte ter ocorrido
'há muito passado', o que 'por si só não originaria a alegada violação aos direitos humanos
suficiente a ser reparada à toda a coletividade'"10. Recentemente, a ação foi reaberta por
unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, anulando a decisão de
primeiro grau que a extinguia11.
Ainda que não se refira aos efeitos penais da Lei 6.683/1979, há recente julgado do STJ em que se
afirma serem imprescritíveis as violações à dignidade da pessoa humana geradas por crimes
cometidos por agentes do regime militar vigente nas décadas de 60, 70 e 80. Destaca-se trecho do
julgado:
“Processual civil. Administrativo. Indenização. Reparação de danos morais. Regime militar.
Perseguição e prisão por motivos políticos. Imprescritibilidade. Dignidade da pessoa
humana. Inaplicabilidade do art. 1.º do decreto n.º 20.910/32. Esgotamento da via
administrativa. Ofensa a dispositivos constitucionais. Responsabilidade civil do estado.
Danos morais. Indenização. Configuração, redução do quantum indenizatório e
honorários. Matéria fático-probatória. Súmula n.º 07/STJ.
(...)
4. A violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana, como sói
ser a proteção da sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião durante
o Regime Militar de exceção enseja ação de reparação ex delicto imprescritível, e ostenta
amparo constitucional no art. 8.º, § 3.º, do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
10
Ministério Público Federal, Procuradoria Da República No Estado De S. Paulo, Procuradoria Regional Da República Na 3º Região, Assessoria De Comunicação, 26/03/09 -MPF recorre de decisão que extinguiu ação civil sobre morte de Fiel Filho. 11
“TRF-3 reabre ação contra torturadores de Fiel Filho”, Consultor Jurídico, 15.10.09. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-set-15/trf-reabre-acao-acusados-torturar-manoel-fiel-filho.
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5. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a
proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República
Federativa, posto seu fundamento.”12
Do trecho exposto verifica-se que o STJ entendeu que a Lei de Anistia não é óbice para que: a)
determine-se, judicialmente, uma relação de causalidade entre atos cometidos por agentes do
regime militar e vítimas de crimes que violam a dignidade da pessoa humana, e b) exista a
reparação civil desta violação. Desse modo, entendeu o tribunal ser possível que se apurem em
juízo fatos ocorridos durante o regime militar, que gerem violação aos direitos fundamentais – o
que contraria a jurisprudência do STM acima mencionada.
Diante disso, aponta-se a existência de controvérsia judicial sobre o tema, uma vez que os julgados
acima transcritos são incompatíveis no que se refere aos efeitos da anistia, bem como à extensão
daquela como concebida pela Lei 6.683/1979.
1.3. Os preceitos fundamentais violados
Inicialmente é necessário determinar-se o que deve ser entendido por “preceito fundamental” –
expressão contida no art. 102, §1º, da Constituição Federal e em diversos dispositivos da Lei
9.882/99.
Embora tal expressão não seja definida, o entendimento prevalecente é de que “preceito” não se
confunde com “princípio”. Dessa maneira, com referência à tradicional distinção das normas
jurídicas entre regras e princípios, conclui-se que um preceito constitucional fundamental pode ser
tanto desta quanto daquela espécie de norma13.
A compatibilidade de certa norma ou ato normativo, na ADPF, tem como parâmetro preceitos
fundamentais presentes em nosso sistema constitucional. Desse modo, uma norma será
12
STJ REsp 959.904. 13
ADPF 33, votos dos ministros Gilmar Mendes (p. 15) e Sepúlveda Pertence (p. 57). Ver também José Afonso da Silva. “Aplicabilidade das normas constitucionais”, Revista dos Tribunais (1992), pp. 89-91.
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compatível com a Constituição quando não violar nenhum preceito fundamental por ela
estabelecido.
A norma resultante da interpretação do art. 1o., parágrafo único, da Lei 6.683/1979, que entende
serem conexos aos crimes políticos, delitos como tortura, o desparecimento forçado, o seqüestro,
o estupro, o homícidio e agressão a cidadãos por forças do Estado – entendendo-os anistiados –,
viola uma série de preceitos fundamentais trazidos na Constituição.
Dependendo da extensão que se dê à interpretação do art. 1º, caput e § 1º da Lei de Anistia,
diferentes preceitos fundamentais da Constituição Federal podem ser violados. Poder-se-ia citar o
direito à vida (art. 5º, caput), a garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV), proteção à
dignidade humana (art. 1º, III) – que fundamenta a ordem objetiva de valores na Constituição –,
acesso à informação e direito à verdade (art. 5º, XIV ) e o princípio do Estado de Direito (art. 1º,
caput) – no que deixa de cumprir com dever de tutela imposto ao Estado ante seus cidadãos,
deflagrando violação à proibição de proteção insuficiente (Untermaßverbot) que baliza a
proporcionalidade das omissões deste mesmo Estado. Para que possa dimensionar com maior
precisão as violações a preceitos fundamentais – e sua intensidade correspondente –, resultantes
da interpretação equivocada que se tem dado à Lei da Anistia até aqui, deve-se, num primeiro
momento, identificar os diferentes efeitos da anistia enquanto instituto jurídico.
2. Demandas por novas interpretações constitucionais da Lei de Anistia
2.1. Dimensões dos efeitos da Lei de Anistia
É possível observar a existência de variados níveis de medidas estatais a serem adotadas como
resposta aos atos perpetrados durante a ditadura militar, que podem ir desde uma política de
promoção de acesso à informação, direito à memória e à verdade, até a responsabilização e
punição penal. Estas medidas estatais vêm sendo impedidas pela interpretação dos efeitos
“amplos, gerais e irrestritos” dados à Lei de Anistia até hoje. O atual debate judicial sobre a Lei de
Anistia questiona justamente os efeitos dessa interpretação. A seguir apresentamos as diversas
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dimensões dos efeitos da Lei de Anistia, cuja constitucionalidade está sendo questionada nesta
ADPF.
As políticas estatais de fomento a atividades que visam a preservar a memória coletiva no que
tange aos atos em questão, na maioria das vezes, não implicam a referida atribuição individual de
responsabilidade. São exemplos de tais políticas o apoio governamental ao acesso a documentos
oficias que relatam os acontecimentos da época, bem como à edição de obras com o objetivo de
preservar esses relatos, como é o caso do livro “Direito à Memória e à Verdade”, publicado pela
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que recupera a história de mais de quatrocentos
militantes políticos perseguidos pela ditadura. Recentemente, também é possível destacar a
tentativa de localização, recolhimento e identificação dos corpos dos guerrilheiros mortos no
Araguaia, coordenada pelo Ministério da Defesa, em cumprimento à sentença proferida na Ação
nº 82.00.24682-5, da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.
De maneira geral, pode-se afirmar que tais políticas possuem uma função historiográfica de
preservação da memória popular acerca dos acontecimentos que marcaram o passado recente do
nosso país.
Há ainda as medidas que visam a atribuição legal de culpa aos indivíduos. Elas também cumprem,
por via reflexa, a função de preservação da memória coletiva e acesso à informação. Além da
atribuição de culpa, ou seja, da individualização do agente considerado responsável pelo ato de
violência praticado, é possível também que o Estado promova medidas para imputar sanções a
esses agentes. É o que ocorre quando é imputada uma sanção civil, gerando, com isso, o dever de
reparar o dano, ou de caráter penal, na qual sobressai a função punitiva da medida adotada.
Aqui é preciso ressaltar que a responsabilização individual pelos crimes cometidos pode ser
tomada autonomamente, em um sentido próprio, e não como requisito para a aplicação
conseguinte da sanção de caráter civil ou penal. Nesta perspectiva, a responsabilização consiste,
conforme o entendimento de Klaus Günther14, na atribuição pública da culpa, por meio da qual é
14 GÜNTHER , Klaus, Justice, Law, Ethics and Reconciliation, Hart Publishing, Oxford, 2001, p. 6-10
15
fixado o nexo existente entre a conduta do agente e o evento que será atribuído como de sua
autoria.
É preciso destacar que a clara identificação de toda a gama de respostas estatais que podem ser
dadas ao tema é essencial para que a decisão a ser tomada na presente ADPF, caso venha a
confirmar a atual interpretação dada à Lei de Anistia, não consista, inadvertidamente, em óbice às
medidas não penais que têm sido adotadas. É preciso ressaltar, ainda, que a identificação de tal
gama de medidas tem como pressuposto a superação da interpretação da anistia como
esquecimento.
A anistia não se confunde com a absolvição, e por isso não impede a análise da culpa do agente.
Significa apenas que, por uma escolha de ordem política, contestada na presente ação em razão
da interpretação ampla dada à expressão “crimes conexos aos políticos”, determinados atos não
serão submetidos à persecução penal.
2.2. Direito à Verdade, memória e acesso à informação
Antes de discorrer mais pormenorizadamente sobre as respostas estatais aos crimes perpetrados
durante a ditadura militar, talvez seja interessante recuperar um debate que também subjaz a
questão da anistia e que está relacionado ao acesso à informação e ao direito à verdade.
O acesso à informação é direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXIII da Constituição Federal e
viabilizado por outros dispositivos constitucionais como o artigo 37, § 3º, II e o artigo 216, §2º, que
falam especificamente do acesso à informação na Administração Pública e o dever desta de gerir e
franquear a consulta da documentação governamental a quantos dela necessitem.
Além de possuir uma dimensão individual, que se traduz pelo direito de um indivíduo de obter
qualquer informação de seu interesse particular ou de interesse coletivo, o acesso à informação
também tem uma dimensão coletiva intimamente ligada à dimensão participativa da democracia,
possibilitando aos cidadãos uma decisão livre sobre os rumos do governo e também o controle das
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ações governamentais, o que foi denominado por algumas legislações de acesso à informação pelo
mundo de transparência do governo.
