TCC WillianWelbert 2013 Ok Final

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 UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA CURSO SUPERIOR DE GRADUAÇÃO BACHARELADO EM DESIGN Willian Welbert da Silva Pulp F i c t i o n: Um diálogo entre o uso de referências no design e no cinema Sorocaba/SP 2013

Transcript of TCC WillianWelbert 2013 Ok Final

  • UNIVERSIDADE DE SOROCABA

    PR-REITORIA ACADMICA

    CURSO SUPERIOR DE GRADUAO BACHARELADO EM DESIGN

    Willian Welbert da Silva

    Pulp Fiction: Um dilogo entre o uso de referncias no design e no cinema

    Sorocaba/SP

    2013

  • Willian Welbert da Silva

    Pulp Fiction: Um paralelo entre o uso de referncias no design e no cinema

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado

    como exigncia parcial para obteno do

    Diploma de Graduao em Bacharelado de

    Design, da Universidade de Sorocaba.

    Orientadora: Prof. Dr. Josefina Tranquilin

    Silva

    Sorocaba/SP

    2013

  • Willian Welbert da Silva

    Pulp Fiction: Um paralelo entre o uso de referncias no design e no cinema

    Trabalho de Concluso de Curso aprovado como

    requisito parcial para obteno do Diploma de

    Graduao em Design da Universidade de Sorocaba.

    Aprovado em:

    BANCA EXAMINADORA:

    Ass.:_____________________

    Ass._____________________

    Ass. _____________________

  • AGRADECIMENTOS

    Em um diner (a palavra em portugus lanchonete jamais chegou perto do mesmo

    conceito) ao melhor estilo dos anos 1950 conversvamos eu e Quentin Tarantino. Ele me dizia

    todos os motivos pelos quais os americanos deveriam parar de dar gorjetas e, feito os brasileiros,

    s fazer um joia com uma das mos. E eu, j absolutamente convencido de que um joinha

    bastaria, pedia por dicas para escrever este agradecimento. Em vo, pois logo dois assaltantes

    entraram em ao, 88 nazistas foram mortos por uma mulher loira de amarelo com uma espada

    de samurai, um homem de terno saiu correndo com uma maleta repleta de diamantes roubados

    e eu soube que este sonho agora me pertencia. Acordei, feliz, pois at meu inconsciente j estava

    satisfeito com esta pesquisa. E eu, sinceramente, espero que voc goste de l-la tanto quanto eu

    gostei de escrev-la.

    Expresso minha gratido a todos que me ajudaram nesse sonho megalomanaco; Dr.

    Fina Tranquilin, sem suas orientaes, apoio e empolgao eu no teria progredido. Dedico este

    sucesso a Zenilda Moreira e Helio da Silva, sem essas duas pessoas, meus pais, eu no seria

    nada. E por fim, um muito obrigado especial aos amigos que revisaram este material Dr.

    Raymundo Pedreira Neto e Rodrigo Modena Carvalho.

    Agradeo tambm, institucionalmente Universidade de Sorocaba e ao Programa

    Universidade para Todos (PROUNI); sem essas duas variveis, a realizao deste no me seria

    possvel.

    Muito Obrigado.

  • The path of the righteous man is beset on all sides by

    the inequities of the selfish and the tyranny of evil

    men. Blessed is he who, in the name of charity and

    good will, shepherds the weak through the valley of

    darkness, for he is truly his brother's keeper and the

    finder of lost children. And I will strike down upon

    thee with great vengeance and furious anger those

    who attempt to poison and destroy my brothers. And

    you will know my name is the Lord when I lay my

    vengeance upon you.

    (Ezekiel 25:17)

  • RESUMO

    Esta uma pesquisa que discute a relao entre belas artes e artes aplicadas. Tem como

    objetivo principal investigar pontes de contato entre essas reas, com nfase especial no uso de

    referncias. Para atingir tal premissa utiliza-se como objeto de anlise o filme Pulp Fiction, de

    Quentin Tarantino. O estudo, realizado atravs de pesquisa bibliogrfica, toma por base alguns

    pensadores que teorizam a relao entre design e a arte como: Donis A. Dondis e Mnica Moura

    e outros que discutem o moderno e o ps-moderno Perry Anderson, David Harvey, Roland

    Barthes pois na ps-modernidade que encontra-se o principal caminho para o uso de

    referncias em suas variadas formas. So as referncias utilizadas por Tarantino e por designers

    os componentes que constroem a relao entre design e arte, entre cinema e espectador.

    Portanto, o fenmeno referencial de Tarantino, principalmente em Pulp Fiction, materializa a

    conflituosa relao entre design e arte, aqui colocada.

    Palavras-chave: Design. Arte. Cinema. Ps-modernidade. Intertextualidade/Referncias.

  • ABSTRACT

    This is a research that discuss the relation between fine arts and design. It has as its

    main objective to investigate bridges of contact among these areas, with special emphasis on

    the use of references. To achieve such premise elects as its object of analysis the movie Pulp

    Fiction, from Quentin Tarantino. The inquiry, realized from bibliographic research, takes as

    main points some thinkers who theorize the relationship between design and art such as: Donis

    A. Dondis and Mnica Moura and others who discuss the modern and postmodern Perry

    Anderson, David Harvey, Roland Barthes because it is in the postmodernity that is easier to

    find the major way for the use of references in its various forms. The references used by

    Tarantino and by designers are the componentes that build the relation between design and art,

    between movies and audience. Therefore, the referencial phenomenon of Tarantino, mainly in

    Pulp Fiction, materializes the conflituous relationship between design and art, placed here.

    Palavras-chave: Design. Art. Cinema. Postmodernism. Intertextuality/references

  • Lista de Figuras

    Figura 1: Os diretores em seus filmes. ..................................................................................... 13

    Figura 2: Os primeiros filmes roteirizados por Tarantino........................................................ 16

    Figura 3: capa de uma edio da revista pulp Black Mask ...................................................... 18

    Figura 4: Definio de pulp na abertura de Pulp fiction .......................................................... 19

    Figura 5: O design editorial/artstico de David Carson ............................................................ 27

    Figura 6: Quadro de Willam Morris, representante do Arts and Crafts ................................... 28

    Figura 7: Cadeira de William Morris ....................................................................................... 29

    Figura 8: Cadeira Favela Irmos Campana ........................................................................... 30

    Figura 9: Warhol descarta a originalidade na arte ................................................................... 35

    Figura 10: The Big Duck ......................................................................................................... 38

    Figura 11: Question Everything // why? (Questione tudo // Por que?) .................................... 42

    Figura 12: A presena do narrador como testemunha da cena ................................................ 53

    Figura 13: referncias visuais. ................................................................................................. 77

    Figura 14: Interveno grfica/animao em Pulp Fiction. ..................................................... 78

    Figura 15: As paredes e cartazes do Jackrabbit Slims. ........................................................... 79

    Figura 16: Steve Buscemi em Pulp Fiction. ............................................................................. 79

    Figura 17: Batman versus Travolta. ......................................................................................... 80

    Figura 18: A cena dos lbios. ................................................................................................... 81

    Figura 19: Os flagrantes no sinal vermelho ............................................................................. 81

    Figura 20: Apropriaes no Design ......................................................................................... 82

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................... 9

    1. CONTEXTO TARANTINO ................................................................................................ 11

    1.1 Bad Motherfucker .............................................................................................................. 11

    1.2 Breve histria de Pulp Fiction ........................................................................................... 16

    2. DESIGN E ARTE: ELOS .................................................................................................... 23

    2.1 O design e o cinema: encontros ......................................................................................... 23

    2.2 Moderno e ps-moderno: narrativas .................................................................................. 49

    3. O USO DA REFERNCIA NO CONTEXTO PS-MODERNO ...................................... 63

    3.1 O fenmeno da referncia no ps-moderno ....................................................................... 63

    3.2 As referncias em Pulp Fiction .......................................................................................... 76

    4. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 85

    REFERNCIAS ....................................................................................................................... 86

  • 9

    INTRODUO

    Este projeto nasceu da paixo pelo design, e mais do que isso, da paixo pelas

    referncias1. E quando se trata do uso de referncias o enciclopdico Quentin Tarantino e seu

    Pulp Fiction servem de exemplo para muitas reas criativas, inclusive para o design.

    O tema geral desta monografia o uso das referncias na construo de uma nova obra,

    que pode ser considerada como o corao do ps-modernismo, e a anlise das narrativas

    moderna e ps-moderna focadas no design e no cinema. Seu objeto o filme Pulp Fiction, do

    diretor Quentin Tarantino, uma obra repleta de mltiplas e constantes referncias e que far 20

    anos de lanamento no ano de 2014. Tem como objetivo defender a aproximao entre os

    campos do design e do cinema, abordando o fenmeno da referncia tanto na produo

    cinematogrfica quanto na do design.

    A partir disso surgem algumas perguntas como: existe diferena prtica entre designers

    e artistas, incluindo cineastas, no que tange ao uso de referncias? Qual o papel da referncia

    no processo criativo contemporneo? De onde ela surge e como pode ser compreendida? Onde

    o design ps-moderno e a arte ps-moderna se congregam?

    A hiptese deste trabalho a de que o uso de referncias no design e no cinema se d

    de maneira bastante parecida, nivelando artistas e designers dessas indstrias em patamares

    semelhantes e que um apontamento a outro projeto, seja ele qual for, aplicado em ambas as

    esferas design e arte de maneira muito aproximada. A relevncia desta pesquisa se volta

    especialmente aos designers e produtores culturais, o mtodo ou processo criativo que se pauta

    em referncias j consolidadas corriqueiro e o dilogo com a releitura ou a cpia de aspectos

    de uma obra anterior constante. Logo, desmistificar a separao entre artistas e designers e

    desvincular o processo de uso de um referencial de uma ideia de apropriao indevida

    importante para uma melhor execuo e interpretao do design, na academia e no mercado.

    Como mtodo para alcanar esses objetivos foi utilizada a pesquisa bibliogrfica. O

    referencial terico deste trabalho abrange diversos autores, mas principalmente: Anderson

    (1999); Barthes (1972); Baptista (2010); Bauman (1998) e Harvey (1992).

    1 A partir daqui o termo referncia tratado como o fenmeno de apontar outra obra predecessora em uma obra

    qualquer, conceito que abrange o pastiche, a pardia, a intertextualidade, entre outros.

  • 10

    O primeiro captulo dedica-se a analisar o contexto do autor e da obra, analisando a

    trajetria de Quentin Tarantino at Pulp Fiction e o enredo de Pulp Fiction de maneira breve.

    No segundo captulo, conceitos importantes para o entendimento do ponto de vista do trabalho

    so abordados, como a segregao de design e arte, a ps-modernidade e a narrativa moderna

    e ps-moderna. J no terceiro captulo, analisa-se com foco especial o fenmeno referencial na

    ps-modernidade e a maneira como esse fenmeno aparece em Pulp Fiction, trazendo tambm

    questes importantes sobre autoria e originalidade.

