Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
O riso em movimento
Maura Böttcher Curvello
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Flavia Maria Corradin
São Paulo
V. I
2011
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A meu pai, meu alicerce e exemplo,
À minha mãe, meu braço direito,
A meu filho David, que aos 12 anos digitou Amor (também) de perdição e aos 15, continua
meu grande amigo,
À minha filha Carolina, melhor surpresa da minha vida,
Ao Deca, meu contrarregra,
À Flávia Maria Corradin, por ser grande orientadora e amiga.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Diálogos com o passado p. 1
De Fernando Gomes p. 2
Do fado português e universal p. 5
I. DIALOGAR PARA TECER p. 8
II. SERES DUAIS p. 18
II. 1 Da mulher portuguesa p. 18
II. 2 Da dualidade feminina p. 30
II. 3 Da dualidade humana p. 37
III. DAS PAIXÕES HUMANAS p. 65
III. 1 Amor é perdição p. 65
III. 2 Perdição é amor p. 86
IV. FEL E SANGUE p. 118
IV.1 Fel escorre da pena de Camilo p. 118
IV.2 O teatro vertendo sangue português p. 139
V. VIA CRUCIS p. 154
V.1 Sob a cruz social p. 154
V.2 Ser ou não ser: Carlota p. 172
VI. RESTA RIR p. 189
IV. REFERÊNCIAS p. 195
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Resumo
Esta tese visa a apresentar a parte da dramaturgia de Fernando Gomes que dialoga
com narrativas de Camilo Castelo Branco a fim de estabelecerem-se relações entre as
concepções de mundo dos dois autores no que tange à nacionalidade, à mulher e ao
comportamento humano. Nesse sentido, o estudo do cômico tornou-se fundamental já que
ambos os escritores se valem do humor para promoverem suas análises da época em que se
inserem e do universo interior humano. O riso movimenta e incentiva a ação, cônscios do
valor dessa ferramenta, novelista e dramaturgo apresentam sua cosmovisão sob esse viés.
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Abstract
This thesis aims to present the part of Fernando Gomes‘ work that converses with
narratives of Camilo Castelo Branco to settle relations between the worldviews of the two
authors in relation to nationality, women and human behavior. In this sense, the study of
the comic has become crucial once both writers make use humor to promote their analysis
of their time, the universe and human interior. Laughter moves and encourages action,
conscious of the value of this tool, novelist and playwright presents their worldview from
this angle.
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―[...] a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o
cruel‖
Machado de Assis
INTRODUÇÃO
Diálogos com o passado
But humankind, which is ever discovering new meanings, cannot always invent
new forms; it must at times be content to invest old forms with new meanings.
(Genette, 1997, p. 400)
Esta tese objetiva mostrar em que medida o humor e a ironia camilianos, revisitados
e atualizados são ferramentas para que Fernando Gomes revele uma visão peculiar a
respeito do ser humano em geral e do português em particular. Os Autor contemporâneo
propõe uma reflexão particular acerca do homem nos âmbitos social, temporal e existencial,
transformando o riso amargo em humor de cunho popular.
Camilo amalgama sua visão por meio de idealismo, ironia, humor e sentimentalismo,
mescla especial que leva o leitor a vislumbrar o aguçado senso crítico do novelista acerca
do ser humano. Gomes enfatiza temas que eram apenas aventados e acrescenta cor a
algumas cenas empalidecidas para ―internalizar‖ os assuntos, isto é, converte causas
externas, políticas ou sociais, em psicológica (Genette, 1997, p. 325). Essa postura condiz
com o que Antonio Candido preconiza acerca das tendências da sociologia moderna, a qual
mostra que
a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se
exprimem na obra em diversos graus de sublimação; e produz sobre os indivíduos
um efeito prático, modificando sua conduta e concepção do mundo, ou
reforçando neles o sentimento dos valores sociais. (2000, p. 18)
Dessa forma, as peças gomesianas ampliam as narrativas de Camilo, ao mesmo tempo em
que reforçam-lhes o caráter universal.
Dono de um estilo bem-humorado, que privilegia a polissemia e o resgate da
linguagem popular como forma de conseguir falas ambíguas e irônicas, Gomes compõe
com frequência cenas simultâneas, ainda que anacrônicas, sugerindo uma maneira cubista
2
de apresentar a realidade. Algumas vezes, um mesmo episódio é narrado ou comentado por
diferentes personagens, como se fosse interpretado de diversos pontos de vista. O riso do
dramaturgo põe em xeque valores arraigados e arcaicos, suscitando a visão crítica de seu
espectador acerca do teatro, da História, do povo português e do ser humano. Cabe analisar
seus textos para inferir em que medida sua dramaturgia é responsável por revivificar
Camilo e o homem do nosso século.
De Fernando Gomes
Fialho de Almeida, consciente da importância dos escritos camilianos, revelou sua
indignação diante do desdém de seu povo pela obra e pelo passamento de Camilo Castelo
Branco. Depois de dissertar acerca das qualidades da produção camiliana, o crítico finaliza
seu texto lamentando não haver discípulos do novelista.
Discípulos não deixa, como já Balzac os não deixara, sendo demasiado grande e
individual para os fazer. A nossa atual literatura é toda filha de pais incógnitos, e
servindo apenas para fazer políticos, não vale que lhe enquadrinhemos da crápula
ordinária. [...] Porventura virá um dia, quando Portugal não for mais que uma
província da nação invasora, e o grupo dos portugueses nostálgicos, retrocedendo
a mágoa às recordações da pátria perdida, procure o símbolo sintético da nossa
antiga vida livre, porventura virá um dia em que o espírito de Camilo se levantará
do passado, como em 1580 viram os portugueses levantar-se o espírito de
Camões. (1941, p. 45-46)
Almeida parece profetizar a necessidade da retomada da narrativa de Camilo para
uma leitura abrangente da psicologia de seu povo, bem como dos tipos que fomentaram o
apego nostálgico à grandiosidade de um passado longínquo em detrimento do olhar atento
aos problemas do presente com fins de solucioná-los em um futuro promissor. A releitura
de narrativas camilianas feitas por Fernando Gomes parece cumprir o vaticínio de Fialho.
Nas mãos do dramaturgo, as novelas oitocentistas ganham atualidade enquanto veículo
crítico do inconsciente coletivo português.
O afamado encenador português, cujos trinta anos de carreira foram celebrados pelo
Teatro Maria Matos de 24 de Janeiro a 17 de Fevereiro de 2002, deve ser apresentado ao
público brasileiro. FERNANDO Alberto de Oliveira GOMES, filho de Alberto José
Gomes e de Corina Fernanda da Conceição Oliveira, nasce em 22 de Janeiro de 1944, na
cidade do Porto, freguesia do Bonfim. Inicia o Curso Comercial na Escola Oliveira Martins,
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mas não chega a completá-lo, pois começa a trabalhar, aos 16 anos, como empregado de
escritório. Inscreve-se, então, na Academia de Bailado Clássico de Pirmin Trecu, mas vê-se
obrigado a abandoná-la para cumprir o serviço militar (1966). Em 1967, parte para a Guiné,
como Furriel Miliciano (posto militar, entre cabo e sargento oficial que, não fazendo parte
do quadro das unidades ativas, está, contudo, obrigado ao serviço, quando convocado) e
regressa ao Porto em 1969. É convidado pelo Círculo Portuense de Ópera a participar de
Pergolesi: La Serva Padrona, no papel de Vespone, uma personagem muda. Estreia no
Teatro S. João do Porto, em 1970. Viaja por Espanha, França, Alemanha e Inglaterra, onde
trabalha durante alguns meses. Regressa a Portugal e fixa-se em Lisboa, como escriturário.
Pretende inscrever-se no Conservatório de Teatro, mas os horários não lhe permitem
continuar a trabalhar. Em 1974 – já com trinta anos – tem conhecimento de que Carlos
Avilez, encenador e diretor do Teatro Experimental de Cascais, procura atores sem grande
experiência, para dois pequenos papéis na peça de Claude Prin, Cerimonial para um
Combate. Gomes passa a integrar o elenco dessa companhia de teatro profissional, uma das
mais importantes do país, onde se mantém ao longo de três temporadas.
O Teatro Experimental de Cascais (TEC) foi a escola em que se iniciou na arte de
representar e Carlos Avilez seu primeiro professor. Esta aprendizagem continuou com
outros grandes encenadores como Filipe Lá Féria, João Brites e João Mota, com quem
trabalhou nos anos seguintes.
Nessa época, começa a escrever textos para Café-Teatro, que são representados em
bares e pequenas salas; o êxito desta iniciativa encoraja-o para outros voos; escreve, então,
algumas versões intertextuais: Alves & Cia, de Eça de Queirós torna-se Viva o casamento!
(1986), Drácula Júnior (1987) dialoga com Drácula, de Bram Stoker, e em 1988, cria uma
versão teatral de Maria! Não Me Mates que sou tua Mãe!, de Camilo Castelo Branco.
A impossibilidade de ter entrado para o Conservatório privou-lhe de um
conhecimento mais abrangente da História do Teatro e dos grandes autores. Todo o seu
conhecimento foi adquirido nos palcos, com a prática e seu talento supera a lacuna.
Em 2002, com outros atores, concebe a Klássikus (Associação Cultural), um grupo
de atores itinerantes que encena suas diversas peças.
Em 2004, é convidado pela Escola Superior de Teatro e Cinema a trabalhar com os
alunos do último ano do curso de Teatro; encena Mestre Ubu.
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Segue um depoimento do autor:
Grande parte do que tenho escrito tem a ver com a realidade dos portugueses e o
tema gira sempre à volta dos ―sentimentos‖ desencadeados pela situação em que
se encontram.
O amor, as grandes paixões, a saudade e o fado (o de ser português) são temas
recorrentes e que me são familiares, tanto pela experiência de vida como pela
memória. Além disso, são universais.
Ao escrever, ao encenar e ao representar, o que me motiva é o prazer de estar com
os outros, contar-lhes histórias, partilhar com eles os tais sentimentos; e isso só é
possível se for sincero. Foi também o caminho que eu encontrei para estar na vida
sem me sentir só.1
A partir de 1980, Gomes passa a compor textos, interpretá-los e dirigi-los. Suas
peças iniciais dirigem-se ao público infantil, faixa etária que nunca abandonou. Em 1981,
envereda pelo café-teatro, também cumprindo as três funções. Em 1985, é co-autor de um
espetáculo musical, mas é em 1986 que passa a reler os cânones da Literatura Portuguesa
e Universal por meio de comédias musicadas. Neste momento, o dramaturgo parece ter
estabelecido um estilo próprio que conta sempre com o humor e a música. Assim,
abundam narrativas de vários escritores, como Dom João da Câmara (Rosa Enjeitada,
1990), Almeida Garrett (A Tragédia, de 1990, pela qual dialoga com vários textos do
autor oitocentista; Romeiro, Romeiro, quem é tu? que relê Frei Luís de Sousa, 2004;
Garrett no coração, uma homenagem ao autor, 2005), Alexandre Dumas (Os três
mosqueteiros, 1999), Stevenson (A ilha do tesouro, 2000; O médico e o monstro é relido
em Jekyll & Hyde, 2005), Bocage (Bocage e as Ninfas trata da vida e obra do autor, 2005;
Du Bocage in Love, nova homenagem, 2006). De Camilo Castelo Branco relê Maria! Não
me mates que sou tua mãe! (1988), Amor de perdição (Amor (também) de perdição,
1991), O sangue (2001), Coisas espantosas (A vida trágica de Carlota a filha da
engomadeira (2002) e um fato biográfico, Zé do telhado (2006), personagem que
conviveu com Camilo na Cadeia do Porto),
O café-teatro e os espetáculos infantis nunca foram abandonados, mas intercalados a
cabarés circenses ( KLÁSSIKUS KABARET, 1990), óperas (BA-TA-CLAN, de 1999,
tradução e adaptação da ópera de Offenbach, As Madamas do Bolhão, com música de
1 Entrevista concedida por Fernando Gomes ao PROJETO AUTOR POR AUTOR: A LITERATURA
PORTUGUESA À LUZ DO TEATRO, organizado e dirigido pelos PROFs. DRs. FRANCISCO MACIEL
SILVEIRA e FLAVIA MARIA CORRADIN, DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS, CIÊNCIAS
HUMANAS, DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.
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Offenbach, 2002 e comédia musicada, Elixir do Amor, versão da ópera de Donizetti ,
2003, dentre outros.).
Desta lavra, colhemos os textos que dialogam com Camilo Castelo Branco, autor
cujo estilo e visão nos interessa estudar.
Do fado português e universal
A cada final e início de século surge a necessidade de avaliar o passado e questionar
em que medida o presente pode reler o que ficou para trás para acrescentar-lhe novos
significados. Nesse sentido, parece ser tão recorrente o uso da intertextualidade na literatura
da contemporaneidade e no trabalho de críticos atuais. Como estudiosos da Literatura
Portuguesa, consideramos relevante, nesse início de século, estudar textos que trabalham
com o diálogo intertextual para levantar algumas hipóteses para as seguintes questões: a
dramaturgia contemporânea portuguesa interessa-se por examinar a dicotomia das faces
social e psicológica do homem de seu tempo, como o fazia a literatura do século XIX? Que
exclusões/inclusões/transgressões a literatura atual propõe em relação à mundividência dos
escritores dos séculos XIX? Que temas são importantes para o português de nossa época?
Como as relações entre memória e herança cultural têm sido exploradas?
Em busca de respostas para essas questões, procuramos um autor crítico em diálogo
com seus antepassados. Fernando Gomes chama atenção por retomar procedimentos de
Camilo Castelo Branco, que não são muito divulgados nem enfatizados pela crítica. Nesse
sentido, cumpre analisar em que medida o riso presente nas releituras de Maria! Não me
mates que sou tua mãe!(1848), Amor de perdição (1862), O sangue (1868), Coisas
espantosas (1862) extrapola ou perpetua a visão de Camilo acerca do homem, como ser
social e sujeito individual.
Camilo, como romântico, refuta o mundo capitalista por ter quantificado,
mecanizado e desumanizado a vida, impondo uma regressão do ponto de vista humano. Em
oposição a esse mundo dogmático, imperfeito, efêmero e instável, o escritor desse
movimento sugere a busca pelo infinito, entendido como a beleza superior, a felicidade
ideal, que deve ser encontrada no interior humano, onde reside o divino. Trata-se, portanto,
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de uma concepção em que predomina a paixão, a busca pelo absoluto, a redescoberta da
essência da alma humana por trás das aparências, a valorização do amor sobre a ponderação
racional.
O termo romantismo não designa [...] um estilo literário ou artístico, mas um
fenômeno muito mais vasto e mais profundo: a corrente de nostalgia das culturas
pré-capitalistas e de crítica cultural à sociedade industrial/burguesa, corrente que
se manifesta tanto no domínio da arte e da literatura, quanto no pensamento
econômico sociológico e político. (Iöwy, 1990, p. 139)
Os românticos sentem-se especiais e procuram revelar isso por meio da
originalidade. Entretanto essa busca os levou à consciência de sua fraqueza diante dos
gigantes do passado. Nesse dilema, o sentimento e a fantasia foram exageradamente
valorizados para eclipsar lacunas ou falhas. Camilo, contudo, compreende a importância de
retomar os clássicos e renovar-lhes, acrescentando marcas de sua individualidade.
Assim também os escritores a partir do século XX, despojados da obrigação de
apresentar originalidade absoluta, puderam explorar mais abertamente o diálogo com seus
antecessores. Cumpre investigar em que medida a dramaturgia pós-moderna2 acrescenta
significados à visão romântica. Nessa esteira, Fernando Gomes relê o novelista colocando o
riso em movimento para apresentar sua visão de mundo. A falta de homogeneidade dos
temas e gêneros de textos com que dialoga sugere o intuito de abarcar vários aspectos da
cultura portuguesa. Maria! Não me mates que sou tua mãe! narra um crime que ocorreu em
Lisboa, em Setembro de 1848, e foi divulgado pelos jornais: uma filha mata a mãe para
roubá-la. Esta narrativa pertence ao âmbito da literatura de cordel lusitana, é acessível às
camadas populares e tem cunho sensacionalista. A realidade popular é observada e
transformada em literatura. Amor de perdição, uma espécie de Romeu e Julieta português,
narra a história do amor frustrado de Simão Botelho e Teresa de Albuquerque por questões
familiares. O sangue é uma novela passional por que perpassa a ironia camiliana. Camilo
pensou em tornar Coisas espantosas sua autobiografia romanceada do autor, sob o título de
2 Entende-se por pós-moderno um estilo de cultura que no plano estético tem como indicadores a auto-
reflexão e a descontração. Com objetivo de eliminar barreiras entre a cultura popular e a cultura erudita, e
entre arte e a experiência cotidiana, usa-se muitas vezes a paródia. "Mas chega um momento em que a
vanguarda (o moderno) não pode ir mais além porque já produziu uma metalinguagem que fala de seus textos
impossíveis (a arte conceptual). A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado,
já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de
maneira não inocente." ECO, 1985. p. 57.
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Os miseráveis de cá, nesse volume, ele não enfoca a burguesia, mas o sofrimento e as
conquistas da classe popular.
Nas mãos de Fernando Gomes, o riso amargo e irônico de Camilo diante da
condição humana torna-se nonsense e beira o sarcasmo. É o que se pode entrever pelos
comentários jornalísticos acerca de alguns desses espetáculos gomesianos.
Fernando Gomes percebeu muito bem a carga paródica do texto camiliano,
tornando explícito o que nesse texto vê, muitas vezes, meramente implícito. O
resultado é um texto e um espetáculo que são uma paródia aberta e directa sobre
um caso trágico visto de forma paródica por um outro escritor [...] Por isso se
pode dizer que, sem esquecer o ponto de partida camiliano, cujo caráter dialógico
ajudou o trabalho de adaptação, este texto de Fernando Gomes é uma obra
dramática original. (Carlos Porto, 1988)
Com este novo espetáculo [Amor também de perdição], Fernando Gomes voltou
a descobrir o ponto de ruptura que lhe permitiu dar a volta ao original camiliano
sem destruir a sua fabulação a não ser no desfecho, e, ao mesmo tempo, a criação
de um soberbo espetáculo teatral. [...] Fernando Gomes põe em causa, pelo lado
da sátira, as personagens e situações criadas por Camilo. (Carlos Porto, 1991)
O Sangue é uma sátira de Fernando Gomes a partir do romance homónimo de
Camilo Castelo Branco. É uma crónica, tragicómica, caricatura da sociedade
portuense em meados do séc. XIX. O ―Dinheiro‖, a ―Felicidade‖, o ―Pecado‖ e a
―Expiação‖ - elementos essenciais e omnipresentes no universo Camiliano - desta
vez, com o rigor de uma atmosfera operática. [...](Isabel Segorbe, Programa de O
sangue)
[A vida trágica de Carlota a filha da engomadeira] é um dramalhão de fazer
chorar as pedras. Como é que Fernando Gomes transfere estas personagens
bacocas para a actualidade cínica e com valores morais mais...digamos, flexíveis?
Com humor. O texto é, evidentemente modernizado, aliás com muita
competência, pois consegue manter o sabor de antigamente. Mas, ao ridicularizar
a tragédia, mostrando a desgraça mais como resultado da parvoíce dos
interveninentes do que de um destino cruel, dá uma nova vida a estes fósseis e
inverte a moral subjacente ao complot. O humor quando inteligentemente
usado é o melhor arremesso contra o conformismo. (José Couto Nogueira,
2002. O grifo é nosso)
Como se vê, o humor é a maneira de Fernando Gomes trazer a narrativa camiliana
ao alcance e interesse do público do século XXI. Daí ele ter recebido em 1991 o ―Prêmio
Especial de Humor‖, do V Salão Nacional de Caricatura.
Cumpre agora verificar em que medida as relações intertextuais tornam a literatura
mais saborosa ao promover a ―incessante circulação de textos‖ e reler criticamente um
passado acrescentando-lhe novos significados.
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I. DIALOGAR PARA TECER
Tendo apresentado, em linhas gerais, o autor alvo desta tese, cumpre fundamentar
teoricamente o método de interpretação escolhido. Importa, para tanto, iniciar pela
exposição da diferença entre influência e intertextualidade a fim de que se estabeleçam a
relação entre semiótica e intertextualidade, as concepções deste termo e a opção por uma
teoria de carnavalização que embasa o diálogo entre os textos selecionados.
Márcia C. F. Gonçalves (A recusa da teoria da mímesis pelas teorias estéticas na
virada dos séculos XVIII e XIX e suas consequências‖ In Rodrigo Duarte e Virgínia
Figueiredo, 2001, p.293), ao tratar da recusa de alguns escritores pela mímesis, sugere
motivos ideológicos para o aparecimento de um novo modelo de discurso. Para a autora, da
busca do romântico pelo infinito teria surgido a necessidade de superar-se a cisão entre o
conceito de natureza e o conceito de liberdade. Assim, a tentativa de unir o sensível e o
inteligível resultaria na recusa da mímesis, entendida como a reprodução da natureza pela
arte, e tornaria a própria arte o modelo de produção estética. ―Essa era de fato a intenção
última dos primeiros românticos: unir a criatividade subjetiva – que tem como expressão
máxima a figura do artista – com a criatividade objetiva e natural de um mundo
reinterpretado poeticamente.‖ (Gonçalves, A recusa da teoria da mímesis pelas teorias
estéticas na virada dos séculos XVIII e XIX e suas consequências‖ In Rodrigo Duarte e
Virgínia Figueiredo, 2001, p. 294)
Os autores dos séculos XVIII e XIX preocuparam-se, portanto, em recriar a arte
com originalidade, intuição e liberdade, o que lhes conferia o status de ―gênio‖. Há que se
tomar a arte como base para a recriação estética, sem, no entanto, ―copiar‖ ou ―imitar‖
autores anteriores. Ser influenciado passou a ter caráter pejorativo, como se o artista
influente fosse uma autoridade maior e mais digna de prestígio, isso porque a noção de
influência traz em seu bojo ideias como preponderância e predomínio. No entanto, a recusa
da imitação de discursos anteriores e a busca pelo novo trazem a consciência de que tudo
parece já ter sido dito e escrito e muito bem-feito; restando, portanto, a refacção e
aprimoramento de grandes trabalhos.
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Já Horácio (65 a.C a 8 a. C.), em sua Epístola aos pisões, propõe a imitação como
recurso útil ao escritor que quer ombrear com os grandes.
Harás tuyo lo que antes era de todos, si no te quedas em torno a un círculo
mezquino y banal, si no te empeñas, intérprete servil, en traducir palabra por
palabra; ni si imitas a outro, te metes em compromiso tal que el decoro y las
condiciones de la obra impidan salir de el. (Horácio, 1981, p. 29)
Em outros termos, há que tomar como base um grande trabalho apropriando-se de seu
conteúdo e ampliando seu significado original como maneira de compor uma obra-prima.
Para recuperar o que já havia sido escrito sem, por isso, ser acusado de plágio ou
inferioridade, o autor moderno passou a retomar textos, não para imitá-los, mas para
atribuir-lhes novos significados; assim, rivaliza-se a influência e é possível suplantá-la. Na
contemporaneidade, a perspectiva predominante é reler o ortodoxo com consciência
crítico-irônica.
Embora a palavra ―intertextualidade‖ tenha sido cunhada como neologismo por
Kristeva em 19683, o expediente de dialogar com textos ou de apropriar-se de dados de
textos alheios para aprimorá-los é, como já se procurou mostrar, antigo na Literatura; no
entanto, é na contemporaneidade que esse procedimento tornou-se frequente.
O conceito de intertextualidade começou a ser elaborado sem que houvesse um
termo a conceituá-lo. A noção de ―dialogismo‖, concebida por Bakhtin (2003, p. 201) e
seu círculo constituiu o princípio do estudo. Trata-se de um discurso marcado por várias
vozes dissonantes, que representam diversas concepções e visões de mundo. Para o crítico
russo, isso decorre do fato de um texto inserir-se em determinado contexto cultural e
social. Assim, o texto absorve vários aspectos do meio e do momento em que se situa. À
fusão de várias vozes que vêm da formação, da erudição, da filosofia de vida, da
fundamentação política, do tempo do escritor é dado o nome de dialogismo. Nesse âmbito,
reside a intertextualidade, as leituras feitas por um autor transformadas e ampliadas. Pode
ocorrer, portanto, um diálogo entre posições sociais e ideológicas diferentes. O texto pode
ser resposta a outro texto compreendendo a relação do sujeito / autor e seu interlocutor, ou
do texto e seu contexto.
Essa concepção evidencia a importância do outro. ―Não há identidade discursiva
sem a presença do outro[...]‖(Barros, Fiorin (orgs.), 2003, p. 36). Juntas, as relações
3 O termo ―intertextualidade‖ é citado pela primeira vez no artigo ―O texto fechado‖, de 1966-7, publicado
em Introdução à semanálise, 1969.
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produzem a polifonia, uma ideia-chave para Bakhtin, que remete à combinação de vozes ou
discursos, e à heteroglossia, a habilidade linguística de um texto conter em si muitas vozes:
a do autor e outras. O discurso do outro não constitui apenas tema, mas ―pode entrar no
discurso e na sua construção sintática.‖ (Bakhtin, 2006, p. 150), integrá-lo enquanto
construção, elaboração é estabelecer a recepção ativa do discurso do outro. Trata-se, então,
de uma ―apreensão apreciativa ativa da enunciação de outrem, [já que] tudo o que pode ser
ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior.‖ (Bakhtin, 2006, p.
153)
O processo do diálogo inicia-se com a recolocação do discurso alheio no contexto
de comentário efetivo para que se desenvolva a réplica. Isso sugere a relevância da
significação social de alguns discursos em determinadas comunidades.
Para sintetizar, as tendências possíveis das relações entre discurso citado e contexto
narrativo, Bakhtin propõe a seguinte sequência:
1. Dogmatismo racionalista, caracterizado pelo estilo linear, impessoal e
monumental de transmitir a fala de outrem na Idade Média;
2. Dogmatismo racionalista, com seu estilo linear ainda mais pronunciado nos
séculos XVII e XVIII.
3. Individualismo realista e crítico, com seu estilo pictórico e sua tendência para
infiltrar o discurso citado com as réplicas e os comentários doautor, fim do século
XVIII e começo do XIX e, finalmente,
4. Individualismo relativista, com a diluição do contexto narrativo (época
contemporânea). (Bakhtin, 2006, p. 160)
O discurso de Fernando Gomes insere-se não apenas cronologicamente no quadro
acima, já que incorpora várias vozes, as dilui e transforma em novo texto.
Kristeva sintetiza esses princípios bakhtinianos e cria o termo ―intertextualidade‖,
que se relaciona à ideia de ―transposição‖, isto é, para que ocorra a passagem de um sistema
de significado para outro há que se criar nova articulação do enunciado. Essa concepção de
intertextualidade relaciona-se com a Semiótica já que a referência ao contexto histórico ou
social, ou a outro texto, ou ainda a transposição de um romance ou novela para o drama
pode ser considerada um signo, algo que se refere a um elemento que não está presente
integralmente, mas apenas como modelo ou sugestão. A intertextualidade constitui um
recurso abrangente, que extrapola a relação entre textos e se torna ferramenta primordial
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para o estudo do discurso. Para Kristeva, intertextualidade refere-se à ―produtividade‖ e
―permutação de textos‖. Sua teoria, no entanto, é vaga no que se refere aos seguintes
aspectos: a) o modo como o texto social se transforma em texto literário; b) a atenção dada
ao gênero literário; c) o fato de não trabalhar com as transformações de gêneros e formas
dentro do sistema literário; d) a falta de valorização do papel do leitor.
A intertextualidade kristeviana prescinde de citações ou marcas claras, a relação
entre textos pode ser anônima, impessoal, o que torna infinito o número de intertextos e
dificulta o limitar as referências relevantes para a definição de um caminho de
interpretação.
Barthes em 1981, escreve o ensaio ―Teoria do texto‖ em que parte da etimologia da
palavra ―texto‖ (―tecido‖) para formular sua concepção de intertextualidade. Para ele, o
texto seria uma trama de citações extraídas de inumeráveis centros de cultura (Allen, 2006,
p. 73), também, como considerava Kristeva, sem marcas ou intenções definidas. Assim, o
procedimento de relação entre discursos - enunciados de caráter verbal inseridos em uma
situação extra verbal, um contexto histórico e cultural - nem sempre seria consciente ou
intencional. A base de um texto não seria a realidade exterior (processo de mimese), mas
sempre um conjunto de palavras de um autor, publicado em um livro, um folheto, um
documento. Essa concepção tem por base a convicção de que tudo já foi dito e escrito e
cabe ao autor contemporâneo aprimorar essas ideias. A apreensão dos múltiplos
significados de um texto composto dessa forma deve ser inferida pelo leitor.
Esse crítico apresenta duas concepções de texto. O ―legível‖, que apresenta ―doxa‖,
isto é, um discurso estabelecido, estereotipado, constituído por mitos e ideologias
dominantes e conta com um leitor passivo e o texto ―escritível‖, dotado de múltiplos
significados (―paradoxa‖) que resistiriam aos dogmas e perturbariam crenças e códigos da
cultura sem deixar que um código domine o discurso. Caberia ao leitor inferir os intertextos
e relacioná-los ao livro, ainda que o escritor não tivesse em mente ou não conhecesse
determinado trabalho, a relação feita pelo leitor seria pertinente porque ele é o responsável
por definir as conexões da escritura, dando, assim, unidade à produção. Barthes propõe,
com isso, a ―morte do autor‖, isto é, o desvanecimento da figura do autor em sua obra; não
é necessário, por isso, que a crítica busque dados da biografia do autor para analisar uma
narrativa.
12
Riffaterre4 em 1978, com Semiótica da Poesia parece resolver o problema da
dispersão de intertextos pela concepção da ideia de ―matriz‖, uma palavra, sentença ou
trecho cuja expansão dá origem ao discurso. Assim, o princípio da escritura também não é
referencial (mimético), mas outro texto, constituído de ―hipogramas‖, isto é, frases e
sentenças estereotipadas, associadas umas às outras em relação à palavra central (matriz) à
qual as demais estariam subordinadas, o que equivale ao ―já-lido‖ ou ―já dito‖ de Barthes.
Para a interpretação abrangente de um texto, o leitor teria que dominar o
―socioleto‖, discurso normativo de uma sociedade e inferir o que causa estranhamento no
livro, esse estranhamento seria causado pela matriz do discurso. A intertextualidade
direcionaria a interpretação, seria um guia para uma leitura pertinente, mas, novamente, o
leitor é responsável por reconhecer a matriz. Riffaterre define o leitor a que se refere como
alguém maduro e experiente, capaz de captar, em uma leitura referencial, que unidades e
estruturas semióticas devem ser interpretadas para determinar o significado do texto.
Dentre os críticos americanos que estudam a intertextualidade, destacam-se Harold
Bloom e Nancy K. Miller. Aquele propõe, em Angústia da Influência (1973), que os
escritores reescrevem textos de seus precursores, aprimorando-os para defender seu papel
de escritor. Transforma-se, redireciona-se, reinterpreta-se o que já foi escrito para gerar a
ilusão de criar novas imagens e ideias. Sua teoria baseia-se nos mecanismos de defesa de
Freud para provar que um texto é um evento relacional e não uma substância independente
a ser analisada. A concepção de intertextualidade de Bloom propõe que, em uma época em
que tudo parece ter sido escrito de forma exemplar, as motivações para a escrita seriam
ditadas pela intenção de superar o precursor. O impulso da intertextualidade decorreria,
portanto, do desejo de reconhecimento de um escritor. As imagens de mundo reveladas em
textos literários seriam, assim, baseadas não na realidade exterior, mas na leitura que dela
fizeram os grandes escritores. Para ele, os contextos sociais e culturais não são intertextos
relevantes, mas a presença do autor o é, o que promove o reaparecimento da figura do
autor.
Miller5, em Arachnologies (1986), também defende a subjetividade do autor, seu
livro propõe-se a analisar a literatura de escritoras negras e o cruzamento entre o discurso
4 O pensamento de Rifaterre é sumamente apresentado em Allen, 2006, p. 115 - 132. 5 O pensamento de Miller é apresentado com maestria por Allen, 2006, p. 154 - 159.
13
dessas mulheres e o da sociedade machista dominante. Sua concepção de intertextualidade
relaciona-se ao plano social e político, ao materialismo cultural e ao criticismo historicista.
Nos críticos citados a noção de intertextualidade é abrangente e não prevê marcas
definidas, nem a intencionalidade do autor como guia para a interpretação de um texto.
The notion of intertextuality was formulated and developed by Kristeva (inspired
by Bakhtin). [...] In its most general and radical acceptation (Barthes and
Kristeva), the term designates the relations between any text (in the broad sense
of signifying matter) and the sum of knowledge, the potentially infinite network
of codes and signifying practices that allows it to have meaning. (Gerald Prince,
2003, p. 46)
Gerard Genette, entretanto, restringe o uso da palavra, “In its most restricted
acceptation (Genette), the term [intertextualidade] designates the relation(s) between one
text and other ones which are demonstrably present in it.” (Gerald Prince, 2003, p. 46. O
grifo é nosso.
Genette, em Palimpsests (1982), considera o trabalho literário como articulações,
seleções e combinações particulares de um sistema a ponto de modificar esse sistema. Esse
crítico cunha o termo ―transtextualidade‖ para referir-se à transcendência de um texto e
transformação em outros. Ele divide a transtextualidade em cinco tipos diferentes:
1. intertextualidade, isto é, a copresença entre vários textos de maneira explícita por
citação. Genette considera que se a referência não for explícita trata-se de casos de plágio
ou alusão, isto é, somente uma pressuposição da relação com outro texto;
2. paratextualidade, referências ao texto que não façam parte de seu corpus, como títulos,
subtítulos, prefácios, posfácios, notas, epígrafes, ilustrações, discussões autorais, editoriais,
críticas, comentários, etc;
3. metatextualidade, alusão a um texto para explicá-lo ou comentar seu processo de
composição;
4. arquitextualidade, relação inintencional, de natureza taxionômica entre textos de tipos de
discurso, modos de enunciação, gêneros literários semelhantes.
5. hipertextualidade, relação intencional e declarada entre dois textos. O hipertexto é um
texto literário que deriva inteiramente de outro texto pré-existente, um hipertexto. Não se
trata de um comentário, nem de um metatexto, mas de um novo trabalho que se faz como
14
releitura de um escrito de outro autor, como é o caso dos textos selecionados de Fernando
Gomes.
O conceito de hipertextualidade norteia a tese proposta em Palimpsests. Para
desenvolvê-la, Genette propõe dois processos para a hipertextualidade: por imitação, como
ocorre na caricatura e no pastiche, e por transposição, um meio mais elaborado de absorver
e modificar um texto. Nos primeiros capítulos do referido livro, o crítico explica a diferença
entre um texto composto por imitação e por transposição, analisando as peculiaridades das
formas caricatura, pastiche, paródia e burlesco.
A hipertextualidade consiste em um meio de reativar livros ou gêneros, expediente
típico da Pós-Modernidade, já que se trata de um período de questionamento e
ressignificação do passado. Com esse intuito, são feitas alterações no modelo, as
transposições formais criam novos sentidos para o hipotexto, e as temáticas tendem a gerar
mudanças mais substanciais no paradigma.
A ―motivação‖ é um mecanismo que merece ser citado, pois associa-se à introdução
de um motivo que o hipotexto oferecia, mas não desenvolveu. Um meio que possibilita a
―motivação‖ é a inserção de uma personagem feminina que exponha sua mundividência, o
que ocorre, por exemplo, na inserção de Rosa na peça Amor (também) de perdição. Já a
―desmotivação‖ constitui-se pela supressão de um motivo que constava do paradigma. Cabe
complementar que a ―transmotivação‖, acima relacionada a uma forma de adição +
supressão, possibilita a manipulação de temas e a internalização de uma causa externa, isto
é, ao substituir um motivo por outro, o escritor elege motivos psicológicos para tomar o
lugar de assuntos políticos, sociais, etc.
O mérito da intertextualidade (para Genette, hipertextualidade) é atribuir a trabalhos
antigos novos significados críticos; além disso, o hipertexto é mais vantajoso que o
metatexto porque tem a liberdade de ampliar o hipotexto, sem ser alterado por ele. É
importante frisar que em todo hipertexto existe uma ambiguidade porque ele pode ser lido
como um trabalho independente ou relacionado ao hipotexto. No entanto, a leitura sem o
cotejo com o paradigma não será capaz de exaurir a função do hipertexto. Dessa forma, é
possível afirmar que o hipertexto convida à leitura relacional.
Esse procedimento é preconizado por Borges, em ―Pierre Menard, autor do Quixote‖.
O conto sugere que a mera cópia de um texto feita em época diferente da que foi
15
originalmente elaborado, isto é, narrar a mesma verdade em contexto histórico diferente,
pode ampliar o significado de um paradigma.
O trabalho do crítico, ao utilizar como método de interpretação a intertextualidade ou,
em âmbito mais restrito, a hipertextualidade, é estabelecer se o hipertexto consegue superar
o hipotexto, ampliando-lhe o significado, isto é, se ocorre uma ―estilização‖ no sentido de
―uma transformação do ou no conteúdo do modelo, sem negá-lo ou opor-se a ele [papel da
paródia], trazendo-lhe à tona o que está implícito.‖ (Corradin, 1998, p. 36). Caso o
hipertexto apenas repita o significado do hipotexto trata-se de paráfrase.
[...] Literature is a perpetual state of transfusion, a transtextual perfusion,
constantly present to itself in its totally and as a totally all of whose
authors are but one and all its books are one vast, one infinite Book.
Hypertextuality is only one name for that ceaseless circulation of texts
without which literature would not be worth one hour of exertion.
(Genette, 1997, p. 400)
Entre os estudiosos do tema, interessa, para o objeto desta tese, verificar
minuciosamente a teoria da ―Carnavalização‖, proposta por Bakhtin em A cultura popular
na Idade Média e no Renascimento. Importa, assim, iniciar pela apresentação de elementos-
chave para a compreensão do pensamento bakhtiniano.
O crítico russo parte do conceito de dialogismo para expor sua concepção de texto.
Mikhail Bakhtin propõe que se deva levar em consideração o contexto sócio-histórico em
que se insere o texto, já que este é objeto de uma cultura. Assim, as vozes sociais interagem
no espaço do texto. Dessa forma, o cruzamento de posições ideológicas é fundamental para
refutar-se uma verdade única, absoluta e incontestável.
Assim, todo enunciado é delimitado pela alternância dos sujeitos e não se ―encontra
pronto e acabado numa determinada obra, num determinado texto; o sentido e as
particularidades vão sendo construídos ao longo do conjunto das obras, indissociavelmente
implicados em outras noções também paulatinamente construídas.‖ (Brait, 2007, p. 65)
Com base nesse pressuposto, o
diálogo do homem com o homem‖ [é] [...] um documento sociológico sumamente
interessante. A sensação excepcionalmente aguda do outro indivíduo como outro
e do seu eu como um eu nu pressupõe que todas [...] as definições [...] que
16
revestem o eu e o outro de corpo concreto-social todas as variedades dessas
definições perderam a sua autoridade e a sua força formativa. (Bakhtin, 2003, p.
201)
A palavra só é viva se ouvida e respondida, dialogada. Nesse sentido, o texto é mero
fruto de vivência subjetiva, mas do convívio social. Da mesma forma,
―vivências psíquicas‖ do falante, cuja expressão tendemos a ver [...] [na]
enunciação são de fato apenas uma interpretação unilateral, simplificada e
cientificamente incorreta de um fenômeno social mais complexo. É uma espécie
de ―projeção‖ através da qual investimos (projetamos) na ―alma individual‖ um
complexo conjunto de interrelações sociais. (Bakhtin, 2004, p. 79)
Para Bakhtin, não se pode, portanto, considerar o psiquismo humano como refratário à
história, o inconsciente é, outrossim, uma ―elaboração ideológica do ser‖ (Bakhtin, 2004, p.
87), o que se opõe ao conceito de Freud, que compara o conteúdo do inconsciente com a
presença de uma população aborígene na mente. Se existem no ser humano
formações mentais herdadas – algo análogo ao instinto nos animais -, elas
constituem o núcleo do inconsciente. Depois, junta-se a elas o que foi descartado
durante o desenvolvimento da infância como sendo inútil; e isso não precisa
diferir, em sua natureza, daquilo que é herdado. (Freud, 2006, p. 200. Vol. XIV)
Assim, um texto sugere os processos subjetivos do receptor, os quais não ocorrem na
alma individual, mas no grupo social, e a linguagem, o estilo, a seleção de recursos
estilísticos e o gênero refletem as finalidades do enunciado e tem uma significação social.
Gomes relê Camilo talvez porque se identifique com um escritor que conhecia o povo
e a alma portugueses. O dramaturgo revela conhecer a cultura popular folclórica ao colher e
aproveitar provérbios, insultos, juramentos e crenças. Pelo riso, ele incita o senso crítico e
põe em xeque tabus, regras e privilégios. Seu humor é festivo e contrário às ideias de
superioridade. Para isso, destitui padres e freiras de sua aura sacra, revela a bondade e
pureza de algumas prostitutas, evidencia a jovialidade e alegria de bêbados e mendigos.
Juramentos adquirem caráter cômico. O rebaixamento da linguagem pontualmente
localizados em seu texto remete à sexualidade (―baixo material e corporal‖) e é um meio de
liberar-se do ponto de vista dominante sobre o mundo, de todas as convenções e
elementos banais e habituais, comumente admitidos; permite olhar o universo
com novos olhos, compreender até que ponto é relativo tudo o que existe, e
portanto permite compreender a possibilidade de uma ordem totalmente diferente
do mundo. (Bakhtin, 2010, p. 30)
Já Camilo Castelo Branco apresenta a aguda consciência do romântico de estar
isolado, de ser diferente. Por isso, em seu riso sobrepõe-se o sarcasmo e a ironia à diversão
17
e à alegria. Trata-se de um humor destrutivo que se volta contra a realidade exterior com
intuito de mostrar-se superior e vingar-se do que discorda.
No riso gomesiano, por outro lado, não se tem a pretensão de destruir a realidade, mas
de abrir possibilidades de renovação. Parece a expressão do riso popular, não-oficial que
põe em xeque o que é temido e instituído como verdade inquestionável. ―Esse [riso] liberta
não apenas da censura exterior, mas antes de mais nada do grande censor interior, do medo
do sagrado, da interdição autoritária, do passado‖ (Bakhtin, 2010, p. 81) Pelas analogias e
trocadilhos, o sério adquire tom cômico e a verdade oficial dá espaço para nova consciência
individual e histórica. Inverte-se ou parodia-se o que é considerado convencional e lícito.
O recurso do humor é valioso porque atrai o povo, o calão, o vocabulário popular, os
juramentos, os tipos populares promovem uma atmosfera em que todos têm os mesmos
direitos, um ambiente familiar, licencioso e franco. O rebaixamento serve para renovar.
Daí povoarem os textos gomesianos mendigos, prostitutas, taverneiros, bêbados.
Também o vinho, símbolo de libertação, é útil para comunicar a verdade sem
mascaramento. ―O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-
o e completa-o‖. (Bakhtin, 2010, p. 105). Essa maneira de lidar com a verdade instituída é
denominada de ―carnavalização‖, já que ―o carnaval torna-se [...] o símbolo e a encarnação
da verdadeira festa popular e pública, totalmente independente da Igreja e do Estado (mas
tolerada pelos últimos)‖ (Bakhtin, 2010, p. 191). Nessa festividade, representam-se os
símbolos do poder (rei, rainha, a coroação) de forma lúdica, como se o povo fosse coroado.
A hierarquia é abolida, as classes sociais e as idades igualam-se, o que promove a
relativização do poder e da verdade dominantes.
Romper com a seriedade e rir propicia liberdade para a elaboração de ideias
audaciosas, lúcidas, críticas. O objeto do riso, o ridículo, é ultrapassado, revelado em sua
estupidez e pretensão risíveis.
Em Gomes, o passado, tão pesado para o português, a melancolia do fado e as
crendices vazias de sentido são revisitados como aspectos agonizantes da realidade. Nesse
sentido, o resgate da linguagem popular de forma inovadora e crítica corresponde à
renovação do que é antigo e dogmático. Também o atrevimento e a impudência, bem como
os apelidos relacionados às atitudes ou anomalias das personagens colaboram para o clima
carnavalesco, festivo, engraçado, grotesco.
18
SERES DUAIS
II. 1 Da mulher portuguesa
Contrariando ainda que sutil e ironicamente como o fará em todo o decorrer de sua
carreira a ideia dominante de que a literatura de cordel, por não se comprometer com
nenhuma ideologia política, é uma literatura menor, Camilo inicia sua carreira literária pelo
cordel como a afirmar que não a erudição não é único quesito para se produzir uma obra de
arte mais livre e original.
Essa estréia não é apenas uma opção irreverente, mas também um meio de
conseguir publicar um livro em um país cujas editoras davam preferência a traduções de
textos estrangeiros para as quais tinham público garantido. Além disso, com 24 anos,
Camilo mal podia sustentar-se e salvou-se de uma bancarrota com a vendagem do folheto.
(Cláudio Giordano, apresentação a Camilo, 1991, p. XII) Se a marginalidade é condição de
estímulo do ato criador, o novelista não só a apresenta como também tem consciência desse
processo de compor uma obra livre de intenções sociais ou didáticas, o que será
comprovado adiante.
A condição essencial para a ocorrência do pensamento produtivo é, sempre, um
estado de desequilíbrio do indivíduo, seja desequilíbrio interior, como seria o
caso de sentimentos incompatíveis, seja na sua relação com o ambiente. [...] o
marginal tende a estar colocado em situação de conflito e a perceber as
incoerências de padrões que os indivíduos estáveis aceitam sem discutir. (Leite,
2002, p. 160 – 161)
A literatura de cordel, já no século XIX, era menosprezada pela elite cultural como
uma literatura menor, quer porque impressa em papel ordinário e sem formatação uniforme,
quer pela veiculação: venda itinerante por cegos que viviam de caridade; volanteiros, ou
vendedores ambulantes. No entanto, os folhetos de cordel são considerados literatura
popular não pela classe que a consumia, mas devido à grande escala em que eram vendidos,
afinal a classe baixa além de não ter poder aquisitivo para investir em literatura, era quase
completamente analfabeta. Em 1864, a percentagem de analfabetismo era de 88,3% e antes
disso não há dados estatísticos. (Serrão, 1983, p. 27)
A multiplicidade dos temas e a qualidade muito variável do tratamento dos textos
de cordel permitem presumir que se tratava de um público leitor heterogêneo,
19
com gostos, interesses culturais e poder econômico muito distintos, constituído
tanto por gentes ricas e instruídas como por gentes das classes desfavorecidas, da
cidade como do campo. (Nogueira, 2004, p. 36)
A primeira narrativa camiliana merece atenção uma vez que, sob a máscara de uma
preocupação didático-pedagógica, e de um tema de cunho sensacionalista, Camilo, grande
conhecedor da alma portuguesa e do que agrada o público-leitor, compõe um best-seller6
que contém germes do que será o grande nome da novela passional portuguesa. Some-se a
isso o valor documental desse texto que revela dados importantes acerca do comportamento
social e da mentalidade portuguesa de então.
Já na capa da primeira edição, algumas sugestões de que se enuncia mais do que o
que se declara são insinuadas. De início, salta aos olhos a aparente incoerência entre o título
da narrativa Maria, não me mates que sou tua Mãe! Meditação sobre o espantoso crime
Acontecido em Lisboa: uma filha que mata e despedaça sua mãe, mandada imprimir por
um mendigo, que foi lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmolas pelas portas.
Oferecida aos pais de famílias, e àqueles que acreditam em Deus e a ilustração de um
monge ajoelhado com a mão no coração. Os folhetins costumavam estabelecer um conjunto
coeso entre o conteúdo e a imagem da capa para sintetizar a mensagem a ser veiculada e
aguçar a curiosidade do leitor. O folheto de Camilo, no entanto, não trata, em nenhum
momento, de figuras religiosas a não ser quando, no título, refere-se ao pretenso editor do
texto. Sugere-se, assim, a importância da religiosidade como chamariz para o público da
época.
A alusão ao mendigo apresenta, ainda, índole polêmica e provocativa. Essa suposta
personagem marginal (o mendigo)7 quer divulgar um crime hediondo, ainda que para isso
precise usar as esmolas com que vive, depois de ter sido expulso de um convento. Se, de
um lado, há a valorização do caráter de um ser posto à margem da sociedade, de outro, há
uma crítica mais ou menos indireta aos dirigentes de conventos que relegariam pessoas de
6 Luís Sobreira apresentou no IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura
Comparada o trabalho “UMA IMAGEM DO CAMPO LITERÁRIO PORTUGUÊS NO PERÍODO
ROMÂNTICO ATRAVÉS DOS BEST-SELLERS PRODUZIDOS ENTRE 1840 E 1860‖ em que
aponta o título de Camilo como o quinto Best-seller da época.
www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeI/UMA%20IMAGEM%20DO%20CAMPO%20LITERARIO%20
PORTUGUES.pdf 7 Importa acentuar que também o cordel é considerado literatura marginal.
20
boa personalidade à mendicância. Cabe salientar que ao criar um mendigo autor8 e editor de
um livro, Camilo parece estar retratando irônica e zombeteiramente a condição miserável
do escritor ou profissional das letras em Portugal.
Pela frase: ―Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa‖, a narrativa
se propõe a levar a pensar, convida a uma análise sobre os valores que regiam aquela
sociedade. Considerando-se que meditar significa pensar sobre; ponderar; refletir; estudar;
examinar com prudência, sensatez, circunspecção, a frase corrobora a suposta intenção
didática da narrativa sugerida pela exortação aos leitores que aprendam a ―educar melhor
seus filhos‖ (Branco, 1991, p. 33) e que façam seus filhos decorarem a história. (Branco,
1991, p. 6)
Valendo-se da função apelativa; da adjetivação sugestiva, pela qual caracteriza a
moça criminosa e o rapaz sedutor, - como exporemos mais adiante - e da hipérbole, o autor,
ao mesmo tempo em que cumpre os ditames da forma escolhida, atendendo às expectativas
dos leitores, sugere ironicamente sua visão de mundo.
O título da terceira edição passa a ser Matricídio Sem Exemplo. Uma filha que
matou e esquartejou sua própria mãe, Matilde do Rosário da Luz, em Lisboa - na Travessa
das Freiras, n.º 17. Às almas sensíveis - aos pais de família - e aos bons Cristãos oferece-
se em meditação, a descrição do atentado praticado pela perversa matricida Maria José -
seguido do interrogatório da acusada, e da sentença do tribunal do1º distrito, que a
condenou a morrer n'uma forca, no campo de Santa Clara em Lisboa. A incongruência
entre a ação criminal e o nome da rua onde ocorre o delito sugere um embate entre
aparência (nome religioso) e essência (ação criminal) que será preocupação medular na
obra camiliana. Já em seu livro de estréia, Camilo sugere que nomes ou títulos não
correspondem a valores ou observância de normas. Insinuando-se, portanto, que nem
sempre o que se expõe corresponde ao que se é na essência. Essa contradição se refaz de
diversas maneiras na narrativa, entre elas, na relação entre o nome das personagens e seu
papel, em ambas as edições.
A história, nas duas versões, inicia-se apresentando um pai de família morrendo, ―farto de
trabalhar para sustentar com o suor de seu rosto a honra de sua família‖ (Branco, 1991,
8 ―O que escreveu estas linhas com o seu pouco saber talvez vos terá ido à porta mendigar as migalhas da
vossa mesa‖ (Branco, 1991, p. 6)
21
p.7). Essa personagem chama-se Agostinho José, que significa, respectivamente, ―o maior
do império‖, ―consagrado, santo, sublime, venerado‖ (Guérios, 1994, p. 77), e ―Deus dê
aumento‖ ou Deus aumente (com outro filho) (Guérios, 1994, p. 200) ou, na origem
egípcia, "Descobridor das coisas ocultas"
(<http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_(filho_de_Jacob)>)
Além do caráter majestoso e explorador sugeridos pelo prenome, há o cunho
religioso, que alude ao padroeiro das famílias. A alcunha parece uma grande ironia, por
duas razões:o pater familias sucumbe ao trabalho e morre sem cumprir a função de educar
e sustentar sua família, atribuindo à mulher a obrigação de velar pela honra das filhas sob
pena de ser responsável pela condenação de sua alma, se a cláusula não fosse cumprida.
Além disso alude-se ao fato de que Deus lhe daria como graça ―outro filho‖.
A sociedade daquela época era patriarcal e machista, e o homem, considerado mais
forte e ajuizado e, por isso, seu dever era zelar pela mulher, no caso de Agostinho, três
mulheres, entretanto, ele delega à sua mulher o encargo de prover material e moralmente o
sustento daquela família.
O nome Agostinho José remete ainda a Santo Agostinho, primeiro filósofo do
Cristianismo. Preocupado com problemas práticos e morais, que considera derivarem do
fato de Deus conceder a liberdade aos homens, o filósofo propõe que a glória divina está
em extrair o bem do mal, em vez de proibir o mal e que, portanto, caberia ao homem optar
por salvar-se ou perder-se. A ideia do livre arbítrio é, assim, sugerida. Deus não criou nem
propagou o mal, mas deu liberdade ao homem para decidir como dirigir sua vida. Outro
conceito importante introduzido por Santo Agostinho, e relevante para a leitura da
narrativa, é a ideia da intimidade.
[...] A alma é, em última análise, a grande descoberta de Agostinho, a alma
entendida como intimidade. [...] o poder entrar em si mesmo é o que dá a
condição de espiritual, não a não-materialidade. (Julián Marías, 1999/2000)
Na terceira edição desse texto camiliano, o preceito agostiniano parece ser
retomado, mas, admiravelmente, invertido, já que, ao adentrar-se, o homem em vez de
deparar-se com Deus, descobre ―monstros interiores‖.
22
O amor, tema que em Camilo costuma configurar o ponto crítico do enredo, já que
tudo gira em torno da proibição dos pais às relações puras e desinteressadas de seus filhos
em prol de um casamento conveniente, em Maria, não me mates que sou tua mãe, toma um
rumo diferente. Matilde ama incondicional e desinteressadamente sua filha, e, em nome
desse amor, permite que a moça eleja um marido, sem preocupar-se com fortuna ou nome,
a única condição que impõe é que o rapaz seja ―amigo do trabalho‖ (Branco, 1991, p. 9).
Enfocando a classe popular, Camilo revela que aí duas situações proibidas no meio
burguês são possíveis: primeira, a mãe tornar-se tutora das filhas, sem a necessidade da
imposição de uma figura masculina que vele pelo patrimônio familiar; segunda, a filha não
possuir um dote e, por isso, o casamento conveniente não ser inevitável.
Autorizada a eleger seu namorado, a filha envolve-se com um rapaz sem escrúpulos
e, movida pela paixão e luxúria, perde-se na desgraça e condenação. Maria José tem o livre
arbítrio e escolhe romper com as regras morais de seu meio. Ironicamente, a proposta de
amar a filha acima dos interesses financeiros e incentivá-la a unir-se a um homem por amor
leva Matilde à morte. Essa contradição é uma forma de se propagarem os ideais burgueses
como coerentes e acertados.
O nome dessa mulher que ousa cumprir o papel masculino de prover e educar a
família de maneira diversa à institucionalizada significa ―guerreira poderosa‖ e remete9 a
duas personagens importantes, uma fictícia e outra histórica.
Na Divina Comédia, Matilde é responsável por imergir o poeta nos rios do Paraíso
para que então ele saia purificado e digno de Beatriz. De acordo com os comentadores do
trabalho de Dante (http, p.//www.ebooksbrasil.org/eLibris/purgatorio.html), Matilde é
inspirada na Condessa de Canossa (1046 -1115).
Interessante notar que essa personagem histórica é órfã de pai, e, com a morte de
sua mãe e padrasto, aos 30 anos, torna-se responsável pelo grande patrimônio de sua
família, papel de liderança que, guardadas as devidas proporções, também a protagonista
camiliana vai cumprir. Junto ao papa Gregório VII, Matilde representou, na época, um
desafio aos nobres. O pontífice limita o poder de leigos empossarem clérigos em troca de
fidelidade e frutos econômicos das paróquias, ao que o rei Henrique IV reage por
9 Prof. Rosário Farâni Mansur Guérios menciona a relação entre o nome Matilde e a personagem de Dante ,
Guérios, 1994, p. 230.
23
considerar um direito da coroa. Gregório VII excomunga o rei e proíbe que lhe obedeçam.
Henrique IV pede perdão; no entanto, ao ser absolvido, volta-se novamente contra o poder
papal e tem a seu lado o apoio dos nobres. Matilde torna-se a única nobre de renome a
apoiar o papa. Atraindo preconceitos por ser uma mulher sozinha, sem marido, a condessa
encabeçou e comandou batalhas, mas acabou exonerada de suas funções, e com seus bens
confiscados.
Cotejando-se a figura histórica à personagem camiliana, percebe-se que ambas se
empenham em propagar os valores cristãos10
e têm destinos trágicos. Essa sina poderia
indicar a inutilidade da religiosidade em uma sociedade comandada por ideais materialistas.
Nesse caso, a intenção didático-pedagógica, apresentada na capa do livro, se desfaria em
amargo pessimismo.
O caráter religioso da mãe dedicada, retratada como ―virtuosa mulher‖,―desgraçada
viúva‖, ―infeliz mãe‖, ―atribulada viúva cheia de razão‖, ―desgraçada velha‖, ―boa mulher‖,
―boa mãe‖, ―infeliz e atribulada viúva e mãe de todas a mais desgraçada‖, ―infeliz
desgraçada velha‖, ―pobre mulher‖ (Branco, 1991, p. 7, 8, 9, 10, 11, 13, 15, 17, 20, 23, (referem-
se à 1ª. edição), 36 - acréscimo da 3ª. edição), e a perseverança no cumprimento da
incumbência que o marido lhe atribui ao morrer parecem fazer de Matilde uma ―guerreira
poderosa‖, uma mártir cristã, que dá a vida por seus valores, já que padece ao ousar
contrariar as regras de uma sociedade comandada pela visão masculina.
Maria José seria desonrada se não se unisse a um homem pelo casamento, a
liberdade sexual só é concedida ao homem. Assim, ao perceber que a relação de Maria José
com o rapaz por ela eleito só trará a desonra de sua filha, já que este não parece pretender
casar-se com a moça, Matilde ameaça queixar-se ao administrador do Conselho para que os
prendam no Limoeiro como filha desobediente e rapaz sedutor. No entanto, sua ousadia em
ameaçar um homem será punida, pois ao saber das intenções de Matilde, o moço impõe à
namorada que mate a mãe.
Maria (José), isto é ―senhora‖, ―excelsa, sublime‖, ―predileta de Javé‖ (Guérios,
1994, p.227) antes de conhecer o malfeitor que a levou ao crime, era educada na religião e
nos bons costumes, portava-se virtuosamente, trabalhava e obedecia à mãe, ―parecia que
amava sua mãe com toda a sua alma e coração ‖, era admirada pela vizinhança ―porque já
10 O caráter religioso da protagonista camiliana também é sugerido por seu sobrenome ―Rosário da Luz‖.
24
tinha 29 anos, e ainda não havia nota ruim que se lhe pusesse, e ninguém se atrevia a pôr
nela a boca. (Branco, 1991, p. 8). Nova proposta irônica se insinua: a inutilidade de uma
educação esmerada em uma sociedade corrompida.
A caracterização de Maria José e do namorado diferem um pouco entre a 1ª. e 3ª.
edições. Em ambas, no entanto, a alteração no caráter da moça ocorre ao passar a conviver
com o rapaz.
―A rapariga escutou-lhe as palavras e ficou entendendo que o José Maria não era
mau rapaz, e que a não buscava para maus fins.‖ Essa visão denota inocência e ingenuidade
diante de um moço que ―já tinha sido acusado como vadio e ratoneiro, e era bem conhecido
pelos beleguins da administração.‖ (Branco, 1991, p. 14). Maria José configura a antítese
do rapaz, apresenta ―fraca resistência‖ diante do ―brutal apetite‖ do namorado (Branco,
1991, p. 10); por conseguinte, sua ingenuidade acaba com o convívio com o rapaz e dá
lugar à devassidão e astúcia.
Como se pretende provar, cada edição trata a história por um ângulo, a primeira, à
Rousseau, apresenta uma Maria naturalmente boa, corrompida pelo convívio em sociedade;
a segunda, à Dr. Jekyll and Mr. Hyde, retrata a maldade interiorizada em Maria José e o
rapaz como a outra face da moça.
A primeira edição corrobora uma análise social do problema. Um narrador em 3ª.
pessoa, onisciente, apresenta os fatos, evidenciando seu ponto de vista sobre o assunto.
Exagerando nas exclamações, nas adjetivações subjetivas e nas expressões de cunho
religioso, esse narrador expõe os acontecimentos acentuando seu horror perante uma
sociedade corrompida: ―Deus não quis tocar-lhe [à matricida] o coração porque Ele quis ver
até que ponto poderiam chegar os crimes no século de desmoralização e pecado em que
vivemos.‖ (Branco, 1991, p. 14). Ironicamente, Deus é o culpado pelo crime, já que dá ao
homem o livre arbítrio.
Matilde revela, em discurso direto, sua indignação sobre a mudança de
comportamento de sua filha:
- Ai, minha filha – respondeu a mãe – que linguagem é hoje a tua tão diferente
daquela que era antes de este maldito aqui entrar. Ai, minha filha, que estás
perdida de todo! Oh meu marido! perdoa-me, perdoa-me: bem vês que eu não fui
culpada. (Branco, 1991, p. 12)
25
A mãe sofre e adverte a filha acerca do perigo que representam os homens em geral
e José Maria, em particular:
- Minha filha, eu muitas vezes te disse o que eram os homens, não que eu tivesse
queixa do meu, porque teu pai era honrado e virtuoso como aqueles que o são;
mas porque os rapazes de hoje em dia não são o que eram os dalgum dia.[...] Não
te pude valer. Deus Nosso Senhor me perdoe – se eu não tive forças de te
castigar, porque eu tinha-te muito amor, e nunca me capacitei deveras que
houvesse um tredo tão grande como o José Maria. Mas já agora que não tem
remédio, minha filha, filha do meu coração, em bom pano cai uma nódoa. Minha
filha, por alma de teu pai que está na presença de Deus a pedir o teu perdão; pelas
cinco chagas te peço que deixes esse homem, que há de acabar de te lançar na
perdição, onde não acharás meios de te salvar da justiça de Deus, e das vergonhas
do mundo. (Branco, 1991, p. 12)
Nessa fala de Matilde, é possível perceber a concepção de uma mulher que se
considera fraca por agir pelos sentimentos e por ser incapaz de castigar a filha
desobediente. Além disso, revela-se sua ingenuidade por não acreditar que pudesse haver
um ―tredo‖, ou um traiçoeiro, como aquele rapaz, permitindo-lhe a entrada em casa.
Insinua-se, assim, a inaptidão de uma mulher para prover a educação da família sem a ajuda
de um homem. Daí ela acreditar no auxílio do marido, que, no além, estaria suprindo sua
culpa ao interceder pela salvação da filha.
José Maria é retratado de maneira caricatural como um lobo ou um lobisomem, e
ainda assim as mulheres não desconfiam de seu caráter brutal:
[...] Era um rapaz de mediana estatura, ao que parecia de vinte e quatro anos.
Tinha os olhos negros, e quase negras as faces. Os cabelos compridos, com a
barba cerrada, pouco lhe deixavam ver das feições. Tinha a testa franzida
continuamente como um matador que sente um cancro de remorso a tragar-lhe as
entranhas. (Branco, 1991, p. 16 e 17)
Convivendo com José Maria, um ―enganador‖, que tinha ―o demônio no coração e
a impostura na boca‖, ―brutal apetite‖, era ―pérfido homem‖, ―traidor‖, ―vadio‖,
―ratoneiro‖e ―infame‖ (Branco, 1991, p. 10 (cinco primeiras citações), 14 e 15), Maria
José passa a ser moça ―sem alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do inferno, [...]
ou com alma de tigre‖ (Branco, 1991, p. 5 e 6). Considerada ―atentada pelo demônio‖
(Branco, 1991, p. 15), ―perversa filha‖, ―dissoluta‖, ―prostituta‖, ―concubina‖, ―malvada‖,
―maldita e condenada‖ (Branco, 1991, p. 16, 17 ( três citações iniciais), 20 – duas últimas
citações). Juntos, eles desdenham as regras sociais11
, revelam gosto por sexo – ―Sabe o que
mais? [diz Maria José] Se casar, casou; se não casar é o mesmo: eu gosto e ele gosta...‖
11 ―Sabe o que mais? Se casar, casou; se não casar é o mesmo eu gosto e ele gosta...‖11 (Branco, 1991, p. 6)
26
(Branco, 1991, p. 14) - e desonestidade (Maria José rouba as economias da mãe para dar ao
amante).
A ironia está em atribuir o nome dos pais de Jesus, figuras castas e sublimes, a
pessoas sórdidas e inescrupulosas. Refaz-se, assim, o embate entre nome e essência,
sugerindo-se, por extensão, que há de se investigar as qualidades de uma pessoa em vez de
julgar-lhe por aquilo que aparenta.
Sem saber como impedir a corrupção total de sua filha, Matilde ameaça apelar a um
poder superior, masculino:
– Pois então sabe que se eu até aqui te tratei como mãe carinhosa, de hoje em
diante hei de ser mãe como deve ser. Se de hora em diante aqui tornar a ver José
Maria hei de queixar-me à administração do conselho que esse homem vem a
minha casa contra a minha vontade, e tu e mais ele haveis de ser atrancados no
Limoeiro, tu como filha desobediente, e ele como um sedutor de uma rapariga
que se deixou ir de suas palavras. (Branco, 1991, p. 13)
No entanto, sua insignificância diante do poder de um homem evidencia-se pela
reação de José Maria à ameaça. O rapaz impõe à Maria José que mate sua mãe,
considerando que a presença de Matilde e suas ameaças são desgraças a serem evitadas: ―–
Maria, ou tu hás de dar cabo dessa maldita velha o mais breve, ou então eu deixo-te por
uma vez, e não quero saber de desgraças.‖ (Branco, 1991, p. 17) Maria José titubeia,
hesita, declara ter medo de matar, ter dó da mãe e receio de ser ouvida. Por fim, sugere que
ele se case com ela para que o problema acabe. José Maria declara que a moça é ―uma
estúpida‖ e propõe que ela cometa o crime durante o dia, quando a mestra e as meninas que
moram em cima fazem barulho, impedindo que se escute alguma coisa. Maria,
―desesperada e aflita com os feios modos e destempero do seu amante‖ (Branco, 1991, p.
18) , a moça descompõe a mãe e, em seguida, sai para encontrar o namorado.
A dor de Matilde diante da situação exaspera-se quando se depara com o roubo do
dinheiro reservado para mandar rezar missas por sua alma e a de seu marido. A simonia e
as consequências trágicas sobre fiéis simples e ingênuos é, assim, sugerida no livro. Essa
mulher, em sua inocência, não acredita que ela e o marido possam ser salvos sem que
missas sejam rezadas por suas almas. A religião, que deveria trazer alívio aos fiéis, acentua
sua dor. A ironia camiliana torna-se a revelar ainda que em forma embrionária.
27
O papel da mulher, subalterno ao masculino, reitera-se pelo sentimento de
impotência de Maria diante de situações com as quais não sabe lidar. Os gritos de Matilde
fazem a filha recorrer ao regedor e, no seguinte, submeter-se a vontade do namorado.
A dissimulação é a estratégia que resta à mulher. Assim, traiçoeiramente, sob
pretexto de procurar parasitas em sua cabeça, a filha esfaqueia a mãe no lado direito do
peito e, depois de esta, em discurso direto, lamentar-se por morrer sem ter-se confessado,
acerta-a no pescoço, impedindo-a de alcançar uma cruz à cabeceira da cama.
Contra a ação castradora, uma facada no lado direito, símbolo do masculino, da
ordem, da retidão, a razão, a tradição (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 343), e outra no
pescoço, ―sinal da vida e da alma.‖ (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 715). Assim, Maria
subjuga o que há de racional e espiritual em sua mãe. Depois, a esquarteja, alegando que,
dessa forma, seria mais fácil carregar o corpo e livrar-se dele. Interessante notar que a
cabeça é mutilada e enterrada na própria casa para, mais tarde, ser eliminada. Maria enterra
o tronco da mãe próximo às obras de Santa Engrácia; as pernas e braços na travessa das
Mônicas.
As figuras que dão nome aos locais onde os restos são enterrados enunciam a
presença de um discurso intertextual que corrobora a visão de mundo do autor sugerida até
aqui. O tronco, isto é, a parte central do corpo humano que reúne vísceras e órgãos vitais
como os pulmões e o coração é associado a Engrácia. Essa mulher foi uma virgem lusitana,
que se recusou a obedecer à vontade do pai e casar-se com um pagão rico. Defensora do
cristianismo, foi torturada e mutilada para adorar os deuses pagãos, mas resistindo à dor e
aos maus tratos, morre glorificada e anjos vêm entoar cânticos em seu funeral (http,
p.//santaengracia-cds.blogspot.com/2005/10/santa-engrcia-histria-da-santa-mrtir.htm.)