Acontece que no Brasil as leis que regulamentam o inciso XXXIII do artigo 5º (lei nº 8.159/1991 e
lei nº 11.111/2005) não favorecem o acesso à informação; ao contrário, criam uma espécie de
cultura do sigilo ao estabelecerem prazos excessivos para o sigilo com fundamento na soberania
nacional, que é de 100 anos, e para o sigilo baseado na honra, com prazo de 30 anos prorrogáveis
por tempo indeterminado. Note-se, embora haja uma série de documentos cujo sigilo tem
realmente uma razão de ser, há atualmente um grande volume de documentos do tempo da
ditadura submetidos a este regime, entre eles aqueles que comprovariam ou que pelo menos
informariam a sociedade sobre os crimes contra a humanidade perpetrados neste período.
Infelizmente, alguns destes documentos tem sido destruídos antes mesmo de ter a sua existência
catalogada, conforme já noticiado em mais de uma ocasião por jornais de grande circulação, com
prejuízos inestimáveis às tentativas de apuração e reconstrução histórica dos fatos ocorridos nesta
época.
A resposta a esta realidade são muitas: vão desde organizações sociais que visam a fomentar a
discussão do que ocorreu nesta época, passa por iniciativas da Secretaria de Direitos Humanos de
catalogar os relatos daqueles que sofreram nos porões da ditadura, entre outros. No âmbito
jurídico, as iniciativas mais são as ADINS nº 3987 e 4077, que questionam a constitucionalidades
das leis de sigilo brasileiras e que ainda tramitam perante o Supremo Tribunal Federal.
Entretanto, há uma outra discussão sobre o acesso à informação, que é de extrema relevância
quando se analisa as diferentes respostas do Estado aos crimes perpetrados durante a ditadura
militar, e que aborda o direito à verdade e a chamada justiça transicional.
O direito à verdade, que tem seu fundamentos nos artigos 1.1, 8.1 e 25 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos15 segundo jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
consiste no direito dos familiares de pessoas desaparecidas durante regimes ditatoriais de saber
15
Caso Barrios Altos vs. Peru, Mérito, Sentença de 14.03.2001, Série C, no. 75, §§ 47-49; Corte IDH, Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, Mérito, Sentença de 25.11.2000, Série C, no. 70, §§ 200-201, § 165, § 211.
17
exatamente o que ocorreu, bem como as correspondentes responsabilizações, por meio da
investigação e julgamento conforme os padrões das garantias judiciais e da proteção judicial.
O direito à verdade reveste-se de grande importância no âmbito do sistema interamericano de
direitos humanos. Prova disso é o debate ensejado recentemente no âmbito da sessão da
Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, a qual, além de reconhecer a
importância de respeitar e assegurar o direito à verdade para contribuir para o fim da impunidade
e para a promoção e proteção dos direitos humanos, encoraja todos os Estados a tomar todas as
medidas necessárias para estabelecer mecanismos ou instituições para relatar informações sobre
violações de direitos humanos, visando exercer o direito à verdade, prevenir violações futuras e
estabelecer accountability nesta área16. O direito à verdade está diretamente relacionado ao
direito de acesso à informação, é um desdobramento deste, e deve ser considerado como um
preceito constitucional.
A justiça transicional, por sua vez, corresponde a uma série de medidas destinadas a promover o
esclarecimento e a publicização dos crimes cometidos contra a população civil, a responsabilização
dos agentes públicos perpetradores e a indenização das vítimas.
A relação entre estes dois institutos é clara: a justiça transicional, com suas comissões de verdade
e outros instrumentos de esclarecimento da verdade, viabiliza o conhecimento da verdade pelos
familiares da vítima e pela sociedade como um todo. Além do mais, ela promove a reconciliação
de lados que se antagonizaram durante os anos de recrudescimento político, e contribui em
termos qualitativos para a democracia que se pretende instaurar, ao contribuir para a não-
repetição de violações aos direitos humanos.
O Brasil, a despeito de ter vivenciado um regime autocrático entre 1964 e 1988, se absteve de
tomar qualquer medida neste sentido: a grande reconciliação teria sido promovida por uma lei de
anistia que isentou os dois lados de qualquer responsabilização legal. Esta medida legal, todavia,
16
Resolução AG/RES. 2509 (XXXIX-O/09) (Direito à verdade) da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, de 04.06.2009.
18
não foi capaz de “botar uma pedra no passado”, já que as demandas por parte da sociedade por
uma alguma espécie de responsabilização continuam.
É importante lembrar, que a responsabilização penal é só uma das formas de responder estas
demandas. Passa-se, a partir deste momento, as discutir as respostas estatais que já existem, a
despeito dos óbices impostos pela Lei de Anistia.
2.3. Efeitos Declaratórios
Outra forma de resposta estatal ao tema da anistia deriva da já referida possibilidade de
responsabilização individual pelos atos cometidos, ainda que dissociada da posterior imputação de
uma sanção. Trata-se de medida que sublinha a função social própria do conceito de
responsabilidade, qual seja, comunicar, por meio da atribuição individual de culpa, que a
conduta de um determinado agente foi determinante para um acontecimento. Esse tipo de
imputação individualizada é importante porque, “em vez de ser atribuído a uma pessoa que age, o
acontecimento poderia ser imputado também às circunstâncias, à situação, a outras pessoas, à
sociedade ou simplesmente ao destino, e nesse caso a comunicação social se daria de maneira
diversa (...).17”.
A declaração judicial de culpa do agente possui extrema importância para as vítimas, já que, como
destaca Flávia Puschel, “passa-se a contar a história das agressões sofridas não como um acaso,
como um golpe do destino, como conseqüências de atos das próprias vítimas ou como decorrência
de processos sociais supra-individuais, mas como atos de autoria do réu, individualmente18”. No
entanto, é preciso aclarar que tal declaração não gera efeitos apenas no âmbito individual. Pelo
contrário, é um meio eficaz para veicular publicamente a contrariedade de uma conduta em
relação ao direito, bem como para garantir a validade da norma violada.
17
GÜNTHER, Klaus, Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito, Saraiva, São Paulo, 2009, p.7. Organizadoras dos textos: Flávia Portela Püschel e Marta Rodriguez de Assis Machado. 18
PÜSCHEL, Flavia Portela, A função comunicativa da responsabilidade civil: evidencias a partir de um caso de impunidade, in Artigo Direito GV [Working Paper], p. 10.
19
É esse o objetivo de ações declaratórias como a do Processo nº 583.00.2005.202853-5/ SP, o qual
não contém qualquer pedido de cunho sancionatório, requerendo apenas que o Poder Judiciário
brasileiro declare que o réu, no exercício do cargo de comandante do DOI-CODI, foi responsável
por torturar os autores, situação que deu origem a uma relação jurídica entre os mesmos. Deve-se
destacar que o simples fato da referida ação não ter sido extinta sem julgamento do mérito
demonstra o interesse existente na imputação autônoma de culpa, pautada nas próprias
disposições do artigo 4º do Código de Processo Civil:
Art. 4º do CPC: O interesse do autor pode limitar-se à declaração:
I. da existência ou inexistência de relação jurídica
II. da autenticidade ou falsidade de documento
Parágrafo único: É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido
violação de direito.
É esse o entendimento que prevaleceu na sentença proferida no caso, da qual se extraiu o
seguinte excerto:
“A tese de que a Lei de Anistia acarreta falta de interesse processual nesta ação
declaratória carece de fomento jurídico. É certo que a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de
1979, visou colocar ‘uma pedra nos acontecimentos do passado’ (fls. 426 – declaração do
jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, na página A7 da edição de 24 de novembro de
2006 do jornal ‘O Estado de São Paulo’), ou ainda, ‘cicatrizar feridas e reconciliar a nação
por meio do esquecimento recíproco das violências mútuas, as quais haviam despertado
emoções intensas e dolorosas’ (fls. 445, artigo do coronel da reserva Jarbas Passarinho, na
página A3 da edição de 28 de novembro de 2006 do jornal ‘Folha de São Paulo’).
Entretanto, como já decidido no saneador, ‘a lei de anistia refere-se apenas a crimes, não a
demandas de natureza civil.’ Basta ler a Lei nº 6.683/79 para verificar que, no que diz
respeito à anistia, seu campo de incidência é exclusivamente penal.”
20
De fato, justifica-se o temor manifestado na defesa do réu da ação em questão ao afirmar que
declaração a ser dada pelo poder judiciário poderia constitui verdadeira via oblíqua de
condenação. Isso se dá porque a responsabilização não é um ato sem conseqüência, ainda do
mesmo não resulte qualquer forma de sanção. Na verdade, ações declaratórias como a citada são
capazes de aclarar a dimensão comunicativa da imputação de culpa, normalmente encoberta
pela aplicação da sanção.
2.4. Ressarcimento do Erário
A interpretação extensiva que tem sido dada à anistia concedida pela Lei nº 6.683, de 1979
impediu, até o momento, não só a punição de caráter penal e administrativa dos agentes, mas
também o dever de reparar civilmente o dano causado. O referido dever de reparação foi
transferido para o Estado, nos termos das leis nº 9.140, de 1995, e nº 10.559, de 2002, que passou
a responder objetivamente pelos atos perpetrados durante a ditadura, indenizando vítimas e seus
familiares. Com isso, foi preservada a idéia de irresponsabilidade individual dos agentes estatais.
Contudo, começa-se discutir a possibilidade de ajuizamento de ações de regresso em face dos
indivíduos responsáveis por tais atos, a fim de ressarcir os cofres públicos. Com esse intuito, o
Ministério Público Federal ajuizou ações civis públicas contra comandantes do Exército à época,
tendo por objetivo a defesa dos direitos constitucionais à verdade, à moralidade e à probidade,
mediante a defesa do patrimônio público e social.
