T01 Renascimento e Barroco - Bruno Zevi

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RENASCIMENTO Trechos extraídos de: ZEVI, Bruno. Saber Ver a Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 95-113. (Escrito em 1948) AS LEIS E AS MEDIDAS DO ESPAÇO DO SÉCULO XV “No decorrer do século XV descobre-se a América, descobre-se a perspectiva, inventa-se a imprensa, no entanto, fica por descobrir a arquitetura da Renascença, cujas origens remontam aos séculos XI e XII, e cuja presença se mantém em toda a Idade Média. Não apenas documentos como o pórtico de Civita Castellana, a Igreja dos Santos Apóstolos e o San Miniato em Florença testemunham o nascimento da cultura renascentista antes do século XV, mas o próprio sentido da arquitetura dos séculos XIII e XIV, na Itália, é uma premissa da atitude humanística.” San Miniato al Monte, Florença (ITA), c.séc XII. “A Renascença foi, durante longo tempo, objeto de dois preconceitos antitéticos: o primeiro queria apresentá-la como uma novidade absoluta em relação ao período precedente e era,por isso, incapaz de lhe conferir uma historicidade: o segundo queria reduzi-la a um neo-, um retorno da arquitetura romana, retirando-lhe todos os predicados de vitalidade criadora. Para corrigir esses preconceitos populares, a crítica contemporânea precisou agir em dois sentidos, reinvindicando a originalidade da Renascença e sua posição perfeitamente inserida na continuidade histórica da cultura.” “Busca-se uma ordem, uma lei, uma disciplina contra a incomensurabilidade, a infinitude e a dispersão do espaço gótico e a casualidade do românico. San Lorenzo e Santo Spirito são duas igrejas que não se distinguiriam muito da espacialidade de algumas igrejas românicas, a não ser pelo fato de, à parte todas as razões construtivas, todas as correlações entre arcadas e abóbadas, existir nelas uma métrica espacial baseada em relações matemáticas elementares. Tudo o que é designado pelo nome de intelectualismo e humanismo do século XV, em termos esapciais, significa isso: quando se entra nas igrejas de San Lorenzo e do Santo Spirito, mede-se, em poucos segundos de observação, todo o espaço, e possui-se facilmente sua lei.” San Lorenzo, Philippo Brunelleschi, Florença (ITA), c. 1459 / Santo Spirito, Philippo Brunelleschi, Florença (ITA), c. 1436

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RENASCIMENTO

Trechos extraídos de: ZEVI, Bruno. Saber Ver a Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 95-113. (Escrito em 1948)

AS LEIS E AS MEDIDAS DO ESPAÇO DO SÉCULO XV

“No decorrer do século XV descobre-se a América, descobre-se a perspectiva, inventa-se a imprensa, no entanto, fica por descobrir a arquitetura da Renascença, cujas origens remontam aos séculos XI e XII, e cuja presença se mantém em toda a Idade Média. Não apenas documentos como o pórtico de Civita Castellana, a Igreja dos Santos Apóstolos e o San Miniato em Florença testemunham o nascimento da cultura renascentista antes do século XV, mas o próprio sentido da arquitetura dos séculos XIII e XIV, na Itália, é uma premissa da atitude humanística.”

San Miniato al Monte, Florença (ITA), c.séc XII.

“A Renascença foi, durante longo tempo, objeto de dois preconceitos antitéticos: o primeiro queria apresentá-la como uma novidade absoluta em relação ao período precedente e era,por isso, incapaz de lhe conferir uma historicidade: o segundo queria reduzi-la a um neo-, um retorno da arquitetura romana, retirando-lhe todos os predicados de vitalidade criadora. Para corrigir esses preconceitos populares, a crítica contemporânea precisou agir em dois sentidos, reinvindicando a originalidade da Renascença e sua posição perfeitamente inserida na continuidade histórica da cultura.”

“Busca-se uma ordem, uma lei, uma disciplina contra a incomensurabilidade, a infinitude e a dispersão do espaço gótico e a casualidade do românico. San Lorenzo e Santo Spirito são duas igrejas que não se distinguiriam muito da espacialidade de algumas igrejas românicas, a não ser pelo fato de, à parte todas as razões construtivas, todas as correlações entre arcadas e abóbadas, existir nelas uma métrica espacial baseada em relações matemáticas elementares. Tudo o que é designado pelo nome de intelectualismo e humanismo do século XV, em termos esapciais, significa isso: quando se entra nas igrejas de San Lorenzo e do Santo Spirito, mede-se, em poucos segundos de observação, todo o espaço, e possui-se facilmente sua lei.”

San Lorenzo, Philippo Brunelleschi, Florença (ITA), c. 1459 / Santo Spirito, Philippo Brunelleschi, Florença (ITA), c. 1436

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“... até agora o espaço do edifício havia determinado o tempo da caminhada do homem, conduzindo sua vista ao longo das diretrizes desejadas pelo arquiteto; com Brunelleschi, pela primeira vez, já não é o edifício que possui o homem, mas este que, aprendendo a lei simples do espaço, possui o segredo do edifício.”