Matilde, castigada por impor regras morais, tem a parte central de seu corpo associada à de
uma mártir cristã que leva muitos à conversão depois de sua morte.
Braços e pernas, isto é, os membros responsáveis pela atividade e mobilidade
motora são relacionados a Mônica, mulher cristã, cujas orações foram responsáveis pela
conversão de seu filho Santo Agostinho.
Santa Mônica é o modelo desta tarefa pedagógica vital: a formação da conduta
moral e religiosa do filho. Incutir pudor, mansidão, e todas essas condutas cristãs
é a virtude deste exemplo de comportamento, que, além de tudo, dá o empenho
da conversão, em que pese a ‗debilidade estrutural da intervenção feminina no
28
interior da família‘. (http, p.//www.ricardocosta.com/pub/stamon.htm
(VECCHIO, s/d, p. 181.))
Decepar braços e pernas parece ser um ato intuitivo de imobilizar a mãe e impedi-la
de agir como Santa Mônica cujas orações e atitudes levam o filho à conversão. Como se vê,
Matilde é enterrada em locais que aludem a mulheres santificadas ou pela perseverança em
Deus ou, no caso de Santa Mônica, por ser modelo de mãe que vela pela fé de seu filho. A
ironia está na inutilidade dos esforços da personagem camiliana que não logrará ver a filha
salva; pelo contrário, Maria José será condenada à forca, levantada no campo de Santa
Clara. Outro lugar que alude a uma mulher modelo de pureza e oração. Assim como
Engrácia, a santa rejeita o casamento para dedicar-se à vida religiosa. Maria José,
instintivamente, subjuga as intenções de sua mãe que se relacionam às mulheres santas
mencionadas.
O grotesco, o esquartejamento, remete à destruição da ordem e das regras de forma
excêntrica, extravagante. A deformidade, em oposição ao sublime, evidencia o caráter
problemático do mundo, os desvios de comportamento em relação a um ideal de conduta.
Matar e despedaçar a mãe é diabólico. O adjetivo cuja etimologia associa-se a ―gritar‖,
―divulgar o renome‖ sugere as ideias de ―rivalidade‖ e ―acusação‖ que serão aproveitadas e
absorvidas pelo humor negro e pelo sarcasmo.
Grotesco vem de grotto que significa gruta ou caverna, espaço subterrâneo, daí sua
associação com o que é aberrante. Um fato atroz como o matricídio revela a violação
perversa das regras de uma moralidade também distorcida e cruel. Patentear o sórdido ou
publicamente inconfessável é um antídoto para a banalidade do mundo oficial. Desfazem-se
as imagens artificiais de ética ideal e revela-se a realidade em que há a violência da
imposição de máscaras. Tudo se passa como se observar o grotesco fosse um meio de
vislumbrar os dados mais profundos e impenetráveis do inconsciente humano. Esses dados
ao mesmo tempo em que horrorizam são base para o humor em vários momentos
históricos.12
12 Minois, 2003, trata do grotesco como fonte de humor sobretudo nas p. 94 a 96 e 138 a 144.
29
A primeira edição toma, portanto, o caso como motivo de análise social e de
meditação de cunho religioso; na introdução à narrativa, já se enuncia o motivo do crime:
―Vereis uma filha matar sua mãe, porque esta lhe não deixava fazer o quanto desejava.‖
(Branco, 1991, p. 5). As cenas são retratadas com grande dramaticidade, sobretudo, pelo
uso constante do discurso direto. Para finalizar, o narrador exorta o leitor em tom profético:
Estes atentados contra Deus, esta guerra de irmãos contra irmãos, estes
acontecimentos de filhos matarem os pais, e esses sinais que nos aparecem no
céu, tudo indica que o fim do mundo está chegando. (Branco, 1991, p. 26)
Ressalta-se ainda a questão de gênero masculino e feminino. A mulher é
considerada frágil e facilmente manipulável pelo homem. Matilde é incapaz de cumprir a
função do homem da casa e manter a filha na linha de conduta condizente com o que se
espera naquela sociedade, não só porque valoriza os sentimentos acima da razão, dando à
filha o direito de eleger um marido que a agrade, como também por ser fisicamente mais
fraca.13
Também Maria José sucumbe no universo masculino, é seduzida por José Maria e
recorre a um homem - o regedor - em busca de livrar-se da ameaça da mãe, mas vem a ser
presa por esse mesmo homem.14
A complexidade do ser humano é sugerida pela ambiguidade entre o homem ser
apresentado como imprescindível para assegurar o bom andamento da vida familiar e, por
outro, levar Maria à perdição15
.
13 ―Quis fugir pela porta, mas o José Maria e Maria José não a deixaram[...]‖Branco, 1991, p. 17. 14 Ingenuamente, Maria depois de matar a mãe vai ao regedor dizer que sua mãe já estava boa e não precisava
mais ser internada. 15 Antes desse encontro Maria José era cândida e pura e sua vida só tinha presença feminina, morava com a
mãe e era vizinha de uma mestra de meninas.
30
II. 2 Da dualidade feminina
A terceira edição, no entanto, dá um novo enfoque aos fatos. Composta pelo método
da concisão e extensão, sintetiza o enredo anterior, acrescentando-lhe elementos narrativo-
estruturais: personagens, episódios, motivos, temas e hipotipos16
(como a passagem do
discurso direto para o indireto). Consequentemente, a nova versão da história amplia seu
significado e cria novas possibilidades de interpretação.
O narrador, também em 3ª. pessoa, onisciente, e igualmente sentimental já não é a
única voz da narrativa, pois, ao acrescentar-se o julgamento de Maria José, certa
ambiguidade na narrativa é gerada, uma vez que o ponto de vista enfatizado parece ser o de
Maria José, já que a história simplesmente repete o depoimento da moça. Corrobora essa
suposição, a transposição do que na primeira edição estava em discurso direto para o
indireto, o que parece indicar que a narrativa remete a um relato por meio do qual se dá a
reconstituição das cenas. Por conseguinte, alguns episódios podem ser meramente produto
da imaginação da moça.
A ambiguidade parece permear toda a narrativa. O texto inicia-se apresentando um
novo motivo para o crime, não se trata de uma mãe que não quis fazer tudo o que a filha
desejava, como na primeira edição, mas o matricídio é consequência de uma ―educação
pouco desvelada‖. O termo ―desvelada‖, além de significar ―ter cuidado‖, ―vigiar,
diligenciar, cuidar‖, como verbo transitivo direto remete a ―tirar o véu a‖, ―descobrir‖,
―esclarecer‖, ―patentear‖, o que pode insinuar que a razão por que Maria José matou a mãe
seria seu parco conhecimento de mundo e de si mesma. Talvez a cosmovisão restrita de
Matilde, mulher que vive para a casa e para a religião, impossibilite-a de esclarecer à filha
sobre a profundidade do ser humano. Cumpre lembrar que à mulher da época não se
estimula a introspecção e sondagem interior, várias atividades lhes são proporcionadas para
que não percam tempo meditando.
[...]Abandonada a si mesma, a mulher aplicou aquela curiosidade desassossegada
de se encontrar, que o ócio acentuava, no interesse pela moda. Enquanto ao
16 A nomenclatura usada é de Genette, 1997.
31
companheiro a sociedade permitia a realização integral da individualidade na
profissão, nas ciências ou nas artes,a ela negava interesses de outro tipo além dos
ligados à casa, aos filhos e a sua pessoa. Era como se não tivesse um cérebro,
como se o exercício da inteligência tornasse duros os seus traços e lhe empanasse
o brilho da virtude. As preocupações do espírito, estas eram privativas do
homem, dono das artes, da literatura e do destino de seus semelhantes. (Souza,
1996, p. 99)
Embora Maria José pertença a uma classe que não lhe possibilita o ócio, suas
atividades lhe proporcionam momentos de solidão e isolamento: ―durante o dia, vendia
numa pequenina tenda que sua mãe tinha podido arranjar-lhe, e à noite aprendia rezas e
orações à Santíssima Virgem, que sua mãe nunca se cansava de ensinar-lhe.‖17
Maria, conforme declara no julgamento, vende ―obras de esparto‖, isto é, trabalho
artesanal em que se confeccionam cestos, esteiras, capachos, cintos, pelo trançado de uma
planta gramínea. De um mato flexível, surgem rígidas tranças que se transformam em
diversos objetos de decoração. Essa menção parece sugerir que, assim como a trama do
esparto, alguns pensamentos maleáveis, dóceis, submissos, podem ter tomado formas mais
rigorosas e severas, enformando seu texto no julgamento. A solidão da tenda possibilita
também momentos a sós com José Maria. Caso haja esses encontros, eles poderão
reconhecer-se e identificar-se. Esse espelhamento em seu duplo favoreceria a
autoconsciência da moça e lhe ampliaria características até então encobertas.
O parco esclarecimento de si e da vida poderia, outrossim, tornar Maria José
vulnerável às mais variadas influências e tentações. Daí o alerta do narrador: ―‗Vigiai e orai
para que não entreis em tentação‘ Orai, ó povos, e pedi a Deus e a sua Santíssima Mãe que
vos livrem das tentações do demônio, que tentou Maria a cometer o maior de todos os
crimes.‖ (Branco, 1991, p. 38) A admoestação enfatiza a importância do ―vigiar‖, isto é,
velar, estar alerta, para que não se caia em tentação como se o impulso para o assassinato
fizesse parte do inconsciente humano. Sugere-se, dessa maneira, a possibilidade de o
matricídio ter sido resultado de uma força psicológica (―a tentação‖) a induzir ao mal. Essa
17 Branco, 1991, p. 34. Note-se a ênfase dada à atenção da mãe à filha pela repetição de ―sua mãe‖ arranjou ou
―sua mãe‖ ensinou.
32
visão parece recuperar as teorias dos filósofos românticos alemães acerca do interior
humano e reforça a ideia do grotesco como conteúdo do universo interior do homem.
Para Schubert18
, por exemplo, o sistema ganglionar relaciona-se às atividades
inconscientes, onde estão as forças noturnas, isto é, lúgubres, soturnas, da alma humana.
Quando o sistema ganglionar é dominado pelo sistema cerebral, essas forças são inibidas e
dominadas; mas em estado de sono, loucura, dupla personalidade, sonambulismo, essa
energia domina o homem e prevalece sobre seu lado racional.
O sistema ganglionar não é somente responsável pela união do homem ao
inconsciente divino e cósmico, mas ele também é capaz de levá-lo a realizar atos
criminosos e abomináveis, podendo captar, na mesma intensidade, as influências
malignas. (Andrade, 2001, p. 109)
Outro motivo de Maria José ter cometido o crime volta a relacionar-se ao tipo de
educação que recebera. A moça parece ser a preferida da mãe, já que com a morte do
marido, Matilde manda a outra filha para casa de pessoas para trabalhar e mantém Maria
consigo de maneira muito carinhosa ―se matava de trabalhar para lhe granjear o necessário
sustento corporal e espiritual.‖ (Branco, 1991, p. 34). Educada como o centro das atenções
da mãe, a moça não sabe lidar com restrições e limites e a repreensão quanto ao namoro
vem a ser a primeira castração a que é submetida. Enquanto para Freud, a castração é
motivo de recalque e denegação, isto é enviar para o inconsciente o que não é agradável;
para Jung, é alicerce o sujeito relacionar-se com o mundo, admitindo sua subjetividade. O
castrar corresponde ao reconhecimento de limites e a admissão da fraqueza.
A vulnerabilidade da auto-estima torna os indivíduos com Transtorno da
Personalidade Narcisista muito sensíveis a "mágoas" por críticas ou derrotas.
Embora possam não demonstrar abertamente, as críticas podem assolar esses
indivíduos e levá-los a se sentirem humilhados, degradados e vazios. Sua reação
pode ser de desdém, raiva ou contra-ataque afrontoso. (http,
p.//virtualpsy.locaweb.com.br/dsm_janela.php?cod=162)
A agressividade (‗tentação‖) de Maria pode, portanto, ter sido motivada pelo ego
ferido. Essa possibilidade pode ser justificada pelo tratamento dado ao corpo da genitora
18 Andrade, 2001, sintetiza com maestria as vertentes da filosofia alemã. O pensamento de Schubert é
retratado nas p. 85 a 90.
33
depois da morte. Não basta matar a mãe, Maria José a decapita e esquarteja. O princípio
ativo que simboliza a autoridade de governar, de ordenar, de instruir é eliminado com toda
a autoridade e soberania da mãe> Cortando-lhe a cabeça, Maria livra-se do que a incomoda
e lhe restringe a liberdade.
Depois, a filha separa o tronco dos membros. Arranca os braços e mãos que
representam a força, o poder de dominação. Separa as pernas e pés que dão suporte vertical
ao ser humano, isto é, asseguram-lhe postura soberana. Além disso, mutila a face da mãe,
extrai-lhe o nariz, as orelhas e os lábios e queima-lhe os cabelos. A desfiguração ressalta o
grotesco, a violência e parece ser uma forma de banir as características intelectuais, morais
e emocionais da mãe.
Outro acréscimo significativo é local onde alguns membros são enterrados. Agora
não se faz menção apenas a figuras religiosas, mas alude-se à rua Marquês de Loulé que
remete à personagem histórica célebre por seus títulos de nobreza, que não lhe livraram de
ser alvo de suspeita de assassinato dos filhos de D. Pedro, já que enquanto foi presidente do
conselho e ministro do reino houve a morte de D. Pedro V e do infante D. Fernando em
Novembro de 1861, e a do infante D. João em Dezembro seguinte, correndo também
grande perigo a vida do infante D. Augusto, que pôde salvar-se. Sugiram, então, rumores de
que o marquês poderia ter envenenado as crianças para que seu primogênito, neto legítimo
de D. João VI, fosse o sucessor do trono. Mais tarde sua inocência foi comprovada.
(Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e
Artístico, Volume IV, p. 523 a 525.)
Como se pode perceber, a nova edição apresenta algumas modificações que
promovem ampliações de sentido. Essa versão propõe uma análise psicológica e social dos
fatos. As vinte páginas que narram a história em Maria, não me mates que sou tua mãe! são
reduzidas a seis na terceira edição, isso porque o enredo é sintetizado e ligeiramente
modificado. Das mudanças, as mais significativas implicarão a transformação de Maria
José. Essa metamorfose decorrerá, sobretudo, da ambiguidade do foco narrativo, criada
pela inserção do julgamento, da nova apresentação da personagem José Maria e pela
supressão do discurso direto. O narrador dá voz à Maria, o que tem por consequência um
34
discurso mais subjetivo, assim os fatos podem ser contestados, perdem um pouco de sua
plausibilidade.
Assim, o namorado, cujo nome já sugere um espelhamento, pode ser um duplo, um
ser semelhante a ela ou fruto de sua imaginação, já que nenhuma personagem parece
conhecer José Maria a não ser a matricida que o cita no julgamento. Mencionado apenas
pelo narrador, que repete a versão de Maria José, o rapaz poderia ser apenas um alter ego
da matricida, criado por sua mente perturbada.
Na terceira edição, o narrador introduz a personagem como um ser dissimulado e
diabólico: ―Mas o demônio que se apresenta debaixo de muitas formas, para conseguir
tentá-la, fez com que a rapariga encontrasse um dia um desses rapazes que se fazem de
sonsos [...]‖(Branco, 1991, p. 34). Novos adjetivos, de cunho psicológico, são empregados
em gradação para caracterizar a personagem: ―malvado‖, isto é, ―perverso, celerado,
malfeitor‖ e ―maldito‖ ou ―amaldiçoado, funesto, abominável, nefando, sacrílego‖. Sugere-
se, dessa forma, o caráter diabólico de José Maria que corresponde à tentação que
impulsiona a práticas condenáveis, como fora enunciado pelo narrador.
Os testemunhos do julgamento parecem acentuar o caráter misterioso dessa
personagem. Segundo depoimentos, José Maria nunca foi visto na casa da acusada; além
disso, Maria não sabe identificar o endereço, nem o sobrenome do rapaz, com quem teria
convivido catorze meses. Cria-se, assim, uma questão: José Maria poderia ser produto da
imaginação de Maria José? Um ser tecido, como obra de esparto? Seria apenas o lado
sombrio da personalidade da moça, como um espelho; daí a coincidência e inversão do
nome? Ou a moça dissimula e omite informações para proteger seu duplo? Fruto de uma
educação pouco desvelada, Maria José é incapaz de reconhecer-se, mas momentos de
solidão lhe fornecem um espelho. ―Os espelhos simbolizam as possibilidades que tem a
Essência de determinar a si mesma; [...] a reciprocidade das consciências‖ (Chevalier e
Gheerbant, 1994, p. 396)
O encontro com o outro possibilita o desenvolvimento de características latentes em
Maria José. O que estava submerso emerge pela identificação com seu duplo. O espelho
consiste em um desdobramento psicológico, um sujeito torna-se dois. Nesse sentido, José
35
Maria consistiria no lado sombrio da moça. O duplo diabólico que desperta no indivíduo os
vícios que estão ocultos, mas existem, nas profundezas da alma.
Toda creatura individual, por encima y a um lado de ella, tiene su contrario, que
es al mismo tiempo su complemento y que viene a compensar los defectos o las
deficiências de la vida separada... Porque estas lagunas son los vasos de elección
em que viven a derramarse las fuerzas de la vida superior. Schubert (Apud
Béguin, 1993, p. 156)
Valida essa suposição o fato de em Matricídio sem exemplo, as razões apresentadas
para o crime diferirem das apresentadas na primeira edição, agora elas parecem ser do
interesse da moça. No relato do narrador e no testemunho de Maria, o rapaz teria sugerido o
assassinato por dinheiro que repartiria com a namorada, uma vez que se tratava de herança
ou de gastar com ―criminosos como ele‖:
Este malvado aconselhou-a que matasse sua mãe! porque lhe tinha pressentido
algum dinheiro, e queria botar-lhe a mão, para o gastar com outros criminosos
como ele. (Branco, 1991, p. 36)
[...] [José Maria] tinha questões com minha mãe, porque lhe tinha pedido metade
da herança, e como ela recusasse, na manhã do dia 12 deu-lhe uma facada com
que a matou, e safou-se.
[...]O José Maria foi quem a matou, e eu esquartejei-a; levando ele parte do
dinheiro que eu tinha num pé de meia, prometendo depois dar-mo. (Branco, 1991,
p. 55)
Nessa versão, a filha não titubeia, nem hesita: mata. Matilde morre abraçada a uma
cruz. Morrem a lei e a religiosidade, a ética e a moral. A ação fria e decisiva da moça
destoa da insegurança e temor que apresenta na 1ª. edição. Nesse sentido, a mudança de um
motivo dá relevo à ambiguidade da personagem. Se José Maria apenas for a face sombria
de Maria José, ela é a autora e mentora do matricídio.
Corrobora essa hipótese o fato de depois do matricídio, Maria José ter sonhos
aterrorizantes, ver ―espectros medonhos, que caminham para ela, e lhe mostram a faca
ainda tinta do sangue de sua mãe e a machada com que lhe despedaçara o corpo.‖ (Branco,
1991, p. 37). No sonho, o desdobramento é evidente. Não é ela quem carrega as armas, mas
―espectros medonhos‖. O desdobramento no sonho e nos espectros reforça a ideia do duplo,
do reconhecer-se no outro.
36
[Assim como no universo do romance do alemão Hoffmann]. En este mundo
estamos expuestos a encontrar a cada momento figuras burlescas y temibles, a
toparnos de pronto com nuestro doble, a ver cómo los más apacibles consejeros
íntimos se agitan como diablos y hacen cabriolas como títeres manejados por
manos inhábiles. (Béguin, 1993, p. 366)
Os gestos e atitudes de Maria no julgamento validam a hipótese de a personagem
apresentar dualidade de caráter. Maria José comparece ao julgamento, animada, com passo
firme e olhos quase sempre imóveis, seu testemunho é contraditório: ora acusa José Maria,
ora confessa-se a única responsável pelo crime, além disso, não considera o feito uma
barbaridade, isto é, uma crueldade ou desumanidade. Diz não saber por que enterrou as
partes do corpo da mãe em diferentes lugares e afirma receber com a visita de José Maria a
de uma criança de três anos que vinha de fora da terra. Com a identificação com o outro,
surge a criança, isto é, características veladas ou recalcadas podem retornar. Sua identidade
encoberta e descuidada por uma rotina e pela religiosidade afloram e renascem.
Insinua-se, assim, tratar-se de uma mente perturbada, de um ser em desordem
psicológica, o que corrobora a tese de seu advogado de que a acusada estava fora do ―uso
de suas faculdades intelectuais‖.
Um novo motivo enuncia-se pela inserção da personagem do advogado. A crítica ao
ardil dessa classe, que manipula fatos pela arte de fazer nascer o equívoco pela linguagem
verifica-se no comentário irônico do narrador: ―soube honrar a nobre profissão de
advogado‖ (Branco, 1991, p. 55):
É uma representação, eficacíssima, de como através sucessivas interpretações a
mensagem é mensagem é desconstruída e levada a exprimir não somente aquilo
que o emitente original não queria dizer, mas talvez até aquilo que essa
mensagem, como manifestação linear de um texto, equiparado a um código, não
deveria dizer, se uma comunidade de intérpretes, inspirada no bom senso e no
respeito às regras, chegasse a um acordo, em fatigante interação, para dela extrair
uma leitura publicamente aceitável. (Eco, 2006, p. 34)
A história é, portanto, narrada de maneira subjetiva. Por extensão, põe-se em causa,
de maneira irônica, dissimulada, a própria tessitura literária que é urdida com fins
peculiares de conquistar o interesse do público. O fato de histórias de ―faca e alguidar‖
serem atraentes ao público parece ser o motivo de Camilo transformar uma notícia de jornal
em uma narrativa de cordel. A consciência do escritor de que o sensacionalismo atrai
muitos espectadores é patente pelas menções feitas a quão repleta estava a sala do
julgamento, ―cheia de espectadores de todas as classes e hierarquias.‖ (Branco, 1991, p. 39
37
e 59). O grotesco é um meio de Camilo Castelo Branco atrair seu público para
dissimuladamente começar a problematizar os padrões estabelecidos. No decorrer de sua
carreira, o tema servirá para despertar o humor destrutivo e sagaz.
Assim, a narrativa de Camilo ultrapassa os limites de uma arte de cunho social, que
seria mero documentário da realidade da época, e amplia seu significado ao tratar do tema o
interior humano, abrangente e inesgotável, e da própria literatura como arte de iludir.
O final do texto não apresenta uma solução para o problema da ambiguidade do ser
humano, nem deixa o leitor apaziguado, mas repete a violência em busca de evitar que
novos crimes como aquele se repitam. A situação de desequilíbrio permanece e
proporciona, com isso, que a leitura se abra a várias interpretações.
III. 3 Da dualidade humana
Nas mãos de Fernando Gomes, o texto parece ganhar um novo tratamento crítico e
psicológico, isso porque são acrescentados arquétipos que ampliam a visão camiliana
acerca do episódio. Além disso, o humor promove um questionamento acerca de aspectos-
chave da cultura portuguesa. Para compreender-se a importância dessa visão, há que se
retomarem alguns conceitos de Jung, já que para Freud o inconsciente é local onde se
armazenam recalques e sublimações individuais, não tem significação social abrangente.
Jung, por seu turno, cria o conceito de inconsciente coletivo, ao referir-se a uma
parte da psique que não é formada pela repressão de experiências pessoais ou por conteúdos
que já foram conscientes – o que constitui o inconsciente pessoal - , mas por imagens e
ideias presentes em todo tempo e em todo lugar: os arquétipos. Essas imagens não são
conscientes, mas produtos espontâneos do inconsciente que às vezes manifesta-se em
sonhos.
No caso do dramaturgo em questão, os arquétipos parecem ter aflorado, graças à sua
imaginação ativa, ― uma sequência de fantasias que é gerada pela concentração
intencional.‖ (Jung, 2002, p. 59). Assim, surgem na peça as imagens da Lua, do Sol, de São
Sebastião, do lobo e lobisomem. Resta analisar os arquétipos a fim de verificarem-se a
mundividência do autor e sua colaboração na adaptação da narrativa camiliana.
38
Para apreender-se o trajeto transcorrido pelo dramaturgo, é necessário analisar a
peça, cotejando-a com seus hipotextos: Maria, não me mates que sou tua mãe! e Matricídio
sem exemplo. De início, causa estranhamento que Fernando Gomes tenha elegido
preferencialmente a primeira edição do cordel camiliano em detrimento da terceira, que,
como já se analisou, ganha em profundidade. Esta parece ter sido resgatada na peça
somente em três momentos em que se transcrevem trechos da fala do narrador. A história
que o drama narra remete essencialmente à primeira edição. No entanto, os acréscimos
ampliam substancialmente o significado do texto camiliano.
A peça de Fernando Gomes é composta por um ato dividido em 30 cenas, em que se
destaca a presença da personagem Maria José, já que ela participa de onze cenas, e é
mencionada nas demais. Se na narrativa camiliana as qualidades da mãe são retratadas com
ênfase, na do dramaturgo, Maria José ganha este relevo, ocorre, assim, a
―transvalorização19
‖ de personagem.
As rubricas não são precisas quanto ao cenário. Tudo se passa em Lisboa, conforme
anuncia o narrador, o leitor compreende tratar-se de cinco espaços diferentes: a casa de
Maria José, a tasca, o convento, a rua e o tribunal; no entanto, apenas uma vez se menciona
a divisão do palco em três locais diferentes:
(MARIA JOSÉ DESPEDE-SE DA MÃE E COM O SEU CARRINHO CHEIO
DE FLORES VAI PARA A RUA. À ESQUERDA ESTÃO AS CARMELITAS
E A IRMÃ. À DIREITA A MÃE, QUE REZA. MAIS TARDE SURGIRÁ O
JOSÉ MARIA.) (Gomes, p.19)
Quanto ao mobiliário, há referência à ―mesa‖ na casa de Matilde, na tasca e no
tribunal. Esse móvel é um meio de aproximar pessoas e de colocá-las umas frente a outras,
familiarmente, o que pode possibilitar o confronto e acareação de ideias; remete, outrossim,
a alimento, isto é, o que nutre, sustenta, estimula e incentiva o indivíduo. Outro adereço que
está presente tanto na casa de Maria quanto no convento é um altar, outra espécie de mesa,
agora destinada à veneração. Diante dessa peça, a pessoa é levada a rever sua vida e expô-la
ao santo de sua devoção; nesse sentido, o altar propicia um enfrentamento que leva à
análise e exame interior.
19 Transvalorizar, para Genette corresponde a acentuar o valor de ações, atitudes e sentimentos que constituem
uma personagem.
39
Desfilam por esses cenários as personagens retiradas da narrativa camiliana:
Matilde, Agostinho, Maria José e sua irmã, José Maria, o juiz e os que compõem o tribunal,
entre outras figuras criadas por Fernando Gomes: Zé Coxo, um padre, um fadista, um
bêbado, três carmelitas: Lua, Sol e Bondade; São Sebastião, e cinco cegos. O acréscimo de
personagens será fundamental para a alteração no significado do hipotexto. Padres
simpáticos e debochados, mendigos, taverneiras, bêbados e prostitutas povoam as peças
gomesianas. Eles representam um grupo inconvencional, livre para expressar-se.
Disformes, os mendigos contrapõem-se ao ideal de belo ao mesmo tempo em que são
porta-vozes de opiniões não-oficiais. Função semelhante têm os bêbados ou os padres
glutões. Dedicados à vida material e corporal, simbolizam a alegria. Também as tavernas e
a embriaguez representam a libertação; nesse local, as obscenidades, o riso, a música
tomam o lugar das regras do mundo oficial. A prostituta afronta o convencional e indica
que o prazer existe e pode ser vivenciado. Essas personagens insinuam-se sob outras
figuras, sugerindo o desprezo pelas normas estabelecidas.
Do mesmo círculo de marginalizados, Diogo Alves, assassino que viveu em meados
do século XIX, é citado e permite situar a história temporalmente. Não há alusão ao
vestuário. Como Fernando Gomes é o encenador de suas peças, ele não se preocupa em
detalhar informações geralmente destinadas a orientar outros diretores.
A peça se abre lançando mão do recurso da transvocalização20
, isto é, o que no
cordel é comentado pelo narrador como prólogo à história, no palco várias personagens
dividem essa tarefa. Somente na cena dois entram Agostinho e sua família interpretando o
que um narrador conta: a felicidade beata em meio à pobreza. Nessa cena, uma
característica de Agostinho é acrescentada, ele é retratado como alguém que trata a esposa
com boas maneiras. A família parece representar o povo português em sua cultura e
linguagem, visão ressaltada pela inserção de ditados populares. Como o nome indica, o
ditado popular é a expressão da cultura do povo, por meio do qual se veiculam exemplos
morais, filosóficos e religiosos. Seguem provérbios e expressões coloquiais presentes na
peça:
Eram pobres... talvez; mas muito honrados (inserção de ―talvez‖)
E a honradez era a riqueza e o orgulho daquela gente
Tanta felicidade nem parecia deste mundo
20 Genette chama de transvocalização a alteração do foco narrativo.
40
Quem nada tem com pouco se contenta (p. 3 )
―Cada um tem sua pedra‖ (paródia de ―Cada um tem sua cruz‖)
O cascalho que o diabo amassou‖ (p8) (paródia a ―O pão que o diabo amassou‖)
E quando Deus quer, não há santo que se atreva a contrariá-lo (p. 15)
vão ter que comer sopa de pedra (p. 17)
Quem não vê não peca
O pecado mora ao lado (p. 19)
Deus é testemunha (p. 25)
Damos o dito por não dito (p. 26)
Ninguém quer levar a tristeza para casa...
Não me atira mais poeira pros olhos (p. 29)
Quem pela erinha passou,
E um raminho não tirou,
Do seu amor não se lembrou (p. 30)
Ente marido e mulher ninguém meta a colher (p. 42 refere-se ironicamente à
relação entre Matilde e sua filha)
Os temas veiculados pelos ditados e provérbios referem-se a alguns valores do povo
português, como honradez, religiosidade, temor a Deus, aceitação pacífica das
contrariedades, trabalho braçal, malícia para evitar ilusões e decepções e o distanciamento
de problemas conjugais alheios. A versão da narrativa também apresentará uma concepção
do povo português.
Retrato da alma do povo, os ditados veiculam os valores e as crenças portuguesas.
Reformá-los sugere uma das funções do humor gomesiano: alterar ideologias aceitas e
veiculadas sem questionamento, nem inferências. Os provérbios são conceitos-chave
acolhidos como premissa. Infiltram-se no imaginário coletivo como dogmas e enformam a
mentalidade popular. A alteração dos dizeres gera o riso e promove a análise crítica de seus
valores, o estranhamento ao que é instituído.
A paródia ou alteração de alguns ditos sugere uma revisão crítica da cultura popular.
A resignação associada a uma religiosidade beata e acrítica proposta pela maioria dos
ditados parece ser a base da ideologia do povo a ser questionada e problematizada por
Gomes.
Com esse intuito, a religiosidade que beira à superstição é retratada na cena três, um
acréscimo de episódio. Enfoca-se, então, um jantar da família de Agostinho. Com o atraso
do marido, Matilde desespera-se e apela aos santos, em ladainha com as filhas. A chegada
do pai apazigua a família, mas é pretexto para as mulheres exporem o que cada uma faria se
algo acontecesse ao patriarca. Esse acréscimo é relevante, já que a personalidade de cada
uma das mulheres é, então, sugerida.
41
O destino de cada uma das mulheres diferencia-se substancialmente daquele
apresentado por Camilo. Maria do Céu, cujo nome constitui um acréscimo e parece sugerir
seu caráter contemplativo, é passiva e limita-se a planejar sua ida para um convento.
Matilde, ainda mais inerte, declara que se vestiria de negro, não mais comeria, nem beberia,
nem cortaria os cabelos, como evidência de seu sofrimento. A apatia de Matilde em
decorrência da ausência do marido sugere um estado de alienação doentio que resultaria
numa alteração significativa em sua aparência, o que, do seu ponto de vista, poderia ser
associado ao aspecto de um ―belizomem‖ ou lobisomem. ―E que me importaria, se tu tinhas
partido para sempre?! O povo, ao passar, até podia dizer horrorizado: Está ali um
belizomem! Está ali um belizomem!‖ (Gomes, p. 5). Essa imagem é reiterada pela escolha
da cor da roupa. O negro remete à selvageria, impulsividade assassina.
Sem o saber, Matilde aponta para o distúrbio psiquiátrico da licantropia, isto é, um
transtorno de identidade que pode decorrer de um distúrbio afetivo e leva o paciente a
sentir-se como um animal. O problema pode ser de ordem psiquiátrica e indicar emoções
suprimidas, especialmente de ordem agressiva ou sexual, através da figura do animal; ou
algo factício para obter algum tipo de gratificação ou atenção (http,
p.//brasiliavirtual.info/tudo-sobre/licantropia e http,
p.//www.einstein.br/REVISTA/arquivos/PDF/216-Vol4_N1_P59.pdf.) Em qualquer um
dos casos, a mudança de personalidade de Matilde sugere um caráter selvagem e devorador.
O lobisomem simboliza um obstáculo no caminho para a libertação ou individuação.
(Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 557). Essa imagem pode ser associada à dualidade do
arquétipo da Grande Mãe, que, de tanto abrigar e acolher, sufoca, aprisiona e oprime.
Assumindo o lugar do lobo-alfa, ela consumiria outros seres, como um animal faminto.
Como sombra leal e devota da mãe, sugada pela sua apatia, Maria José parece
querer suprir a inação da mãe ao se dispor a ir à rua pedir esmolas a fim de mandar rezar
missas para a alma do pai. A atividade e iniciativa de Maria José parecem fruto de um
esforço por agradar a mãe, já que se destinam a colocar em prática um dos preceitos da
matriarca: a religiosidade. Não há uma característica pessoal de Maria José enunciada por
sua intenção, apenas uma identificação com os valores da mãe e uma projeção de sua
personalidade. Seu mundo instintivo parece obliterado pela figura materna, e ela configura-
se como mero prolongamento da mãe.
42
Satisfeito por sentir-se necessário em sua casa, Agostinho relaxa após ter-se
sobrecarregado no trabalho para ajudar Zé Coxo, um funcionário da pedreira que sofre de
pedras nos rins e, por isso, não consegue quebrar as pedras. O colega de trabalho é
personagem que não consta da narrativa camiliana e parece constituir uma ironia, suas
pedras, aparentemente um entrave para o trabalho, possibilitam-lhe momentos de descanso.
Além disso, uma voz comenta: ―A continuar assim, qualquer dia nem precisa de trabalhar!
Monta uma pedreira por conta própria!‖ Já Agostinho, que não tem pedras nos rins,
trabalha demais e sucumbe, caindo como morto sobre o prato.
A cena quatro acrescenta um fadista, que também será considerado janota, um padre
e um bêbado. O fadista narra uma história sensacionalista acerca de um embate entre um
colega apelidado Cinco Chagas e um touro cornibaixo. Enquanto o padre presta atenção e
parece entusiasmado com a narrativa – exatamente como o público que se anima com as
histórias sensacionalistas -, o bêbado tece comentários que podem ser considerados uma
crítica aos que se deleitam com escândalos, atitudes chocantes ou hábitos exóticos. ―O
touro é uma besta só por si... besta é o Cinco Chagas para se pôr na frente dos cornos de um
cornibaixo e mais besta ainda é todo aquele que vai ver estas bestialidades!‖ (Gomes, p. 8).
A bebedeira é uma forma de romper com as regras de uma sociedade que impõe a seriedade
e o desapego aos prazeres como condição para a manutenção da ordem. Por meio dessa
personagem, críticas contundentes serão feitas.
A reprovação aos que cultivam o sensacionalismo, seja como espectador, seja como
divulgador, será retomada no decorrer da peça.
Na continuação da cena, Maria José irrompe, obstando o início de uma discussão
entre o fadista e o bêbado. A moça vem atordoada solicitar socorro ao pai, desastrada,
derruba tudo o que está sobre a mesa da tasca.
O caráter imperativo (ou devorador) de Matilde é recuperado na cena cinco em que
impõe a Maria do Céu o que fazer e como agir, outro acréscimo de episódio e situação.
Sem iniciativa, a filha limita-se a obedecer à mãe de maneira submissa. Enquanto põe a
filha para rezar, Matilde tenta reanimar o marido. Agostinho volta a si e tenta falar, mas a
esposa o impede, preenchendo suas reticências de maneira afoita. Quando consegue
expressar-se, o marido atribui à esposa o papel de sustentar as filhas, deixando-lhe como
herança uma mala cheia de cascalho, que não parece referir-se ao cunho da palavra na gíria
43
de Portugal: dinheiro, mas a mais sofrimento, ―dureza‖. A cena encerra-se contextualizando
a narração como um depoimento de Zé Coxo em juízo. Durante a cena aflitiva, Maria José
olha obliquamente para o janota.
O episódio seguinte constitui uma substituição, em vez de, como no cordel, a outra
filha ser enviada a uma casa de família para servir, ela decide ir para o convento das
Carmelitas Descalças. Ao adentrar uma ordem contemplativa, que propõe a vida em
clausura e o respeito à amizade, à oração e ao trabalho, a moça parece apresentar a falta de
interesse pela vida em família, o que é reforçado por sua declaração de que, em vez de
chorar como a mãe e irmã, observa ou faz alguma coisa para ―desanuviar‖.
A cena inicia-se com o acréscimo de episódio, personagens e motivo. No convento,
as irmãs Lua, Sol e Bondade conversam. Lua é castradora, diz ter-se tornado cega para não
pecar pelo olhar; repreende Sol por esta admirar a beleza de São Sebastião, recomenda-lhe
flagelar-se e, se necessário, arrancar os próprios olhos . Ela vive tropeçando e quebrando
seus óculos escuros; para a freira, esses choques são um aviso divino de que caminhava por
lugares errados; no entanto, o caráter cômico da cena sugere sua incompetência em lidar
com a realidade circundante. Além disso, quebrar os óculos com tanta frequência pode
insinuar o desejo latente de desobstruir a visão e enxergar realmente. Corrobora essa
acepção da Lua como entidade repressora seu significado na Astrologia e nas cartas. No
Tarô, o 18º. Arcano remete à tristeza, à neurose, ao fanatismo, às chantagens e aos
extravios. (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 565)
Na mitologia, folclore, contos populares e poesia, este símbolo [Lua] diz respeito
à divindade da mulher e à força fecundadora da vida, encarnadas nas divindades
da fecundidade vegetal e animal, fundidas no culto da Grande Mãe (Mater
magna). Essa corrente eterna e universal se prolonga no simbolismo astrológico,
que associa ao astro das noites a presença da influência materna no indivíduo,
enquanto mãe-alimento, mãe-calor, mãe-carinho, mãe-universo afetivo.
(Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 564)
Irmã Sol, por seu turno, é mais ―humana‖, não só por contemplar o homem-santo,
como por fingir que se flagela. A simbologia do Sol também valida sua concepção na peça.
O Sol é o princípio ativo, já que ilumina enquanto a Lua apenas reflete a luz solar. Por isso
representa o rosto que a personalidade apresenta nas suas mais elevadas sínteses
psíquicas, no nível das suas maiores exigências, das suas mais elevadas
aspirações, da sua mais forte individualização, ou no malogro feito de orgulho ou
de delírio de poder. (Chevalier e Gheerbrant, 1994, pp. 839 e 840)
44
Assim, o Sol representa o ser em harmonia com a natureza, a clareza de julgamento
e expressão, a verdade do ser e do mundo, enquanto luz do conhecimento e fonte de
energia.
Bondade parece alheia a tudo, limita-se a observar os animais e a tratá-los com
amor. É contemplativa, não parece pertencer ao plano terreno.
Verifica-se, na caracterização das três freiras, um desdobramento de Matilde, Maria
José e Maria do Céu. Como a Lua, Matilde é imperativa e repressora; como Sol, Maria
também se interessa por saber o que há além dos limites de sua casa, como, por exemplo,
quando observa obliquamente o janota; como Bondade, Céu aliena-se. Além desse
espelhamento, Lua e Sol são arquétipos. Aquela, da mulher em suas múltiplas faces, seu
psiquismo sombrio, sua instabilidade; este, da luz que aguça o conhecimento. Dessa forma,
o convento reflete a vida em família21
ao mesmo tempo em que aponta para um novo
significado: a psicologia feminina instável e a busca por conhecimento.
O desdobramento, o reflexo ou o duplo podem corresponder à imagem no espelho,
que propicia o encontro consigo mesmo. Assim também o encontro entre Maria José e José
Maria possibilitará àquela dar um passo em direção a seu interior, à sua verdadeira face, a
qual mantém encoberta com intuito de adequar-se às normas morais.
Em seguida, há um corte na narração, a cena se passa em um tribunal onde Maria
do Céu depõe. Uma voz, supostamente a do juiz, quer dados sobre Maria José e tenta
aplacar a ira do tribunal que grita: ―Culpada! Assassina!‖ Apresenta-se, assim, um salto no
tempo, um fato posterior ao matricídio que ainda não foi mencionado.
Uma rápida cena enfoca a tristeza de Maria José e sua mãe que se consolam pela
ausência de Maria do Céu.
A próxima cena apresenta acréscimo de episódio e motivo22
, flagra-se Maria do Céu
na igreja do convento, conversando com São Sebastião. A moça crava o santo com
perguntas acerca da morte do pai. O santo responde-lhe que foi feita a vontade de Deus e
chama a atenção da moça para o fato de também ele ter morrido novo. Verifica-se, assim,
21 Talvez por isso Maria do Céu desista de ser freira e ―não se habitue ao hábito‖. 22 Entende-se por motivo a unidade mínima da intriga de um texto narrativo ou dramático. Genette chama de
―motivação‖ o acréscimo de um escopo ou objeto que promova mudanças significativas no conjunto de
acontecimentos que formam o fio condutor de uma peça, filme ou narrativa, enredo, história, ação, conforme
já se apontou anteriormente.
45
um espelhamento entre o santo e a figura paterna. Além disso, trata-se de São Sebastião da
Pedreira, que como Agostinho relaciona-se à pedra.
A moça chama atenção para as flechas que trespassam o peito de São Sebastião. A
flecha simboliza o penetrar um invólucro, o pensamento fecundante, pelo qual se
ultrapassam as condições normais para a libertação do ser. (Chevalier e Gheerbrant, 1994,
p. 435). Além disso, a imagem de um ser flechado remete à figura da divindade mitológica
hindu, Shiva. Essa divindade teve o coração perpassado por flechas do deus amor para
tornar-se capaz de cumprir sua missão de unir-se à sua esposa (Shakti) e se tornasse um
deus completo. Masculino e feminino, Shiva é o deus hábil a livrar o homem do
sofrimento, representa o arquétipo do si-mesmo, isto é, uma imagem divina que simboliza
os conteúdos do inconsciente coletivo. (Jung, 2000, Cap. IV). A hipótese é corroborada
pela resposta do anjo à fala de Maria do Céu acerca de sentir que alguém lhe responde,
embora fale sozinha: ―Sim!... mas não! Tu própria perguntas e respondes. É muito do povo!
Perguntar e responder imitando a voz da pessoa a quem dirigiram a pergunta.‖. O diálogo
parece constituir um monólogo interior já que possibilita o confronto da moça consigo
mesma. Também a conversa de Maria do Céu com as freiras tem essa função, uma vez que
Céu reflete-se na irmã Bondade. O diálogo com o santo, contudo, parece ser uma forma de
perscrutar o próprio interior, em busca do animus, uma figura masculina que alude à figura
paterna; um sinal masculino no inconsciente da mulher (Jung, 2000, p. 12), que também
remete ao si-mesmo. A crença popular nos santos é satirizada pelo que informa a rubrica
subsequente.
ASSIM QUE MARIA DO CÉU PÕE AS MOEDAS NA CAIXA DE ESMOLAS,
O SANTO MOVIMENTA-SE AO SOM DUMA MÚSICA. CHEGA MESMO A
SAIR DO ALTAR E ENTOA UMA CANÇÃO DE CARIZ RELIGIOSO.FAZ
UMA DANÇA À VOLTA DE MARIA DO CÉU. ELA VÊ ESTE
ACONTECIMENTO COMO UM ―MILAGRE‖. NO FINAL DO TEMA O
SANTO REGRESSA AO ALTAR E MARIA DO CÈU CAI DESMAIADA.
É ASSIM QUE A ENCONTRAM AS IRMÃS, QUE A DESPERTAM. (Gomes,
p. 16)
A atuação do santo mediante a esmola lembra o procedimento das estátuas humanas
que ficam imóveis nas ruas até que alguém lhe faça um donativo; então, movem-se e
entregam algo àquele que lhe doou o dinheiro. A associação sugere uma crítica à igreja que
também se valeria dos santos como artifício para conquistar ofertas.
46
A referência ao mártir adquire nova conotação quando se nota que seu nome remete
a D. Sebastião, uma personagem importante da história portuguesa que representa um pai
para o povo, já que com sua morte, o português fica desamparado e cai sob domínio
espanhol. Dessa forma, São Sebastião pode representar o si-mesmo do povo português, o
que complementa o interesse do dramaturgo pelo seu povo, já aventado pela caracterização
da família e pela citação de ditados populares.
Verifica-se, assim, a inserção de dois motivos: a análise do interior humano em
busca de autoconhecimento, e a caracterização da alma portuguesa. Diferente do que ocorre
no texto de Camilo, o objetivo da peça não é retratar um episódio hediondo para educar o
leitor, mas desvendar da alma humana e portuguesa, problematizar a identidade nacional.
Ocorre, portanto, o que Genette chama de motivação23
.
Na cena seguinte, Maria do Céu conversa com as freiras e lhes apresenta
características de sua mãe e irmã, que configuram acréscimos à narrativa camiliana. Ao
contrário da mulher forte e determinada do cordel, Matilde não trabalha, enjoa de andar de
burro e, por isso, não pode ir até o único emprego que conseguira. Além disso, não pode
costurar porque suas mãos tremem; por isso, limita-se a ficar em casa e chorar.
O trabalho de Maria José, apresentado pela narração de Maria do Céu, é uma
substituição do que em Camilo era o emprego de vendedora de obras de esparto. Maria José
faz meias à noite e vende flores durante o dia. Sem coragem de apregoar, as flores
murcham e não são vendidas. Esses dois fatos – não apregoar e as flores murcharem -
merecem atenção. Sua mudez sugere a incapacidade de expressar-se, tamanha a submissão
às regras sociais e, por extensão, medo de ser desmoralizada. Afinal, o pai, em sua
presença, afirmara que perderia sua alma se alguma de suas filhas se desencaminhasse. As
flores, por seu turno, representam o princípio passivo e a efemeridade da beleza e dos
prazeres. Assim como elas, Maria José começa a murchar para a vida, que não lhe
apresenta prazeres, mas eterno sofrimento ao lado da mãe debilitada e deprimida, o que se
verifica pela cena seguinte, na qual Matilde afirma: ―apetece-me chorar‖. (Gomes, 15)
A cena onze inicia-se pela voz do narrador que retoma a história de Matilde
e Maria José, repetindo os dizeres de Camilo, enfoca-se novamente a felicidade beata
mesmo com a escassez de recursos. O verbo ―ensinar‖, no pretérito imperfeito, indica o
23 A nota 30 esclarece o termo.
47
hábito de Matilde doutrinar a filha a ―passar a vida com honra e sem vergonhas do mundo!‖
(Gomes, p. 19). Depois de rezar com a mãe, Maria José sai para vender flores. O palco
divide-se, então, em três cenários, à esquerda – lado das emoções – ficam as carmelitas; à
direita – lado da razão - a mãe rezando e, ao centro, Maria José. O narrador retoma os
dizeres camilianos, salientando a boa fama da moça pela vizinhança.
O palco esvazia-se e permanecem apenas Maria José e José Maria, as personagens
que se associavam ao inconsciente ou aos padrões morais são eliminadas. O moço
aproxima-se de Maria José, com certa familiaridade que ela rejeita. A rapariga deixa claro
ser séria, ter a mãe à sua espera e só aceitar conversar com clientes interessados em suas
flores. Sem deixar-se contrariar, José Maria afirma querer comprar uma flor ―que se
possuísse, poderia conservar para toda a vida.‖ (Gomes, p.20). Maria José, no entanto, não
entende a alusão. Essa ingenuidade parece atrair ou incentivar o rapaz a prosseguir em sua
sedução. Para cativá-la, ele se declara igualmente tímido e senhor de grande respeito, mas
assevera-lhe que o sentimento de amor é tão grande que não pode calar e precisa confessar
o que sente pela ―flor‖. Salienta-se, por conseguinte, a associação, antes apenas sugerida,
entre a moça e a flor.
Maria José surpreende-se no momento em que o rapaz revela o nome da pretendida
flor e faz menção de sair para ver a ―mãezinha que deve estar impaciente‖ (Gomes, p. 21),
mas afrouxa diante da revelação do nome do rapaz. O nome a atrai e ela se lembra de uma
capicua, ideia acrescentada por Fernando Gomes, que revela sua atenção ao espelhamento
sugerido pelos nomes das personagens.
José Maria aproveita o ensejo e pede a moça em casamento. Desnorteada, ela deixa
claro que a mãe é quem a governa e quem decidirá por ela. O jovem sugere que a suposta
namorada mencione a capicua à mãe e propõe-se a acompanhá-la e conversar com a
senhora. Maria deixa a cena exclamando ―L‘amour‖.
A submissão da moça revela que projeta a moralidade rigorosa de sua mãe, bloqueia
a própria iniciativa e passa a desconsiderar seu eros. Sua ingenuidade exacerbada é um
atrativo ao gênero masculino, pois o homem tem a oportunidade de agir como um
galanteador. Também a ela a relação parece interessante porque relacionar-se com um
homem poderia levá-la a libertar-se do poder da mãe. As atitudes de Maria José parecem
48
configurar umas das versões do complexo materno, descrito por Jung como a ―Identificação
com a mãe‖.
Dá-se [...] uma projeção da personalidade da filha sobre a mãe, em virtude da
inconsciência de seu mundo instintivo materno e de seu Eros. [...] Tamanha
indefinição feminina é a contraface almejada de uma definição masculina
inequívoca, a qual só pode ser estabelecida de uma forma algo satisfatória
quando há condições de empurrar tudo o que é duvidoso, ambíguo, indefinido,
obscuro para a projeção de uma encantadora inocência feminina. [...]cabe ao
homem o papel privilegiado de poder suportar essas conhecidas fraquezas
femininas, com a magnanimidade e superioridade cavalheiresca. (Jung, 2002, p.
99)
A relação amorosa seria uma forma de Maria libertar-se do domínio da mãe, mas ela
só parece intuir essa possibilidade quando é revelada a coincidência do nome do rapaz. A
moça parece pressentir que, projetando-se em um espelho, poderá descobrir-se e
conscientizar-se de que não é mera extensão da mãe. Essa descoberta poderá levar-lhe a
individuar-se, a identificação com o duplo leva a autoconsciência.
Normalmente há [...] a possibilidade de que, mediante uma projeção intensa da
anima, se encha o recipiente vazio [daquela que se identifica com a mãe]. Disto
depende esta mulher: sem o homem, ela não consegue nem de longe chegar a si
mesma; deverá ser literalmente raptada da mãe. (Jung, 2002, p. 105)
A próxima cena interrompe a linearidade da narrativa e torna a remeter a um
momento posterior ao matricídio. Maria do Céu depõe em juramento e, pelos comentários
da acusação, depreende-se que seu testemunho coincide com o ponto de vista do narrador
das cenas anteriores, como se as cenas anteriores tivessem sido narradas de acordo com a
visão de Maria do Céu, já que expõe os fatos de maneira exageradamente sentimental e
supersticiosa. O raciocínio e explanação dos fatos são criticados pela acusação como
fantasistas, já que se referem ao diálogo com São Sebastião e ao fato de Céu ter encontrado
um trevo de quatro folhas que, assim como a capicua, traria sorte. Além disso, Maria do
Céu culpa o demônio pelo crime cometido. Essa menção às crenças populares complementa
o retrato do povo português que vem sendo urdido pela peça, além de aludir a uma
característica da psicologia humana: atribuir a forças místicas aquilo que o homem não quer
assumir como sua culpa.
A narração continua com o encontro do casal com a mãe da moça. A cena repete
com algumas pequenas alterações o episódio em que Matilde se certifica de que José Maria
gosta de trabalhar e se dedica a isso como condição para namorar-lhe a filha. Dois
49
acréscimos de situação merecem ser mencionados: Matilde leva o casal a rezar pela
salvação da alma do marido, essa atividade é interrompida pelo barulho da vizinha dando
aula. José Maria aproveita o ensejo para revelar-se religioso, enunciando o desejo de que
Deus tenha piedade da mestra, e despedindo-se com recomendações que fiquem com Deus.
Ressalta-se, assim, a figura da mãe como alguém que quer doutrinar os que se acercam dela
e a flexibilidade do caráter do rapaz que parece saber como conquistar Matilde.
O próximo episódio ocorre em um tribunal, onde um cego é testemunha. A cena
inicia-se com a dificuldade do juiz em fazer essa testemunha jurar dizer a verdade, pois o
cego responde com o ditado: ―Deus é testemunha!‖ Assim, relativiza-se a onipotência
divina e se enuncia um contra-senso, pois ainda que Deus seja testemunha não pode depor
em juízo, mas um cego sim, desde que jure por Deus. Regras estratificadas são, dessa
forma, ridicularizadas.
Além de apresentar uma crítica sutil a normas cristalizadas, a cena retoma um
motivo que foi apresentado no episódio em que Agostinho balbucia palavras que não se
entendem: a diferença substancial entre falar e dizer. O diálogo vazio de sentido entre o
juiz e o cego é retratado como perda de tempo, já que ―não disseram nada de jeito‖ (Gomes,
p. 26)
A inserção de uma testemunha cega parece ter vários motivos, ou há uma alusão à
sua sabedoria, já que, sem perder-se observando a realidade exterior, desenvolve a
introvisão; ou consiste em uma crítica ao sistema judiciário português que permitiria
testemunhas que não viram o caso, mas apenas ouviram boatos, já que o cego afirma: ―A
mim, contaram-me de fonte limpa.‖ Ao que o juiz responde: ―É o que todos dizem!‖
O testemunho do cego é subjetivo e parcial, em sua boca são colocadas palavras do
narrador de Matricídio sem exemplo; no entanto, no contexto da peça, a frase: ―meditai um
pouco nas causas que concorreram para endurecer o coração duma filha‖ (Gomes, p. 26)
toma também outro sentido, já que a figura da mãe sofre grandes deformações nas mãos do
dramaturgo.
As próximas cenas constituem uma retrospectiva narrada pelo cego. Sua história
remonta a certo dia em que um grupo de ―cegos estropiados‖ lamenta já não haver
desgraças que comovam o público para que possam ganhar dinheiro com isso. Eles sentem
saudades do tempo em que o ladrão e assassino Diogo Alves jogava pessoas do aqueduto
50
(Gomes, p. 28): ―Aquilo é que era uma história! Púnhamos as pessoas todas a chorar!‖
(Gomes, p. 28) ―E só pela tristeza ninguém dá esmola, ninguém compra os versos...‖
(Gomes, p. 29) A cena pode remeter ironicamente à venda itinerante de folhetos de cordel,
forma do hipotexto. Dessa forma, Fernando Gomes além de referir-se ao procedimento de
Camilo para lançar-se como autor e tornar seu cordel um best seller, refaz a crítica ao
grande público, ávido por histórias de ―faca e alguidar‖ e insensível à desgraça alheia.
Entre os cegos, Matilde passa a comentar o motivo de sua tristeza: ter uma filha
desonrada. Dessa forma, dois pontos de vista são sugeridos: o da mãe e o dos cegos, que
comentam os dizeres de Matilde e fazem versos sobre o enredo. Paralelamente, outra cena
se abre com a interpretação do que é narrado, sugere-se, assim, um novo foco da história,
agora pelo viés do espectador. O rapaz é descrito como um jovem muito carinhoso, no
entanto não era essa a qualidade que a mãe buscava, ela queria alguém que preservasse sua
visão de mundo. A cena dá mais cor ao que já havia como sugestão no cordel camiliano.
Uma fala de Matilde merece atenção, pois acrescenta uma imagem significativa: ―O Lobo
começou então a tirar a pele de cordeiro.‖ (Gomes, p. 31) A imagem do lobo é reiterada
pela associação que José Maria faz entre si e o lobo mau, do conto de fada ―Chapeuzinho
vermelho‖. O namorado representa o lado instintivo, animalesco de Maria José, até então
desconhecido da moça. Reconhecer esse seu lado é importante para libertar-se do jugo da
mãe e individuar-se. Para verificar como esse processo ocorre, importa reler alguns trechos:
I.
MARIA
A minha mãe está preocupada.
JOSÉ
Por quê?!
MARIA
É por causa dos banhos!
JOSÉ
Eu já lhe disse que os banhos estão a correr!
MARIA
Também eu mas... que queres?! Ela é muito minha amiga e tem
medo que... só pensa nos banhos, pronto!
JOSÉ
E tu, Maria José, também sé pensas nos banhos?
MARIA
Eu só penso em ti.
A mãezinha... a mãezinha está quase a chegar!
II.
MARIA
Fecha os olhos.
JOSÉ
51
Por quê?
MARIA
É uma surpresa! Para o casamento... gostas?
JOSÉ
Vais ficar linda. Tam-tam-taram!
MARIA
Espera! Toma!
OS DOIS
Tam-tam-taram!!! (Gomes, p. 32)
III.
MATILDE
Ele não vai casar com ela! Ele não vai casar com ela!
CEGO
É capaz de ter razão, D. Matilde!
MATILDE
Eu já a aconselhei; eu já a repreendi com boas maneiras, pois mesmo assim toda
ela se arrufa! E não casa! Estou mesmo a ver que não casa!
CORCUNDA
Também eu!
LUVAS
Olhe esta aqui que também fica bonita:
Cantam:
As águas que vêm do monte
Correm direitas pró mar
Se sua filha não casa
Não o sei onde ir parar!
CEGO
E daí... talvez case...
Tam-tam-taram!!!
MARIA
A mãezinha... está quase a chegar!
JOSÉ
Sim?!
MARIA
Sim! Sim, sim.
JOSÉ
O que é que disseste?!
MARIA
Sim, sim.
JOSÉ
O quê?
MARIA
Nada. ( Gomes, pp. 32 a 34)
O desdém pela possível intervenção materna e a entrega ao prazer denota a alteração
gradativa da submissão da moça. O processo de individuação de Maria José vai
acontecendo à medida que ela deixa de se interessar pela mundividência da mãe e passa a
ter ideias próprias. No trecho I, Maria começa a pensar diferentemente da mãe, enquanto a
mãe só pensa no casamento, a moça interessa-se pelo namoro. No trecho II, a sugestão de
52
―fechar os olhos‖, feita por José Maria parece consistir em uma metáfora para o
desconsiderar a realidade exterior e entregar-se cegamente às emoções.
No trecho III, a voz do cego apresenta um contraste à de Matilde. Ele que ouviu
toda a narração da senhora acerca do caso de sua filha não está tão certo de que não haverá
casamento. Outro cego, de luvas, faz versos sobre o caso e, neles, traça um paralelo entre
―águas descerem de um monte e correrem ao mar‖ e Maria não casar. No poema, a água,
símbolo de vida espiritual, de purificação e de regenerescência, vem de um monte, isto é
lugar elevado que aponta ao céu, e, por isso, remete a Deus, e desembocam no mar, que
representa o coração humano, lugar de paixões, cujo dinamismo oferece possibilidades e
ambivalências à vida humana. Além disso, a profundeza do mar é a imagem do
subconsciente. Observa-se, assim, a alusão ao trajeto percorrido por Maria José: ela deixa o
espaço seguro das normas religiosas, benévolas, mas repressoras, para voltar-se para seu
coração ou subconsciente em busca de construir uma vida própria e deixar de ser mera
sombra da mãe.
Matilde parece pressentir que a relação de Maria com um homem representa a
completa separação entre si e a filha. Ela repete, como para convencer a si mesma que o
rapaz não irá casar-se com sua filha: ―Ele não vai casar com ela! Ele não vai casar com
ela!‖. A insistência parece sugerir sua necessidade de que o casamento não ocorra, como
argumento para convencer a filha a deixar o rapaz.
Em outra parte do palco, a ruptura paulatina entre mãe e filha evidencia-se. Maria
José que, a princípio preocupa-se com a chegada da mãe e o juízo que esta fará ao encontrá-
la em intimidade com o namorado, entrega-se à paixão e deixa que o instinto prevaleça
sobre a razão ou as normas.
A cena subsequente parece oferecer à Matilde um motivo para uma epifania. Ela
admira-se de os cegos irem à uma tasca e eles respondem: ―Mas até um cego tem direito a
descansar de vez em quando.‖ Matilde, cega pelas convenções e por uma religiosidade feita
de regras castradoras, parece nunca ter considerado que também ela poderia ter direito a
prazeres. A rubrica parece indicar que alguma alteração ocorreu: ―MATILDE
ENCAMINHA-SE PARA CASA. VEM UM BOCADO TOCADA E A CANTAR O
TAM-TAM-TARAM.‖ (Gomes, p. 34) Matilde vem ―tocada‖, isto é, ébria. Ela entrega-se
a um momento de prazer. No entanto, sua moralidade nem assim é entorpecida, já que ao
53
chegar em casa e flagrar a filha em intimidade com José Maria, ela grita e fala mal dos
rapazes da época. Maria José, por seu turno, evidencia o contra-senso de uma senhora que
vive enclausurada, ou sai apenas para cumprir deveres religiosos, ser capaz de analisar ―o
que são os rapazes‖ da época. Matilde coloca-se como vítima sem culpa e cospe no chão.
Em um divertido artigo intitulado ―Cuspir no chão‖, Jota Vilela defende o ato de
cuspir como costume tipicamente português, desde tempos imemoráveis:
um homem digno desse nome não deixava de marcar no passeio da rua com uma
meia dúzia diária de impressões indeléveis, que o ajudavam a manter o seu
equilíbrio psicológico, descarregando dessa forma simples e terna toda a raiva
acumulada ( http, p.//www.anjoscaidos.jor.br/temas/temas/idiotice.html
Já para Ernout e Meillet (Dictionnaire étymologique de la langue latine (Paris, p. Klincksieck,
1967 s.v. spuo), o cuspe, na crença popular, tinha o poder de afugentar os males. O ato
também remete à serpente cuspideira que lança seu veneno a metros de distância visando a
acertar os olhos da vítima. De acordo com a primeira alternativa, o dramaturgo recupera
atitudes tipicamente portuguesas para continuar traçando o perfil de sua nação. Em
conformidade com a segunda hipótese, a atitude de Matilde sugere caráter rude e a intenção
de afastar o que lhe causa repugnância. A filha declara que não limparia a sujeira da mãe, o
que denota mudança de mentalidade, ela já não quer apenas fazer o que agrada a mãe e nem
estar submissa às suas regras.
Interessante notar que Matilde não usa a cena da intimidade da filha com o
namorado para a imposição do casamento, mas volta a pedir o rompimento da relação,
agora apelando em nome de Agostinho e do sofrimento de Jesus. A exclamação ―O valer-
me era a tempo!‖ parece um desabafo de alívio de Maria, e sugere que ela está agora no
comando e ditará novas regras: ou a mãe respeita sua individualidade, ou deverá sair de
casa.
―Casa‖ representa o ser interior, é também um símbolo do feminino, já que consiste
em um espaço fechado que fornece proteção como um útero, ou o colo materno, um refúgio
desejado. Dessa forma, Maria insinua o rompimento completo com a mãe e a completa
posse de seu ser interior. Matilde toma a declaração como um desafio de forças: ―Veremos,
Maria, veremos qual de nós é que vence!‖ (Gomes, p.36)
A cena que segue mostra o desdobramento das atitudes de Maria José e José Maria.
Ele, na tasca; ela, em casa, dedicam-se a cartas. Ele joga, ela ―deita cartas‖. Considerando-
54
se a formação religiosa de Maria, seu ato parece, na visão católica, herético; no entanto, o
tarô não precisa estar relacionado à cartomancia. Jung vê nas imagens do tarô arquétipos;
assim, ―Uma viagem às cartas do Tarô, primeiro que tudo, é uma viagem às nossas próprias
profundezas.‖ (Nichols, 2007, p. 18) Entrar em contato com arquétipos significa tomar
consciência de alguns dados do inconsciente coletivo, o que leva à individuação, isto é,
possibilita que a pessoa se torne inteira e distinta de outras pessoas ou da psicologia
coletiva.
Há um salto na linearidade da história para voltar à cena do cego no tribunal, que se
revela narrador das cenas subsequentes, que são simultâneas e revelam o desdobramento
das atitudes do casal. Enquanto José Maria, na tasca, joga cartas, Maria José, em casa, deita
cartas.
Somente depois de consultar as cartas, Maria vai ao encontro do namorado na tasca,
local onde o rapaz não quer que ela frequente. Essa cena aglutina as duas anteriores. A
atitude da moça denota certa autonomia da moça também no que se refere ao namorado, já
que não se submete inteiramente a José.
Repreendida pelo moço, ela revela que tem consciência de estar em um local que ele
não quer, mas declara tratar-se de assunto urgente: a proibição do namoro pela mãe e a
ameaça de prisão. Aqui, há transvocalização24
, um dado que é apresentado por Camilo pela
fala do narrador, agora é introduzido por Maria. A mãe teria ouvido que José foi acusado de
vadio e ratoneiro, o que acentua a aversão de Matilde pelo rapaz. A opinião de José Maria
sobre Matilde é expressa em uma palavra: ―Bruxa25
‖ (Gomes, p. 36) Dessa forma, o rapaz
parece intuir o poder de fascinação que Matilde, manipuladora, exerce sobre Maria a ponto
de colocar em risco o desenvolvimento do eu da moça.
Frente ao desespero de Maria José - que revela uma recaída diante do poder materno
- o namorado, sem abandonar as cartas, responde friamente que, nessas condições, o
namoro deve ser rompido para que Maria não tenha mais problemas.
A atitude de José Maria sugere segurança e autonomia. Ele não desiste de ser quem
é, não se dispõe a implorar misericórdia nem mesmo abandonar os prazeres - já que não
larga o baralho. Seu desdém mostra a consciência que tem de que o problema reside na
24 A nota 31 indica o significado do termo. 25 Interessante notar que a vestimenta negra também alude à figura da bruxa.
55
relação entre mãe e filha e não em sua reputação, mero pretexto para Matilde separar os
amantes.
Importa ressaltar a inserção da ideia do baralho. O jogo é símbolo de luta,
é um universo, no qual, através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar
seu lugar.‖[...] Mas debaixo do respeito às regras, o jogo deixa transparecer a
espontaneidade mais profunda, as reações mais pessoais às pressões externas.
(Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 518)
José Maria estimula sua emotividade e imaginação pelo jogo, pelo prazer; assim,
mantém sua individualidade em meio a uma sociedade repressora. Essa índole do rapaz é o
contraponto da subordinação passiva de Maria José, é a outra face no espelho, e representa
tudo de que ela carece para libertar-se do jugo da mãe.
Perante a postura altiva do namorado, Maria sucumbe e implora pela relação,
argumentando que o rapaz deve isso a ela já que ela ―se desgraçou‖ por ele. José questiona
essa fala e ela reconhece que não foi coagida, mas agiu espontaneamente ao entregar-se a
ele. Aqui surge a proposta: ―Se não posso entrar lá em casa por causa da velha... fá-la
desaparecer.‖ (Gomes, p. 37) José Maria não fala em matar, mas sugere o ―fazer
desaparecer‖, que pode ser uma metáfora para libertar-se do jugo da mãe; assim também o
―matar a mãe‖ pode associar-se a extinguir o domínio materno.
Na próxima cena, Matilde, em casa, implora a Deus pela filha e o cego/narrador,
no tribunal, comenta que ―Deus não quis tocar-lhe o coração.‖ (Gomes, p. 37) Verifica-se
novamente a técnica da simultaneidade26
.
A ação é subitamente interrompida por um fado, a música retrata o matricídio como
obra do destino, como fruto da vontade de Deus, o que condiz com o conceito de ―fado‖
como ―destino‖. Nega-se, dessa forma, o livre arbítrio:
Conceber a autoridade interna como ‗vontade de Deus‘ (o que implica admitir
que as ‗forças naturais‘ são ‗forças divinas‘) tem a vantagem de a decisão se
apresentar, em tal caso, como um ato de obediência e o resultado deste último
como algo planejado por Deus. Contra esta concepção objeta-se, aparentemente
com razão, que ela não só é muito cômoda, como também lança o manto da
virtude sobre o que não passa de um afrouxamento moral. (Jung, 2000, p. 24)
26 Processo de narração que consiste em apresentar, sem transição, acontecimentos que se desenrolam ao
mesmo tempo em lugares ou em momentos diferentes.