    Foram encontrados ao final da pesquisa, caminhos e dilogos possveis, peas que

    podem compor um panorama onde design e arte se sintonizam de forma aberta e profunda;

    Onde a separao de racional/instrumental e belo/artstico pode se dissolver a favor tanto da

    arte como do design, tanto do mercado, quanto das expresses e compreenso humanas.

  • 11

    1. CONTEXTO TARANTINO

    Abre-se este trabalho introduzindo o autor do objeto de estudo a ser analisado, Quentin

    Tarantino, e sua obra Pulp Fiction. Em relao ao autor, abordam-se aspectos chave de sua

    caracterstica, voltando-se sempre ao uso das referncias, tema da pesquisa. A obra aparece

    sequencialmente, em uma breve explicao de seu enredo e contexto.

    1.1 Bad Motherfucker

    Nessa seo busca-se contextualizar o autor da obra a ser analisada. Quentin Tarantino

    se tornou para os crticos e estudiosos do cinema e da linguagem um cone: ps-modernista por

    sua maneira de narrar e de filmar e com uma biografia inspiradora, saiu sem formar-se de escola

    pblica, trabalhou em vdeo locadora e transformou-se em reconhecido e bem-sucedido diretor

    e roteirista em Hollywood.

    O uso de referncias para Tarantino parece ser at uma inerncia, seu prprio nome foi

    inspirado em literatura e programas de televiso.

    Enquanto estava grvida e matutando sobre nomes, ela ficou viciada na srie

    de TV Gunsmoke e, em particular, no mestio interpretado por Burt Reynolds Quint Asper. Mas queria um nome mais formal do que Quint. Ento, eu estava lendo um livro do Faulkner, O som e a fria. O nome da herona era Quentin, da decidi que este

    seria o nome do meu filho, fosse homem ou mulher. (DAWSON, 2012, p. 23-4)

    Desde pequeno, tinha acesso a filmes diferentes que, ao que tudo indica, influenciaram

    seu estilo.

    [...] Tarantino foi ancorado na cultura de cinema desde cedo. Como um pr-

    adolescente impressionvel, ele j havia visto, com a beno de sua me, filmes como

    Meu dio Ser sua Herana, de Sam Peckinpah, e Amargo Pesadelo, de John

    Boorman, o que pode explicar de certa forma a violncia recorrente em sua prpria

    obra. (OHAGAN, 2012, p. 121)

  • 12

    Por outro lado, importante ter em mente que a obra de Tarantino no apenas uma

    grande salada de referncias, j que, Tarantino, ento, no apenas copia velhas tramas, mas

    muda seus elementos e formas para dar nova vida a elas.. (CHUMO II, 2012, p. 142) e,

    segundo Ramos (2012, p. 10)

    Tarantino no se relaciona abstratamente com a histria do cinema,

    recortando-a em uma mirade de citaes, mas lida com um conjunto de

    procedimentos de estilo pensados em seu mago como encenao. [...] Tarantino no s sabe ver, como tambm sabe fazer, com base no que soube olhar. Trata-se do

    diferencial do corao que bate em sua obra.

    Com ele parece surgir um novo respiro do cinema contemporneo, repleto de

    polmica: [...] ele tambm se estabeleceu, aos trinta e um anos, como um dos estilistas

    supremos do cinema contemporneo, assim como o atual prncipe coroado da controvrsia.

    (OHAGAN, 2012, p. 117).

    Outro aspecto interessante e normalmente incomum aos cineastas mais recentes de

    sua histria de vida ter abandonado a escola precocemente: [...] aos dezesseis anos, com o

    consentimento relutante da me, ele largou a escola, na condio de arrumar um trabalho. O

    primeiro foi de lanterninha de um cinema porn, o Pussycat Theatre, em Torrance.

    (DAWSON, 2012, p. 24). Tarantino inspira por alcanar o estrelato, em condies bastante

    adversas.

    [...] Tarantino o derradeiro f bem-sucedido, o fantico por filmes

    autoinventado que cresceu para dominar Hollywood (pelo menos por um tempo). Aos

    trinta e um anos de idade, ele no apenas faz filmes que retrabalham pedaos e trechos

    de seus filmes favoritos em que todos seus atores preferidos estrelam, como tambm

    se tornou uma espcie de formador de opinio do mundo do cinema. Ele diz que gosta

    dos filmes de ao hiperviolentos de John Woo e, bingo, Woo consegue um contrato

    em Hollywood. Ele diz que inspitos filmes franceses de gngster de Jean-Pierre

    Melville foram uma influncia, e eles so relanados.

    Os detalhes de sua rpida ascenso particularmente o fato de que nunca foi para uma escola de cinema, mas ensinou a si mesmo, acelerando na histria do cinema

    enquanto trabalhava numa locadora de vdeo se tornaram to bem conhecidos que quase constituem um mito pop dos anos 1990. (McLELLAN, 2012, p. 103)

    Porm seu maior sonho sempre parece ter sido o de estar em frente s cmeras, o que

    explica o fato de encontrarmos facilmente sua prpria figura em seus filmes, fazendo pontas ou

  • 13

    papis secundrios e por que no dizer j fazendo referncia a Hitchcock que tambm

    costumava aparecer rapidamente em seus prprios filmes, no fazendo um papel com falas

    como Tarantino, mas simplesmente passando, como figurante, ou escondido entre cenas

    especiais. (Figura 1)

    Figura 1: Os diretores em seus filmes.

    Fonte: Cena de Os pssaros com uma breve figurao de Alfred Hitchcock e seus ces. Direo de

    Alfred Hitchcock (1963). E cena de Pulp Fiction com a atuao de Quentin Tarantino e Harvey Keitel. Direo

    de Quentin Tarantino (1994).

    Segundo Dawson (2012) por volta da mesma poca em que abandonou a escola

    Tarantino procurou a carreira de ator atravs do curso de interpretao de James Best,

    entretanto, aps algumas tentativas frustradas, conhece o roteirista Craig Hamann e aventura-

    se em sua primeira produo prpria, denominada My Best Friends Birthday (1987).

    O filme de 1986, estrelando Hamann e Tarantino, pretendia ser um modo de apresent-

    los como atores e foi feito usando cada centavo disponvel que arranjaram. [...] Nunca foi

    terminado [...]. (DAWSON, 2012, p.26)

    Dawson (2012) tambm nos esclarece, inclusive citando entrevistas com Hamann, que

    os objetivos de Tarantino estavam todos voltados interpretao, seu impulso de direo,

    produo e roteiro vinha da vontade de criar as prprias oportunidades de cena, j que tinha

    dificuldade em conseguir insero em Hollywood. Desse bero complexo, nasceu seu primeiro

    roteiro. Amor Queima Roupa (1993). E nesse contexto, j com sua formao de ator e sua

    bagagem cinfila, foi que Tarantino encontrou emprego na Video Archives, locadora de vdeos

    de Los Angeles.

  • 14

    [...] pagando apenas quatro dlares por hora, com permisso de tirar quantos

    vdeos ele quisesse, de graa. De acordo com Lawson2, Tarantino se vestia

    basicamente de preto, dirigia um Honda Civic preto, se entupia de hambrgueres, era

    um leitor voraz de romances de mistrio e quadrinhos... ou melhor, pulp fiction3,

    amava Elvis e os Trs Patetas e, segundo a lenda, era to desorganizado na sua vida

    pessoal que juntou sete mil dlares em multas de trnsito [...] Seu conhecimento de

    filmes tambm era lendrio j naquela poca. (ibid, p. 28)

    Ainda consta em Dawson (2012) que enquanto trabalhava na locadora, Tarantino

    desenvolvia seu roteiro, inclusive submetendo os rascunhos Lawson, e Ele tambm podia

    assistir a seus filmes favoritos seguidamente e descobrir por que funcionaram. (McLELLAN,

    2012, p. 104)

    Algumas das primeiras referncias eram bvias Elvis e Sonny Chiba tiveram seus momentos em Amor Queima-Roupa, e o programa de aniversrio de

    Clarence Worley tratado naquele filme assistir a uma exibio de trs filmes de Sonny Chiba4 algo que Quentin costumava reservar para si mesmo. (DAWSON, 2012, p.28)

    O uso de referncias se caracteriza antes da incluso de cultura pop ou de nichos, com

    a insero das prprias experincias. [...] Roger Avary5 [...] disse Vanity Fair: O nico

    problema que as pessoas tm com a obra de Quentin que ela fala de outros filmes, em vez da

    vida. O grande truque ter uma vida, ento fazer filmes sobre esta vida. (OHAGAN, 2012,

    p. 121-2). Tarantino utiliza de sua prpria rotina como base de criao para seu cinema e talvez

    se diferencie dos demais cineastas porque extrapola os limites dessa rotina; incorporando ao

    cinema no apenas os elementos de sua realidade mas tambm as cenas, cores, objetos, ngulos

    de cmera, frases, dilogos e outros elementos das obras a que ele assistia e apreciava.

    Voc reconheceria tantas coisas, relembra Lawson. Muito daquilo era bastante pessoal. Por exemplo, foi to irritante que quase parei de sair para comer com

    o Quentin, porque ele era o personagem de Steve Buscemi em Ces de aluguel. Ele

    no dava gorjeta e encrencava tanto com isso. Simplesmente no entendia o conceito.

    Essas coisas apareciam e voc sabia de onde vinham. Ele dizia coisas como: Vou dar um Jimmy Riddle6, e eu dizia: Quentin, um pouco mais de informao do que

    2 Proprietrio da Video Archives 3 Aqui pulp fiction refere-se s revistas em quadrinhos produzidas com papel a partir de polpa, onde foram

    impressas as histrias que inspiram o filme. 4 Ator especialmente famoso por sua atuao em filmes de ao do estilo Kung Fu 5 Diretor, produtor e roteirista, ex parceiro de Tarantino, com quem escreveu as histrias de Pulp fiction. 6 Gria americana para urinar.

  • 15

    preciso agora. Isso, claro, acabou sendo proferido por Uma Thurman e John Travolta em Pulp Fiction. (DAWSON, 2012, p. 29)

    Aps ter acesso irrestrito ao acervo da Video Archives, e tambm conseguir renda

    estvel durante o perodo em que desenvolvia o roteiro de Amor Queima Roupa, Tarantino

    deixa a locadora, no incio de 1989 (DAWSON, 2012, p. 29), construindo, assim uma espcie

    de mito onde se atribuiu seu vasto conhecimento sobre cinema ao fato de ter trabalhado nesse

    local. Iluso, ainda segundo Dawson, Tarantino contribui mais para a Video Archives do que o

    contrrio. Nesta poca, seu repertrio de cinfilo j era vasto.

    Entretanto o caminho para a realizao de Amor queima roupa parecia tortuoso...