A Procuradoria da República em São Paulo foi instada a instaurar inquérito civil para averiguação
dos fatos cometidos durante a ditadura militar por meio da representação da Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Também Fábio Konder Comparato representou à
Procuradoria da República em São Paulo, em 2007, para a adoção de medidas que visem ao
exercício do direito de regresso pelo Estado brasileiro em face dos causadores dos danos. Em tal
oportunidade, afirmou Fábio Comparato:
21
“É fato notório que, durante o regime político inaugurado com o golpe militar de 1964,
agentes públicos das diferentes unidades da federação, notadamente da União Federal,
praticaram abusos e atos criminosos contra opositores políticos ao regime, em violação ao
princípio da segurança pessoal. [...] A esse título [indenização às vítimas e familiares], já
foram despendidas pela União Federal (e também por alguns Estados federados) elevadas
somas pecuniárias. Mas, até hoje, nenhuma ação regressiva foi intentada contra os
agentes ou funcionários causadores dos danos assim ressarcidos com dinheiro público. A
propositura dessa ação de regresso contra o agente público causador do dano é um dever
do Estado. [...] É por essas razões que o signatário toma a liberdade de apresentar a
presente representação...”.
Deve-se ressaltar que uma vez reconhecido que a anistia instituída pela Lei nº 6.683 de 1979 não
implica a impossibilidade de individualização da culpa, abre-se caminho para a reparação civil do
dano causado, a qual, em função da existência de responsabilidade objetiva do Estado, deve
operar de forma regressiva contra os agentes individualmente responsabilizados. Inclusive, no que
tange todos os valores pagos a título de indenização após a entrada em vigor da Constituição
Federal de 1988, a pretensão do Estado a ter tais valores ressarcidos é imprescritível, por força do
artigo 37, parágrafo 5º da CF. Entre as pretensões regressivas dotadas de imprescritibilidade
encontram-se todas aquelas concedidas pela Comissão de Anistia, órgão subordinado ao
Ministério da Justiça, nos termos dos artigos 5º a 9º da Lei nº 10.559, de 2002.
3. EFEITOS PUNITIVOS PENAIS
Por se tratar do efeito mais controvertido em relação à Lei de Anistia, trataremos separadamente
e de modo mais extenso neste amicus curiae os efeitos punitivos penais. A argumentação da
inconstitucionalidade da interpretação da Lei de Anistia que veda efeitos punitivos penais àqueles
que cometeram crimes durante a ditadura, passa necessariamente pelo reconhecimento de que
tais crimes são crimes contra a humanidade e, portanto, crimes imprescritíveis. O conceito de
crime contra a humanidade é uma construção de direito internacional e comparado. Neste amicus
22
curiae serão apresentados o histórico da construção do conceito de crime contra a humanidade e
seus elementos constitutivos, que comumente são apresentados de maneira equivocada e
distorcida. No fim deste tópico, apresentaremos como os crimes contra a humanidade podem ser
considerados parte do ordenamento jurídico brasileiro.
Uma possível interpretação à Lei da Anistia é a de que ela não exclui os chamados Crimes Contra
a Humanidade (CCH), crimes que se notabilizam pelo ataque amplo ou sistemático à população
civil. Práticas como a tortura, desaparecimentos forçados, políticas de assassinato, estupros e
perseguição com base em opiniões políticas, caracterizam a ocorrência desse crime internacional.
Durante o período englobado pela Lei de Anistia, já existia no Direito Internacional costumeiro
uma definição clara e precisa desses crimes, que se constituem como normas que expressam os
principais valores da comunidade internacional.
3.1. Definição de Crimes Contra a Humanidade (CCH)
A definição de CCH e os atos que o constituem constam, atualmente, no art. 7º do Estatuto do
Tribunal Penal Internacional (TPI), que é a síntese do costume internacional existente mais
especificamente desde a década de 40. Para ilustrar e esclarecer, segue transcrito o caput do
mencionado artigo e as alíneas referentes a atos que foram comprovadamente praticados no
período do Regime Militar no Brasil19 e 20.
Artigo 7.º - Crimes contra a Humanidade
1 - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por «crime contra a
Humanidade» qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de
19
Carta de São Paulo, Debate Sul-Americano sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes contra os Direitos Humanos, realizado na cidade de São Paulo, nos dias 24 e 25 de maio de 2007, organizado pelo Ministério Público Federal em São Paulo. Disponível em www.pgr.gov.br. Acessado em 20.05.2009. 20
Amnesty International. Report on allegations of Torture in Brazil. London, 1976. Arquidiocese de São Paulo. "Brasil: nunca mais". Um relato para a história. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2003 (grifos nossos).
23
um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil,
havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio; (...)
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das
normas fundamentais do direito internacional;
f) Tortura; (...)
g) Violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização
à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade
comparável;
h) Perseguição de um grupo ou colectividade que possa ser identificado, por
motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo, tal
como definido no n.º 3, ou em função de outros critérios universalmente
reconhecidos como inaceitáveis em direito internacional, relacionados com
qualquer acto referido neste número ou com qualquer crime da competência do
Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas; (...)
k) Outros actos desumanos de carácter semelhante que causem intencionalmente
grande sofrimento, ferimentos graves ou afectem a saúde mental ou física.
Em seguida, o art. 7º passa a tratar da definição de vários elementos, dentre eles «ataque contra
uma população civil», tortura, perseguição e desaparecimento forçado, que, verifica-se pelos fatos
investigados até hoje, foi exatamente o que praticou o Estado brasileiro no período militar:
"a) (...) qualquer conduta que envolva a prática múltipla de actos referidos no n.º
1 contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma
organização de praticar esses actos ou tendo em vista a prossecução dessa
política". (...)
e) Por «tortura» entende-se o acto por meio do qual uma dor ou sofrimentos
graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que
esteja sob a custódia ou o controlo do arguido (...)
24
g) Por «perseguição» entende-se a privação intencional e grave de direitos
fundamentais em violação do direito internacional por motivos relacionados com
a identidade do grupo ou da colectividade em causa; (...)
i) Por «desaparecimento forçado de pessoas» entende-se a detenção, a prisão ou
o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a
autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa em reconhecer
tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a
situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a protecção
da lei por um longo período de tempo.
Crimes contra a humanidade são, assim, crimes de massa cometidos contra uma população civil;
estes crimes incluem, além de extermínio e assassinatos, outras condutas que foram sendo
agregadas com o tempo como experiências históricas, tais como a escravidão, o apartheid, o
desaparecimento forçado, a deportação, estupros, prisões arbitrárias, perseguições e tortura.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considera que um crime de lesa humanidade é, em si
mesmo, uma grave violação dos direitos humanos, afetando à humanidade como um todo21. A
Corte compartilha o entendimento do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, o qual
definiu crimes contra a humanidade como
"(...) sérios atos de violência que causam danos a seres humanos ao golpear os
bens mais essenciais a eles: sua vida, seu bem-estar físico, sua saúde e/ou sua
dignidade. São atos desumanos que por sua extensão e gravidade vão além dos
limites toleráveis para a comunidade internacional, a qual deve necessariamente
exigir um sua punição. Não obstante, crimes contra a humanidade também
transcendem o indivíduo, pois quando o indivíduo é agredido, a humanidade é
21
Corte IDH, Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 26/09/2006, Série C, no. 154, § 105; Corte IDH, Caso La Cantuta vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 29/11/2006, Série C, no. 162, § 225.
25
atacada e negada como um todo. Por isso o que caracteriza essencialmente o
crime contra a humanidade é o conceito de humanidade como vítima"22.
O elemento material dos crimes contra a humanidade é o cometimento de um dos crimes dentro
do seu escopo em um contexto de violência ampla ou sistemática à população civil. Ou seja, para
a sua configuração não é necessária apenas a prática de alguns atos reconhecidos como crimes
contra a humanidade, mas que esta prática tenha ocorrido dentro de um episódio maior de
violência generalizada contra a população civil.
O elemento mental desse crime compreende, além do dolo de realizar os atos enumerados como
CCH, também o conhecimento de que esses atos se inserem em uma campanha maior de
violações de direitos humanos fundamentais, não sendo necessário que o autor partilhe do
objetivo por trás da campanha ampla ou sistemática, podendo agir, por exemplo, por motivos
pessoais, todavia dentro de um contexto maior de violência em massa.
No entanto, uma das modalidades de CCH requer um dolo específico, a saber, o crime de
perseguição. O crime de perseguição consiste na negação de direitos humanos fundamentais em
razão virtude de visão política, religião, etnia, nacionalidade, cultura, ou mesmo pela vítima
pertencer a um determinado gênero. Nessa figura específica de CCH requer-se não só o dolo de
cometer violações de direitos humanos fundamentais, mas também que essas violações ocorram
pelo fato de a vítima pertencer a um grupo protegido.
O bem jurídico protegido pela figura dos crimes contra a humanidade são os direitos humanos
fundamentais da população civil – protegem-se direitos fundamentais individuais, como o
direito à vida, liberdade, integridade física e dignidade. No entanto, esse tipo penal busca
assegurar regras mínimas de coexistência humana. Esse crime, portanto, embora proteja o
indivíduo, tambem afeta a comunidade internacional como um todo.
O critério da população civil como objeto do crime enfatiza a natureza coletiva dos crimes contra a
humanidade, não abrangendo ataques isolados contra individuos. A proteção à população civil é
22 ICTY - Prosecutor v. Erdemovic - Case No. IT-96-22-T, Sentencing Judgement of 29.11.1996, para. 28.
26
compreendida dentro do contexto de sua necessidade e da incapacidade dessa população de se
defender diante de um ataque do Estado ou de entidades que exerçam atribuições de Estado.
Aqui o termo utilizado é “qualquer população civil”, evidenciando a razão de ser dos CCH, qual
seja, a de proteger uma população civil de abusos de seu próprio Estado ou Estados estrangeiros.