56
A relação entre a letra da música e fado, como destino, parece elucidar o motivo de
a peça apresentar a canção magoada. O sentimento fatalista revela pessimismo, espírito de
resignação e inércia diante de um destino inalterável. Fernando Gomes retoma alguns
dizeres exageradamente sentimentais do narrador camiliano e os transforma em um hino
que evidencie o sentimentalismo, não como uma característica do romancista, mas do povo
português.
O cego retoma a narrativa enunciando que Maria encontra sua mãe atordoada, sem
comer nem beber. Novo corte na linearidade dos fatos ocorre e proporciona a sobreposição
de dois planos temporais. Os ―cegos estropiados‖, que remetem a um momento da história,
posterior aos acontecimentos, comentarão sentimentalmente a cena do encontro entre
Maria José e a mãe. Essa cena torna-se fragmentada, já que é cortada pelos comentários
dos cegos.
A mesma inação que Matilde planejara ao perder o marido agora se dá pela
iminência de perder metaforicamente a filha. Retomando os dizeres da narrativa camiliana
(transvocalização), os cegos contam a história e repetem que ―atentada pelo demônio‖, a
filha é cruel com a mãe. Cabe ressaltar que o termo ―demônio‖ pode não ter sido usado no
sentido religioso, mas sim em sua acepção etimológica: ―Demônio conforme a etimologia
grega, daimónion: [é o] gênio inspirador, não necessariamente mau, mas sempre disruptor
em relação à tábua de valores vigente27
Trata-se, portanto, de um impulso que leva à
transgressão de regras, atitude que Maria só poderia ter, como já se afirmou anteriormente,
pela influência de um homem – ou do outro eu - que a libertasse do domínio materno.
Matilde, em atitude de humilhação e súplica, procura suscitar a culpa na filha por
ser ingrata a uma mãe sempre carinhosa e presente. Refaz-se aqui o caráter lupino da mãe,
ela procura devorar o ―eu‖ da filha pela opressão ―através de um prolongamento excessivo
da função alimentadora e guia: a genitora devorando o futuro genitor, a generosidade
transformando-se em captadora e castradora.‖ (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p.580).
Maria, no entanto, não sucumbe, e ameaça a mãe. José Maria chega e a moça abraça-o e
beija-o na frente de Matilde, que arranca ―do peito um grito de dor‖ (Gomes, p. 38). Ela
parece sentir fisicamente a dor de ter uma filha que já não compartilha de sua visão de
27Per Johns, ―Realismo fantástico e floração ecológica‖ http,p.//www.revista.agulha.nom.br/ag51johns.htm.
57
mundo. Deslocando para este momento o episódio de não encontrar o dinheiro, que, em
Camilo, ocorre quando a moça está ausente, Fernando Gomes torna a cena mais dramática.
Sem encontrar o dinheiro, Matilde desmaia, José Maria propõe que a filha dê cabo
da mãe e depois usa a palavra ―matar‖. Cumpre reiterar que a proposta não precisaria ser
tomada denotativamente, mas é assim que a moça consegue captá-la. Como na primeira
edição da narrativa camiliana, Maria hesita, declara ter pena da mãe, temer que alguém a
escute e propõe que todo o problema se dissolva pelo casamento. O rapaz sugere que a
namorada o faça durante as aulas da Mestra. José Maria não é retratado como o vilão do
livro camiliano, mas sua rejeição ao casamento parece representar a recusa da visão de
mundo de Matilde; assim, José Maria sai sem dar atenção às palavras de Maria.
Indignada com a situação, Maria descompõe a mãe, chamando-a de ―estupor‖ e
―estafermo‖. Essas palavras, além de possuírem sentido pejorativo, referem-se a estados de
entorpecimento ou suspensão de atividade. ―Estupor‖ é um substantivo masculino (do
latim stupóre, «entorpecimento») que denota o estado de suspensão da atividade física e
psicológica em que o doente, embora consciente, se mantém imóvel e não responde a
estímulos externos; ―estafermo‖ também um substantivo masculino (do italiano stà fermo,
«está firme») é depreciativo e refere-se à pessoa parada.28
Em Camilo, não seria pertinente
tomar as palavras nesse sentido; em Fernando Gomes, no entanto, talvez a inação seja a
característica de Matilde que mais incomode a filha, já que cabe a ela preencher a lacuna
deixada pela falta de atitude da mãe.
Maria José parece tornar-se consciente da incapacidade da mãe de adaptar-se a
novas situações, e o estatismo e apego a regras estratificadas decorrente dessa inabilidade
perturbam a moça. Irritada, ela manda a mãe sair de casa. Esta concorda, desde que tenha
seu dinheiro de volta.
Sob pretexto de buscar o dinheiro, Maria sai, calculando a que horas mataria a mãe.
Fernando Gomes altera o horário da narrativa de Camilo, em vez de o matricídio ocorrer às
dez horas; na peça, acontece às onze e meia. Dez é o número da totalidade, do universo;
onze pode ser considerado um ―desdobramento hipertrófico e desequilibrador de um dos
elementos constitutivos do universo (10): o que determina a desordem, a doença, o erro.‖
Para Santo Agostinho, onze é o brasão do pecado. Além disso, o número remete à iniciativa
28 http, p.//www.infopedia.pt/pesquisa?qsFiltro=14
58
individual, sem levar-se em conta a harmonia cósmica. (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p.
660 e 661). A atitude de Maria é, assim, determinada como um erro de julgamento, a
proposta de José Maria poderia ter sido realizada metaforicamente, isto é, a filha deveria
eliminar a influência da mãe, não tornar-se assassina. O rapaz não fala em matar a mãe e
ainda elogia a atitude da filha em preocupar-se com devolver-lhe o dinheiro.
Na próxima cena, Maria volta à taverna para contar da descoberta da mãe acerca do
dinheiro. Cumpre transcrever a cena:
MARIA
José Maria! José Maria! Preciso de falar contigo.
JOSÉ
Outra vez?!
MARIA
Ela descobriu do dinheiro... do Pé-de-meia!
JOSÉ
E tu... fizeste o que tinhas a fazer?!
(beija-a)
MARIA
Disse-lhe... que lho levava.
(José Maria pega numa maçã e na faca. Dá-lhe a faca e trinca a maçã)
JOSÉ
Fizeste bem! Fizeste muito bem. Só mostras que és uma boa filha.
(Leva-a até à porta.) (Gomes, pp. 40 e 31)
A rubrica apresenta um acréscimo de episódio e dá informações valiosas sobre a
mundividência de José Maria. A maçã é símbolo de conhecimento e de liberdade, o moço
come da maçã e dá a faca à Maria, instrumento que tem o poder de afastar as influências
maléficas, o princípio ativo modificando a matéria passiva. 29
Refaz-se, assim, o sentido
metafórico de eliminar a mãe; no entanto, a moça vai tomar a faca como um instrumento de
sacrifício.
A cena posterior, enfoca José Maria, na tasca, em conversa com os cegos, matando
Matilde metaforicamente, uma vez que a desmoraliza, apresentando-a como louca. Ele
mente, dizendo que Matilde está enlouquecendo, que se recusa a comer e grita que quer ir
com o marido. Os cegos comentam que ela nunca teve muita saúde e repetem o fato,
narrado em cena anterior, de ela enjoar de andar de burro. Este animal ou o asno representa
a vida no plano terreno e sensual, a libido, o elemento instintivo30
; nesse sentido, a recusa
29 (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 414) 30 Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 93)
59
de Matilde a andar no animal pode relacionar-se à sua opção, depois da morte do marido,
por tornar-se alheia a tudo a que se refere à matéria, o que a torna ainda mais repressora,
porque o é também consigo mesma.
A cena seguinte ao mesmo tempo em que a anterior se fecha, promove-se,
inicialmente a simultaneidade dos fatos. Em diálogo com a mãe, Maria José diz estar muito
nervosa, ao que a mãe atribui a uma característica de família, já que também ela e Maria do
Céu sofrem dos nervos. A moça dissimula ser carinhosa e pede à mãe que a cate.
Em Camilo, a filha oferece-se a catar a mãe, aqui as circunstâncias invertem-se.
Aparentemente submissa, a moça desarma a prevenção da mãe e investe contra ela,
esfaqueando-a no peito e no pescoço, como no texto de Camilo.
A peça finaliza com a opinião do narrador que apenas repete os dizeres sentimentais
camilianos e situa o matricídio em Lisboa de 1848. Não há menção ao esquartejamento,
este só é sugerido na cena inicial em que narradores repetem a introdução do cordel
camiliano. Em Camilo, o enfoque social e psicológico vale-se da cena atroz para renovar
as convenções e sugerir a artificialidade e hipocrisia da moral vigente. Em Gomes, a
paródia do comportamento pacato e resignado do português sobrepõe-se ao grotesco. A
individuação de Maria José, conquistada pelo matricídio, importa como sugestão de que é
necessário romper com as normas estratificadas para haver renovação.
Corrobora essa tese a inserção do fado. Esse tipo de música é símbolo da nação
portuguesa; por isso sua introdução abre a possibilidade de haver dois significados para o
ato de matar a mãe. Por um lado, pode referir-se à situação específica de Maria que, para
individuar-se, precisaria extinguir a ideologia materna. Por outro, remete ao português que
deve abandonar a visão fatalista e desfazer-se do apego a uma pátria gloriosa no passado
para poder se afirmar como nação. Nesse sentido, o nome das personagens não faz, como
em Camilo, uma menção irônica a figuras religiosas, mas é um meio de tornar os
protagonistas um retrato genérico do português; são nomes comuns que podem aludir a
qualquer portuguesa ou português.
Assim, a peça amplia o texto camiliano. Camilo quer comover e apenas insinua uma
crítica a alguns elementos-chave da concepção de nacionalidade portuguesa. Fernando
Gomes emprega o humor, sobretudo o nonsense, para revelar a falta de sentido da
resignação diante das dificuldades. A frase do pai de família diante das propostas de esposa
60
e filhas de se sacrificarem após sua morte – ―Que falta eu faço nesta casa!‖ – em
contraposição à ação dessas mulheres depois do falecimento sugere como é vã a crença na
imprescindibilidade do patriarca. Inserida no contexto da peça, a frase denota um orgulho
exacerbado e ridículo que gera o riso. Declarar-se um homem insubstituível mostra um
sentimento de superioridade diante da família que pode ser comparado à conduta prepotente
de alguns no poder.
Entretanto, este patriarca altivo e arrogante contracena com um bêbado momentos
antes de morrer e sua fala tem que ser traduzida pelo rapaz ébrio que bebe o vinho da
família e domina a situação enquanto todos os demais ficam sem ação.
Ainda mais rebaixado é Agostinho, pai de Maria, por morrer sobre um prato de
comida, deixando à família o cascalho que o patrão lhe legara por anos de trabalho em uma
pedreira. As mulheres, submissas ao destino, agradecem a Deus e declaram: ―Quem nada
tem, com pouco se contenta.‖ (Gomes, p. 13)
O humor amplia-se pela inserção de seres diferentes do padrão: um fadista, um
padre que frequenta tavernas, um bêbado, um coxo, freiras pecadoras, um cego, um cego
surdo-mudo, um cego mouco, um cego corcunda e um cego enluvado, imagens disformes,
incompletas, distantes do sublime, cumprem a função de promover a libertação do ponto de
vista dominante e sugerem a possibilidade de haver uma nova ordem. Alegres, essas
personagens deixam entrever que seguir padrões não significa lograr ou alcançar a
felicidade. As fronteiras entre o real e o ideal são colocadas em xeque.
O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem
a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e
liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim
disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. (Bakhtin, 2010, p.
43)
Além disso, há a censura a religiosidade beata pela menção à simonia; sugere-se
algum desinteresse pela ideia de família já que sustentar esposa e filhos pode ser tão pesado
que pode levar à morte; e insinua-se um julgamento desfavorável à pátria, ao declarar que
―o maior crime que já viu o mundo‖ foi praticado em Lisboa.
Justifica-se, por esse viés, a escolha do dramaturgo pela primeira edição em
detrimento da terceira. O foco de Fernando Gomes não está em analisar a dualidade do ser
humano, como a terceira edição, mas em ampliar a análise de Camilo e, passando pela
61
realidade de seu país, torná-la universal. A peça funciona como um alerta de que se há de
desfazer o procedimento de atribuir a forças divinas o que é responsabilidade humana para
que, assumindo-se erros e defeitos, se possa estabelecer uma identidade própria e original.
Trata-se de ―matar a mãe‖ metaforicamente para libertar-se do jugo opressor de um passado
pretensamente honrado e digno a fim de construir-se um futuro próspero e peculiar, tanto
no âmbito individual - e, por extensão, humano, universal, - quanto no coletivo ou pátrio.
A lascívia gera o crime, mas, ao contrário do que ocorre no texto camiliano, trata-se
também de um meio de individuar-se. Maria José não sabe como libertar-se de um espectro
de proporções tão desmedidas. No texto camiliano, a lascívia, o desregramento da vontade,
levam ao pecado, Matilde é mártir, já que mãe dedicada e altruísta, sofre em nome das
regras. Em Fernando Gomes, por outro lado, a mãe é mesquinha, nociva, egoísta,
devoradora. Derrotá-la corresponde a eliminar o lobisomem, combater uma disciplina
estratificada e sem sentido. O mecanismo da desvalorização31
e da contra-valorização32
são, portanto, fundamental para a alteração e alargamento do significado da narrativa
camiliana.
Desvaloriza-se Matilde e contra-valoriza-se o discurso português cristalizado pelo
uso de ditados, de expressões populares e pela inserção do fado. Assim, Maria José e José
Maria são transvalorizados33
, não são apenas filha ingrata e moço desonesto, como no
hipotexto, mas indivíduos com visão própria, pessoas que procuram impor-se, combatendo
o domínio e a opressão.
Outros mecanismos utilizados por Fernando Gomes que colaboram para a alteração
do sentido do hipotexto são a transposição de caráter semântico, que se verifica nas
modificações verbais para efeito cômico34
e nos ditados modificados35
; a
31 Genette considera ―desvalorização‖ o alterar o papel de uma personagem superior, rebaixando-a,
conferindo-lhe uma condição meramente humana. 32 Em Genette, a ―contra-valorização‖ tem por objeto um discurso desencantado que repete verdades
cristalizadas e ressalta a solidão da natureza humana comum. 33 ―Transvalorizar‖ significa, em Genette, dar valor a uma personagem que era desvalorizada (ou vice-versa). 34 Gomes aproveita o fato de o nome do pai da família estar no diminutivo para gracejar.
MATILDE
Agostinho!
CÉU
Paizinho!
AGOSTINHO
Minhas queridas filhinhas!
62
―transmodalização‖ ou a alteração na forma, de narrativa para drama (dramatização) ; a
―motivação‖ ao, por exemplo, introduzir o diálogo de Maria do Céu com o santo, ou, ao
tecer uma crítica à simonia, motivos que o hipotexto oferecia, mas não desenvolveu.
Também a ampliação pela inserção de episódios de cunho humorístico, como o julgamento
com cegos por testemunhas e as cenas na tasca ampliam o significado do texto camiliano. A
extensão pelo acréscimo de personagem, de episódio, de motivo, de tema, e de recursos
linguísticos, colabora para a estilização do livro.
Cumpre, ainda apresentar um recurso que não havia sido elencado por Genette: a
transtonalização, isto é, a alteração no tom com que a narrativa é veiculada. Se em Camilo
o tom é sentimental e comovido, em Gomes, há um caráter jocoso que perpassa todas as
cenas. O humor é o meio de o dramaturgo veicular sua visão de mundo. Na peça, as
personagens são retratadas como ridículas (Matilde, Agostinho, Lua) ou inconsistentes
(Maria José, Maria do Céu, Sol), o que não gera a identificação do leitor/ espectador,
condição essencial para o riso. Em um meio constituído por pessoas supersticiosas e
ignorantes, prevalece o senso crítico de um Bêbado, a perspicácia de um malandro (José
Maria) ou a jovialidade de alguns cegos que sabem se divertir e meio às desgraças. Talvez
quem melhor enxergue a realidade sejam estes últimos que sabem tirar proveito de
calamidades. Como se intuísse que o cômico é provocado pela rigidez dos que se recusam a
abandonar antigos valores para progredir, Fernando Gomes castiga os costumes pelo
humor.
Toda a rigidez de carácter, de espírito, e até de corpo, será por isso suspeita à
sociedade, porque ela é o sintoma possível de uma atividade que se isola, que
tende a fugir do centro comum em volta do qual a sociedade gravita, duma
excentricidade, enfim.
[...] uma certa rigidez de corpo, de espírito e de carácter que a sociedade gostaria
ainda de eliminar para obter de seus membros o máximo de maleabilidade e a
mais alta sociabilidade possível . Essa rigidez é o cômico e o riso é seu castigo.
(Bergson, 1993, pp. 27 e 28)
Os meios pelos quais Gomes suscita o riso são vários, mas os motivos giram em
torno do automatismo individual e social: são os dogmas religiosos, a inércia na desgraça
(ser feliz na pobreza, no contexto, significa não agir para mudar a situação) e o
Gomes, p. 4.
Em ―comer sopa de pedra‖ torna denotativo o uso da palavra ―pedra‖ p. 16. 35 ― Cada um tem sua pedra.‖ Gomes, p. 6. (pedra está no lugar de cruz)
―O cascalho que o diabo amassou‖ Gomes, p. 9. (cascalho no lugar de pão)
63
oportunismo (cegos, que ganham dinheiro vendendo histórias de desgraças, lamentam-se
por não haver muitos crimes que levem à compaixão). Assim, o dramaturgo revela-se,
também como Camilo, conhecedor da alma portuguesa e atento à sua época. Pela
transtonalização, Gomes gera a paródia; pelos acréscimos, a estilização. Cabe criar uma
expressão que dê conta de sintetizar esses procedimentos. Propomos estabelecer que Gomes
cria uma paródia estilizadora. Paródia, enquanto sugestão de uma intenção diferente da do
paradigma; estilizadora, por ampliar conceitos e significados já presentes em Camilo.
Corrobora essa hipótese, o tom adotado por Gomes. Não se trata mais de uma
narrativa melancólica, mas de um humor alegre e festivo que convida o leitor / espectador a
tornar-se cúmplice da perspectiva adotada. O riso exige um espectador que se distancie do
que é ridículo para que possa divertir-se com ele. Também o modo como o dramaturgo
fragmenta o texto camiliano e o recompõe validam a tese. Episódios que se passam em
lugares e tempos diferentes se justapõem, sugerindo simultaneidade, desconcerto,
alinearidade. Assim, a desintegração do texto espelha o esfacelamento de Maria José, já
que, inicialmente, ela não tem personalidade própria por ser mera sombra da mãe e depois,
não sabe organizar seus lampejos de consciência. Como ela, o texto parece fragmentado e
somente com seu decurso surge uma síntese. Outro mecanismo ainda não previsto por
Genette deve ser nomeado: a transorganização, ou alteração da ordem estabelecida pelo
hipotexto dos fatos e dos dizeres do narrador.
Esquartejando o texto camiliano, Gomes revela o intuito, semelhante ao do cubista,
de renunciar à perspectiva tradicional. Pela linearidade, um julgamento seria conduzido,
uma causa seria apresentada. A fragmentação e a multiplicidade de focos narrativos, por
outro lado, pulveriza uma sentença única e irrevogável, coloca a verdade instituída em
xeque. Duas técnicas cubistas foram, então utilizadas. Como um pintor cubista da fase
imitativa e visual, Gomes lança mão do espelhamento (Maria José / José Maria; Maria José
/ povo português; Matilde / pátria; fragmentação do texto / dilaceração da personalidade de
Maria) para sugerir a simultaneidade. Além disso, da mesma forma que os cubistas da fase
analítica e experimental, o dramaturgo se vale do rebatimento e superposição ou
fragmentação poliédrica de planos para sugerir a necessidade de se observar a realidade sob
ângulos diferentes.
A aplicação do simultaneísmo caracteriza a segunda fase do Cubismo, qualificada
por Juan Gris de ―analítica‖, devido à decomposição crescente da forma.
64
Reúnem-se em uma tela única diversos aspectos do mesmo objeto, de maneira tal
que se apresenta quebrado, desenvolvido por todas as faces, aberto no interior [...]
não tal como se vê mas como se pensa, como existe em si e no espírito.36
O rompimento com a linearidade sugere o quebrar de um invólucro para que se
possa sondar o que há em seu interior. Daí, como as máscaras de Picasso, as personagens
revelam, em cada cenário, uma face. Semelha-se à identidade do homem da pós-
modernidade, composto por várias faces.
O texto camiliano, nas mãos do dramaturgo, terá intuito semelhante ao da colagem
da areia, vidro, jornal nos quadros cubistas, remeterá à realidade do cotidiano. Dessa
forma, o texto, como a arte cubista, dirige-se à inteligência, ao espírito.
A proposta de romper com uma ideologia passadista, ou com um ponto de vista
único acerca da realidade, reitera-se, portanto, pela ―transorganização‖ do texto. O
desconcerto é sugerido pelo rompimento com uma perspectiva única do fato narrado, a
estrutura da peça sugere o descompasso do homem moderno em meio a uma mentalidade
retrógrada.
36 Ashbery et alii, 1981, p. 76.
65
DAS PAIXÕES HUMANAS
III. 1 Amor é perdição
Camilo tornou-se célebre com a novela passional Amor de perdição. O escritor
suspeita, no entanto, do êxito do livro e desaprova a qualificação da novela como o ponto
alto de sua produção literária e, portanto, superior ao Romance de um Homem Rico e às
Estrelas propícias (Branco, 1984, p. 378). Em notas à segunda e quinta edições, ele
evidenciou seu ponto de vista crítico, julgando que o público-leitor e a crítica valorizam o
livro por trazer peripécias abundantes, diálogos concisos, linguagem acessível e ausência de
digressões filosóficas. Em outros termos, o novelista sugere que a superficialidade do livro
é motivo da conquista do público. Nesse sentido, o autor lança ironicamente sua primeira
crítica aos leitores e apresenta dissimuladamente a consciência de que sabe que seus livros
menos aceitos revelam muito mais sagacidade e espirituosidade que o Amor de perdição.
Entretanto o caráter polêmico do novelista nunca foi sua face mais agradável à sociedade da
época.
Em 1863, antes de o Realismo instaurar-se em Portugal, Camilo já sugere uma
preocupação realista no que tange à análise psicológica do ser humano: ―estou quase
convencido de que o romance, tendendo a apelar da iníqua sentença, que o condena a fulgir
e a apagar-se, tem de firmar sua duração em alguma espécie de utilidade, tal como o estudo
da alma, ou a pureza do dizer.‖ (Branco, 1984, p. 378). O novelista exime-se, no entanto,
de dedicar-se a essas tarefas, alegando que o estudo da alma humana já foi feito
sobejamente pelos clássicos e que o estudo da língua não lhe pode ocupar o tempo quando
outras preocupações lhe dominam. Contudo, a atenção à língua portuguesa verifica-se,
sobretudo, pela transcrição de ditados populares37
. Dessa forma, Camilo corrobora para a
veiculação de um retrato realista38
do povo português em sua cultura e mentalidade; as
personagens burguesas expressam-se de maneira semelhante à do narrador, mas o povo
parece dotado de um estilo próprio e vigoroso.
37 Os ditados populares são veiculados em Branco, 1984, p. 419, 421, 431, 432, 453, 461, 462, 511. 38 Realista aqui se refere não apenas à fidelidade ao mundo concreto, como também à preocupação com a
alma humana.
66
Os paratextos são essenciais para a compreensão do livro. No ―Prefácio da Quinta
edição‖, redigido em 1879, quando o Realismo domina o gosto do público-leitor, Camilo
não deixa de revelar sua concepção acerca dessa literatura quando cotejada com a narrativa
que lhe tornou famoso.
O Amor de Perdição, visto à luz elétrica do criticismo moderno, é um romance
romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas ideias celeradas
que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não cessarei de dizer mal
dessa novela, que tem a boçal inocência de não devassar as alcovas, a fim de que
as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e
não precisam de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém,
que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora, como indenização,
faz rir: tornou-se cômico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o
ranço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodoro de Almeida39.
[...] Faz-me tristeza pensar eu que floresci nesta futilidade da novela quando as
dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da
decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha
a frequência de Quintiliano `a do ‗Colete Encarnado‘.[...] Naquele tempo,
enflorava-se a pústula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-
se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar num espelho fiel.40
A ironia camiliana amarga e aguda é evidente no excerto transcrito, em que julga,
com certo rancor, o Realismo/Naturalismo. Caracterizada por enunciados enganadores sob
variedade complexa e extensa de tons, intenção e efeitos‖ (Hutcheon, 2009, p. 73), trata-se
de uma ferramenta útil para subverter, criar cúmplices, desestabilizar, e ao mesmo tempo,
autoproteger-se. O que desgosta o novelista naquela literatura não é a análise que beira o
cientificismo, não é o desvendar da psicologia e comportamento humanos, não é o tom de
deboche para com a hipocrisia coetânea, mas a predileção por seres de exceção,
patológicos, que não condizem com a realidade em geral. Daí lançar ao leitor assíduo
dessas narrativas uma crítica a seu comportamento: ―vende-se bem, porque muita gente
não desgosta de se narcisar num espelho fiel.‖ (Branco, 1984, p. 381-2)
Em seu texto, Camilo não se restringe a mazelas, mas elege elementos universais:
―as dores da alma‖. Nesse sentido, as personagens camilianas revelam o modo de ser do ser
humano em geral. A dor que angustia esses seres é fruto de um sentimentalismo
característico do português. É o descontrole perante as emoções, o lirismo que domina o
inconsciente coletivo português.
39Gonçalo Fernandes TRANCOSO (n. Trancoso?, 1510?- m. Lisboa, 1580?) Padre Teodoro de Almeida
(1722-1804) Ambos os escritores apresentam reflexões claramente moralizantes. 40 (Branco, 1984, p. 381-2)
67
Outro dado fundamental para o estudo da mundividência camiliana é a alusão
intertextual a dois escritores portugueses: Trancoso e Pe. Teodoro de Almeida. A leitura
dos livros revela o intuito de Camilo ao compor seu Amor de Perdição.
As Histórias de Trancoso evidenciam a importância de valores como coerência
entre ações e fala, a perseverança na fé, o cultivar a verdade, a manutenção da serenidade
nos infortúnios, o controle sobre os impulsos de soberba, a dedicação à caridade e à
amizade. As virtudes são o cerne dessa narrativa que enfatiza a caridade como a síntese das
qualidades necessárias ao homem.
A referência ao livro de Gonçalo Fernandes Trancoso parece sugerir a busca de
Camilo por caminhos que levem à serenidade necessária a um espírito atribulado como o
seu, essencialmente romântico e português. O amor desinteressado, gratuito, surge como
meio de dirigir as emoções de um ser que sofre por ser dominado por paixões imoderadas.
Pela caridade, alcançar-se-ia equilíbrio e bem-estar, refrear-se-iam os impulsos insensatos,
ditados por uma natureza excessivamente apaixonada.
As ideias apresentadas no texto de Trancoso são reiteradas pelo livro do filósofo
português Pe. Teodoro de Almeida. Em O Feliz Independente, o autor propõe a contenção
de emoções como chave para o homem ser feliz. Assim como as personagens camilianas, as
de Almeida referem-se às desgraças como uma fatalidade, obra de um Fado impiedoso. No
entanto, no decorrer da narrativa, uma princesa chamada Sofia (Sabedoria) revela que o
Fado é ―uma coisa fabulosa e que nunca existiu, senão na cabeça do vulgo!‖ (Almeida,
2001, p. 103) ao que o protagonista responde:
A Mão suprema (diz Misseno) que, com altos e justos desígnios, vai governando
este mundo, nem sempre nos deixa ver quais são os seus fins soberanos. Nós
ignorantes e cegos, toda a vez que vemos certos acontecimentos, sem poder
descobrir o motivo deles, julgamos que não houve desígnio algum premeditado;
e, deste modo, antes queremos supor o defeito em Deus [...]. Eis aqui o que o
povo chama de Fado ou Acaso é um acontecimento do qual se ignora o motivo:
ora se o sucesso, cuja causa ignora, foi favorável, lhe chamam Fortuna, se
injucundo, Desgraça. (Almeida, 2001, p. 103)
Assim, Misseno, o protagonista, não desfaz a noção de Destino, mas o atribui a um
Deus misericordioso que não pode tramar o mal do homem, apenas o seu bem. O próprio
homem, no entanto, quando se deixa levar pelas paixões, desencaminha-se e se entrega à
Tristeza. Quem leva o homem ao fracasso é, portanto, o descontrole emocional. Pronuncia-
68
se, assim, que há o meio de o ser humano alcançar a felicidade e é o autocontrole, o que só
pode advir da ponderação racional.
O Amor excessivo é fonte e origem de todo sofrimento, entregar-se às paixões é
mera ilusão de felicidade. As personagens camilianas são movidas pelo Amor, pela
Vaidade, pelo desejo de Glória e pelo Interesse, as Paixões consideradas por Pe. Teodoro
como as mais nocivas e vigorosas. Sofia sintetiza-as como efeito do Amor-Próprio
excessivo e explica que mesmo Amor se subordina ao Amor-Próprio pelo fato de o amante
querer no convívio com a amada a auto-satisfação. Em Camilo, o herói desiste de servir sua
amada quando, para isso, tem que abrir mão de sua liberdade. Simão evidencia que nem o
amor de Teresa é o suficiente para que aceite permanecer no cárcere em Portugal por dez
anos.
A narrativa camiliana retrata uma sociedade egoísta preocupada com as aparências,
com a boa reputação na opinião pública. Granjeia-se a glória, cultivando-se a vaidade e o
interesse.
O tema do desequilíbrio oriundo da entrega às paixões interessa particularmente
Camilo. Entregue ao estudo dos sentimentos humanos, da alma humana, o novelista dedica-
se, nos quinze dias em que esteve preso por adultério, a recompor uma história de paixão de
familiares próximos. Espelhando sua experiência nos relatos que encontra sobre um caso de
amor também de perdição. O intuito do escritor parece ser alcançar o autocontrole pelo
estudo da alma humana: ―[...] cada vez conheço mais os homens, cada dia me posso
governar melhor nas minhas acções, porque este é o principal fruto que cada qual há-de
tirar do conhecimento dos outros.‖ (Almeida, 2001, p. 390)
Como na tragédia, a narrativa camiliana suscita o horror e a piedade para levar o
homem à reflexão sobre sua conduta. O sucesso do livro como o Romeu e Julieta português
não agrada o escritor. O final de sua narrativa sugeriria a intenção de reorganizar a índole
dos que não sabem controlar suas emoções e sofrem por isso.
No ―Prefácio‖ à primeira edição, Camilo apresenta Teresa e Simão como pessoas
―perdidas‖ pelo amor. O narrador afirma que o moço perdera a ―honra, reabilitação, pátria,
liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo‖; no entanto as ações e dizeres do protagonista, bem como
os comentários das demais personagens acerca de Simão apresentam-no como homem cuja
dignidade está acima de suspeitas.
69
Simão tem índole arrogante, considera desonra deixar uma ameaça impune (Branco,
1984, p. 412), e a submissão uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta
(Branco, 1984, p. 447 ). Ao assassinar Baltazar, não foge, mas declara-se culpado e
considera a forca um triunfo quando se encontra ao cabo do caminho da honra (Branco,
1984, p. 483). É associado a Louis Antoine Léon de Saint-Just , Mirabeau, Danton,
Robbespierre, Desmoulins, personagens que lideraram a Revolução Francesa. Não é de
estranhar que pronuncie frases como ― meu coração é indiferente ao destino de minha
cabeça ― (Branco, 1984, p. 474) ou
Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está aos meus olhos
coberto de forcas, e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço
vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a
opulência; nem já agora a realização das esperanças que me dava o teu amor,
Teresa! (Branco, 1984, p. 525)
Teresa, por seu turno, resiste à vontade do pai, declara morrer contente, mas não
casar com o primo (Branco, 1984, p. 435), considera-se mais livre no convento, já que
mantém a liberdade do coração, ainda que esteja em meio corrupto (Branco, 1984, p. 436).
Para ela, a morte é a misericórdia divina (Branco, 1984, p. 534). ―É mulher varonil, tem
força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreensões, se são
apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas
vontades de seu pai.‖ (Branco, 1984, p. 409). Tanto Teresa quanto Simão desdenham sua
vida cômoda em meio à família em prol da luta frustrada por um amor impossível. Essa é a
face genuinamente romântica do casal: entregar-se cegamente às emoções. A sociedade é
afigurada como um ente tirano que lhes impõe determinados comportamentos e emoções
dos quais o homem não consegue escapar.
Mariana ama sem ser correspondida, sem ter ao menos a ilusão de que um dia possa
casar-se com o homem amado. Ela dedica sua vida, juventude, reputação e bens em nome
de um sentimento puro e desinteressado. Mais de uma vez, João da Cruz e a filha deixam
claro saberem que não é possível haver uma relação de amor entre a filha de um ferreiro e o
filho do juiz Domingos Botelho. A filha do ferreiro é dotada de nobreza interior, não de
linhagem, por isso não interessa à sociedade burguesa. Cumpre resignadamente o papel de
criada do rapaz que ama. Antes de conhecê-lo, nunca se interessara por outro, era o amparo
70
e proteção do pai que lhe satisfazia a vontade, refreando os impulsos nocivos. A devoção ao
pai também era-lhe excessiva já que estava disposta a suicidar-se, ou ir com ele ao degredo,
se este fosse condenado.
O sentimento filial parece intensificar-se no amor por Simão. Assim que o vê como
filho do homem que livrou seu pai da forca, Mariana encanta-se. Sua resignação e
humildade é tal que se torna a confidente de Simão e Teresa e dispõe-se a ajudarem-nos a
comunicar-se.
O caráter romântico da personagem insinua-se de várias maneiras: pela abdicação
de si em prol do amor; por sua intuição aguçada revelada em sonhos e presságios; pela
sensibilidade intensa que a leva à loucura ao saber que o amado fora condenado à forca.
Sua vida gira em torno da de Simão; por isso declara que ―saberá morrer‖ (Branco, 1984, p.
517) se o rapaz for condenado. É presença constante e fiel ao lado do moço quando este já
não tem com que contar. Diante desse amor tão dedicado, o narrador comenta:
O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é
gratidão ao homem que salvou a vida de teu pai, que rara virtude a tua! Se o
amas, se por lhe dar alívio às dores tu mesma lhe desempeces o caminho por onde
te ele há de fugir para sempre, que nome darei ao teu heroísmo! Que anjo te fadou
o coração para a santidade desse obscuro martírio?! (Branco, 1984, p. 456-7)
Esse questionamento sugere que o título de amor de perdição cabe, também, a
Mariana e a todos os que sofrem por amor. O texto sugere, então, o dilema do homem da
época, a angústia de um ser cindido entre suas emoções e as convenções que o limitam,
impondo-lhe a dissimulação como meio de conquistar o reconhecimento e aceitação
públicos.
Nesse contexto, o autoconhecimento é uma das chaves para o reencontro da
completude, da tranquilidade perdida pela exacerbação dos sentimentos.
Porque el Amor es um anticipo de esos sufrimientos y de ese deleite que
experimentará el alma cuando vuelva a Dios, cuando se rompan los sofocantes
lazos del cuerpo y de la ilusión... Al elevarse en el alma la poderosa voz del
Amor, no es uma fuerza solamente, sino todas las fuerzas del alma y del cuerpo
las que se despiertan y agitan. Y ese movimiento ejerce una acción disolvente
sobre el individuo estrechamente limitado; es como una atracción que arrebata al
alma fuera de sus fronteras terrestres, hacia una nueva existencia. (Béguin, 1993,
p. 157)
71
O Amor desinteressado, gratuito, conduziria o homem ao retorno a si mesmo, ao eu
sem máscaras sociais. Cultivar o sentimento de caridade torna o ser humano equilibrado e
apto a sondar as regiões profundas em que todas as almas relacionam-se com a Unidade
comum. Esse sentimento elevado seria capaz de extinguir o isolamento do indivíduo, de
exterminar os limites físicos e temporais. O mundo efêmero e castrador perderia a
importância pela magia de um sentimento virtuoso o bastante para derrubar as imposições
da realidade material.
A caridade é também uma forma de o homem buscar Deus em si mesmo,
reconciliar-se com os vestígios da divindade que ainda lhe restam a fim de restituir a
unidade primitiva. O romântico elege locais ermos e sombrios, propícios à auto-sondagem
em busca da integridade perdida.
O universo interior humano só é integral quando não se reconhece como indivíduo e
ser social. O autor romântico, incentiva o contato com o universo interior, alertando para a
necessidade de abandonar as exigências de uma sociedade que incita a agravação do
individualismo egoísta. Camilo considera a história de Simão e Teresa um meio de
apresentar sentenças ―contra a falsa virtude de homens, feitos bárbaros, em nome da sua
honra.‖ (Branco, 1984, p. 384).
O novelista apresenta no caso de Simão e Teresa o amor espiritualizado que
prescinde do contato físico. Tanto Teresa quanto Simão sabem da impossibilidade da
realização de seus sentimentos, mas nem por isso desistem de sua união que se dará após a
morte, na eternidade. Trata-se do ideal de amor neoplatônico pelo qual o homem poderia
sublimar-se e elevar-se espiritual e filosoficamente.
As demais personagens, por outro lado, são ridicularizadas em suas paixões
mesquinhas, sobretudo, Domingos Botelho, que representa a vacuidade intelectual do
magistrado português, eleito não por merecimento e qualidades, mas por apadrinhamentos.
Domingos alcança a simpatia da rainha D. Maria I de Portugal, por fazer rir a
soberana considerada louca devido à doença mental manifestada com veemência nos
últimos 24 anos de vida. Essa afinidade lhe granjeia uma pensão, o cargo de juiz de fora de
Cascais, e Rita, uma dama do paço, a quem tentou conquistar por dez anos, mas cuja
benevolência só alcança com a intercessão da rainha. O marido de Rita Preciosa é descrito
72
como fidalgo de linhagem, extremamente feio, sem bens de fortuna, nem dotes de espírito
ou de inteligência, o que torna o matrimônio desagradável à esposa. Camilo compara o
casal à Vênus e Vulcano, sugerindo, assim, o casamento arranjado a contragosto da esposa
e a possibilidade de adultério.
A personalidade do magistrado parece frágil, ele não parece ter opiniões
consistentes, mas deixa-se levar pelos juízos de Rita. É assim que passa a desprezar o filho
Simão, que, a princípio, admira por sua audácia, coragem em distinção nas notas, mesmo
sem dedicar-se a isso. ―O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte
no desgosto dela e na aversão ao filho.‖ (Branco, 1984, p. 395). Domingos Botelho
representa a paixão pelo reconhecimento público, para o que se lança a castigar
impiedosamente a injúria de acordo com seu ponto de vista subjetivo. Dessa forma, absolve
João da Cruz por vingar-se de um rapaz que lhe insultou e condena Simão por matar em
legítima defesa. A noção de justiça do magistrado acaba causando males superiores ao que
devem ser punidos. Ele é incapaz de julgar serenamente, é severo em seus juízos e age
como um tirano. Só se empenha em soltar o filho para provar a superioridade de seu poder
ao de Tadeu de Albuquerque.
D. Rita é motivo de interferências do narrador. Descrevendo-a, o escritor estuda o
comportamento social e humano. Preocupada com as aparências e acostumada com o luxo
e pompa do paço real, essa mulher age de maneira arrogante e soberba, procura
ridicularizar o marido e sua nobreza decadente em todas as oportunidades. A rivalidade que
nutre pelo esposo é motivo de contestá-lo para indicar sua superioridade sobre ele; no
entanto, na condição de mulher não pode prevalecer sempre. Essa oposição é valiosa para o
escritor tratar da vaidade humana.
Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:
- Que significa esse modo de falar de seu filho?
- Significa que sou corregedor desta comarca, e que não protejo assassinos por
ciúmes, e ciúmes da filha dum homem, que eu detesto. Eu antes queria ver mil
vezes morto Simão que ligado a essa família. Escrevi-lhe muitas vezes dizendo-
lhe que o expulsava de minha casa, se alguém me desse a certeza de que ele tinha
correspondência com tal mulher. Não há de querer a senhora que eu vá sacrificar
a minha integridade a um filho rebelde, e de mais a mais homicida.
D. Rita, algum tanto por afeto maternal e bastante por espírito de contradição,
contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela insólita pertinácia e cólera do
marido. Tão iracundo e áspero em palavras nunca o ela vira. Quando lhe ele
disse: - "Senhora, em coisas de pouca monta o seu domínio era tolerável; em
questões de honra, o seu domínio acabou: deixe-me!" - D. Rita, quando tal ouviu,
e reparou na fisionomia de Domingos Botelho, sentiu-se mulher, e retirou-se.
(Branco, 1984, p. 472)
73
No excerto transcrito, a atitude de Rita é pretexto para sugerir uma característica do
comportamento humano. O episódio não traz apenas uma questão social - o papel de
conformidade da mulher na sociedade da época com as regras ditadas pelo homem - mas
aponta características do universo interior humano, o que eleva o discurso de Camilo a
outro patamar e torna a narrativa mais atual e abrangente. No trecho - ―D. Rita, algum
tanto por afeto maternal e bastante por espírito de contradição[...]‖ – aparece um traço
fundamental da índole humana que será tema de vários romances de cunho psicológico: o
sestro de contestar, de fazer objeções como forma de distinguir-se e elevar-se perante o
outro. Essa característica torna ainda mais pesada a inevitabilidade da resignação e sujeição
à ordem imposta.
A ambiguidade entre a altivez de caráter e a necessidade de submissão dá relevo a
personagens femininas; os homens são menos complexos, caracterizados pela teimosia e
obceção por imporem-se uns aos outros. Assim, Simão opõe-se ao pai, Domingos ataca e é
atacado por Tadeu; Baltazar entra em combate com Simão.
Os homens da família Albuquerque destacam-se pela conivência. Tadeu, cujo nome
significa ―o amável, o amoroso‖41
, é descrito como pai astuto que espera em silêncio por
dois anos que a paixão da filha se abrande para armar uma emboscada e casá-la
subitamente com o primo. Declama um discurso sentimental e piegas a fim de convencê-la
ao matrimônio; no entanto, assim que nota a irreversibilidade da decisão da filha, mostra-se
iracundo e colérico, prometendo-lhe encerrá-la para sempre em um convento.
Baltasar, ferido em seu amor próprio, é quem trama ciladas para Simão e Teresa.
Essa personagem afigura-se como um ser repelente e nocivo. A escolha de seu nome parece
indicar a ironia de Camilo ao caracterizá-lo. Baltasar significa ―o deus Baal projeta (shar) o
rei (usur)‖. Baal é um deus cananeu, cuja história remete a traição e violência. Baal
aproveita o momento em que seu pai, o deus soberano, está velho para invadir o Panteão e
arrancar suas entranhas fecundas e torná-lo um deus impotente e debilitado. Depois disso,
rouba as duas mulheres do pai e declara-se o novo deus soberano. Como se pode notar, a
narrativa camiliana ganha em profundidade quando considerada com cuidado em todos os
seus elementos.
41 Todos os significados de nomes foram retirados de Guérios, 1994.
74
Embora a história enfoque em primeiro plano os conflitos de um casal de
namorados, o alvo do escritor parece apresentar sua visão desiludida em torno da
infelicidade do ser humano. Isso se pode vislumbrar, por exemplo, pela digressão em que
trata da morte por paixão.
[...] tinha morrido de paixão e vergonha talvez! - exclama uma leitora sensível.
- Não, minha senhora; o estudante continuava nesse ano a frequentar a
Universidade; e, como tinha já vasta instrução em patologia, poupou-se à morte
da vergonha, que é uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Fr. Luiz
de Sousa, e à morte da paixão, que é outra morte inventada pelos namorados nas
cartas despeitosas, e que não pega nos maridos a quem o século dotou de uns
longes de filosofia, filosofia grega e romana, porque bem sabem que os filósofos
da antiguidade davam por mimo as mulheres aos seus amigos, quando os seus
amigos por favor lhas não tiravam, E esta filosofia hoje então... (Branco, 1984, p.
508)
Interessante notar que o Camilo polemista não se exime do novelista passional,
apenas torna-se dissimulado ou dotado de uma ironia mais fina. Esse é o Camilo das
divagações filosóficas; o Camilo agudo e espirituoso que analisa a hipocrisia social sem
piedade. No Amor de perdição, o lirismo das cartas de Simão e de Teresa ganha tal ênfase
que o leitor conclui tratar-se de narrativa ultra-romântica em que predominam o
derramamento sentimental e o culto pela morte como escape para uma vida angustiante.
[...] a grandeza trágica da história, a maneira comovida de contar, a identificação
sentimental de Camilo com o herói, a convergência de todos os efeitos para os
lances culminantes da ação, o valor cênico dalguns passos, a força realista
doutros, o casticismo dos sentimentos, o lirismo das cartas amorosas (Coelho,
1982, p. 429)
arrebatam o leitor e o tornam incapaz de desviar seu olhar para a mensagem subjacente que
quer ser divulgada. O lirismo que domina o inconsciente coletivo português fala nas cartas
dos amantes e extasia o público-leitor que se torna cego para a mensagem mais profunda do
livro.
Nota-se, pelos comentários do narrador, a intenção de compreender a alma humana,
sugerida no prólogo é um dos focos do livro.
Se, de acordo com o trecho camiliano, o estudante de Patologia saberá que não há
morte de vergonha, mera invenção de Garrett no Frei Luís de Sousa; e se a morte por
paixão é invenção de namorados despeitados, vírus que não passa aos maridos afeitos aos
casos de suas esposas, de que morrem Teresa e Simão? Qual a doença que os acomete?
75
Camilo parece insinuar que o casal abandona o intuito inicial de um amor caridoso,
desinteressado, ao deparar-se com a punição cruel de Tadeu Albuquerque. A violência do
pai em privar Teresa de seu próprio lar, encerrando-a em um convento, desenvolve no
casal uma paixão incontrolável e obcecada. A cegueira oriunda da paixão tem
consequências catastróficas: a morte de Baltasar, o sofrimento de Mariana, a separação de
João da Cruz e sua filha.
No início da narrativa, o plano do casal era virtuoso, Simão dispunha-se a formar-se
com êxito para sustentar Teresa. Entretanto, diante da crueldade do pai da moça, o rapaz
desenvolve o desejo de vingança, a obstinação por sequestrar a namorada e ódio a Baltazar.
E necessário arrancar-te daí — dizia a carta de Simão. — Esse convento há de ter
uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se
não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te
mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou
acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças de ânimo
para te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que
me serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-
ás fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A
submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta.
(Branco, 1984, p. 447 O grifo é nosso)
A índole impetuosa do rapaz, amenizada pelo amor meigo e singelo, torna a brotar,
agora dilatada pela paixão. Dessa expansão resultará a morte de Baltazar e a prisão do
herói. No entanto, a luta contra inimigos desiguais gera o sentimento de derrota e, com ele,
a sensação de pessimismo e desdém pela vida.
Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere, com o patíbulo ou o
degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da alma.
A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder,
retraía-se, recriminado pelos ditames da razão.
De além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes queixas te
vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem podias consolar, pedias
palavras ao anjo da compaixão para ela, e as do demônio do desespero para ti.
(Branco, 1984, p. 524)
Consciente de que a batalha é inútil porque sua paixão o levou a tornar-se
criminoso, Simão é tomado pelo abatimento e professa desgosto pela vida, pela família e
pela pátria. A prostração decorrente dos meses de cárcere fazem-no abrir mão do amor e
querer abraçar a morte.
76
Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer,
mas não aqui. Apague-se a luz dos meus olhos; mas a luz do céu,
quero-a! Quero ver o céu no meu último olhar!
[...]
Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande
desgraçado. Se teu pai te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma
aurora de paz, vive para a felicidade desse dia. E, se não, morre,
Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras
laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória
dos padecentes".
[...]
Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão Botelho não
respondia às perguntas de Mariana, Di-lo-íeis arroubado nas voluptuosas
angústias do seu próprio aniquilamento. (Branco, 1984, p. 525)
À languidez do espírito, seguem sentimentos de mágoa, repugnância, a falta de
fervor para servir a amada e a consequente morte do casal. Entregar-se às paixões causaria,
então, o desenvolvimento de distúrbios e de sintomas físicos para os quais não se encontra
nenhuma lesão orgânica objetiva, mas que ainda assim são o suficiente para causar a morte.
Diferente do que ocorre em Shakespeare, onde os amantes mantêm o amor na
adversidade, em Camilo, o amor vira paixão, desgosto e culpa. O leitor que não atentar para
as sugestões intertextuais fornecidas no prefácio do livro encontrará na novela uma história
de amor que sublima pelo sofrimento e eleva espiritualmente. Entretanto, a menção aos
outros textos de Trancoso e de Pe. Almeida parecem sugerir a proposta de contenção de
sentimentos e a consequente obtenção da serenidade. Nesse sentido, o texto torna-se um
espelho do coração humano, que Camilo conhecia como ninguém, embora não conseguisse
dominá-lo.
O mal das paixões imoderadas assola também o novelista daí a necessidade de
espelhar-se em um caso de amor mal-sucedido para compreender o que lhe vai na alma.
[...] preciso é afastarmo-nos um pouco do que queremos ver, para conhecer esse
objecto. Ora, meu amigo, tudo o que nos pertence a nós, está demasiadamente
perto dos olhos do entendimento; é necessário afastarmo-nos de nós mesmos, e
considerar as nossas acções como se fossem de outros; e deste modo veremos as
coisas como elas são em si mesmas. [...] Lástima é que os homens não tenham
espelhos para ver as próprias acções, pois então olhariam para elas como se
fossem alheias, e conheceriam a sua deformidade. (Almeida, 2001, p. 394)
O espelhamento é sugerido também na narrativa. O contraste entre os valores de
Simão e Teresa e os dos homens de sua época é exemplo da inversão propiciada pelo
77
reflexo especular. Essa oposição é pretexto para o novelista analisar criticamente sua
sociedade. A constância do amor de Teresa, uma mulher42
de quinze anos, idade em que o
amor ―carece de consistência para sobreviver a uma ausência de seis meses.‖ (Branco, 1984,
p. 403), explica-se pelo fato de a moça não frequentar a sociedade:
[...] Teresa não vai à sociedade, não tem altar em cada noite na sala, não provou o
incenso de outros galãs, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada,
desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e
amor nas palavras que a convencem de que há um coração para cada homem, e
uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria em si
as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe estonteasse o
espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. (Branco, 1984, p. 404)
Enquanto Baltasar é caracterizado como alguém que alia a covardia à ―absoluta
carência de brios‖ (Branco, 1984, p, 441), Simão revela coragem e ousadia, não apresenta o
comportamento padrão de sua sociedade quando se declara culpado de um crime e nega
contar com as prerrogativas de ter um pai juiz. A índole sanguinária do rapaz só é refreada
quando ele se depara com sua antítese, Mariana, que sofre tudo silenciosa e
resignadamente. Também a vida distante da alta sociedade é motivo para Simão encontrar
paz uma única vez, já que na casa simples do ferreiro o rapaz ―[...] estava-se gozando na
simpleza daquele quadro rústico, mas sublime de naturalidade.‖ (Branco, 1984, p. 444). No
entanto, no momento em que Simão desconsidera o direito do outro para fazer de sua
vontade e obstinação sua única lei assemelha-se aos outros homens e, como eles, torna-se
infeliz.
Na narrativa, todas as personagens sofrem por deixarem-se levar pelas paixões. João
da Cruz parece constituir a epítome do homem rústico português na visão camiliana. Ele
revela a ambiguidade do caráter de seu povo pela índole bárbara, pela valentia que beira a
crueldade, em contraposição à ternura e lealdade de um coração dedicado e constante aos
que lhe são caros. Três dos ditados veiculados por João da Cruz parecem sintetizar-lhe o
modo de pensar:
―Quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre.‖ (Branco, 1984, p.431)
―Quem semeia colhe‖ (Branco, 1984, p.453)
―Vão-se os anéis e fiquem os dedos.‖ (Branco, 1984, p.511)
42 Para Camilo, a índole feminina é marcada pela volubilidade: ― ‗Em cada mulher, quatro mulheres
incompreensíveis, pensando alternadamente como hão-de desmentir umas às outras.‘ ‖ 1984, p. 404.
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Assolada por paixões, todas as personagens da narrativa são seres frágeis, títeres de
suas emoções. Incapazes de controlarem-se, sofrem tiranizados por suas escolhas.
A índole sanguinária de João da Cruz que faz justiça com as próprias mãos,
primeiro por ser zeloso pela equidade; depois por desacreditar na justiça daquele país é
pretexto para Camilo sugerir um retrato da justiça em Portugal.
[...]Vossa Senhoria , como é filho de ministro não terá perigo; mas eu, que sou
ferrador, posso contar que desta vez tenho o baraço no pescoço. [...] Vossa
Senhoria é doutor, saberá muito, mas de justiça não sabe nada, e há-de perdoar
meu atrevimento. Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa.
(Branco, 1984, p. 431)
A opinião sobre a irregularidade da justiça no país é compartilhada por pessoas do
povo, como se vê pelo comentário de um espectador do julgamento de Simão: ―Matasse ele
um pobre, e tu verias como ele estava em casa!‖ (Branco, 1984, p. 481). As atitudes de João
da Cruz, embora à primeira vista pareçam brutais, na verdade, são um meio de lidar com a
falta de igualdade vigente no país. O narrador semelha concordar com essa visão já que
apresenta fatos como o seguinte episódio:
-Ides ter um belo espetáculo, Senhores! [exclama Simão] A forca é a única festa
do povo! [...]
- Tu hás de levar os teus pequenos para ver o padecente?
-Pudera não! Estes exemplos não se devem perder.
- Eu cá de mim já vi enforcar três, que me lembre, todos por matadores.
- Por isso tu, há dois anos, não atiraste com a vida do Amaro Lampreia a casa do
Diabo!...
- Assim foi; mas se eu o não matasse, matava-me ele.
- Então de que voga o exemplo?!
- Eu sei cá de que voga? O frei Anselmo dos Franciscanos é que prega aos pais
que levem os filhos a verem os enforcados.
- Isso há-de ser para não o esfolarem a ele, quando ele nos esfola com os
peditórios.
Tão desassombrado ia o espírito de Simão, que algumas vezes lhe esvoaçou nos
lábios um sorriso, desafiado pela filosofia do povo, acerca da forca. (Branco,
1984, p. 481-482)
A crítica estende-se, aqui, à Igreja incoerente com os mandamentos que prega:
propor assistência a um enforcamento como exemplo para não matar é um paradoxo que
cumpre ser ridicularizado.
Inserido nesse contexto, o povo não deixará de apresentar sentimentos nobres e
desinteressados. Daí a outra face de João revelar o desdém pelo material em prol do amor.
Com saudades da filha que está no Porto em companhia de Simão, o ferrador planeja deixar
79
o trabalho e gastar suas economias para encontrar-se com Mariana. Seu intuito é
malogrado, no entanto, por ser assassinado pelo filho do homem que o ferreiro havia
matado.
Todas as personagens são perseguidas pelas más escolhas que fizeram no passado,
escolhas ditadas pelo amor-próprio, pelas paixões. Domingos Botelho sofre a incerteza da
correspondência no amor e as consequências de sua tirania como juiz, já que perde o filho
pela implicância que Tadeu de Albuquerque tem a ele por causa de uma demanda. Rita
sofre por ver os filhos mancharem o nome de sua família que, para ela, é o que deve ser
preservado à custa de sacrifícios e renúncias. Tadeu padece a perda da única filha por não
saber perdoar e por colocar o lucro acima do amor filial. Baltasar é morto pelo atrevimento
de impor-se sobre a vontade da prima e do namorado. João da Cruz é privado da paz e do
convívio da filha por ter que pagar o benefício de ter sido solto depois de matar um homem
num ímpeto de raiva.
Verifica-se, pelos exemplos acima, que o comentário do novelista sobre não tecer
uma análise da alma humana, nem dedicar-se à pesquisa linguística é uma ironia. O
fingimento camiliano é o meio de o autor ludibriar o leitor ingênuo e estimular o atento.
Pelo jogo de revelar / esconder, Camilo sugere dissimuladamente sua
mundividência. Somente levando em consideração as digressões do narrador, o leitor
poderá adentrar a visão camiliana.
Por meio de comentários do narrador, são tecidas críticas contundentes, inclusive ao
fazer literário. Promove-se, dessa maneira, o distanciamento do ledor, enquanto se
incentiva a atitude crítica diante da ficção. A ironia romântica é fundamental nesse
processe, o escritor insere-se na narrativa como autor e personagem. Em outros termos, o
autor assume-se como demiurgo e trata do próprio processo de criação, incluindo o leitor
nesse sistema. ―A ironia é, pois, o meio que o eu usa para se auto-representar
artisticamente, movimento dialético entre realidade e ficção.‖ (Ferraz, 1987, p. 43). Além
disso, remete à dissimulação.
Neste capítulo, já foram transcritos excertos em que se verifica essa atitude do
narrador. Ao desdenhar de poetas que louvavam o amor aos quinze anos e ao apresentar o
amor de Teresa em idade tão jovem como exceção, o narrador aproveita para escarnecer
dos exageros de textos românticos. Também quando retrata a astúcia da fidalga ao ludibriar
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o pai, mentindo que só viveria para ele, o narrador comenta que a mulher do romance é
extraordinária. Esses comentários desmitificam o fazer literário e incentivam o senso crítico
do leitor.
Outro exemplo de ironia romântica ocorre no trecho em que o narrador comenta a
inverossimilhança flagrante nos romances que jamais retratam problemas financeiros do
herói. A situação financeira do protagonista, filho de família burguesa, mas abandonado por
ousar contrariar suas regras é motivo de digressão do narrador.
E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe ideias
aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances
todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem
os novelistas que a matéria é baixa e plebeia. O estilo vai de má vontade para
coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não
conheço, nos cinquenta livros que tenho dele, um galã num entre ato da sua
tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que um usurário lhe
lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital
e o juro de oitenta por cento. Disto é que os mestres em romances se escapam
sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o
herói se encolhe nas proporções destes heróizinhos de botequim, de quem o leitor
dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer
com ele. A coisa é vilmente prosaica, de todo o meu coração o confesso. Não é
bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de
dinheiro, um momento depois que escreveu à mulher estremecida uma carta
como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas,
em diferentes estações das estradas do país, carroças e folgadas parelhas de mulas
para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bela fugitiva! A estradas,
naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não tenho a certeza de que
houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há, porque me dizem que há
tudo. (Branco, 1984, p. 448)
O realismo da cena que flagra o herói em dificuldade financeiras, e o tom de
deboche para com novelistas e público ávidos pela idealização de personagens enquanto
desdenham dos menos afortunados revela a ousadia camiliana diante das convenções.
O comentário metalinguistico põe em ridículo a idealização romanesca e evidencia
o disparate da condição do herói desprezado por seus pais. A pseudoverdade literária é
posta em xeque. O narrador maneja a relação realidade / ficção evidenciando o
descompasso entre as duas.
O leitor / narratário é, deste modo, o outro cuja existência se torna necessária para
que o eu se reconheça como tal – como sujeito – numa mescla de mistificação e
autenticidade cuja coexistência paradoxal só a ironia pode expressar; a ironia da
própria literatura, que vive precisamente daquilo que não é – a vida. (Ferraz,
1987, p.152)
81
O espelhamento criado é necessário para que o sujeito enunciador se manifeste e
insinue sua visão de mundo. No fragmento transcrito, o narrador expõe que Simão não pode
desconsiderar a importância do dinheiro uma vez que necessita de mostrar sua gratidão ao
ferreiro e sustentar Teresa, no caso de fugir com ela. Mariana, assim como o hóspede,
preocupa-se com as circunstâncias em que ele se encontra e, muito prática, resolve dispor
de seus bens para auxiliá-lo. A realidade concreta e prosaica chama a atenção, não deixa a
ilusão tomar conta do leitor, as finanças são descritas como um meio de tornar possível a
realização do amor.
Como se pode perceber, além de suscitar uma visão crítica acerca do fazer literário e
da realidade cotidiana, o comentário sobre a falta de dinheiro do protagonista é um meio
sutil de Camilo expor sua visão acerca da astúcia e sagacidade da mulher do povo em
contraste com a ingenuidade da burguesa. Mariana é pragmática, não se ilude como Teresa
que espera encontrar no trabalho de Simão e na morte do pai os recursos para manter-se. A
filha do ferreiro considera-se mais forte que a fidalga.43
Opõem-se, assim, a submissão e
ingenuidade da mulher burguesa à astúcia e sagacidade da mulher do povo. O novelista
valoriza a mulher do povo como uma pessoa mais hábil para lidar com os reveses da vida,
enquanto insinua a deficiência da educação da mulher burguesa, moldada para o conforto
do lar e para a submissão.
Outro excerto que merece ser destacado refere-se à verdade na literatura.
A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.
Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica
implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa,
não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte.
Um romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio, é impertinente, é
uma coisa que não sacode os nervos, nem a gente, sequer uma temporada,
enquanto ele nos lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir,
outros a descer, movidos pela manivela do egoísmo.
A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?
A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro que
o prendem ao barro doente saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da
culpa primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda!?
43 E mais a fidalga é fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos os trabalhos; e, se fosse preciso
meter uma lanceta no braço e deixar correr o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz. Branco, 1984, p.
517.
82
Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu perdi o meu a
estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la como ela é feia e
repugnante.
A desgraça afervora ou quebranta o amor?
Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Fatos e não teses é o que eu
trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções ópticas do
aparelho visual.
Ao cabo de dezenove meses de cárcere, Simão Botelho almejava um raio de Sol,
uma lufada do ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu, que o da abóbada
do seu cubículo pesava-lhe o peito. (Branco, 1984, p. 522 – 523)
A problemática relação entre literatura e verdade é tratada em tom zombeteiro. o
narrador rompe com a posição heterodiegética e apresenta-se como autor da história.
A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar,
ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo, o homem participa inteiro com
toda a vida [...] (Bakhtin, 2003, p. 348)
Assim, ele censura o leitor que busca na ficção fantasias e disposições de caráter
que não se possam encontrar na vida cotidiana. Alegando ter perdido o juízo ao estudar a
verdade, o narrador / autor declara que terá de ser coerente e, por isso, apresentará o
abatimento de Simão diante do amor. O jogo irônico possibilita que se apresente um retrato
mais fiel do universo interior humano, que, muitas vezes, é idealizado nos romances
românticos. O estuda da alma humana torna-se, por conseguinte, mais aprofundado.
Seguindo esta verdade, Mariana não será apenas o anjo, mas mulher. Embora dotada
de inúmeras qualidades, ela inveja a beleza e a condição de Teresa e planeja a vida no
exílio onde ficará sozinha com Simão.
um secreto júbilo endoidecia o coração de Mariana. Não inventemos maravilhas
de abnegação. Era de mulher o coração de Mariana. Amava como a fantasia se
compraz de idear o amor duns anjos que batem as asas de baile em baile, e apenas
quedam o tempo preciso para se fazerem ver e adorar a um reflexo de poesia
apaixonada. Amava, e tinha ciúmes de Teresa, não ciúmes que se refrigeram na
expansão ou no despeito, mas infernos surdos, que não rompiam em labareda aos
lábios, porque os olhos se abriam prontos em lágrimas para apagá-la. Sonhava
com as delícias do desterro, porque voz humana alguma não iria lá gemer à
cabeceira do desgraçado. Se a forçassem a resignar a sua inglória missão de irmã
daquele homem, resigná-la-ia, dizendo: — "Ninguém lhe adoçará as penas tão
desinteresseiramente como o eu fiz".(Branco, 1984, p.519)
83
Mariana lida com um conflito que a revela como uma personagem sem idealização.
O amor completamente despojado e altruísta não é humano, mas divino. A moça,
entretanto, não é completamente resignada, necessita do contato com Simão e vislumbra no
exílio a possibilidade de tê-lo somente para si. Também o rapaz, diante da fidelidade da
moça, titubeia:
Perguntou por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar. Veio
João da Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a
falar em forca e a pedir que a matassem primeiro. Agudíssima foi então a dor do
acadêmico ao compreender, como se instantaneamente lhe fulgurasse a verdade,
que Mariana o amava até o extremo de morrer. Por momentos se lhe esvaiu do
coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-ia porventura
como um anjo redimido em serena contemplação do seu criador; e veria Mariana
como o símbolo da tortura, morrer a pedaços, sem instantes de amor remunerado
que lhe dessem a glória do martírio. Uma, morrendo amada; outra, agonizando,
sem ter ouvido a palavra "amor" dos lábios que escassamente balbuciavam frias
palavras de gratidão.
A personagem é mais complexa que as demais. O amor completamente resignado
não é humano, mas divino. Mariana, entretanto, não é completamente resignada, necessita
do contato com Simão e vislumbra no exílio a possibilidade de tê-lo somente para si.
Também o rapaz, diante da fidelidade da moça, titubeia.
Perguntou por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar. Veio
João da Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a
falar em forca e a pedir que a matassem primeiro. Agudíssíma foi então a dor do
acadêmico ao compreender, como se instantaneamente lhe fulgurasse a verdade,
que Mariana o amava até o extremo de morrer. Por momentos se lhe esvaiu do
coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-ia porventura
como um anjo redimido em serena contemplação do seu criador; e veria Mariana
como o símbolo da tortura, morrer a pedaços, sem instantes de amor
remunerado que lhe dessem a glória do martírio. Uma, morrendo amada;
outra, agonizando, sem ter ouvido a palavra "amor" dos lábios que escassamente
balbuciavam frias palavras de gratidão. (Branco, 1984, p. 482. O grifo é nosso)
Simão é homem e, como tal, sente-se em conflito diante da paixão de Mariana. Quer
corresponder a seu amor, mas sente-se em débito com Teresa a quem jurou fidelidade. As
paixões tornam-se acirradas diante de impedimentos culturais e sociais. Camilo vai
observando atentamente essas reações para conhecer-se melhor e chegar à plenitude.
O romântico vê o indivíduo como um reflexo incompleto do Todo, e, em cada ser,
um germe da unidade perdida a qual deve ser restabelecida para se efetivar a reintegração
do homem. Considera, por isso, a Alma Universal a fonte de onde emanam os seres, e o
homem, um microcosmo que reflete o macrocosmo.
84
Em outros termos, o Uno funda a polaridade que rege o universo. Estabelece-se,
então, um jogo de espelhos: a alma humana é espelho/reflexo da alma universal; portanto,
para conhecer o Todo, o homem deve sondar a si mesmo, em suas regiões mais profundas e
inconscientes.
Dividido por duas forças contrárias, o homem é impulsionado, por um lado, à
individualização, ao prazer efêmero e momentâneo que a matéria proporciona, e, por outro,
à união perdida para o quê deve desdenhar de qualquer ímpeto egocêntrico.
Com efeito, o humano individual acha-se na dependência de factores
exteriores, de leis, de instituições políticas, de um preexistente estatuto civil
perante os quais é obrigado a curvar-se sem que se possa interrogar sobre eles se
eles estão ou não de acordo com sua interioridade. (Hegel, 1993, p. 90)
O romântico não é, portanto, um ser alheio ao mundo real e contemporâneo, mas
alguém consciente da ambiguidade do ser humano. Por conseguinte, esse homem distancia-
se da existência trivial pela sede do infinito.
A melancolia decorrente desse fado é sugerida pela epígrafe do livro: ―Quem viu
jamais vida amorosa, que não a visse afogada nas lágrimas do desastre ou do
rependimento?‖, retirada da Epanáfora Amorosa, de D. Francisco Manuel. (http://cfp.cm-
lisboa.pt/pls/htmldb/f?p=334:17:2767918072361543::::P17_AUT_ID:79). A alusão à
narrativa é uma sugestão irônica da intenção de Camilo ao compor seu texto.
D. Francisco Manuel compõe seu livro em condições semelhantes às do novelista
oitocentista; ele escreve depois de ter sido preso, e afirma sentir-se solitário, querer
extravasar sua dor. Tudo se passa como se seu intuito fosse transformar a ―dor sentida‖ em
―dor fingida‖ para entreter o ―comboio de corda‖ chamado coração.44
Outro ponto de proximidade entre os autores é o fato de a narrativa barroca basear-
se em uma história real que se tornará lenda. Ambas as histórias giram em torno de amores
proibidos. Na Epanáfora amorosa, no entanto, a família da moça, quando descobre o
namoro, obriga-a a casar-se. Por isso, Ana, a protagonista45
foge com o amado. Previdente
e apegada à matéria, a moça leva consigo suas jóias mais preciosas para que possa manter-
se. No entanto, ela morre ao ver-se em uma ilha desconhecida46
, distante do esplendor da
44 As informações sobre a vida e obra de D. Francisco Manuel de Melo foram extraídas das notas informativas
de José Manuel de Castro, a Melo, s/d. 45 Não bastasse tratar de um caso de adultério, a protagonista ainda tem o mesmo nome da amante de Camilo. 46 Roberto e Ana, auxiliados por marinheiros amigos do herói, partem para França, mas ventos os desviam do
caminho e os fazem aportar em uma terra desconhecida, dá-se, assim, a fundação da Ilha da Madeira.