    Tarantino, na verdade, tentara fazer filmes por quase dez anos. Ele no foi

    um sucesso do dia para a noite. Foi levado por um desejo desesperado por escrever

    seu prprio filme. Amor Queima-Roupa pareceu inicialmente a opo mais

    provvel, [...]. Entretanto, cansado de promessas vazias quanto sua viabilidade, aps

    trs meses ele decidiu vender um terceiro projeto no qual estava trabalhando para

    conseguir fundos para um filme que ele mesmo pudesse realizar. E assim, Assassinos

    por Natureza foi escrito como forma de levantar dinheiro para dirigir Amor Queima-

    Roupa. (Tarantino acabou vendendo Amor Queima-Roupa em 1989 pelo valor

    mnimo da Associao de Roteiristas, de trinta mil dlares). (ibid, p.30)

    Nascem ento outros roteiros da tentativa de financiar Amor queima roupa (1993).

    Assassinos por Natureza (1994) assim como o roteiro de Um Drink no Inferno (1996).

    [...] o tempo todo trabalhando em vrios roteiros, sendo o mais ambicioso

    uma histria de um jovem comediante balconista que, enquanto trabalha no roteiro de

    um filme sobre uma dupla de assassinos seriais em fuga, acaba se envolvendo nesse

    mundo criminoso e fugindo para valer. Tarantino acabou dividindo essas duas ideias

    que se tornaram Amor Queima-Roupa, a histria do vendedor cmico, que foi

    filmado por Tony Scott [...], e Assassinos por Natureza, o roteiro que o vendedor

    estava escrevendo, que vem as telas [...], cortesia de Oliver Stone (McLELLAN, 2012, p. 104-5)

    Aps desistir de dirigir Amor Queima Roupa (1993), e acumular a verba pretendida,

    Tarantino parte para o que seria seu primeiro sucesso, Ces de aluguel (1992), e sobre ele, o

    prprio diretor diz: Algo literalmente simples, como o fato de que adoro esses filmes de

  • 16

    assalto e no via um fazia muito tempo e relembra: Ento decidi escrever um... (DAWSON,

    2012, p.31). (Figura 2).

    Em 1989, desesperado, ele mudou de rumo e criou um roteiro baseado numa

    velha ideia que teve sobre retrabalhar o filme de assalto. Harvey Keitel viu o roteiro

    para Ces de Aluguel amou e decidiu ajudar a produzi-lo. Tarantino correu para isso.

    E no parou desde ento (McLELLAN, 2012, p. 105)

    Figura 2: Os primeiros filmes roteirizados por Tarantino.

    Fonte: cenas de Amor queima roupa com Patricia Arquette e Christian Slater direo de Tony Scott (1993),

    Assassinos por natureza com Woody Harrelson e Juliette Lewis direo de Oliver Stone (1994), Um drink no

    inferno com Quentin Tarantino e George Clooney, direo de Robert Rodriguez (1996) e Ces de Aluguel com

    Michael Madsen, Harvey Keitel e Steve Buscemi, direo de Quentin Tarantino (1992).

    A partir do estrondoso sucesso de Ces de aluguel nasce o Tarantino popstar, um dolo

    que constantemente impressiona e consolida-se como diretor e roteirista.

    1.2 Breve histria de Pulp Fiction

    Nesta seo resume-se o enredo e as principais caractersticas do filme que ser

    analisado neste trabalho, alm de contextualizar a situao de Tarantino em seu lanamento:

    Pulp fiction inunda o gnero de referncias cultura pop e ao consumo, aspectos interligados

    e celebrados. (BAPTISTA, 2010, p. 23).

    Pulp Fiction nasce associado a uma grande expectativa: Aps o grande sucesso de Ces

    de aluguel que projetou a carreira de diretor de Tarantino o pblico e a crtica esperavam

    saber at onde Tarantino poderia chegar, e se conseguiria superar o prprio monstro criado.

    Uma obra espetacularmente divertida de cultura pop, Pulp Fiction o

    American Graffiti Loucuras de Vero dos filmes policiais violentos [...] construindo

  • 17

    engenhosamente uma srie de episdios que acabam se entrelaando e embutindo a

    ao sempre surpreendente num contexto formado por um dilogo delicioso e vrias

    performances soberbas.

    Alguns podem achar que o filme afunda em alguns pontos pela tendncia do

    diretor em tentar entender conceitos o mximo que pode, mas Tarantino deveria ser

    enaltecido por ousar explorar os limites de seu material, se desdobrando e vencendo

    a maldio da segunda obra no processo. (McCARTHY, 2012, p. 97)

    A prpria festa de lanamento do filme gerou uma espcie de comoo, como podemos

    observar no trecho de McLellan (2012) no qual o prprio Tarantino comenta sobre o fenmeno

    de sua ascenso:

    [...] uma atmosfera de carnaval reina. Quando os crditos de abertura sobem,

    a plateia aplaude seus favoritos Harvey Keitel, Tim Roth, Christopher Walken. Entretanto, o nome de Tarantino que provoca mais barulho: O que aconteceu recentemente que as pessoas que trabalham no gnero policial agora, os diretores,

    esto meio que se tornando os astros dos filmes, Tarantino observa. Isso no era necessariamente o caso antes. Diretores de terror eram assim nos anos 1970. Se voc

    era um jovem fantico por filmes de terror, ia ver os filmes do George Romero, de

    John Carpenter, os de Dario Argento. Eles eram os astros, os heris. Isso no

    necessariamente o caso agora para filmes de terror eles no fazem mais tantos. Mas, de certa forma, John Woo, Abel Ferrara e Beat Takeshi ainda esto nessa gama. Ento

    meio uma poca empolgante para fazer esses filmes. (p. 102)

    OHagan (2012) descreve com especial nfase que o sucesso de Pulp fiction o que

    reafirma que Quentin Tarantino no seria um diretor de um s filme:

    Se Ces de Aluguel assinalou a chegada de um iconoclasta formal com um

    senso distorcido de humor, Pulp Fiction anuncia a presena de um singular, e

    singularmente precoce, talento de primeiro time. Com duas horas e meia e trs

    histrias separadas, mas entrelaadas, Tarantino constri um film noir contemporneo

    que , alternadamente, hilrio, surreal e chocante. (p. 119)

    De onde saram as histrias que compem o filme que certificou o diretor como tal e

    consolidou sua carreira, arrematando um prmio de melhor filme em Cannes, o que vemos a

    seguir nas palavras do prprio Tarantino.

    A ideia era comear com ideias pulp bem batidas o boxeador que foi pago para perder uma luta, mas no perde; o gngster que leva a garota do chefe para sair,

    sabe que no pode mexer com ela, mas... meio que ir at a lua com elas, lev-las at um lugar onde voc nunca as viu chegar antes. (McLELLAN, 2012, p. 110)

  • 18

    As ideias pulp s quais Tarantino se refere so principalmente, segundo McLellan (ibid,

    p. 110-1), originrias da revista Black mask (Figura 3) que atrai Tarantino por motivos como o

    uso de grias frequente, interesse no urbano e no comportamental masculino, pelo que ele

    mesmo define como ressonncia bagaceira e pelo flerte com conceitos de inverso, onde

    figuras polmicas como traficantes e cafetes viram heris. Onde a imoralidade desafia o

    espectador.

    Figura 3: capa de uma edio da revista pulp Black Mask

    Fonte: Black Mask Magazine. Black Mask L01. Disponvel em:

    Acesso em 18 de mai. 2013

    Ao iniciar seu filme, Tarantino expe na tela duas definies para o termo pulp, (Figura

    4). OBrien (2012) discorre sobre essas definies.

    As duas definies do dicionrio de pulp que Quentin Tarantino publicou no comeo de Pulp Fiction tm relao direta com o que se segue. A primeira, uma

    massa de matria macia, mida e sem forma, lembrando assim a frase: batido at virar papa [...].

    Risco fsico, a possibilidade de ser ferido severamente (talvez

    irrevogavelmente) por pistola, punhos, espada, corrente ou agulha hipodrmica, ao

    cair de um telhado ou bater o carro: [...].

  • 19

    A segunda definio uma publicao, como uma revista ou livro, contendo tema sensacionalista parece anunciar algum tipo de homenagem ou pastiche, e Tarantino apontou que sua inteno original era fazer um filme Black Mask como a velha histria de detetive. (p. 135-7)

    Figura 4: Definio de pulp na abertura de Pulp fiction

    Fonte: Cena de Pulp fiction (1994). Diretor: Quentin Tarantino.

    Em seguida temos o prlogo do filme, aps os crditos iniciais somos levados ao incio

    deste captulo, mesmo que o ttulo dele s seja apresentado quando esta linha do tempo

    retomada. Este incio trata-se da viagem at o ponto de um crime e a execuo do crime por

    dois mafiosos Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson).

    Assim como Ces de Aluguel, o novo filme comea num caf [...] A prxima

    sequncia tambm parece estar num terreno familiar, com dois matadores, Vincent e

    Jules (John Travolta e Samuel L. Jackson), que esto vestidos como os bandidos em

    Ces, de terno preto, camisa branca e gravata. Imediatamente, Tarantino se posiciona

    como o Preston Sturges do crime, colocando as palavras e os pensamentos mais

    incongruentes na boca de personagens baixos e amorais. (McCARTHY, 2012, p. 98)

    Neste momento dois bons questionamentos aparecem. O primeiro , como Quentin

    Tarantino supostamente um diretor novato com apenas um filme anterior quele no currculo

    consegue atrair grandes atores e atrizes de Hollywood como Bruce Willis e Uma Thurman?

  • 20

    Voc pode apostar que o que atraiu nomes como Willis, John Travolta e Uma

    Thurman ao filme no foram cheques gordos de pagamento foi o roteiro. Esse certamente foi o caso para Samuel L. Jackson, que interpreta Jules, um cara normal

    que por acaso ganha a vida matando gente: Eu me sentei, li o roteiro inteiro, o que normalmente no fao, respirei fundo, ento li de novo, o que nunca fao, s para ter

    certeza de que era verdade. Foi o melhor roteiro que j li. (WEBSTER, 2012, p. 94)

    A forma com que Tarantino escreve seus roteiros to impactante e orientada atuao,

    que impressiona at experientes atores hollywoodianos. Isso acaba tendo uma consequncia

    prtica. raro que o ator improvise ou altere o texto do roteiro original.

    Nenhum dos atores parece pressionar para mudar suas frases, como cada

    vez mais o caso hoje em dia, quando grandes astros colidem com seus roteiros escritos

    por comits. Tendo sido ele mesmo um ator, ele sensvel a como tirar o desempenho de cada indivduo, diz Eric Stoltz, que interpreta um traficante de segunda numa das sequncias-chave de adrenalina do filme. (ibid, p. 95)

    O segundo ponto : de onde surgem os dilogos, marca to expressiva dos filmes de

    Tarantino que nesta parte do longa-metragem so to icnicos? Estes acabam sendo repetidos

    incansavelmente pelos fs como o dilogo sobre Amsterd e o Royale with cheese ou a citao

    bblica do personagem de Jules, De volta de uma temporada aditivada em Amsterd, Vincent

    fala com conhecimento sobre os diferentes tipos de fast-food disponveis na Europa, enquanto

    Jules discursa com eloquncia sobre a Bblia, vingana e divindade. (McCARTHY, 2012, p.