O objetivo dessa restrição é o de deixar de lado as ações militares e seus objetivos e alvos, que são
objeto de uma regulação especial – o Direito Humanitário. Nesse sentido, a jurisprudência dos
tribunais internacionais requer que a população civil seja o objetivo primário do ataque
cometido.23 Para a caracterização desses crimes não é necessário que toda a população de uma
determinada área seja vítima, mas um número relevante de indivíduos e não apenas alguns,
selecionados aleatoriamente, a idéia de população civil já implica em si um grande grupo de
vítimas. 24
O ataque a que se refere o tipo penal dos CCH, por sua vez, requer o cometimento de múltiplos
atos listados como inumanos, embora não se requeira que o autor do crime aja em múltiplas
ocasiões, assim, por exemplo, um soldado que tortura um prisioneiro apenas uma vez, mas dentro
de um contexto onde estão ocorrendo múltiplas ofensas às liberdades fundamentais, terá a sua
conduta tipificada como crimes contra a humanidade. A multiplicidade de ofensas não se
confunde com o requisito de que esse ataque seja amplo; como será discutido abaixo, ambos os
termos medem a escala do ataque, porém a multiplicidade é um critério de escala menor que a
amplitude. Não é necessário que haja a utilização de força armada, sendo necessário no entanto o
abuso da população civil.
Outro requisito ainda controverso desse ataque é a organização e coordenação das ações, sendo
grande o debate na doutrina acerca da necessidade de um plano ou de uma política comum que
dirija, instigue ou encoraje a ocorrência desses crimes. Alguns autores afirmam inclusive que a
23
ICTY - Prosecutor v. Kunarac - Appeals Chamber judgement of 12.06.2002, para. 91. 24
WERLE, Gerhard. Principles of International Criminal Law Berlin, TMC Press, 2005, p. 224; CRYER, Robert et al. An Introduction to International Criminal Law and procedure Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 193.
27
ocorrência de CCH só pode ser verificada dentro de um contexto estatal25 ou de uma entidade que
exerça autoridade de facto sobre uma determinada localidade.26 A grande questão é que sem um
critério de plano ou organização mínima, crimes comuns ou usuais – comumente combatidos
pelos Estados, tais como a máfia, violência de gangues ou mesmo assassinatos em série – seriam
elevados ao grau de CCH, ao passo que a existência desse crime não se destina a situações
facilmente combatidas pelos Estados, mas a situações em que ou o próprio Estado está por trás
desses crimes, ou quem os comete age exercendo poderes típicos de Estado.
Durante a conferência de Roma para o estabelecimento do TPI, foi incorporada a necessidade de
um plano ou política comum, no artigo 7 (2) (a) do estatuto. Por outro lado, tribunais penais que
aplicam o direito costumeiro, como o Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia não reconhecem como
presente no direito costumeiro o requisito de um plano ou política como condição para a
existência de CCH.27 Embora não admitindo a existência em direito costumeiro desse requisito,
ainda assim os tribunais reconhecem que atos aleatórios desconexos não podem constituir um
ataque, devendo haver conexão entre os episódios e a intenção de dirigir esses atos à população
civil, o que por si só já revelaria implicitamente a existência de um grau mínimo de organização
que transcende o criminoso individual.
Todavia, esse ataque – isto é, as múltiplas ofensas – deve ser amplo ou sistemático. O critério da
amplitude é um elemento quantitativo, podendo ser derivado do número de vítimas ou da
extensão geográfica dos ataques, ambos constituindo requisitos autônomos, suficientes. Assim,
apenas um ato de violência em massa de magnitude extraordinária pode ser qualificado como
amplo, bem como vários ataques dispersos. O critério da sistematicidade, por outro lado é um
aspecto predominantemente qualitativo, e se refere à organização e estruturação dos atos de
violência: são atos reiterados, cometidos dentro de uma estrutura hierarquizada, com um
planejamento detalhado e alocação de recursos para essa finalidade.
25
SCHABAS, William A. “Crimes Against Humanity: The State Plan or Policy Element” em Essays in Honor of M. Cherif Bassiouni Haia: Martinus Nijhoff, 2009, pp. 364; BASSIOUNI, M. Cherif, Crimes Against Humanity in International Criminal Law, Haia: Kluwer Law International, 1999. 26
CASSESE, Antonio. “Crimes Against Humanity” in CASSESE, A. GAETA, P. JONES, J.R.D. The Romes Statute of the International Criminal Court: a commentary vol. I. Haia: Martinus Nijhoff, 2004, pp. 353 – 378. 27 ICTY - Prosecutor v. Kunarac - Appeals Chamber judgement of 12.06.2002, para. 98.
28
3.2. A existência da definição de Crimes Contra a Humanidade na ordem internacional durante o
período anistiado
O costume internacional é considerado uma fonte de direito internacional, ao lado dos tratados e
dos princípios gerais do direito, tal como disposto pelo art. 38 do Estatuto da CIJ (Corte
Internacional de Justiça). Apesar deste dispositivo deixar de lado outras fontes do direito
internacional reconhecidas hodiernamente pela doutrina especializada, ele traz alguns dados
relevantes para a análise que se quer propor. O primeiro deles é justamente o reconhecimento
das fontes listadas como fontes formais do direito internacional, já que são estas as fontes
utilizadas diretamente pelo juiz quando decide uma lide.28 O segundo dado relevante é a própria
definição de costume internacional como uma prática constante e reiterada no tempo com
convição de juridicidade. Assim, identifica-se no processo costumeiro de elaboração de normas
dois elementos, que devem estar presentes concomitantemente, sendo o primeiro deles material
e o segundo de caráter psicológico: (1.) a repetição de algum ou alguns atos; e (2.) a convicção de
que o cumprimento de que aquele ato ou atos é obrigatório porque assim prescreve uma norma
jurídica.
Mas talvez o mais importante é que o artigo, ao enumerar as fontes de direito internacional, não
estabelece hierarquia entre elas. Assim, no direito internacional, em princípio não há hierarquia
entre as fontes. Isso significa que não é possível supor que os tratados prevaleçam
necessariamente sobre o costume. Este raciocínio decorre, na maioria das vezes, de uma
associação incorreta que se faz com o direito interno, em que a lei, como conjunto de normas
positivadas pelo Estado, sempre prevalece sobre o costume, que é considerado
conseqüentemente uma fonte menor. Todavia, a sociedade internacional permanece
28
Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier, Alain Pellet, Direito Internacional Público, 2ª Ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 115
29
descentralizada, o que acaba por impedir qualquer primazia de uma fonte de direito internacional
sobre a outra29.
Em outras palavras, o fato de o tratado dispor ou codificar uma norma costumeira – conforme já
decidiu a Corte Internacional de Justiça, instância judiciária máxima da ONU – não invalida, ou
extingue a existência das mesmas.30 De fato, as duas normas coexistem, tantos as de direito
costumeiro, como as disciplinadas em tratado, ainda que mera codificação de direito costumeiro.
A partir da manifestação da União, contida no documento apresentado da Advocacia Geral da
União, vislumbra-se ab initio o enfrentamento com o argumento, contraposto, de que o Estatuto
do Tribunal Penal Internacional (TPI), especialmente no que se refere aos CCH, só passou a ser
aplicável ao Brasil quando da sua ratificação. No entanto, fica claro que o seu conteúdo nada mais
é do que o reflexo do costume sedimentado na comunidade internacional, o que tornaria os CCH
em pleno vigor no Brasil, ainda nas décadas de 60 e 70.
De fato, o primeiro documento importante que traz a idéia de crime contra a humanidade como
um conceito jurídico é a declaração conjunta da França, Grã-Bretanha e Rússia, de 1915.31 Essa
declaração mencionava os massacres em massa das população armênia perpetrados por turcos e
curdos em regiões do império otomano com a conivência e mesmo com o auxílio de oficiais turcos.
O documento das potências aliadas alerta para o fato de que todos os que participaram dos
29
"Não é possível admitir, como postulado geral, que os tratados prevaleçam necessariamente sobre o costume ou vice-e-versa. Seria bem diferente se, por um processo centralizado, uma das fontes dispusesse de uma primazia incontestada. O estado atual da sociedade internacional, ainda largamente descentralizada, impede tal conclusão. Todas as fontes são suscetíveis de traduzir, segundo modalidades diferentes, exigências da sociedade internacional; em especial, não há '... qualquer razão para pensar que, quando o direito internacional consuetudinário é constituído por regras idênticas às do direito convencional, é suplantado por este de tal maneira que deixa de ter existência própria' (T.I.J., acórdão de 27 de junho de 1986, Activités militaires et paramilitaires au Nicaragua et contre celui-ci, Pec. 1986, p. 95)" (Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier, Alain Pellet, Direito Internacional Público, 2ª Ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 116) 30
Veja-se a esse respeito o caso Atividades Militares e Paramilitares dentro e contra a Nicarágua (Estados Unidos da América vs. Nicarágua) em decisão preliminar publicada em 1984. 31 CRYER, op. cit, supra nota 15, p. 188.
30
massacres seriam responsabilizados pessoalmente pelos seus atos.32 Ao final da primeira-guerra,
em razão de uma série de decisões políticas e da oposição americana, decide-se pelo não
julgamento dos responsáveis por tais crimes – em especial dos turcos.
No entanto, foi apenas em 1945 que o conceito de Crimes Contra a Humanidade foi efetivamente
definido e passou a integrar os crimes sob jurisdição do Tribunal Militar Internacional de
Nurembergue (IMT), criado para o julgamento dos maiores criminosos nazistas. Em comum com o
massacre armênio de 1915 estava a idéia de que membros de um governo devem ser
responsabilizados não somente pelos atos inumanos que cometem durante a guerra contra
populações de outros países – os chamados crimes de guerra, àquela época aceitos e
reconhecidos amplamente – mas também por aqueles cometidos dentro do próprio país, contra
os seus próprios cidadãos. A inclusão dos CCH no estatuto do IMT permitiu, assim, o julgamento
dos arquitetos das atrocidades contra as populações judias e outros grupos perseguidos.