85
vida civilizada. Roberto, o amante, morre cinco dias depois, sentindo-se culpado pela
morte da amada.
Em digressão, o escritor barroco apresenta o Amor como filho de Vênus e Marte,
sugerindo, assim, o desconcerto causado por esse sentimento. Mesmo a palavra ―perdição‖
é apresentada na Epanáfora: ―Por horas, conheciam os miseráveis navegantes,
caminhavam à perdição‖ (Melo, s/d, p. 44). O lirismo português, magoado e saudoso,
povoa as páginas de D. Francisco Manuel e de Camilo. Todos choram diante do sofrimento
de Roberto, bem como perante o de Simão. A ideia de fatalidade, de martírio e de morte
como consequência de emoções angustiantes são ingredientes enunciados no texto de Melo
e aproveitados por Camilo.
A epígrafe usada por Camilo é retirada da fala de um dos amigos de Roberto que
quer encorajá-lo a partir em busca de aventuras, deixando Ana sepultada na ilha
desconhecida. Essa fala revela visão de mundo pessimista, o herói não é incentivado a
iludir-se a encontrar um mundo melhor, mas a certificar-se de que ―[...]entre as tragédias de
um mundo sempre trágico, nenhuma estimada novidade traz a maior desaventura.‖ (Melo,
s/d, p. 51). O fado os levou àquela ilha, o fado determinou a morte dos amantes, o fado
persegue os infelizes que se deixam dominar pelo também impiedoso deus Amor.
A oposição irônica entre a busca de satisfação interior e um destino impiedoso não
pode deixar de ser veiculada. O paradoxo torna-se uma maneira de reflexão, de revelar a
presença de ―espírito‖, aliviando a angústia de levar-se a vida demasiadamente a sério. A
realidade aparente é mera máscara e encobre outro plano rico em significações. Há que se
libertar do apego à boa reputação, da Medusa / Sociedade que ousa transformar em pedra o
que para ela olhar.
Em Amor de perdição, Camilo redigirá mais que uma versão de Romeu e Julieta.
Às famílias inimigas e repressoras, ao primo assassinado, que motiva a condenação do
amante infeliz, ao casal amante vítima de emoções descontroladas não sucede a
reconciliação entre as famílias, mas a perdição por amor. A dedicação ao amor é associada
à questão do autoconhecimento e da busca pela completude perdida.
Dessa forma, o Autor, revela-se mais realista que os seus conterrâneos assim
denominados. Há que se rechaçarem as aparências enganosas, o zelo pelo amor-próprio
para chegar à unidade primitiva. É necessário abandonar a autocontemplação para
86
conquistar a liberdade. Somente pelo despojamento de suas particularidades, o homem
poderá desfazer-se da dualidade matéria espírito e reestruturar a unidade primitiva. A
dualidade do ser é refletida no movimento de introversão para a conquista da união com o
cosmo.
Nasce, assim, a ironia romântica, o escritor faz-se espectador de si mesmo e
espectador desse espectador, isto é, coloca-se fora e acima da realidade para julgá-la e
governá-la, sem comprometer-se. A existência torna-se palco para a representação da vida
como advertência de que o mundo zomba do homem. Além disso, promove-se a libertação
da ameaça do Fado.
III. 2 Perdição é amor
Fernando Gomes retoma a célebre narrativa camiliana para expor seu amor
―também‖ de perdição. A peça é composta por dois atos. O primeiro deles contém 21 cenas
e o segundo, 18. O texto camiliano é sintetizado em seus elementos essenciais e
acrescentado por vários episódios e motivos relevantes para a compreensão da
mundividência do dramaturgo. São episódios os incidentes acessórios, intimamente
relacionados com a ação principal; as cenas secundárias de um quadro, ou aventuras. Por
motivos, deve-se entender ideias que geram ou determinam novos conflitos ou novos
temas. O dramaturgo evidencia dados subjacentes no paradigma, dando-lhes enfoque
psicológico.
Pela paráfrase resumitiva, os criados da casa dos Botelho narram a vida pregressa da
família, agora estabelecida em Viseu, distante do luxo e da alta sociedade com que
conviviam em Cascais.
A visão crítica e penetrante de Gomes começa a insinuar-se por um acréscimo
significante, a música com que a peça se inicia. O amor é associado à paixão, enfoca-se, por
conseguinte, um sentimento avassalador, violento, dominador que leva a sofrimento
intenso e prolongado e não um afeito dócil e delicado. Paixão deriva da palavra latina
passio – onis e remete a emoções em tão alto grau de intensidade que se sobrepõem à
87
lucidez e à razão. A ênfase é dada a essa emoção, já que se substitui o motivo ―amor /
paixão‖ pelo ―paixão / desejo‖.
Para condensar a novela ao tempo adequado a uma peça, o dramaturgo elimina
vários episódios a fim de compactar os acontecimentos. Nesse intuito, a peça não apresenta
muitas informações acerca da vida pregressa de Domingos Botelho. Os conflitos dessa
personagem acerca da sua aparência disforme diante da beleza da esposa são rapidamente
veiculados pelo diálogo entre o casal. Por outro lado, Gomes amplia a narrativa camiliana
ao acrescentar o tema do casamento por conveniência, pois Rita, na peça, teria casado com
Botelho por causa do dinheiro desse homem. Esse acréscimo é relevante por enfatizar a
falta de amor do casal.
Também os fatos da vida de Simão que antecedem seu encontro com Teresa são
sintetizados. Gomes utiliza a redução por excisão, isto é, subtrai algumas partes do texto,
reduzindo-as a algumas falas. Pelos comentários maldosos de criados, personagens
acrescidas na peça, o leitor / espectador intera-se da rebeldia do rapaz, pela qual é
associado, como no modelo, aos revolucionários da Revolução Francesa. Interessante notar
que ao mesmo tempo em que o dramaturgo resume o texto camiliano, ele o estende,
acrescentando elementos à narrativa: personagens, episódios, motivos, temas, sentimentos,
e hipotipos (recursos linguísticos como tom coloquial, dialogismo, detalhamento ou
minúcia, preciosismo, questionamentos).
Nas cenas iniciais, Domingos Botelho, indignado com as atitudes do filho,
questiona a esposa acerca de quem o rapaz teria herdado aquela rebeldia, já que os irmãos e
os pais eram pacatos e tranquilos? Esse questionamento é um acréscimo de motivo que
sugere a desconfiança do juiz acerca da possibilidade de sua esposa tê-lo traído. Novamente
assevera-se o retrato de um relação corrompida e artificial. A resposta da mulher reforça
essa imagem, pois declara que Simão é filho legítimo do casal, porém esta não é matéria
relevante, importa, outrossim, preocupar-se em manter a boa reputação da família,
escondendo da sociedade os desatinos do moço. A desconfiança do marido não lhe importa,
sua imagem pública é mais relevante.
Diferente do que ocorre em Camilo, Domingos antipatiza com o filho desde o início
da peça e não por influência da esposa. Essa atitude parece reiterar a desconfiança em torno
da procedência hereditária da índole do rapaz, tema recuperado em uma canção: ―não sei a
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quem sai, não é à mãe nem é ao pai.‖ Em Fernando Gomes, as canções revelam as situações
apresentadas de forma crítica.
A desconfiança do juiz, no entanto, parece advir primeiro de sua baixa auto-estima,
depois da falta de consciência de seus próprios defeitos. O coro, outro elemento da
expansão feita por Gomes, apontando a semelhança do rapaz com os pais: ele tem o
orgulho do pai e a teimosia da mãe. Insinuam-se, assim, dois acréscimos fundamentais da
peça: a) Domingos e Rita não percebem seus defeitos e b) Simão apresenta algumas
características de seus pais.
O coro é um recurso clássico recuperado por Gomes por compor-se de elementos
que lhe interessam particularmente. Formado por pessoas do povo que geralmente não têm
a ocasião de expor suas ideias, o coro possibilita essa expressão. Promove-se, então, o
diálogo com uma camada social diferente da retratada nos romances. Símbolo da multidão
subjugada pelas convenções, o coro profere sentenças e anuncia verdades, estimulando ―a
disposição dionisíaca do auditório até o ponto em que aparecendo o herói trágico sobre as
cenas, não haja o homem enfarpelado ridiculamente [...]‖ (Niezsche Apud Borie et alii,
2004, p. 350). Toma-se, assim, coletivamente a palavra para comentar a ação, advertir,
aconselhar, enquanto se provoca o distanciamento da cena.
Domingos Botelho compartilha da preocupação da esposa com a opinião pública e
repreende Manuel por não ter encaminhado melhor o irmão mais novo. A relação
conflituosa entre Rita e Domingos reflete-se no relacionamento dos filhos. Ambos se
acusam mutuamente. Os filhos, comparados a Caim e Abel, devem ser separados para que
não haja mais problemas. A menção intertextual sugere um conflito causado por ciúmes o
qual poderia acabar em morte se não houvesse intervenção paterna. Assim, acrescenta-se
um motivo à narrativa camiliana, a rivalidade entre irmãos causada pelo desejo de
conquistar a preferência dos pais. A fraqueza, à primeira vista, parece relacionar-se a
Manuel, pois Simão prima por contrariar os ideais da família. Contudo, suas atitudes
podem configurar um meio de atrair a atenção dos progenitores, já que estes são tão
egocêntricos que não se dedicam a ninguém a não ser a si mesmos. Dessa forma, as
personagens ganham em complexidade. O caçula revelaria uma carência e uma índole
semelhante à de Caim, o qual comete fratricídio em busca de eliminar a concorrência diante
de Deus.
89
Sem saber explicar o comportamento de Simão, o pai atribui a culpa ao diabo. Esse
acréscimo de motivo merece ser examinado com cuidado, pois traz luzes acerca da visão de
mundo gomesiana.
A menção ao diabo, ao mesmo tempo em que é uma sugestão da ideia de fado - já
que se refere a uma força mística ambiciosa por açambarcar o destino das pessoas - remete
à divisão. Refletir-se em Teresa e reconhecer nela a sua própria sede de isolamento e de
abstenção da subordinação às regras sem sentido, fá-lo perceber que não é um indivíduo
único. Essa fragmentação pode ser associada à palavra ―diabo‖. Etimologicamente, a
palavra grega diábolos significa o que desune, calunia, acusa. Fatalidade e crise de
identidade são duas ideias sugeridas pelo acréscimo de motivo que permearão toda a peça.
O casal exalta-se e acaba discutindo. A controvérsia culmina com a revelação do
sentimento de inferioridade de Domingos diante da formosura da esposa. Gomes usa o tema
como pretexto para inserir outra alusão intertextual relevante. Rita declara que o marido
tem uma ―triste figura‖. A alcunha remete a Dom Quixote, ―o cavaleiro da triste figura‖.
Botelho apresenta atitudes semelhantes às da personagem cervantina. Iludido com seu
próprio poder, quer ―desfazer todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos,
donde, levando-as a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama‖ (Saavedra, 1960, p. 19), o juiz
acredita-se um grande justiceiro.
A figura de Domingos é tão disparatada quanto a do protagonista de Cervantes.
Como Quixote cria monstros para combater, Botelho imagina os malfeitores, de acordo
com seu ideal de justiça peculiar e subjetivo. Essa concepção da personagem já é sugerida
em Camilo quando Domingos absolve João da Cruz por ter matado um homem em um
ímpeto, mas condena seu filho por assassinar alguém em legítima defesa. O desejo de
Domingos por ver-se renomado por suas façanhas parece fazer dele as seguintes palavras
de Quixote: ―Ditosa idade e século ditoso aquele em que hão de sair à luz as minhas
famigeradas façanhas.‖ (Saavedra, 1960, p. 24). Importa ressaltar que a frase adequa-se à
personagem camiliana, sobretudo, pela polissemia do vocábulo ―famigerada‖: célebre, ou,
em sentido pejorativo, que tem má fama. Para desfazer-se de sua imagem original que lhe é
repulsiva, Domingos recria-se em juiz zeloso e inflexível. A extinção da personagem João
da Cruz reforça essa imagem. No paradigma, ele é contraponto do pai de Simão. Protege o
rapaz como a um filho e revela o lado justo de Domingos, que lhe deu ganho de causa
90
contra um homem influente. Sem João, cabe ao marido de Rita o papel de um juiz
impiedoso e cruel.
O acréscimo sugerido pela fala de Rita revela que o homem recria-se como juiz
temido para favorecer sua auto-imagem. Recusando a realidade por não aceitá-la como tal,
criam-se ilusões para transformar o real em algo muito diferente. Novamente a peça
expande a narrativa de Camilo pelo processo de ―motivação‖, isto é, pela introdução de um
motivo que o hipotexto oferecia, mas não desenvolveu.
A cena três reforça alguns traços do caráter de Simão. Em diálogo com os pais, o
moço patenteia desdém pelos valores familiares quando é rechaçado pelos progenitores.
Assim, ele conta aos pais que travara amizade com uma rata de esgoto no cárcere
acadêmico. Esse acréscimo de motivo revela o esforço do rapaz por chamar atenção para si,
ainda que negativamente, enquanto tenta criar uma identidade própria, uma vez que sua
família o rejeita. Estabelece-se, então, um novo motivo na peça.
O desprezo altivo do moço a tudo o que for do agrado dos pais denota o desejo de
proteger seu eu diante de um meio que se recusa a acolhê-lo, o que o torna duplo de Teresa.
É-lhe necessário recriar-se como indivíduo autônomo, diferente dos que o criaram, mas não
o amparam. Corrobora a ideia sua postura revolucionária, seu desejo de modificar
estruturas que o faz ser considerado pelo pai como um Robbespierre de capa e batina.
A menção ao revolucionário francês é relevante. Alcunhado ―o Incorruptível‖,
Robbespierre defendia a luta pela dignidade humana e pela liberdade de pensamento. Além
disso, o francês acreditava em que a solidão era preferível ao convívio social, pois
possibilitaria a manutenção da tranquilidade da consciência. O caráter de Simão pode ser
associado ao do rebelde francês, também alter ego do romântico, e porta-voz de todo
revolucionário.
Simão parece promover ideais de liberdade e misantropia, pois declara preferir o
convívio de uma rata na cadeia ao de sua família, afinal somente na clausura não era
repreendido por ser diferente. Em Camilo, o filho é enjeitado pelos pais e apenas reage a
esse abandono com a indiferença. Em Gomes, o rapaz afronta os pais e escarnece de seus
valores, configurando-se como o duplo de sua família.
Para progenitores mesquinhos e egoístas, o filho só interessaria se correspondesse a
seus ideais. Simão é visto com alguma simpatia quando se transfigura e torna-se manso e
91
introvertido. A mudança comportamental, na peça, é motivo de os pais revelarem sua
vaidade. Domingos e Rita consideram-se, individualmente, responsáveis pela
transfiguração do filho, já que lhe teriam dado boa educação e exemplo. O dramaturgo
aproveita o ensejo para evidenciar que naquela família tudo motiva as expansões do
egocentrismo. Como se percebe, Gomes evidencia a vaidade do ser humano como mola
propulsora de suas ações e da cegueira para a verdade e para o autoconhecimento.
Para acentuar a inverdade da hipótese de a conduta dos pais ser a causa da mudança
do rapaz, narradores comentam a ineficiência de punições e exemplos para a alteração do
caráter ou do comportamento de uma pessoa. O dramaturgo sugere, com essa inserção, que
o único modo de alguém modificar-se é por vontade própria. Nega qualquer Determinismo
e apresenta a razão como único meio de autocontrole. Por conseguinte, a frase: ―Nesse caso
[da alteração do rapaz] tem de haver uma razão‖ (p. 15) torna-se ambígua, porque ―razão‖
pode significar motivo, ou a faculdade de raciocinar; a lógica do raciocínio própria do ser
humano.
A extensão do retrato de Simão sugere o recurso da ―transvalorização‖ operação de
natureza axiológica que consiste, como já foi apontado, na valorização de ações e
sentimentos de uma personagem. Esse acréscimo de características torna o caso de amor
entre o rapaz e Teresa mais complexo, o filho dos Botelho ama a filha de Tadeu de
Albuquerque ou esta é a forma mais atroz de afrontar pais que desdenham de sua
existência? A peça acentua essa ambiguidade ao apresentar o amor de Simão por Teresa ao
mesmo tempo em que revela o ódio de Domingos por Tadeu. A inversão sugere o
espelhamento das atitudes dos pares apresentados.
Também o ódio nasce do amor-próprio ferido: uma sentença dada por Domingos
contra Tadeu suscita a desavença. Domingos justifica suas sentenças de maneira peculiar,
afirma que só ―sua consciência é julgadora de seus atos‖ (p. 16). Considera-se como um
deus poderoso, cujo julgamento é suficiente para condenar ou absolver alguém. O juiz não
menciona provas, nem testemunhos, conta apenas com sua própria apreciação dos fatos.
Essa egolatria ofusca o amor-próprio de Tadeu, diminuído pela autoridade do magistrado, o
que o faz considerá-lo um rival pernicioso.
Até aqui faz-se uma paráfrase da narrativa camiliana, um acréscimo relevante,
entretanto, é apresentado, pelo diálogo entre os oponentes. Tadeu alcunha Domingos de
92
―espantalho‖ e o juiz apelida o pai de Teresa de ―palhaço‖. Esses apelidos são
significativos, já que ―espantalho‖, em Portugal, na variedade familiar, remete à pessoa que
tira a vista ou a luz de outra defronte da qual se colocou. Palhaço, na gíria, significa a
moeda de um escudo. Os epítetos sugerem o motivo da adversidade entre as personagens.
Tadeu ressente-se por ser colocado à sombra da elevação do cargo de Domingos e o juiz
ofende-se pelo fato de Tadeu ter mais dinheiro que ele. Novamente o recurso da extensão
(de motivo) sugere que tudo gira em torno do amor-próprio ferido.
Ao colocar Simão e Teresa como antítese de seus pais, Gomes acresce um motivo
ao paradigma, o par amoroso pode ter-se apaixonado como forma de afrontar os
progenitores e, assim, assegurar sua individualidade. O herói e a heroína seriam, então,
rebeldes que para firmarem sua personalidade inverteriam as atitudes dos pais. Na mesma
proporção que Tadeu e Domingos se odeiam, Teresa e Simão se amam. A eleição do
cônjuge no descendente do inimigo paterno é, portanto, significativa.
A discussão entre os pais de família ofendidos é interrompida por um aforismo do
narrador: ―Na vida cada um tem o papel que tem‖. Há aqui outra luz importante para a
interpretação da peça. ―Papel‖ pode significar representação, imagem, ou, em outra
acepção, remeter a documento de identidade. Ambos os significados sugerem que a
identidade é um ato público, só perceptível quando se torna exterior. Dessa forma, ressalta-
se a importância do outro para a formação do autoconceito.
O aforismo remete também à relação entre vida e teatro. Nesse caso, o ―papel‖ seria
a função, a parte que cabe a cada ator numa peça ou num filme e o texto corresponderia ao
destino.
A ficção como duplo da vida, sugerida pelo aforismo, passa a ser reiterada por
comentários metateatrais de narradores e personagens. Em vários momentos, a intenção do
encenador / diretor é retratada pelos atores. Assim, as músicas enunciam estratégias do
dramaturgo; o ―amor perfeito‖ é considerado, por Simão, produto dos livros, cinema e
teatro; atores apresentam-se como tal, destituídos de seu papel; a referência ao público, suas
expectativas e gostos.
A ideia do duplo, antes enunciada pelo retrato das personagens, é reforçada pelo
paralelo entre realidade e ficção, disfarces e personalidade, nome e identidade. A oposição
93
antes sugerida pela rivalidade entre Rita e Domingos, Manuel e Simão, Simão e os pais,
Teresa e Tadeu, agora refere-se à contraposição entre verdade e ficção.
Para acentuar essa dualidade, o dramaturgo cria uma cena em um jardim onde as
flores espelham o comportamento das personagens e alegorizam ideias-chave a serem
ressaltadas. O local é também o duplo da realidade coetânea. Mágico, feérico, o jardim
representa um paraíso, distante das preocupações e normas do cotidiano.
A cena é uma alegoria, isto é, história com personagens e acontecimentos
simbólicos, os quais visam a tornar concretas ideias abstratas. As flores personificam as
paixões humanas, tornando-as perceptíveis; cada flor fixa uma emoção. A violeta assume o
caráter dogmático e repressor dos pais; a papoula remete a entorpecimento das paixões; o
girassol revela desejos carnais e o amor-perfeito representa um ideal inatingível. Nova
extensão à narrativa de Camilo que corrobora a intenção de tratar de um amor de perdição
sob enfoque psicológico.
Na sequência, o paralelo realidade e ficção é reiterado, já que Domingos Botelho e
Tadeu de Albuquerque passam de personagens a narradores e atores. Os atores analisam o
papel dos pais tiranos e confessam que, como pessoas, e não atores, têm dó dos amantes.
Amplia-se, assim, a ideia do paradigma. Lá, os pais são apenas egocêntricos; aqui, há o
conflito entre ter que cumprir o papel de autoridade repressora e, ao mesmo tempo, ser
dotado de emoções semelhantes às do casal. Como personagens, Botelho e Albuquerque
são dominados pela vaidade e amor-próprio, mas, como pessoas, os atores sensibilizam-se
com a situação do par amoroso. Acrescenta-se, assim, um motivo relevante, a
complexidade do ser humano, que é colocado diante de vários papéis sociais e, em cada um
deles, deve agir conforme predeterminam as regras.
Outro aspecto relevante trazido pela cena é problematizar a expectativa do público
diante da peça. A ironia romântica, recorrente em Camilo, não é abandonada, mas
transformada em ironia dramática. Por ironia romântica entende-se a presentificação do
autor que conversa com o leitor como se este fizesse parte do processo de construção do
texto. Já a ironia dramática refere-se ao conhecimento do espectador acerca dos dados da
peça que, muitas vezes, é mais amplo que o de algumas personagens.
94
Pela metateatralidade, o público, além de dominar o enredo, adquire consciência do
fazer dramático. A ilusão, engano dos sentidos ou da inteligência, as fantasias, o efeito
artístico que reproduz a impressão da realidade passa a ser tema da peça.
O ator é a figura mais importante nesse teatro. Além de interpretar seu papel, ele
narra os acontecimentos de modo a apresentar sua personagem sem anular sua identidade
como pessoa. Trata-se de uma postura brechtiana que destitui a quarta parede e promove o
distanciamento da ficção. Isso ocorre, em Amor (também) de perdição, nos vários
momentos em que os atores comentam a peça e a comparam com o paradigma; mas é na
cena em que Domingos e Tadeu se mostram como atores, destituídos de seus papéis, que a
ironia dramática e o distanciamento se torna mais evidente. Dessa forma, o público não se
identifica com o que vê porque passa a ter consciência de que se trata de uma
representação.
Assim, a realidade representada é revelada sob a perspectiva ―desilusionante‖, bem
ao gosto de Brecht. O artifício da construção da personagem e da peça são evidenciados, o
que desperta o senso crítico do espectador.
A peça é compreendida como o duplo do modelo e este se torna o Destino a ser
cumprido. Subitamente, o original revela-se o outro e a peça uma representação por meio
da qual se intenta decifrar a realidade imediata. A perdição adquire, com estes acréscimos,
nova conotação e refere-se à perda da identidade ou à perda da ilusão.
Desprovidos das máscaras, os atores deixam transparecer a face humana da
personagem que, no modelo, não existe. Domingos e Tadeu adquirem complexidade que
não têm no paradigma. Em Camilo, esses homens não parecem humanos, tal a indiferença
que nutrem por tudo o que não for agradável a eles. Os atores, ao abandonarem a máscara
da tirania, revelam compaixão, ternura e interesse pelo par amoroso, sentimentos que
condizem com emoções chamadas paternais.
A letra da canção entoada após essa cena enuncia a entrega sem reserva de Simão e
Teresa ao amor / paixão. O casal cria um universo em que tudo se resume a seu amor.
―Tudo o mais é fugaz – nada nos apraz – apenas o amor. / Só quero amar! Só quero amar!‖
(Gomes, p.20) Eles iludem-se, protegem-se do real pela criação de um mundo paralelo,
duplo da realidade hostil em que vivem. A motivação é, portanto, essencial para a
ampliação dos significados do livro de Camilo.
95
O espelhamento que perpassa toda a peça é reiterado, na cena seguinte, pela
associação entre Teresa e algumas flores. A moça confessa a Simão o desejo de ser uma
flor, isso gera a euforia das flores do jardim que disputam ser o reflexo da fidalga. Cada
uma delas quer ter suas qualidades citadas para distinguir-se das demais e tornar-se alter
ego da filha de Tadeu. Simão, no entanto, rejeita a analogia com as flores por aludirem a
sensações incômodas: entorpecimento (papoula), morbidez (da cor da violeta), desespero
(o amarelo do girassol). Por fim, o amor-perfeito é desprezado por configurar um ideal
inatingível.
A recusa da identificação entre o caso de Simão e Teresa e um ―amor perfeito‖
contraria as características da narrativa camiliana e dessacraliza o amor puro. Enquanto no
paradigma o amor do casal é a epítome de um sentimento sublime e idealizado, no
intertexto, o amor é carnal e nasce do amor-próprio ferido. O Simão camiliano é sonhador e
acredita em que realizará seu amor na vida após a morte, prescinde da relação física com a
amada. O Simão gomesiano, ao contrário, é mais objetivo e prático, quer Teresa enquanto
mulher. Enquanto na novela oitocentista, o protagonista declara ―Nunca os meus
pensamentos foram denegridos por um desejo que eu não possa confessar alto diante de
todo o mundo. Diz tu, Teresa, se os meus lábios profanaram a pureza de teus ouvidos.
Pergunta a Deus quando quis eu fazer do meu amor o teu opróbrio.‖ (Branco, 1984, p. 498).
A personagem de Fernando Gomes professa o amor carnal, ela não gira na esfera do
idealismo, não crê em amor perfeito, mas afirma: ―Gosto de ti em carne e osso.‖ (Gomes, p.
25).
Em Camilo, o céu traça o Destino e o céu é o alvo dos amantes. A realização do
amor puro e desinteressado ocorreria na vida após a morte.
E o apostólico capelão do mosteiro não sabia dizer se os bens do céu tinham
comum com os do mundo as delícias que falsamente na terra se chamam assim.
Aquelas sutilezas espirituais que vêm com algumas espécies de física, assim à
maneira dos últimos lampejos da vital flama, tinha-as a enferma, quando
acontecia falarem-lhe as religiosas na bem-aventurança. Às vezes, se o capelão,
convidado pela lucidez de Teresa, entrava os domínios da filosofia, tratando
como tema a imortalidade da alma, a inculta senhora argumentava em breves
termos, com razões tão claras a favor da união eterna das almas, já deste mundo
esposas, que o padre ficava em dúvidas se seria herético contestar uma cláusula
não inscrita em algum dos quatro evangelhos. (Branco, 1984, p. 488)
Em Gomes, o amor deve ser realizado no plano físico, concreto, mas a mesquinhez
e a vaidade impedem essa realização. A expansão de características de personagens
96
promove a inversão do caráter e das intenções de Simão, o que sugere uma intenção
paródica. O resultado disso é o surgimento de um caso de amor mais concreto e passível de
realizar-se. Eles não precisam casar-se para ficarem juntos, esta ideia é recorrentemente
sugerida por diálogos entre Tadeu e Baltazar os quais insinuam que Simão teria ―dado‖ a
Teresa ou feito ―algo‖ à moça que o primo, engessado, não poderia oferecer.
A cena de idílio é interrompida pela chegada dos pais que repetem, com algumas
alterações, o discurso das personagens do modelo quando descobrem o namoro. Domingos
ofende Teresa aconselhando-a a buscar um marido ―trolha‖, digno dela e do ―labrego‖ de
seu pai. A visão de Botelho sobre a moça e sua família constitui acréscimo de Gomes.
Hábil em utilizar a linguagem popular portuguesa como forma de caracterizar seu povo, o
dramaturgo mostra o despeito do juiz diante da proeminência da figura do vizinho pelos
termos ―trolha‖, que se refere a um pedreiro ordinário ou servente de pedreiro e ―labrego‖,
homem rústico, camponês, aldeão, grosseiro. Dessa forma, a psicologia humana é sugerida
pela linguagem. Tadeu replica que não quer a filha próxima a ―espantalhos‖, o que ressalta,
por um lado, o aspecto desagradável de Domingos e, por outro, o motivo da rivalidade de
Tadeu: a relevância do cargo do vizinho.
Um narrador intervém dispensando as personagens e agradecendo-lhes a
colaboração. Com a queda da quarta parede, a peça é novamente retratada como duplo do
modelo. O jogo entre dois planos insinua uma concepção da vida como sonho, ilusão,
reflexo de outro universo mais perfeito, que daria sentido à realidade.
Como prenunciava Brecht:
[...] A quarta parede não mais faz desaparecer o espectador. Graças a grandes
painéis que permitiam recolocar na memória outros processos que se
desenrolavam simultaneamente noutros locais, contradizer ou confirmar as falas
de algumas personagens [...]
Não mais era permitido ao espectador que, de boa fé, se identificasse com as
personagens e se abandonasse acrítica e apaticamente às emoções (das quais não
retirava nenhuma consequência de ordem prática). A representação submetia os
sujeitos e os procedimentos a um processo de distanciamento. O distanciamento
era indispensável para que a peça fosse compreendida. (Brecht Apud Borie et alii,
2004, p. 468 – 469)
Como se percebe, o teatro de Fernando Gomes adota perspectiva épica, a mimese é
muitas vezes abandonada em prol da diégese. A ação é narrada ou comentada em vez de
dramatizada. Importa ressaltar, no entanto, que a intenção não é apresentar um ponto de
vista sobre a fabulação, mas múltiplas intervenções de diversas fontes, diferentes vozes
97
opinam sobre a história que é retratada de vários ângulos simultaneamente, como em um
quadro cubista.
Na cena onze, Tadeu, como no paradigma, finge acreditar na filha, embora a ameace
com o convento. O desdobramento artificial da personagem de pai tirano a pai carinhoso, já
presente em Camilo, é reiterado na peça.
A ameaça de Tadeu a Teresa é repetida, em contexto diferente, por assaltantes que
põem a vida de um homem em risco se ele não lhes entregar tudo o que possui. O rapaz, no
entanto, é um ator e, como tal, não tem nada além da roupa do corpo, e do texto. O texto
não interessa aos malfeitores por ser já conhecido, sugere-se, assim, que o teatro português
costuma divulgar sempre as mesmas peças, ideia também será enunciada por Camilo em
outras narrativas. O público passadista e ignorante só seria atraído por títulos que
remetessem a fatos históricos relevantes ou por peças estrangeiras. O assalto é, então,
malogrado, porque o corpo seria difícil de esconder e a roupa não serve a nenhum deles.
Diante disso, um dos ladrões desiste do intento, atitude condenada por um companheiro que
considera um erro ameaçar e não cumprir. A vítima do assalto concorda com o segundo
assaltante e acrescenta que ―ameaçar, seja por que motivo for, é que não é bonito!‖ e cita o
exemplo de Tadeu como prova de sua assertiva. A partir daí todos vão discutir o enredo de
Amor de perdição.
O episódio é, portanto, pretexto para o dramaturgo apresentar a novela de Camilo
sob o ponto de vista das personagens que não estão envolvidas na história. Um dos
criminosos passa a ler o texto de Camilo e os demais comentam o vocabulário. Assim, o
termo ―prosápia‖, que se refere a Baltazar, é ressaltado na leitura do livro. As personagens
julgam que a palavra se refere a endinheirado. O vocábulo, no entanto, associa-se à
linhagem e, em linguagem figurada, à vaidade, bazófia. A ênfase dada ao termo revela o
ponto de vista atento de Fernando Gomes acerca do modelo. Baltazar é descrito pelo
novelista como ―senhor de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia.‖ (Branco, 1984, p.
403). À primeira vista o escritor oitocentista parece referir-se à linhagem dos Albuquerque,
mas no contexto da história, percebe-se que se trata da ironia de Camilo ao asseverar que os
primos assemelham-se em sua vaidade e presunção, característica que parece peculiar ao
ser humano, já que se revela com ênfase em todas as personagens. Assaltado e assaltantes
comentam o texto. A história é, dessa forma, analisada sob vários ângulos. Outro acréscimo
98
relevante de Gomes é a extensão, feita pela multifacetação da realidade visando a que esta
seja vista sob diferentes enfoques.
O desdobramento da novela na peça parece indicar que esta busca sua identidade
naquela, pela identificação. Espelhando-se no paradigma, o texto reconhece seus
fundamentos para, sobre este alicerce poder criar-se. Além disso, o discurso sobre o
discurso coloca em pauta o tema da palavra e da literatura como forma de recriar um
mundo. Ansioso por criar fantasias que lhe auxiliem a lidar com o real, o espectador / leitor
pode identificar-se com as personagens que leem com avidez a narrativa de Camilo em
busca de entretenimento. A imaginação e o engano são, pois, parte dos pressupostos da
vida.
A Literatura e o Teatro possibilitam que se veja o mundo pelos olhos de outrem; no
caso do texto de Gomes, por múltiplas perspectivas. Outro elemento épico bretchiano, o
distanciamento proporcionado por esse caleidoscópio possibilita a formação de um senso
crítico acerca do texto e do retrato do ser humano.
A cena é interrompida por um acréscimo de episódio47
em que se enfoca um
encontro de Tadeu e Baltazar. Esse excerto da peça evidencia a covardia do sobrinho de
Tadeu. Para fugir de um pastor alemão, o moço precipita-se sobre uma árvore e se machuca
a ponto de ter seu tronco e quadris engessados. A postura que o gesso lhe confere é
considerada por Tadeu como ―empertigada‖. A palavra parece ter cunho polissêmico: tanto
pode associar-se à postura reta, tesa, quanto a encher-se de vaidade. Assim, a fatuidade de
Coutinho é reiterada aqui como em outros momentos em que se revelam atitudes do rapaz
tão afetadas e presunçosas que beiram a insensatez.
Como se pode notar, a expansão conta, na peça, com o trabalho com a linguagem
para que se trate, ironicamente, de alguns assuntos e se explore uma concepção específica
acerca do homem.
A pesquisa linguística é relevante na peça, o dramaturgo lança mão dos ditados e
expressões populares para desvendar a alma portuguesa. Mesmo Tadeu e Domingos usam
termos próprios do povo. O pai de Teresa refere-se à paixão da filha como ―estar
47 Gomes acrescenta elementos como personagem, episódio, motivo, tema, sentimentos do narrador, ou de
hipotipos (recursos linguísticos como tom coloquial, enumeração, dialogismo, detalhamento ou minúcia,
preciosismo, questionamentos) para ampliar o significado do paradigma. Também a contaminação com outro
trabalho, ou com personagens e temas de outro livro colabora para essa ampliação.
99
embeiçada‖ e a obstar o namoro como por um ―travão‖ nos acontecimentos. Dessa forma,
verifica-se que as personagens representam, antes de mais nada, o próprio povo português.
A cena continua patenteando a intenção de Albuquerque com o casamento da filha:
unir duas casas igualmente endinheiradas e evitar o consórcio com alguém da família do
juiz que lhe maculou a auto-estima.
Diferente da Teresa camiliana que, embora decidida, prefere não revelar o nome do
amado a Baltazar e a princípio não quer ferir-lhe os sentimentos com respostas ríspidas, a
personagem gomesiana cresce em desenvoltura e altivez. No caso de Teresa, trata-se de
uma valorização positiva uma vez que ela tem papel mais relevante que tinha no hipotexto,
pois seu comportamento é mais nobre. Assim, a personagem de Fernando Gomes é capaz
de declarar abertamente desdenhar a união com o primo, amar Simão e estar ―borrifando‖
para a união com um moço cujo ar convencido lhe é detestável. Diante do desprezo da
prima, o fidalgo de Castro-Daire ameaça-lhe, afirmando que ela se arrependerá de sua
decisão e que ele assistirá a esse arrependimento.
O diálogo entre as personagens é veiculado por uma canção, na qual o coro,
constituído por pobres mendigos, repete ameaças do rapaz e sintetiza o final da discussão,
assegurando tratar-se de um amor de perdição. O eco produzido por essa voz parece soar
como um fado impiedoso a perseguir Teresa. O tema da fatalidade, já enunciado, é
reiterado como uma realidade inelutável. O paradigma parece, portanto, configurar-se como
um Fado do qual é inútil tentar fugir. Trata-se, portanto, da mescla do coro trágico que
anuncia o destino das personagens e reafirma dados da moral vigente, e do coro épico que
promove o distanciamento do que se vê pela explicação do conceito de ―amor de perdição‖.
Aconselhado pelo sobrinho, Tadeu trata a filha com ternura a fim de convencê-la a
unir-se ao primo. A postura de Baltazar diante da recusa de Teresa não denota submissão
ou paixão, mas amor-próprio excessivo ao insistir no cumprimento de uma resolução que
tomara e por isso deve ser efetivada. A irreversibilidade da decisão da filha faz Tadeu
repetir a ameaça de interná-la em um convento.
Da mesma forma que em Camilo, Teresa promete morrer para todos os homens,
menos para o pai, desde que ele permita que ela permaneça em sua casa. Um dos narradores
comenta que a proposta denota a astúcia da moça, assim como o narrador camiliano havia
sugerido que, naquela realidade, era impossível manter a franqueza e a sinceridade. Nesse
100
trecho da novela, Camilo vale-se da metalinguagem para comentar que a atitude da moça é
rara em mulher naquela idade, mas que a mulher no romance quase nunca é trivial e esta
era distintíssima, sobretudo, pela celebridade que ganhou com a desgraça. Sugere-se, dessa
forma, que a ficção, ao refletir a realidade, a incrementa e a transforma em outra. A ficção
passa, por isso, a ser o mundo ideal e faz da realidade empírica um mundo deficiente.
Verifica-se, portanto, que Fernando Gomes colheu no novelista o expediente de comentar
criticamente seu texto, desvendando o paralelo ficção e realidade.
A astúcia feminina, capaz de criar um ardil para preservar sua liberdade e perseguir
seus próprios ideais, deve ser observada na peça com cuidado. A importância da índole
feminina, caracterizada pela sensibilidade e pela devoção, é relevante já que faz parte do
universo interior de todo ser humano (trata-se da anima, descrita por Jung como o Eros
materno); no entanto poucos se preocupam em cultivar essas qualidades para preservar sua
personalidade individual e única. A sensibilidade humana é rechaçada em uma sociedade
patriarcal. Nesse contexto, vale o individualismo, a vaidade, o poder, atitudes que relegam
as emoções, o encontro consigo mesmo, a autoconsciência ao desprezo.
Teresa tem que valer-se da astúcia para manter sua feminilidade em um mundo
regido pela lei do homem. Ela não tem outra opção que dissimular seus sentimentos para
mantê-los. A vida social leva à fragmentação do eu pela imposição de máscaras que
agradem a opinião pública. Teresa divide-se em filha obediente, fingida, subjugada em suas
emoções a fim de manter o domínio masculino patriarcal, e amante fervorosa, feminina.
As demais mulheres da peça parecem sucumbir a esse universo. Rita é caracterizada
pelo amor às aparências, não é mãe carinhosa, não se preocupa com o bem-estar dos filhos,
nem os acolhe em momento de adversidade, apenas prima por manter a boa reputação
frente à opinião pública, como um típico homem de negócios. Ela inverte a imagem de
mulher, esvazia sua feminilidade em benefício da manutenção do statu quo.
Também Mariana, na versão de Fernando Gomes, incumbida de reger a própria
vida, torna-se prática e extremamente ponderada em suas decisões. A personagem se
molda de acordo com o padrão de comportamento ditado pelo homem. Seu instinto
feminino quer aflorar pela sensualidade, mas é constantemente reprimido. Ela sente essa
repressão e a compara ao aperto de um ônibus lotado que caminha sem nunca chegar aonde
101
se quer ir. Seu pragmatismo atinge o ponto de levá-la a alertar Simão a ser menos
exagerado em suas manifestações.
Quanto mais civilizado, mais consciente e complicado for o homem, tanto menos
ele será capaz de obedecer aos instintos. As complicadas situações de sua vida e
as influências do meio ambiente se fazem sentir de maneira tão forte, que abafam
a débil voz da natureza. Esta é substituída então por opiniões e crenças, teorias e
tendências coletivas que reforçam os desvios da consciência. (Jung, 2000, p. 18)
Rebelde, Simão quer afrontar o sistema e firmar-se como indivíduo consciente de si.
Para isso, por um lado, cultiva os sentimentos de amor e caridade, por outro, revolta-se
contra os pais e a estagnação de seu país. O caráter revolucionário do rapaz parece ser
motivado pela convicção de que deve abandonar a resignação dócil aos preceitos sociais e
cultivar sua anima a fim de individuar-se.
A dualidade que permeia toda a peça parece remeter aqui à oposição básica da
natureza: os gêneros feminino e masculino. A extinção de um em prol do crescimento do
outro faz com que o homem perca sua identidade. Para recuperá-la, é necessária a reflexão
em vários espelhos, há que se desvalorizarem as aparências enganosas para chegar-se à
unidade primitiva; rechaçar a contemplação de si mesmo para conquistar a individualidade.
A autocontemplação leva ao engano, o homem se ilude com sua imagem e esquece-se de
sua essência. Somente pelo despojamento de suas particularidades, o homem poderá
reestruturar a unidade primitiva. A alusão ao espelhamento parece, portanto, ser um meio
de o dramaturgo apresentar um recurso que leve o homem a voltar-se para si mesmo em
busca de reencontrar-se.
Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando
para o outro, através do outro e com auxílio do outro. Os atos mais importantes,
que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra
consciência (com o tu). A separação, o desligamento, o ensimesmamento como
causa central da perda de si mesmo. (Bakhtin, 2003, p. 341)
A Literatura e o Teatro também são espelhos. Por meio deles, o leitor / espectador
pode avaliar o comportamento humano, identificar-se e resgatar seu próprio eu. Para
continuar a mostrar a peça como duplo da novela, Gomes acrescenta um episódio em que
um mendigo toma nota dos acontecimentos relacionados à Teresa porque ―isto é material
que bem contado ainda vai render muito!‖ (Gomes, p. 31) Assim, o divulgar de histórias
como forma de garantir rendimento, expediente com o qual Camilo sustentava a si e a
família, torna-se um motivo do texto gomesiano.
102
A sagacidade desse mendigo se refaz pela aprovação à rebeldia da Teresa às normas
estabelecidas pelo pai: “Não faz senão bem! Se estivéssemos todos de acordo a vida seria
monótona!” (Gomes, p. 29) Dessa forma, ressalta-se a irreverência como um meio de dar
sabor à vida.
A subordinação à realidade significa fazer parte de um rebanho inconsciente, viver
uma mentira – já que a vida em sociedade exige o fingimento e a hipocrisia. A contestação
revela-se, na peça, como um recurso valioso para a transformação social. É inerente ao ser
humano o desejo de escapar do previsível e do corriqueiro. Ao lado da irreverência, o amor
é uma forma de oposição ao utilitarismo do mundo burguês. Simão e Teresa identificam-se
entre si, reconhecem-se como seres providos de sentimentos rechaçados pelas concepções e
unem-se contra os representantes da visão de que discordam.
O conteúdo da carta de Teresa é veiculado por uma canção dos mendigos em que se
reitera a associação entre amor e paixão e se sugere a consciência da fidalga de “aldrabar” o
pai, isto, em linguagem figurada, significa revelar impostura, embuste, astúcia para
ludibriar o entendimento. Ressalta-se, assim, a dissimulação de Teresa como meio de
preservar o relacionamento com o namorado.
A cena seguinte apresenta um acréscimo de episódio: o narrador veste-se de padre
para não ser assaltado. “Deve ser a batina que afugenta o Diabo!” (Gomes, p. 30) A
importância do traje como representação de poder é aventada pelo trecho e ridicularizada
pelo humor dessacralizante. As aparências ludibriam e dominam a opinião pública.
Também Simão tentará mascarar-se para aproximar-se de Teresa. A inserção dos tipos
populares, as alusões a relações sexuais, os quiprocós e o nonsense geram o humor alegre,
renovador, porta-voz de opiniões não-oficiais.
Há um corte de cena e Tadeu é enfocado impondo o casamento à filha, tal qual o faz
na novela camiliana. A diferença é que, no palco, os mendigos comentam a atitude do pai
da moça. O foco narrativo se multiplica, a história é, dessa forma, considerada sob vários
ângulos. Pode-se chamar de multivocalização, a diluição de um narrador em várias vozes.
Tadeu é chamado pelos mendigos de “foleiro”, termo que na variedade linguística
popular remete à pessoa que merece desprezo, e, coloquialmente, à pessoa que não presta.
Além disso, reputam-no um “gajo”, velhaco, espertalhão fingido, que pensa em “bojarde”,
provincianismo, corruptela de “bojarda”, que significa peta, asneira.
103
A cena continua sem alterações em relação ao paradigma, Tadeu irrita-se com a
irreverência da filha e declara que a colocará em um convento. Depois, lamenta a Baltazar
não poder dar-lhe a filha.
Novo corte de cena ocorre. Focaliza-se agora o narrador, ainda como padre,
comentando que não desgosta de pobres, mas incomoda-se com os roubos. Um coro
responde às observações do narrador, ora louvando-as, ora vaiando-as. O padre declara que
os “pobres são as formigas de nosso piquenique” porque proporcionam o céu aos ilustres,
inspiram os artistas, amedrontam as crianças que não querem comer, motivam os discursos
políticos. Conclui seu pensamento afirmando que Deus sabe a razão por lhes ter feito sem
recursos, ou porque lhes “deu dentes, mas ao mesmo tempo se esqueceu de lhes dar nozes.”
(Gomes, p. 32)
Como se vê, Fernando Gomes acrescenta um episódio e um motivo à narrativa
camiliana. Sua peça estende-se, assim, a uma dimensão sócio-religiosa, afinal trata-se de
um padre evidenciando a hipocrisia de sua classe e dos que simpatizam com suas ideias
(coro) diante da desigualdade social. A motivação ocorre porque no paradigma havia uma
mendiga explorada por Teresa. A pobreza daquela era conveniente a esta, já que com
alguns trocados conseguia que suas cartas fossem levadas a Simão onde quer que este
estivesse. O dramaturgo apresenta o pobre como duplo do rico; sujeitos a esmolas, eles
possibilitam a comodidade dos endinheirados. Como se verifica, o coro cumpre, muitas
vezes, o papel de enunciador e comentador, raramente com intenção moralizante. O
propósito frequentemente é apresentar novas formas de interpretar um assunto, como uma
atualização crítica da parábase. Assim, ele desilude, reforça o distanciamento, sugere
leituras de um espectador atento e crítico. Reforça-se, dessa forma, o caráter épico da peça.
Nesse ponto do texto surge uma rubrica. Como Fernando Gomes é encenador
(diretor) de suas peças, ele não sente necessidade de elucidar dados sobre cenário;
vestimentas, movimentação e gestos dos atores. Então, o leitor só agora se inteira que no
início da peça os atores entraram com exemplares de Amor de perdição, procedimento que
será repetido nesse ponto da peça. Os atores entram em cena cantando uma canção que
antecipa as próximas cenas, ao sugerir a continuação do drama e o impasse acerca do ânimo
do espectador diante dos novos acontecimentos: haverá riso ou choro? Também essa reação
104
ambígua do público reflete a dualidade que permeia toda a peça. Outra sugestão de que a
peça pode dar novo curso à narrativa camiliana, e que o fado poderia ser ludibriado.
Finalizada a canção, alguns atores comentam os seguintes fatos: Simão, em
Coimbra, recebe carta de Teresa avisando-lhe da ameaça do convento; desesperado, parte
impetuosamente para Viseu, onde se encontra com a namorada às escondidas em um
jardim. Tadeu intercepta a correspondência dos amantes e trama com o sobrinho a morte de
Simão. Há alusões ao amor carnal. Pela narração, é possível a concisão do paradigma.
Nova canção ao mesmo tempo em que anuncia o intervalo propõe a dúvida se
haverá realmente um amor de perdição, questionando se peça suscitará riso ou choro do
público. Restabelece-se, dessa forma, a expectativa de que a novela camiliana poderá ser
alterada.
A segunda parte do espetáculo se abre com uma música entoada por bêbados. Novo
elogio à irreverência é feito ao mesmo tempo em que se propõe o romper com as
desilusões. A canção sugere que o homem ludibrie seu destino pela embriaguez. A bebida é
apresentada como um meio de se modificar as ―voltas do Destino‖. O termo ―voltas‖
remete a duas ideias: retorno e criação. Sinônimo de giro, o vocábulo pode ser associado ao
Mito do Eterno Retorno, de Nietzsche, pelo qual a alma está destinada a cumprir uma
missão e por isso retornaria eternamente. Essa teoria relaciona-se à ideia de fatalidade, um
guia que arrasta o ser a cumprir sua sina ainda que este tente escapar. Por outro lado,
―volta‖, em poesia, refere-se à criação de réplicas a um mote, o que traz em seu bojo o tema
da criação, da ficção ou da ilusão como forma de alterar a realidade. Essa reelaboração da
realidade, como já se procurou enfatizar, é um meio de tornar o homem espectador de si
mesmo.
A cena seguinte é um acréscimo de episódio e de motivo. Uma rubrica apresenta
uma taberna como um ambiente festivo, onde se bebe e canta. O entusiasmo dos que lá se
encontram parece a antítese da gravidade e severidade das personagens da primeira parte da
peça. A rebeldia é reapresentada como um meio de tornar a vida mais emocionante.
Mariana irrompe à cena com excessivo recato e declara não saber como entrou na
história, culpa o destino por tê-la colocado ali. Sua fala volta a colocar em pauta o plano da
ficção. Depois, ela revela sentir-se inadequada àquele lugar, ―há sempre uns sítios que só
são bons para os outros.‖( Gomes, p.36) Limitada pela opinião pública, Mariana revelará
105
ser moça ingênua, dotada de sensações e intuições que desconhece e com as quais não sabe
lidar. A moral parece restringir-lhe os movimentos. Para amenizar a seriedade da cena, o
dramaturgo vale-se da comparação entre a vida da moça e o aperto de um ônibus: ―pisam-
nos e a gente só tem vontade de sair e continuar a pé... Mas a pé... não se vai longe...‖
(Gomes, p.36) Pelo humor, o sistema é problematizado de forma sutil, mas não menos
penetrante. Trata-se de uma ampliação, uma vez que consiste no desenvolvimento temático
e na expansão em nível diegético.
Outro acréscimo de característica de personagem Mariana ocorre por meio de sua
afirmação acerca da vida: ―As pessoas dão importância a pequenas coisas quando não têm
com que se preocupar.‖ A fala revela o lado masculino, racional, ponderado ( do animus)
da moça. Fernando Gomes elimina a personagem João da Cruz e dá à Mariana a autonomia
de proporcionar estada a Simão. Ocorre, assim, a transmotivação, já que se suprime um
motivo para a inserção de outro. Ela é ao mesmo tempo emotiva e racional, ingênua e
perspicaz, voluptuosa e recatada. Trata-se da transvalorização de personagem, já que a
moça ganha relevo na peça. O primeiro encontro entre a moça ingênua e o fidalgo é repleto
de quiproquós, já que a rapariga tem dificuldade de lidar com suas emoções na presença do
rapaz e desmaia com frequência. Importante verificar que o caráter pragmático dessa
personagem feminina faz com que ela sugira a Toino – homem simples do povo,
personagem criada por Gomes - várias soluções ao problema de Simão antes de aceitar
oferecer-lhe refúgio.
Na peça, Mariana não tem nenhuma obrigação moral de acolher o rapaz. Na novela,
há um pacto de honra, João da Cruz é fiel a Domingos Botelho por ter-lhe salvado a vida e,
por isso, sua filha deve ser grata a Simão. Na peça, a moça acolheria o rapaz para ganhar
algum dinheiro. Nesse intuito, ela deve ceder-lhe a única cama que tem em casa e dormir
no chão.
O fato de Mariana sustentar-se sozinha dá a ela certa independência que a torna
menos sentimental; os desmaios diante do rapaz decorrem do desejo que sente por ele, já
que desde o momento em que o conhece passa a ter sonhos com braços e pernas que se
entrelaçam e se confundem, e intui que deve haver algo mais que braços e pernas em um
relacionamento entre homem e mulher. Nesse caso, não se trata do amor resignado e servil,
mas de uma paixão carnal. Transformar o amor idealizado do modelo em paixão sensual
106
sugere uma visão de vida prazerosa, com bons momentos, ainda que estes possam levar ao
sofrimento.
―Sete olhinhos‖, o nome da taberna onde a cena se passa alude à bisbilhotice, o que
se confirma pelo fato de a história de Simão ser ali conhecida e comentada por todos.
Também os desmaios de Mariana se tornam mote de comentários. O taberneiro afirma ―E o
grande problema das mulheres honestas é que vivem inconsoláveis‖ (Gomes, p.41) e sua
fala é complementada pela de sua esposa: ―[inconsoláveis] por causa dos pecados que não
cometeram‖ (Gomes, p.41). O desejo carnal não é, portanto, visto como um problema, mas
como a solução para alguns males. Esse ponto de vista não é moralista, nem repete
servilmente a norma vigente; pelo contrário, sugere o romper com a noção cristalizada de
―honestidade‖ como meio de se alcançar consolo e satisfação. Como se vê, vários motivos
são inseridos por meio da criação de novas personagens, o que consiste no recurso da
extensão.
Mariana termina a cena narrando reconhecer que Simão é motivo de seus calores e
desmaios. Logo após, divulga-se a notícia de que o rapaz fora ferido pelos criados de
Baltazar em uma emboscada. Cabe à Mariana tirar a bala que, desta vez, lhe fere nas
nádegas, isso gera novo desmaio. A narração é fragmentada por uma cena em flash back,
que remonta ao momento em que a moça conhece Simão. O jogo cubista entre planos
diferentes, já enunciado na peça Maria, não me mates que sou tua mãe! , ocorre desde o
início de Amor (também) de perdição e se evidencia pelo simultaneísmo de dois episódios
anacrônicos encenados nesse ponto da peça. O novo tratamento das cenas revela também o
procedimento da ampliação.
A música dos bêbados volta a ser entoada, reforçando o apelo à entrega aos
prazeres.
A notícia de Teresa ter sido enviada a um convento faz Simão recorrer à Mariana a
fim de levar uma carta à fidalga. Diante da declaração do rapaz de que sem Teresa
renunciaria a vida, Mariana o adverte: ―Não precisa ser tão dramático! A situação já é
dramática por si... e nestas alturas convém distanciarmo-nos um bocadinho.‖ (Gomes, p.
44). A ponderação da moça contrasta com a histeria do rapaz. Neste momento, nela,
predomina o lado masculino (o animus) e nele, o feminino (a anima).
107
A partir dessa cena, Mariana fará alusões a seu desejo por Simão que passarão
despercebidas pelo rapaz. O final da cena apresenta o espelhamento entre as atitudes de
Simão e Teresa: ele se questiona se Mariana estará apaixonada por ele, enquanto Teresa se
indaga acerca de o namorado permanecer apaixonado por ela. Também a expressão do
desejo de Mariana por Simão apaixonar-se por ela reflete-se no anseio de Baltazar por
Teresa aceitá-lo em casamento. Verifica-se, dessa forma, que sentimentos semelhantes
podem ter índoles ou intenções diferentes. Embora as personagens não tenham consciência
do espelhamento das atitudes expressas, o leitor / espectador tem e pode inferir que a
paixão, a dúvida, a insegurança são marcas do ser humano que só se compreendem pela
observação do outro.
Há um corte de cena e enfoca-se o convento onde Mariana dialoga com a fidalga. A
cena segue o modelo com um único acréscimo de motivo: as freiras chamam Teresa de
―bruxa‖ ao perceberem que ela consegue comunicar-se com o namorado, mesmo sem
tinteiro e papel. Bruxa parece remeter à mulher cuja energia criadora não foi domesticada e,
por isso, quer ser ouvida como agente do desenvolvimento da consciência humana. Essa
mulher não consente ser reprimida, quer ser livre. O retrato condiz com as artimanhas da
moça para ludibriar o pai e manter o namoro. A índole feminina dissimulada e astuta é
revelada no fragmento.
Em seguida três cenas ocorrem simultaneamente: o diálogo entre Simão e Mariana,
por meio do qual se patenteia o desejo do rapaz de visitar Teresa no convento; a conversa
de Rosa e seu marido taberneiro sobre os sucessos de Simão ter ido ao convento e o
colóquio entre Teresa e Baltazar à saída do convento. A simultaneidade confere agilidade à
peça ao mesmo tempo em que revela um mesmo episódio de vários pontos de vista. O
caráter cubista da peça torna-se mais evidente pela justaposição de cenas anacrônicas.
O diálogo entre Simão e Mariana ocorre antes de ele defrontar-se com Baltazar. A
conversa entre os primos dá-se antes dos fatos narrados por Rosa ao marido. O
simultaneísmo tem também o intuito de revelar o espelhamento entre palavras de Baltazar à
Teresa e as de Mariana a Simão. Ambos alertam o interlocutor a não persistirem em suas
decisões para que não venham a arrepender-se. As palavras de Baltazar, no entanto,
configuram uma ameaça e as de Mariana, uma advertência amiga. Essas coincidências e
divergências parecem apontar para a necessidade de, em um julgamento, investigarem-se
108
motivos que transcendam evidências superficiais, pois ditos e atitudes semelhantes podem
ter intenções diversas.
Além do simultaneísmo, outro acréscimo de motivo feito por Fernando Gomes é a
sugestão astuta de Mariana a Simão que se fantasie para encontrar Teresa a fim de não ser
reconhecido. Novamente a importância do traje é colocada em pauta. Simão, entusiasmado
com o plano, beija Mariana como se beijasse Teresa. Reforça-se, assim, o espelhamento,
reiterado pelas seguintes falas:
MARIANA: Ele beijou-me!
BATAZAR: Ela rejeitou-me!
MARIANA: Foi sem querer!
BALTAZAR: Foi de propósito! (Gomes, p.48)
A inversão especular é ressaltada e parece alertar o leitor / espectador de que o
caráter dual da realidade cotidiana deve ser observado com atenção. Espelho carrega, dessa
forma, toda a ambiguidade semântica de sua etimologia, já que ―deriva da palavra latina
speculum — na origem, especular significa ‗observar os movimentos das estrelas no céu,
através de um espelho‘‖ (Cherubini), com o tempo o termo passou a ser usado no sentido de
meditar ou pensar a respeito. A etimologia sugere um conhecimento indireto, por meio da
observação, o que se parece apontar na peça. Além disso, quando se leva em conta o mito
de Narciso, considera-se o perigo de admirar-se excessivamente a própria imagem, uma vez
que esta atitude cega para a realidade e faz o indivíduo perecer. Para o autoconhecimento, é
necessário, portanto, usar o outro como espelho, já que o juízo que o outro faz do eu mostra
quem é o ―eu‖ para o próximo.
Autoconhece-se quem se faz outro, fragmentando-se no próximo. Representar torna-
se, por isso, uma forma de adquirir autoconhecimento e essa concepção vem sendo sugerida
desde o início da peça com os rompimentos com a quarta parede.
A história prossegue com a inserção de uma canção enunciando os sucessos
decorrentes da ida de Simão ao encontro de Teresa, que evidenciam as perdas ocorridas:
Simão perdeu a liberdade, Baltazar perdeu a vida e Teresa, a chance de casar-se com o
amado.
Somente depois de ter sido várias vezes narrado, o encontro de Simão e Baltazar
vem à cena. Na versão de Gomes, o senhor de Castro-Daire está armado e chama o rival de
109
―espantalho‖. Diante da ameaça e do insulto, Simão atira no adversário, dizendo mandar-
lhe, assim, ao inferno. As palavras do primo de Teresa indicam novo desdobramento, assim
como Tadeu se sente à sombra de Domingos Botelho, Baltazar se sente encoberto por
Simão, por isso lhe chama ―espantalho‖. Embora Gomes não faça menção à fisionomia do
herói, em Camilo, o filho mais moço dos Botelho teria puxado a beleza da mãe, portanto a
denominação dada ao moço não pode referir-se à sua aparência.
O jogo de espelhos, iniciado pela associação entre Baltazar / Tadeu, Simão /
Domingos, amplia-se com outro acréscimo, as freiras tiram seus hábitos, revelam-se
agentes de polícia disfarçados e levam o rapaz preso. Gomes elimina a possibilidade de
Simão entregar-se e assumir a responsabilidade por seus atos, ele é capturado em uma
emboscada. Ocorre, portanto uma supressão ou redução. Em Camilo, a postura idônea do
rapaz em assumir a culpa de seu ato quando tem a chance de fugir ou de valer-se de seu
nome para escapar impune de seu crime fazem de Simão um herói e o diferencia de seus
familiares. Em Gomes, o rapaz não tem oportunidade de revelar esse heroísmo e de firmar
sua identidade, diferente da de seus pais. Seu ato apenas reflete a herança paterna de
considerar-se poderoso o suficiente para julgar, condenar e punir o primo de Teresa.
Simão é condenado à forca e, em outro local do palco, Mariana desmaia, o que
evidencia o simultaneísmo.
Para impedir a condenação do rapaz, Rosa, taberneira criada por Fernando Gomes,
prontifica-se a salvar o rapaz. A atenção que Camilo confere às personagens femininas é
recuperada e ampliada pelo dramaturgo. Se, no paradigma, Mariana apresenta a ousadia de
desafiar a sociedade e colocar em risco a própria reputação para permanecer ao lado de
Simão na cadeia, no exílio e na morte, na peça, várias mulheres revelam semelhante
intrepidez e desembaraço. É o que se verifica na taberneira que se encaminha ao juiz,
decidida a fazê-lo alterar a sentença dada a Simão. Novamente a inserção de personagens
populares colaboram com o humor e, por extensão, com a revisão crítica de regras
estratificadas.
No paradigma, o poder do magistrado Domingos Botelho adultera o julgamento
pronunciado; na peça, a sagacidade e sedução de uma mulher do povo são responsáveis por
isso. Essa alteração põe em causa o poder feminino, desprezado na sociedade do século
110
XIX, enquanto ressalta a capacidade feminina de criar planos para manobrar a situação
adversa, a ponto de o juiz ter dificuldade em acompanhar as propostas da dona da taberna.
A fragilidade do sistema judiciário, já sugerida no paradigma, é reiterada por novo
acréscimo de motivo. O juiz alega à Rosa que não poderia modificar a sentença para não
chatear o carcereiro, nem o algoz que há muito não matam ninguém; no entanto, seguindo a
lei do benefício próprio, o magistrado altera seu julgamento, seduzido por Rosa. Como se
percebe, o poder judiciário revela-se fútil e facilmente manipulável e corruptível.
O contrassenso da justificativa do juiz gera o humor pela quebra de expectativa pela
evidenciação do que geralmente se encobre. Pretextos mesquinhos são motivo para
determinadas sentenças. Prevalece a vontade de quem relaciona-se com o poder instituído.
A cena é interrompida por um diálogo acerca do destino de Mariana que teria
enlouquecido ao saber da sentença de morte dada a Simão. A ideia de que a moça seria
amante do rapaz, apenas aventada na novela, é evidenciada no intertexto.
Em uma canção, a moça revela também possuir um amor de perdição. Diferente do
amor espiritualizado do texto oitocentista, a personagem gomesiana revela-se lasciva e
sensual. Em Camilo, a felicidade e o amor só ocorrem na vida após a morte, nega-se todo
amor e felicidade terrenos, exalta-se o amor infeliz, perpetuamente insatisfeito. Gomes
apresenta meios de se obter a felicidade terrena: a irreverência e o amor carnal.
A voluptuosidade feminina é também tematizada no episódio da aproximação de
Rosa ao juiz. Nas juras de amor entre o juiz seduzido e a taberneira, há menção metateatral:
―Se isto fosse ficção científica a D. Rosa era um micro-ondas.‖ (Gomes, p.55). Permanece,
portanto, um alerta constante acerca da dualidade ficção versus realidade.
Seduzido, o juiz altera a sentença e o diz em linguagem popular: ―A justiça esteve a
refletir... e acabou de verificar que se baralhou um bocadito.‖ (Gomes, p. 55) A alteração no
tom cerimonioso do paradigma gera o humor. Novamente dessacraliza-se o que é oficial.
Além disso, Baltazar intervém, clamando por uma revisão do processo, mas é silenciado,
por já ter morrido.
A audiência sanguinária sugere que Simão seja enviado à câmara de gás, ou morto a
pedrada, afogado como os gatos, ou guilhotinado. O juiz declara não estar na Idade Média e
ser necessário um final feliz para agradar ao público; por isso comuta a sentença em
degredo para a Ilha da Madeira.
111
O padre interpõe-se, aludindo ao paradigma: ―Ele é deportado para a Índia, mas
morre antes de lá chegar.‖ (Gomes, p.56). Rosa censura a crueldade do padre que desja a
morte do rapaz. O juiz alega que cabe a ele decidir o destino do rapaz. Animado com o
poder do magistrado, Baltazar pergunta acerca de seu próprio destino e o juiz responde que
não é Deus, pode deixá-lo falar algumas vezes, mas não ressuscitá-lo por completo.
Essa concepção do poder judiciário parece associar a magistratura à autoridade do
ficcionista, já que , como um literato, o juiz pode dar a palavra para personagens que, fora
do âmbito da imaginação, não poderiam falar. Como o reflexo implica semelhança entre
duas partes, pode-se depreender uma concepção da Literatura como jurisdição. Nesse
sentido, o literato deveria, como um juiz, investigar os costumes, opiniões e
comportamento de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos, bem como avaliar a ética,
as regras de comportamento consideradas válidas. O espelhamento sugeriria, assim, o
caráter filosófico da arte. Novamente, está em foco o recurso da extensão.
De volta ao plano da ação, Rosa relaciona a Ilha da Madeira, local para onde Simão
seria enviado, a um jardim. Simão entusiasma-se com esse destino e não menciona
nenhuma preocupação com Teresa nesse momento. Como a Ilha da Madeira é território
português, o herói não seria exilado; pelo contrário, seria mandado a um local paradisíaco.
Paraíso remete ao primórdio da criação; no contexto da peça, pode ser uma alusão a um
recomeço ou renascimento. Longe das regras da família, Simão teria autonomia para dispor
de si e fazer qualquer coisa por seu livre arbítrio; assim, ele gozaria dos direitos do homem
livre, seria independente. Essa liberdade é, todavia, intimidante. Adiciona-se um motivo
(viagem a local paradisíaco, prêmio) enquanto se suprime outro (exílio, punição) a fim de
alterar significativamente a sentença de Simão.
Na Epanáfora amorosa, obra aludida na epígrafe do paradigma, os amantes fogem
da Inglaterra e vão parar na Ilha da Madeira, local então desconhecido. As personagens da
narrativa agem de forma significativa. Ana sucumbe diante dessa nova condição e Roberto
morre pela culpa de levar a amada à morte. A liberdade gera perdas. Ana, acostumada à
opulência da corte, leva consigo suas jóias para manter seu padrão de vida; no entanto, ao
deparar-se com uma floresta desabitada, percebe que de nada valerão seus bens e que uma
mudança radical lhe será necessária. Frente a essa nova realidade, a moça deixa-se abater e
morre. Negar a liberdade equivale a abdicar da própria consciência; no entanto, para alguns,
112
isso é menos custoso que aventurar-se pelo desconhecido. Aceitar a identidade conferida
pela identificação com o outro e subjugar-se a ela é muitas vezes mais cômodo e
confortável. O novo destino de Simão sugerido pela peça colocaria o rapaz em confronto
com seus valores e ideais; propiciaria distanciamento da opinião pública, o que
possibilitaria chegar-se ao autoconhecimento. O padre, representante da tradição, discorda
desse novo destino e impõe o paradigma como sina do herói. O humor coloca-se de novo a
serviço da libertação da submissão à ordem estabelecida. Torna-se ridículo o padre que
remete ao poder instituído querer manter as regras ainda que elas não façam sentido.
O apego à tradição é característico do povo português, para ressaltar sua consciência
disso, Fernando Gomes coloca o som de um realejo sob muitas cenas. Tudo ocorre como
se o passado e seus valores permeassem a história. Por outro lado, a música de Offenbach
rompe ironicamente com o tradicional e sugere uma postura iconoclasta. Essa ambiguidade
revela a leitura do dramaturgo acerca de seu povo e do ser humano em geral. A
contraposição entre velho e novo é evidenciada em Amor (também) de perdição na próxima
cena.
Apresentam-se as alegorias da Lisboa Antiga e da Lisboa Moderna discutindo o
destino do herói. Enquanto esta anseia por um final feliz, aquela espera um drama em que
todos morram. Importa ressaltar que a diferença entre as duas é superficial, reside na
tendência do gosto de cada época. No século XIX, era costume que se frequentasse o teatro
munido de lenços para chorar. Esse derramamento sentimental supriria a necessidade de
expandir as emoções, o que era vedado em uma sociedade pautada pelo lucro. Nos séculos
XX e XXI, o riso substitui o choro, a necessidade de entretenimento de distração que afaste
a mente da meditação e da reflexão dos problemas diários torna-se uma necessidade.