    98) Este trao est presente desde o filme anterior, no dilogo de Ces de aluguel sobre uma

    teoria do real significado da msica Like a virgin da cantora Madonna, e em Steve Buscemi,

    que interpreta o personagem Mr. Pink defendendo a descrena de Quentin sobre dar gorjetas.

    A veia de dilogo de Tarantino ancorada em todo o discurso que vem antes,

    nas palavras de pretensos esquizoides de Jim Thompson7, sociopatas reconfortantes

    de Charles Willeford8, maquinadores lacnicos dos romances com Parker de Richard

    Stark (tambm conhecido como Donald Westlake); prostitutas de David Mamet9,

    caras de pau pegar ou largar dos faroestes com Randolph Scott, de Budd Boetticher, e nos filmes de Don Siegel, como The Line Up e The Killers, e acima de tudo nos

    toques de associao livre dos variados bandidos e marginais de Elmore Leonard, os

    assassinos e ladres variadamente astutos e dementes que povoam Fifty-Two Pickup,

    Swag, The Switch ou City Primeval. (OBRIEN, 2012, p. 139)

    7 Escritor e roteirista, escreveu o roteiro de clssicos como Glria Feita de Sangue (1957) 8 Escritor e roteirista estadunidense, famoso por seus romances policiais 9 Roteirista, produtor e diretor, escreveu o roteiro de Hannibal (2001) dirigido por Ridley Scott, entre outros.

  • 21

    Aps a icnica citao bblica, inicia-se o captulo Vincent Vega and Marsellus

    Wallaces Wife10 onde v-se como foi o encontro entre Mia Wallace (Uma Thurman) esposa do

    mafioso Marsellus (Ving Rhames) e Vincent Vega (John Travolta). nesta parte que aparecem

    diversas das cenas mais referenciais do filme. Um bom exemplo o restaurante fictcio dos

    anos 50 montado para a produo.

    Esse encontro gera o maior trecho do filme, um impressionante programa num restaurante-clube gigante com tema dos anos 1950. Mesmo com todas as

    distraes de decorao, a trama avana numa partida de tnis verbal irresistvel entre

    os dois gostoses, e a noite termina de forma chocante, com Vincent forado a salvar

    a vida de Mia de uma maneira que inicialmente far muitos espectadores

    estremecerem, mas vai deix-los rindo com um alvio espantado.

    Passada uma hora, o filme se torna ainda mais audacioso, com Tarantino

    levando a plateia mais fundo a um territrio no mapeado com novos personagens

    cujos relacionamentos com aqueles que j conhecemos no parecem claros por algum

    tempo. (McCARTHY, 2012, p. 98)

    Aps este captulo, inicia-se o ltimo (na estrutura linear) chamado The Gold watch11

    sobre o boxeador Butch (Bruce Willis) que mesmo tendo vendido o resultado de sua luta,

    comprometendo-se com Marsellus Wallace (Ving Rhames) a perd-la, resolve tentar enganar o

    mafioso e apostar em si mesmo, vencendo a luta.

    Tendo encerrado este captulo, que em uma linha do tempo contnua finalizaria o filme,

    Tarantino retoma o primeiro captulo, dando continuao viagem de Vincent e Jules e insere

    tambm aqui, mais uma de suas fortes caractersticas: o acaso.

    Cornell Woolrich e Frederic Brown so autores que minaram a zona tnue

    entre o terror extraterrestre sobrenatural [...] Ambos lidam pesadamente com o reino

    de improvveis coincidncias e piadas csmicas cruis, um reino que Pulp Fiction

    toma como seu.

    O quo profundamente a viso de no acredito que isto est acontecendo comigo de Woolrich permeou a mitologia noir evidente pela lista parcial de filmes baseada em sua obra, incluindo Janela Indiscreta, The Leopard Man, A Noiva Estava

    de Preto, A Sereia do Mississippi, The Night Has a Thousand Eyes, Phantom Lady, I

    Married a Shadow e o potico mdia-metragem de Maxwell Shane, Fear in the Night

    (1947). A obra de Brown no foi to feliz [...] mas a trama com reviravoltas

    diabolicamente elaboradas de seus romances The Far Cry (1951), The Wench is Dead

    10 Vincent Vega e a esposa de Marsellus Wallace 11 O Relgio de Ouro

  • 22

    (1955), The Murderers (1961) e sua obra prima, Knock Three-One Two (1951), mostra

    uma clara afinidade com as linhas narrativas cruzadas e recursivas de Pulp Fiction.

    Tarantino no toca exatamente no sobrenatural, mas ele altera tempo e espao

    de forma engenhosa e chega ao ponto de sugerir a possibilidade de interveno divina.

    (OBRIEN, 2012, p. 137-8)

    Depois de finalizado o contratempo que leva Vincent e Jules a mudarem de rota, ambos

    vo at um restaurante na esperana de tomar o caf da manh e discutirem a validade da

    interveno divina percebida por Jules, entretanto este restaurante o mesmo que aparece no

    prlogo do filme sendo assaltado pelos personagens Pumpkin ou Ringo (Tim Roth) e Honey

    Bunny ou Yolanda (Amanda Plummer) onde Jules acaba rendendo Ringo.

    Essa imagem o homem da violncia como a voz da razo pedindo calma se torna literal na sequncia final, na qual o princpio de ningum se mexe, ningum se fere levado ao extremo lgico no retrato de um impasse, com uma arma apontada para cada cabea, que remete a John Woo12 (OBRIEN, 2012, p. 136)

    A resoluo desta cena nos leva ao desfecho do filme, que acaba reflexivo, com Jules

    (Samuel L. Jackson) filosofando sobre qual seria seu encaixe na prpria referncia bblica que

    perpetua e resolvendo sair da vida do crime.

    Com este captulo quis-se deixar claro a relevncia da contribuio, tanto do diretor

    quanto da obra para a cultura pop, que se faz, assim, relevante para a arte e para o design, sendo

    ela prpria origem de referncia para diversos outros trabalhos e tendo ela nascido daquilo

    que os crticos e estudiosos chamam de uma alquimia prolixa, complexa e ps-moderna de

    Quentin Tarantino.

    Em vrios nveis importantes, Pulp Fiction um espantoso sucesso. (McCARTHY,

    2012, p. 99).

    12 Cineasta chins um dos mais prolferos realizadores de filmes de ao de Hong-Kong.

  • 23

    2. DESIGN E ARTE: ELOS

    uma tarefa difcil tentar definir o que seria o design e o que seria a arte. Devido

    amplitude de ambos inicia-se de um ponto de vista especfico. Dondis (2007) chama um de seus

    captulos em Sintaxe da Linguagem Visual de A falsa dicotomia: belas-artes e artes aplicadas,

    logo, apenas pelo ttulo j podemos decifrar o ponto de vista dessa pesquisa. Quando se

    encontram os conceitos de belas-artes (como o cinema) e artes aplicadas (como o design)?

    Nos diz Dondis (2007, p. 10) [...] os pr-rafaelitas j se inclinavam na mesma direo.

    A arte, dizia Ruskin, porta-voz do grupo, una, e qualquer separao entre belas-artes e artes

    aplicadas destrutiva e artificial..

    O objetivo deste captulo , portanto, simples no seu entendimento, porm mais

    complexo em sua aplicao: discutir a relao entre design e arte, demonstrar que houve uma

    separao entre eles, com modernismo e que reverbera at hoje. Tentar reconectar belas-artes e

    artes aplicadas, demonstrando atravs da teoria sobre o ps-moderno, a possibilidade desse

    religamento. Ainda temos como objetivo discutir o papel da narrativa no design e no cinema,

    demonstrando que pode haver uma conexo entre ambos, tambm neste aspecto.

    2.1 O design e o cinema: encontros

    Uma das mais importantes e constantes repeties na fala dos professores durante a

    experincia de graduao em Design : Voc no um artista. Compreensvel, j que muitos

    alunos, chegam universidade com uma perspectiva distorcida do que seria a arte e do que seria

    o design. Segundo Moura (2005):

    Muitas vezes encontramos em alguns discursos da rea quase a necessidade de

    estabelecer arte e design como campos oponentes e contraditrios. Me parece tambm

    que esta discusso toma importncia no Brasil e ocorre como uma necessidade de

    afirmao para a rea de design ser respeitada como um campo independente.

    Devemos lembrar a atuao dos liceus de artes e ofcios, a arte industrial como

    disciplina dos cursos de ensino bsico e mdio e o nascimento de muitos cursos de

    graduao em design nos departamentos de artes de vrias universidades. Talvez, este

    seja o motivo principal do discurso separatista de design e arte. Porm, hoje o design

    j est mais do que estabelecido e respeitado como campo de conhecimento. (p. 1)

  • 24

    E a arte, quando indefesa, taxada no senso comum de incoerente, elitizada e intil. O

    artista visto como aquele que tira sua arte apenas de uma inspirao randmica e do vazio,

    uma viso distorcida a partir de uma caracterstica do artista moderno.

    Portanto, a arte modernista [...], no sentido de que o artista tinha de assumir

    uma aura de criatividade, de dedicao arte pela arte, para produzir um objeto

    cultural original, sem par e, portanto, eminentemente mercadejvel a preo de

    monoplio. O resultado era muitas vezes uma perspectiva altamente individualista,

    aristocrtica, desdenhosa (particularmente da cultura popular) e at arrogante da parte

    dos produtores culturais. (HARVEY, 2000, p. 30).

    Em outras palavras, para Harvey a ps-modernidade v o artista das vanguardas

    modernas, aquele que assumia em suas mos a tarefa de modificar o mundo, expandindo seus

    alcances, como quem distanciou-se da cultura popular e do passado, elitizando sua imagem:

    Gillo Dorfles (1998), em seu texto As oscilaes do gosto, trata o design

    como um campo que dialoga com a arte especialmente pela questo do valor esttico

    e compara o design a um tipo de arte popular pois acredita que o objeto criado em srie equivale a alguns objetos artesanais. (MOURA, 2005, p. 3).

    Anderson (1999) tambm identifica o carter elitizado da arte moderna:

    Essa expanso das fronteiras do capital inevitavelmente dilui os estoques de

    cultura herdada. O resultado uma caracterstica queda de nvel com o ps-moderno. A cultura modernista era inelutavelmente elitista: produzida por exilados

    isolados, minorias antipatizadas, vanguardas intransigentes. Arte fundida em molde

    heroico, era constitutivamente oposicionista: no apenas zombava das convenes do

    gosto como, mais importante, desafiava as solicitaes do mercado. (p. 75)

    Andy Warhol dspar. Embora seu prprio trabalho tenha hoje uma aura de

    originalidade, mesmo na reproduo mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de

    arte a sua existncia nica no lugar em que se encontra. , todavia, nessa existncia nica, e

    apenas ai, que se cumpre a histria qual, no decurso da sua existncia, ela esteve submetida.