Alguns autores afirmam que àquela época, e como reflexo das condenações sobre o tratamento
absolutamente inumano das populações armênias, CCH já eram entendidos como parte do direito
costumeiro, sendo assim cristalizada a sua definição pelo estatuto do IMT.33 Outros autores
contestam, no entanto, a existência jurídica dos CCH antes da segunda-guerra, pelo fato de ser
impossível ao direito regular o impensável e, nesse caso, a extensão dos crimes de guerra para
abarcar também essa afronta aos princípios mais básicos de humanidade foi necessária. 34
A primeira tipificação clara desse crime internacional trazia alguns elementos tais como a conexão
dos crimes com o conflito armado, o ataque contra a população civil, e o fato dessa violência
ocorrer em larga escala ou em massa.35 Essa primeira tipificação enumerava um rol não exaustivo
de crimes, a saber: assassinato, extermínio, escravidão, deportação, perseguição ou outros atos
inumanos. Uma evolução a se destacar do conceito de CCH foi a dada pela Lei de Controle nº 10,
promulgada pelas 4 potências aliadas ocupantes do território alemão, e que não requeria a
32
Texto da declaração disponível em: http://www.armenian-genocide.org/Affirmation.160/current_category.7/affirmation_detail.html (último acesso em maio de 2009). 33
CASSESE, op. cit. supra nota 17. 34
BASSIOUNI, op. cit. supra nota16. 35 CRYER, op. cit. supra nota 15., p.218
31
conexão com um conflito armado para a ocorrência do crime. Foram também incluídos no rol de
atos inumanos a tortura, o estupro e aprisionamentos.
A falta de conexão com o conflito armado é ponto discutível sobre a definição de Crimes Contra a
Humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. A conexão com os conflitos armados buscava
legitimar o crime nascente ao estabelecer uma ligação com as normas já bem mais desenvolvidas
que regulavam a conduta em conflitos armados. Assim, a conexão entre os CCH e os conflitos
armados vem da Cláusula Martens presente no preâmbulo da Convenções de Haia de 1907 e
repetida ainda hoje nas Convenções de Genebra, sobre o dever das tropas de obedecerem às leis
de humanidade em casos não regulados. Em última instância, o nascimento como direito positivo
dos CCH derivam das Leis da Guerra.36
Mesmo em relação à Lei de Controle nº 10, embora não trouxesse explicitamente a vinculação
com os conflitos armados, alguns autores subentendem essa conexão, derivada do preâmbulo da
lei e do propósito dos julgamentos.37 A esse respeito, é interessante frisar que apenas os
julgamentos ocorridos na zona de ocupação britânica sob a autoridade da Lei de Controle nº 10
afirmam não ser necessária uma conexão entre abuso da população civil e o conflito armado.38
Por outro lado, os desenvolvimentos no direito costumeiro gradualmente eliminaram a conexão
entre os crimes e conflitos armados. Assim, a Convenção das Nações Unidas sobre a não
aplicabilidade de limitações estatutórias para CCH e Crimes de Guerra, de 1968, elimina de
maneira explícita essa distinção ao mencionar CCH cometidos em tempos de paz ou de guerra. Do
mesmo modo, legislações nacionais ignoraram a necessidade do nexo. É assim, por exemplo, na
legislação canadense e francesa.39
Pelos próximos quarenta anos, os procedimentos para o julgamento de Crimes Contra a
Humanidade se darão no âmbito doméstico. Com relação aos crimes cometidos durante a
36
BASSIOUNI, op. cit. supra nota 16, p. 49. 37
ZAHAR, Alexander e SLUITER, Goran International Criminal Law: a critical introduction. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 205. 38
WERLE, op. cit supra n. p.217 39 CASSESE, op. cit supra nota17, p. 358.
32
Segunda Guerra Mundial, destacam-se os julgamentos de Adolf Eichman, em 1961, pela Suprema
Corte Israelense; o de Klaus Barbie, pela Cour de Cassation Francesa, em 1985; e o de Imre Finta,
pela Suprema Corte Canadense, em 1994.
Eichman, depois de viver na Argentina até 1960, foi sequestrado por agentes da inteligência de
Israel, onde foi julgado por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Klaus Barbie foi
condenado, na França, em 1952 e em 1954 por assassinatos, incêndios dolosos, pilhagens e
sequestros arbitrários, prática de tortura e execução sumária de resistentes. No entanto, após o
seu julgamento, ele foge da França e permanece na Bolívia até 1983, quando é expulso e retorna
para a França, onde há a propositura de novas demandas contra si. Tendo a demanda sido
rejeitada pelos tribunal francês competente, coube então, ao fim, à Cour de Cassation – a mais
alta corte francesa – julgar as apelações, em 1985, o que fez com base na previsão de
imprescritibilidade dos crimes cometidos contida no Estatuto do IMT.40 Para a presente análise é
importante notar que Barbie foi julgado novamente mais de trinta anos depois das primeiras
sentenças para que fossem considerados os atos classificados como CCH pelo Estatuto do IMT e
admitidas as ações civis públicas propostas pelos representantes de suas vítimas.
Um fato interessante a se notar é o de que a legislação canadense sobre Crimes de Guerra e
Crimes Contra a Humanidade foi criada em meados da década de 80, e ainda assim utilizada para o
julgamento de criminosos nazistas, uma prova evidente de que o crime já existia em caráter
costumeiro, ainda que não escrito.41 De fato, Finta foi absolvido, não por questões ligadas ao
procedimento adotado ou ao fato de que uma lei criada em 1985 servia de base para o julgamento
de atos ocorridos em 1943, mas porque a Suprema Corte Canadense entendeu que, sendo um
crime de caráter internacional, os elementos desse crime deveriam estar situados não somente na
legislação interna mas também nos elementos presentes na definição costumeira internacional,
elementos que a promotoria não conseguiu demonstrar estarem presentes.
40
A Corte ressalta diversas vezes a obrigação de investigar feitos que produziram violações à Convenção. 41
SCHWARZ, M.J “Prssecuting Crimes Against Humanity in Canada – what must be proved “The Criminal Law Quarterly” vol 46 (1), 2002 pp. 40-88.
33
Em 1993, por recomendação da comissão de experts que avaliaram a situação humanitária e as
denúncias de crimes internacionais nas guerras balcânicas, o Conselho de Segurança da ONU
instaura o primeiro tribunal internacional desde Nurembergue para lidar com os principais crimes
internacionais. Ao Secretário-Geral coube a função de elaborar um esboço de estatuto para o
novo tribunal, que deveria aplicar apenas normas existentes à época do conflito.
Embora não houvesse tratado ou convenção multilateral escrita que disciplinasse o assunto, o
Secretário-Geral e em seguida o Conselho de Segurança entederam que os Crimes Contra a
Humanidade já eram parte consolidada do direito costumeiro internacional. Em 1995, após os
massacres em Ruanda o Conselho de Segurança decide novamente implantar um tribunal ad-hoc
para a responsabilização dos autores e participantes dos massacres. A contribuição do estatuto
desse tribunal está em clarificar a definição de Crimes Contra a Humanidade, que até então eram
definidos como ataques à civis. Passa-se a uma definição mais completa: os CCH devem ser um
ataque sistemático ou generalizado contra a população civil. Essa definição não é, em si,
inovadora, pois o caráter de abuso sistemático e em massa necessário à existência do crime já
existia desde Nurembergue.
O estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, embora ocorrido apenas em 1998, reproduz
em seu artigo 7º, com alguns acréscimos, o mesmo rol de ofensas existentes desde Nurembergue
– não como nova legislação, senão como codificação de uma norma costumeira que vinha sendo
praticada há mais de 50 anos.
Um fato sobre o status de costume internacional das disposições sobre CCH no estatuto de Roma
ocorre em 2003, com a assinatura pela Organização das Nações Unidas e o Reino do Camboja de
um acordo para estabelecer Câmaras Extraordinárias dentro da jurisdição cambojana em
cooperação com a ONU para julgar os crimes cometidos entre 1975 e 1979, durante o regime do
Khmer Vermelho. A competência material das novas câmaras, estabelecida em tratado, abrange
genocídio, crimes de guerra e Crimes Contra a Humanidade, sendo a definição desses últimos
34
remetidas ao estatuto de Roma.42 Em outras palavras, um tribunal constituído em 2003, para o
julgamento de crimes ocorridos entre 1975 e 1979, remete a um instrumento celebrado em 1998
para a definição de um dos crimes em sua jurisdição. Isso atesta o caráter costumeiro da definição
apresentada pelo Estatuto de Roma.
Na América Latina, destacam-se os julgamentos mais recentes por crimes cometidos durante os
governos militares ditatoriais que se instalaram na região entre as décadas de 60 e permaneceram
até a década de 80. No sistema interamericano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já
teve a oportunidade de manifestar-se sobre o caráter de jus cogens da proibição de algumas
condutas consideradas como crimes de lesa humanidade. Tais crimes – dentre os quais a prática
sistemática de desaparecimentos forçados43 e a tortura – implicariam dever do Estado de
investigar e sancionar os responsáveis, não cabendo considerá-los como crimes políticos ou
conexos a políticos em nenhuma circunstância, principalmente com o intuito de impedir a
persecução penal ou suprimir os efeitos de uma sentença condenatória44.
Hoje, independentemente de o Judiciário brasileiro decidir ou não pela punição aos
torturadores, o Brasil pode sofrer sanções internacionais. Autoridades brasileiras podem ser
acionadas pela Justiça da Itália, da Espanha ou da França, a exemplo do que aconteceu com o
ditador chileno Augusto Pinochet, cuja prisão foi decretada na Inglaterra, em 1998, a pedido do
juiz espanhol Baltasar Garzón.