O diálogo entre as duas Lisboas sugere, por isso, a busca do ser humano por
expandir emoções e fantasiar. A cena desemboca em um fado, cuja letra define a vida como
mentira, o amor como castigo divino e apresenta a morte de Simão, Teresa e Mariana como
final da peça. Aparentemente, o intertexto repetiria, assim, o texto de Camilo; no entanto,
há uma alteração significativa entre os desfechos.
Em Camilo, Simão vai para o exílio por vontade própria, ao optar por não
permanecer no cárcere por dez anos. Contrariando a vontade da amada, o rapaz decide
viver livremente e confessa que nem o amor que sente por ela o fará mudar de opinião.
113
Embarca com dignidade e altivez, decidido a viver com Mariana uma nova vida em local
inóspito, porém destituído da hipocrisia de sua pátria.
Contudo, ao ler a última carta de Teresa, o herói percebe ter sido um mau servidor
de sua senhora e, por isso, ter causado a morte da moça. Essa consciência o torna infeliz até
a morte.
[...] — A infeliz espera-te noutro mundo, e pede ao Senhor que te
resgate. — Se te pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar
que eu ficava com a vida e com esperança de ver-te na volta do
degredo? Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento, me
domina a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que
a mesma infelicidade tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até não
podê-lo ser mais! Quero que digas: — Está morta, e morreu quando eu
lhe tirei a última esperança. -
— Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse resistir
alguns dias à morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de outro, era
inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio, este último
que se está partindo, e eu mesma o ouço partir.
[...]
Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se
uma vez visses passar rapidamente a minha sombra por diante dos teus
olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da tua amiga estas derradeiras
perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta leres. (Branco, 1984, p. 532 – 535)
A carta de Teresa desperta a consciência de Simão e a culpa que lhe causa a morte.
O amor, concebido como único e eterno, impede o rapaz de amar novamente e é sob o jugo
desse sentimento tirano que ele sucumbe.
Em Fernando Gomes, suprimem-se a última carta de Teresa e a tuberculose que
acomete a moça no convento. A culpa não será motivo da morte de Simão, mas a novela. O
fado impiedoso, e não o amor, leva à morte. O Fado, retratado como o paradigma, remete
ao apego à tradição, essa característica tipicamente portuguesa impede a renovação da
história.
Na disputa entre os filhos rebeldes e os pais reacionários, vencem os pais. Simão não
terá oportunidade de afastar-se daquele meio e individuar-se. O dramaturgo propõe-se a
alterar o paradigma, mas a tradição – na peça, representada pela figura de um padre e da
Lisboa Antiga – não permite. Isso gera um final desiludido, mas significativamente
diferente do modelo, já que a causa da morte dos protagonistas é causada por novo motivo.
O Fado impede a realização dos desejos, não a culpa. A inserção de novos motivos leva à
internalização, isto é, substitui-se um motivo social por motivos psicológicos.
114
A ideia de Fado apresentada no final do século XX parece um contra-senso; no
entanto, o conceito de fatalidade existe no inconsciente coletivo português como uma
âncora que não deixa novos barcos lançarem-se ao mar da irreverência. Em outros termos,
o Fado consiste em uma representação mental que não permite à juventude a liberdade de
expressão, a contestação às regras ou às situações estabelecidas.
O diálogo com uma obra canônica da Literatura Portuguesa é chamariz para a peça,
mas é a paródia altera o paradigma e revela a mundividência do dramaturgo. Assim sugere-
se que o fatalismo português que coloca o povo à espera de um Destino Grandioso, do
Quinto Império, do Encoberto, de um futuro que repita o passado de glória impede a
contestação necessária à renovação. Há que se assumirem responsabilidades e defeitos,
reconstruírem valores para a prosperidade.
Fernando Gomes, pela paródia dos moldes camilianos, sugere essa postura. Se
simplesmente tivesse repetido o texto de Camilo, revelaria falta de identidade.
Dessacralizando o modelo, o dramaturgo rompe com a tradição, denota maturidade literária
e a assunção de identidade própria. O amor não é apresentado como meio de elevação e
sublimação, mas como uma forma de afrontamento. O sofrimento não leva à salvação da
alma, mas à perda da identidade.
Toda a ilusão criada pelas frequentes menções à possibilidade de alteração do final
trágico gera a desilusão. A tristeza diante desse desfecho faria com que o povo caminhasse
em procissão com velas para a ―grande catedral do fado‖, ―expoente da perdição nacional‖.
(Gomes, p. 61) Há um anticlímax, tudo parecia indicar que o texto romperia com o modelo
e, no entanto, os heróis morrem no final.
Os acréscimos de personagens e motivos e a eliminação das cartas ampliam o
significado do texto camiliano. As epístolas, no paradigma, conferem tom sentimental e
pessimista à narrativa. Sem essa correspondência, a novela apresenta apenas o amor
obstado pela vaidade de pais tiranos. Extinguir as cartas e acrescentar personagens
irreverentes é uma forma de o dramaturgo parodiar Camilo. Enquanto este enfoca o
sentimento e os males oriundos das paixões, aquele sugere a subversão como meio de
extinguir os males. O riso substitui o choro; o deboche, o sentimentalismo.
Na primeira parte da peça, predominam personagens que constituem o statu quo.
São seres mesquinhos, egoístas, vaidosos, inconscientes de suas fraquezas e limitações,
115
preocupados com aparências e reputação. Na segunda parte, abundam seres marginalizados:
bêbados, mendigos, prostitutas, pessoas do povo. Esses vivem plenamente, entregam-se aos
prazeres sem preocuparem-se com a opinião pública.
Mariana destoa desse grupo por sua extrema ingenuidade e é considerada por isso
―inconsolável‖. A história parece encaminhar-se para um rompimento com a novela
oitocentista, muitas personagens do modelo quase que desaparecem no segundo ato; no
entanto, o fado entoa a morte dos protagonistas.
Fernando Gomes aventa, pela canção, que a Lisboa Moderna difere apenas
aparentemente da Lisboa Antiga. O desejo por um final feliz corresponde ao gosto do
público antigo pelo trágico, a busca por sentimentos intensos que desviem a atenção da
realidade concreta. Ambos os públicos querem a ilusão. A insatisfação gera o desejo de
fuga, de criar ilusões. O anti-clímax é uma forma de romper com a ilusão e revelar a
oposição entre verdade e mentira, realidade e ficção. A peça apresenta-se como espelho em
que o eu possa refletir acerca de si mesmo.
O teatro como representação possibilita ver o mundo através dos olhos de outrem,
simular para tentar compreender o plano sensível, real. Ao gosto do teatro épico, Gomes
usa elementos que estimulam a problematização e a conscientização do espectador acerca
do fazer teatral, da vida cotidiana, dos dados do inconsciente coletivo português. A peça
sugere que o mundo é um palco e a vida é um sonho, interferir na reação do público
interrompendo-a ou restringindo-a, corrobora essa concepção.
Gomes, como dramaturgo contemporâneo, incumbe-se de transcender os limites da
cena tradicional, restrita pela preocupação com a verossimilhança e pela necessidade de
criar a ilusão. Pela queda da quarta parede, seu teatro revela-se ficção. Assim, a cronologia
não importa, derruba-se a quarta parede, estabelece-se a comunicação direta entre ator e
espectador, fundem-se ficção e realidade. Abole-se a perspectiva, multiplicam-se os focos
narrativos. A ação desvincula-se do enredo, em alguns momentos, para problematizar o
fazer teatral. Sobem ao palco temas como a psicologia individual e coletiva, por isso é
impertinente a linearidade. Por outro lado, fazem-se necessárias a superposição espacial e a
simultaneidade temporal. Assim como o outro é projeção da consciência do eu, a peça
espelha – e, algumas vezes, distorce - a vida social. Decorre daí a necessidade de empregar
formas do teatro épico, de expandir o espaço cênico pela narração, por comentários, coros,
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canções. O diálogo hipertextual caminha para a paródia, para a desconstrução do
paradigma.
Na peça, o intertexto funciona como a tradição a ser respeitada. Criam-se ilusões,
mas a cópia repete a fatalidade funesta do modelo, o Fado inelutável se perpetua. O
problema está em que a sociedade não está preparada para abandonar seus hábitos e
individuar-se. Espera-se a salvação no alhures, mas quando se percebe que o aqui e o
alhures são o mesmo gera-se a desilusão. No final, o espectador reconhece que tudo o que
foi mostrado acabou repetindo o modelo e o passado, o que, na verdade, sugere a
premonição de um futuro iminente.
Simão e Teresa são a antítese de seus pais, eles se amam, os pais se odeiam. Teresa
declara seu amor ao mesmo tempo em que confessa ―aldrabar‖ o pai.
Durante toda a peça, o som do realejo permeia cenas indicando a presença da
tradição. Essa sonoridade amplia a sensação de fantasia e causa bem-estar, comodidade. O
tradicional é território conhecido, não amedronta; por outro lado, Offenbach causa
estranhamento. Também a sonoplastia sugere a duplicidade de emoções e sensações. De um
lado, o realejo oferece a sensação de saudosismo; de outro, a menção a Offenbach sugere a
paródia.
A solução para o dilema humano de autoconhecer-se no outro é afastar-se de
estigmas e estereótipos, desembaraçar-se de uma imagem preconcebida. Assim, o
português para individuar-se deve abandonar a imagem que tem de um ser que não existe
mais. O amor de perdição é, portanto, o amor-próprio que impõe o culto à auto-imagem.
Corrobora a hipótese de dissociação do eu em busca de encontrar sua identidade, o
uso de músicas de filme mudo como sonoplastia. A música no início da história do cinema
mudo não era relacionada à ação transcorrida na tela, não fornecia o clima, nem enfatizava
a imagem porque não se conseguia sincronizar o movimento e o som por algumas décadas.
Tratava-se, portanto, de acompanhamento musical, função meramente ilustrativa, e não de
cinema sonoro.
Colocar música de cinema mudo na peça não tem intuito de enfatizar a ação, já que
a música não foi criada para aquele texto, revela, outrossim, a inadequação entre ação e
som, gerando uma sensação de deslocamento.
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Não é esse afinal o dilema do ser humano? Lutar contra um rival implacável que lhe
restringe os movimentos e lhe impede de individuar-se? As máscaras usadas como escudo
em uma sociedade hipócrita apegam-se de tal modo à pele que se encobrem e modificam a
identidade original. O juízo que o outro faz do eu torna-se tão importante que o eu acaba se
tornando outro. Ansioso por escapar aos moldes, o eu quer escapar pelo riso, pela paródia,
mas acaba no trágico, do qual não consegue desvencilhar-se.
118
FEL E SANGUE
IV. 1 Fel escorre da pena de Camilo
O humor está presente na Literatura desde seus primórdios. A cada momento
histórico, a manifestação do cômico adquire novas nuances, por isso não é de estranhar que
tantos filósofos tenham se debruçado sobre o assunto. Também Camilo valeu-se do cômico
para promover um retrato bastante amplo de sua época, de seu povo e dos sentimentos
humanos.
O recurso já era apontado por Quintiliano como ―um meio excepcionalmente
poderoso de solaparmos nossos adversários‖ (Skinner, 1999, p.268), Crasso, personagem
de Cícero, contribui com a questão sugerindo motivos que levam ao riso: ―é possível
encontrar material para o ridículo nos vícios observáveis no comportamento das pessoas"
(Apud Skinner, 1999, p. 268). Como se percebe, a oratória antiga reconhecia o humor como
um procedimento útil para conquistar o público e, ao mesmo tempo, expressar derrisão.
Considerando-se as citações feitas por Camilo em O sangue de textos que se valem
do humor, nota-se que o escritor estudou e apreciou o recurso. Um dos livros mais antigos,
de feição irônica, aludidos na novela em questão, é A arte de furtar, texto anônimo, escrito
no século XVII. A narrativa apresenta o intuito de ―ensinar a conhecê-los [os ladrões],
para os evitar‖ (2006, p. 30) Permeada por ironia ferina e estilo jocoso, o livro dedica-se a
satirizar os costumes da época, revelando que os verdadeiros ladrões e piratas não são
punidos; pelo contrário, ocupam tronos e recebem homenagens. Nesse texto, são feitas
críticas severas aos poderosos, ao sistema judiciário e à nobreza. Entretanto, o foco da
censura feita pelo livro não é a sociedade, mas o ser humano; por isso, a vaidade, a
ambição, a soberba, o zelo pela opulência e o excesso de amor próprio são julgados com
veemência.
Outros autores que se dedicam ao humor, citados pelo novelista são Molière e
Gavarni. O dramaturgo do século XVII tratou, em suas peças, de vários temas que aludem
ao comportamento do homem da época. Suas críticas dirigem-se aos modos afetados da
nobreza, à falsidade das relações matrimoniais, à hipocrisia da classe dominante - sobretudo
a do clero -; ao ridículo procedimento dos novos-ricos de imitar a nobreza; à soberba e à
119
arrogância. Seu humor é corrosivo e erudito, não se trata do burlesco, do grosseiro, do
agressivo, mas revela o poder do dito espirituoso, parece corresponder ao que Freud
preconizava como um riso que revela um sentimento de superioridade e de superação e
confere liberdade quanto à fraqueza do outro. Esse tratamento do cômico vai abrir espaço
para a caricatura, amplamente cultivada no século XIX.
Nesse âmbito, Gavarni revelou-se genial, apresentando por seus desenhos os
costumes de sua época em traços burlescos e picantes. Ele iniciou seu trabalho
ridicularizando tipos sociais, mas, em fase mais madura, passou a retratar o lado grotesco
da vida familiar e da natureza humana. Suas gravuras sugeriam pessimismo e indignação
diante do ridículo dos vícios. A caricatura exagera traços psíquicos, dessacraliza, servindo
até mesmo aos iletrados, daí Baudelaire afirmar:
[A caricatura] realiza desproporções e deformações que devem ter existido na
natureza em estado de veleidades mas que não podem desabrochar, recalcadas
por uma força maior. Sua arte, que tem qualquer coisa de diabólico, ressalta o
demônio que derrotou o anjo. (fonte)
O filósofo considerava esse riso de perfil demoníaco como profundamente humano
uma vez que sugere a debilidade do homem em seu orgulho, sua intenção de humilhar, de
vingar-se, de agredir.
O cômico em Camilo, no entanto, parece transcender essa intenção e vincular-se à
dialética do riso e da tristeza preconizada por Victor Hugo. Para o autor, o cômico advém
da tomada de consciência de que a realidade é grotesca e muito distante do ideal. Essa
concepção vai ao encontro da busca romântica pela unidade perdida.
El espíritu del hombre, creatura separada, es el espejo más puro del universo y del
Alma universal. Más aún, esta Alma no puede llegar a la consciência y conocerse
a si misma sino en su imagen, que es la alma humana; pero no [...] en el alma tal
cual es, inculta y abandonada, sino únicamente en el hombre que há sabido llegar
a ser lo que ya es. Lo que debemos hacer es habituar nuestro oído para percibir el
diálogo interior del Todo consigo mismo, alcanzar em nosotros mismos las
regiones inconscientes, que son de la semejanza divina. (Béguin, 1993, p. 103 –
104)
O riso camiliano reúne as várias gradações do humor clássico e romântico,
incidindo, fundamentalmente, sobre a psicologia humana de forma dissimulada, irônica.
Antídoto contra a atitude sisuda e nada criativa de uma sociedade pautada em regras que se
articulam de acordo com os interesses da classe dominante, o humor de Camilo parece ter o
120
intuito de gerar prazer psicológico a si e ao leitor sagaz que escarnece de procedimentos
indicativos de certa economia mental.
Em O sangue, o cômico relaciona-se ao próprio processo narrativo, já que Camilo
elabora seu texto revelando a literatura como fingimento e como representação, para o quê
se vale da ironia romântica. Exemplo desse procedimento são as sínteses com que se
iniciam os capítulos, cabe citar um trecho modelar:
Desengano aos fariscadores de escândalos. Como pode o engenho fazer o milagre
de conservar personagens honestos até o 4º. capítulo inclusive. De como no Porto
de há vinte anos houve homens endiabrados com senhoras, e outras coisas tristes.
Por que dizem que a esperança é verde. [...] Dizem outras coisas que tocam o
coração. (Camilo, 1907, p. 53)
A consciência crítica do autor refreia-lhe o sentimentalismo e faz irromper um
escritor irônico, capaz de dessacralizar seu tempo, sua gente e seu próprio texto. Também a
compreensão de que a vida social é composta por disfarces e dissimulações é sugerida por
comentários críticos de teor metalinguístico os quais perpassam as cenas de pura farsa. Esse
saber torna a melancolia, a desilusão, a amargura diante da estupidez humana o cerne do
humor de Camilo. Em suma, é necessário brincar com a dor para obter consolo e
autopreservação.
A índole do riso camiliano é sugerida nessa narrativa, sobretudo, pelas alusões
intertextuais. O livro é permeado de um riso ácido que desorganiza as convenções, liberta
das circunstâncias exteriores, esfacela a moral social hipócrita, para tornar o leitor apto a
ver o mundo com olhos mais críticos e atentos. ―No grotesco romântico [...] a loucura
adquire os tons sombrios e trágicos do isolamento do indivíduo.‖ (Bakhtin, 2010, p. 35)
O narrador inicia o romance, em tom de deboche, a pedir a um amigo um lance
extraordinário para um escritor que de uma ideia sem originalidade nenhuma compõe dez
livros singulares. A alusão metalinguística e a intertextualidade são elementos
fundamentais para a compreensão do processo narrativo camiliano.
Com base nesse pressuposto, importa iniciar o estudo do romance pela apreciação
crítica dos textos aludidos pelo escritor. Como já se enunciou, um índice onomástico das
citações de Camilo caminharia dos clássicos aos românticos pela vertente do blague, do
121
chiste. Percebe-se, por isso, o valor que o novelista atribui ao humor como forma de
desentorpecer os sentidos para produzir mudanças.
Alerta de que a vida é efêmera e, por isso, há que se valorizar o eterno e o risco, o
novelista promove a caricatura da sociedade burguesa de forma a evidenciar quão frágil e
insignificante é sua moralidade, enquanto defende a integridade do interior humano. Para
afrontar a falta de entendimento e a hipocrisia, Camilo emprega um riso amargo, misto de
prazer e dor, que denota censura e compaixão. ―{...} Num mundo fechado, acabado,
estável, no qual se traçam fronteiras nítidas e imutáveis entre todos os fenômenos e valores,
o infinito interior não poderia ser revelado.[...] (Bakhtin, 2010, p. 39) Para isso contribui o
uso triste da sátira.
A análise crítica inicia-se desde a primeira página da narrativa, que se abre com uma
conversa entre o narrador-autor e Antônio Joaquim. Esse diálogo é pretexto para Camilo
zombar dos ricos que louvam a pobreza e não conseguem conviver com a ideia de velhice
pelo apego excessivo à vida. As reflexões do amigo abastado lembram ao narrador a Arte
de furtar.
Antônio Joaquim, por seu turno, considera a moralidade do personagem-autor
semelhante à de Droz e de Franklin e a conduta ética dos desvalidos similar à de Sócrates,
Philo, Jesus Cristo e Jean Jacques Rousseau.
Sem perder o tom de deboche, o narrador-autor rebate que pouco sabe desses
filósofos e só se incomoda em tentar desvendar o significado das palavras de Cristo,
―Benditos os que choram‖. Para Camilo, cultivar e expressar emoções definem o cerne do
homem; no entanto, ele olha com desconfiança o versículo citado já que o consolo
prometido aos que sofrem é substituído, em sua sociedade, por zombaria e menosprezo.
Choram os pobres e oprimidos que são rejeitados e escarnecidos.
Como se pode notar, em poucas páginas há um grande número de citações. Cabe
lançar alguma luz sobre as ideias sugeridas por essas alusões intertextuais a fim de
adentrar-se o universo camiliano.
Sobre os filósofos citados, basta recordar algumas ideias-chave que corroboram a
visão camiliana. Droz propunha que o homem deve ser educado para privilegiar os deveres
em detrimento dos direitos a fim de construir uma sociedade exemplar. Em Franklin, são
coletados ideais de liberdade para a conquista da independência individual privada, livre da
122
opressão de soberanos. Em Rousseau, o desdém pela sociedade urbana, corruptora que deve
ser problematizado.
Quanto à filosofia de Sócrates, o que parece interessar a Camilo é o ideal de
aprimoramento pessoal e o menosprezo pelo enriquecimento material. Já em Philo, o
novelista parece recuperar o conceito, distorcido pelo individualismo burguês, de que as
paixões desviam o homem do caminho da perfeição e da virtude; por isso há que se
reprimirem os desejos para que a bondade, a prudência, a coragem, o autocontrole sejam
cultivados. A Burguesia, em prol do lucro, materializa as relações, subjuga os sentimentos
para travar casamentos convenientes.
Depois dessas sugestões filosóficas, Antônio Joaquim oferece-se a contar ao suposto
autor um lance original que lhe dê ideia para um romance. As personagens de sua história
foram apresentadas ao narrador-autor em certa ocasião em que ceiam um cordeiro ao
assistir pela oitava vez à peça Degolação dos Inocentes. Enquanto assistem à dramatização
do episódio em que Herodes manda perseguir e executar os primogênitos, a família come
um cordeiro do qual deixa cair uma perna do camarote para a plateia. O grupo em que se
insere o narrador vai até o local para devolver o quitute em tom de zombaria.
O grotesco é motivo de riso, é
[...] uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a
consciência aguda do seu isolamento. A sensação carnavalesca do mundo
transpõe-se de alguma forma à linguagem do pensamento filosófico idealista e
subjetivo, e deixa de ser a sensação vivida [...] da unidade e do caráter
inesgotável da existência que ela constituía no grotesco da Idade Média e do
Renascimento.
O princípio do riso sofre uma transformação muito importante. Certamente, o riso
subsiste; não desaparece nem é excluído como nas obras ―sérias‖, mas no
grotesco romântico o riso se atenua, e toma a forma do humor, ironia ou
sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso
reduz-se ao mesmo. (Bakhtin, 2010, p. 33)
O paralelo entre a peça e um grupo de cristãos-novos que destroça e devora um
cordeiro é um índice de como o novelista enxerga a hipocrisia daquele grupo. Tal como
Herodes manda sacrificar os primogênitos para assegurar seu poder, os burgueses da rua
das Cangostas imolam sua religião e seus filhos em prol de seus interesses. O sacrifício do
cordeiro, antes oferecido a Deus, é agora meio de saciar a gula.
Verifica-se, assim, que a acidez e profundidade da visão camiliana permeia as
primeiras páginas de seu livro por meio de alusões críticas que somente serão captadas e
compreendidas apenas por um grupo seleto apto a rir com o novelista.
123
O tema da sujeição ao lucro entrelaça-se a assuntos relacionados à psique humana,
como o amor-próprio. O enredo de O Sangue tem como nó o casamento de Tomásia e
Inocêncio, tramado por Gervásio em busca de direcionar a vida do filho e ao mesmo tempo
agraciar a órfã, que criou com amor de pai, tornando-a sua filha. Cabe aqui uma paráfrase
resumitiva da novela para enfatizarem-se alguns dados relevantes para análise.
Assim que nasce a menina, sua mãe falece nos braços da vizinha, a rica cristã nova
Tomásia de Barros. Imediatamente a família Barros encarrega-se de criar e educar o bebê
que recebe o nome de sua madrinha. Quando atinge idade suficiente, o padrinho planeja
casá-la com seu próprio filho para manter o dinheiro em família. Os moços titubeiam, mas
acabam consentindo. O casamento fracassa já na lua-de-mel, quando o rapaz se revela
doentiamente ciumento. Na primeira oportunidade, Inocêncio viaja e amanceba-se com
uma francesa. Tomásia permanece solitária até reencontrar um moço que a assediara com
longos olhares em sua lua-de-mel. Eles trocam cartas, ela identifica-se com a solidão do
rapaz, engravida e tem que fugir com ele depois de o bebê nascer, para livrar-se da
vingança do marido. Na fuga, tem que abandonar o bebê, mas planeja vir buscá-lo logo
que possível. Entretanto, Inocêncio morre antes de voltar para casa e a família Barros sai de
Portugal anonimamente para criar o ―neto‖ na Inglaterra. Já adulto, Pedro toma
conhecimento de que a mãe é viva e casada com o homem que teria arruinado a reputação
de seu pai. Impetuosamente, o rapaz decide desafrontar a honra do pai, travando um duelo
com Nicolau, sem revelar sua identidade; no entanto, é ferido de morte. O marido de
Tomásia vem a saber que baleou o filho e enlouquece. Pedro visita Nicolau percebe que
aquele é seu verdadeiro pai, mas decide afastar-se e assumir-se herdeiro universal dos
Barros. Diante do desfecho, um amigo do narrador comenta: ―Um filho só pode ser filho de
quem é seu pai, quando não herda oitenta contos de outro que foi casado com sua mãe.‖
(Branco, 1907 , p. 254)
A trama constitui-se a partir dos interesses mesquinhos de cada personagem. No
ancião, há o desejo de preservar seus bens, sem ter que dividi-los com outra família. No
rapaz, o interesse por Tomásia é despertado pela inveja de um adversário mais elegante,
moço que ―cavalgava guapamente, era bem parecido, galeava pelos figurinos, tinha uns
ares soberbos de quem despreza invejosos, entrava na roda dos provincianos fidalgos, e, de
mais a mais, [era] rico.‖ (Branco, 1907, p. 73) A órfã aceita a proposta movida pelo
124
despeito, pois fora ridicularizada por Costa Guimarães. Além disso, a ama lhe assegura que
não acharia marido melhor.
A psicologia é tema caro ao novelista. Cada personagem configura-se um meio de
Camilo apresentar traços de comportamentos individuais e sociais. A astúcia feminina
introduz-se pela personagem Custódia. Interessada em desvincular Tomásia de Inocêncio
por antipatizar com o rapaz que sempre a maltratou, ela manipula a menina a corresponder-
se com outro. Clama a São Gonçalo de Amarante por um marido para a moça e acredita tê-
lo encontrado no dandy Costa Guimarães. Entretanto, quando toma conhecimento de que
este desdenha de sua senhora, aconselha Tomásia a corresponder ao filho do Sr. Barros. A
sagacidade de Custódia contrasta com sua ingenuidade. Se, por um lado, revela-se
engenhosa ao tentar dissuadir Tomásia, mostra-se tola e ridícula quando é crédula, ou
retoma as quadrinhas de um antigo pretendente como índice de sabedoria.
Como a ama, as personagens apresentam qualidades e defeitos, os heróis são
dessacralizados. No livro, Camilo põe em xeque os exageros românticos e encaminha-se a
estabelecer seu realismo romântico, que apresenta consciência dos limites da representação
literária, questiona o fazer narrativo, revelando suas incongruências, sem, no entanto, deixar
de criticar a arte que se quer retrato imparcial, sem imaginação e criatividade. ―O que faz
parecer a novela Camiliana realista é, pois, a sua intensidade romântica, ou seja, a
verossimilhança conseguida depende mais da relação enunciador-linguagem-mundo do que
de uma adequação da linguagem e do enunciador ao mundo real.‖ (Ferraz, 1991, p. 81)
No intuito de revelar o ser humano por meio de personagens, Inocêncio, sem saber
com que moça se casa, é ridicularizado e comparado ao burro de Buridan. Esse jumento,
indeciso, morre de fome diante de dois fardos de palha exatamente iguais. Assim, veicula-
se a falta de iniciativa de um rapaz educado sob o controle da vontade paterna. Esse traço
torna o nome da personagem ainda mais irônico, pois não se trata de ingenuidade, mas de
parvoíce.
O caráter ridículo do rapaz é ainda acentuado quando este se põe a citar versos do
Ciúme do Bardo, ―em voz soturna‖, ao lado de barqueiros ignorantes e de senhoras que lhe
tomam medo.
O texto de Castilho citada apresenta um poeta em desespero por acreditar-se traído
por sua amada. O eu lírico oscila entre ímpetos de vingança e de morte, e a iminência de
125
enlouquecer. O ciúme é, no poema, uma paixão sensual e voluptuosa que aguça os sentidos
e a imaginação. O adultério faz com que o sujeito poético deseje o mal de sua amada para
que sua desgraça sirva de exemplo à humanidade.
A história de amor do bardo apresenta algum ponto de semelhança com a de
Inocêncio e Tomásia. Ambos os casais conhecem-se desde a infância; no entanto, em
Castilho, há amor do que decorre o desejo do sujeito lírico de perdoar a amada. O amor
que rompe barreiras não ocorre em Camilo; pelo contrário, o casamento é mero contrato. A
insegurança do rapaz gera o ciúme e a desconfiança, esses sentimentos são exacerbados a
tal ponto que a esposa aviltada pelas constantes acusações passa a desdenhar do marido e
pede ao padrinho que a ponha em um convento.
Camilo concebe Inocêncio como homem pervertido pela sociedade. Acostumado a
frequentar bares, jogar, beber, o rapaz entedia-se no isolamento da lua-de-mel. Ao lado da
―Fonte dos Sátiros‖, propõe à esposa que retornem a Lisboa.
A alusão aos sátiros é irônica, pois refere-se aos companheiros de Dionísio que
passavam seu tempo perseguindo as ninfas, bebendo vinho, dançando e tocando harmônica
de canos, flauta ou gaita. A associação convida ao riso os que são capazes de compreender
a alusão.
Hábil conhecedor da psicologia feminina, o autor zomba da situação dos
protagonistas, sugerindo que Tomásia, se fosse mulher experiente, teria usado o ciúme para
suscitar o desejo do marido. Dessa forma, o narrador evidencia a inocência e inexperiência
da moça, o que será valioso para configurar a visão geral do narrador acerca da
personagem.
Para asseverar a verossimilhança dos tipos que cria, o narrador compara Costa
Guimarães, motivo do ciúme de Inocêncio, a Saint-Preux, ― terror da moral desde a Porta
dos Nobres até o Poço das Patas‖ A menção refere-se a uma personagem de Júlia ou a
Nova Heloísa, de Rousseau. Diferente da moça que dá nome ao livro e seu marido Wolmar,
com quem casa para satisfazer a vontade paterna, o ex-namorado de Júlia, Saint-Preux, não
é resignado e virtuoso, mas apaixonado e disposto a viver um amor adúltero. Júlia e o
esposo representam o controle racional, como uma virtude que motiva a verdadeira
felicidade, a paz da alma. As personagens da narrativa de Rousseau são seres superiores,
muito além do homem comum. A moça subordina sua vontade particular à paterna, visando
126
a preservar a imagem da família. Wolmar configura-se um Inocêncio às avessas, é forte,
controlado, domina situação e quer conhecer o antigo namorado da esposa. Saint-Preux
não atinge o autocontrole, com ele o leitor pode identificar-se. Entretanto, Rousseau parece
negar o que afirma, já que sugere a ataraxia, ao mesmo tempo em que mostra a
impossibilidade de o homem comum segui-la.
A Nova Heloísa aponta a contenção racional como possibilidade de resolver os
conflitos gerados pelo amor-próprio e por outras tendências humanas, as quais fazem do
homem um ser incompleto e insatisfeito; por outro lado, nega essa possibilidade pela
confissão do sofrimento de Júlia antes de morrer.
Já em Camilo, os embates humanos são intensificados pelo caráter passional das
personagens, o controle dos sentimentos não é um ideal. Incapaz de vigiar a si mesmo e de
vencer seu maior desafio, que é o próprio eu, o homem não alcança a virtude e tem destino
trágico. Em Rousseau, as belas almas atraem os homens comuns para aperfeiçoá-los; em
Camilo, as belas almas são as que se entregam ao amor, rechaçando as convenções,
contudo essa façanha é cruelmente castigada.
Rousseau propõe a conduta estóica, mas parece negar sua efetividade pelo
sofrimento de Júlia. Camilo propõe o amor sem barreiras, porém sua realização é
comprometida pelo embate com as regras sociais, daí o destino trágico dos que se arriscam.
Na mesma linha satírica, a relação entre Tomásia e Inocêncio é retratada. Eles se
casam na igreja de São Nicolau. Além de o nome do santo coincidir com o do futuro
amante da moça, associa-se a um homem célebre por prodigalizar discreta e
desinteressadamente seus bens em prol de menos afortunados. O altruísmo não se verifica
em nenhuma personagem da narrativa, sobretudo em Inocêncio cuja mesquinhez é tal que
se vale da herança de um tio para viajar com uma amante em vez de compartilhar com a
esposa e família.
A alusão remete também a Nicolau, cuja fortuna é aplicada a granjear meios de
namorar Tomásia ou de evidenciar seu poder diante da sociedade do Porto. Não há menção
à filantropia do rapaz. Ele não é um herói tipicamente romântico, é descrito, outrossim,
como quem um galanteador ridículo, cujo perigo estava em querer morrer ou matar por
amor. Antônio Joaquim também colabora para a dessacralização do herói ao questionar o
amor do amigo por uma mulher casada:
127
- Que julgas tu que sou capaz de fazer por aquela mulher? [Nicolau referindo-se à
Tomásia]
- Asneiras superiores ao meu cálculo – respondeu meu discreto amigo.
- Arrebatá-la, e estrangulá-la, se me perseguirem e eu me vir em risco de a perder.
- Vês? - tornou Antônio – aí está uma parvoiçada a que não chegava o arrojo da
minha imaginação! Arrebatá-la e estrangulá-la!... Não és rapaz de meias medidas.
Faltou-te, no programa, enterrá-la. É preciso enterrá-la; e depois uma sangueira
de vampiro. Vais por noite morta ao cemitério e sugas-lhes as artérias.
- Não podes entender-me: és bom rapaz, mas não conheço coração mais estúpido
que o teu! – atalhou o acadêmico, com um sorriso em que ressumava o despeito
delicado.
- Não é estúpido, quanto cuidas – contradisse gravemente o meu atilado amigo. –
Tem um vício que vocês alcunham estupidez: o vício da virtude. Condeno com
quanta sinceridade posso essa cruel brincadeira que tu chamas fatalidade. Já me
disseste que é casada a mulher.
- Que me faz isso a mim? – obviou Nicolau sem tergiversar na protervia da
refutação. - Eu sei lá o que é ser casada a mulher onde está uma alma que me
pertence?
- Então a alma da mulher de um tal Inocêncio pertence-te?!
- Não zombes!
- Pois tu crês que possa sustentar-se contigo diálogo sério? Que distinções estás aí
talhando entre corpo e alma!... Não me atarantes com sutilezas. Agacha-te ao raso
do meu entendimento. A mulher é casada ou não?
- É.
- Então, deixa-a; porque não sabes quantas desgraças evitas à mulher que amas.
Deixa-a em virtude do amor que lhe tens. (Camilo, 1907, p. 156 – 157)
O desejo de Nicolau por viver um grande amor com uma mulher casada não escapa
ao humor amargo camiliano. Já no início do livro há um índice narrativo a sugerir a
tragicidade do destino dos que ousam afrontar as regras sociais. Antônio Joaquim defende o
respeito de homem por uma mulher casada como uma virtude, ainda que esta seja alvo de
seus sentimentos. Virtude não é um dom, uma qualidade inata, mas fruto de intenso
trabalho de autocontrole e perseverança. O comentário de Joaquim poderia ter sido feito
pelo próprio autor, que também vivenciou a questão e sabe as implicações legais e
emocionais de um adultério. Enfrentar a sociedade em nome do amor não é tarefa fácil,
nem passível de ser empreendida por um sujeito sem muito dinheiro e poder.
Outro excerto que sugere a dessacralização de Nicolau transcreve-se a seguir:
Tinham entrado na estalagem quando o secundarista retrocedeu a botar inculcas
sobre a procedência e destino da mulher que, a seu juízo, lhe era enviada como
um acepipe dos festins de Lucrécia Bórgia, um cálice de água tufana, uma coisa
que lhe caíra do céu como a tartaruga que matou Ésquilo. Os rapazes têm coisas!
(Branco, 1907, p. 115 e 116)
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Lucrécia Bórgia assemelha-se à Tomásia em vários aspectos, não só no que se refere
à beleza da moça que seduzia a todos os que a conheciam - menos o marido, em ambos os
casos - como também a uma gravidez de paternidade desconhecida. A personagem não
apresenta a castidade, resignação e nobreza da heroína romântica, é uma mulher sedutora,
consciente de sua sexualidade e pronta a dissimulá-la, se necessário .
Além de a referência trazer em seu bojo uma conotação sexual rara em romances
românticos, é associada ao episódio trágico - ao mesmo tempo cômico - da morte de
Ésquilo, alvo de uma tartaruga arremessada por uma águia que tentava quebrar-lhe o casco
para comê-la. Assim, introduz-se, de maneira dessacralizante, o caso de Nicolau e Tomásia:
há uma alusão à sexualidade e a um final trágico que viria de forma repentina e inesperada
(tragicômica). A conduta típica do herói romântico que se lança em aventuras e riscos por
amor a uma mulher fatal é ridicularizada no trecho. A cena parece consistir em uma
advertência aos que se deixam levar pelas emoções de que se deve ponderar refletidamente
antes de arriscar-se porque os infortúnios são inevitáveis.
Por sua obra, Camilo problematiza a vida, apropria-se racionalmente de seus dados
para analisá-los e interpretá-los. Em suas narrativas, ele preserva episódios da vida do
cotidiano e estuda a psique humana. As personagens não procuram sujeitar-se às
adversidades em busca de salvação na vida após a morte, o universo interior nobre,
desinteressado, que se apresentava em Simão e Teresa do Amor de perdição esvanece-se
em O sangue . A visão do livro é mais realista e cética, mostra uma humanidade que suscita
o escárnio.
Lançando mão do cômico, o novelista se põe acima dos que analisa, e zomba da
mesquinhez desses tipos. O humor camiliano decorre, portanto, de quatro fatores: da
consciência crítica da realidade, da observância de uma crise de valores; de uma crise
individual - motivada por ver-se menosprezado por pessoas que lhe condenam por crimes
semelhantes aos que cometem, mas encobrem - e da desilusão diante de um mundo
corrompido.
O ciúme, fruto do amor-próprio ferido, parece ser o tema que recebe mais luz no
livro, prova disso é o paralelo que se traça entre a história de Tomásia e Inocêncio e a peça
Fayel, de François Thomas Marie de Baculard d‘Arnaud. A menção é feita em diferentes
momentos. Durante o momento em que as personagens assistem ao primeiro ato da peça, o
129
marido de Tomásia observa Rosinha; no intervalo, é advertido pelo irmão da ex-namorada
que Tomásia escrevia cartas a outro. Essas ocorrências aguçam-lhe os ciúmes e o tornam
implacável com a esposa.
Importa estabelecer o paralelo entre a peça de Arnaud e O sangue para configurar a
visão de mundo de Camilo. O primeiro ato da peça apresenta Fayel, um marido cruel que
quer vingar-se da esposa por suspeita de infidelidade. A causa da desconfiança é uma carta
anônima encontrada junto ao quarto de Gabriela - o mesmo motivo do rancor de Inocêncio.
Na peça, o pai da moça rasga a carta, considera injusto o receio do genro e atribui ao
excessivo ciúme do moço a causa da tristeza constante da filha. O sogro, no entanto,
reconhece na carta a letra de um antigo namorado da filha; ele finge para preservar o
casamento que tramou por conveniência própria. Fayel assume ter caráter violento,
intratável, e concorda em remover a esposa da torre onde a encarcerara.
Inocêncio, transtornado pela intriga de Roque, não assiste ao segundo ato, em que se
enfoca Gabriela, no cativeiro, consolando-se com a ama. A moça revela sua inocência,
embora declare amar Cuci, que ela acredita estar em batalha. Isaura aconselha a esposa de
Fayel a escrever a Cuci, reafirmando-lhe seu amor. Vergi vem encontrar a filha para culpá-
la de ingratidão, declarar-se um desgraçado e dizer-lhe que Cuci morreu heróicamente em
guerra.
Fayel junta-se ao grupo e apresenta momentos de ciúme intercalados a crises de
choro e de arrependimento. Vergi, à parte, aconselha a filha a dissimular seu sofrimento
pela morte do ex-namorado.
Inocêncio retorna ao camarote no fim do segundo ato, o pai retira-se com ele para
saber o motivo da ausência do rapaz. Assim como Vergi, Gervásio – note-se a transposição
de algumas letras dos nomes das personagens – defende a moça para proteger a reputação
de seu nome e de sua família e ―diz coisas escorreitas das mulheres com o tino e o siso de
um Balzac‖ . A menção ao romancista francês decorre do fato de ele ter sido atento
observador e franco retratista de seu povo, o que fazia sem escrúpulos, revelando a
hipocrisia e a corrupção de sua gente. Assim, Gervásio é retratado como um homem
experiente no convívio social; daí aconselhar o filho a manter a aparência de tranquilidade
para não instigar comentários malévolos.
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Diante da advertência paterna, Inocêncio ―entrou a rir-se no camarote com a mais
infeliz cara que imaginaram Gavarni e Molière.‖ (Branco, 1907, p. 134) A menção ao
caricaturista e ao dramaturgo que se tornaram célebres por retratarem, de forma zombeteira,
os tipos humanos e a vida das famílias burguesas, sugere o intuito de aprofundamento no
estudo da natureza humana e suas relações sociais. Os aspectos da vulgaridade e do vício,
da miséria e da degradação moral são reprovados pelo riso.
No terceiro ato, Cuci retorna da guerra e por obra do acaso encontra Gabriela em um
bosque. Ao saber que ela está casada tenciona matar-se ou assassinar-lhe o marido, a moça
insiste em que mantenham a dignidade e a honra. Ainda que inocentes, eles são
aprisionados por pajens de Fayel.
No ato seguinte, Fayel confessa amar Gabriela e culpa o pajem por acender-lhe os
ciúmes. Essas cenas não são mencionadas na novela, afinal o tratamento dado ao tema do
amor difere-se nos dois textos: Inocêncio não ama a esposa, casa-se por deixar-se levar pelo
amor-próprio ferido. No entanto, Tomásia pede que Inocêncio deixe-lhe prestar atenção à
última cena do quinto ato. Embora essa fala não seja transcrita por Camilo, importa
recuperá-la para que se compreenda a menção feita pela personagem. Gabriela exclama,
depois de Fayel ter matado Cuci:
Se te queres, cruel, fartar de sangue,
Quem te suspende? Mil punhais me crava.
Há muito tempo espero, e te suplico,
Que termines meus dias; despedaça
Um peito, de teus golpes desejoso;
Rasga o coração angustiado,
Que, à sua fé rebelde, já não pode
Sentir mais do que horror a teu respeito...
Os vínculos sagrados, que até hoje
Nos ligaram, cruel, tu os quebraste;
O crime para sempre nos separa...
Acaba de vingar-te; escuta os brados
Da raiva, que te inflama; ajunta, ajunta
Também aquela vítima a Consorte...
O teu fatal poder já não conheço,
Nem razão, nem dever; a glória, a fama,
Nada, nada m‘importa; desesp‘rada,
Embebida na dor, que me espedaça;
Cheia de uma lembrança, que em minh‘alma
Há de sempre existir, ver-me-hás entregue
A pesares eternos, até que morra:
Continuamente me hás de ouvir, tirano,
Repetir-te que amei Cuci sempre;
Que o tempo, as tuas iras atiçarão
Meu amor inda mais: apesar da morte,
131
Esta imagem querida há de gravar-se
Cada vez mais, e mais em meus sentidos.
Agora mesmo o adoro mais que nunca!
Sim, meus votos recebe, sombra amada,
Por teus manes ensanguentado juro,
Um amor te prometo, que escarneça
De teus furores...( a Fayel em tom desprezador)
Não, já te não temo;
A minha mesma dor me arranca a vida. (Arnaud, 1803, p. 96 e 97)
O desespero e insubordinação de Gabriela a um marido cruel serão refletidos no
desdém de Tomásia pelo marido. A mesma aversão indignada será apresentada por
Tomásia em dois momentos: diante da ama morta em decorrência das intrigas de Inocêncio,
e perante a indiferença de Pedro pelo sofrimento de Nicolau. A morte de Custódia
determina o rompimento dos votos do matrimônio, pela completa indiferença e o mais
amargo rancor de uma esposa aviltada pelo ciúme de um marido cruel e injusto. Ao invés
dos brados excessivamente sentimentais de Gabriela, Tomásia adota a indiferença e pede
para ser colocada em um convento, proposta sumamente rejeitada por Gervásio. Este prima
por manter as aparências e conservar a união do filho com uma mulher que não colocasse
sua fortuna em risco.
Nesse ínterim, Luís Pinhel, tio de Inocêncio, falece. O rapaz vai ao Pará receber a
herança que lhe foi deixada. Ironicamente, o navio em que o rapaz viaja para o Pará se
chama Romeu. A história de amor de Shakespeare, consagrada por séculos, altera-se nas
mãos de Camilo, Romeu passa a figurar-se como um homem mesquinho, egoísta, que se
despede secamente da esposa para angariar o que lhe cabe de uma herança que divide com
os filhos ilegítimos do tio. Esse é o Romeu do final do século XIX.
Além desse diálogo intertextual, outro é sugerido pela conduta de Inocêncio. A
personagem parodia o filho pródigo. Assim como a figura bíblica, ele despreza o convívio
familiar e lança-se a uma vida de prazeres que financia com o dinheiro de uma herança. O
desfecho, contudo, inverte o paradigma. O rapaz não se arrepende, nem intenciona pedir
perdão por sua imoralidade. Desprezado pela amante que até então lhe retinha a
correspondência, receberá a notícia de que sua esposa está grávida. Enfurecido, quer
retornar à pátria para vingar-se, mas acometido por uma febre, morre antes de realizar seu
intento. O padecer não purifica nem regenera, apenas sugere a degradação do ser humano
vitimizado por seus desejos. A família, como a bíblica, tem a oportunidade de acolher um
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filho perdido na figura de Tomásia, que abandona a casa e foge com o amante. Entretanto,
o Barros abstém-se do contato com a moça, difamam-na e fogem com o suposto neto para
que ela não tenha contato com o menino, nem possa requerer parte da fortuna da família.
Novamente os valores são invertidos em nome do lucro.
A atitude vil de Inocêncio quando cotejada com o procedimento de Tomásia, torna a
traição da moça menos torpe. Dessa forma, Camilo sugere que nem sempre as relações
extraconjugais são motivo de difamação. A conduta hipócrita do homem perante a vida
pode ser muito mais ofensiva.
Para reafirmar quem é a vítima e quem o algoz, Camilo retoma o paralelo com a
peça Degolação dos Inocentes ou a ―carnificina dos meninos que ameaçavam a dinastia do
rei de Jerusalém‖ , e descreve Tomásia entre a família de cristãos novos como uma ―menina
que se escondia entre as mulheres gordas como uma andorinha entre três peruas‖ . A
delicadeza de Tomásia contrasta com a corpulência e modos desajeitados das burguesas da
rua das Cangotas. A imagem que parece remeter a uma presa junto ao predador - ainda
mais se levar-se em conta o tema da narrativa - é fortificada pela menção à peça Inês de
Castro, moça que é assassinada por poderosos amedrontados diante de seu domínio sobre o
príncipe, seu amante.
A associação insinua certa simpatia do autor pela personagem. Assim como Inês,
Tomásia seria vítima da ambição de pessoas que, para conservar suas propriedades,
precisam sacrificá-la. Como a amante de D. Pedro, Tomásia seria condenada por amar. O
que se leva em conta, na visão de Camilo, não são as relações sociais, mas os motivos
interiores. Assim, Inocêncio é culpado de adultério por abandonar a esposa e unir-se a uma
mulher a quem apenas deseja. Tomásia, por outro lado, é inocentada por amar um homem
que lhe compreende e respeita. Seus atos são ditados por amor, não por desejo. Ela seria tão
culpada quanto os primogênitos mortos por Herodes, ou Inês degolada pelos ministros de
D. Afonso VI. Tomásia e seu caso com Nicolau contrariam a ordem estabelecida, por isso
não pode ser poupada.
Além de servir para insinuar sua visão de mundo, as menções intertextuais prestam-
se à proposição de uma reforma cultural. O narrador comenta que, no Palácio de Cristal,
revezavam-se as peças Pedro Sem e Inês de Castro, ―enquanto o progresso não abranger
Manuel Mendes Enxúndia, sugerindo, assim, que o português é passadista, nostálgico e,
133
nesse andar, desvia os olhos do presente e do futuro. A alusão à peça de António Xavier
Ferreira de Azevedo, célebre poeta dramático do século XIX, corrobora a visão do
novelista sobre o casamento. Sobre o dramaturgo, o Dicionário Bibliográfico Português:
Destituído de estudos, por isso que além dos rudimentos da instrução primária,
apenas possuía o conhecimento medíocre das línguas francesa e espanhola, uma
vocação ingênita o levou a compor para o teatro, tornando-se escritor
fecundíssimo, e bem aceito ao publico, que aplaudia com entusiasmo as suas
produções. Estas passando dos teatros públicos para os particulares, constituíam
ainda não ha muitos anos o repertorio dramático das associações de curiosos. Não
é que nos seus dramas houvesse originalidade e verossimilhança na contextura
das fabulas, disposição e escolha nos caracteres, colorido local, e observância dos
costumes nacionais; porém supria todas essas faltas, e as mais que os críticos lhe
notavam com a facilidade de inventar lances e situações de grande efeito teatral,
com a vivacidade e rapidez do dialogo; com a eloquência patética dos afetos, e
com o interesse vivo e progressivo que sabia derramar por suas composições, ou
antes imitações livres das peças francesas e castelhanas, que tomava por modelos,
e que ajeitava a seu modo, para lisonjear o gosto e aprovação d‘aqueles para
quem escrevia. (Silva, 2001, CD ROM)
A farsa citada em O sangue é composta por apenas quinze cenas em um ato e
tematiza a proposta de casamento de Manuel Mendes Enxúndia a Isabel, sua sobrinha.
Viúva, ela agora possui o cabedal que o marido lhe deixou, o que a torna interessante aos
olhos do parente. Inconformada, ela pede a seu escudeiro que a auxilie a dissuadir o ancião.
Além de não se interessar pelo tio, Isabel já namora outro homem. As falas são repletas de
trocadilhos e de insinuações que geram o humor. Veiculam-se provérbios populares e trata-
se do próprio fazer teatral, já que o marido de Isabel compunha peças. Rebolo, encarregado
de armar uma farsa para mudar a intenção de Manuel, parece ser alter ego do escritor, já
que revela astúcia e sagacidade de quem conhece as regras sociais. Sua fala final sugere a
visão crítica e zombeteira do dramaturgo acerca das relações sociais:
Rebelo: E aqui está Rebelo, por alcunha homem de bem, que prostrado suplica
perdão, e profere uma Sentença extraída do Livro das Experiências, folha três,
Capítulo das cautelas. ―Todo o homem, que chega aos quarenta sem casar, deve
passar outros tantos sem o fazer; e depois dos oitenta faça o que quiser. É certo
que nem todas as mulheres matam; mas o que é certo, é que todas moem; e aqui
está o Senhor Manuel Mendes que o diga: e à vista do exposto. (Azevedo, 1815,
p. 32)
Como se pode perceber, o tom de deboche e o tratamento irreverente dado ao
casamento suscitavam o riso do público e a simpatia de Camilo, tanto assim que o novelista
chegou a adotar o pseudônimo de José Mendes Enxúndia, alegando ser neto de Manuel
134
Mendes. Cabe, no entanto, ressaltar que a peça é citada como modelo de literatura
atualizada por não repetir as mesmas histórias enraizadas na cultura popular.
Em O sangue, o tema da renovação da cultura portuguesa resvala no tema da
educação das mulheres portuguesas. A questão é, no entanto, apresentada de maneira sutil,
por meio dos retratos de personagens ou comentários do narrador. Tomásia, por exemplo, é
descrita como uma mulher bela e, por conseguinte, um tipo que despreza os estudos ―Era a
soberana ordem das cousas, raramente desconcertada. Chovia-lhe a natureza dons de
infantil formosura, e dava-lhe ao mesmo tempo sequidões esterilizadoras de inteligência‖.
(Branco, 1907, p. 37)
A antítese - chuva e sequidão - sugere que, em uma mulher, beleza e inteligência
são opostas e excludentes. Esse retrato da mulher consiste, no entanto, em ironia veemente,
já que reflete a concepção preconceituosa das pessoas da época, o que se verifica,
sobretudo, em comentários dos pais de Inocêncio. A mãe concebe a leitura como um
passatempo: ―[...] para as fidalgas que não sabem no que hão de gastar as horas.‖ (Branco,
1907, p. 37), e o pai ―[...] entendia que as quatro operações não lhe desconvinham e a
leitura de uma carta lhe podia ser útil. Daqui em diante, nem ele sabia nem lhe constava que
mulheres pudessem aprender coisa proveitosa.‖ (Branco, 1907, p. 38)
Esse conceito parece consistir em uma atitude cautelosa em relação à astúcia
feminina na esteira de tantos outros preconceitos contra a mulher. Camilo sugere que a
precaução é pertinente afinal a aprendizagem de Tomásia possibilitou-lhe corresponder-se
com Costa Guimarães - o que deu pretexto ao marido a abandoná-la - e a cartear-se com
Nicolau, apaixonando-se por ele. A instrução afigura-se, assim, uma ameaça ao sistema e,
como tal, deve granjear a simpatia do novelista.
A educação intelectual da mulher é exibida como uma arma perigosa, capaz de
incitar à rebelião. Educar mulheres, restringindo-lhes às habilidade musicais e manuais é
conveniente, pois elas se tornam mais facilmente manipuláveis.
Cabe salientar que o tema associa-se a outro, que constitui uma contenda antiga do
novelista. O fato de em Portugal não se valorizar a instrução, o homem de espírito, mas
celebrizarem-se os mesquinhos e ignorantes com dinheiro e poder sempre incomodou
Camilo. Sua pena frequentemente era usada em prol de censurar e ridicularizar os
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responsáveis pela situação. A crítica abarca, portanto, até mesmo o governo que não
incentiva o ensino e menospreza os homens de letras que não servirem a seus propósitos.48
Com base nesse pressuposto, Camilo, subjacente a um primeiro plano no qual
veicula a visão dominante na época, defende a valorização das letras a fim de capacitar o
povo a ter meios para refletir sobre seu papel e, com isso, tornar-se hábil a desvincular-se
das ideias cristalizadas. Somente pelo abandono do saudosismo, o povo poderia reconstruir
o país.
― Eu não quero que ela seja bruta!‖ (Branco, 1907, p. 38) A exclamação de
Inocêncio gera, por um lado, a indignação de sua mãe e tias e, por outro, o súbito interesse
de Tomásia pelos estudos: ―Ora vejam agora como a serpente da vaidade mordeu de assalto
o amor próprio da menina.‖ (Branco, 1907, p. 38)
Retoma-se, assim, o tema recorrente em O sangue, a psicologia feminina. Em toda a
novela, há frequentes comentários sobre o comportamento da mulher. Muitas vezes em tom
chocarreiro, o narrador parece menosprezar o modo de ser feminino; no entanto, trata-se de
fina ironia por meio da qual se sugere a complexidade desse ser que atordoa o homem.
Com esse intuito, o novelista traça o perfil da mulher, cuja característica mais
marcante lhe parece ser a vaidade que deriva do exacerbado amor-próprio. Vários situações
remetem a esse traço da personalidade feminina: para ostentar sua beleza que Tomásia
deseja apresentar-se em teatros, bailes e jardins como mulher casada. Rosinha recusa-se a
chorar, quando desprezada por Inocêncio, para não rebaixar-se. Jacqueline livra-se das
cartas de Gervásio e Tomásia para não despertar sentimentos em Inocêncio que
desvaneçam sua imagem diante dele.
O desejo de ser cortejada e adorada é o que atrai Tomásia em Nicolau, reencontrar
o rapaz dá-lhe novo alento:
Levantou-se. Sentiu-se leve, nova, reflorescida ao calor da juventude, desejosa de
se mirar no espelho, a cuidar que via flores, a imaginar-se solteira, desligada de
juramentos que a maniatavam, a conhecer que a alma batia as asas para voar
longe, a gozar-se do prazer de estar sozinha, de cismar sozinha, de não ter
ninguém que soubesse traduzir-lhe nos olhos o doce alvoroço do coração.
(Branco, 1907, p. 159)
48 Sobre esta contenda escrevi um artigo ―Portugal sob a pena de Camilo‖ a ser publicado pela revista
Vínculo.
136
Também o amor-próprio incita Tomásia a pensar em aborto para não dar a prova
de sua desonra. Nicolau não a podia compreender, afinal:
não pudera ainda confrontar duas mulheres amadas, quatro, vinte mulheres
sublimes, infames, castas no vício, almas dissolutas em invólucro imaculado,
esmagando a força da consciência própria e acovardadas diante da maledicência
de uma vizinha; arrojando-se afrontadoras contra a sociedade e sucumbindo
imbeles e pueris à condenação de si mesmas; temendo a justiça do inferno nas
venialidades e desprezando o juízo da providência nos crimes enormes; rindo no
cairel do abismo e chorando se lhe empecem dissabores passageiros.[...] Então
quem era ela afinal? Mulher. (Branco, 1907, p. 180 e 181)
O excerto evidencia o amor-próprio ou a vaidade como fulcro da alma feminina,
Camilo não considera contraditório o desejo de Tomásia de livrar-se do filho para assegurar
sua honra, julga apenas característico do ser feminino, em particular, e do ser humano, em
geral, como se verifica pela descrição que faz de Nicolau.
―Urgia que os acadêmicos se anafassem e lustrassem a grenha como cozinheira em
domingo, para que as ideias de Goettingue, entrajadas de lantejoulas, se enamorassem de
rapazes tão de sua feição e peso.‖ (Branco, 1907, p. 155 e 156) Misto de ostentação e
desejo de afetar dignidade, o modo como os rapazes da época se arrumavam para os
namoros é apresentado de maneira a evidenciar-lhes o ridículo, e acentuar-lhes a vaidade.
O almanaque Goettingue, publicado de 1776 a 1812, definia a moda de então, trazia,
como muitos da época, gravuras com modelos de vestidos, genealogia de casas reais, além
de imagens de pontos turísticos, histórias para entretenimento e tabela de pesos e medidas.
A menção à peça é metonímia para a ideologia da época que gira em torno da importância
das aparências.
Como se verifica, o novelista parte da análise do gênero feminino para conquistar a
simpatia do público e poder, então, despender críticas ao comportamento do homem da
época. Assim, a beleza de Tomásia é comparada a de entidades mitológicas com fins
críticos: ―A estátua decerto tinha vida bastante para valer em tresdobro da Galateia e das
notórias Vênus de inocente mármore.‖ (Branco, 1907, p. 39) A menção à Galateia é
significativa, pois refere-se a uma mulher vítima do amor de um ciclope que lhe assassina o
amante, sem o qual ela não pode ser feliz. Em O sangue, também a protagonista será vítima
de uma ideologia que impossibilitará a realização de seus sonhos de mãe. O paralelo entre a
figura mitológica e a personagem reitera o retrato da família das Cangostas como torpe e
137
indigna, e de Tomásia, como um ser vitimizado pela vilania daquelas pessoas. Essa
caracterização reitera a aversão de Camilo por pessoas que afetam comportamentos
incoerentes com a moral que intimamente professam. A hipocrisia denota a cisão do ser,
subordinado às convenções sociais. O romântico é consciente de que o homem fragmentou-
se, perdeu a unidade primitiva e essa cisão o atormenta. Como todo romântico, Camilo
―tuvo sed de infinito y aspiro a uma posesión total, em que nada estuviera negado, em que
El mismo fuera capaz de no negarse a nada. (Béguin, 1993, p. 207) 49
Como vítima de constantes barreiras à liberdade de expressão, o ser feminino tem
que criar fantasias para preservar-se em uma sociedade patriarcal. Assim, seu caráter
sonhador e lírico é estimulado como meio de evasão dos problemas. Da mesma forma que o
romântico busca escapar de uma realidade opressora pela fantasia, a mulher lida com seus
problemas, criando sonhos que a aliviem do peso da vida diária, sem prazer, nem
realizações pessoais. Custódia, Florência, Sebastiana e Tomásia, esposa de Gervásio,
entregam-se à religião e ao misticismo, Tomásia, às promessas de amor de Nicolau.
Outro aspecto da psicologia feminina incitado pelos obstáculos oferecidos pelo
meio é a dissimulação. Tomásia, diante de problemas, pensa em fingir desmaios ou
inventar mentiras para sair de situações embaraçosas. Para livrar-se de suspeitas e
continuar encontrando-se furtivamente com Nicolau, a moça aparentemente cede às
exigências do padrinho, mas exerce, dissimuladamente, sua liberdade. Sua carta a
Inocêncio é tão resignada que leva Gervásio a exclamar: ―- Ó menina, isto não é da tua
cachimônia! Parece copiado do Feliz Independente que tua mãe me leu no Douro há mais
de vinte anos! Tu já leste a história do Feliz Independente?!‖ (Branco, 1907, p.171)
O texto de Padre Almeida é considerado aqui simulacro de emoções. O humor
amargo destrói possibilidades de escape para o grande problema do ser humano: o
descontrole emocional, o homem é descrito como um ser condenado a sofrer por não
conseguir controlar suas emoções.
A dissimulação não é suficiente, entretanto, para livrar uma pessoa sensível da
desforra da sociedade a quem ousa afrontar-lhe. Somente quem abandona seus sentimentos
em prol do lucro obtém o aval da sociedade.
49 O fragmento refere-se a Hölderlin, mas consideramos apropriado associá-lo à visão de Camilo.
138
Com essa ideia, Camilo encerra sua narrativa. O tom é pessimista e desiludido.
Antes de morrer, Gervásio aconselha o suposto neto a ter cuidado para não empobrecer,
como Pedro Sem. Mencionada pela segunda vez em O sangue, a narrativa é parte do
imaginário coletivo português e funciona como um alerta a que se evite a soberba, já que
Pedro Sem era rico comerciante e onzeneiro que empobrece em decorrência de um castigo
divino quando ousa afrontar Deus, dizendo que nem o criador seria capaz de torná-lo pobre.
Camilo inverte o significado da história de boa ensinança. Diferente do destino trágico, que
incentiva, por compaixão e identificação, a evitar-se a soberba e o desrespeito a Deus, a
novela apresenta a impunidade aos poderosos decorrente das prerrogativas do dinheiro.
Pedro Barros, diferente da personagem homônima, pode afrontar a moral, abandonar seus
pais à solidão e à loucura para preservar a herança dos Barros. Ele não é Pedro ―Sem‖, tem
um sobrenome que lhe assegure posição e privilégios.
Diante desse desfecho, o narrador-autor e Antônio Joaquim ponderam:
[...] a mim o que mais me convinha era saber dar à tua história um título.
- Eu chamava-lhe o SANGUE.
[...]
- o sangue, que tem ares de título filosófico e assim com presunções de tese.
[...]
- Mas, sem embargo do título, qual achas tu que seja a moralidade do romance?
- A moralidade é clara.
- A expiação de Tomásia, não é verdade?
- Homem, eu nisto de expiações não tenho ainda formado perfeito juízo. Conheço
muitas famílias que me autorizam a supor que a expiação é um castigo da tolice e
não do vício.
- Homem, essa! Vão lá escrever o absurdo num livro que tem de melhorar os
costumes e usos...
[...]
- Mas, - tornei eu farejando a moralidade do romance – não posso eu dizer que o
pai de Pedro de Barros era...?
- Era o que as núpcias demonstravam, como diz a lei romana. Era Inocêncio. O
sangue de Pedro vinha a ser o dinheiro de Inocêncio. Lá está o axioma que diz: O
dinheiro é sangue. Um filho só pode ser filho de quem é seu pai, quando não
herda oitenta contos de outro que foi casado com sua mãe. (Branco, 1907, p. 253-
254)
Trata-se de uma história que enquanto suscita o riso, destila o fel. O riso não impõe
nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade
empregam a linguagem do riso.‖ (Bakhtin, 2010, p.79). O humor desestabelece o temível e
abre a possibilidade de outras leituras de mundo. Muitos são os modos de ver a realidade,
uma órfã entrega-se a fantasias amorosas; mulheres simplórias são guiadas por superstições
e crendices; um empreendedor preserva seus bens às custas do sofrimento alheio. A ênfase
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é dada à história de um ―morto-vivo‖, um romântico sonhador que ao dedicar-se a cortejar
sua mulher fatal e é condenado por isso, pois na sociedade burguesa, não há lugar para o
despojamento.
IV.2 O teatro vertendo sangue português
Pela peça O sangue, Fernando Gomes recupera a novela homônima de Camilo
Castelo Branco, atualizando-a e enfatizando temas que apenas haviam sido sugeridos no
paradigma.
O diálogo da peça com o modelo apresenta vários pontos de interesse. Ressalta-se
aqui o valor documental do texto para a análise tanto da mentalidade do português dos
séculos XIX e XXI, quanto do ser humano universal diante das opções oferecidas pela vida.
O intrigante trabalho de Fernando Gomes convida à reflexão por meio do riso; a atmosfera
operática encanta, mas não encobre sério questionamento sobre as atitudes humanas.
De acordo com Fialho de Almeida, na obra de Camilo
[...] a natureza é imortal, e a sociedade um montão de paixões lascivas e
grosseiras. Toda a atividade tem por móvel único o apetite. O ser é
improgressivo, e a humanidade pior, de século para século. É ver como os bons
tem nos seus romances, constantemente um lugar de sacrifício. Os seus tipos
honestos quase todos claudicam, e o mesmo amor que ele diviniza, a quando
puro, contrariam-no, e só toma curso paixão sublime, nos exasperos do estado
irregular, ou seja a mancebia, ou seja o adultério. [...] Jamais em livros
portugueses, se viu alma assim feroz e vingativa, interpretando o espetáculo do
mundo e o frenesi das gentes, em sensações mais violentas, e em crises de
escárnio mais esmagadoras. (Almeida, 1941, p. 39-40)
Essa concepção parece ser o foco do interesse de Fernando Gomes em retomar a
narrativa do escritor oitocentista. Seu riso, ampliando o de Camilo, é perturbador,
desinquietante, capaz de afastar a resignação e o conformismo.
Esse [o riso] liberta não apenas da censura exterior, mas antes de mais nada do
grande censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado,
do poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos [...] Abrir os
olhos para o novo e o futuro [...] O riso revelou de maneira nova o mundo no seu
aspecto mais alegre e lúcido. (Bakhtin, 2010, p. 81)
Assim como o novelista português, o dramaturgo enfoca o homem português,
procurando nele o que há de universal. No entanto, seu texto não fecha os olhos para o que,
140
em nome do progresso, ocorre no país e no mundo. Nesse sentido, a caricatura lhe é arma
poderosa e necessária para compor uma comédia portuguesa.
Em O sangue, Fernando Gomes colhe o melhor da narrativa de Camilo, atualiza-a e
amplia-lhe o significado. A peça inicia-se estabelecendo um diálogo com O fantasma da
ópera, a qual substitui a menção que Camilo faz à peça Degolação dos Inocentes. Em
Camilo, o paradigma aborda como tema o episódio em que Herodes, visando a livrar-se da
ameaça de ser sucedido por um homem que, no momento, é apenas um recém-nascido da
casa de Davi, manda degolar todos os primogênitos de tenra idade. O assunto agrada o
público a julgar pelas vezes que o novelista cita a peça em vários de seus livros e pelo fato
de que na época era comum encenarem-se autos que narravam o nascimento de Cristo para
celebrar o Natal, incluindo o episódio da degolação dos primogênitos. O público estaria,
portanto, acostumado a assistir à peça, bem como apreciá-la com respeito religioso. Não é
de estranhar, portanto, que as personagens camilianas, uma família de cristãos novos,
estejam diante da peça pela oitava vez. A ironia está em colocar judeus, que tiveram que
abandonar seus princípios religiosos para assumirem-se cristãos, assistindo à tentativa de
Herodes de exterminar aquele que deu origem ao Cristianismo. Talvez seja essa uma forma
de Camilo retomar o tema do preconceito contra os judeus. Em um texto publicado em
jornal, o escritor, destemidamente, afrontou a prevenção contra semitas da seguinte
maneira:
O povo não os odiava [aos judeus] porque se abstinham de toucinho e
escarneciam as imagens. As imagens e o toucinho eram pretextos para refolgar
uma vingança retraída através de séculos e à proporção que se sentia humilhado
pela sua riqueza e inteligência. O castigo era urgente e indeclinável.