    (BENJAMIN, 1955, p. 3)

  • 25

    As latas Campbells de Andy Warhol e suas repeties colocam em evidncia a questo

    da originalidade na arte, que se conecta facilmente com o design, quando este faz referncia

    arte. A autenticidade colocada em cheque no ps moderno.

    Tambm o designer considerado um artista contemporneo, onde suas

    produes - objetos da cultura material e imaterial - so importantes e presentes na

    vida cotidiana do ser humano.

    O design visto como o cruzamento, a relao entre arte e cincia; a partir

    da integrao das artes e ofcios e tambm como arte popular no sentido da arte prtica

    presente no cotidiano destinada ao homem na sociedade da cultura material e

    imaterial. (MOURA, 2005, p. 4)

    Vemos ento a fala do designer brasileiro voltar-se em direo tcnica, tecnologia,

    indstria e aos negcios em uma espcie de necessidade de diferenciar-se da perspectiva

    moderna do que seria um artista elitizado, fugindo da arte urica e de um eventual design

    urico.

    (...) anacrnico prosseguir mantendo a oposio entre arte e design, pois

    um produto resultante de um projeto de design, tal como um logotipo, pode ter a

    mesma fora de um haikai; no tem fundamento estabelecer que aquilo que se destina

    ao mercado e a uma empresa deva ser rigidamente separado do que produzido

    artisticamente, fosse assim a capela Sistina no deveria ter a importncia que tem por

    ter sido encomendada pela Igreja. (FARIAS, 1999 apud MOURA, 2005, p. 6)

    Um designer, que na verdade teme a desvalorizao de sua profisso porque tambm

    sabe das dificuldades do artista em ser reconhecido no Brasil e valorizado como tal. Mas

    esquece-se de que ...uma Teoria do Design no ter um campo fixo de conhecimentos, seja ele

    linear-vertical (disciplinar), ou linear-horizontal (interdisciplinar), isto , uma Teoria do Design

    instvel. (BOMFIM, 1997 apud MESTRE, 2011, p.260).

    Esse hibridismo conceitual e de conhecimentos, claro, no se restringe ao design.

    As disciplinas outrora bem separadas da histria da artes, da crtica literria,

    da sociologia, da cincia poltica e da histria comearam a perder os seus claros

    limites, cruzando-se em investigaes hbridas e transversas que no mais podiam ser

    facilmente situadas num ou noutro domnio. A obra de Michel Foucault, observou

    Jameson, era um destacado exemplo desse tipo de pesquisa. (ANDERSON, 1999, p.

    73)

  • 26

    Mesmo tendo a esttica e a tcnica artstica (que deriva do artesanato) como grande

    parte de seu trabalho, muitos designers brasileiros ainda escolhem a via da racionalidade

    instrumental.

    Weber alegava que a esperana e a expectativa dos pensadores iluministas era

    uma amarga e irnica iluso. [...] Mas, quando desmascarado e compreendido, o

    legado do Iluminismo foi o triunfo da racionalidade... proposital-instrumental. Essa

    forma de racionalidade afeta e infecta todos os planos da vida social e cultural,

    abrangendo as estruturas econmicas, o direito, a administrao burocrtica e at as

    artes. (BERNSTEIN, 1985, apud HARVEY, 1992, p. 25)

    Anderson (1999) tambm cita Weber.

    O carimbo da modernidade, na clssica argumentao de Weber, era a

    diferenciao estrutural: a autonomizao de prticas e valores, outrora intimamente

    misturados na experincia social, em domnios bem separados. Esse o processo que

    Habermas sempre insistiu no pode ser cancelado, sob pena de retrocesso. Nesse sentido, no poderia haver sintoma mais sinistro de runa do moderno do que a ruptura

    dessas divises duramente conquistadas. (p. 74)

    J o carimbo do ps-moderno se dispe a abandonar o moderno aquele supostamente

    apoiado na cincia racional, mas, internamente catico.

    Saber se o projeto do Iluminismo estava ou no fadado desde o comeo a nos

    mergulhar num mundo kafkiano, se tinha ou no de levar a Auschwitz e Hiroshima e

    se lhe restava ou no poder para informar e inspirar o pensamento e a ao

    contemporneos so questes cruciais. H quem, como Habermas, continue a apoiar

    o projeto [...] E h tambm quem e isso , como veremos, o cerne do pensamento filosfico ps-modernista insista que devemos, em nome da emancipao humana, abandonar por inteiro o projeto do Iluminismo. (HARVEY, 1992, p. 24)

    Abandonar a racionalidade instrumentalista, vinda do pensamento iluminista e

    consequentemente do modernismo, o que valida as artes aplicadas e as belas artes no

    movimento do contnuo e do descontnuo. Pois entende-se aqui que no necessrio separ-

    las. (Figura 5).

  • 27

    Muitos artistas so designers e muito designers so artistas ou transitam entre

    estas duas reas e praticam as experimentaes tpicas da atividade artstica. Portanto,

    h estreitas relaes entre estes universos de limites tnues.

    Ao se estabelecer uma anlise mais profunda, sem ranos tradicionalistas,

    podemos perceber que o design grfico contemporneo se abre a experimentaes de

    toda a natureza, em poticas densas e ruidosas. (MOURA, 2005, p.5)

    Figura 5: O design editorial/artstico de David Carson

    Fonte: Website oficial David Carson. The Magazine Factory (2013). Disponvel em:

    acesso 03 de nov. 2013.

    A integrao da arte, do artesanato e da indstria no escopo do design vem desde a

    Bauhaus13, segundo Harvey (2000):

    Como Relph assinala, Bauhaus, a to influente unidade germnica de design

    fundada em 1919, no incio se inspirou muito no Arts and Crafts Movement que

    Morris tinha fundado, e s mais tarde (1923) se voltou para a idia de que mquina o nosso meio moderno de design. Bauhaus pde exercer a influncia que exerceu sobre a produo e o design por causa precisamente da redefinio de ofcio artesanal como a habilidade de produzir em massa bens de natureza esteticamente agradvel com a eficincia da mquina. (p. 33)

    A citao acima j gera uma potente mudana de paradigma. A Bauhaus em senso

    comum sempre foi sinnimo do design mais puro e isolado dos processos de expresso

    13 [...]uma das maiores e mais importantes expresses do que chamado Modernismo no design e na arquitetura,

    sendo a primeira escola de design do mundo.

  • 28

    pessoal. A Bauhaus contribuiu significativamente para o fortalecimento do Movimento

    Moderno ao promover a funcionalidade, materiais de qualidade, mtodos de produo e um

    vocabulrio coerente de design que acabou se tornando sinnimo de modernidade (FIELL,

    2006 apud PISSETI, 2007, p. 4). Inclusive seus trabalhos serviram de argumento para defender

    a dicotomia belas-artes e artes aplicadas. Relacionar o incio de sua histria (1919 1923) com

    o movimento Arts and Crafts que defendia o artesanato e estava intimamente ligado arte

    e que, segundo Dondis (2007) que na verdade afirmava a impossibilidade de produzir arte

    desvinculada do artesanato, nos mostra a fragilidade desses conceitos em se manterem

    separados.

    Nos primeiros anos de funcionamento da Bauhaus, as produes se

    aproximavam mais do artesanato que do sistema industrial, enquanto professores

    como Johannes Itten entendiam a arte como uma atividade espiritual desligada do

    mundo exterior (Dempsey, 2003). Foi somente aps 1923 que as diretrizes da escola

    passaram a enfatizar a engenharia e a tcnica. (PISSETI, 2007, p. 4)

    Podemos ento supor que design e cinema esto mais prximos do que se pensava

    anteriormente, assim como arte e artesanato (Figura 6 e Figura 7).

    Figura 6: Quadro de Willam Morris, representante do Arts and Crafts

    Fonte: The William Morris Society in the United States. La Belle Iseult / Guenevere (1858). Disponvel em:

    acesso 18 de mai. 2013.

  • 29

    Figura 7: Cadeira de William Morris

    Fonte: The William Morris Society in the United States. The Morris Chair (ou a cadeira Morris) Disponvel

    em: Acesso em: 18 de mai. 2013

    Elaboradas pela mesma pessoa, o mesmo artista, o mesmo designer. Tanto as pinturas

    quanto a cadeira de William Morris evidenciam: Integrar, convergir e (re)mixar sempre foi

    parte integrante de um trabalho de design.

    Uma arte integrada vida, rompendo com a separao de coisas belas para

    admirar (por exemplo: uma pintura) e coisas feias (por exemplo: um eletrodomstico)

    para utilizar. Podemos perceber que para Munari a arte e a esttica so importantes e

    devem estar presentes nos objetos e produtos de design. No a arte destinada a

    contemplao pura, a fruio esttica e sim a arte para o cotidiano, para o uso nos atos

    da vida, [...]

    Partindo deste princpio, para Munari, o designer tambm um artista, artista

    do nosso tempo, pois deve enfrentar e resolver as necessidades e exigncias da

    sociedade com humildade e competncia. (MOURA, 2005, p. 1)

    Este argumento comprovado em trabalhos contemporneos como os dos irmos

    Campana (Figura 8):

    Assim, a convergncia de Design e Cinema, acentuada na

    contemporaneidade com o surgimento da tecnologia digital, se concentra

    essencialmente no denominador comum das artes plsticas, na medida em que estas

    tambm transformam e ampliam o seu espao de atuao. Atravs de objetos,

    instalaes, vdeo-arte, land-art, a arte tornou-se, mais do que nunca, vivencivel e

    utilizvel, o aspecto formal emergindo do contexto poltico e cultural. A aproximao

  • 30

    de design e arte torna-se particularmente visvel nas propostas da obra dos irmos

    Campana, que rene peas de arte com projetos para produo industrial num mesmo

    conceito. (MESTRE, 2011, p. 263)

    Figura 8: Cadeira Favela Irmos Campana

    Fonte: Website dos Irmos Campana. Favela (1991)

    Disponvel em: Acesso em: 04 de nov. 2013

    Sendo assim, o design alm de arte e comunicao agrega traos cultura (...) o design

    tem relaes de proximidade, de referncia e dilogo com a arte. Design produo de cultura

    e de linguagem, [...] (MOURA, 2005, p. 6) e sobre linguagem:

    Sabemos que o design est relacionado cultura e produo de linguagem,

    fato que aproxima este campo do universo de criao colocando-o muitas vezes como

    um universo implcito e outras vezes como universo paralelo arte. O design atua a

    partir da relao com a arte enquanto processo de criao, de referncia e tambm a

    partir de interferncias, influncias e inter-relaes entre estes dois campos.