Nesse sentido, a prática de Crimes Contra a Humanidade é reconhecidamente um crime que
qualquer Estado possui interesse e o dever de punir e, portanto, sujeita-se, juntamente com o
Genocídio, alguns crimes de guerra, a pirataria e a escravidão, ao regime da jurisdição universal.
3.3. Imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade
42
art 9 do Acordo - disponívelem: http://www.eccc.gov.kh/english/cabinet/agreement/5/Agreement_between_UN_and_RGC.pdf 43
Resolução AG/RES. 666 (XIII-O/83) da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. 44
Corte IDH, Caso La Cantuta vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 29.11.2006, Série C, no. 162, § 91;Corte IDH, Caso Goiburú e outros vs. Paraguai, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 22.09.2006, Série C, no. 153, § 84 e 131; Corte IDH, Caso La Cantuta vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 29.11.2006, Série C, no. 162, § 157. .
35
Segundo Gonzalo Aguilar Cavallo, "los crímenes internacionales han disuelto el estatuto de
limitación temporal penal, y el impedimento de persecución. En efecto, desde comienzos del siglo
XX e incluso desde antes, de manera expresa y efectiva, el Derecho Internacional, decidió poner fin
a esta vinculación entre el tiempo y la memoria, para los crímenes internacionales."45 Assim, o
princípio da imprescritibilidade dos crimes que impliquem grave violação aos Direitos Humanos foi
gradualmente construído no cenário internacional. Já em agosto de 1945 o Acordo de Londres
adotou esse princípio, e em outubro de 1946 a Declaração de Moscou sinalizava no sentido de
adotá-lo.
O Tribunal Distrital de Jerusalém, quando do julgamento de Eichman (já referido anteriormente)
desconsiderou as alegações de prescrição, pois se estava diante de crimes contra a humanidade e
de crimes de guerra. O Princípio da Imprescritibilidade desses tipos de crime foi posteriormente
incorporado ao Direito Israelita, em 1966.
A Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade,
de 26 de Novembro de 1968, corresponde a um marco para o seu reconhecimento, uma vez que
significou a positivação de entendimento já presente no costume internacional, como é possível
observar nos dois exemplos acima citados. Ademais, no caso La Cantuta v. Peru, a CIDH afirmou
que "[...] Aún cuando [el Estado] no ha[ya] ratificado dicha Convención (sobre imprescriptibilidad
de los crímenes de guerra y contra la humanidad), esta Corte considera que la imprescriptibilidad
de los crímenes de lesa humanidad surge como categoría de norma de Derecho Internacional
General (ius co-gens), que no nace con tal Convención sino que está reconocida en ella.
Consecuentemente, [el Estado] no puede dejar de cumplir esta norma imperativa".
A jurisprudência argentina reconhece o princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a
humanidade como um direito costumeiro. No caso Arancibia Clavel, mantendo posição
semelhante à manifestada no caso Simón, a Corte Suprema afirmou que tipo de crime 'es
imprescriptible, sin que corresponda declarar extinta la acción penal aun cuando haya transcurrido
el plazo previsto en (...) el Código Penal, pues tal disposición resulta desplazada por el derecho
45
Gonzalo Aguilar Cavallo. Crímenes Internacionales y la Imprescriptibilidad de la Acción Penal y Civil: Referencia al Caso Chileno. Revista Ius et Praxis - año 14 - n° 2 : 147-207, 2008.
36
internacional consuetudinario y la Convención sobre la Imprescriptibilidad de los Crímenes de
Guerra y de los Crímenes de Lesa Humanidad". A mesma posição é sustentada pela jurisprudência
chilena, especialmente da Corte de Apelações. Acrescente-se que a Corte Suprema do Chile
afirmou ser esse direito costumeiro plenamente vigente e aplicável no foro nacional:
"no obstante que la citada Convención no se encuentra incorporada a nuestro
ordenamiento jurídico como tal, en realidad aquella se limitó a afirmar la
imprescriptibilidad de tales deplorables hechos -amén de las fuentes citadas en su
Preámbulo-, lo que importa el reconocimiento de una norma ya vigente (ius cogens) en
función del derecho internacional público de origen consuetudinario, confirmando un
principio instalado por la costumbre internacional, que ya tenía vigencia al tiempo de la
realización de los sucesos, pues por su naturaleza preexiste al momento de su
positivización. Desde esta perspectiva, es posible afirmar que la costumbre internacional ya
consideraba imprescriptibles los crímenes contra la humanidad con anterioridad a la
mentada convención, y que esta también era materia común del derecho internacional".46
Dessa forma, é possível observar que, quando do cometimento dos delitos perpetrados ao longo
período militar, a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade, nos quais se encaixam, por
exemplo, a prática de tortura e de desaparecimento forçado, já era largamente reconhecida, tanto
que objeto de positivação em vários documentos internacionais.47
Atualmente, a imprescritibilidade de tais crimes encontra-se prevista em várias disposições
internacionais, entre as quais destacam-se: (i) a Declaração da Assembléia Geral da ONU, de
dezembro de 1992, na qual se aponta que desaparecimento forçado como crime contra a
humanidade e, por conta disso, imprescritível, (ii) a Convenção Interamericana sobre
Desaparecimentos Forçados, de Junho de 2004, (iii) os artigos II a V do Estatuto do Tribunal Penal
para a Ex-Iugoslávia, e (iv) o artigo 29 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
46
Caso Ricardo Aurelio Troncoso Muñoz y otros. 47
Gonzalo Aguilar Cavallo. Crímenes Internacionales y la Imprescriptibilidad de la Acción Penal y Civil: Referencia al Caso Chileno. Revista Ius et Praxis - año 14 - n° 2 : 147-207, 2008.
37
Deve-se ressaltar, ainda, a experiência da Argentina que, em várias oportunidades, decidiu pela
imprescritibilidade, considerando-a uma norma de ius cogens48.
3.4. Recepção do costume internacional e dos crimes contra a humanidade pelo ordenamento
jurídico brasileiro
A recepção do Direito Internacional pelo ordenamento jurídico brasileiro é um tema que pode ser
analisado de duas maneiras. A primeira delas refere-se basicamente ao procedimento pelo qual o
Direito Internacional é internalizado, tornando-se norma jurídica válida e eficaz no território
brasileiro, e que engloba a assinatura do tratado, a sua aprovação pelo Poder Legislativo, a sua
promulgação via decreto presidencial e, finalmente, a comunicação aos outros Estados-partes de
que os trâmites internos de incorporação foram cumpridos.
A segunda maneira – talvez a mais importante para esta exposição – está ligada ao status jurídico
que uma norma de direito internancional assume quando integrada ao ordenamento jurídico
brasileiro, ou seja, qual o seu nível hierárquico em relação a outras normas do direito nacional.
Sobre isto, a Constituição infelizmente não forneceu uma resposta clara, cabendo ao Supremo
Tribunal Federal a tarefa de fazê-lo no RE nº 80.004, quando decidiu que um tratado incorporado
ao ordenamento jurídico brasileiro tem status de lei ordinária, podendo, inclusive, ser revogado
por lei posterior.
Todavia, a situação muda quando o assunto são os tratados em matéria de direitos humanos.
Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente pelo status supralegal das normas
dos tratados em matéria de direitos humanos internalizados, tendo como fundamento o artigo 5º,
§2º da Constituição Federal. Pretende-se, a seguir, dedicar algumas linhas sobre este dispositivo
constitucional, bem como do artigo 4º CF, que estabelece que o Brasil se regerá nas suas relações
internacionais, entre outras coisas, pela prevalência dos princípios de direitos humanos. No item
48
Corte Federal de Buenos Aires, caso Massera, de setembro de 1999, Câmara Nacional de Apelação, caso Acosa, de 1999, Corte de Apelação Federal de La Plata, caso JFL Schwannberg, de agosto de 1989.
38
seguinte será abordada a aplicação do costume internacional na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal.
Pretende-se provar que, apesar da Constituição falar somente sobre incorporação de tratados, ou
de princípios de direitos humanos que decorrem de tratados, o costume internacional também é
aceito e aplicado pelas cortes nacionais independentemente de um dispositivo constitucional que
reconheça expressamente a aplicabilidade desta fonte do direito internacional e de qualquer
procedimento de recepção. Reconhecido e provado que os crimes contra a humanidade são
costumes sedimentados no âmbito internacional desde a metade do século passado, destina-se
este item a corroborar o argumento de que estas normas já incidiam no território nacional quando
os crimes, cuja anista hoje se questiona, foram cometidos.
3.4.1. Os artigos 5º §2º e 4º II da Constituição Federal de 1988
O artigo 5º §2º da Constituição de 1988, segundo o qual os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos
tratados internacionais em que o Brasil seja parte, já gerou muitas discussões por parte da
doutrina brasileira. Assim, havia aqueles que propugnavam que todos os tratados permaneciam
incorporados como lei ordinária; havia outros, como Antônio Augusto Cançado Trindade, que
afirmavam o status constitucional dos tratados incorporados com base neste dispositivo. Por fim,
havia uma posição intermediária, assumida por Sepúlveda Pertence, que defendia a
supralegalidade destes tratados.
Sabe-se que esta discussão desenvolveu-se de forma semelhante perante o Supremo Tribunal
Federal, que recentemente se posicionou a favor da tese da supralegalidade, como se vê nas
ementas dos acórdãos transcritas a seguir:
EMENTA: HABEAS CORPUS. SALVO-CONDUTO. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL.