[...] Pela audácia gananciosa, quer comercial, quer política de alguns chamados
―judeus‖ que aí subsistem no reino, calculem como, ao cabo de cem anos, os seus
avoengos teriam – a nós, calaceiros e vadios – absorvido a autonomia intelectual
e a propriedade, se D. Manuel e o filho não lhes tolhessem o cérebro criador e o
braço laborioso! A esta hora, o nosso, tão nosso, tão querido Portugal, jardim da
Europa, e vasta cripta sagrada de tanta ossada de santos autênticos, seria o reino
de Israel que o imperador Juliano, o Apóstata, não pudera reorganizar. (Branco,
1993, p. 600 a 602)
Contudo, no texto em questão, a censura não se evidencia, é apenas sugerida pelo
episódio citado e pela frequente alusão à família como ―cristãos novos‖. Essas personagens
parecem incomodar Camilo, sobretudo, por terem-se dissipado de suas crenças e valores
primitivos em prol do lucro.
141
Fernando Gomes, embora não mencione a Degolação dos Inocentes, explora a visão
do português sobre os judeus, divulgando vários preconceitos pela boca de diferentes
personagens. A primeira referência ao tema é ambígua:
[Tomásia dá seu parecer sobre casar-se com Inocêncio a pedido do padrinho]
TOMASINHA: A madrinha bem sabe minha vontade... mas eu sou órfã... e
venho doutra classe social... não me corre nas veias sangue judeu... e sou pobre...
GERVÁSIO: Qual quê?! Fica sabendo que mesmo que ele não te queira, metade
do que eu tenho há-de ser teu; essa fortuna, já nem a justiça nem o Bersabu ta
tiram! Quanto ao nosso sangue, ainda não te corre nas veias... mas há-de correr!
[...](Gomes, p. 17)
O sangue judeu seria, na visão da personagem, transmissível, como se o intenso
convívio entre pessoas da raça fosse capaz de alterar a índole da pessoa, adequando-a aos
moldes morais e mesmo fisiológicos da raça.
A segunda menção ao ―sangue judeu‖ vem impregnada de ironia, já que Gervásio se
dirige a Deus, agradecido por ter seu dinheiro salvo:
GERVÁSIO: Eu vos agradeço meu Deus! Sou um homem feliz!... Não posso ser
mais feliz!... O meu filho vai dar o sagrado nó com a minha afilhada... que já era
minha filha adoptiva... e que muito em breve também vai passar a ser ... a minha
nora... a futura mãe dos meus futuros netos... herdeiros absolutos da fortuna que
os Barros acumularam ao longo dos anos! Eu sei que sou judeu, e vós sabeis que
eu sou e que me orgulho do meu sangue de judeu... mas não tenho vergonha de
me ajoelhar perante vós... porque agora... eu já posso morrer com a consciência
tranquila... já posso morrer e descansar em paz... porque o dinheiro dos Barros...
vai continuar na família dos Barros!!! (Gomes, p. 25)
Gervásio louva a Deus pelo casamento do filho com a afilhada, já que esta união
possibilitará que seu dinheiro permaneça intacto, inacessível a pessoas de outras famílias.
Nesse momento, dá ênfase a ter sangue judeu e declara poder morrer em paz, com a
―consciência tranquila‖ por ter preservado sua fortuna. A imagem do judeu ganancioso que
valoriza o lucro acima de tudo é, assim, caricaturizada e vilipendiada pelo riso.
A ridicularização associa-se ao destronamento e à renovação. O motivo de profusão
dos bens materiais sempre foi tema de folguedos populares e, por extensão, do carnaval.
Gomes promove, pelo humor, a carnavalização de um símbolo de poder.
Algumas cenas à frente, o tema volta a ser retratado; desta vez, é motivo de
insatisfação de Tomásia diante do caráter extremamente econômico do marido. A ama
aconselha-a a relegar o assunto, já que quando a família morrer, a moça terá todo o dinheiro
economizado para gastar como bem entender. Essa é uma forma de contrapor o apreço a
carpe diem às restrições impostas pela ambição exacerbada.
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Por fim, a alusão à raça é recuperada, com deboche, por Nicolau que ridiculariza a
família por não saber contar há quantos meses Tomásia está grávida: ―São mesmo judeus!
Só sabem fazer contas ao dinheiro!‖ (Gomes, p. 53)
O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o
completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do
fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do
didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano
único, do esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da
integridade inacabada da existência cotidiana. (Bakhtin, 2010, p. 105)
Embora o tom seja de desprezo, a personagem parece apresentar o despeito a que
Camilo se refere no texto transcrito, já que cita a habilidade contábil dos semitas.
Como se pode verificar, Gomes não retoma a peça de tema judaico; no entanto, não
abandona o assunto, revelando sua concepção acerca da matéria. O paradigma eleito pelo
dramaturgo é O fantasma da Ópera, a peça mais vista de todos os tempos, que narra a
história de Erik, um homem cuja identidade deve ser mascarada em decorrência de um
defeito físico. Em uma tentativa desesperada de relacionar-se com o mundo e de revelar seu
talento musical, o protagonista elege como protegida Christine, visando a torná-la uma diva
da ópera. Ele inicia seu intento, assassinando Carlotta, a protagonista do espetáculo. A
partir de então, Erik dá lições à Christine, sem que ela o veja, por isso é considerado por ela
o anjo da música. Apresentando-se, ela conquista o público e a atenção especial do
patrocinador do teatro, o visconde Raoul de Chagny. Erik, procurando afastar a moça de
Raoul, a rapta e a leva ao subterrâneo do teatro, onde ele vive. O lugar é frio e sombrio, ali
Christine retira a máscara de seu anjo e reconhece tratar-se de um homem deformado, o
fantasma que assola o teatro. O tutor não está preparado para afastar-se de sua protegida.
Para retê-la, ele força Christine a prometer voltar ao subterrâneo voluntariamente e não
amar outro homem a não ser ele. A moça entra em conflito pelo embate entre seu amor por
Raoul e a atração por Erik que representa o apoio à sua carreira. Contudo a face deformada
de seu tutor faz com que ela queira prescindir de sua carreira e casar-se com Raoul. Erik
descobre os planos da moça e a leva para seu mundo, Raoul os persegue e, consciente de
que seus planos não podem realizar-se, Erik apreende o rapaz e volta para Christine, beija-a
na testa e chora por não ter sido repudiado por ela. Diante das lágrimas da moça e de sua
compaixão por ele, o fantasma enternece-se, e ofereça a ela um anel e a liberdade para
casar-se com o namorado. Erik liberta o visconde e pede a Christine que lhe devolva o anel
143
quando souber que ele morreu. Anos depois, um corpo é encontrado no subterrâneo da
Ópera de Paris com um anel de ouro no dedo. Na adaptação para o palco o desfecho
modifica-se: Erik enlouquece e morre diante da impossibilidade de realizar seu amor.
A ênfase dada ao embate entre o grotesco e o sublime, o subterrâneo e o terreno, a
possibilidade de ascensão individual ou a entrega a uma vida pacata e abastada é fulcral no
romance de Leroux. Essa dualidade parece ter sido o foco de interesse de Fernando Gomes
pela peça. As escolhas que derivam em renúncias e geram resignações fazem parte do
cotidiano do homem; observador atento do comportamento humano, o dramaturgo vale-se
desse tema tão relevante. As personagens da peça O sangue também tem que fazer
escolhas e são essas opções que lhes determinam o caráter.
Já na primeira cena do trabalho de Gomes, Nicolau é associado a Erik. A acepção de
um fantasma é perfeita para a caracterização do namorado de Tomásia. Embora não se trate
de um espectro, ele é um vulto que assombra. Em Camilo, Nicolau suscita a curiosidade do
novelista por ―viver morto‖, isto porque depois de pensar ter matado o próprio filho, a
personagem alienar-se da vida real e viver em constante alucinação.
Como o monstro de Leroux, a personagem gomesiana não se insere no meio. O
motivo de ser repelente ao grupo não se relaciona à aparência física, mas ao fato de ser
filho natural e ter uma visão de mundo que lhe impele ao isolamento. Nicolau é filho de um
padre e de uma senhora simples. Para que não soubesse de sua origem ilegítima e
degenerada, foi criado como órfão; somente após a morte dos que o educaram vem a saber
que se tratavam de seus verdadeiros pais. Assim, torna-se um homem dramático, romântico,
adepto a conceber a vida como uma sucessão de fatalidades. Por isso, é um misantropo,
ridicularizado em seus excessos por seu único amigo.
Diferente do dandy camiliano, fidalgo de Caminha, a personagem de Fernando
Gomes não tem o estilo pomposo de galanteador romântico. Não escreve cartas a Tomásia,
conversa com ela em termos simples, mas conquista por ser semelhante a ela. Seu estilo
não é afetado, nem artificial; pelo contrário, ele retoma quadrinhas, bem ao gosto popular,
para revelar seus sentimentos. A linguagem popular desempenha um papel estilístico
importante. Exterior ao domínio do instituído como norma, ela apresenta caráter próprio
que contribui para criar a atmosfera de liberdade em que superior e inferior nivelam-se pelo
tom familiar.
144
Nesse sentido, a união do casal é mais verossímil que o da narrativa camiliana. Seria
difícil conceber que o fidalgo descrito pelo novelista permanecesse idealizando Tomásia
depois de deparar-se com as cartas insossas da moça que apenas parafraseavam com muita
dificuldade as suas. O mais coerente seria repetir-se o que ocorreu com o primeiro rapaz
com que ela se correspondeu, o qual zombou das cartas dela entre seus amigos.
O Nicolau gomesiano não é um intelectual; além disso, ele não tem que se
preocupar com nome ou posição social, seu dinheiro provém de um padre que tinha uma
amante. Ele tem, como Erik, uma mácula a esconder da sociedade. A carência do amor
paterno torná-lo-ia mais suscetível a entregar-se às paixões idealizadas. A escolha de
Nicolau por Tomásia parece óbvia, trata-se de um rapaz que se encanta pela beleza sem par
de uma jovem moça de olhos tristes. Quanto ao súbito interesse da moça pelo rapaz,
explica-se pela carência dela em relação a um namorado que lhe aprecie como é, sem
ridicularizá-la, nem persegui-la com ciúmes exagerados. O empecilho de ser ela casada é
facilmente contornável, afinal, o marido a abandona. Com base nessas alterações, algumas
cenas da novela são suprimidas na peça. Não faria sentido, por exemplo, recuperar o baile
que Nicolau oferece à sociedade portuense para desafrontar Tomásia das injúrias que lhes
atribuíram quando esta abandonou o marido. Assim, nem a sociedade incrimina Tomásia,
nem o novo marido lhe oferece um baile como pretexto para enfatizar a hipocrisia social.
O interesse de Gomes não parece estar em castigar a hipocrisia social, mas estudar o
comportamento humano em sociedade. Daí a seleção de O fantasma da ópera para um
diálogo intertextual. Por outro lado, é possível, vislumbrar ainda outro objetivo menos
relevante, mas pertinente, para a seleção do livro de Leroux, trata-se de apontar uma crítica
sutil à admiração do português pelo elemento estrangeiro. Lotam-se as grandes casas de
teatro nas quais se apresentam peças importadas, enquanto o texto nacional limita-se a
espaços menores e público restrito. Assim que Nicolau assiste aO fantasma da ópera umas
quatro ou cinco vezes, ―privilégio de quem tem dinheiro para correr mundo‖. (Gomes, p. 1)
Também Camilo ocupou-se do tema pela menção a Manuel Mendes Enxúndia‖. Corrobora
nossa hipótese o comentário apresentado no site do Teatro Esfera:
Este Espectáculo foi feito sem apoio do Ministério da Cultura e contando com o
trabalho gratuito de todos os criadores e colegas.
Temos esperança que esta seja a excepção que confirma a regra, para que o futuro
do Teatro em Portugal sofra um processo de dignificação, que passa pela criação
(com meios) de infra-estruturas, pelo aparecimento de novos projectos (estáveis e
com continuidade) e também pela elaboração de um estatuto profissional para
145
todos os que trabalham nesta nobre arte de representar. (http://www.teatroesfera.com/sangue/sangue.htm)
Trata-se, portanto, de uma problematização do teatro, como forma de enfatizar o que
é nacional. O jogo entre temas e tempos é frequente na obra gomesiana. A estrutura de O
sangue exemplifica seus procedimentos. No início do primeiro ato, o amor de Nicolau por
Tomásia é apresentado, mas somente no segundo ato a cena terá continuidade e os dois irão
encontrar-se. As demais cenas do primeiro ato sintetizam, em flash back, a vida de Tomásia
desde a troca de cartas com Guimarães até a viagem de seu marido Inocêncio ao Pará em
busca de distanciar-se da esposa.
A peça enfoca, na primeira parte, várias personagens femininas como seres
imbuídos de uma sagacidade e astúcia capazes de captar as incongruências de seu meio,
bem como simular comportamentos que agradem o homem, já que este é quem comanda a
sociedade. A Tomásia gomesiana amplia a índole dissimulada da personagem de Camilo
quando declara que Guimarães sugere casamento em uma carta apenas galanteadora,
enganando a própria ama, uma beata parva que repete orações e crendices servilmente.
Também o padrinho é iludido pelos ardis de Tomásia. Ao ser flagrada escrevendo
uma carta a Guimarães, ela afirma compor o texto para Inocêncio. Não só o fingimento da
personagem é ampliado, como também se acrescentam características a ela. Sua lua-de-mel
frustra-lhe não apenas pelo ciúme exagerado do esposo, mas, antes de tudo, por não ter
saído de Portugal. Tomásia idealizara uma viagem a outros países da Europa e questiona-se
de que vale ter dinheiro se não pode usufruir das vantagens que este pode proporcionar.
Declara ainda sentir-se envergonhada de dizer que passou a lua-de-mel em Caminha. Bem
diferente da moça, a personagem camiliana é submissa, não tem sonhos, nem decepções
quanto à vida pacata oferecida pelo marido.
A impetuosidade de Tomásia amplia-se ao afrontar o marido, patenteando que ―uma
mulher gosta de ser admirada‖ (Gomes, p. 30) e que o marido é ridículo em querer impedir
que os homens olhem para ela, sugere-lhe, em tom de zombaria, que os cegue ou
estabeleça uma lei que os proíba de admira-lhe. O marido submete-se a ela, jurando-lhe
amor, ela, entretanto, confidencia à ama que se arrepende de ter-se casado.
Outras personagens femininas intrincadas são Sebastiana e Sarita Star. Aquela, no
paradigma, não passa de uma beata, repleta de terrores e tolices. Na peça, entretanto, é
146
mulher atenta aos comportamentos dos que a rodeiam e alerta às suas impropriedades e
incongruências. Por isso, desconfia da súbita felicidade de Tomásia no momento em que
esta se corresponde com Guimarães; tem falas ambivalentes e cômicas como quando
declara que S. Gonçalo de Amarante é mais prestativo às velhas que lhe pedem algo,
agarrando-lhe o bastão; ou ao declarar que ficou de ―Freitas‖ por seu defunto já que
―freitar‖ significa ―aproveitar a terra para dar frutos‖. Alerta, nota que Inocêncio se
comporta diferente na época em que este tem namoros com meninas da vizinhança e aprova
a decisão do cunhado de afastar o moço da redondeza quando se trata de fazê-lo ponderar
acerca do casamento com Tomásia.
É dona de comentários sarcásticos como ao responder à irmã, aflita pelo filho fora
de casa, que mal fora se não acontecesse nada a Inocêncio e Tomásia em sua lua-de-mel; ou
ao zombar de Florência, dizendo-lhe que apanhar o buquê da noiva é fácil, difícil é agarrar
um homem. Por isso é considerada pela irmã mais parecida com um homem do que com
uma mulher. Esse comentário não a prostra, mas incentiva-a a deixar claro que a irmã não
tem mais que a saia para mostrar sua feminilidade e que sabe ser difamada pelas irmãs
quando ausente.
Ridicularizando os repetidos chiliques de sua irmã Tomásia, dessacraliza a mulher
frágil. Por fim, a gravidez de Tomásia não lhe passa despercebida.
Além de astuta, Sebastiana é alérgica aos mortos e espirra quando se aproxima de
um cadáver. Esse dom tem efeito cômico, e sugere que a vivacidade de uma mulher alerta é
incompatível com a inação e indiferença de um morto. O humor decorre da exaltação da
deformidade, do grotesco e dá leveza às imagens mais aterrorizantes, tornando-as
compreensíveis e familiares.
Seu papel dilata-se e parece tornar-se alter ego do dramaturgo, quando se
consideram falas polissêmicas e seus comentários metateatrais que evidenciam a auto-
ironia do autor. Assim, ela sugere que as personagens em determinada cena, apenas
―debitam texto‖; em outras, que há personagens repetitivas. Há momento em que alerta
para o fato de uma personagem não ter percebido que uma cena já passou há muito tempo e
quem a retoma está desatualizado com o andar da peça. Essa auto-análise bem-humorada é
recorrente nos textos gomesianos e parece sugerir o caráter atento do dramaturgo ao papel
do teatro.
147
Outra personagem feminina destacada é Sarita Star, mulher que manipula dois
homens ao mesmo tempo. Inocêncio de cujos recursos se vale para sustentar-se e atrair um
amante a quem jura amor e sujeita a seus caprichos.
O segundo ato retoma O fantasma da ópera. Uma paráfrase resumitiva faz-se
necessária para a contextualização dos dados a serem interpretados. No momento em que o
Fantasma derruba o candelabro sobre o público. É diante do grito de susto da esposa, que
Gervásio derruba a coxa de carneiro que ia comer. Aproveitando a oportunidade, Nicolau
aproxima-se da família para restituir ao patriarca o petisco. Sebastiana reprova a cena que
poderia ter sido mais impressionante se tivesse matado mais que dois figurantes. O grotesco
é motivo de humor. A família sai para ir ao banheiro e restam apenas Nicolau e Tomásia no
camarote. A primeira impressão que revelam ter um do outro é a semelhança dos olhos
tristes. Em seguida, o rapaz declara seu amor à moça. Tomásia rejeita-o, pedindo-lhe
silêncio e declarando já ter sofrido muito. Nicolau aproveita para falar dos próprios
sofrimentos como filho natural.
A confidência de Nicolau parece equivaler ao momento em que Erik se desmascara
diante de Christine e, em lágrimas, beija-lhe a testa. Do mesmo modo com que a
personagem de Leroux simpatiza com o sofrimento do moço e passa a ver nele um homem
sensível e não um monstro assustador, Tomásia, à frente do despojamento de Nicolau,
comove-se e percebe ter encontrado um par. Ele não é como Inocêncio, um homem de
classe superior, nem tem sangue diferente do dela. Ela não precisa adequar-se a ele; seu
sangue não precisa passar por uma metamorfose para moldar-se ao dele. São somente
homem e mulher, livres de toda carga que a sociedade impõe aos que precisam preservar
determinada reputação na opinião pública.
A família retorna e Tomásia, com lágrimas nos olhos, afirma desejar ver o final do
espetáculo ―Quem aguentou até aqui... aguenta até o fim... seja ele qual for.‖ (Gomes, p.
43). A rubrica anuncia a paixão do casal e a ansiedade do público por verem-nos
intimamente juntos.
Importa ressaltar que embora as rubricas, nos textos de Gomes, costumam ser muito
reduzidas, já que ele é encenador de suas peças, em O sangue, há comentários mais
frequentes, em tom que recupera técnicas utilizadas por Camilo. Segue exemplo do
procedimento:
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E pronto! Tomasinha e Nicolau já estão completamente perdidos um pelo outro!
E o público já só anseia vê-los...
na cena de sexo!
Vamos agora mudar de cena e surpreender o público com... CABARET!!!
Inocêncio está no quarto de hotel. Olha para o relógio. Está nervoso porque
aguarda a chegada duma artista de cabaret. O público não sabe... Ouve-se a
campainha da porta. Ele levanta-se para se mirar rapidamente num espelho.
Poderá por um spray na boca, não vá estar com mau hálito! Vai finalmente para
abrir a porta, mas ela entra, plena de salero! Vê-se a légua que é espanhola.
Traz uma mala, de onde irá tirar os “adereços” necessários ao “número” que
vai fazer em privado. Na mala poderá ou não ler-se “Sarita Star” – “Spanish
Private Dancer”. Fala em espanhol, Inocêncio fala em português, tentando
fazer-se entender pela beldade do país vizinho. (Gomes, p. 43)
A introdução de personagens em tom de conversa, por meio de comentários como
―não vá estar com mau hálito‖ parece recuperar o expediente camiliano de introduzir o
leitor em suas narrativas e conversar sobre o próprio processo narrativo em tom bem-
humorado. A problematização do próprio fazer narrativo / dramático sugere o intuito de
romper com papéis pré-estabelecidos. Trata-se de um convite a olhar o texto, como reflexo
da realidade. Estabelece-se pelo humor e pelo diálogo um incentivo à recriação do que era
instituído e engessado. Gomes revela, assim, estar atento às grandes qualidades do texto de
Camilo e não querer ficar aquém dele.
A cena enunciada pela rubrica acima apresenta Inocêncio jurando amor e fidelidade
e uma dançarina profissional. Isso ocorre, como se vai saber por Tomásia, na cena
posterior, dois meses depois da partida do rapaz. Em Gomes, Inocêncio não vai à França e
Inglaterra, encontra Sarita no Brasil e fica no país enamorado dela, apenas anuncia ao pai a
pretensão de visitar o México.
Quando Tomásia deixa os padrinhos, prometendo-lhes escrever uma carta ao marido
na tentativa de sensibilizar-lhe, uma rubrica enuncia a próxima cena com humor e
problematizando o fazer teatral:
Tomasinha entra no seu quarto. O público só percebe que lá está também
Nicolau, no momento em que ele responde (Se fosse uma comédia de boulevard,
ele surgiria do roupeiro, da varanda ou de baixo da cama; todo nu, é claro e
segurando na mão a roupa com que taparia ou não as ―partes baixas‖, Neste
―melodrama‖... ainda não sei de onde ele aparecerá! A ideia do ―todo nu‖
mantém-se...) Tomasinha entra apreensiva. Estava muito bem, mas aquela
chamada do Padrinho por causa da carta caiu-lhe muito mal e veio fazer-lhe
lembrar que é uma grandessíssima pecadora! Com este espírito de remorso
primeira do diálogo, após o que se entregam às mais lindas fantasias de amor!
(Gomes, p. 46)
149
Como se verifica, o tom de ironia e deboche apresenta-se também em comentários
digressivos ao longo das rubricas, Gomes incorpora procedimentos camilianos com
maestria. Neste tom, paralelamente ao romance de Tomásia e Nicolau, é retratado o caso
entre Inocêncio e Sarita Star. No paradigma, o filho dos Barros trava relacionamento com
uma francesa Jacqueline Beaulieu de Rastingnac; para ele, vítima de um sedutor que a
raptara no chateau de seus pais, fidalgos picardos de primeira raça, mas, na verdade, antiga
costureira e comensal de estudantes no Quartier Latin. Gomes transforma a personagem em
uma portuguesa que vive no Brasil e se faz passar por espanhola. Em rubrica, comenta:
―[...] Sarita Star (que afinal é falsa espanhola! Ou seja, é uma portuguesa que vive de
expedientes no Brasil... e um dos expedientes é fazer-se passar por espanhola! Camilo havia
de gostar desta ideia!). (Gomes, p. 48) O diálogo com o leitor é evidente, além disso,
reiteram-se as digressões em torno da construção do texto. Gomes cria uma literatura
autocrítica nos moldes camilianos.
Sarita Star, cujo nome parece anagrama de seu sobrenome, é o estereótipo da garota
de programa. Ela tem um amante mais novo e entrega-se a outros homens para sustentá-lo;
no entanto, é uma mulher experiente e declara: ―os homens acreditam sempre naquilo que
eu quero que eles acreditem!‖ (Gomes, p. 49) Uma rubrica sugere o descaso de José, o
amante, por Sarita, evidenciando que seu interesse por ela é somente pecuniário. No
entanto, ele conhece o poder desta mulher. Quando ela diz dominar o espanhol, ele
completa que ela domina os homens e é ―uma mulher...fatal!‖ (Gomes, p. 49)
Fatalidade remete ao universo ultrarromântico das novelas camilianas. Nelas, o
Destino é uma força intransponível que rege a vida humana de forma impiedosa. Aqui,
Gomes apenas sugere a ideia, mas no relacionamento entre Nicolau e Tomásia, ela torna-se
fundamental, sobretudo, para que se analise a psicologia das personagens.
Tomásia entrega-se ao rapaz para saborear o gosto de uma aventura, correr riscos,
sentir desejos, criar fantasias que nunca concebera. Nicolau, por outro lado, concebe
Tomásia como sua doce fatalidade.
TOMASINHA: Agora... eu só quero pensar que está tudo bem... porque tu estás
aqui... e eu amo-te muito... És o meu Fantasma...
NICOLAU: E tu a minha Diva... vou ter de raptar-te...
TOMASINHA: Sim... leva-me para teu refúgio...
NICOLAU: Podes ter a certeza que te levo...
TOMASINHA: Não penso noutra coisa...
NICOLAU: Nãos tens medo de estar comigo?!...
150
TOMASINHA: Sim... mas é este medo que me faz desejar-te ainda mais!...
NICOLAU: És a minha doce fatalidade!
TOMASINHA: E tu, a minha doce fantasia... (GOMES, p. 48)
O relacionamento entre Tomásia e Nicolau parece recuperar a concepção lírica
trovadoresca, o amante trata a mulher como um bem superior (―diva‖), sua ―doce
fatalidade‖. Essa visão revela como Fernando Gomes conhece o inconsciente coletivo
português e se vale desse saber para articular temas de interesse comum, captar a atenção
do público e a partir daí expor sua visão crítica acerca do homem e suas relações.
Tomásia revela-se mais astuta e pragmática que o namorado. Enquanto ele sonha
com a fuga e com uma vida a dois, sensata e tranquila, ela aproveita os prazeres do
momento presente. Quando a família Barros descobre sua gravidez, ela faz com que todos
pensem que a criança é de Inocêncio, mas teme por sua reputação com a iminência do
retorno do marido. No entanto, recusa-se a fugir, conta com a possibilidade de o marido
abandoná-la para que possa permanecer à sombra de uma família que lhe oferece conforto e
tranquilidade. Assim, convence o amante a esperar o nascimento do bebê para que depois
fujam.
É Nicolau quem apressa a fuga por não querer que Inocêncio torne a ver a mulher.
Seu amor possessivo não é capaz de conceber que sua diva seja sequer vista pelo primeiro
marido. Esse receio e sua impaciência fazem com que partam antes de o bebê retornar da
ama de leite, o que determina o destino do casal.
Em Camilo, Tomásia sai de casa enlouquecida porque a criança está fora com a ama
e vai pedir a Nicolau que pegue o filho para que fujam. O rapaz, no ímpeto de salvá-la de
um marido vingativo, leva-a para Caminha, prometendo-lhe recuperar o bebê assim que
possível.
O caráter prático e provedor do Nicolau camiliano é substituído pela índole
possessiva e passional em Gomes. A essa personagem importa apenas ficar aos pés de sua
musa, para o quê não pondera, nem reflete. No paradigma, o caso de amor ocorre em um
quarto alugado na casa de um marceneiro subornado pelo fidalgo de Caminha; na peça, eles
permanecem sob o teto de Gervásio. A eleição do local revela quem tem domínio sobre a
relação.
151
Tomásia trata o amante com familiaridade e certa altivez desde o primeiro encontro
quando ri do embaraço do rapaz e faz-lhe perguntas para as quais não tem resposta. Ela é
sedutora e só se deixa conduzir à fuga para proteger a própria reputação.
Nicolau, por outro lado, abandona-se a ela, deixa uma vida farta e sossegada para
viver sua fatalidade. Essa atitude resignada remete à visão de mundo do português, que
canta o fado melancólico e magoado, tão saudoso dos tempos de glória que não tem olhos
para o presente. O caráter sonhador impede o senso crítico e distancia da realidade,
lançando a utopias. A personagem representa, assim, o homem tradicional, regido por
crenças arraigadas que lhe impede de reagir na adversidade e assumir seu próprio destino.
A ambiguidade sugerida pelo diálogo com O fantasma da ópera entre o subterrâneo
ou o terreno; a reputação ou o amor é recuperada no final da peça. No subterrâneo,
permanecem os fantasmas, as dores, as frustrações; no plano terreno, estratégias para lidar
com malogros. Quem opta pelo subterrâneo, sucumbe no mundo terreno. Nicolau, que se
entrega a um fado impiedoso, é incapaz de ter senso prático e crítico diante da realidade.
Ele sucumbe ao perceber seu fracasso no intento de satisfazer sua musa a encontrar o filho.
A história do casal é retomada dezoito anos depois da fuga. Nicolau agora é um
homem alienado da realidade, sempre a procurar pelo filho, uma criança que teria saído a
passeio e demora a retornar. As saudades e a monotonia de sua voz sempre a repetir que o
filho ―saiu de casa e não voltou‖ (Gomes, p. 68 e 70) lembra os cantares de amigo, em que
a jovem saudosa se lamenta da ausência e demora do namorado. Novamente dados do
inconsciente coletivo são retomados de maneira sutil e ardilosa. O lamento entorpece e
embota a percepção, torna o homem inepto e indolente, recupera a melancolia saudosa dos
fados portugueses.
Nicolau pretende atrair Pedro pela voz do sangue a que ―um filho nunca pode ficar
indiferente‖. (Gomes, p. 68). Concomitante a essa cena, enfoca-se Gervásio de volta da
Inglaterra com o neto, narrando-lhe sua história. Nos dizeres do avô, Tomásia trocara o
filho por um homem na noite em que o marido faleceu. Antes de morrer, o patriarca da
família Barros declara que Pedro é herdeiro universal de sua fortuna e cabe a ele vingar o
pai: ―se algum dia encontrares com esse homem... – chama-se Nicolau de Almeida... –
podes fazer o que te ditar a voz do sangue... toda a minha fortuna é tua... e a vingança
também!‖. (Gomes, p. 69)
152
Sabendo do retorno do filho, Tomásia vai até a casa dos padrinhos, na esperança de
trazer a lucidez ao espírito do marido. Lá encontra Pedro e explica-lhe que Nicolau de
Almeida é seu pai. O rapaz fala inglês e compreende o português com dificuldade. O
acréscimo é relevante, Tomásia e Pedro falam línguas diferentes, o que pode ser uma
metáfora para ideologias desiguais. Antes que a mãe termine de dizer que Nicolau de
Almeida é o verdadeiro pai do rapaz, Pedro saca de uma arma e mata-o. A peça encerra-se
pela frase de Nicolau: ―Não tens que me pedir perdão!... Desde aquele dia em que te vi...
em Caminha... eu sabia que tu havias de ser a minha doce fatalidade!‖ (Gomes, p.71)
A ideia de um destino inexorável que predispõe os acontecimentos poderia ser
complementada pela expressão ―voz do sangue‖, força também implacável que levaria um
filho a reconhecer seu pai em qualquer que fosse a circunstância. No entanto, Pedro rompe
com essa teoria e faz seu destino como lhe convém, age de acordo com sua própria vontade,
seja levado pelo desejo de vingança, seja orientado pela ambição e ganância.
Em Camilo, o desfecho tem caráter sentimental. Lopo, segundo filho do casal,
lamenta-se da insensibilidade do irmão e o convida a abandonar aquela família que poderia
ser sua. Pedro é retratado como um ser somente ambicioso, não há nenhuma ambiguidade
em sua atitude de abandonar o pai à loucura em prol do dinheiro dos Barros. Em Gomes,
não é possível estabelecer com exatidão o motivo de Pedro matar Nicolau. Contudo, essa
abertura parece indicar que o objetivo da cena não é social. O parricídio representa a
ousadia do filho em seguir sua própria vontade, eliminando a autoridade paterna. Trata-se
do novo eliminando o velho, de um homem prático, educado na Inglaterra, sob novos
conceitos e valores, eliminando o homem tradicional, filho de um padre, orientado a seguir
crenças e regras ultrapassadas, submetendo-se mansamente a um Fado impiedoso.
O destino de Nicolau é trágico e intransponível porque ele se entrega à fatalidade
sem rebelar-se. Ele crê em um Fado, resigna-se, sucumbe e perece. Essa ideologia milenar
condiz com a mentalidade dos que o criaram, mas é contrariada pela mundividência de um
jovem educado na Inglaterra no fim do século XIX. Pedro, matando o pai, pode
individualizar-se e receber a herança que escolher. Ele não precisa submeter-se ao fatalismo
nem às ideias preconcebidas, pode criar novos ideais. O legado dos Barros parece adquirir
novos significados e associar-se tanto ao estudo no exterior e quanto à convivência com um
novo modo de conceber a vida.
153
Fernando Gomes acrescenta, assim, à narrativa de Camilo novos significados,
atribuindo-lhe conotação psicológica. A ganância, no paradigma, é motivo de censura; no
intertexto, pode relacionar-se à reforma, à revolução nos ideais mesquinhos que devem ser
alterados em prol do bem comum. Pedro pode não ser apenas um homem ambicioso, mas
símbolo de uma afronta a ideias preconcebidas.
Nas mãos do dramaturgo, o texto camiliano ganha foros de tratado sobre o
comportamento humano, universalizando-se, e o sangue verte sobre o palco português
154
VIA CRUCIS
V.1 Sob a cruz social
Muito antes de Drummond proclamar: ―Meu Deus, por que me abandonaste / se
sabias que eu não era Deus / se sabias que eu era fraco‖, Camilo já revelava a vida como
uma via crucis protagonizada por homens débeis. Conhecedor da alma humana, o novelista
sabe que, insignificante diante de seus desejos, assolado por injustiças e desconcertos, o
homem encontra-se desamparado. O novelista compreende o amor sensual, a paixão, o
amor filial, a fraternidade, o desejo de vingança como forças que tornam o homem mero
títere de seus impulsos incontroláveis. Percebe, sobretudo, a dificuldade da entrega à
compaixão, quando a culpa e a autocondenação dominam o ser.
Em Coisas Espantosas, o enfoque é dado ao sofrimento e à autocondenação. Uma
paráfrase explicativa faz-se necessária à interpretação do texto. A narrativa inicia-se com a
morte de Inácio Botelho ―solitário, abandonado, sem amor, sem família, sem lágrimas, sem
mão amiga que lhe enxugasse da fronte o derradeiro suor.‖ (Branco, 1984, p. 568). Esse
final trágico parece consistir numa (auto?) punição às escolhas feitas em vida pela
personagem. Quando jovem, Inácio arrebatara de sua família Balbina, a qual, por amor, se
resigna a tornar-se sua amante e, com o passar do tempo, apenas amiga. A visão amarga a
respeito da união de um casal, que, nas narrativas camilianas sempre desembocam no tédio
e aborrecimento, reitera-se e é acrescido, como de outras vezes, do tema do filho natural.
Balbina, no final da vida, implora que o amante perfilhe seu filho. Depois de ela
morrer, Botelho não só esquece o perfilhamento como também seduz outra vítima de seus
desejos. Encantado com a beleza da filha de sua engomadeira, contrata a moça para mestre
de Augusto, a fim de seduzi-la e não contrair com ela nenhum compromisso pessoal. Para
amenizar o peso de sua culpa, submete os criados às ordens de Carlota e paga-lhe bem.
A jovem cuida de Augusto, mas sacrifica não só a criança como a si mesma para
atender aos desejos do ―primeiro homem que a encarou significativamente‖ (Branco, 1984,
p. 554). Vítima de uma grande carência afetiva, a moça deixa-se seduzir e dominar por
Manuel de Castro, moço sem profissão, vadio, viciado em jogo, infame, fraco e quase um
homicida.
155
Somente no leito de morte, Inácio escreve um documento reconhecendo Augusto
como filho, mas como não tem tempo de registrar sua intenção, entrega ao menino o papel,
pedindo-lhe que o dê a determinados amigos. A criança dorme e Carlota rouba o papel com
o testamento para dar o dinheiro a seu amante.
Contratando com a indignidade dessas personagens, Gregório, fiel criado da casa,
tenta impedir que Augusto seja lesado em seu patrimônio e é ferido de morte por Manuel.
Como se pode verificar, as quinze primeiras páginas da novela trazem o tom
exacerbadamente sentimental e trágico do melodrama. As desgraças oriundas da entrega às
paixões dão azo a discursos melancólicos e a atitudes impetuosas, extraordinárias e
inverossímeis. As confissões e revelações surpreendentes impedidas por golpes ou
problemas na garganta. No entanto, o encaminhamento dado ao tema amoroso destoa do
modo como o melodrama o conduz. Não se trata do embate entre heróis e vilões, ou da
virtude e do vício, mas os opostos conjugam-se, fundem-se a ponto de perderem seu caráter
original. Isso porque o intuito do novelista é estudar o comportamento humano e não
ocultar conflitos sociais para alienar o espectador e levá-lo a crer na força redentora da
virtude.
O leitor camiliano atento não terá deixado de notar que o sobrenome Botelho é
também o do escritor. A biografia de Camilo torna-se recorrentemente motivo de sua
ficção, assim ele preserva acontecimentos efêmeros, medita sobre eles, vingando-se do que
não poderia tirar desforra na vida real. O duplo se refaz, o espelho realidade / ficção volta a
ser um meio de compreender a si e ao ser humano. Botelho é, então, retratado como um
homem vil e desprezível. Na mesma linha autobiográfica, páginas adiante, uma senhora
piedosa e maternal receberá o nome de Rosa, como (homenagem a?) a mãe do escritor.
Cabe enfatizar, no entanto, que a menção biográfica é mais um viés da ampla visão de
Camilo acerca do ser humano. Ele revela-se, assim, crítico sagaz não apenas do outro, mas
de si mesmo.
Também como Camilo, o órfão Augusto é entregue aos cuidados de uma tia, esta,
entretanto, acolhe a herança de seu irmão, mas rejeita o menino por ser filho de uma mulher
sem nome de prestígio. O escritor, tendo vivido com uma tia, após a morte do pai, teve
como tutor o amante dessa mulher, mas deixa-lhes para ir morar com sua própria irmã
quando esta se casa. A vida adquire novas nuances: a dor sentida, a dor fingida e a dor lida
156
giram ―a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que se chama coração.‖50
O escritor re-
inventa seu sofrimento pela literatura, estudando sua dor e refletindo sobre os interesses que
movem o ser humano.
O destino de Carlota é cruel. Enlouquecida pela culpa, ela é internada em uma
instituição de onde sai para mendigar com sua mãe e, em seguida, sozinha, pois Carolina
morre pouco tempo depois. Não se constrói, então, uma personagem livre de defeitos. A
moça inicia sua trajetória como pobre jovem, destituída de privilégios e seduzida por um
homem rico. Torna-se maliciosa, consegue um amante e engana patrão e empregados para
sustentar os vícios deste homem. Vítima de sua própria carência, é conivente com este
homem que a leva a roubar e a assistir ao suposto assassinato de Gregório. Arrependida,
torna-se dócil e religiosa: digna de piedade.
Antípoda de Castro, o galego de baixa extração Gregório de Redondela é descrito
como fiel empregado de Inácio, cujo ímpeto de dedicação é abrandado pela paixão que
nutre à cozinheira da casa. Em busca de angariar os recursos prometidos por Carlota para
casar-se com Joana, o pobre homem resigna-se a levar e trazer cartas da mestra de Augusto
a Manuel. Mais ainda, concede não contar a Botelho ter flagrado o casal à noite no pátio da
casa. Sua dignidade é ainda mais aviltada quando aceita dinheiro de Carlota para calar-se,
já que o vínculo com a cozinheira se rompe no momento em que ela se casa com outro
homem e o abandona. O rebaixamento da personagem é censurado e justificado pelo
narrador:
Esta terceira queda de Gregório é menos desculpável que as outras: atendendo,
porém, a que o coração humano, despojado das galas do amor, se veste de preto,
repele o doce alimento das sensações generosas, e ama nutrir-se de vícios e
indignidades, tem desculpa o coração de Gregório como o de tantos Manfredos,
que o leitor festeja e imita, porque não nasceram em Santiago de Compostela.
Sempre injustos e inconsequentes, olhamos com certa seriedade e acatamento
para o homem bem nascido e educado, que sofreu reveses na luta do coração com
a sociedade, ou tragou o fel da perfídia, e protestou vingar-se da espécie humana
[...]
Isto compreendemos e admiramos.
Que Gregório, porém, desiludido e cético, misantropo, arado de fogo infernal na
alma, estanque de lágrimas, estéril de aspirações ao ideal em que devaneava,
outrora, sentado no barril; que Gregório, enfim, descrido de quimeras, golpeado o
coração de afrontosas dores, se aturda no tráfego delicioso duma taverna, seu
segundo, e já agora único sonho de ouro realizável; disso, que tão triste é, rimos
nós, Balzacs pífios, que não sabemos trabalhar com o escalpelo observador no
coração do nosso irmão da Galiza, mais nosso irmão por sangue, que nenhum
50 Trecho de ―Autopsicografia‖ de Fernando Pessoa
157
outro desses que andamos sempre a pintar nos nossos romances, remendados por
capa de pedinte. (Branco, 1984, p. 560)
A comparação com ―Manfredos‖ remete ao rei da Sicília que promulgou o combate
já travado por seu pai contra o papa. Ele foi, por isso, colocado sob interdição papal. Afinal
os ―Manfredos‖ não nasceram em ―Santiago de Compostela‖, isto é, não são galegos. A
ironia torna-se fina e aguda. Os galegos eram desdenhados pelos portugueses que, no
entanto, consideravam a cidade de Santiago santa por abrigar o manto de Sant‘Iago,
apóstolo de Jesus. A hipocrisia é flagrada e censurada. No Romantismo, o ―humor
destrutivo não se dirige contra fenômenos negativos isolados da realidade, mas contra toda
a realidade, contra o mundo perfeito e acabado. O perfeito é aniquilado como tal pelo
humor‖ (Bakhtin, 2010, p. 37)
A crítica direciona-se para o ponto fundamental do comportamento social rechaçado
por Camilo: a valorização da reputação em detrimento da essência do homem. Nesse
sentido, considera seus leitores ―Balzacs pífios‖, já que na obra do autor francês as roupas,
a aparência, as atitudes, um tipo de vida, uma profissão, o nome revelam o caráter, definem
as personagens, condicionadas pelo meio.
O novelista português sugere o desprezo pela valorização dos endinheirados em
detrimento dos pobres. Segue Gregório, sublimando sua dor pelo trabalho, mas, como sua
taverna dá prejuízos, o galego vai confessar-se em busca de salvação para sua alma e seus
negócios. O confessor impõe-lhe que relate tudo ao patrão, pois na visão do frade, Carlota
era um meio que o Demônio usara para perder a alma de Inácio Botelho. Somente
expulsando a amante, o fidalgo se salvaria. Gregório propõe-se a obedecer ao ―santo
conselho‖, mas encontra seu amo no leito, acometido pelo cólera. Daí sua atitude heróica
em colocar a vida em risco para salvar a fortuna de Augusto.
Manuel de Castro golpeia o galego para salvar o dinheiro e atinge a garganta de
Gregório. Ferido na garganta, bem ao gosto melodramático, ele é impedido de apontar o
nome do ladrão aos policiais. Sai do hospital com a reputação de galego honrado, o que lhe
granjeia doações para estabelecer um armazém e uma pousada. Seus estabelecimentos
prosperam e ele, além disso, ganha na loteria. Investe em uma grande casa, armazéns e
uma padaria. Desiludido com o casamento da mulher amada, enamora-se de uma pobre
viúva com quem se casa. São muito felizes, mas não podem ter filhos. Ricos, vão viajar
pelo país. Assim encontram e salvam Augusto, empobrecido e abandonado. O galego
158
emprega bem seu dinheiro e torna-se opulento capitalista, credor do governo de Portugal. A
ironia crítica, ácida, de Camilo Castelo Branco verifica-se aqui em relação à personagem
galego. Vítima de preconceitos quando pobre, torna-se prestigiado pela alta roda e
requisitado pelo Estado, ao tornar-se rico. Subjacente à melancolia predominante, insinua-
se o humor amargo, cínico que castiga a hipocrisia social. Como se vê, a personagem
transita pelo ilícito, mas rapidamente encaminha-se para a ordem e destaca-se como homem
de bem.
A benevolência de Gregório prospera em Augusto. Depois de formado na faculdade,
o filho bastardo de Botelho procura Carlota e, com o auxílio de seus novos pais, resgata a
moça que pede para ser enclausurada em um convento. Gregório levanta-se de suas quedas
com maestria e dignidade. Como se vê, Camilo não desdenha a realidade da época, mas
apresenta-a de forma sarcástica ao afrontar os preconceitos criando um galego credor do
Estado português e o filho de um oficial general e neto de outro como um homem viciado,
ladrão e com ímpetos homicidas.
No entanto, também Manuel de Castro não é retratado de maneira maniqueísta.
Aquele que ―negou três vezes‖ ter qualquer relação com Carlota e com Gregório Redondela
tem final feliz e reconhecimento social. Quando descobre que o galego não morrera,
ingressa no exército, muda de partido e foge do país. Multiplica o dinheiro roubado por
meio do jogo, e é enfocado novamente, cortejado em Paris como Dom Álvaro Barrada,
nobre espanhol. Neste momento da narrativa, ele se encanta por uma moça da aristocracia
decadente, tenta seduzi-la a fugir com ele e é rechaçado pelo pai aviltado. Esta recusa leva a
uma revisão de atitudes. O rapaz retrata-se e o pai da donzela acaba consentindo o
casamento. O destino do rapaz sugere uma recusa à narrativa moralizante e uma releitura
crítica das ideias cristalizadas. O filho de um bom cidadão nem sempre é correto. Ao passo
que um simples galego pode ser virtuoso.
Não há um embate entre o vício e a virtude, há a regeneração pelo amor e
compaixão. O casal parte para Suíça e constitui uma família serena e virtuosa. Novamente,
o mal se dilui e desvanece. A ênfase é dada ao dinheiro como motivo de aceitação social
em oposição ao amor compassivo de Matilde que dá origem à virtude. O narrador crítico
comenta o episódio comparando-o ao caso de Fausto e Margarida.
159
O diálogo intertextual estabelece-se em vários sentidos. Um deles, mais imediato,
refere-se à semelhança entre a riqueza e prodigalidade de Manuel e do protagonista da peça
que não é a mola propulsora do interesse de Matilde. Recusam-se novamente as ideias
instituídas e preconceituosas.
Outra associação possível tange a relação entre Manuel e Carlota. O par parece
configurar uma paródia ao caso de Fausto e Margarida. Em Goethe, Fausto é um jovem
irreverente, ávido por conhecimento e reconhecimento. Desiludido por não progredir, faz
um pacto com Mefistófeles, o demônio, dando-lhe sua alma em troca de opulência. A
ambição do protagonista goethiano lembra a da personagem camiliana. Contudo, Fausto
realmente se apaixona por uma moça simples e ingênua. Para conquistá-la, segue
conselhos de Mefistófeles e passa a presenteá-la com joias. A moça deixa-se seduzir pelos
presentes e entrega-se, no entanto, dessas atitudes decorrem severos castigos. O moço sofre
impotente diante da dor da amante. Margarida aflige-se diante da morte de mãe e do irmão
e de uma gravidez indesejada que lhe ampliam o sentimento de culpa e a levam à
prostração e à loucura. Aterrada, ela se entrega à justiça divina e é perdoada. Ele, por outro
lado, não tem direito à salvação e é levado por Mefistófeles. O moralismo é patente, a
virtude é recompensada e o pecado, castigado.
Diferente do texto alemão, na novela camiliana, Manuel seduz e abandona Carlota,
mas não se sente culpado por isso, nem quer salvá-la. Somente quando quer refazer sua
vida com Matilde é levado a um exame de consciência. Reflete, então, acerca dos métodos
empregados para conseguir ascensão social e financeira, mas não se ocupa de Carlota. Re-
ergue-se moralmente pela influência do amor. Diante da súbita aceitação social deste
homem o narrador clama: ―Santo Deus! por que é que ninguém odiava Manuel de Castro?
Donde procedia o compadecerem-se todos dele, e andarem como a esconder de si mesmos
o afeto que lhe tinham?‖ (Branco, 1984, p. 642) A opinião do narrador diante da impostura
da personagem sugere uma visão diferente da socialmente aceita; no entnato, o destino
opulento de Manuel revela a recusa ao moralismo. Parece-lhe impróprio acolher um
homem para quem remorsos eram ―inquietação de ânimos fracos‖ (Branco, 1984, p. 572).
A compaixão do narrador evidencia-se, contudo, quando trata de personagens arrependidas
e injustiçadas.
160
A inquietação do narrador torna-se mais patente no momento em que revela a
inverossimilhança da atitude de Francisco Valdez perdoar o futuro genro por este ter
restituído à tia de Augusto o dinheiro roubado, como prova de sua benevolência e
regeneração. O narrador deixa claro que a quantia restituída é irrisória quando comparada À
fortuna que Castro lucrou nos jogos, e sugere a leitura do capítulo ―Dos ladrões, que
furtando muito, nada ficam a dever na sua opinião‖, da Arte de Furtar. O excerto destina-se
a evidenciar como não se sentem culpados os que lucram pela especulação.
E a desgraça de tantas desgraças é que os autores destas empresas
[especulação], depois de roubarem com elas a el-rei, aos soldados e a todo o
reino, porque a todo abrangem tantas perdas, ficam-se saboreando da destreza
com que fizeram seu ofício. E, se a consciência os pica [...], limpam o bico à
mesma consciência: que a ninguém puseram o punhal nos peitos, nem venderam
nada às escondidas; e o que se faz na bochecha do sol, com aceitação das partes,
vai livre de coimas e de escrúpulos. Parece que ainda não leram, nem ouviram,
que há vontades coatas e forçadas sem punhais nos peitos. (Arte de furtar, 2006,
p. 90)
Consideram-se apropriadas atividades ilícitas, desde que elas sejam feitas com aval
e conhecimento do grupo. O lucro obtido pelo jogo é aceito pela sociedade, embora
condene os perdedores à miséria. A crítica opõe-se ao perdão e reconhecimento social de
Manuel, o que revela o desejo de tratar do caso de forma mais realista. A divergência
sugere não haver um juízo moral definitivo.
A reputação angariada à base do dinheiro desvanece o crime e a culpa. Castro usa o
dinheiro roubado para jogar e ter mulheres, permanece, pois, no vício. Mas a sociedade o
acolhe sem reservas. Mesmo o nobre Valdez pede empréstimo a Barrada, sem conhecer por
que meios este era rico, somente quando sua filha é requestada para amante deste senhor,
ele devolve-lhe a quantia emprestada com fumos de nobreza aviltada.
Manuel escarnece desta sociedade, sob a figura do nobre Álvaro Barrada, zomba de
um grupo que lhe acolhe por seu dinheiro. Sua conduta depravada somente se altera pelo
amor e pelo olhar compassivo de Matilde. Destoando dos demais que condenam Castro ao
ouvirem sua história, sem saber que se trata do pretenso nobre que têm à frente, a moça
escuta-lhe a história e se apieda dele, não o reprova, apenas mostra ―compaixão‖ (Branco,
1984, p. 629). Modificado pelo amor e pela caridade, Manuel escreve à filha de Valdez
revelando-lhe o desejo por regenerar-se e confessando orar constantemente para conseguir
de Deus forças para alcançar seu intento.
161
Nesta carta, a associação entre Castro e Fausto torna-se mais nítida, já que ele
declara ter a seu lado um demônio que lhe provê a boa sorte no jogo ao mesmo tempo em
que concede a consciência de que o sucesso advém da ruína de muitas famílias. ―O mundo
aplaudia-me os triunfos, e as almas aviltadas à protérvia feliz – tantas, meu Deus –
rodeavam-me devoradas de inveja umas, e outras devoradas de amor. Mulheres e homens
todos de rastos na trilha do ouro que eu deixava após de mim!‖ (Branco, 1984, p. 636). O
desprezo pelo sucesso financeiro e o reconhecimento social associados à influência
demoníaca sugere uma revisão crítica do próprio Manuel acerca de sua conduta. A
consciência de ter errado, pelo menos enquanto jogador, é o primeiro passo para a
regeneração.
Para alterar o curso de sua vida, Manuel vende seus pertences e compra um chalé na
Suíça, onde vai morar com sua família, ―na obscuridade e esquecimento do mundo‖
(Branco, 1984, p. 643). A ironia cresce quando se leva em consideração o destino escolhido
por Castro para seu refúgio, Manuel parte com sua nova família para Genebra e vive em
paz, na pátria de Rousseau.
Ácida é a crítica à visão rousseauniana de que em meio à natureza o homem se
regenera, quando se leva em consideração que nas novelas camilianas o refúgio de um casal
no campo gera tédio e aborrecimento. Camilo parece flagrar o contrassenso de que o
homem primitivo seria amigo incondicional de seus semelhantes (Rousseau, 2009, p. 100) e
somente a sociedade gera o desejo de tirar vantagens do prejuízo de seus semelhantes.
(Rousseau, 2009, p. 99). A concepção de Rousseau desconsidera que o progresso material e
a vida em sociedade surgem em decorrência das necessidades do homem, que quer sempre
ser o líder, o mais forte.
O leitor camiliano sabe que o destino do casamento nas novelas do escritor
português é triste. No caso de Castro, no entanto, o narrador limita-se a declarar: ―Como
temo de ouvir argumentar que a felicidade absoluta neste mundo é uma paradoxal visão dos
poetas, por isso me reprimo de dizer que Matilde e Manuel de Castro tinham sido
absolutamente felizes nos oito anos que haviam vivido à margem do lago de Genebra.‖
(Branco, 1984, p. 643)
A felicidade do casal não decorre, portanto, do contato com a natureza. É recorrente
nas narrativas camilianas a concepção de que o dinheiro traz a felicidade. Doze casamentos
162
felizes e Onde está a felicidade? corroboram a assertiva. Assim, ingênua é a visão de que
―o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas cuja posse
está a seu alcance [...] nada deve ser tão tranquilo como sua alma e nada tão limitado como
o seu espírito.‖ (Rousseau, 2009, p. 113)
O filósofo suíço idealiza o selvagem e o homem distante da sociedade como um ser
refratário ao ódio ou à vingança, Camilo, por outro lado, retrata esses sentimentos como
inerentes ao ser humano. Rousseau não parece levar em consideração que a sociedade se
estabeleceu como um meio de o homem solucionar problemas de segurança e de
alimentação que se apresentavam, pois o amor-próprio e o desejo de autoconservação
imperam na natureza humana. O novelista mostra que o amor próprio é qualidade fulcral do
homem que, por isso, só experimenta a paz na opulência. O chalé de Castro é uma grande
propriedade rural com lagos e vistas deslumbrantes. O tema da regeneração social já havia
sido tratado em A queda dum anjo, em que Calisto Elói deixa de ser um nobre rural
ultrapassado e ridículo quando vai para Lisboa e se envolve com a alta sociedade. O tema é,
nas duas narrativas, motivo de riso.
Castro e Matilde são felizes na obscuridade da natureza com muitos recursos
financeiros. Embrenhar-se no mato sem ter como sustentar a si, à família e aos pequenos
prazeres levaria ao vício e não à regeneração. Manuel mantém sua nova vida regenerada
graças ao dinheiro roubado e aumentado pelo jogo, pois é a fortuna que lhe permite
requestar a moça que lhe agrada na alta sociedade e, com ela, viver um belo caso de amor.
Carlota, por outro lado, não se permite refazer-se. Tudo indica que o tabu em relação à
mulher decaída seja intransponível, o que não ocorre no universo masculino.
Associado à desigualdade de gênero, outro tema recorrente em Camilo é o
desconcerto dos destinos humanos, uns nascem com uma ―fatal estrela‖, outros, com
―estrela propícia‖. As expressões, utilizadas pelo narrador para justificar, respectivamente,
a vida de Augusto e de Manuel, reiteram a visão fatalista de Camilo. Nessa vereda, a sina
do filho de Inácio e da filha de Carolina é padecer até a morte. Carlota nunca é perdoada
por si mesma de seus atos.
Preconceitos insinuam-se toda a história, é lícito, portanto, atentar que em Totem e
Tabu e outros trabalhos(Freud, 2006, vol. XIII), Freud discorre sobre como o horror a
determinadas condutas permeiam as nas regras sociais estabelecidas por várias sociedades,
163
mesmo as mais primitivas como a de aborígenes australianos, canibais pobres e desnudos, a
dos bantos orientais e a dos melanésios das Ilhas Banks, entre outros. Assim, a aversão ao
incesto verifica-se no totemismo, um sistema classificatório de parentesco que impõe
rigorosas proibições às relações incestuosas. Dessa constatação, o pai da psicanálise deduz
que este é um dos impulsos mais atávicos do ser humano. Instintivamente o homem
encontra seu primeiro amor pelo incesto – mãe e irmã.
Tabus são as normas éticas não escritas mais antigas do homem, não têm teor
religioso, mas suscitam o temor sagrado, misterioso, que faz evitar o que é considerado
impuro, proibido, ou perigoso. Os tabus visam a diversos fins, entre eles, à proteção à vida
em seus momentos de nascimento, maturação e casamento. Os que violam tabus devem
expiar sua culpa e purificar-se. ―Essas proibições dirigem-se principalmente contra a
liberdade de prazer e contra a liberdade de movimento e comunicação.‖ (Freud, 2006, vol.
XIII, p. 40). E é a convicção moral interna que conduz ao medo e ao sofrimento. ―Em seu
inconsciente não existe nada que mais gostariam de fazer do que violá-los, mas temem
fazê-lo; temem precisamente porque gostariam, e o medo é mais forte que o desejo.‖
(Freud, 2006, vol. XIII, p.48 e 49). Quem viola um tabu, torna-se um tabu porque
configura um exemplo que incentiva a transgressão; por isso, deve ser evitado. O
transgressor apresenta determinado poder, pois lembra desejos proibidos; daí a importância
da expiação.
Carlota viola dois grandes tabus da sociedade burguesa. Desrespeita a regra da
desigualdade social, ao tornar-se amante de um homem rico e, com isso, obter vantagens
pecuniárias e a norma de não ter um caso de amor, sem pretensões ao casamento. O
problema aumenta porque ela sustenta os vícios do amante. Por essas infrações, ela terá de
expiar a culpa e ser punida. Não mais terá direito ao amor, nem ao casamento. Consciente
disso, ela promove a fuga de um dos pretendentes à sua mão de rica herdeira, narrando-lhe
sua vida pregressa. Como se vê, nem o dinheiro do pai que volta rico do Brasil é capaz de
regenerar-lhe a seus olhos e, por extensão, à visão do grupo.
Condenada, sobretudo, por si mesma, Carlota percorre sua via crucis. Jesus
também foi condenado pela sociedade por ter violado tabus, pois como andava com pessoas
consideradas impuras e praticou milagres aos sábados.
164
O trajeto percorrido por Carlota e Augusto é associado pelo narrador, em sutis
menções intertextuais, aos passos da Cruz. Para iniciar a narrativa, são feitos comentários
ácidos acerca da época em que se passam os acontecimentos. Tudo ocorre num momento
em que o cólera e a guerra assolam Portugal. Assim, as pessoas sofrem os ―flagelos gerados
pelo homem na peçonha do pecado‖ (Branco, 1984, p. 551), ―como dizem bons teólogos e
doutos moralistas‖ (Branco, 1984, p. 551) e o barulho de artilharia somado ao dobre dos
finados ―eram o antagonismo da crença e da religião‖. (Branco, 1984, p. 551). O tom
mordaz dirige-se, mormente, ao moralismo vazio de sentido. ―Bons teólogos e doutos
moralistas‖ proclamam as consequências nefastas do pecado. ―Crença‖(ideologias) revelam
hipocrisia quando se tornam combates, a ―religião‖ leva a rituais vãos e ineficazes (―dobre
dos finados‖). Como algumas solenidades repetidas ano após ano que gradativamente
tornam-se folclore, tradição automática e festiva, a via crucis parece consistir em uma
punição absurda aos olhos do novelista que, por isso, se vale do dogma para acentuar o
sofrimento de Carlota e Augusto.
Muitos fatos da narrativa coincidirão com as estações da Via Crucis. Coisas
espantosas inicia-se em uma casa na Rua das Oliveiras. Também a paixão tem início no
Monte das Oliveiras, onde Cristo se reunia com seus discípulos para orar. Para asseverar
tratar-se de um diálogo com o texto bíblico, as páginas seguintes citam ―a terceira queda‖ e
um episódio em que uma personagem ―nega três vezes‖ conhecer a outra. Esta esteira é,
portanto, uma sugestão para interpretar-se a narrativa.
A primeira estação do caminho da cruz ocorre quando Jesus é condenado à morte.
Depois de interrogar Cristo e de ser alertado por sua esposa acerca de uma revelação em
sonho de que se tratava de um homem especial, Pilatos mandou vir água e lavou as mãos
diante da multidão, recusando-se ser responsabilizado pela morte de Jesus. No entanto, ele
manda açoitá-lo e o entrega para ser crucificado. Na segunda Estação, Jesus carrega a cruz,
um instrumento de suplício. O terceiro momento é marcado pela primeira queda de Cristo,
abatido sob o peso da cruz. Com chicotes, os soldados que o escoltavam o forçam a
levantar-se.
Na narrativa camiliana, Carlota, é condenada à sedução de Inácio por ser filha de
uma pobre engomadeira. Sua dor amplia-se por submeter-se aos desmandos de um amante
165
ao qual se entrega por carência. Paripassu, Augusto, como filho natural, é privado por lei
da herança do pai e entregue à irmã de seu pai. Ela o repudia como filho de uma mulher
sem nome ilustre, e o envia a ser aprendiz de caixeiro numa tenda de especieiro e, depois,
enviado ao Porto para a loja de um chapeleiro. Adoece, e no hospital conhece um mesário
que toma o rapaz para seu ajudante. Passa, então, a trabalhar gratuitamente como tipógrafo
da Vedeta da Liberdade. O órgão da ala esquerda do Liberalismo é flagrado em
contrassenso, defende a liberdade, mas escraviza, emprega crianças, sem pagar-lhes salário.
Atitude aparentemente correta, mas basicamente infrutífera é a do mesário consente que o
menino aprenda latinidade com um mestre nos momentos de folga. Quando seu protetor
morre e ele volta à miséria aos doze anos de idade. É, portanto, condenado pela vida à
desgraça, à cruz.
Na quarta Estação, Jesus encontra alívio à dor pela presença de Maria, sua mãe. Na
narrativa camiliana, depois de abandonada em um hospício por Manuel, Carlota vai pedir
esmola com a mãe, uma apoia e conforta a outra. Após a morte da senhora, passa a
costurar para remediar a fome. Augusto é adotado por Gregório e Rosa. O casal não podia
ter filhos e encontra o menino magro, mal vestido e triste. A alegria da decisão de levarem
o filho do Sr. Botelho agrada a todos. À criança, a compaixão gera gratidão e amor, ao
galego e sua esposa, o encontro preenche a vida, agora muito farta materialmente, mas até
aquele momento, carente de filhos.
A caminho do Calvário, Jesus recebe ajuda de Simão para carregar a cruz. Este o faz
por obediência aos soldados que, vendo Cristo muito fraco, ordenam a um dos transeuntes
que o auxiliem a fim de preservá-lo vivo para a crucifixão. Gregório, por outro lado, é
compassivo por vontade própria e auxilia o menino em sua formação, dando-lhe recursos
abundantes para educar-se intelectualmente.
O sexto passo em direção à cruz é marcado pelo encontro com Verônica, moça que
enxuga a face de Jesus tingida de sangue. No tecido, fica estampada a imagem do rosto.
Também Augusto deixará marcas em seu caminho. Preocupado com a mulher que até os
nove anos educou-lhe e mimou-lhe como mãe, o rapaz, com dezenove anos, quer re-
encontrá-la. Depara-se, então, com Carlota na miséria e pede licença aos pais adotivos para
trazê-la para casa, retira-a da miséria e dá-lhe condições de recuperar a vivacidade e beleza.
166
A marca que a ação caridosa terá na vida do casal será indissolúvel como a imagem do
pano de Verônica.
O caminho para a crucificação é árduo e Jesus cai pela segunda vez. Abatido pelos
açoites e pelo peso da madeira, ele caminha com dificuldade, tropeça e vai ao chão. A
queda representa a dificuldade de ultrapassar obstáculos, o que se verifica em toda trajetória
humana. Na novela de Camilo, parodicamente, a queda de Manuel leva-o à ascensão social
e, posteriormente à redenção. Entretanto em relação a Augusto e Carlota, a queda associa-
se ao amor intransponível. Embora não configure um caso de incesto, namorar e casar com
a mulher que teve o papel de mãe na primeira infância constitui um tabu. O leitor saberá
muito depois que este é o motivo da insatisfação de Augusto e de sua súbita decisão de
deixar Portugal, trata-se de uma fuga. Apaixonado pela moça e sem condições psicológicas
de assumir uma relação com ela, o rapaz vai para a Suíça onde encontra e trava amizade
com Castro e sua família, sem reconhecê-lo ex-amante de Carlota. Também ela evade e
sublima seu amor, encerrando-se em um convento.
A oitava Estação apresenta o encontro de Jesus com algumas mulheres que,
chorando, lamentavam o seu sofrimento. Cristo consola, mesmo em momento de extrema
dor e aflição. Assim, Carlota deixa a paz do convento para fazer companhia à Rosa
alquebrada pelo reumatismo.
Na nona estação, Cristo cai pela terceira vez. O número três é simbólico e remete à
trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Por conseguinte, reitera o mistério de um deus fazer-se
homem e fraco para evidenciar a compaixão por suas criaturas. Queda adquire, neste
momento da narrativa camiliana, a conotação de desvio, incorreção. Na vida pregressa de
Carlota, o abandono e a calúnia sofridas por Carolina sugerem a fraqueza que a levam a
deixar a filha trabalhar para Botelho. Eduardo, pai da protagonista, é demitido por
influência do homem com quem o pai de Carolina queria casá-la. Sem conseguir emprego e
com a obrigação de sustentar Carolina, uma filha, e duas irmãs, o moço pretende suicidar-
se, mas é convencido pelo capitão de um navio a embarcar para o Brasil em busca de
dinheiro. As cunhadas arranjam amantes que as sustentam. Carolina sai de casa com a filha
de um ano e meio e torna-se engomadeira. Eduardo enriquece, envia dinheiro para as irmãs,
mas elas não repartem com Carolina e difamam a moça ao irmão. Cronologicamente, esta
seria a primeira queda que daria origem a tantas outras.
167
A décima estação enfatiza a humilhação de Jesus. Neste momento, Ele é despojado
de suas vestes. Em Coisas espantosas, Eduardo, agora rico, re-encontra Carlota e depara-se
com a possibilidade de a filha estar apaixonada por Augusto que não se propõe a casar-se
com ela. Sem conhecer profundamente a história da filha, o homem sente-se aviltado,
propondo a arranjar-lhe um rico casamento. Carlota, humilhada pela imposição paterna,
conta ao pretendente de sua mão, as atrocidades de sua juventude. Ele não volta mais.
Verifica-se, pelo episódio que a autocondenação pelo despojamento de sua prima é o cerne
do conflito principal, ela não se permite uma nova chance.
Nas estações onze a quinze, Jesus é pregado e morre na cruz. Sepultado, abandona o
túmulo e ressuscita. Símbolo ascensional, a cruz parte da terra e aponta ao céu. Seus braços
remetem aos pontos cardeais e o número quatro aos elementos terra, ar, fogo e água; assim,
a cruz representa o conjunto da humanidade atraída para a eternidade pela integração e
unificação com Deus. É pelo sofrimento e morte na cruz que se resgata o pecador. Também
o padecer de Carlota configura um meio de purificação. Ter rompido um tabu, torna-a um
mal exemplo, ela deve padecer para não estimular a outros. Ela espera obter perdão de suas
faltas para merecer a companhia do rapaz no céu. O moço decide-se casar com ela depois
de dois anos de ausência. No entanto, a culpa dela impediria o consórcio e a morte veda a
possibilidade de ele expor sua intenção. Carlota morre no dia em que Augusto decide
ultrapassar os seus próprios preconceitos e casar-se com ela. A esperança na vida após a
morte é o único alento do casal.
Eu só podia ser sua esposa no Céu, onde a alma está pura das nódoas do
corpo. Lá o espero, filho da minha alma. Enquanto viver, creio que verá a minha
imagem sem o estigma fatal. A terra do sepulcro é um crisol de purificação.
Agora lhe digo que o amei até morrer, e morri porque Deus não quis que
dos meus olhos se afastasse o negro quadro do meu passado. As maiores
desgraçadas são aquelas que a si próprias não podem perdoar. (Branco, 1984, p.
712)
―Estigma fatal‖ remete ao universo das ideias camilianas e amplia sua extensão ao
adentrar o universo interior do homem. Já não se trata de um fado impiedoso que castiga os
amantes, mas de autopunição pelo peso da culpa.
Em Augusto, o amor por Carlota vincula-se a um dos desejos mais primitivos do
homem: a atração pela figura materna. Freud, em Interpretação dos sonhos (Freud, 2006,
vol. IV e V) mostra que o menino deseja possuir a mãe e por isso quer matar o próprio pai.
Esse impulso foi associado à história de Édipo e nomeado, por Jung, Complexo de Édipo.
168
A associação entre o complexo e a narrativa camiliana é pertinente uma vez que Carlota foi
a única mãe que o rapaz conheceu em sua infância.