    (MOURA, 2005, p. 2)

    Os aspectos tecnolgicos precisam ser tambm levados em conta: [...] um projeto no

    existe, isto , no pode ser materializado sem a tecnologia. (ibid, p. 6)

  • 31

    Considerando que a principal caracterstica do design a reproduo de uma

    comunicao ou das informaes, deve-se lembrar que os meios de reproduo se

    estruturam e ocorrem no universo da tecnologia e das relaes, dos sistemas e dos

    procedimentos tcnicos e tecnolgicos. (MOURA, 2005, p.6)

    No possvel definir o design sem a tecnologia, mas novamente, tambm no

    possvel defini-lo sem a arte.

    Por este motivo, outro aspecto recorrente e muito enfocado nas definies de

    design o da tecnologia ser e estar implcita a este universo e, por isso, muitas vezes

    este campo definido assim: design tecnologia.

    Entretanto, dizer que design somente tecnologia no traduz plenamente a

    definio e o conceito deste campo, pois esta rea no se sustenta apenas pela

    tecnologia. Ela se faz a partir dela; antes da tecnologia ser aplicada, h de se ter um

    projeto, este se estabelece a partir das questes de criao, de pesquisa e de

    conceituao e tambm por meio da tecnologia.

    Podemos afirmar, ento, que o design tem uma estreita relao com a

    tecnologia, sendo esta, um dos pilares do design e podemos dizer o mesmo com

    relao arte. No h como se desenvolver um projeto sem a tecnologia, e tambm

    sem os procedimentos de criao, inveno e de inovao que advm da arte.

    a integrao da tecnologia e da arte que do sustentao aos aspectos

    culturais, estticos, funcionais e de linguagem do projeto que sero refletidas no

    produto que foi desenvolvido. (ibid, p. 7)

    no projeto que todos esses elementos essenciais se encontram Sem o projeto no h

    como o design estabelecer uma relao com a tecnologia e com a arte, a no ser como um

    exerccio aleatrio repleto de puro tecnicismo ou do livre fazer criativo. (ibid, p. 8)

    As palavras design, mquina, tecnologia e arte esto relacionadas umas com as outras, um termo impensvel sem os outros, e todos eles derivam da mesma viso

    existencial do mundo. Entretanto, essa ligao interna tem sido negada por sculos

    (pelo menos desde a Renascena). A cultura burguesa moderna fez uma diviso entre

    o mundo das artes e o da tecnologia e mquinas; assim a cultura dividiu-se em dois

    ramos exclusivos: um cientfico, quantificvel e duro, o outro esttico, avalivel e flexvel. Essa diviso infeliz comeou a tornar-se irreversvel no final do sculo dezenove. Na lacuna, a palavra design formou uma ponte entre os dois. Ela pde fazer

    isso porque expressa a ligao interna entre arte e tecnologia. (FLUSSER, 1999 apud MOURA, 2005, p. 8-9)

    Pode-se dizer que se abre ento a possibilidade do designer como artista na ps-

    modernidade, artista do consumo e do consumidor, do produto e do mercado, moderador dos

  • 32

    desejos atravs das interaes com o produto final; Um design que precisa da arte para nascer,

    que congrega arte e design em um mesmo projeto.

    A produo de afeto atravs da esttica prope seduzir antes de convencer.

    Sentir antes de compreender, o princpio estabelecido por Chateau (2006), a

    proposta original, no Design ou no Cinema. A seduo usada como estratgia, seja

    para tornar o produto atraente ao usurio em potencial (e assim vendvel e lucrativo),

    seja para atrair o espectador para a narrativa de um filme. (MESTRE, 2011, p. 264)

    Moura (2005), complementa analisando as palavras de Argan:

    O arquiteto e crtico de arte Giulio Carlo Argan (2000) tambm se refere aos designers como artistas com conhecimento da esfera produtiva (...). Para Argan, a arte

    est no design desde a tarefa criativa at a determinao de um ritmo esttico e

    econmico dos atos da vida cotidiana. (p. 3).

    Um design que adora a arte; a ponto de incumbir-se de espalhar sua experincia de todas

    as maneiras, at mesmo atravs de um produto. David Harvey cita a seguir as palavras do crtico

    literrio Terry Eagleton (1987 apud HARVEY, 1992, p. 19):

    Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato ps-moderno tpico

    travesso, auto-ironizador e at esquizoide; e que ele reage austera autonomia do alto

    modernismo ao abraar impudentemente a linguagem do comrcio e da mercadoria.

    Sua relao com a tradio cultural de pastiche irreverente, e sua falta de

    profundidade intencional solapa todas as solenidades metafsicas, por vezes atravs

    de uma brutal esttica da sordidez e do choque.

    na ps-modernidade que:

    (...) com efeito, estava a perda de qualquer senso ativo de histria, seja como

    esperana, seja como memria. O carregado senso do passado que caracterizara o

    modernismo j no existia fosse como transpirao de tradies repressivas ou reservatrio de sonhos frustrados e desapareceu a intensa expectativa do futuro como possvel cataclisma ou transfigurao que caracterizara o modernismo. (ANDERSON, 1999, p. 68)

  • 33

    Resgatar o passado. Para a ps-modernidade, j no se trata do passado histrico, mas

    da referncia a uma narrativa especfica, em um mundo em que, segundo Eagleton (1998), todas

    as narrativas so vlidas. s na ps-modernidade que nasce Pulp Fiction e a maneira

    tarantinesca de conceber seus filmes, entend-la em seus principais pontos de afirmao, se

    faz ento crucial a este trabalho.

    A idia de um ps-modernismo surgiu pela primeira vez no mundo hispnico, na dcada de 1930, uma gerao antes do seu aparecimento na Inglaterra

    ou nos Estados Unidos. [...] Federico de Onis, quem imprimiu o termo

    postmodernismo. Usou-o para descrever um refluxo conservador dentro do prprio

    modernismo: a busca de refgio contra o seu formidvel desafio lrico num

    perfeccionismo do detalhe e do humor irnico, em surdina, cuja principal

    caracterstica foi a nova expresso autntica que concedeu s mulheres.

    (ANDERSON, 1999, p. 9-10)

    As origens da ps-modernidade tanto quanto seu modo de pensar so difusas.

    Assumem-se as revolues iniciadas nas dcadas de 1960 e 1970 como seu estopim.

    Nos anos 60, [...] Leslie Fiedler, [...] celebrou o surgimento de uma nova

    sensibilidade entre a gerao mais jovem da Amrica, que era uma gerao de

    excludos da histria, mutantes culturais cujos valores desinteresse e desligamento, alucingenos e direitos civis encontravam expresso e acolhida numa nova literatura ps-moderna.14 Fiedler explicaria depois na Playboy que essa literatura

    produziria um cruzamento de classes e uma mistura de gneros, repudiando as ironias

    e formalismos modernistas, para no falar nas distines entre elevado e inferior,

    numa volta desinibida ao sentimental e burlesco. (ANDERSON, 1999, p. 19)

    Terry Eagleton (1998) questiona se na verdade a ps-modernidade no esteve sempre

    conosco, de maneira a no ser necessariamente a continuao histrica do moderno, mas a

    condio de incredulidade que permeia toda a histria enquanto no h o engajamento em um

    projeto maior, como o modernismo.

    O ps-modernismo, ao contrrio, no pode mesmo chegar a um termo, (...)

    Ele no , aos prprios olhos, uma etapa da histria, mas a runa de todo esse pensamento etapista. Ele no vem depois do modernismo, mas no sentido de que o

    reconhecimento de que o rei est nu vem depois de se olhar para ele. E assim, da

    mesma forma como era verdade que o imperador esteve nu o tempo todo, sob certo

    aspecto o ps-modernismo existia mesmo antes de comear. Num determinado nvel

    14 The New Mutants, Partisan Review, vero de 1965, p.505-25

  • 34

    pelo menos, ele no passa da verdade negativa da modernidade, um desmascaramento

    de suas pretenses mticas e, portanto, presume-se que fosse to legtimo em 1786

    quanto o hoje. Esse modo de pensar no deixa muito confortvel o ps-modernismo,

    visto que seu relativismo histrico o faz cauteloso diante dessas verdades transitrias;

    mas essa afirmao, no final das contas representa o preo que ele tem de pagar por

    recusar-se a ver a si prprio, pelo menos em termos filosficos, como apenas mais um

    movimento na grande sinfonia da Histria, que pela lgica deriva de seu predecessores

    e prepara o caminho para o que vem depois. (EAGLETON, 1998, p. 37-8)

    Mesmo que o autor questione o etapismo histrico, as obras com caractersticas ps-

    modernas continuam sendo legitimas, pois podemos supor que encontraramos essas obras

    mesmo que tenham sido produzidas antes da dcada de 1960. No podemos esquecer que a

    histria nunca linear, progressiva e evolutiva, muito menos a cultura, pois os traos advindos

    do passado se transformam e se mesclam a outros existentes no presente, assim como, o

    presente vai busca de traos que estiveram no passado, que se mostram como originrios.

    Portanto, em se tratando de cotidiano, cultura, arte, quase impossvel fecharmos os elementos

    que os compem em categorias solidificadas.

    Anderson (1999) prossegue:

    Quando, porm, lanou a noo de ps-modernismo, em 1971, Hassan

    incluiu essa linhagem num espectro bem mais amplo de tendncias que ou

    radicalizavam ou rejeitavam as principais caractersticas do modernismo: uma

    configurao que se estendia s artes visuais, msica, tecnologia e sensibilidade

    em geral.15

    Quando Hassan concluiu sua investigao dos variados indcios do ps-

    modernismo desde a espaonave Terra aldeia global, da faco ao happening, da reduo aleatria pardia extravagante, da inconstncia intermediao e procurou sintetiz-los como tantas anarquias do esprito, jocosamente subvertendo as altivas verdades do modernismo, o compositor era um dos pouqussimos artistas

    que se poderiam relacionar de modo razovel maior parte da lista.

    Em ensaios subsequentes, Hassan usou a noo de Foucault de corte

    epistemolgico para indicar mudanas semelhantes na cincia e na filosofia, na esteira

    de Heisenberg ou Nietzsche. Nessa veia, argumentou que a unidade subjacente do

    ps-moderno est no jogo entre indefinio e imanncia, cujo gnio fundador nas artes foi Marcel Duchamp. A lista de sucessores inclui [...], Warhol [...]. (p. 25)

    Anderson nos mostra as conexes e sucesses que levaram ao ps-moderno. Ao citar

    Duchamp e Warhol alude questo da definio de arte afinal as obras mais famosas desses

    dois artistas so marcos desse tipo de questionamento (Figura 9)

    15 POSTmodernISM: a Paracritical Bibliography, New Literacy History, outono de 1971, p.5-30

  • 35

    (...) desde que Marcel Duchamp realizou o primeiro ready-made, ficou patente que um dos aspectos basilares da produo artstica era o questionamento de

    suas fronteiras. Vale dizer que muito do que hoje se faz em nome da arte contra as

    compreenses correntes do que seja arte. Vai da que discutir se design grfico arte

    ou no perder-se em uma falsa questo. Discute-se a pertinncia de um rtulo e, em

    contrapartida, perde-se de vista a densidade da dimenso esttica de um determinado

    produto, uma dimenso que jamais poder ser reduzida s demandas funcionais, sob

    pena de perder seu interesse no mbito da cultura. (FARIAS, 1999 apud MOURA, 2005, p. 6)

    Figura 9: Warhol descarta a originalidade na arte

    Fonte: MoMA Museum of Modern Art. Campbells Soup Cans (ou Latas de Sopa Campbells) Disponvel em:

    Acesso em: 15 de out. 2013.