“...percorremos San Lorenzo com a consciência precisa de estar em nossa casa, numa casa construída por um

arquiteto não exaltado em arrebatamentos religiosos, mas que raciocina segundo métodos e processos

humanos que não ocultam mistérios, antes estão presentes com calma e precisão de evidência universal.”

“Todo esforço da Renascença consiste em acentuar o controle intelectual do homem sobre o espaço

arquitetônico.”

Nos séculos XV e XVI abundam e são preferidos os edifícios da planta central, desde o San Sebastiano, de

Mântua, até os projetos de Bramante e Miguel Ângelo para São Pedro: nos esquemas em cruz latina, o braço

longo encurta-se; quando possível, passa-se para a cruz grega onde os braços se equilibram onde não se

chega a um centro, mas se parte do centro sob a cúpula e dali se separam as naves.”

Plantas para Sâo Pedro: Bramante, 1506 / Rafael, 1546 / Michelangelo 1547 / Michelangelo com extensão de Maderna

“Um único percurso, uma única idéia, uma única lei, uma única unidade de medida: esta é a vontade,

humana e humanística, clássica e nunca classicista, da arquitetura renascentista.”

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VOLUMETRIA E PLÁSTICA DO SÉCULO XVI

“...o século XVI... desenvolve a aspiração cêntrica do século XV, a visão do espaço absoluto, facilmente

perceptível de todos os ângulos visuais, exprimindo-se em equilíbrios eurrítmicos de proporção.”

“O Tempietto, de Bramante, o San Pietro in Montorio, em Roma, que inaugura o século XVI, constitui até

certo ponto, a declaração de seus princípios: absoluta afirmação central, valorização máxima das relações

dimensionais entre as partes do edifício, isto é, do elemento proporcional, e sólida plasticidade.”

“O caráter da arquitetura do século XVI concretiza-se, por isso, não tanto numa renovação das concepções

espaciais, como num novo sentido da volumetria, do equilíbrio estático e formal das massas dentro das quais

adquire novo significado a dialética espacial do século XV, reforçada e solidificada por um gosto que prefere

a uma linha e a um plano cromático, um todo sem quebras e uma solidez consistente e, muitas vezes,

monumental

O Palazzo Strozzi racionaliza, mas não revoluciona a iconografia medieval. “.... no tema do palácio, ...mostra

seu volume unitário, acentua sua gravidade maciça ou com a predominância dos cheios sobre os vazios,

como no Palazzo Farnese, ou com as ordens sobrepostas, como no Palazzo Ruccellai.”

Palazzo Strozzi, Florença, at. Benedetto da Maiano (c. 1538) / Palazzo Farnese, Roma,

Antonio da Sangallo e Michelangelo (c. 1530-50) / Palazzo Ruccelai, Florença, Alberti (1446)

“Com o desaparecimento das diretrizes lineares, triunfam o volume e a plástica.”

“...a aspiração à simetria, o ideal central da rotunda, o gosto por uma matéria carnosa nunca se separam dessa clareza espacial e

dessa cultura de leis métricas que o princípio do século XV havia aprofundado.”

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BARROCO

Trechos extraídos de: ZEVI, Bruno. Saber Ver a Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 113-118. (Escrito em 1948) O MOVIMENTO E A INTERPENETRAÇÃO NO ESPAÇO BARROCO

“O barroco é libertação espacial, é libertação mental das regras dos tratadistas, das convenções, da geometria elementar e da estaticidade, é a libertação da simetria e da antítese entre espaços interior e interior.”

“Por esta sua vontade de libertação, o barroco assume um significado psicológico que transcende o da arquitetura dos séculos XVII e XVIII, para significar um estado de espírito de liberdade, uma atitude criativa liberta de preconceitos intelectuais e formais.”

“Ainda hoje, entender a arquitetura barroca não significa apenas libertar-se “do conformismo classicista, aceitar a ousadia, a coragem, a fantasia, a mutabilidade, a intolerância dos cânones formalistas, a multiplicidade de efeitos cenográficos, a assimetria, o acordo orquestral de arquitetura, escultura, pintura, jardinagem, jogos de água, para criar uma expressão artística unitária – significa isso sem dúvida, ou seja, aceitar o gosto mas principalmente entender o espaço.”

“...o dinamismo barroco segue toda a experiência plástica e volumétrica do século XVI; recusa seus ideais mas não seus instrumentos.”

“O movimento barroco não é conquista espacial, é um conquistar espacial na medida em que representa espaço, volumetria e elementos decorativos em ação.”

“...o movimento implica a negação absoluta de todas as nítidas e rítmicas divisões dos vazios em elementos geométricos, e a interpenetração horizontal ou vertical de formas complexas.”

“Uma olhada na planta de San Carlino é suficiente para dizermos que forma tem: há um meio-oval ao lado da entrada, outro no vão absidal; depois, fragmentos de outros ovais nas capelas da direita e da esquerda. Esses quatro setores de figuras geométricas encontram-se, penetram uns nos outros numa composição planimétrica que já nada tem da nítida divisão ou da métrica eurrítmica da Renascença.”

San Carlino alle Quattro Fontane, Roma, Borromini (1633-1667)