DÍVIDA DE CARÁTER NÃO ALIMENTAR. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. O
Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a orientação de que só é possível a prisão
39
civil do "responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia" (inciso LXVII do art. 5º da CF/88). Precedentes: HCs 87.585 e 92.566, da
relatoria do ministro Marco Aurélio. 2. A norma que se extrai do inciso LXVII do artigo 5º
da Constituição Federal é de eficácia restringível. Pelo que as duas exceções nela contidas
podem ser aportadas por lei, quebrantando, assim, a força protetora da proibição, como
regra geral, da prisão civil por dívida. 3. O Pacto de San José da Costa Rica (ratificado pelo
Brasil - Decreto 678 de 6 de novembro de 1992), para valer como norma jurídica interna
do Brasil, há de ter como fundamento de validade o § 2º do artigo 5º da Magna Carta. A
se contrapor, então, a qualquer norma ordinária originariamente brasileira que preveja a
prisão civil por dívida. Noutros termos: o Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter
como fundamento de validade o § 2º do art. 5º da CF/88, prevalece como norma
supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é
norma constitucional -- à falta do rito exigido pelo § 3º do art. 5º --, mas a sua hierarquia
intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que
possibilite a prisão civil por dívida. 4. No caso, o paciente corre o risco de ver contra si
expedido mandado prisional por se encontrar na situação de infiel depositário judicial. 5.
Ordem concedida.(HC 94013, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado
em 10/02/2009, DJe-048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL-02352-02
PP-00267, grifo nosso).
DIREITO PROCESSUAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. PACTO DE
SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. ALTERAÇÃO DE ORIENTAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF.
CONCESSÃO DA ORDEM. 1. A matéria em julgamento neste habeas corpus envolve a
temática da (in)admissibilidade da prisão civil do depositário infiel no ordenamento
jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do Pacto de São José da Costa Rica no
direito nacional. 2. Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis
Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José
da Costa Rica (art. 7°, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses
diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no
ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação
40
interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos
subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele
conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. 3. Na atualidade a única
hipótese de prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art. 5°, §2°,
da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no
caput do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte. O Pacto de São José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em
matéria de direitos humanos, expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de
prisão civil do devedor de alimentos e, conseqüentemente, não admite mais a
possibilidade de prisão civil do depositário infiel. 4. Habeas corpus concedido. (HC 95967,
Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJe-227 DIVULG
27-11-2008 PUBLIC 28-11-2008 EMENT VOL-02343-02 PP-00407, grifo nosso).
EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Provimento Parcial. Prisão Civil. Depositário infiel.
Possibilidade. Alegações rejeitadas. Precedente do Pleno. Agravo regimental não provido.
O Plenário da Corte assentou que, em razão do status supralegal do Pacto de São José da
Costa Rica, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia
do depositário infiel. (RE 404276 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma,
julgado em 10/03/2009, DJe-071 DIVULG 16-04-2009 PUBLIC 17-04-2009 EMENT VOL-
02356-06 PP-01109, grifo nosso).
O que se quer demonstrar com o presente amicus curiae é que o artigo 5º, §2º da Constituição
também permite a internalização de normas de costume internacional que versam sobre
direitos humanos. Afinal, não faria sentido que a atual Constituição, ao abrir o ordenamento
jurídico pátrio às normas de direito internacional que versem sobre direitos humanos,
estabelecesse uma hierarquia de fontes de direito internacional – algo que a própria
comunidade internacional desconhece.
41
Como já se apontou, não há hierarquia entre tratado e costume internacional para o Direito
Internacional. O costume internacional, por outro lado, é a fonte mais dinâmica das duas, e que,
por este motivo, evidencia melhor as transformações pelas quais o direito internacional passa.
É importante lembrar que muitos institutos do direito internacional que estão atualmente
incorporados em tratados, como é o caso das relações diplomáticas e consulares, eram
reconhecidos pela comunidade internacional e mesmo pelos ordenamentos jurídicos nacionais
quando sua única fonte era o costume internacional. O mesmo aconteceu com os crimes contra a
humanidade, que eram normas jurídicas vigentes e aplicáveis muito antes da sua previsão no
estatuto do Tribunal Penal Internacional.
É fato que o costume exprime algumas vezes normas em formação ou em transformação, mas isso
não significa que estas não incidam no decorrer deste processo. O caso dos crimes contra a
humanidade, como já visto no tópico sobre o seu histórico na última metade do século XX,
confirma esta afirmação.
Caso o Brasil se feche ao costume internacional, principalmente àquele costume internacional
sobre direitos humanos – considerando, para tanto, apenas a redação do artigo 5º §2º (que não
menciona explicitamente esta fonte do direito internacional –, estará contrariando o próprio
sentido da Constituição, que opta, explicitamente, por não excluir outros direitos e garantias não
elencados nos incisos do artigo 5º, e que prescreve que o Brasil se regerá nas suas relações
internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos.
Pergunta-se: como o Brasil poderá se reger por este princípio, se permanece fechado a normas
jurídicas que versam sobre direitos humanos?
Sobre o artigo 4º II, que determina a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais
do Estado brasileiro, especificamente, é importante afastar aquele posicionamento que o
considera mera exortação, sem normatividade. Ao contrário, mais sentido faria reconhecer nos
incisos deste artigo objetivos aos quais o Estado Brasileiro se direciona, assegurando-lhe os meios
para tanto. É importante ressaltar ainda que a caracterização deste artigo como uma norma
42
programática, sem vinculabilidade e aplicabilidade, também não procede, pois as normas
programáticas – caso se trate mesmo de uma norma programática –, apesar de terem uma
estrutura própria, não são desprovidas de juridicidade, vinculabilidade e aplicabilidade.49
Do exposto, conclui-se que há na atual Constituição dois dispositivos que indicam a abertura do
ordenamento jurídico pátrio ao costume internacional, embora isso não seja feito de forma
explícita, ou seja, embora a Constituição não fale especificamente sobre direito consuetudinário. A
seguir, será demonstrado que o Supremo Tribunal Federal, embora não siga ou não explicite o
raciocínio acima exposto, aplica o costume internacional em algumas das suas decisões, o que
corrobora o entendimento de que os costumes internacionais têm aplicabilidade no território
brasileiro, independentemente de um processo de internalização ou de uma autorização
constitucional expressa.
3.4.2. A aplicação do costume internacional na jurisprudência do STF
No Brasil, o costume internacional foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal já há algumas
décadas, quando este julgou sobre a imunidade de jurisdição das embaixadas da Alemanha,
embora seja este reconhecimento tímido, acompanhado da aplicação da Convenção de Viena
sobre Relações Diplomáticas, como se pode depreender das ementas do acórdãos a seguir:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO: EXECUÇÃO FISCAL PROMOVIDA
PELA UNIÃO CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. Convenções de Viena de 1961 e 1963. I.-
Litígio entre o Estado brasileiro e Estado estrangeiro: observância da imunidade de
jurisdição, tendo em consideração as Convenções de Viena de 1961 e 1963. II.-
Precedentes do Supremo Tribunal Federal: ACO 522-AgR/SP e 634-AgR/SP, Ministro Ilmar
Galvão, Plenário, 16.9.98 e 25.9.2002, "D.J." de 23.10.98 e 31.10.2002; ACO 527-AgR/SP,
Ministro Nelson Jobim, Plenário, 30.9.98, "D.J." de 10.12.99; ACO 645/SP, Ministro Gilmar
49
RAMOS, André de Carvalho, A integração regional e a Constituição: vinte anos depois, Brasília, ano 45, n. 179 jul/set 2008, p. 5.
43
Mendes, "D.J." de 17.3.2003. III.- Agravo não provido.(ACO 524 AgR, Relator(a): Min.
CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 26/03/2003, DJ 09-05-2003 PP-00044
EMENT VOL-02109-01 PP-00112, grifo nosso).
APELAÇÃO CÍVEL CONTRA DECISÃO PROLATADA EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA.
IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO. ESTA CORTE TEM ENTENDIDO
QUE O PRÓPRIO ESTADO ESTRANGEIRO GOZA DE IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO, NÃO SÓ
EM DECORRÊNCIA DOS COSTUMES INTERNACIONAIS, MAS TAMBÉM PELA APLICAÇÃO A
ELE DA CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE RELAÇÕES DIPLOMATICAS, DE 1961, NOS TERMOS
QUE DIZEM RESPEITO A IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO ATRIBUIDA A SEUS AGENTES
DIPLOMATICOS. PARA AFASTAR-SE A IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO RELATIVA A AÇÃO OU A
EXECUÇÃO (ENTENDIDA ESTA EM SENTIDO AMPLO), E NECESSARIO RENUNCIA EXPRESSA
POR PARTE DO ESTADO ESTRANGEIRO. NÃO OCORRENCIA, NO CASO, DESSA RENUNCIA.
APELAÇÃO CÍVEL QUE NÃO SE CONHECE EM VIRTUDE DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. (ACi
9705, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 09/09/1987, DJ 23-
10-1987 PP-23154 EMENT VOL-01479-01 PP-00117, grifo nosso).
Percebe-se que, apesar de citar a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas – que nada
mais é do que uma codificação de um costume internacional sobre este tema –, o segundo
acórdão não deixa de citar o costume internacional como fonte do Direito Internacional, da qual
também se extrai a imunidade de jurisdição dos agentes diplomáticos.