    A arte pop o preldio do ps-moderno, dentro do prprio moderno.

    .

    O setor da propaganda e do design grficos, por sua vez, era agora cada vez mais interpenetrado com as belas-artes, como impulso do estilo ou fonte de material.

    No espao pictrico, a falta de profundidade ps-moderna encontrou perfeita

    expresso nas superfcies despojadas da obra de Warhol, (...) (ANDERSON, 1999, p. 71)

    Mesmo que o ps-modernismo no esteja vinculado noo de sequncia de tempo, os

    anos 60 so um divisor de guas.

  • 36

    Produto direto do mercado popular e dos meios de comunicao de massa, o

    Pop Design surgiu nos anos 60, podendo ser considerado uma anttese ideologia

    modernista mas, ao mesmo tempo, nunca antagnico ao Modernismo. O estilo Pop pretendia ser moderno num sentido diferente mas no exclusivo, de uma modernidade

    de design de alto impacto da moda; um moderno despreocupado com o amanh,

    descarado e superficial (Garner, 2008, p.55). Irnico e subversivo, o Pop Design apropriava-se, descontextualizava e reconstrua os projetos modernistas e seus

    produtos mais emblemticos, como os da HfG Ulm. Incorporando os produtos

    eltricos da Braun nas suas pinturas, Richard Hamilton, por exemplo, converteu os

    cones modernistas em smbolos Pop (Garner, 2008). (PISSETI, 2007, p. 6)

    Anderson prossegue com a exemplificao mais claramente visvel do ps-modernismo:

    a arquitetura.

    [...] Em 1972, Robert Venturi e seus colegas Denise Scott Brown e Steven

    Izenour publicaram o manifesto arquitetnico da dcada, Learning from Las Vegas

    [Aprendendo com Las Vegas]. Venturi j tinha adquirido renome com uma crtica

    elegante da ortodoxia purista do estilo internacional na era de Mies van der Rohe,

    invocando obras-primas maneiristas, barrocas, rococs e eduardinas como valores

    alternativas da prtica contempornea.16 No novo livro, ele e seus colegas lanaram

    um ataque muito mais iconoclstico ao modernismo, em nome da vital imaginao

    popular na faixa do jogo. A, argumentava, se encontraria uma espetacular renovao

    da histrica ligao entre arquitetura e pintura, artes grficas e escultura um primado exuberante do smbolo sobre o espao que o modernismo tinha s suas prprias custas rejeitado. Era hora de voltar mxima de Ruskin segundo a qual a arquitetura

    era a decorao da construo. (ANDERSON, 1999, p. 28)

    A estrutura de limpeza do alto modernismo, e a desculpa da destruio criativa que

    precisa limpar a tela para recomear o trabalho j no convencia arquitetos como Robert

    Venturi:

    A linguagem universal de design proveniente da viso do Movimento

    Moderno, com sua purificao esttica, foi concebida com o propsito de ser impenetrvel pela moda (Fiell, 2006).

    Entretanto, essa blindagem revelou-se absolutamente falvel e, assim como

    suas correntes e estilos precedentes, a boa forma gradativamente se exps ao desgaste. (PISSETI, 2007, p. 5)

    16 Complexity and Contradiction in Architecture, Nova York, 1966, p.16: Os arquitetos no podem mais se deixar intimidar pela linguagem puritanamente moral da arquitetura moderna ortodoxa Mais no menos.

  • 37

    Se a destruio criativa era uma condio essencial da modernidade, talvez coubesse

    ao artista como indivduo uma funo herica (mesmo que as conseqncias pudessem ser

    trgicas). (HARVEY, 1992, p. 27-8) , o alinhamento com o ps-moderno foi inevitvel.

    [...] A arquitetura ortodoxa moderna progressista, para no dizer revolucionria, utpica e purista: mostra-se insatisfeita com as condies existentes. Mas a maior preocupao do arquiteto no deveria ser com o que deveria ser, mas com o que e como ajudar a melhor-lo.17 (ANDERSON, 1999, p. 28-9)

    Mais do que isso, Robert Venturi faz da arquitetura um ponto forte de argumentao a

    favor do ps-moderno.

    Contrastando a planejada monotonia das megaestruturas modernistas com o

    vigor e a heterogeneidade do crescimento urbano espontneo, Learning from Las

    Vegas resumiu essa dicotomia numa frase: construo para o Homem versus Construo para homens (mercados).18 A simplicidade dos parnteses diz tudo. Aqui, exposta com divertida franqueza, est a nova relao entre arte e sociedade que

    Hassan imaginou mas no soube definir. (ANDERSON, 1999, p. 29)

    Deixa-se de pensar amplamente, em um mundo globalizado e unificado, formatador,

    comea-se a vislumbrar um mundo voltado ao indivduo e suas comunidades, ao

    aproveitamento da vida e sua qualidade. Venturi, segundo Anderson, refora as caractersticas

    de multiplicidade do ps-moderno

    .

    [...] ps-moderno e teorizando sobre seu ecletismo como um estilo de

    codificao dupla, isto , uma arquitetura que adotava um hbrido da sintaxe moderna e da historicista, com apelo tanto para o gosto educado quanto para a

    sensibilidade popular. Era essa mistura liberadora do novo e do velho, do elevado e

    do vulgar que definia o ps-modernismo como um movimento e lhe assegurava o

    futuro.19 (ANDERSON, 1999, p. 30)

    17 Learning from Las Vegas, p.85. 18 Learning from Las Vegas, p.84. 19 The Language of Postmodern Architecture, edio revista e ampliada, Nova York, 1978, p.6-8: o modernismo padece de elitismo. O ps-modernismo est tentando superar esse elitismo estendendo as mos para o vernculo, para a tradio e para a gria comercial das ruas a arquitetura, em dieta forada h cinquenta anos, s pode se divertir e em consequncia ficar mais forte e mais profunda.

  • 38

    Em seu Learning From Las Vegas, Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven

    Izenour utilizam o exemplo que usa-se tambm aqui. A construo The Big Duck (Figura 10)

    exatamente as j citadas acima vital imaginao popular na faixa do jogo e mistura

    liberadora do novo e do velho, do elevado e do vulgar uma ilustrao que parece adequada aos

    conceitos citados acima.

    Figura 10: The Big Duck

    Fonte: Wikipedia, the free encyclopedia. The Big Duck (ou o Grande Pato) Disponvel em:

    Acesso em: 15 de out. 2013.

    O arquiteto ps-moderno se v cansado das mesmas estruturas formais de limpeza,

    assim como de construir para agradar um homem idealizado, e zomba de sua austeridade.

    Era hora, diziam os autores, de construir para as pessoas, e no para o

    Homem. As torres de vidro, os blocos de concreto e as lajes de ao que pareciam

    destinadas a dominar todas as paisagens urbanas de Paris Tquio e do Rio a

    Montreal, denunciando todo ornamento como crime, todo individualismo como

    sentimentalismo e todo romantismo como kitsch, foram progressivamente sendo

    substitudos por blocos-torre ornamentados, praas medievais e vilas de pesca de

    imitao, habitaes projetadas para as necessidades dos habitantes, fbricas e

    armazns renovados e paisagens de toda espcie reabilitadas, tudo em nome da defesa

    de um ambiente urbano mais satisfatrio. (HARVEY, 1992, p. 45-6)

    Harvey (1992) prossegue:

  • 39

    Mais positivamente, os editores da revista de arquitetura PRECIS 6 (1987, 7-

    24) vem o ps-modernismo como legtima reao monotonia da viso de mundo do modernismo universal. Geralmente percebido como positivista, tecnocntrico e racionalista, o modernismo universal tem sido identificado com a crena no progresso

    linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e

    com a padronizao do conhecimento e da produo. O ps-moderno, em contraste, privilegia a heterogeneidade e a diferena como foras libertadoras na redefinio do discurso cultural. A fragmentao, a indeterminao e a intensa desconfiana de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) totalizantes so o marco do pensamento ps-moderno. ( p. 19)

    A arquitetura e seus prdios em forma de pato so um dos argumentos mais tangveis

    da ps-modernidade, a esttica do pastiche irreverente e do relativismo. Ao imaginar Las Vegas

    essa esttica fica clara, e ao mesmo tempo as comunidades e as pessoas ganham valor. Somente

    a ironia de um prdio que na verdade um pato, e um pato que na verdade um prdio, pode

    desconstruir uma arquitetura que de to preocupada com a civilizao esqueceu-se das

    pessoas e de suas vidas.

    Atravs da histria, os conceitos de ps-moderno vo se construindo:

    Em meados da dcada de 80, Jencks festejava o ps-moderno como uma

    civilizao mundial de tolerncia pluralstica e opes superabundantes, uma

    civilizao que tornava sem sentido polaridades ultrapassadas como esquerda e direita, capitalista e classe operria. Numa sociedade em que a informao importava agora mais que a produo, no h mais uma vanguarda artstica, uma vez que no h inimigo a derrotar na rede eletrnica global. Nas condies emancipadas da arte atual, h em vez disso inmeros indivduos em Tquio, Nova York, Berlim, Londres, Milo e outras cidades mundiais que se comunicam e competem, assim como esto

    no mundo financeiro.20 (ANDERSON, 1999, p. 30-1)

    David Harvey (1992) ilustra uma grande questo nesse processo de criao do ps-

    moderno: o dilema de saber se o ps-moderno quebra ou no o vnculo com o modernismo.

    O ps-modernismo, por exemplo, representa uma ruptura radical com o

    modernismo ou apenas uma revolta no interior deste ltimo contra certa forma de

    alto modernismo representada, digamos, na arquitetura de Miles Van Der Rohe e nas superfcies vazias da pintura expressionista abstrata minimalista? Ser o ps-

    modernismo um estilo [caso em que podemos razoavelmente apontar como seus

    precursores o dadasmo, Nietzsche ou mesmo, como preferem Kroker e Cook (1986),

    20 What is Post-Modernism?. Londres, 1986, p.44-7

  • 40

    as Confisses de Santo Agostinho, no sculo IV] ou devemos v-lo estritamente como

    um conceito periodizador (caso no qual debatemos se ele surgiu nos anos 50, 60, ou

    70)? Ter ele um potencial revolucionrio em virtude de sua oposio a todas as

    formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades

    de razo iluminista) e da sua estreita ateno a outros mundos e outras vozes que h muito estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizados com sua

    histria prpria)? Ou no passa de comercializao e domesticao do modernismo e

    de uma reduo das aspiraes j prejudicadas deste a um ecletismo de mercado vale tudo, marcado pelo laissez-faire? [...] vendo-o at como a arte de uma era inflacionria ou como a lgica cultural do capitalismo avanado (como Newman e Jameson propuseram)? (p. 47)

    Porm as evidncias de que o mundo j no se caracteriza, ou melhor, j no se identifica

    com o moderno reaparecem com frequncia.