Talvez dessa relação melindrosa com Carlota advenha o perdão fácil de Augusto a
Manuel de Castro. É mais coerente e menos inverossímil perdoar um homem que realizou
seu próprio intento: eliminar o pai – suscitando a desconsideração de Carlota por Inácio – e
ficar com a mãe.
O tabu é tão forte que Augusto não consente casar-se com ela, mesmo com a
permissão do pai da agora Viscondessa dos Reis. O pai de Carlota propõe a Augusto que se
case com sua filha, pois desconhece ter sido ela amante de Inácio Botelho. Em nome do
amor-próprio, ele aceita sem contestar, nem procurar mais informações, a história narrada
pelo capitão do navio que lhe livra da morte no momento de miséria e o leva ao Brasil onde
granjeia fortuna. O marinheiro, com aspecto terrível, confessa ter-se arrependido de impedir
que Eduardo tivesse se suicidado ao saber do destino de Carolina e Carlota. Sobre elas
apenas declara: ―Sua mulher, depois de uma vida honrada, morreu a pedir esmola; sua filha,
depois de ter-se dado a quem lhe matasse a fome, esteve douda no hospital, e de lá saiu para
dar a mão à mãe que tinha perdido os olhos.‖ (Branco, 1984, p. 663). A revelação de teor
melodramático faz Eduardo retornar a Portugal, vinga-se das irmãs mentirosas, anuncia,
anonimamente, no jornal a busca da filha que vai encontrar no mosteiro de Évora. Para o
brasileiro, sua filha fora vítima de sedução e abandono e o remorso a causa de ter
enlouquecido, por isso consente que ela se case com Augusto.
Já Gregório não concebe a união do casal. Rosa e Gregório choram com a miséria
de Augusto e com a loucura de Carlota, oferecem-lhes a casa e o coração. Mas Gregório
surpreende-se com a revelação do amor dos dois, fica pasmado diante de ―crime tamanho‖
(Branco, 1984, p. 700), pois conhecia Carlota como amante de Inácio, substituta da mãe do
rapaz (Branco, 1984, p. 702).
O narrador considera o amor de Augusto uma FATALIDADE – e a caixa alta é
empregada duas vezes para enfatizar o destino trágico e irremediável. Entretanto, não lhe
parece criminoso esse sentimento. Para expor sua visão sobre assunto tão delicado, o
narrador se vale da técnica do leitor incluso e dispõe-se a confrontar opiniões.
Conversemos, leitor.
- Que lhe parece isto a Vossa Excelência!
169
- Parece-me um escândalo inaudito! Eu tenho lido todos os romances de mais
nomeada pela extravagância, e nunca vi uma coisa assim! Tenho desculpado
todos os amores extravagantes; mas à minha bondade repugna escusar que estas
duas pessoas se amem, embora a razão aceite a possibilidade de se amarem.
- Ah! Vossa Excelência confessa que a razão aceita? Pois se a razão se conforma,
que fará o coração? Não vê que aquela mulher é bela, daquela expressiva,
imperiosa, e fascinante beleza dos trinta e três?
- Pois sim; mas não esteja você a puxar pelo fiado, que eu, se me apoquenta,
lembro-lhe que Carlota...
- Foi a amante do pai de Augusto? é o que quer dizer-me?
- Está claro.
- Então Vossa Excelência ainda não sabe nada do coração humano, nem da
história. Repare que não há aqui sequer um amor incestuoso. Não há Neros, nem
Hipólitos, nem Ciniras, nem as filhas do duque d‘Orleans, que Vossa Excelência
conhece d‘O Século de Luís XV, e dos romances que esmoeu sem amargos de
boca. Trata-se de uma mulher formosa, e de um moço de vinte e um anos que
ama pela primeira vez, e que já amava – saiba-o agora, já que eu tive pejo de lho
dizer em tempo mais oportuno -, já amava, quando foi viajar, e esconder o seu
coração no chalet da Suíça.
- Seja como quiser; mas não é de bom gosto o episódio do seu romance.
- A natureza, meu bom amigo, não se amolda ao bom ou mau gosto dos
romancistas. A natureza faz destes amores – monstruosos, se Vossa Excelência
quer -, atira-os à circulação, e diz: ―os noveleiros que vos definam, se podem.‖ E
não está bem definida a coisa? Que tem o coração de Augusto com o passado?
- A dignidade.
- Com o que Vossa Excelência me vem;... A dignidade!... A dignidade, quando a
paixão lhe sai de rosto, agacha-se, e deixa-se sovar aos pés, se é que a paixão
pode ter pés, não tendo cabeça.
E dou a polêmica por concluída.
O amor do casal é configurado como característico do ―coração humano‖. Quem
não o compreende é porque ―não sabe nada do coração humano, nem da história‖, não
conhece, enfim, a natureza que amolda amores ―monstruosos‖. Camilo perdoa o casal
porque é um profundo conhecedor da alma humana e um destemido oponente aos
preconceitos. Novamente rejeita-se um conceito moral definitivo.
As paixões dominam a razão, mas a busca pela manutenção da dignidade sobrepõe-
se a todos os demais fatores. O conflito recorrente em Camilo, o choque entre duas forças
antagônicas, entre dois titãs poderosos e adversários - a paixão e a razão - torna-se agora
mais profundo, pois o inimigo está dentro do próprio se humano. O embate interno entre
forças desiguais, característico da lírica portuguesa, ganha novas cores trágicas. As forças
internas sobrelevam-se à razão, mas os tabus e preconceitos ganham mais ênfase.
Assim, a narrativa parece renovar um grito de socorro, um pedido de comiseração,
um clamor por compaixão, já que o homem é novamente vítima não somente de seus
desejos e emoções, como também da moralidade instituída.
170
Mais que afrontar a sociedade burguesa, o amor entre Carlota e Augusto é um meio
de expor como a natureza humana deve ser recalcada para respeitar os tabus e preconceitos.
Só a autocompaixão salvaria o casal.
―Compaixão‖ deriva dos radicais latinos ―cum‖ e ―patire‖ e significa ―sofrer ou
padecer com‖. Ser compassivo refere-se, portanto, à capacidade de identificar-se com a dor
alheia e partilhar dela. Somente quem sente a dor quer aliviar-se, assim, a compaixão
acarreta atitudes, não se trata de empatia ou de dó. Trata-se de colaborar para diminuir a dor
do outro como se fosse seu próprio padecer. Há necessidade de um desdobramento do ―eu‖,
de colocar-se no lugar do outro para sentir sua dor e querer remediá-la. Manuel foi salvo
pela compaixão de Matilde, Augusto foi recuperado pela compaixão de Gregório e Rosa.
No entanto, não há compaixão pelo casal Carlota e Augusto. Assim, a filha de Carolina
torna-se mártir como Eurico, personagem do romance que adora ouvir ler.
Enclausurada em um convento, ela revê Augusto e escuta-lhe a leitura do romance
histórico de Herculano que se abre com uma crítica ao celibato; para o autor, a castidade
imposta como dogma é rival ao interesse das nações, danosa moral e politicamente,
irremediável solidão da alma a que a Igreja condenou seus ministros, amputação espiritual
em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra.
(Herculano,1972, p. 22)
Carlota assemelha-se ao protagonista de Herculano. Senhor de um coração de poeta,
Eurico vela pelo que ama, prefere a solidão e a tristeza do convento onde não poderia ter
contentamentos já que seu fado é a solidão. O presbítero morre como mártir nas mãos do
inimigo da raça e da crença para remir o crime de amar Hermengarda, sendo um padre. O
conflito de Eurico é interno, ele jamais teve atitude indigna. Também a personagem
camiliana encerra-se em um convento na tentativa de sublimar o amor que sente pelo filho
de seu amante. Amar Augusto e ser amada por ele configura-lhe um crime que não pode ser
perdoado. Daí Carlota aconselhar Augusto:
[...] Não me queira mais. Lembre-se da minha indignidade. Não há
ferida de coração que resista a esse bálsamo. [...] Sabe os quadros de minha vida
horrenda, um por um. Lembre-se de todos. Em pouco tempo terá pejo de si
próprio, pejo do seu amor, e admiração dolorosa de uma fraqueza. Tenha tudo;
mas conserve de mim uma piedosa lembrança. A compaixão é o único sentimento
que eu devia inspirar-lhe, se o coração humano fosse menos absurdo. Eu sou uma
desgraçada sem igual. Até de lhe abrir a minha alma devo ter vergonha. Sou
171
mulher condenada a jamais poder dizer-lhe o que sinto. Vê-se que não expiei os
meus crimes ainda: agora é que eu reconheço o castigo. Vá, fujas de mim, meu
querido filho. Veja-me no passado; olhe que infâmias lá ficam sem reabilitação
possível... Deixe-me morrer, por misericórdia lho peço; porque já não espero uma
hora da vida em paz. A vergonha é mil vezes mais pungente que o remorso!...
(Branco, 1984, p. 703)
Como se vê, é o conflito e a condenação internos que punem o casal. A sensação de
culpa suscita o pavor da consciência, reprime os desejos. Prepondera o medo sobre o
instinto. O único sentimento que Carlota pode almejar é a compaixão. Não há ameaças
externas de punição, mas ainda assim impera a certeza interna de que o crime conduzirá à
desgraça.
Vítima de emoções com as quais não sabe lidar, a vida do rapaz torna-se tão insossa
que sua lápide revela quão pouco viveu. Os dizeres VELUT UMBRA ou SEMELHANTE
A SOMBRA sugerem que ele foi mero reflexo de alguém e, por isso, nunca conseguiu
estabelecer sua própria identidade. Reflexo de seu pai, cujas paixões deixaram-lhe como
herança o desprezo e a impossibilidade de conhecer o amor.
A análise junguiana qualifica de sombra tudo o que o sujeito recusa reconhecer ou
admitir e que, entretanto, sempre se impõe a ele [...]. Ao filho de Balbina, foi negado o
amor de mãe, o reconhecimento como filho legítimo e a possibilidade de amar. Invertem-se
os papéis da narrativa herculiana. Augusto, como Hermengarda, não tem chance de tomar
as próprias decisões e esvanece-se. Carlota, vítima de sua condição social, torna-se ela
mesma um tabu e martiriza-se para purificar-se.
172
V. 2 Ser ou não ser: Carlota
Fernando Gomes assenhora-se da narrativa camiliana, tornando-a novo texto pós-
moderno. Seja por sua irreverência, semelhante à de Camilo, seja por sua índole de
contador de histórias, nas mãos do dramaturgo, a novela adquire novas cores e feições
sempre atuais. A interiorização dos conteúdos e a problematização do que estava apenas
sugerido nos textos do escritor do século XIX colaboram para a criação de textos originais.
Imprescindíveis para alcançar seu sucesso são a criação de novas personagens e motivos.
Em A Vida Trágica de Carlota, a filha da engomadeira, já a alteração no título
enuncia a valorização da tragicidade da vida da protagonista. Não se trata mais de ―Coisas
espantosas‖, mas de vida, em seus aspectos mais intrínsecos e comuns a todos os homens.
Afinal, não se enfocará a vida de uma pessoa renomada, mas a da ―filha da engomadeira‖.
Desde o início da narrativa, a miséria econômica de Carlota é enfatizada. Aliada a
essa condição, agrava-se o quadro pelo fato de a moça precisar protagonizar sua vida muito
cedo, sem o auxílio dos pais:
Meu Deus!... não sei como é que a gente aguenta tanta desgraça! Elas são umas
atrás das outras!...
É a fome que aperta, o dinheiro que escasseia, o paizinho que está mais que visto
que já não volta, as dívidas que aumentam, a mãezinha que está quase cega
[...](Gomes, p. 14)
O desabafo sugere uma visão crítica e madura acerca dos fatos. Embora se trate de
um lamento, não predomina o sentimentalismo, uma vez que ela ―aguenta as desgraças‖,
mas prevalece a consciência de uma situação social que deveria ser alterada. Esse ponto de
vista revela um acréscimo de motivo ao texto, já que remete ao discurso masculino,
ponderado e racional e sugere um diálogo com Os miseráveis, de Victor Hugo.
A intertextualidade com o romance francês já vem sugerida no ―Prólogo‖ à peça.
Apesar de Carlota apresentar características de Fantine, pois é obrigada a ceder à sedução
em decorrência da falta de recursos, ela ousa tomar proveito da situação e inverter papéis.
De início, sua irreverência é apenas sugerida sutilmente ao propor à mãe que busque
melhores condições salariais. Mais tarde, torna-se mais ousada ao escolher e sustentar um
amante, traindo, assim, seu provedor. O discurso humanitário e igualitário da narrativa
hugoana adquire novas tonalidades ainda mais fortes. Diferente do que ocorre em Hugo,
173
não se trata de um narrador consciente e engajado a retratar a miséria de seres ingênuos e
submissos a uma realidade injusta, mas de uma mulher que afronta, ainda que de maneira
muito sutil, a repressão e a miséria do mundo patriarcal.
Várias alterações são promovidas no paradigma camiliano a fim de ampliar-lhe o
significado. Em Camilo, a burguesia é a classe enfocada. Servos são valorizados quando
ascendem socialmente e modificam hábitos para viver de forma pródiga. Na peça,
prevalecem pessoas simples e ingênuas, crédulas e sensíveis, Gregório não enriquece como
na novela, adquire meios de sustentar-se com fartura, mas é rodeado de pessoas humildes
no ―Rei do Garfo‖, restaurante cujo nome já sugere, de forma bem-humorada, a falta de
requinte e a transformação do grotesco em cômico. Para enfatizar que se trata de pessoas
simples, inserem-se mendigos como narradores, tabernas e prostíbulos como cenários e
seus frequentadores como personagens. O atraso do país é tema frequente em Gomes e,
aqui, colabora para que o diálogo com Hugo se estabeleça.
A ação decorre em Lisboa, na segunda metade do século XIX.
Grande parte do povo vivia de esmolas.
Era impressionante o número e condição dos mendigos de Lisboa.
Mendigavam cegos, aleijados, velhos, doentes, anormais, desempregados.
Alguns mendigos, em troca duma esmola, cantavam e contavam, pelas ruas e
pelas feiras, histórias comoventes que relatavam amores não correspondidos ou
crimes recentes.
Hoje, sem dúvida que teriam preferido um palco... e seria assim... (Gomes, p.6)
A associação entre mendigos e atores de teatro, frequente na obra de Gomes, é
reiterada na peça. A relação parece reforçar o caráter irreverente, marginalizado dos atores.
Espirituosos, eles conseguem manter a individualidade de opiniões e protestos sem
deixarem-se contaminar pelas concepções dominantes. A arte em um mundo onde o tempo
é convertido em moeda acaba cultivada pelos poucos sensíveis que conseguem desviar o
curso de suas rotinas para ouvir o outro. Atores são como mendigos porque estão à margem
da sociedade, não querem fazer parte de um grupo social que apresenta convicções
inquestionáveis, vivem livremente e, veem, por isso, a realidade com olhar
descongestionado, capaz de identificar o que é digno de riso.
Em A Vida Trágica de Carlota: a Filha da Engomadeira, a narração não se faz
apenas pelos mendigos, ocorre novamente a diluição do foco narrativo, já que pela
paráfrase resumitiva, várias personagens sintetizam acontecimentos de que participaram
direta ou indiretamente. Dessa ―multivocalização‖ – termo cunhado agora para sintetizar a
174
multiplicidade de narradores – decorre a alteração de como são apresentadas algumas
personagens. Em Camilo, um narrador amargurado e um tanto vingativo, desforra-se de
alguns tipos que o incomodam. Assim, Inácio Botelho, nobre que engravida uma moça e
não se casa com ela, nem lhe reconhece o filho, morre solitário e roubado pelos que
humilhou. Eduardo é envilecido por suas mentalidade usurária.
Na peça, por outro lado, Inácio é visto por seus empregados como ―um homem
como deve ser!‖ (Gomes, p. 11), pois a simplicidade e falta de consciência social da
maioria das personagens impedem-nas de vê-lo como um tirano, opressor. Manuel, por seu
turno, adquire foros de herói.
O acréscimo de personagens oriundas da classe popular é relevante para a
estilização do paradigma. A taberna e seus frequentadores tornam a ser cenários em que
bêbados e homens do povo libertam-se e conversam tranquilamente. A personagem
Taberneira volta à cena com acentuada carga de feminismo e senso crítico. Ela não deixa de
censurar Gregório quando ingenuamente sugere que Carlota teria seduzido seu pobre amo,
instruída pela mãe: ―Pois!... de certeza!... A mãe devia ter cá uma instrução!...‖ (Gomes,
p.21). A alteração de ―instruída‖, isto é, motivada pela instrução ou ―educação‖ revela uma
crítica irônica ao abandono social. E o humor flui, em cima de trocadilhos, castigando a
ignorância e tolice de alguns homens ávidos por manter o poder estabelecido, enquanto
esclarece que a pobreza leva à miséria moral. Também a mãe de Augusto é moça simples.
Em Gomes, Balbina é a cozinheira, seduzida e grávida pelo patrão. Como ocorre com
Carlota, o único reconhecimento oferecido à amante é ser chamada de ―dona‖ pelos
criados. Acréscimo significativo são as prostitutas esbanjam inveja e rancor entre si em
busca de garantir o sustento. São mulheres comuns, rebaixadas pela fome, oprimidas por
um homem e iludidas com a re-inserção social. A miséria moral é, portanto, outra acepção
do termo na peça. Em uma sociedade com ideologia cristalizada e repressora, muitos são
marginalizados, mas esses não se rebelam, pois são dominados pela mentalidade dominante
e querem fazer parte do grupo.
O grotesco como motivo de riso e de revisão da mentalidade dominante vem à cena
pela a personagem ―anão‖, um contraponto para a figura do médico. Responsável por
assobiar para acalmar os pacientes, o anão sente-se privilegiado por ter um papel social.
Médico e monstro têm aqui novo significado, são, como no romance inglês, seres
175
complementares, mas não pela disparidade de índoles opostas. Completam-se porque a um
cabe o papel de culto e racional e ao outro, o de sensível e acolhedor. Transforma-se, pelo
humor, o feio em belo. Somente com a ajuda de seu duplo, o médico cumpre papel mais
amplo, pois traz alívio à dor física e psicológica, sem destituir-se de sua postura de ser
privilegiado pela Ciência. Tendo a seu lado um ser ―menor‖, que se digna a olhar para as
necessidades emocionais dos pacientes, ele pode dedicar-se a ser apenas um cientista. O
anão é capaz de fazer papel de filho, de amante e até de padre para acalmar e acolher.
Monstruoso, porque diferente, é coadjuvante, menor e sem relevância, mas imprescindível.
Sugere-se, por esse quadro, que a dualidade complementar das duas personagens sugere a
incompletude de figuras socialmente valorizadas.
A peça enfatiza, portanto, uma massa sofrida e inferiorizada que necessita de um
porta-voz íntegro e idôneo. Cabe ao novo Manuel de Castro este papel. No amante, Carlota
encontra um confidente que respeita sua condição e propõe a lutar por alterá-la. Ela não é
tratada como um ser frágil e incapaz, mas como uma pessoa que deve desenvolver o senso
crítico e não se deixar subjugar. Manuel oferece a possibilidade de aceitação do diferente.
A transvalorização da personagem Castro é significativa e justifica a ênfase dada no
Prólogo da peça à associação entre a narrativa e Os miseráveis, de Victor Hugo. Com o
mesmo tom revolucionário e crítico, Manuel contesta uma sociedade em que há
[...] proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de
verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por
natureza divino; [...] [uma sociedade onde prevalecem] os três problemas do
século, - a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela
fome, e a atrofia da criança pela ignorância [...](Hugo, 1956, p. 9)
A personagem gomesiana, diferente do repulsivo viciado de Coisas espantosas, faz
discursos libertários e alerta para os males da desigualdade social. A relação intertextual
com a narrativa hugoana é um meio de criticar o atraso da sociedade portuguesa.
Estes ricaços são todos iguais: passam a vida a encher o bandulho e a
lixar o próximo; olham p‘ra gente todos empertigados, como se tivessem o rei na
barriga; põem-se nas criadas, e elas... bico calado ou lá se vai o emprego; são
mais miseráveis que aqueles desgraçados que têm de roubar p‘ra comer, ou
daquelas que para aguentar a vida têm de aguentar com eles!...
[...]
E gajos deste calibre são tão gananciosos que nunca se contentam com a
riqueza que tiveram em vida [...] (Gomes, p. 25)
176
Assim, roubar parte do dinheiro de Inácio deixa de figurar um crime para
representar partilha e distribuição de riqueza. Diferente das demais personagens, Manuel
não acredita em Fado, nem é crédulo, recusa-se a entregar-se nas mãos de Deus, quer
refazer sua vida com igualdade e justiça.
Sempre fomos uns miseráveis, Carlota... e sabes por quê?! Porque há outros,
ainda mais miseráveis que nós, que fazem sempre as contas à maneira deles, e à
maneira deles gente como nós nunca tem direito a nada!... Mas ―cá se fazem, cá
se pagam!‖ ... e agora... podemos refazer a nossa vida... (Gomes, p. 29)
O termo ―miseráveis‖ passa a ter nova conotação. Patrões miseráveis são os
egocentrados, os ególatras, que dispõem da vida dos menos privilegiados em prol de
prazeres pessoais e mesquinhos. São os que não se importam com o destino dos mais
pobres que lhes configuram apenas como um meio de manter prerrogativas. Miseráveis
porque mesquinhos e egoístas, isentos de compaixão e ética.
Carlota apresenta-se como ingênua e mostra não conseguir compreender a visão de
Manuel, ao insistir em considerar Inácio um bom homem, afinal este ―até mandou que toda
a gente me chamasse dona... dona Carlota...‖(Gomes, p. 25). Afigura-se moça inocente e
crédula fazendo com que Castro evidencie seu caráter revolucionário e propague que um
título em troca da dignidade não é índice de que o patrão esteja preocupado com ela. A
atitude de Carlota deve ser considerada com certa prevenção, afinal há um contrassenso no
comportamento da moça em elogiar o patrão e traí-lo. Esse antagonismo sugere que pode
haver fingimento ou dissimulação na personagem, hipótese que é reforçada pela
apresentação da moça no início da peça como alguém que fingia para a mãe: ―Carlota
fingia dormir, para não atormentar ainda mais a pobre mãe … e continuou a fingir … a
fingir …‖(Gomes, p. 9)
Com base nesse pressuposto, a astúcia de Manuel diminui muito em relação à
amante. Ele tenta manipulá-la considerando-lhe as crendices, assim preconiza que foi o
destino que lhes deu a oportunidade de ter o dinheiro para serem felizes. Entretanto, caso se
considere que também as crenças e receios da moça são mero fingimento, o rapaz revela-se
tolo diante de um indivíduo mais arguto. Essa inversão dissimulada de papéis já se enuncia
pelo fato de ela sustentar-lhe, tomando, por isso, prerrogativas no relacionamento.
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A fim de garantir a idoneidade do caráter de Manuel, na peça a quantia de que ele se
apropria não consta do testamento oficial, mas de um bilhete deixado ao filho. O rapaz não
rouba o dinheiro oficialmente legado à família, nem falsifica a carta, já que Inácio mantém
a paternidade como um ato ilícito e desvia dinheiro para o sustento do filho. Na novela, o
testamento é dado ao filho, no intertexto, mero bilhete lhe é entregue, não há intenção de
perfilhação. Percebe-se, portanto, que também Inácio usa de dissimulação e fingimento. A
vida em sociedade, repleta de convicções e normas estratificadas, suscita a mentira para
assegurar a viabilidade do eu e evitar complicações com o grupo.
Manuel, entretanto, mostra-se fiel a seus princípios e não os abandona. Apropria-se
do valor não para usá-lo de maneira individualista e medíocre, como no paradigma, mas, ao
contrário, propõe-se a estabelecer alguma condição de igualdade e justiça.
Nesse sentido, também o ataque a Gregório compõe-se de modo diferente.
Surpreendido pelo empregado, Manuel defende-se com um garfo e fere de morte o
oponente. Elimina-se a cena do texto camiliano em que o servo chantageia Carlota e ela
insinua ao namorado o desejo de matar o funcionário da casa. Tudo se passa em minutos,
não há premeditação, nem intenção homicida. A agressão a Gregório torna-se episódio
tragicômico. Em vez de facadas, Manuel defende-se com um garfo. Para tornar ainda mais
ridícula a cena, o rapaz não se apressa em fugir porque considera que podem pensar que
houve um suicídio. Diante da possibilidade de que o amante seja condenado, Carlota
propõe que ele se esconda. Manuel hesita, pretexta ter ouvido uma caravana passando. Essa
fala é motivo para a inserção de um ditado popular:
―Mendigos: Se fosse uma caravana, o malandro fiava-se no ditado que diz:
Manuel e Mendigos: Os cães ladram e a caravana passa.‖ (Gomes, p. 31)
O nonsense do dito no contexto em que se insere sugere que nem sempre a
associação entre episódios do cotidiano e provérbios populares é eficaz. Insinua-se, dessa
forma, que o povo submisso às ideias preconcebidas torna-se cego para a verdade e tem
pouco senso crítico.
Carlota mostra ver a situação por ângulo diametralmente oposto ao de Castro.
Enquanto ele encara o dinheiro como possibilidade de ter um papel social, ela diz
considerar o ato como um crime contra a sociedade e contra Deus. Manuel compadece-se
do sofrimento de uma mulher que lhe parece ignorante e miserável. Seu discurso, embora
repita quase que ipsis litteris o do paradigma, insere-se em outro contexto. Em Camilo,
178
Manuel ilude Carlota e sua fala é mera chantagem para que ela conceba o furto. Na peça,
ele é sincero, propõe-se a abandonar o dinheiro e confessar o homicídio para livrá-la do
remorso. A inserção de um mesmo discurso em contexto diferente relativiza a palavra,
sugerindo que nada é definitivo, nem deve ser interpretado de uma só maneira, o que
colabora para tornar alerta o leitor / espectador diante da verdade estabelecida e
cristalizada.
Entretanto a visão da moça pode ter outro motivo. Deve-se considerar que, com o
dinheiro, a situação dos amantes se alteraria radicalmente, pois ele deixaria de necessitar
dela para sobreviver. Assim, ela perderia o papel de provedor e deixaria de ter algum
domínio sobre ele. Considerando o fingimento de Carlota como um traço de seu caráter, há
que se desconfiar dos motivos apresentados para sua aversão ao roubo.
A cena é interrompida pela entrada do médico e do anão, agora vestido de padre.
Deparam-se com Inácio morto e leem o testamento. Ao perceber que havia herdado dez mil
cruzados, Carlota enlouquece e é recolhida a um hospício. Novamente, o espectador – leitor
deve olhar com desconfiança para a atitude da moça. Ela pode ter fingido enlouquecer para
não chamar atenção para seus atos e desvencilhar-se de uma situação-problema. Outra
hipótese seria a de que a perda da sensatez decorra do fato de perceber que poderia manter
a situação com Manuel como estava, com ela no comando, sem necessidade do roubo, daí o
desespero e a dor.
A inclusão da cena do médico, e a supressão do episódio em que o próprio Manuel
revela à amante que teria herdado dinheiro do patrão, colaboram para a transvalorização da
personagem. Castro não chantageia a namorada, alegando que somente quando ela se
reconhece como herdeira, arrepende-se do furto. Ele já não está mais em cena, o público só
saberá de seu destino cenas adiante, quando em Paris o moço revela preocupar-se com
saber o que teria acontecido com Carlota. Revigora-se, então, Manuel, como legítimo porta-
voz de uma classe, rapaz íntegro e preocupado com o bem-estar dos seus pares.
A classe a que Castro defende apresenta crendices e superstições, trata-se de
personagens socialmente marginalizados, ávidos por encontrarem um espaço na sociedade.
Rosa, na peça, é ex-prostituta, Gregório casa-se com ela, conhecendo seu passado porque
se sente predestinado a ―salvá-la‖, reconciliando-a com a sociedade. Augusto não se torna o
dandy do paradigma, passa a vida em meio a pessoas que lhe desprezam e oprimem, é
179
vítima de todo tipo de carência. Os narradores são mendigos crédulos que insistem na ideia
de fado. A relação dessas personagens com o misticismo é evidente. A peça parece rumar à
dessacralização de símbolos do imaginário coletivo português. A asserção se comprova
quando se leva em conta a frequência com que a crença nos ditados é colocada em xeque e
ridicularizada.
Exemplos dessa postura diante da cultura popular são a crença no Milagre do Rato
(Gomes, p. 58) pelo fato de Gregório ter-se livrado de ser enterrado vivo porque um roedor,
no caixão, faz barulho. Carlota, ao verificar que Gregório ainda estava vivo, recusa-se a
acreditar em que não houve o crime e considera que sua aparição é um castigo enviado por
Deus. Neste caso, deve-se considerar a ambiguidade do caráter da moça e levar-se em conta
o crime como condição para separação do casal, trata-se de uma grande ironia e um imenso
castigo para Carlota o fato de ter que conviver com Gregório.
Foi Deus... que o mandou... para me castigar... daqui a nada vai desaparecer... é
um aviso de Deus para me lembrar que eu ainda não estou preparada para ser
feliz... Deus, com toda sua misericórdia mostra-me a felicidade que ele podia ter
alcançado... se eu tivesse forças para impedir o ato cruel com que meu amante lhe
tirou a vida... (Gomes, p.59)
A fala sugere dramaticidade e sentimentalismo bastante afetados, cumpre desconfiar
de Carlota em seus discursos inflamados e piegas, eles podem ser apenas um meio para ela
ocultar seus verdadeiros interesses e intenções. Ela pode, entretanto, apenas desejar que
Gregório seja um fantasma. Cabe ressaltar a ironia entre considerar ―Deus, com toda [...]
misericórdia‖ e a intenção divina de puni-la. Tudo parece indicar que ela quer ser feliz e
está pronta para isso, mas finge sentir-se culpada e indigna para não evidenciar seu desejo
de permanecer no erro, já que, para ela, a felicidade está em sustentar com o amante
criminoso . Assim, pela máscara, ela preserva sua interioridade e o desejo de transgressão,
sem ser julgada e condenada por isso. Interessante considerar que a máscara elegida por ela
consiste no repetir ideias-chave da concepção de mundo retrógrada portuguesa. Assim, ela
mantém-se anônima numa multidão semelhante entre si.
O ditado ―Deus escreve direito por linhas tortas‖ é repetido à exaustão para mostrar
uma mentalidade resignada a um suposto destino traçado por Deus. Nessa esteira, Gregório
considera lembrar-se do rosto de Rosa, meretriz com quem já tinha ficado, em momento de
completa amnésia após o coma, um sinal de Deus para resgatá-la da prostituição. De acordo
180
com essa concepção, ele foi ―instrumento nas mãos do Senhor para a D. Rosa ser feliz!‖
(Gomes, p. 62). Nota-se, aqui, como a inserção social é importante para esse grupo.
Deus e a religião estão a serviço do homem e de sua vontade. Os elementos
que motivariam a felicidade são a mão de Deus em ação. Com a mesma mundividência,
Leonor, senhora de classe abastada, irmã de Inácio Botelho, considera alguém que fale
Português em Paris ―um enviado de Deus‖ (Gomes, p. 67) e pretende enriquecer e vencer
―Só porque Deus assim o quer‖ (Gomes, p. 39).
Augusto chega a acreditar em que seja uma afronta a Deus vomitar o que não
suportava comer (Gomes, p. 56). Irmã Gama entrega a carta de Carlota a Augusto ―Porque
Deus, através da Carlota, confiou [...] [lhe] a missão de entregar esta carta‖ (Gomes, p. 89).
Carlota, para preservar-se e não sucumbir a um meio que propõe a reconciliação
com a sociedade pelo casamento, pretexta não poder livrar-se da mão repressora de Deus a
constantemente puni-la por seus erros passados. Considera-se ―pobre a mal agradecida‖
(Gomes, p. 76) por não poder conceber, como sua protetora, a possibilidade de ser feliz.
Augusto, também ignorante e crédulo - na peça não chega a ir à universidade - considera
que se Carlota pecou, Deus já a perdoou (Gomes, p. 52). Os narradores são mendigos
crentes em que ―[Carlota] Com a graça de Deus tem Augusto a seu lado!/ Seu mal fadado
fado acabou[...]‖(Gomes, p. 57). Contudo, ao invés de, como Rosa, conceber a
possibilidade de ser uma nova pessoa, acreditar em que ―o futuro está nas tuas mãos‖
(Gomes, p. 75), a filha da engomadeira resigna-se a sofrer por acreditar em que essa seja a
vontade de Deus.
Aquele que não atravessou convicções diversas, mas fica comprometido na
crença que por primeiro o prendeu em sua rede é, [...] em decorrência de sua
própria imutabilidade, um representante de culturas atrasadas; é, por essa falta de
educação [...] duro, ininteligente, rebelde a todo ensino, sem delicadeza, ser
eternamente suspeitoso, sem escrúpulos, que toma meios de fazer prevalecer sua
opinião, porque não pode mesmo compreender que deve haver opiniões de
outros[...](Nietszche, 2006, p. 298)
Cabe ressaltar que a perífrase é também uma sugestão de que Carlota pensa
diferente por ter sido educada apenas por uma mulher. Na peça, o pai nunca retorna, ela não
tem que se submeter ao patriarca. Ela domina a mãe e exerce certa influência sobre a
humilde mulher. Quando percebe que a genitora não tem mais condições de sustentá-la,
propõe-se a ―fazer algo que se veja‖. Toma para si a tarefa de sustentar a família.
181
Já que a minha mãe está cega, chegou a altura de eu fazer alguma coisa que se
veja!!! [...] Vou malhar no ferro enquanto ele ainda está quente
A minha querida mãe não está cega, mas pouco falta! … e eu juro-lhe, por alma
do meu querido paizinho … o pão não há-de faltar nesta casa!
Vou ser a mãe do menino Augusto … e vou passar a engomar as camisas do
pai!!!
Juro-lhe que o pão não há-de faltar nesta casa, não seja eu Carlota, a filha da
engomadeira. (Gomes, p. 14 e 15)
Sua altivez diante da dificuldade nunca se esvai. Com a morte de Inácio, pede
esmola, mas nunca se submete à prostituição, cria máscaras para evitar sucumbir ao meio.
Para preservar-se, ela recusa a vida em sociedade, permanece à margem como ―a
filha da engomadeira‖. Diferente do que ocorre no paradigma, Augusto, em Fernando
Gomes, pede Carlota em casamento. A moça, no entanto, diz-se fadada à infelicidade pela
culpa. Não concebe casar-se com um homem dez anos mais jovem e que foi, em sua
infância, mimado por ela como um filho. Rosa usa do saber popular para incentivá-la a
esquecer o passado e construir o futuro: ―[O que Carlota fez] Não tem remédio! Mas o que
não tem remédio remediado está! E toda a gente te perdoou [...]‖(Gomes, p. 76). A
resignação diante de um obstáculo é reforçada pelo ditado popular. Entretanto, Carlota foge
e ingressa em um convento. Ela não não quer ceder a pressão para o retorno à sociedade e
à submissão ao casamento, não quer submeter-se, por isso busca um refúgio fora do grupo.
O convento funciona como um disfarce e reforça o fingimento de Carlota. Fingir
gera o isolamento, a desagregação social, já que sua cosmovisão é contrária à do grupo. A
recusa de participar da sociedade revela a insistência na valorização do ―eu‖ e de uma visão
particular de mundo. Opção semelhante parece ser a das freiras da peça, todas infratoras,
isoladas no convento, e a de algumas prostitutas que não pretendem casar-se e inserir-se na
sociedade.
A caracterização das freiras é sugerida pelos apelidos das personagens que indicam
suas peculiaridades. As religiosas acolhem Carlota e deixam claro que todas têm ―telhados
de vidro‖ (Gomes, p. 84) e não estariam, portanto, propensas a julgar, nem a condenar a
moça. Irmã Gama desde criança roubava esmolas nas igrejas; Lufadinha passou a vida
―numa lufa-lufa à procura dum marido... nessa lufa-lufa conheci [eu] muitos, mas nenhum
me [a] quis‖ (Gomes, p. 84). Borbulha tem tantas bolhas que se torna muito nervosa.
(Gomes, p. 85) O hábito é, portanto, um mascaramento, um meio de preservação, e, como
182
tal, gera o anonimato, a alteridade. Assim, um risco coloca-se: a perda da identidade pela
identificação com a máscara.
O acolhimento e a confidência das freiras remetem à primeira cena da ―Segunda
Parte‖ da peça em que prostitutas conversam com a filha de Carolina. Também meretrizes
fingem e ocultam sua verdadeira identidade, estão à margem da sociedade e não preservam
as normas. Com aparência chamativa, seduzem, mas escondem sua identidade. Atraem
como animais vistosos suas presas e, mestres do engodo, iludem, fazem uso do poder
subversor do simulacro. Entretanto, ainda assim submetem-se a um homem e dividem com
ele seus ganhos. Apesar de haver tanto entre as prostitutas quanto entre as freiras, certo
mal-estar como se disputassem a primazia do bem-querer de Carlota, as mulheres são
acolhedoras, parecem reconhecer na moça um semelhante. Todavia, Carlota não pode
pertencer a esses grupos, nenhum deles é livre como ela, nenhum deseja a infração. A
relação entre os dois grupos considerados antagônicos é um meio de propor uma revisão de
ideias estigmatizadas. Sugere-se que se deve ver além das aparências e títulos,
ultrapassando preconceitos.
Prostitutas e freiras assemelham-se pela irreverência e aparente resignação. O
episódio no ―Beco das Atafonas‖, reitera a visão revolucionária diante da pobreza e
desigualdade: ―Este mundo é uma miséria... [diz Betinha, uma das meretrizes] ninguém
quer saber de ninguém... e p‘rá gente não morrer de fome... somos condenadas a morrer de
vergonha...‖ (Gomes, p. 47) O paralelo freiras / prostitutas equiparando os tipos e insinua
que estes se aproximam enquanto alegoria dos desejos humanos, na essência são seres
semelhantes.. Tanto o convento quanto a prostituição afiguram modos de evasão de
problemas. Esta acolhe mulheres famintas; aquele, mulheres sedentas de paz. Trata-se,
portanto, de duas formas de marginalização. A reverência cega a um grupo é colocada em
xeque. Gama deixa claro que a culpa leva à vida religiosa: ―ainda nem sabemos qual foi o
pecado que a trouxe até nós!‖ (Gomes, p. 83). Carlota recusa a prostituição, porque esta
impõe a submissão ao homem; elege o convento como lugar de isolamento e proteção.
O desejo de autopunição é aventado na cena em que as irmãs vão encontrá-la na
―Sala de torturas‖ à busca de castigos. Entretanto, todas as evidências em Carlota devem ser
vistas como estratégias de camuflagem. No convento, ela pode desvencilhar-se da presença
angustiante de Gregório, prova de que poderia ter seguido com Manuel sem medo de
183
repreensões e com recursos próprios para manter sua posição altiva, de ―dona‖ da situação.
Além disso, distancia-se de Rosa e sua insistência no casamento e de Augusto com sua
proposta de inserção social. Não parece, portanto, buscar castigo ou penitência, mas abrigo
para suas convicções.
Em Um estudo autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade leiga e outros
trabalhos, Freud estuda os motivos que geram o desejo de isolamento. O caso de Carlota
parece elucidar as hipóteses levantadas pelo Pai da Psicanálise acerca da ansiedade e
inibição. Para o estudioso austríaco, inibições cumprem diferentes funções, entre as quais
estão a autopunição ou a autodefesa. Uma tremenda supressão de afeto faz com que o ego
se desequilibre. Como não existe proteção contra estímulos internos, o indivíduo
desagrega-se do grupo em busca de proteger-se contra novos traumas ou situações de
perigo.
A vida de Carlota é trágica, perde o pai ainda bebê, o amante provedor morre, o
namorado foge e sua mãe falece mais tarde. Resta-lhe fortalecer seu eu e autodefender-se.
Desviando-se do toque e do contato físico, ela remove a possibilidade de expor-se à perda
da própria identidade. Para evitar a repressão e ludibriar a opinião pública, ela cria um meio
de manter seu próprio ego, mostrando uma máscara de mulher especialmente conscienciosa
e crente, o que agrada à opinião pública.
Nesse sentido, autoprotege-se, cria resistência a qualquer situação que remeta às
perdas iniciais. Além disso, guarda um segredo, seu desejo por Manuel e toda a infração
que ele representa. Manter um segredo fortalece, torna a pessoa menos manipulável e
conserva-se às custas da dissimulação. Há astúcia nas atitudes de Carlota, a mentira exige
invenção e memória. A moça transfigura-se, não é mais a personagem frágil e crédula de
Camilo, é responsável por autodeterminar-se.
O amor da protagonista por Manuel configura-se um meio de autopreservação:
―Deus é testemunha de que te amo mais que a tudo na vida … se não fosses tu … eu não sei
se teria aguentado tanto tempo …‖(Gomes, p. 26) O convívio com o moço confere-lhe a
autonomia de que necessita, daí a importância do rapaz. Ele consiste em um meio de
preservar sua identidade e de não sucumbir às convenções. Nessa hipótese, ela não teria
arrependimento, nem remorso, mas pretextaria tê-los para preservar-se. Além disso, ao
suscitar a compaixão, exerce domínio sobre o outro, atitude que lhe é peculiar.
184
Em uma sociedade atrasada e crédula, ―mau é ser ‗não-moral‘ (imoral), praticar uma
imoralidade, resistir à tradição, por mais radical ou absurda que possa ser.‖ (Nietzsche,
2006, p. 83). Carlota deve preservar, portanto, a aparência de moralidade e tornar-se
agradável à opinião pública. Essa atitude decorre da compreensão de que as relações
humanas dão segurança ao indivíduo e a simpatia do outro gera a sensação de conforto.
Entretanto, viver uma mentira é um fardo muito pesado, e não poder desvencilhar-se dele é
um grande problema.
Manuel contraria a visão crédula dominante e deixa claro não ter sido enviado por
Deus a Leonor, mas apenas estar por coincidência no mesmo local que ele. Ele é diferente
dos outros, tem ideais revolucionários, contesta as convenções. Este espírito é o único,
naquele meio, capaz de compreender a irreverência de Carlota. Sem ele, ela não tem um par
e pode sucumbir. O duplo fortalece pela identificação e pela comunhão de ideias. Aqui,
ver-se no outro não despersonaliza pela percepção de que não se é único, mas fortifica pela
consciência de não estar só.Ela teria de lutar contra uma força estável e muito maior que a
dela.
De origem humilde, inserida em um meio repleto de crendices e superstições, filha
de uma engomadeira, ela ousa pensar diferente do ponto de vista dominante: a religiosidade
supersticiosa e o apreço ao casamento. Onde os demais buscam uma crença, ela, como
Manuel, questiona ou desilude-se.
O pai natal não existe … o paizinho não vai voltar … as dívidas aumentam … e
Deus dorme … [...]
Não podemos ficar mais tempo à espera, a ver o que é que acontece amanhã, ou
no outro dia, ou no outro …
O sr. Inácio Botelho … a mãezinha está sempre a dizer que ele é muito boa
pessoa …
[...]
Podia pedir-lhe um aumento de ordenado …(Gomes, p. 10 e 11)
Ela, como seu duplo, parece perceber ou intuir que as normas fundamentam-se na
crença de pessoas dependentes e submissas. Daí, a sociedade valorizar a submissão.
―Chama-se ‗bom caráter‘ numa criança a manifestação de sua subordinação progressiva.‖
(Nietzsche, 2006, p. 167) Por oposição, a conduta insubordinada é considerada amoral ou
imoral, passível de condenação e punição.
A educação aliada à fé trabalha para tornar o homem submisso e dependente,
Carlota, no entanto, não recebeu educação convencional, é criada e sustentada por uma
185
mulher sozinha, fácil de ser compreendida em suas intenções e estratégias de manipulação.
Também a mãe finge e ilude. Entretanto, é crédula. Astuta, a filha percebe que a crença na
providência divina enfraquece a autodeterminação. Interessante notar que o nome da mãe e
da filha é o mesmo, com sufixos diferentes. Carlota ou Carolina são o feminino de Carlos e
significam ―viril, varonil‖ (Guérios, 1994, p. 108). Essa escolha já aponta para o duplo, já
que a filha reflete a posição social da mãe – engomadeira – e ocupa seu lugar.
Embora a protagonista não tenha acesso à erudição, ela não recebe restrições do
universo masculino em sua educação. Permanece, por isso, com sua vontade de conhecer e
de ultrapassar barreiras. O fundamento da subordinação coloca-se pela fé na autoridade
absoluta, algo de sobre-humano, geralmente associado ao patriarca. Carlota não pode
acreditar nesse ser, pois o que de mais próximo poderia provar essa existência seria a figura
paterna, mas ela não a conheceu, foi abandonada.
Sua crença é abalada pelo abandono. A religião poderia trazer-lhe paz e confiança,
mas ela perdeu suas ilusões (―Deus dorme‖ p. 10). A fé amalgama opiniões e ratifica
convicções, tornando-as poderosas, mas Carlota desvencilha-se dessa corrente pela
desilusão.
Ser filha da engomadeira significa não ser filha de Eduardo, desprezar a
paternidade, e, com ela, toda a cosmovisão de uma sociedade patriarcal. ―Das paixões
nascem as opiniões:a preguiça de espírito as faz cristalizar em convicções.‖ Carlota
concebe diferentes motivos de paixão: o abandono do pai, a corrupção moral em prol de
sustentar a família, a rejeição do amante. Desse sofrimento, decorre a derrubada de crenças
e a geração de nova mundividência, contrária à convencional.
Para Carlota permanecer na busca pela verdade, na recusa às convicções
cristalizadas, ela precisa de um par, um duplo, alguém com que se identifique, como
Manuel, o revolucionário. Essa hipótese se confirma pela maneira com que ela o recebe no
convento:
CARLOTA
Foi o destino … mas também estava escrito que tu havias de voltar, Manuel …
MANUEL
Para te ouvir dizer … ―perdoo-te‖; … só assim poderei encontrar a felicidade.
CARLOTA
Se tu dizes que só assim poderemos ser felizes, então eu … eu perdoo-te.
186
Seremos felizes … para sempre!
MANUEL
És … realmente feliz, Carlota?!
CARLOTA
Não posso ser mais feliz!
MANUEL
Fico muito contente … por ti … e por mim.
CARLOTA
Temos muito que agradecer a Deus, Manuel. (Gomes, p. 89)
A euforia de Carlota diante do amante revela como ela permanece apaixonada por
ele. Assim, sua fuga da casa de Gregório não pode associar-se ao receio de ficar com
Augusto, mas à evasão da companhia daquele grupo. Entretanto, ao deparar-se com o
amante prestes a sucumbir à sociedade pelo casamento, sente-se sozinha e abandonada.
Percebe que não pode viver a verdade, nem permanecer com as máscaras. Nesse impasse,
suicida-se. A morte é um meio de alertar para o fim trágico dos que se recusam a obedecer
às normas.
Contudo, mesmo após a morte, ela mantém a máscara, pois não deixa sugestões de
que seu ato se relaciona ao abandono de Manuel. A inserção da carta redigida pela
personagem camiliana a Augusto como confissão de um sentimento que, no intertexto, não
existe é a prova cabal da dissimulação e fingimento de Carlota. Aqui o texto transfigura o
paradigma, sem alterá-lo, novamente pela descontextualização transforma-lhe os
significados.
Nessa esteira, inverte-se o conceito de tragédia. Enquanto esta busca representar o
mundo moral e estimular o espectador a fortalecer-se diante dos impulsos do instinto, a
peça gomesiana associa o trágico à resignação e ao prevalecer da ignorância. Em um
universo repleto de convicções cristalizadas, Carlota não tem espaço e resta extinguir-se
para não sucumbir. Assim, ela é dona de seu destino quando opta pela morte. Por outro
lado, sua irreverência perde-se com a morte. Ao revelar a tragicidade da vida de Carlota,
Gomes propõe a defesa da irreverência. A dor decorre da inadequação aos padrões
estabelecidos, da audácia de uma mulher querer afrontar as convenções e relacionar-se com
um homem a quem pode dominar. Desfaz-se, assim, o moralismo da tragédia. Propõe-se a
transgressão como possibilidade de criarem-se espíritos livres. Não há intenção de castigar.
187
A benevolência com os infelizes adquire um novo significado, trata-se de julgar o
transgressor como uma vítima e não como um infrator. O suicídio não é, por isso, um
delito, mas um ato desesperado por liberdade.
Corrobora esta tese a acepção de ―mulher perdida‖ veiculada em alguns trechos:
Eu já sei que de hoje em diante sou entre as mulheres perdidas a mais desgraçada
de todas. (Gomes, p. 31, 42)
D. ROSA
Pobre mulher! …É uma mulher … perdida!
MENDIGOS
Quem vir uma mulher perdida
Que nunca a trate com desdém.
Eu vos lembro que Deus castiga!
Sem dizer quando nem a quem!
Todos devemos ter compaixão
Da mulher desprezada, chorosa!
Antes de cair na perdição,
ela também foi virtuosa!
(Gomes, p. 60)
Fui uma mulher perdida, mas Deus, deu-me o mais que podem ter
mulheres como eu … o amor do menino que eu ajudei a criar … (Gomes, p. 91)
Carlota considera-se e é julgada como uma ―mulher perdida‖, entretanto, o coro
sugere o respeito e a compaixão por esse tipo de pessoa. Esse alerta parece uma sugestão
sutil e, portanto, irônica, de que a ―perdição‖ nem sempre é motivo de descaso e deve, por
isso, ser levada em consideração. Os conceitos cristalizados são novamente revisitados e
desmontados.
O coro final interrompe o pasmo do leitor / espectador e ativa-lhe o senso crítico:
―Ninguém sabe quando nasce / P‘ro que nasce uma pessoa.‖ (Gomes, p. 92), sugerindo que
o destino pode ser traçado pelo próprio indivíduo.
Sem o desvencilhar-se de ideias preconcebidas como o ―fado‖, não se tem
consciência da própria força, não se ultrapassam barreiras, concepções antiquadas e seus
representantes. Não se evolui. Ousadia gera progresso, instrução, perseverança no
raciocínio.
Como uma sombra, o que não se liberta de tabus e crenças, vive sem
individualidade, sem expressão, é plano, vazio.
188
Pelo suicídio, Carlota tece o próprio destino. A ideia de fado, tão evidente e
enfatizada, parece esvaziar-se e o aforismo ―O futuro está em suas mãos‖ (Gomes, p. 77)
passa a prevalecer. Não há um destino imposto por uma força mística, mas o livre-arbítrio.
Gomes constrói um drama e não uma tragédia.
Ainda mais relevante é notar que a valorização do fingimento, da mentira como
meio de autodeterminação é, em última instância, a valorização da própria ficção que
subverte a verdade e a recria. Para isso, concorrem as citações do paradigma, o uso do
metateatro, com a quebra da quarta parede. (Gomes, p. 6, 7, 8, 58, 66) Trata-se de uma
literatura autoconsciente, em que as personagens mostram a ilusão pari passu à realidade.
Todas têm consciência de sua própria teatralidade. Essa postura pode ser uma sugestão de
que também o leitor / espectador deva repensar os acontecimentos, como se tivessem sido
planejados e não apenas acidentalmente ocorridos. Ser ou não ser torna-se chave para o
desvendar de intencionalidades e convicções a fim de não deixá-las cristalizar.
189
RESTA RIR
Os conflitos do romântico refletem-se no homem contemporâneo, já que se inserem
em um mundo que não conseguem compreender. Aquele discorda de seu meio, este vive
em um lugar em constante transição, tanto um como outro colocam sua identidade em
xeque e procuram espelhos em busca de identificar-se e individuar-se. A ironia está em que
o outro, quando reflete as características do eu, não só lhe dá uma identidade, como
também sugere que esta não é única e individual, o que gera a despersonalização.
Camilo e seus heróis vivem no mesmo universo dramático, de cores intensas, ao
mesmo tempo sublime e sórdido. O ideal dum programa imaginário e a realidade
duma experiência vivida encontram-se unidos e indissociáveis [...] [Assim] pôde
edificar a expressão dum drama que era bem um drama nacional. (França, 1993,
p.285)
Além das condições históricas, o romântico vive um dilema ideológico. Partindo da
concepção de que o processo da evolução cósmica parte da ―união mística‖, o homem da
época concebe a existência separada como um mal, já que é mero reflexo do Todo. Cada
indivíduo traz em si um gérmen da unidade perdida, o que o torna ambiguamente um
princípio de individuação e de separação. Do mesmo modo, toda criatura é apenas reflexo
da realidade sublime de completude. Nesse sentido, somente a morte ou o Amor podem
reunir os indivíduos. Inicia-se, pois, a busca pela segunda criatura que possa acabar com o
isolamento do eu.
Contudo só é possível encontrar-se no outro quando as aparências, efêmeras e
enganosas, são rechaçadas. Despojado de aspectos materiais, o indivíduo deixa entrever seu
eu verdadeiro, sua identidade original. Daí o desprezo do romântico pela materialização do
mundo burguês.
Considerada neste aspecto, a existência imediata apresenta-se como um sistema
de relações necessárias entre indivíduos e forças na aparência independentes no
qual cada elemento ou é utilizado como meio ao serviço de fins que lhe são
estranhos ou carece ele próprio do que lhe é exterior para o utilizar como meio.
(Hegel, 1993, p. 90)
190
O exterior é finito e particular, levado em consideração, suscita paixões estéreis que
desfiguram o ser tal como era originalmente, os traços mais profundos do espírito, livres e
infinitos. O dilema consiste em transpor a finitude da existência para a conquista da
liberdade genuína.
A contemporaneidade traz negações às antigas certezas. Não é possível resgatar a
vitalidade e a simbologia do passado. A identidade do presente compromete-se pelo prefixo
―pós‖, o qual não só sugere o esgotamento potencial de um tempo, como o esvaziamento do
potencial criativo e racional já que não constrói, apenas restaura, recompõe com cinismo e
desencantamento. Insinua a sensação de fadiga, crise de sentido ético e existencial.
Não se trata de mera nostalgia ou conservadorismo, mas de revelar em que medida
as transformações estruturais deslocaram valores, propuseram uma inovação contínua que
gera mal-estar e grave crise cultural.
As concepções de sujeito, relacionadas ao racionalismo e ao empirismo, tornam-se
insuficientes, não abarcam a subjetividade do indivíduo, a qual cresce e deve ser
problematizada. A posição do Homem no universo não é mais central, organizada e
hierarquizada desde a revolução científica do século XVIII que trouxe a noção da infinitude
do Cosmo.
Os fundamentos para a teoria e para a práxis, antes concretos e organizados, agora
se esfacelam. O indivíduo torna-se mero reflexo da exterioridade e, como tal, deve ser
construído, assim como o conhecimento científico.
Para acentuar a sensação de dilaceração do ―eu‖, as Guerras Mundiais evidenciaram
a quebra da relação entre razão científica e emancipação da humanidade, demolindo a
ideologia do progresso global como alicerce da modernidade. As atrocidades decorrentes
das guerras apresentaram como a razão pode voltar-se contra a humanidade, revelando o
prejuízo da aparente prosperidade científica.
Dessa desilusão, nascem o cinismo, o tédio e uma nova sensibilidade para o
questionamento das verdades instituídas e para a reavaliação do passado. Entretanto, em
meio ao ceticismo, é necessário criar novas técnicas para essa análise e para o incentivo ao
abandono da inércia, da resignação diante da tirania dos fatos. A indiferença, o
individualismo destrutivo devem ser desafiados e colocados em xeque.
O pessimismo, a banalidade, a subjetividade narcísica devem ser derrocados. A
191
alteridade, a diferença, a investigação ontológica devem ser estimuladas. a estratégia
utilizada por Fernando Gomes para desentorpecer, minar o ceticismo e estimular a criação é
o humor. Pela astúcia, manifesta não mero cinismo cético, mas a alegria que a vida pode ter
quando valorizada em seus aspectos mais simples e divertidos.
Nesse sentido, o cômico é, em Gomes, um convite para um novo olhar para a
interação. Para isso, alguns recursos linguísticos são fundamentais. Os alogismos sugerem
o desmascaramento do que é estúpido e está encoberto. Evidencia-se, dessa forma, a
ignorância como fonte do cômico. A oposição entre argúcia de um e a estupidez do outro
gera o riso saudável, sem arrogância, nem prepotência, mas simpático. A ignorância muitas
vezes revela bondade, benevolência.
Os recursos linguísticos de que se vale Gomes associam-se ao caráter popular de
suas personagens. Os trocadilhos revelam a agudeza do dramaturgo, sua capacidade de
explorar a polissemia e a paronomásia.
Pela ironia, o autor torna seu público cúmplice de suas ideias. Riem com ele os que
o compreendem. A ironia tem destinatário e um alvo, por isso cria comunidades capazes de
perceber seus significados. É uma modalidade reflexiva, suscita uma atitude intelectual, já
que pressupõe a consciência entre o dito e o não dito e a capacidade de representar a
realidade de maneira figurada e literal. Além disso, a comunidade de fala deve compartilhar
pressupostos, crenças, valores. Há, portanto, necessidade de um contexto discursivo
compartilhado.
Gomes, por compreender a ideologia de seu espectador, dialoga com textos que
enformam sua cultura a fim de despertar-lhe o interesse e a reflexão. Pela ironia, os
interpretadores tornam-se agentes, não recebem passivamente o enunciado.
Também a chamada ironia romântica e a metalinguagem são recursos úteis às peças
gomesianas.
[...] a ironia romântica [...] abarca dois planos da manifestação literária [...]. Um
envolve a reformulação do fazer literário e o questionar desse fazer. [...] Outro
pressupõe a reformulação do conceito de ‗inspiração‘ [...] De sopro divino, de
móbil de certo modo exterior ao poeta, a inspiração internando-se, torna-se sopro
vital por obra do tão apregoado centrar do eu. [...] a arte passa a ser uma ‗forma
pública de auto-análise‘. [...]
A ironia como autocrítica tende a estabelecer o equilíbrio no excesso de
convicção, é tensão primordial no dizer que afirma negando. (Ferraz, 1987, p. 39)
Esse é um recurso especialmente eficaz para promover o desentorpecimento porque
desilude, apresenta a diferença entre realidade e ficção.
192
Considerando que ironia vem de dissimulação, a intertextualidade é, em última
instância, um recurso irônico já que sugere ideias indiretamente (Hutcheon, 2000, p. 207).
Somente pela leitura e interpretação do paradigma alguns significados tornam-se concretos.
Com base nesse pressuposto, o contexto textual camiliano antecipa características do
comportamento humano e social de maneira que serão retomadas e revisitadas por Gomes.
Também a escolha do tipo e do nome das personagens é um recurso irônico ou
humorístico. As personagens criadas por Gomes recebem apelidos que enfatizam defeitos
físicos ou sua condição social. Gimbrinhas, por exemplo, é usado em dialeto local para
referir-se ao indivíduo fraco, insignificante.
Povoam o universo gomesiano personagens grotescas, diversas do que é
considerado e aceito como ―normal‖. Cegos, fanhosos, anões, corcundas, ou até mesmo um
cego surdo-mudo ou um cego corcunda abundam nas peças, trazendo o riso e a
irreverência. Fazem parte desse universo seres considerados sublimes, pois são retratados
comicamente. As freiras de A vida trágica de Carlota, a filha da engomadeira, por
exemplo, equiparam-se a prostitutas e são alcunhadas com base em seus pecados.
O reaproveitamento de ditados populares e a distorção de alguns deles dá novo
colorido à ideologia de pessoas simples, além de sugerir a revisão de ideias cristalizadas.
Interessante notar que o recurso foi utilizado por Saramago, em Ensaio sobre a cegueira
como sugestão de que a alteração da concepção de mundo das pessoas cegas reflete-se na
sabedoria popular, modificando os provérbios.
Em um mundo em que a violência oprime e as modificações tecnológicas
despersonalizam, é necessário encontrar um meio de exorcizar e desmitificar os grandes
fantasmas. Em um universo onde prevalece uma visão passadista e acomodada, é
necessário estimular o movimento.
O riso torna-se ferramenta para a reorganização das concepções ultrapassadas, dos
medos, dos entraves para o progresso intelectual. Tem, portanto, conotação psicológica e
social.
O humor revela-se, em Fernando Gomes, como aptidão, inclinação para re-
elaboração dos dados mais prosaicos da realidade, evidenciando o que há de lúdico e deve
ser valorizado. Dessa forma, desentorpece-se o olhar, regeneram-se as forças reprimidas,
promove-se a renovação.
193
O nonsense toma o lugar do cinismo, renova o humor espirituoso do Romantismo,
sem afetação, irreverentemente. Olhar a realidade de forma bem-humorada, jovial, encanta,
é um convite para a re-interpretação da vida. A sagacidade coloca-se a serviço da
dessacralização e desmitificação de certa maneira receosa de ver a realidade. O cômico
suscita cumplicidade e elimina terrores.
Não se trata de hedonismo, nem de otimismo infundado, mas de um tônico
regenerador das forças reprimidas. Promove-se uma reorganização mental, uma revisão de
como se deve olhar o mundo para eliminar a depressão que causa a inércia. Não apenas se
elege o grotesco como motivo de riso, como também nasce a necessidade de reformar as
concepções vigentes que estimulam o atraso pessoal e social.
O humor negro presta-se, então, a problematizar os motivos de medo. A linguagem
obscena popular promove o diálogo, a identificação do povo e sua participação, possibilita
maior interação. Possibilita que a ―arraia miúda‖ construa a história. Daí a importância dos
narradores e das personagens populares, as cenas são construídas e comentadas com base
em princípios diferentes dos socialmente instituídos.
Gomes parece mostrar como se pode reaprender a rir de forma alegre e
descontraída. O dramaturgo parece criar lentes que dão coloridos às cenas cotidianas e
fazem rejeitar o previsível. A credulidade é ridicularizada e o senso crítico valorizado.
Contribuem para isso o paralelo estabelecido entre grupos tradicionalmente considerados
antitéticos, como freiras e prostitutas.
A redundância, a estabilização, o conhecido entorpecem, geram a inércia que deve
ser suspensa e obstada. O obstáculo, entretanto, impede o movimento, ainda que
temporariamente e é necessário promover a ação. Nesse sentido, o humor é valioso, pois
desperta, estimula o movimento em outra velocidade ou direção.
O previsível dá origem à inação, ao acomodamento e, por extensão, a uma postura
acrítica, sem criatividade, apática. Diante da impassibilidade da massa, os que a
representam ganham poder de manipulação, além de autonomia para direcionar o povo sem
entraves.
No âmbito individual, da resignação decorre o retrocesso, a falta de progressão. O
resignado não evolui, nem mesmo em autoconhecimento. Iludido, não tem sonhos, não cria,
submete-se à rotina e ao cotidiano, sem conquistas, nem autoconfiança.
194
O humor mobiliza, ventila e ilumina consciências empoeiradas, ideias armazenadas
no sótão a fim de que elas sejam renovadas. Nessa esteira, o chiste romântico é ferramenta
para o projeto de recuperação da totalidade perdida. Conciliar a consciência racional à
criativa pelo dito espirituoso é um meio de reunir o lado humano ao espiritual, sublime, o
Todo. A capacidade de elaborar o chiste revela qualidades de um sujeito hábil, criativo e
crítico que se dirige a seus pares, estimulando-os e provocando-os.
Em Gomes, o cômico oscila entre o nonsense e o humor negro. O trocadilho
recupera o chiste e corrobora o propósito de despertar entorpecidos. Promover a crítica é
estimular o indivíduo a reordenar sua visão de mundo e a si mesmo, tornar consciente o que
jazia no inconsciente. O dito espirituoso promove a reflexão e põe em movimento tudo o
que há no eu, sua razão e fantasia, reunindo o eu inteligível ao eu empírico.
A força encantatória da literatura amplia-se pelo humor já que este incentiva a
participação, a cumplicidade. Pela força da palavra plurissignificativa, o espírito toma
forma, concretiza-se.
―O trabalho da ‗crítica genuína‘ é despertar o gênio próprio de cada um, mas isso
implica, paradoxalmente, entender sobretudo o gênio dos outros.‖ (Suzuki, 1998. p. 216).
Assim, o literato que movimenta pela crítica bem-humorada é o que, antes de tudo, conhece
a alma humana e pretende despertá-la.
O cômico, então, acaba gerando a reflexão filosófica, ontológica, incentiva o exame
do sujeito, do ser. Nesse sentido, o diálogo intertextual colabora como duplo. Eleger
Camilo, reconhecido intérprete da alma humana e do povo português e reavivar seu texto
promove um questionamento em torno de ―Quem sou eu?‖, já que o encontro com o duplo
gera autoconsciência.
Reconhecer a diferença entre o paradigma e o intertexto promove a capacidade de
perceber os vários pontos de vista sobre um tema.A simultaneidade de cenas, ou as cenas
que são narradas por várias personagens diferentes – a multivocalização – são uma sugestão
de que o mesmo episódio pode ser visto de vários ângulos.
Revisitar o texto camiliano e acrescentar cores ao que parecia desbotado pode ser
um meio de reavaliação do ser humano enquanto fragmento de uma realidade. Refletido no
texto, o homem se revê, reconhece-se e amplia-se. O comum e conhecido adquire aspecto
195
misterioso, intenso, mítico. Dessa forma, o sujeito se encontra. A arte eleva o homem por
representar seus anseios e potencializá-los.
A consciência que cada um tem de si e dos objetos que o cercam realiza-se e
concretiza-se no texto. Enquanto diálogo, a intertextualidade possibilita a organização do
ser, a exploração da densidade da vida que se recria e se renova. Idealismo e realismo
unificam-se, o caráter ideal, ideológico, original, transcendental e eterno do pensamento
humano presentifica-se, realiza-se no objeto - texto – tornando-se real.
O texto proporciona o encontro entre o que há de transcendental e de concreto no
homem, por ele, o homem observa-se e compreende-se. ―A individualidade construída pelo
romancista [ e pelo literato, em geral] não é uma pálida imagem do criador, mas a coesão
orgânica interna de um caráter plural.‖ (Suzuki, 1998, p. 114). O texto torna-se a efetivação
de um saber transcendental e, por siso, a cada escritura novos conhecimentos são revelados.
A importância da decodificação de conceitos gera o dialogismo e a participação
efetiva do leitor / espectador. Frente ao desconhecido, devem-se procurar alternativas de
autogerenciamento. O duplo – mesmo outro texto - é um meio de conquistar o
autoconhecimento. Diante da acomodação, é necessário movimento, resta, portanto, rir e
fazer rir.
196
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1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
O riso em movimento
Maura Böttcher Curvello
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura
Portuguesa do Departamento de
Letras Clássicas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São
Paulo, para a obtenção do título de
Doutor em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Flavia Maria Corradin
São Paulo
Vol. II
2011
2
SUMÁRIO
Maria, não me mates que sou tua mãe!
Amor (também) de perdição
O sangue
A vida trágica de Carlota, a filha da engomadeira
3
Observação
Este volume apresenta, com a autorização do autor, os textos de Fernando Gomes.
A formatação e a enumeração correspondem aos arquivos originais, enviados pelo
dramaturgo.
1
MARIA!
NÃO ME MATES QUE SOU TUA MÃE! Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa:
Uma filha que mata e despedaça a sua mãe!
Mandada imprimir por um mendigo, que foi lançado fora do seu convento, e anda pedindo
esmola pelas portas
Oferecida aos pais de família e àqueles que acreditam em Deus
1848
De Camilo Castelo Branco
Versão de FERNANDO GOMES
2
Pais de Famílias!
Atendei!
E vereis o maior de quantos crimes se tem visto no mundo!
Vereis uma filha matar a sua mãe, porque esta lhe não deixava fazer o quanto
desejava.
Matricídio!
Vereis como essa filha corta a cabeça de sua mãe, e os braços, e as pernas,
E vai pôr cada pedaço de corpo de sua mãe em diferentes lugares.
Misericórdia!
Para que ninguém conhecesse o cadáver da morta, nem a mão que a matara e
despedaçara.
Atendei!
E vereis como a matadora de sua mãe, de sua mãe ó pais de famílias, de sua mãe, que
a trouxera nas entranhas, que lhe dera o alimento dos seus peitos, que a criara ao seu
lado com beijos e afagos, que tirara o pão da sua boca para o dar a sua filha, que fora
talvez pedir uma esmola para que a sua filha não tivesse fome, e no desse seu corpo
em troca de um bocado de pão!
Vereis como esta filha sem alma
Sem medo de Deus
Sem temor das penas do inferno
Descoberta como matadora de sua mãe, por um milagre, pela providência de Deus!
Deus seja louvado!
Vereis aquela mulher com alma de tigre comer com toda a vontade e contentamento,
ao pé da cabeça ensanguentada de sua mãe, e responder quando lhe perguntam se
aquela a cabeça de sua mãe.
Sim. Essa é a cabeça de minha mãe.
Misericórdia!
Pais de famílias!
Vamos contar-vos o mais triste e espantoso acontecimento que viu o mundo, e que
talvez não torne a ver. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo permita que possamos levar a
compaixão aos vossos corações.