A aceitação do costume internacional pelo Supremo Tribunal Federal mostra-se mais patente,
todavia, em casos sobre extradição. Para ilustrar esta afirmação, será utilizada a Ext 633/ch -
República Popular da China, cuja ementa se transcreve parcialmente:
EMENTA: EXTRADIÇÃO - REPÚBLICA POPULAR DA CHINA - CRIME DE ESTELIONATO
PUNÍVEL COM A PENA DE MORTE - TIPIFICAÇÃO PENAL PRECÁRIA E INSUFICIENTE QUE
INVIABILIZA O EXAME DO REQUISITO CONCERNENTE À DUPLA INCRIMINAÇÃO - PEDIDO
INDEFERIDO. PROCESSO EXTRADICIONAL E FUNÇÃO DE GARANTIA DO TIPO PENAL. - O ato
de tipificação penal impõe ao Estado o dever de identificar, com clareza e precisão, os
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elementos definidores da conduta delituosa. As normas de incriminação que desatendem
a essa exigência de objetividade - além de descumprirem a função de garantia que é
inerente ao tipo penal - qualificam-se como expressão de um discurso normativo
absolutamente incompatível com a essência mesma dos princípios que estruturam o
sistema penal no contexto dos regimes democráticos. O reconhecimento da possibilidade
de instituição de estruturas típicas flexíveis não confere ao Estado o poder de construir
figuras penais com utilização, pelo legislador, de expressões ambíguas, vagas, imprecisas e
indefinidas. É que o regime de indeterminação do tipo penal implica, em última análise, a
própria subversão do postulado constitucional da reserva de lei, daí resultando, como
efeito conseqüencial imediato, o gravíssimo comprometimento do sistema das liberdades
públicas. A cláusula de tipificação penal, cujo conteúdo descritivo se revela precário e
insuficiente, não permite que se observe o princípio da dupla incriminação, inviabilizando,
em conseqüência, o acolhimento do pedido extradicional. EXTRADIÇÃO E RESPEITO AOS
DIREITOS HUMANOS. - A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal
aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro - e, em particular, o Supremo
Tribunal Federal - de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro
que venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de
qualquer Estado estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de
extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a
essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a
titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua
insuperável importância, a garantia do due process of law. Em tema de direito
extradicional, o Supremo Tribunal Federal não pode e nem deve revelar indiferença
diante de transgressões ao regime das garantias processuais fundamentais. É que o
Estado brasileiro - que deve obediência irrestrita à própria Constituição que lhe rege a
vida institucional - assumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o gravíssimo
dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4º, II). EXTRADIÇÃO E
DUE PROCESS OF LAW. O extraditando assume, no processo extradicional, a condição
indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a
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quem foi dirigido o pedido de extradição. A possibilidade de ocorrer a privação, em juízo
penal, do due process of law, nos múltiplos contornos em que se desenvolve esse
princípio assegurador dos direitos e da própria liberdade do acusado - garantia de ampla
defesa, garantia do contraditório, igualdade entre as partes perante o juiz natural e
garantia de imparcialidade do magistrado processante - impede o válido deferimento do
pedido extradicional (RTJ 134/56-58, Rel. Min. CELSO DE MELLO). O Supremo Tribunal
Federal não deve deferir o pedido de extradição, se o ordenamento jurídico do Estado
requerente não se revelar capaz de assegurar, aos réus, em juízo criminal, a garantia plena
de um julgamento imparcial, justo, regular e independente. A incapacidade de o Estado
requerente assegurar ao extraditando o direito ao fair trial atua como causa impeditiva do
deferimento do pedido de extradição. EXTRADIÇÃO, PENA DE MORTE E COMPROMISSO
DE COMUTAÇÃO. - (...) NOTA DIPLOMÁTICA E PRESUNÇÃO DE VERACIDADE (...)
Precedente.(Ext 633, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em
28/08/1996, DJ 06-04-2001 PP-00067 EMENT VOL-02026-01 PP-00088, grifo nosso).
Da parte grifada da ementa se retira a influência do costume internacional na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, que se manifesta na exigência do cumprimento de mais um requisito
para a extradição passiva, qual seja, o respeito aos direitos humanos por parte do país que a
requer.
Sabe-se que a extradição é ato de cooperação interjurisdicional em matéria penal e que visa a
entrega de uma pessoa (o "extraditando") pelo país no qual se encontra a um outro país, no qual
há contra este indivíduo ou uma sentença final que comine pena privativa de liberdade ou um
mandado de prisão expedido por autoridade competente. Trata-se de matéria regulada pelos
artigos 76 e seguintes da Lei 6.815/1980 que estabelece, entre outras coisas, a exigência de um
tratado específico entre os Estados-partes ou promessa de reciprocidade, a dupla tipicidade e a
exigência de comutação de pena corporal ou de morte em pena privativa de liberdade. Não há
nestes dispositivos menção ao respeito aos direitos humanos. Mesmo o artigo 77 VIII, que fala
sobre a impossibilidade de extradição no caso de julgamento do extraditando por Tribunal ou
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Juízo de exceção, embora seja de alguma forma relacionado à temática dos direitos humanos, não
é com este coextensivo.
Assim, inexistindo qualquer norma positivada no ordenamento jurídico brasileiro com este teor, é
forçoso admitir que o Supremo Tribunal Federal julgou neste caso com base em norma jurídica
emanada única e exclusivamente do costume internacional.
Conclui-se que o costume internacional incide no território brasileiro independetemente de norma
jurídica expressa neste sentido, entendimento este que é corroborado por decisões do Supremo
Tribunal Federal comentadas acima.
4. Considerações finais
Ante todo o exposto, deve-se reconhecer que a anistia no Brasil foi, em virtude da interpretação
dada à Lei 6.683/79, um processo incompleto – e, sobretudo, que essa incompletude constitui
fator restritivo de direitos até os dias de hoje.
Da forma como concebida, a anistia “ampla, geral e irrestrita” na prática serviu para impedir uma
série de respostas constitucionais do Estado brasileiro a expectativas sociais de tratamento dos
crimes cometidos no período da ditadura, retirando qualquer possibilidade de se discutir
abertamente, num contexto de “redemocratização”, as condutas havidas no período
compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Criou-se um tabu jurídico,
então, que formalmente justificou o término precoce de todo debate disposto a entender o que
ocorreu então.
O Judiciário, que teria papel fundamental de comunicação nesse processo perante a sociedade
civil – à medida que, garantindo sua regularidade ritual e os direitos das partes envolvidas,
representaria o Estado agindo em prol da verdade, da transparência –, teve a capacidade de
processamento trancada logo de partida.
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A norma erigida do texto legal que entende anistiados os crimes comuns praticados no lapso
temporal indicado é inconstitucional porquanto viola diretamente direitos fundamentais como a
proteção à vida (art. 5º, caput), ao devido processo legal (art. art. 5º, LIV), acesso à informação e
direito à verdade (art. 5º, XIV ) e à dignidade humana (art. 1º, III) – cujo conceito, embora fluido,
certamente esbarra na prática de tortura como maior agressão à humanidade – e outros, por
conseqüência.
Estes direitos fundamentais, em sua dimensão objetiva, pedem do Estado uma vigilância
incessante para sua proteção – por vezes através de omissões, e por tantas outras mediante
prestações. Uma interpretação que mantém a Lei da Anistia como albergue de crimes contra a
humanidade, como os perpetrados à época do período ditatorial militar, gera norma que contraria
o “dever de tutela” (Schutzpflicht) a direitos fundamentais imposto ao Estado – falhando na
proteção suficiente que é dele esperada.
Este Supremo Tribunal Federal tem admitido reiteradamente a existência, no ordenamento pátrio,
do que ficou conhecido como “proibição de proteção insuficiente”50.
Trata-se do reconhecimento de que o legislador pode, por vezes, não conferir a proteção que se
espera a determinados direitos, violando, com isso, a proporcionalidade não como “proibição de
excesso” (Übermaßverbot), mas como “proibição de insuficiência” (Untermaßverbot)51.
A proibição de insuficiência funciona, assim, como parâmetro aferidor da proporcionalidade das
omissões do Estado. O voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 3510 transcreve decisão do Tribunal
Constitucional alemão emblemática neste sentido:
“O Estado, para cumprir com seu dever de proteção, deve empregar medidas suficientes
de caráter normativo e material, que levem a alcançar – atendendo à contraposição de
bens jurídicos – a uma proteção adequada, e como tal, efetiva (proibição de insuficiência).
(…) É tarefa do legislador determinar, detalhadamente, o tipo e a extensão da proteção.
50
Entre outras, nas decisões da ADI 3510, ADI 1800, ADI 3112 e RE 418.376-5 (MS). 51 Cf. Voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 3510 (“Lei de Biossegurança”), p. 12.
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A Constituição fixa a proteção como meta, não detalhando, porém, sua configuração. No
entanto, o legislador deve observar a proibição de insuficiência (…). Considerando-se bens
jurídicos contrapostos, necessária se faz uma proteção adequada. Decisivo é que a
proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser
suficientes para uma proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em
cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis.(…)”52
Uma vez que o legislador não definiu a contento a extensão dos tais “crimes conexos aos crimes
políticos”, não excluindo expressamente de seu âmbito normativo os crimes comuns como
tortura, seqüestro e atentado pessoal – o que abriu margem indevida à interpretação até aqui
prevalecente –, cabe ao Poder Judiciário, na figura de seu órgão de cúpula, imprimir interpretação
conforme à constituição53 para cumprir com o dever de tutela inerente àquela “ordem objetiva de
valores” e afastar, de vez por todas, a proteção deficiente dada pela Estado às vítimas da ditadura
e à sociedade em geral.
Com isso, o Estado atende às demandas de proteção impostas pelos direitos fundamentais e
confirma seu comprometimento com o Direito Internacional.
Por fim, neste amicus curiae, buscou-se destacar que os efeitos da “Lei de Anistia” ultrapassam o
da responsabilização e punição penal daqueles que cometeram crimes no período da ditadura,
aspecto mais destacado no debate público e jurídico sobre a lei. É preciso atentar para os efeitos
civis punitivos ou declaratórios de responsabilidade que a interpretação “ampla, geral e irrestrita”
da lei abrange, bem como seus efeitos sobre o direito à verdade e ao acesso à informação.
52
Cf. ADI 3510, grifos nossos. Decisão original: BVerfGE 88, 203, 1993. 53
Para caso clássico de interpretação conforme – sua função e alcance –, cf. decisão da Suprema Corte do Estado da Flórida >> Boyton vs. State <<, So. 2D 536, 546 (1953), em que se lê: “se a lei é razoavelmente suscetível de duas interpretações, sendo que, segundo uma delas, a lei seria considerada inconstitucional e, segundo a outra, válida, o dever da Corte é adotar aquela construção que salve a lei da inconstitucionalidade”.