    Hassan estabelece uma srie de oposies estilsticas para capturar as

    maneiras pelas quais o ps-modernismo poderia ser retratado como uma reao ao

    moderno.

    Os planejadores modernistas de cidades, por exemplo, tendem de fato a buscar o domnio da metrpole como totalidade ao projetar deliberadamente uma forma fechada, enquanto os ps-modernistas costumam ver o processo urbano como algo incontrolvel e catico, no qual a anarquia e o acaso podem jogar em situaes inteiramente abertas. Os crticos literrios modernistas de fato tm a tendncia de ver as obras como exemplos de um gnero e de julg-las a partir do cdigo-mestre que prevalece dentro da fronteira do gnero, enquanto o estilo ps-moderno consiste em ver a obra como um texto com sua retrica e seu idioleto particulares, mas que, em princpio, pode ser comparado com qualquer outro texto de qualquer espcie. (HARVEY, 1992, p. 49)

    E Eagleton (1998) vai alm ao afirmar que:

    (...)se dizer ps-modernista no significa unicamente que voc abandonou de vez o modernismo, mas que o percorreu exausto at atingir uma posio ainda

    profundamente marcada por ele, deve haver algo como um pr-ps-modernismo, que

    percorreu todo o ps-modernismo e acabou mais ou menos no ponto de partida, o que

    de modo algum no significa que no tenha havido mudanas. (p. 8)

    Surge neste ponto um ps-moderno to mltiplo e catico que explica-lo uma funo

    complexa, mas, alm disso, questiona-se: necessria a explicao? O ps-moderno se compara

    a um hidra de mltiplas cabeas e nenhuma delas pode ser analisada sem seu contexto

    particular, ao mesmo tempo, todas elas podem ser comparadas a todas as cabeas de hidras que

  • 41

    existem e todas partem da mesma origem. Ento, porque essa necessidade crescente de definir

    de forma fechada o ps-modernismo? Ele nasceu e permanece, sempre, ambguo.

    Anderson afirma a seguir, baseado em Lyotard, que at mesmo a cincia ps-moderna

    vira um jogo de linguagem, e por jogo de linguagem tambm compreende-se uma colcha de

    retalhos referenciais. Afinal no o texto cientfico o filho reconectado e reinterpretado dos

    textos publicados no passado?

    Para Lyotard, a chegada da ps-modernidade ligava-se ao surgimento de uma

    sociedade ps-industrial (...) na qual o conhecimento tornara-se a principal fora

    econmica de produo numa corrente desviada dos Estados nacionais, embora ao

    mesmo tempo tendo perdido suas legitimaes tradicionais. Porque, se a sociedade

    era agora melhor concebida, no como um todo orgnico nem como um campo de

    conflito dualista (Parsons e Marx) mas como uma rede de comunicaes lingusticas,

    a prpria linguagem todo o vnculo social compunha-se de uma multiplicidade de jogos diferentes, cujas regras no se podem medir (...) Nessas

    condies, a cincia virou apenas um jogo de linguagem dentre outros: j no podia

    reivindicar o privilgio imperial sobre outras formas de conhecimento, que pretendera

    nos tempos modernos. Na verdade, sua pretenso superioridade como verdade

    denotativa em relao aos estilos narrativos do conhecimento comum escondia a base

    de sua prpria libertao atravs do avano do conhecimento; a segunda, descendente

    do idealismo alemo, via o esprito como progressiva revelao da verdade. Esses

    foram os grandes mitos justificadores da modernidade.

    O trao definidor da condio ps-moderna, ao contrrio, a perda da

    credibilidade dessas metanarrativas. (ANDERSON, 1999, p. 32)

    Logo, a ps-modernidade parece deslegitimar esse refgio tcnico do designer

    brasileiro. Nela, o design narrativa, arte, e pode ser bom mesmo partindo do referencial

    pop, de massa, do pastiche, do mercado e no deixar de ser design.

    Mas o autntico pragmatismo da cincia ps-moderna est no na busca do

    performtico, mas na produo do paralogstico na microfsica, os fractais, as descobertas do caos, teorizando sua prpria evoluo como descontnua, catastrfica, incorrigvel e paradoxal.21 (ibid, p. 33)

    A partir da cincia, Lyotard expande o ps-moderno de uma tendncia visual ou

    conceitual, a uma estrutura de mundo. No ttulo e no tema, A condio ps-moderna foi o

    21 La Condition postmoderne. Rapport sur le savoir, Paris, 1979, p.97. Traduo Americana: The Postmodern

    Condition, Minneapolis, 1984, p.60

  • 42

    primeiro livro a tratar a ps-modernidade como uma mudana geral na condio humana.

    (ibid, p.33)

    Harvey (1992) segue:

    [...] o que parece ser o fato mais espantoso sobre o ps-modernismo: sua total

    aceitao do efmero, do fragmentrio, do descontnuo e do catico que formavam

    uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o ps-modernismo

    responde a isso de uma maneira bem particular; ele no tenta transcend-lo, opor-se a

    ele e sequer definir os elementos eternos e imutveis que poderiam estar contidos nele. O ps-modernismo nada, e at se espoja nas fragmentrias e caticas correntes

    da mudana. Como se isso fosse tudo o que existisse. Foucault (1983, xiii) nos instrui,

    por exemplo, a desenvolver a ao, o pensamento, e os desejos atravs da proliferao, da justaposio e da disjuno e a preferir o que positivo e mltiplo, a diferena uniformidade, os fluxos s unidades, os arranjos mveis aos sistemas.

    Acreditar que o que produtivo no sedentrio, mas nmade [...] o ps-modernismo tipicamente remonta ala de pensamento, a Nietzsche em particular, que

    enfatiza o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ele com o

    pensamento racional. (p. 49)

    Contradiz o ps-moderno, toda tentativa de organizar o caos em grandes explicaes

    universais. Essas posturas, que levam a grandes narrativas, so as chamadas metanarrativas.

    [...] a rejeio das metanarrativas (interpretaes tericas de larga escala pretensamente de

    aplicao universal). (HARVEY, 1992, p. 19-20) Negar poder essas metanarrativas

    essencial ao ps-moderno (Figura 11). Tudo se tornaria uma interpretao, inclusive essa

    afirmao, em que a idia de interpretao se apagaria por completo e deixaria tudo exatamente

    como estava. (EAGLETON, 1998, p. 23)

    Figura 11: Question Everything // why? (Questione tudo // Por que?)

    Fonte: Graffiti em acesso ao metr de Londres - Greater Manchester Disponvel em: < http://serious-internet.biz/resize/700/-/1360/graffiti-question-everything-1360368319.jpg > Acesso em: 04 de nov. 2013.

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    Com A condio ps-moderna Lyotard anunciou o eclipse de todas as

    narrativas grandiosas. Aquela cuja morte ele procurava garantir acima de tudo era,

    claro, a do socialismo clssico. Nos textos subsequentes ele ampliaria a lista das

    grandes narrativas ento extintas: a redeno crist, o progresso iluminista, o esprito

    hegeliano, a unidade romntica, o racismo nazista, o equilbrio keynesiano.

    (ANDERSON, 1999, p. 39)

    Harvey (1992) prossegue:

    [...] encontramos autores como Foucault e Lyotard atacando explicitamente

    qualquer noo de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma

    metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou representadas.

    As verdades eternas e universais, se que existem, no podem ser especificadas.

    Condenando as metanarrativas (amplos esquemas interpretativos como os produzidos

    por Marx ou Freud) como totalizantes, eles insistem na pluralidade de formaes de poder-discurso (Foucault) ou de jogos de linguagem (Lyotard). Lyotard, com efeito, define o ps-moderno simplesmente como incredulidade diante das metanarrativas. (p. 49-50)

    Eagleton (1987 apud HARVEY, 1992, p. 19-20) esclarece:

    O ps-modernismo assinala a morte dessas metanarrativas, cuja funo terrorista secreta era fundamentar e legitimar a iluso de uma histria humana

    universal. Estamos agora no processo de despertar do pesadelo da modernidade, com sua razo manipuladora e seu fetiche da totalidade para o pluralismo retornado

    do ps-moderno, essa gama heterognea de estilos de vida e jogos de linguagem que

    renunciou ao impulso nostlgico de totalizar e legitimar a si mesmo... A cincia e a

    filosofia devem abandonar suas grandiosas reivindicaes metafsicas e ver a si

    mesmas, mais modestamente, como apenas outro conjunto de narrativas.

    Ao falar de rejeio s metanarrativas Harvey e Eagleton no se referem apenas

    manifestaes culturais como o cinema e o design, mas filosofia, ao modo de vida, e at

    poltica. Podemos dizer pelo texto de Eagleton que o nazismo, por exemplo, uma dessas

    metanarrativas, medida que tenta legitimar uma histria humana universal de superioridade

    ariana.

    O sculo XX com seus campos de concentrao e esquadres da morte, seu militarismo e duas guerras mundiais, sua ameaa de aniquilao nuclear e sua

    experincia de Hiroshima e Nagasaki certamente deitou por terra esse otimismo. Pior ainda, h a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se

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    contra si mesmo e transformar a busca da emancipao humana em um sistema de

    opresso universal em nome da libertao humana. (HARVEY, 1992, p. 23)

    Bauman ao retomar Freud reafirma a caracterstica purista do modernismo.

    Dessa ordem que era o orgulho da modernidade e a pedra angular de todas

    as suas outras realizaes (quer se apresentando sob a mesma rubrica de ordem, quer

    se escondendo sob os codinomes de beleza e limpeza), Freud falou em termos de

    compulso, regulao, supresso ou renncia forada. Esses mal-estares que eram a marca registrada da modernidade resultaram do excesso de ordem e sua inseparvel companheira a escassez de liberdade. (BAUMAN, 1998, p. 8-9)

    A descrena no Moderno e no Iluminismo altera o prprio conceito de histria.

    Uma corrente do ps-modernismo v a histria como uma questo de

    mutabilidade constante, exuberantemente mltipla e aberta, uma srie de conjunturas

    ou descontinuidades que s uma violncia terica poderia forar unidade de uma

    narrativa nica.

    (...) pressionada at o ponto em que as continuidades simplesmente se

    dissolvem, a histria passa a ser nada mais que uma galxia de conjunturas correntes,

    um bando de presentes eternos, o que equivale a dizer