3
A FAMÍLIA
NARRADOR
Na travessa das Freiras, nº 17 vivia um homem chamado Agostinho José, casado com
Matilde do Rosário da Luz; tinham duas filhas.
Agostinho José era quem sustentava a família, com o suor do seu rosto, enquanto sua
esposa Matilde tratava da lide doméstica, no que era ajudada pelas suas filhas: Maria
do Céu e Maria José.
Agostinho era um bom homem, que tratava a mulher com boas maneiras e tinha uma
extrema adoração pelas filhas.
As filhas, retribuíam o amor dos pais. Aquela família dava constantemente graças a
Deus por tamanha felicidade.
Eram pobres... talvez; mas muito honrados. E a honradez era a riqueza e o orgulho
daquela gente.
Tanta felicidade nem parecia deste mundo; comovia até às lágrimas. Das bocas
daquela família, só se ouviam palavras boas, palavras de amor e era até normal, que
pelo menos duas vezes por dia, perante a pobreza que as rodeava, elas se
confortassem comentando:
ELAS
Quem nada tem, com pouco se contenta.
NARRADOR
E nunca se cansavam de agradecer a Deus tanta riqueza!
AGOSTINHO CHEGA A CASA PARA JANTAR
Matilde e as filhas estão à mesa.
MATILDE
Já deram as 8 badaladas.
MARIA
O paizinho hoje demora a chegar!
CÉU
Estou tão preocupada!
MATILDE
Não é costume ele chegar tão tarde! Rezemos! Rezemos minhas filhas.
Iniciam uma ladainha.
MATILDE
Nossa Senhora da Saúde: dai-lhe forças.
Recomeçam a ladainha.
4
MATILDE
Senhor dos Passos: indicai-lhe o caminho.
Retomam a ladainha.
MATILDE
Virgem Maria!
(ouve-se bater)
Abre a porta.
Entra o pai, vergado pelo cansaço.
MARIA
Paizinho!
AGOSTINHO
Deus seja louvado!
MATILDE
Agostinho!
CÉU
Paizinho!
AGOSTINHO
Minhas queridas filhinhas!
MATILDE
Estava tão preocupada com a tua demora!
CÉU
Que aconteceu?
MARIA
Conte-nos o que aconteceu, paizinho!
AGOSTINHO
Não quero que se preocupem comigo!
MARIA
A casa limpa, o jantar feito, a mesa posta... e o paizinho que não havia meio de
chegar.
CÉU
Foi então que começamos a rezar à Senhora da Saúde.
MARIA
E ao Senhor dos Passos.
MATILDE
E já íamos começar a rezar à Virgem Maria quando tu chegaste.
AGOSTINHO
Deus seja louvado!
MARIA
A mana já tinha dito que se acontecesse alguma coisa ao paizinho, ia para freira!
5
AGOSTINHO
Minha querida Maria do Céu!
MATILDE
Rica filha! E tu, Maria, que fazias se o teu paizinho fosse ter com Deus?
MARIA
Eu?... Eu ia pedir esmola... corria as ruas de Lisboa a pedir esmola por amor de meu
pai.... até que os pés me sangrassem, a dor fosse insuportável, mas enquanto Deus
me desse voz para pedir, eu pedia, e havia de juntar, migalha a migalha, o bastante
para lhe mandarmos rezar muitas missas, muitas missas, paizinho!
MATILDE
Deus seja louvado!
AGOSTINHO
E tu, Matilde, que iria ser de ti se eu te deixasse?
MATILDE
Havia de vestir-me de negro e fechar-me nestas quatro paredes, sem comer, sem
beber, até a morte me vir buscar para junto de ti. E deixava crescer os cabelos!
AGOSTINHO
Os teus lindos cabelos!
MATILDE
Não os penteava! Deixava-os crescer como Deus quisesse, e uma vez por outra ia até
à janela, para que a vizinhança fosse testemunho da minha dor!
AGOSTINHO
Havias de causar muita pena e muito dó a quem te visse!
MATILDE
E que me importava, se tu tinhas partido para sempre?! O povo, ao passar, até podia
dizer horrorizado: Está ali um belizomem! Está ali um belizomem!
AGOSTINHO
Lobisomem!
MATILDE
Sim... um belizomem!
AGOSTINHO
A falta que eu faço nesta casa!
CÉU
Agora que o paizinho chegou...
MARIA
Podemos começar a comer.
MATILDE
Já deve estar tudo frio!
AGOSTINHO
E a culpa minha! Mas hoje, lá na pedreira...
MARIA
Havia muito cascalho para partir?
6
AGOSTINHO
Bem... cada um tem a sua pedra. Para partir e transformar em cascalho. Ainda
faltavam 15 minutos para a hora da saída e já a minha pedra estava toda desfeita.
CÉU
A fazer cascalho o paizinho o melhor, não é?
AGOSTINHO
Sem vaidades! Deus deu-me jeito para aquilo! Mas então é que reparei que a pedra do
Zé Coxo era muito maior que a minha. Sabes que ele aqui há tempos teve de fazer
uma operação aos rins - tinha pedra!
FILHAS
Coitado!
MATILDE
Mas também não admira, com a profissão que tem!
AGOSTINHO
Mas a operação não valeu de nada. E então eu olho para ele e vejo-o a fazer um
esforço danado a querer fazer cascalho e a não dar vazão... cheio de dores mas a
disfarçar... a querer cumprir... ele sempre foi um bom operário... o cascalho para ele
não tem segredos... mas estava hoje duma maneira que até me vieram as lágrimas
aos olhos. E então fui ajudá-lo e por isso é que cheguei mais tarde.
MATILDE
Não devias trabalhar tanto, Agostinho!
AGOSTINHO
Não digas isso, Matilde! O Zé Coxo não podia chegar a casa sem o salário! O que é que
tu fazias se visses um amigo a torcer-se com dores de rins?
MATILDE
Tens razão! O que tu fizeste está certo. Eu só disse isto - não foi por mim! Deus
testemunha, mas é pelas nossas filhas, que ainda precisam de ti. Tenho receio... é
cascalho a mais.
AGOSTINHO
O trabalho nunca me cansou, Matilde!
MATILDE
Mas é cascalho a mais!
AGOSTINHO
O trabalho não me mete medo!
MATILDE
Eu sei, mas...
AGOSTINHO
Graças a Deus, tenho uma saúde de ferro!
(E cai em cima do prato)
7
MARIA
A mãezinha bem dizia que era cascalho a mais!
À PORTA DA TASCA
Um afadistado conversa com o padre.
Um bêbado segue a conversa.
FADISTA
Era um cornibaixo digo-lhe eu!
PADRE
Mas, o que é um cornibaixo?!
FADISTA
Atão! Um touro, com os cornos inclinados para baixo!
BÊBADO
Vá ofender pró seu bairro, ó janota!
PADRE
Não bebas mais, Gimbrinhas!
FADISTA
Atão o Cinco Chagas salta para a arena, o cornibaixo mesmo ali! Olha para o povo e
diz laia de osga: “Tomem viso! Aqui vai um homem testo, um gajo com ralé. Se cliso à
palma algum cornibaixo, afogueado ou almarado, endrago-lhe as batas ou noco-lhe a
noz que o estafo. É como canta!”
Pois só lhe digo que o cornibaixo avança pró Cinco Chagas cá com uma destas
velocidades! Que besta!
PADRE
E o Cinco Chagas?!
BÊBADO
Deve ter ficado que nem um Cristo!
FADISTA
O Cinco Chagas também não desarmou! Agarra-se aos cornos do cornibaixo e morde-
lhe a nuca! Que besta! Que espectáculo!
Aquilo eram duas bestas a ver quem ganhava!
BÊBADO
Três, pelo menos!
PADRE
Pára de beber, ó Gimbrinhas!
BÊBADO
Três bestas!
FADISTA
Cala-te ó bêbado, que não estavas lá!
BÊBADO
Mas estavas tu! Logo, eram três bestas!
8
FADISTA
Ai a merda!
PADRE
Isso nem parece linguagem deste século! Não vê que ele está bêbado! Nem sabe o que
diz!
BÊBADO
Isso é que sei! O touro é uma besta só por si... besta é o Cinco Chagas para se pôr à
frente dos cornos dum cornibaixo e mais besta ainda é todo aquele que vai ver estas
bestialidades! Logo, e não contando com as outras bestazinhas todas, estavam lá, pelo
menos três bestas!
(Cai na mesa)
FADISTA
É mesmo besta!
MARIA
Acudam! Acudam! Ajudem-me, por amor de Deus! O meu pai... a minha mãe... a
minha irmã... eu... chamem um médico... chamem um médico... um padre... ajudem-
me!
PADRE
Que aconteceu, minha filha?
FADISTA
Explique-se melhor!
MARIA
Estávamos todas a rezar e... de repente ele entrou e... pumba! Em cima do prato!
Ajudem-no! Ajudem-no!
Eles tentam erguer o Gimbrinhas.
MARIA
Esse já não pode fazer nada! Venham vocês ajudar-me, por amor de Deus.
Eles largam o Gimbrinhas, que cai.
MARIA
Um médico... um padre... água...
FADISTA
Foi do vinho!
MARIA
O meu paizinho não bebe! Aquilo foi do cascalho! Uh! Maldito cascalho! O cascalho que
o diabo amassou!
9
(agarra-se à toalha e tudo cai)
PADRE
Não blasfemes, Maria!
FADISTA
Que teria acontecido para a pôr neste estado?!
PADRE
Que havemos de fazer, meu Deus?!
BÊBADO
Não me pergunte coisas a que eu não sei responder!
FADISTA
É mesmo besta!
BÊBADO
Olhem só o que me fizeram ao estaminé!
FADISTA
Não entende uma!
BÊBADO
Ah não?! Pois tomem viso! Aqui vai um homem testo, um gajo com ralé. Se cliso à
palma algum pedaço de asno, endrago-lhe as batas ou noco-lhe a noz que o estafo. É
como canta!
AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE AGOSTINHO JOSÉ
MATILDE
Agostinho! Responde! Fala! Diz qualquer coisa! Ó Meu Deus! Ajuda-me a sentá-lo aqui.
Faz qualquer coisa, Maria do Céu, que eu já não sei que fazer mais!
CÉU
Paizinho! Paizinho! Sou eu, a Maria do Céu! Que hei-de fazer, mãezinha?!
MATILDE - Reza! Reza o terço! Bem alto, para Deus te poder ouvir!
Maria do Céu começa a rezar.
MATILDE
Acorda meu amor, acorda! Meu querido! Meu querido! Ó Meu Deus!
(Grita. A filha pára de rezar)
Continua a rezar! Não te quero ver assim tão quieto e calado! Mexe-te! Acorda! Diz
qualquer coisa!
(Agostinho mexe-se e tenta falar)
Sim... sim!
(para a filha)
Cala-te!
(Agostinho pára de mexer)
10
Não é contigo! Era com ela! Estava quase... continua a rezar! Mais baixo, senão não
consigo ouvi-lo! Reza para dentro! Reza para ti! Fala! Diz-me que estás vivo,
Agostinho!
AGOSTINHO
Ma... til... de.
MATILDE
Matilde... sou eu; estou aqui.
AGOSTINHO
Matilde!
MATILDE
Já ouvi... continua.
AGOSTINHO
Não dei... não dei...
MATILDE
Não! Não deste! Está descansado.
AGOSTINHO
Dei... dei...
MATILDE
Deste?! Fizeste bem; pronto, está dado, não penses agora nisso.
AGOSTINHO
Não... não... deixes cair...
MATILDE
Descansa que não cais, estás sentadinho, eu estou aqui, estás bem!
Entram MARIA JOSÉ, O PADRE, O JANOTA E O BÊBADO.
MATILDE
Já fala! Já fala!
MARIA
Já fala?!
MATILDE
Sim, não se percebe bem o que ele diz mas já fala, graças a Deus! Já fala!
BÊBADO
Ah! Sim?! E então o que é que ele diz?!
CÉU
Ainda não se consegue perceber muito bem!
BÊBADO
Se não se percebe... isso é o mesmo que não tenha dito nada!
JANOTA
Você é mesmo besta!
AGOSTINHO
Matilde!
11
(Céu e o Padre rezam; Maria olha muito de esguelha para o Janota e ele para
ela. O Bêbado pega numa garrafa que estava na mesa.)
MATILDE
Agostinho!
AGOSTINHO
Matilde! Está atenta!
MATILDE
Estou, estou! Fala! Bebo-te as palavras!
BÊBADO
E eu bebo-te o vinho!
MATILDE
(ajoelhando-se no chão e erguendo as mãos postas para o céu)
Oh! Oh! Ele vai falar!
(Ficam todos a olhar para cima espera.)
AGOSTINHO
... ilha...
MATILDE
Qual ilha?
AGOSTINHO
Ilha ... ilhas ..... filhas!
MATILDE
Filhas!
BÊBADO
Filhas, o paizinho está a chamar!
FILHAS
(correndo e abraçando o pai)
Paizinho!
AGOSTINHO
Matilde... quando não puderes trabalhar, vai pedir uma esmola... para dares às tuas
filhas um bocado de pão... mas não as deixes cair na desgraça de mundanas!
Porque eu não me poderei salvar se minhas filhas desonrarem minhas cinzas. Ali...
ali... não... ali... ali... não... ali... ali... aqui. Aqui está um pé-de-meia... para me
mandares rezar trinta missas e ali... ali... não ali... ali... aqui. Aqui está uma mala...
está cheia... cheia
(murmúrios de “cheia”)
Sou um homem honrado... isto foi ganho com o suor do meu rosto... são bónus...
bónus que o senhor Carvalhal, o meu patrão, me dava quando eu fazia... horas...
horas... extraordinárias
12
(murmúrios de “extraordinário” - “um bom patrão” - “um patrão como já não
há”)
Está cheia... cheia... é tudo para ti... Matilde.
E agora sim, posso morrer descansado!
(senta-se à mesa e volta a cair sobre o prato.)
NARRADOR
E Agostinho José, cansado pela idade e não menos pelo trabalho, entregou a alma ao
criador, deixando neste mundo uma viúva e duas filhas. Comovia até às lágrimas.
Porque das bocas daquelas almas continuavam a ouvir-se palavras boas, palavras de
amor e davam “Graças a Deus” constantemente.
ELAS
(Abrindo a mala)
Graças a Deus! (desmaiam.)
NARRADOR
E nunca se cansavam de agradecer a Deus tanta riqueza!
FILHAS
Cascalho! A mala está cheia de cascalho!
MATILDE
Quem nada tem, com pouco se contenta.
NO TRIBUNAL
VOZ
O que acabou de nos contar foi a história do Agostinho, que não vem aqui pró caso!
Mais uma perca de tempo! Tem mais alguma coisa a acrescentar?!
ZÉ COXO
Sim, quero dizer...
VOZ
Despache-se homem! Despache-se!
ZÉ COXO
Era uma família honrada!
Não tinham nada que se lhes apontasse! Não havia nódoa que se lhes pusesse...
mesmo a filha...
VOZES
Culpada! Culpada!
VOZ
Silêncio! Continue, despache-se!
ZÉ COXO
Depois da morte do pai, ainda as vi umas duas ou três vezes... depois fui para o
hospital, para ser operado.
VOZ
Já não tinha sido operado?!
ZÉ COXO
13
Sim, Sr. Dr. Juiz. Esta foi a 6ª operação. Sou muito achacado dos rins. Tenho pedra.
VOZ
Outra vez?!
ZÉ COXO
Sim... tenho pedra nos rins!
VOZ
A continuar assim, qualquer dia nem precisa de trabalhar! Monta uma pedreira por
conta própria!
(BARULHO DE CASCALHO A CAIR)
AS CARMELITAS DESCALÇAS
SÃO SEBASTIÃO canta um cântico celestial.
LUA
Irmãs... que voz!
SOL
Tanta voz!
BONDADE
Um autêntico anjinho!
LUA
Santa inocência!
SOL
É tão bonito!
LUA
Irmã Sol, uma Carmelita não pode ver essas coisas!
BONDADE
Tem razão! Uma Carmelita não pode ver essas coisas.
LUA
Flagele-se e peça perdão ao Senhor!
SOL
(Fingindo que se flagela)
Ai... ai... ai!
LUA
Se não consegue resistir tentação de olhar, faça como eu: compre uns óculos escuros!
Ou arranque os olhos!
BONDADE
Irmã Lua! Esse pecado nem parece seu!
14
LUA
Tem razão! A cegueira descontrola-me a língua! Tenho de ser punida pelas minhas
palavras. Logo noite, vou crivar a língua de pregos... ou então entalo-a na gaveta da
mesinha de cabeceira.
BONDADE
Mas, irmã Lua, não temos mesinhas de cabeceira!
SOL
Pode entalá-la a porta.
LUA
Obrigado pelo seu conselho, irmã Sol. Perdoe-me e deixe-me oferecer-lhe estes
óculos. Tome, aceite.
SOL
Que Deus lhe perdoe.
LUA
Trago sempre comigo óculos, para o que der e vier. Estou constantemente a parti-los.
Ainda ontem ao ir beijar os pés daquela imagem do Senhor que está nos claustros,
bati com o cabeça nos joelhinhos e como são de pedra, parti logo um par de óculos!
Precipitei-me! E já hoje pela manhã fui de encontro... àquela coluna que segura o
púlpito!
SOL
Partiu então outro par de óculos?
LUA
Graças a Deus, não! Caiu foi a coluna...
SOL
E o púlpito!
LUA
E a irmã Piedade que lá tinha subido para limpar o pó e mudar as flores. Felizmente já
tinha mudado as flores!
SOL
E a irmã Piedade magoou-se muito?
LUA
Não sei... eu já não vejo nada! E ninguém me tira da ideia que isto de eu ir contra as
coisas é um aviso de Deus! Não devia ir por aqueles caminhos!
(irmã Bondade tem andado de joelhos a seguir uma formiga)
BONDADE
Formiguinha, formiguinha, que andas aqui a fazer?! Pelo meio do salão, eu já te disse
que não! Alguém te pisa e podes morrer!
LUA
Tão amiga de animais!
SOL
Tão bondosa!
15
BONDADE
Por isso me chamam a irmã Bondade!
NO TRIBUNAL
VOZ
... É então a irmã? Diga o que tem a dizer sem mais delongas.
CÉU
Quando o meu paizinho morreu!
VOZ
O seu pai já não pertence aos vivos e não para aqui chamado! O que nos interessa é a
sua irmã!
VOZES
Culpada! Assassina!
VOZ
Silêncio!
CÉU
Estive com ela uma vez e ela contou-me como o conheceu. Foi depois de ter ido
para... freira.
VOZ
Não consta no processo que ela tenha ido para freira!
CÉU
Eu que fui freira.
VOZ
E já não é freira?!
CÉU
Não me habituei... ao hábito. Ouvia cânticos... ouvia vozes... mas não sentia o
chamamento do Senhor!
EM CASA, MATILDE CHORA.
MARIA
Não chore mais mãezinha, não chore mais! A mana queria ser freira e está melhor no
convento do que aqui.
MATILDE
Eu sei, Maria, eu sei! A nossa Maria do Céu vai ficar muito bonita, vestida de freira, eu
sei, mas mesmo assim apetece-me chorar, que queres!
MARIA
Uma freira é como uma noiva: uma freira é sempre bonita, tão bonita!
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O CONVENTO
Uma freira limpa o chão, de costas para o público. Abre a cortina que deixa
ver o altar e volta-se na última frase de Maria. Sai. Entra Maria do Céu, vê que
não está ninguém. Observa o altar.
CÉU
São Sebastião! São Sebastião! Estou aqui... porque o meu paizinho morreu. Lembras-
te do meu paizinho? Fazia cascalho. Deves lembrar-te... eras o patrono do meu
paizinho... São Sebastião da Pedreira.
Porque morreu o meu paizinho? Era ainda tão novo!
SANTO
Porque Deus assim o quis. E quando Deus quer, não há santo que se atreva a
contrariá-lo!
CÉU
... era ainda tão novo!
SANTO
Também eu! Olha bem para mim...
CÉU
Trespassaram-lhe o peito alvo com três setas!
SANTO
Quatro! Ontem caiu uma quando me vieram limpar o pó.
CÉU
Que estranho! Falo sozinha... faço perguntas e tenho a sensação de ouvir as respostas.
SANTO
Sim!... mas não! Tu própria perguntas e respondes. É muito do povo! Perguntar e
responder imitando a voz da pessoa a quem dirigiram a pergunta.
CÉU
Isto é muito verdade! O meu paizinho, quantas vezes! Chegava a casa e contava-nos o
que o patrão lhe dizia e o que ele respondia e... imitava a voz do patrão; devia ser
para a gente entender melhor.
SANTO
O patrão, quando chegava a casa, fazia o mesmo com as filhas e a mulher!
CÉU
Imitava a voz do paizinho?
SANTO
Sim! E quando imitava um outro operário, o Zé Coxo, até coxeava!
CÉU
Nunca pensei!
SANTO
Nem eles! Nem eles!
CÉU
São Sebastião da Pedreira... deves saber... porque é que morreu o meu paizinho?! Não
respondes?! Claro, és de gesso... de madeira... ou de pedra! Só um milagre, de que eu
17
não sou digna, poderia fazer com que falasses! Que silêncio! As freiras não devem
tardar! Não paro de falar sozinha! É dos nervos. Pareces mesmo verdadeiro São
Sebastião! Estou mortinha por ser freira; depois venho aqui rezar-te todos os dias.
Vou dar-te uma esmolinha! As caixas de esmolas estão aqui para isso!
Uma... duas... três!
ACENDEM-SE LUZES NO ALTAR E O SANTO CANTA.
MARIA DO CÉU CAI DESMAIADA.
BONDADE
Deve ser ela.
CÉU
Sou a Maria do Céu.
AS TRÊS
É ela!
CÉU
O meu paizinho... morreu!
AS TRÊS
Oh!
LUA
És então... órfã!
CÉU
Eu e a minha irmã Maria José.
BONDADE
São as duas órfãs!
SOL
De que morreu o teu paizinho?
CÉU
Bateu com a cabeça no prato da comida.
LUA
Era então... ceguinho?
CÉU
Não!... Era pedreiro... sou uma órfã...
LUA
Órfã de pai e mãe?
CÉU
Não, só de pai!
BONDADE
Graças a Deus!
18
CÉU
Mas a minha mãe é muito pobrezinha, o meu paizinho só lhe deixou um pé-de-meia e
uma mala cheia de cascalho, vão ter de comer sopa de pedra todos os dias, metade do
pé-de-meia foi para o funeral e a outra metade para lhe rezar missas, a minha mãe
não arranja emprego, o único que lhe apareceu foi para “lavadeira de Caneças” e até
lhe davam transporte, mas a minha mãezinha a andar de burro enjoa!
BONDADE
Deus seja louvado!
CÉU
E então a minha mãezinha fica em casa, a chorar e a rezar e com o paizinho
atravessado na garganta...
LUA
Que sufoco! Que tragédia!
CÉU
A minha irmã, a Maria José, à noite apanha malhas em meias, que a minha mãe já
tentou mas nem isso pode fazer!
LUA
Está a ficar ceguinha?
CÉU
Não, mas tremem-lhe as mãos e espeta os dedinhos todos em vez de espetar nas
meias... tem os dedos que parecem um crivo...
LUA
É como eu vou ficar com a língua!
CÉU
E durante o dia a minha irmã vende flores na rua, mas vende muito pouco, não tem
jeito, nunca tinha vendido nada, tem vergonha de apregoar, as flores murcham, anda
dum lado para o outro com as flores tão murchinhas que aquilo até parece uma
carroça de funeral retardado! Chega a casa; a minha mãe ao ver as flores faz-lhe
lembrar o paizinho e desatam as duas numa choradeira!
BONDADE
E tu, minha filhinha, não choras também?
CÉU
Choro, mas não choro tanto! Sou mais do estilo de ficar a ver, ou então vou fazer
qualquer coisa para desanuviar. Batatas, gosto de descascar batatas! Mas as últimas
mas que tínhamos foram roídas pelo escaravelho!
BONDADE
O escaravelho! O escaravelho da batata! Se ele gosta de a roer é porque Deus assim o
quer! Não se come, não se mata! Nem o escaravelho, nem a batata!
LUA
Tão amiga de animais!
SOL
Tão bondosa!
BONDADE
19
Por isso me chamam a irmã Bondade!
CÉU
Quero ser Franciscana! Quero ser Franciscana!
LUA
Mas, filha! Nós somos as Carmelitas, descalças.
CÉU
Então... quero ser Carmelita!
BONDADE
Mais uma!
SOL
Mais uma!
AS TRÊS
Graças a Deus!
BONDADE
Vais ter de cortar o cabelo, andar descalça...
LUA
Ofereço-te uns óculos, minha filha... quem não vê não peca... e o pecado mora ao
lado!
BONDADE
E vais ter de ser muito amiga dos animais. Lição número um: se acaso, vires alguma
barata aqui no salão, só tens de lhe dizer, com muito amor: Baratinha, baratinha, o
teu lugar na cozinha! A barata é divertida e também tem direito à vida!
FLORES... MURCHAS
NARRADOR
Metia compaixão ver aquela mãe, tão contente com a sua filha, depois de terem
ambas repartido entre si os poucos lucros do seu trabalho, aplicados para um bocado
de pão e uma sardinha, ver como ela ensinava à filha as orações que já sua mãe lhe
havia ensinado, o modo de pedir a Deus um meio de passar a vida com honra e sem
vergonhas do mundo! Maria José amava sua mãe com toda a sua alma e coração.
(MARIA JOSÉ DESPEDE-SE DA MÃE E COM O SEU CARRINHO CHEIO DE FLORES
VAI PARA A RUA. À ESQUERDA ESTÃO AS CARMELITAS E A IRMÃ. À DIREITA A
MÃE, QUE REZA. MAIS TARDE SURGIRÁ O JOSÉ MARIA.)
Canção da pobre florista, em que todos intervêm.
NARRADOR
Toda a vizinhança olhava para esta rapariga com admiração. Não havia nota ruim que
se lhe pusesse, e ninguém se atrevia a pôr nela a boca.
Todos saem de cena ficando apenas MARIA JOSÉ E JOSÉ MARIA.
20
O ENCONTRO
JOSÉ MARIA aproxima-se de MARIA JOSÉ.
JOSÉ
Menina... Maria José!
MARIA
Como que sabe o meu nome?!
JOSÉ
Disse-mo... um passarinho que passou.
MARIA
... Os passarinhos não falam!
JOSÉ
Aquela, falava! E disse-me mais coisas... disse-me que a menina Maria José...
MARIA
Não quero saber! Não o conheço... não vi nenhum pássaro e mesmo que visse...
mesmo que fosse verdade, eu não sou dessas; não me interessam as conversas dos
outros... sou uma menina séria... a minha mãezinha está à minha espera... se não
quer flores, faça o favor de se ir embora.
JOSÉ
Mas... eu quero.
MARIA
Então... escolha.
JOSÉ
Já escolhi: só uma flor é do meu agrado. Adivinha qual?
MARIA
Estão todas tão murchinhas que metem dó... Ah! Deve querer esta: é uma rosa e
ainda está viçosa... mas em breve as pétalas cairão...
JOSÉ
Não. A flor que eu quero não se chama Rosa. E é uma flor, que se eu possuísse,
poderia conservar para toda a vida.
MARIA
Não conheço tal flor; estas são todas naturais... e naturalmente... as flores naturais
murcham e morrem. Triste fim, o de uma rosa!
JOSÉ
Como é bondosa!
MARIA
Há quem guarde as pétalas, depois de caírem, dentro dum livro.
JOSÉ
Mas ficam... espalmadas... e secas!
MARIA
Pobrezinhas!
21
JOSÉ
A flor que eu quero é uma flor rara... desde que a vi, amo-a, em silêncio e sempre
temi dirigir-lhe a menor frase de amor. Acanhamento meu... fruto duma grande
timidez, mas também dum enorme respeito...
MARIA
Pela... flor?!
JOSÉ
Sim. Agora, não posso mais calar este afecto que me domina e que é a razão de ser da
minha própria vida. Prende-me porém esta timidez ao ponto de não saber o que hei-de
dizer. E não é porque não tivesse muito para lhe contar, mas porque essa maldita
tibieza me inibe de o fazer. O receio do ridículo, da pouca importância que possa ligar
às minhas palavras, tudo isto me põe de tal modo inquieto e nervoso, que...
MARIA
Meu Deus! Não conheço flor capaz de provocar tanta dor... tanto sofrimento... está a
suar... sente-se bem?
JOSÉ
... tanta paixão!
MARIA
Mas, diga-me, como se chama essa flor inquietante?
JOSÉ
Maria José.
(MARIA JOSÉ DEITA AS FLORES AO CHÃO, COM OS NERVOS)
Vi-a pela primeira vez no dia em que faleceu o seu paizinho. Não se lembra de mim?!
MARIA
Nesse dia, tinha os olhos turvos de lágrimas.
JOSÉ
Caiam-lhe em gotas... cobriam-lhe o rosto... parecia orvalho...
MARIA
Tenho de me ir embora... a minha mãezinha deve estar impaciente...
JOSÉ
A sua graça é Maria José e a minha, José Maria.
MARIA
Que graça! Maria José, José Maria! É assim... como uma capicua! 2.442, ou 99.399, ou
324.101.423...
JOSÉ
Sim... e uma capicua, diz-se, costuma dar sorte. Quer casar comigo?!
(Voltam a cair as flores.)
MARIA
Tenho de falar primeiro com a minha mãezinha ela quem governa em mim... se ela
disser que sim... eu digo que sim... mas tenho de lhe perguntar primeiro...
22
JOSÉ
Mostra que tem sentimentos, que uma boa filha.
MARIA
E depois, vai o senhor José Maria falar com ela... ela há-de querer conhecê-lo... e
talvez lhe diga que sim... a mãezinha não me quer para freira.
JOSÉ
Fale-lhe... na capicua...
MARIA
Vou contar-lhe tudo... e amanhã, se ainda me tiver na ideia... pode ir falar com ela.
JOSÉ
E porque não... hoje... agora... já.
MARIA
Então... vamos.
JOSÉ
Maria José!
MARIA
José Maria!
OS DOIS
99.399!
MARIA
(enquanto saem)
L’amour... l’amour... etc.
NO TRIBUNAL
CÉU
Uma capicua costuma dar sorte... e um trevo de quatro folhas também... eu, estava
um dia nos jardins do convento... ia distraída e, de repente...
ACUSAÇÃO
... de repente... calcou bosta de boi!
CÉU
Não! Porquê?!
ACUSAÇÃO
Também dizem que costuma dar sorte!
CÉU
Não! Encontrei... um trevo de quatro folhas... e logo a seguir...
ACUSAÇÃO
O Jardineiro do convento!
CÉU
Como é que adivinhou?
23
ACUSAÇÃO
Há sempre um jardineiro nos jardins dum convento! Não vê que a sua história com o
jardineiro não nos interessa! Está a ser interrogada pela acusação! Não é óbvio que o
que me interessa é enterrar a sua irmã e não desenterrar trevos de quatro folhas?!
Estamos a julgar um matricídio! Matricídio! Deixe-se de fantasias, menina Maria do
Céu!!! O São Sebastião! As freiras! Os cânticos! Trevos! Capicuas! FANTASIAS! Deixe-
se de rodriguinhos! Só o que a sua irmã lhe contou é que nos interessa!
CÉU
Foi o demónio que a tentou! Foi o demónio!
ACUSAÇÃO
Claro! A culpa é toda do demónio!
CÉU
A princípio o José Maria...
ACUSAÇÃO
Conversou com ela com muito bom modo... um sonso... e deu-lhe a entender que a
não buscava para mau fim! Ela levou-o a casa... e depois?!
CÉU
A mãezinha consentiu que eles fossem conversados... ele afirmou que ia mandar ler os
banhos... para o casamento...
EM CASA DE MATILDE
MATILDE
O senhor... José Maria... é amigo do trabalho?... É amigo do trabalho?
JOSÉ
Sim, sim... claro, sou muito amigo do trabalho. O trabalho não me mete medo.
MATILDE
Agora até me fez lembrar o meu Agostinho! Tão amigo do trabalho, o patrão antes
dele morrer, até lhe deu uma mala cheiinha de cascalho! Já está meia! Ele fazia pela
vida! Ele fazia pela vida! O senhor faz pela vida?
JOSÉ
Faço... faço!
MATILDE
Tem de se fazer pela vida!
MARIA
Ele faz mãezinha!
MATILDE
Tem de se fazer pela vida e ser amigo do trabalho.
MARIA
Ele é, mãezinha, ele é!
JOSÉ
E Graças a Deus, tenho uma saúde de ferro!
24
MATILDE
Sim, foi isso que ele disse... e caiu em cima da alheira! Era alheira e arroz de tomate!
Ele gostava tanto!
JOSÉ
Que Deus o tenha em eterno descanso!
MATILDE
Rezemos! Rezemos pela salvação da sua alma! Todos de joelhos!
(Começa a ouvir-se as vozes dos alunos da Mestra)
MARIA
Em casa da nossa vizinha, a D. Guiomar. É Mestra...
JOSÉ
Ah...
MARIA
Ensina a ler...
MATILDE
É! Quando ela começa as lições...
JOSÉ
O quê?!
MARIA
Quando ela começa as lições...
JOSÉ
Ah!
MATILDE
Acaba o sossego nesta casa!
JOSÉ
Que Deus tenha piedade dela!
MATILDE
O quê?!
JOSÉ
Que Deus tenha piedade dela!
MATILDE
Ah!
JOSÉ
Não devia dar aulas a esta hora!
MATILDE
O quê?
MARIA
Diz ele, que ela não devia dar aulas a esta hora.
JOSÉ
A gente assim, não consegue nem rezar nem falar... sobre...
25
MARIA
Sobre aquele assunto, que eu já lhe tinha falado.
MATILDE
E como é dos banhos?
JOSÉ
Não percebi.
MARIA
Os banhos! Ela pergunta como é dos banhos.
JOSÉ
Vou já mandar ler os banhos.
MATILDE
O quê?
MARIA
Diz que vai já mandar ler os banhos!
MATILDE
Ah! Que vá com Deus!
MARIA
Diz que vás com Deus!
JOSÉ
Fique com Deus!
MATILDE
Vá com Deus!
NO TRIBUNAL
JUIZ
Jura dizer a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade?
CEGO
Deus é testemunha.
JUIZ
Não estou a falar com Deus! Estou a falar consigo!
CEGO
Eu sei Sr. Doutor Juiz?
JUIZ
Então responda!
CEGO
Pode perguntar, Sr. Doutor Juiz!
JUIZ
Jura dizer a verdade, só a verdade e na mais do que a verdade?
CEGO
Deus é testemunha!
JUIZ
Já sei! Isso eu já sei!
26
CEGO
Como o Sr. Doutor Juiz perguntou eu respondi!
JUIZ
Só tem que responder: “juro”. Quando eu lhe fizer a pergunta só tem de responder
“juro”!
CEGO
Agora já percebi.
JUIZ
Não vai testemunhar?
CEGO
Juro!
JUIZ
Não é agora! Só quando eu lhe perguntar!
CEGO
Afinal não percebi! Pensei que estava a falar comigo.
JUIZ
E estou a falar consigo!
CEGO
Então não me enganei!
JUIZ
Vamos combinar uma coisa: vamos fazer de conta que não dissemos nada um ao
outro!
CEGO
Mas dissemos!!
JUIZ
Mas fazemos de conta que não dissemos!
CEGO
Porquê?!
JUIZ
Porque até agora não dissemos nada de jeito!
CEGO
Concordo! Concordo!
JUIZ
Esquecemos tudo!
CEGO
Percebo! Damos o dito por no dito!
JUIZ
E recomeçamos tudo de novo!
CEGO
Mas, se não dissemos nada de jeito!
JUIZ
Por isso mesmo!
27
CEGO
Não estaremos a perder tempo?!
JUIZ
Exactamente!
CEGO
Podíamos então ir direitos ao assunto!
JUIZ
Primeiro tem de jurar!
CEGO
Está bom de ver!
JUIZ
Jura dizer a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade?
CEGO
Juro!
JUIZ
Graças a Deus!!!! Agora... diga o que tem a dizer.
CEGO
Conheci a ré desde pequenina, Sr. Dr. Juiz. E depois foi crescendo e crescendo... Toda
a vizinhança se admirava do bom porte da rapariga e do amor que parecia ter a sua
mãe! “Até admira!” - diziam às vezes os vizinhos - “como esta rapariga tem podido
conservar-se sem dar que falar ao mundo”. E depois... Horrorizai-vos! Pais de
Famílias! Horrorizai-vos com a narração que vou fazer, mas reconhecei ao mesmo
tempo o dedo de Deus, que guiou a justiça para descobrir a criminosa que derramara o
sangue de sua mãe, e meditai por um pouco nas causas que concorreriam para
endurecer o coração d’uma filha a ponto de que, vendo o cadáver de sua mãe feito em
pedaços, nem o menor sinal deu de compaixão! E por último lembrai-vos que há no
céu um juiz mais recto que todos os juízes da terra, e ensinai vossos filhos a amá-lo e
a temê-lo, porque Ele a todos nos há-de julgar.
JUIZ
O que acabou de nos dizer não ajuda a esclarecer o crime!
CEGO
Foi um preâmbulo, Sr. Doutor Juiz.
JUIZ
Limite-se aos factos. Diga o que sabe!
CEGO
Sr. Doutor Juiz, eu não vi, mas sei tudo!
JUIZ
Toda a gente parece saber tudo!
CEGO
A mim, contaram-me de fonte limpa.
JUIZ
É o que todos dizem!
28
CEGO
Mas eu ouvi da boca da própria vítima! Da boca da própria Matilde, antes de ter sido
brutalmente assassinada pela filha... um crime espantoso! Um crime como nunca se
viu! O maior de todos os crimes! Um matricídio!!!
JUIZ
Silêncio! Lembro esta audiência que a ré ainda está a ser julgada!
CEGO
Já foi! Aos olhos de Deus!
JUIZ
Por enquanto é apenas suspeita!
CEGO
Assassina!
JUIZ
Será feita justiça!
CEGO
Vai demorar o seu tempo!
JUIZ
Demora o tempo que tiver que demorar! O que é que ouviu da boca da vítima?
CEGO
Vou ter de recuar no tempo...
OS CEGOS - ESTROPIADOS
Cantam:
Tudo o que é triste no mundo
Quisera que fora meu
Só pra ver se tudo junto
Era mais triste do que eu
CEGO SURDO-MUDO
CEGO MOUCO
CEGO CORCUNDA
CEGO ENLUVADO
CORCUNDA
Isto hoje não cai nada!
MOUCO
O quê?!
LUVAS
Não cai nada! Quando andávamos a cantar os crimes do Diogo Alves sempre se
juntava mais gente a ouvir.
29
CEGO
Até dava gosto!
MOUCO
Bons tempos!
CORCUNDA
Aquilo é que era uma história! Púnhamos as pessoas todas a chorar!
LUVAS
Tudo cheio de compaixão! Cheios de pena! Era uma história que lhes tocava o coração!
CEGO
Até dava gosto! Lembras-te?!
MOUCO
De quê?!
Cantam:
Diogo Alves foi preso
E executado no patíbulo
Aí pagou o tributo
Pois tanta gente roubou
E outra tanta matou
E fechou-se o Aqueduto!
MATILDE
Era lindo, sim senhor! Fazia chorar!
CORCUNDA
O Diogo Alves a atirar aquela gente toda do Aqueduto abaixo, depois de as ter
roubado!
LUVAS
Havia quem dissesse que aquilo já nem era o Aqueduto das Águas Livres! Era o
Aqueduto das quedas livres!
MATILDE
Sim, deu uns versos muito bonitos; ainda os tenho guardados: duas folhas dum lado e
doutro!
LUVAS
Metia muita gente assassinada!
CORCUNDA
Bons tempos!
CEGO
Que tragédia!
MOUCO
Que saudades!
CORCUNDA
Agora não acontece nada em que a gente se possa inspirar!
30
LUVAS
E inventar não a mesma coisa! Não causa tanta pena!
MATILDE
Mas aqueles versos da tristeza que estavam a cantar também são muito bonitos.
CEGO
Mas não mete crime! E só pela tristeza ninguém dá esmola, ninguém compra os
versos...
LUVAS
Ninguém quer levar a tristeza para casa...
MATILDE
Nem me falem em tristeza que tenho a casa cheia dela, olhem! Até dava para fazer
uns versos... Há já seis meses que o meu marido morreu... e agora a minha filha... a
minha Maria José...
CEGO
A Zezinha está a morrer?!
MATILDE
Não, mas... que Deus me perdoe, antes estivesse, antes queria vê-la morta do que
assim... caiu na desgraça de se enamorar dum malandro, dum patife, enganou-me a
mim e enganou a minha Maria José... já vai para três meses que se encontram... disse
que ia mandar ler os banhos... todas as semanas dizia que já tinha botado os banhos
para o casamento...
CORCUNDA
Os banhos às vezes uma coisa que demora o seu tempo.
MATILDE
Mas tanto tempo?! Não! Não! Ele agora não me atira mais poeira prós olhos! Já não
me engana!
LUVAS
Já enganou!
MATILDE
A princípio, todo ele era mesuras e cheio de salamaleques...
(BATEM à PORTA)
MARIA
Quem é?!
(entra um braço pelo postigo.)
Oh! Pregou-me um susto! É o José Maria, Mãezinha! Posso mandá-lo entrar um
bocadinho?!
MATILDE
E eu dizia: Podes sim, minha filha, podes sim.
JOSÉ
Boa noite, menina Maria José! Boa noite, D. Matilde! Maria José!
31
MARIA
José Maria!
JOSÉ
Quem pela erinha passou e um ranquinho não tirou, do seu amor não se lembrou!
MARIA
Tem então... pensado muito em mim?!
JOSÉ
Não penso noutra coisa. Ao ver a era arranquei um pedaço e... sabe porquê.
MARIA
Sim. Porque... quem pela erinha passou e um ranquinho não tirou do seu amor não se
lembrou.
JOSÉ
A... quer dizer, amor. B...
MARIA
... banhos!
JOSÉ
Já mandei ler os banhos!
C , D, E, F, G, H, I... J.
MARIA
J... de José.
JOSÉ
E M... de Maria.
MARIA
José e Maria.
JOSÉ
Amo-a... amo-a tanto, Zézinha!
MARIA
Eu... eu também o amo.
MATILDE
Ela afez-se a ter paixão por ele, porque o via a todas as horas... dizia-me que o amava
e quem ama, não considera.
LUVAS
Dava um começo bonito para uns versos.
Cantam:
Quem ama não considera
O que lhe pode acontecer
Cuida que tudo são rosas
Que ao jardim se vão colher.
32
CORCUNDA
Dava uns versos lindos, sim senhor, mas depois para se vender tinha de acontecer
qualquer coisa mais trágica!
MATILDE
E aconteceu!
CEGO
Deixem ouvir! Deixem ouvir!
MATILDE
Aconteceu e depressa! O lobo começou então a tirar a pele de cordeiro!
(BATEM À PORTA)
MARIA
(Abre a porta)
Meu amor!
JOSÉ
Boa noite, D. Matilde!
MARIA
Não está. Foi à novena.
JOSÉ
Parece impossível! Deixar a filha, sozinha, entregue ao lobo mau!
MARIA
O José Maria é o meu querido lobo mau?!
JOSÉ
Sim... meu Capuchinho Vermelho.
MARIA
A minha mãe está preocupada.
JOSÉ
Porquê?!
MARIA
É por causa dos banhos!
JOSÉ
Eu já lhe disse que os banhos estão a correr!
MARIA
Também eu mas... que queres?! Ela é muito minha amiga e tem medo que... só pensa
nos banhos, pronto!
JOSÉ
E tu, Maria José, também sé pensas nos banhos?
MARIA
Eu só penso em ti.
A mãezinha... a mãezinha está quase a chegar!
33
MATILDE
Eu pressenti! Eu pressenti a desonra e pela confiança com que ele começava a tratá-
la, uma confiança como se fosse o marido dela!
CORCUNDA
E o enganador José Maria, com o demónio no coração, a impostura na boca, foi pouco
a pouco amolecendo a fraca resistência que Maria José fazia ao seu brutal apetite.
MATILDE
Sim... dito assim até parece bonito...
LUVAS
Comove, sim senhor... comove.
MATILDE
O amor é cego! O amor é cego!
Cantam:
Quem pintou o amor cego
Não o soube bem pintar
O amor nasce da vista
Quem não vê não pode amar.
MARIA
Fecha os olhos.
JOSÉ
Porquê?
MARIA
É uma surpresa! Para o casamento... gostas?
JOSÉ
Vais ficar linda. Tam-tam-taram!
MARIA
Espera! Toma!
OS DOIS
Tam-tam-taram!!!
MATILDE
Ele não vai casar com ela! Ele não vai casar com ela!
CEGO
É capaz de ter razão, D. Matilde!
MATILDE
Eu já a aconselhei; eu já a repreendi com boas maneiras, pois mesmo assim toda ela
se arrufa! E não casa! Estou mesmo a ver que não casa!
CORCUNDA
Também eu!
LUVAS
Olhe esta aqui que também fica bonita:
34
Cantam:
As águas que vêm do monte
Correm direitas pró mar
Se sua filha não casa
Não o sei onde ir parar!
CEGO
E daí... talvez case...
Tam-tam-taram!!!
MARIA
A mãezinha... está quase a chegar!
JOSÉ
Sim?!
MARIA
Sim! Sim, sim.
JOSÉ
O que é que disseste?!
MARIA
Sim, sim.
JOSÉ
O quê?
MARIA
Nada.
OS CEGOS VÃO PARA A TASCA.
MATILDE
Mas... então... não são ceguinhos?!
CEGO
Somos, somos. Mas um cego tem direito a descansar de vez em quando.
MARIA
A minha mãe... está quase... a chegar...
JOSÉ
Sim... sim... está quase...
MARIA
A minha mãe!
JOSÉ
Oh! A tua mãe... a tua mãe... a tua mãe!
MARIA
Está quase!
JOSÉ
Está quase!
35
MARIA
Sim...
JOSÉ
Sim... está quase!
MATILDE ENCAMINHA-SE PARA CASA. VEM UM BOCADO TOCADA E A CANTAR
O TAM-TAM-TARAM.
MATILDE
Maria! Minha filha! O que é que tu estavas a fazer, minha filha! Maria! Maria!
MARIA
Isso! Grite mais! Grite mais alto que é prá vizinhança toda acordar!
MATILDE
Eu muitas vezes te disse o que eram os homens...
MARIA
Até amanhã meu amor, até amanhã.
MATILDE
Não que eu tivesse queixa do meu, porque teu pai era honrado e virtuoso como
aqueles que o são. Os rapazes de hoje não são o que eram os dalgum dia!
MARIA
Deve conhecê-los a todos! Para falar assim!
MATILDE
Não te pude valer. Deus Nosso Senhor me perdoe, se eu não tive forças para te
castigar, porque eu tinha-te muito amor, e nunca me capacitei deveras que houvesse
um tredo tão grande como o José Maria.
(cospe)
MARIA
Pois! Suje! Suje a ver se eu depois limpo!
MATILDE
Filha do meu coração, em bom pano cai uma nódoa.
(Maria cantarola)
MATILDE
Por alma do teu pai, que está na presença de Deus a pedir o teu perdão, pelas cinco
chagas te peço que deixes esse homem, que há-de acabar de te lançar na perdição,
onde não acharás meios de te salvar da justiça de Deus e das vergonhas do mundo.
MARIA
Largue-me! Deixe-me! Não vê que não estou para aturá-la?! Os seus sermões hão-de
valer de muito!
MATILDE
Minha filha!
36
MARIA
O valer-me era a tempo! Agora, que sou dele como se fosse sua mulher, hei-de ser
com ele desgraçada até à morte.
MATILDE
Não vês que ele te mentiu quando falou dos banhos!
MARIA
Quero lá saber dos banhos! Sabe que mais? Se casar, casou; se não casar é o mesmo;
eu gosto e ele gosta...
MATILDE
Que linguagem é hoje a tua, tão diferente daquela que era antes deste maldito aqui
entrar.
MARIA
Se não gosta tape os ouvidos!
MATILDE
Ai minha filha, que estás de todo! Ó meu marido! Perdoa-me, perdoa-me, bem vês que
eu não fui culpada.
MARIA
(canta)
Ó minha mãe, minha mãe, minha mãe, minha amada... Olhe, sabe que mais?!
MATILDE
Diz, filha...
MARIA
Não estou para aturá-la! Se quer estar comigo há-de ver, ouvir e calar, que é a regra
de bem viver! Se não quiser, a rua é larga! O mundo é grande.
MATILDE
Queres dizer com isso que me pões fora de casa?... Não isso que queres dizer?!
MARIA
É isso! Pois! É isso! Até que enfim que percebeu!
MATILDE
Pois então fica sabendo: se até aqui te tratei como mãe carinhosa, de hoje em diante
hei-de ser mãe como deve ser. Se esse José Maria volta a pôr aqui os pés, queixo-me
à administração do concelho que esse homem vem a minha casa contra a minha
vontade, e tu e mais ele haveis de ser atrancados no limoeiro.
MARIA
Cá estou para ver!
MATILDE
Pois então verás! Tu como filha desobediente e ele como um sedutor de uma rapariga
que se deixou ir nas suas palavras.
MARIA
Bem me importa a mim isso que está para aí a dizer! Pela constituição não se prende
ninguém por seduzir raparigas.
37
MATILDE
Ah! Não?
MARIA
Pois não. E de mais a mais, foi muito de meu gosto! Meta bem isto na cabeça! Foi
muito de meu gosto!
MATILDE
Veremos, Maria, veremos qual de nós é que vence!
CEGO
(no tribunal)
A filha ria-se de escárnio e ao mesmo tempo estava com ódio a sua mãe.
Na tasca, Zé Maria joga às cartas com os pobres cegos.
Em casa, Matilde deita as cartas
ZÉ MARIA e os CEGOS fazem um jogo.
Entra MARIA JOSÉ
MARIA
Zé Maria! Zé Maria! Preciso de falar contigo!
JOSÉ
Já te disse que não te quero ver por aqui!
MARIA
Bem sei, desculpa meu amor, mas... eu preciso de falar contigo; é por causa da minha
mãe. Ela não quer que voltes lá a casa!
JOSÉ
Ah! Não quer?
MARIA
Diz que se lá voltares se vai queixar à administração do concelho!
JOSÉ
Ah! Vai então queixar-se.
MARIA
Sim, tenho medo, Zé Maria. Parece louca.
JOSÉ
E vai queixar-se de quê?
MARIA
Andou a perguntar coisas, aqui e ali, alguém lhe disse...
JOSÉ
O quê?
MARIA
Ela sabe que já foste acusado de vadio e ratoneiro. (PAUSA) Diz qualquer coisa.
JOSÉ
Bruxa.
38
MARIA
Que havemos de fazer, Zé Maria?! Ameaçou de nos meter no limoeiro! Nunca a vi
assim! Parece outra! Vi nos olhos dela que o que estava a dizer era verdade. Se
voltares lá a casa ela mete-nos no limoeiro. (PAUSA)
JOSÉ
Está bem. Nunca mais nos encontramos e pronto. Deixas de ter esse problema. Adeus.
(volta para as cartas.)
MARIA
Zé Maria!!! Não! Isso não, Zé Maria! Eu amo-te! Não quero perder-te. Quero continuar
a ser tua, meu amor.
JOSÉ
Se gostasses de mim como dizes, não me vinhas aqui chatear com essa história.
MARIA
Vim aqui porque te quero, porque te amo! Não te provei já tantas vezes o meu amor.
Porque é que não acreditas em mim? Eu desgracei-me por ti, Zé Maria. Eu desgracei-
me por ti. E agora ainda queres fazer de mim mais desgraçada.
JOSÉ
Foi isso que disseste à tua mãe?! Que fui eu que te desgracei?
MARIA
O que eu lhe disse foi que te amava e que havia de ser sempre tua!
JOSÉ
Mas fui eu que te desgracei.
MARIA
Não, não!!! Foi porque eu quis, meu amor, foi porque eu quis! Pede-me tudo o que
quiseres e tudo farei, Zé Maria, farei tudo para te dar mais uma prova do meu amor,
por ti sou capaz de tudo, mas não me deixes, não me deixes... porque tu és o meu
homem, o único amor da minha vida!
JOSÉ
Se não posso entrar lá em casa por causa da velha, fá-la desaparecer.
MARIA
Beija-me, meu amor.
(MARIA SAI)
MATILDE
Ó Meu Deus, mudai as intenções de minha filha...
CEGO
... mas Deus não quis tocar-lhe o coração!
FADO “Deus não quis tocar-me o coração”
Adeus mãezinha
39
porque Deus
Não quis tocar-me o coração
Sou uma filha perdida
Porque nesta triste vida
Fui possuída p’la paixão
Que alguém teceu
Que me envolveu
Que me perdeu... Ai!
Quem diria
Que um dia aquela menina
Que eu nos braços embalava
Que eu beijava
Que eu amava
Teria esta triste sina... Ai
Deus assim quis
Ele é quem traça o destino
Do seu alto pedestal
Ergueu-se e disse que não
Porque não quis
Não quis tocar-me o coração.
CEGO
Maria José, quando tornou para casa, ainda sua mãe não tinha comido nem bebido e
estava deitada sobre a cama.
(pausa – corte)
CORCUNDA
Vestida, com os olhos inchados de chorar. Parece que tinha envelhecido vinte anos.
MARIA
Então, que faz aí, sua tola?
CORCUNDA
Disse a filha já atentada pelo demónio à desgraçada velha. A mãe, depois de dar
magoadíssimos suspiros, atirou-se da cama abaixo e lançou-se aos pés da filha.
MATILDE
Minha desgraçada filha! Atende às lágrimas de tua mãe. Bem vês que é aquela que te
deu ao mundo, que sofreu as dores de mãe, que se lança de joelhos a teus pés,
pedindo que não lhe cubras a cara com o negro véu da vergonha nos últimos dias de
sua vida.
MARIA
Cale-se, minha mãe, cale-se! Que se assim continuar não há-de viver muito. Das duas,
uma: ou o José Maria há-de ter aqui entrada a toda a hora do dia e da noite, ou
então...
40
(José Maria aparece à porta. Maria abraça-o e beija-o)
CORCUNDA
Matilde, assim escarnecida por essa filha prostituta, arrancou do peito um grito de dor.
(Matilde tenta fugir mas eles não deixam)
JOSÉ
Onde é que pensa que vai?
MARIA
Não sai! Você daqui não sai, está a ouvir?!
(Mãe vai até ao altar e vê que falta dinheiro do pé de meia.)
MOUCA
Matilde, ao ver que lhe faltava dinheiro no pé-de-meia...
CEGO
Quis dar um grito do fundo do coração, mas não teve forças...
LUVAS
Perdeu os sentidos e caiu redonda no chão.
CORCUNDA
Esse dinheiro, já a filha lho tinha roubado, para dar ao seu amante.
JOSÉ
Isto assim não pode continuar! Ou tu dás cabo dela, ou então eu deixo-te e duma vez
para sempre.
MARIA
Que hei-de fazer... que hei-de fazer?!
JOSÉ
Já te disse... mata-a e acabou-se!
CORCUNDA
Ó céus! Onde estão os vossos raios que não caem sobre a cabeça deste infame, que
pede a uma amante que mate sua mãe, para mais a salvamento gozar os seus
escandalosos e torpes desejos! Meu Deus! Eu sou um fraco bichinho na terra, e atrevo-
me a interrogar a vossa alta sabedoria! Perdoai-me, meu Deus!
MARIA
Tenho medo de a matar, ela grita e cá por cima mora a mestra de meninas, que a
ouve, e depois se se sabe, que há-de ser de mim?
JOSÉ
O matá-la é de dia porque as meninas fazem barulho a ler, e não se devem ouvir os
gritos de tua mãe.
41
MARIA
Mas... eu tenho tanto medo de matá-la! Tenho alguma pena dela... Se tu casasses
comigo já ela te não proibia que cá viesses, e se me tens amor, a ponto de quereres
que eu mate minha mãe, então, porque não casas comigo?
JOSÉ
Está bom, está bom... temos lamurias?!
Se queres, queres, se não queres, nentes que se escama o gajo.
(SAI)
CEGO
Isto são ditos que os vadios e brejeiros têm sempre prontos.
Se queres, queres, se não queres, nentes que se escama o gajo.
MOUCA
A rapariga, desesperada e aflita com os feios modos e destemperos do seu amante,
foi-se ter com a mãe, e descompô-la com estas e outras palavras:
MARIA
Você, seu estupor velho, é a causadora da minha perdição. O meu regalo era pegar
nesta machada e abrir-lhe a cabeça com ela. Saia daqui. Saia daqui seu estafermo!
MATILDE
Está bem, eu saio! Mas primeiro hás-de me dar o dinheiro que me roubaste. Ladra!
Depois de tudo o que fizeste ainda me roubas, não é?! Onde está o dinheiro?! Deste-
lho, não foi?! Quero o meu dinheirinho, que é para a salvação da minha alma e do meu
falecido Agostinho.
(Maria vai para sair)
Onde é que vais?!
MARIA
Não quer o seu dinheiro? Pois... vou buscá-lo.
CEGO
A infeliz desgraçada velha, com isto sossegou alguma coisa, mas... ó desgraça! Ó dor!
CORCUNDA
Ó crime sem igual! A maldita e condenada filha já a estas horas... fazia de conta que
às mesmas horas do dia seguinte teria matado sua mãe.
CEGO
Que horas são?
MOUCA
Onze e meia.
CEGO
Eram onze e meia quando ela entrou pela última vez na taverna.
MARIA
José Maria! José Maria! Preciso de falar contigo.
JOSÉ
Outra vez?!
42
MARIA
Ela descobriu do dinheiro... do Pé-de-meia!
JOSÉ
E tu... fizeste o que tinhas a fazer?!
(beija-a)
MARIA
Disse-lhe... que lho levava.
(José Maria pega numa maçã e na faca. Dá-lhe a faca e trinca a maçã)
JOSÉ
Fizeste bem! Fizeste muito bem. Só mostras que és uma boa filha.
(Leva-a até à porta.)
CORCUNDA
Problemas, ó Zé Maria?
JOSÉ
Ná! Parece que a pobre da mãe está a enlouquecer, por causa da morte do homem.
Não quer comer... deixa arrefecer a sopa... a filha preocupa-se, claro... grita muito que
quer ir ter com o homem...
MOUCA
A D. Matilde?
JOSÉ
Sim. Grita... grita... está aqui está a ficar sem voz.
CEGO
Ela nunca teve muita saúde.
LUVAS
Ouvi dizer que até enjoava a andar de burro!
MOUCA
O quê?
LUVAS
A Matilde! Que enjoava a andar de burro.
MOUCA
É verdade, sim senhor! Perdeu um rico emprego por causa dos enjoos!
JOSÉ
E agora está a ficar louca.
CORCUNDA
Isto é de família! O homem morreu em cima duma alheira com arroz de tomate e
agora a mulher deixa arrefecer a sopa!
CEGO
Uma gente pobre e a desperdiçar assim a comida!
MOUCA
Ele há gente capaz de cada uma!
43
JOSÉ
Sim...
CORCUNDA
Ele há gente capaz de tudo!
JOSÉ
A quem o diz!
LUVAS
Coitadinha da Maria José! Que há-de ela fazer?!
JOSÉ
Não sei... não sei... mas...
CEGO
Ele há gente capaz de fazer coisas, que nem nos passa pela cabeça!
JOSÉ
Pois! E com o feitio dela, eu nem sei, mas é até capaz de...
LUVAS
... de obrigar a pobre da mãe a comer a sopa, mesmo fria!
JOSÉ
Sim, mas eu não me meto nessas coisas! É lá com elas!
(surge o tasqueiro com uma rodada)
CEGO
Tem razão: entre marido e mulher ninguém meta a colher.
MOUCA
O quê?!
CEGO
Esquece.
MOUCA
Ah! Percebo.
JOSÉ
Eu pago esta rodada!
CORCUNDA
Ora até que enfim que alguém diz alguma coisa de jeito!
TODOS
Ió! IÓ! Ió! IÓ! Ió! Ió!
MARIA
Mãezinha!
TODOS
Ió!
MATILDE
Filha! Filhinha! Minha Maria José! Trouxeste o dinheiro?
44
MARIA
Sim, mãezinha, está aqui. Mãezinha! Posso pedir-lhe uma coisa?
MATILDE
O quê, minha filha?
MARIA
Tenho andado... tão nervosa... tão nervosa...
MATILDE
Eu sei, filha, eu sei. O teu pai era um homem calmo, mas eu sempre fui muito
nervosa! A mínima coisa faz tremer o meu coração e enervo-me! O teu paizinho até
dizia “Matilde, tens um coração de passarinho”. É dos nervos, dizia-lhe eu. Tu andas
nervosa... é de família! Olha a tua irmã Maria do Céu. Sempre a bater com os pés no
chão... era uma barulheira... e era tudo dos nervos. Que me querias pedir?
MARIA
Gostava tanto que a mãezinha me catasse!
MATILDE
Que trazes do bolso, Maria?
MARIA
É uma faca.
MATILDE
Para que andas de faca?
MARIA
É do José Maria. Pediu-me para eu a mandar amolar ao barbeiro.
Virgem Maria, suspendei o braço dessa filha que vai matar sua mãe!
MATILDE
Maria, porque me matas? Maria minha filha, tiveste coração de enterrar uma faca no
peito de tua mãe! Tiveste coração de rasgar aquelas entranhas que te geraram! Maria,
porque me matas? Que mal te fiz eu, minha filha, para me dares esta facada por onde
me foge a vida? E se tinhas tenções de me matar, porque me não mandaste confessar,
ou pelo menos fazer o acto de contrição? Ah Maria, Maria, que tens de dar contas a
Deus pela minha e pela tua alma!
(Maria José deu-lhe outra facada no pescoço. )
MATILDE
Meu Pai do Céu... perdoai-me.
COBRE-TE DE LUTO Ó NATUREZA!
CHORA NO CÉU VIRGEM MARIA, QUE TAMBÉM FOSTE MÃE CARINHOSA!
CHORAI AVES DO AR
QUE CRIAIS OS VOSSOS FILHOS DEBAIXO DAS VOSSAS ASAS!
45
CHORAI QUE AÍ CAIU UMA BOA MÃE
MORTA COM DUAS FACADAS AOS PÉS DE UMA FILHA JÁ CONDENADA!
... etc.
AQUI TENDES, Ó POVOS!
O MAIOR CRIME QUE VIU O MUNDO, PRATICADO EM LISBOA, NO ANO DE 1848!
ESTES ATENTADOS CONTRA DEUS,
ESTA GUERRA DE IRMÃOS COM IRMÃOS,
ESTES ACONTECIMENTOS DE FILHOS MATAREM PAIS,
E ESSES SINAIS QUE NOS APARECEM NO CÉU,
TUDO INDICA QUE O FIM DO MUNDO ESTÁ CHEGADO.
FIM de “MARIA! NÃO ME MATES, QUE SOU TUA MÃE!”
1
Amor
(também)
de perdição
Fernando Gomes
2
-Amor (também) de perdição-
Caixa Música (realejo)
Segue
Música abertura
1º tema- REALEJO
MÚSICA DE ABERTURA
Foi um drama
Romance passional
E que acaba mal
Mas que trama
tão triste a história de Simão
por isso foi amor de perdição
Foi um amor
de de de de de de
Perdição
Repete
Nunca se viu tamanha dor
Nunca se viu tanta paixão
cruel destino o de
Teresa e Simão
Mas que perdição
É uma história
que dá para pensar
A quem ama
ia quem nunca abriu o coração
3
com o que vai ver pode aprender
o que é paixão!
Aos paizinhos
que dá para pensar!
a desgraça de Teresa e de Simão
Mas que trama, tão grande amor e tal paixão
por isso foi amor de perdição
Foi um amor paixão ! paixão !
Foi um amor paixão ! paixão !
Foi um amor paixão ! paixão !
A-MOR
A-MOR
e de
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
Perdição Foi paixão
NARRADOR – A primeira cena passa-se em casa de Domingos Botelho de Mesquita e Meneses,
corregedor Viseu.
4
MÚSICA 3º. TEMA “PIANO” (FILME MUDO)
(VOLTAS À CADEIRA COMEÇA A BAIXAR A MÚSICA ATÉ PARAR)
Criada 1 - Aposto que vai haver tempestade.
Criada 2 - Nem duvides! Tem andado todo o dia a remoer para dentro.
Criado 1 - Está aqui, está a remoer p’ra fora!
Criado 2 - Vocês já viram, que ele hoje está com umas trombas!
Criada 2 - Quando o menino Simão chegar, vai haver bronca, de certeza!
Criado 1 - A D. Rita também não está nos melhores dias!
Criada 2- Ora! Desde que vieram viver para o Viseu, que para ela os dias são todos péssimos!
Criada 1 - Odeia Viseu e já em Vila Real era a mesma coisa!
Criado 1 – Quando o marido era juiz de fora em Cascais andava um bocadinho mais airosa!
Criado 2 - Pudera!!! Tinha uma corte de amigos e de primos!
Criada 2 - Mas ficou pior que estragada quando o marido foi transferido aqui para Viseu.
Criado 2 – Já lá vão dois anos!
Criada 1 – Os amigos...
Criado 2 - Os primos!
Criado 1 - A praia!
Criada 2 - E o sol de Cascais...
Todos - Foi sol de pouca dura!
Criado 2 - Agora ele está agarrado à testa ...
Criado 1 - E a senhora?
Criado 2 - Está a olhar para ele com ar de reprovação.
Criada 2 - Isto é tudo por causa do menino Simão.
Criada 1 - Estava a estudar em Coimbra, mas em vez de estudar.
Criada 2 - Metia-se nos corpos.
Criado 2 - E com as tricanas!
Criado 1 - Também se meteu com um doutor qualquer !
Criada 1 - Com um doutor?
Criado 1 - Sim!
Criada 2 - Então não ouviste o menino Manuel a contar à mãe?
5
Criado 1 - Deu dois murros num doutor, para lhe mostrar que não estava de acordo com qualquer
coisa.
Criado 2 - E o menino Simão também se metia na política; por isso é que foi preso!
Criada 1 - Que excitante!
Criada 2 - Também ouvi falar qualquer coisa sobre a Revolução Francesa.
Criada 1 - Seria ele que a provocou?
Criado 1 - Parece-me que não.
Criado 2 - Mas provocou uma revolução familiar, e essa já ninguém lha tira do curriculum!
MÚSICA 4º. TEMA “PIANO” (FILME MUDO)
Criado 1 - Atenção! Vêm aí!!!
Domingos - Se bem me lembro, D. Rita, temos três filhas: a Rosinha, a Rutezinha e a ... e a ... como
é que se chama a outra? A mais nova?
Manuel - Ritinha!
Rita - A Ritinha.
Domingos- A Ritinha; e temos dois filhos:
Rita - O Manuel
Manuel - e o mano Simão.
Domingos - Agora diga-me, D. Rita Preciosa, porque é que Simão havia de sair diferente dos
irmãos e dos pais?
Rita - Tenha calma!
Domingos - Como é que pode pedir uma coisa dessas, depois de ter acontecido o que aconteceu?!
Rita - Mas não podemos esquecer que , apesar de tudo, Simão também é nosso filho!
Domingos - Oxalara que não fosse!
Rita - Menezes! Não blasfeme!
Domingos - Isto não é blasfémia! Foi um desabafo!
Rita - Pois agradeço-lhe que não desabafe na minha presença!
Domingos - Prefere então que vá desabafar com estranhos?
Rita - Não leve tanto à letra o que eu digo!
Domingos - Pode ter a certeza que não levo!
6
MÚSICA IDEM DA ANTERIOR
5º. TEMA “PIANO” (FILME MUDO)
Rita - Trata-se do nosso filho.
Domingos - Devia tê-lo deixado ficar na prisão!
Rita - Menezes! Lembre-se que não somos uma família qualquer! Não nos podemos dar ao luxo de
ter um filho na cadeia! É publicidade negativa. E para ser Marlon Brando ainda lhe falta muito!!!
Domingos - Mas talvez não falte assim tanto para a obrigar a engolir essas palavras!
Rita - Ciumento!
Manuel - Fora da cadeia, o mano Simão vai continuar a criar problemas.
Criados - Olá, se vai!
Rita - O senhor é pai, tem o dever de impedi-lo de cometer mais loucuras.
Domingos - D. Rita Preciosa, não insinue que a culpa do que aconteceu é minha!
Rita - Minha também não é!
Domingos - Pois se não é sua nem minha, a culpa é do diabo!
Rita - Menezes! Não ... não desabafe!
Domingos - Desta vez não foi um desabafo, foi uma blasfémia!
Rita - Que santa Rita lhe perdoe, porque eu não consigo!
Domingos - A senhora não vê que esteja onde estiver, Simão há-de continuar a manchar a honra
dos Menezes!
Rita - Menezes, nisso, por acaso, tem razão, o nosso filho é um empecilho: só faz e diz aquilo que
não deve, é um susto sair com ele para qualquer lado; não sabe comportar-se!
Manuel - Um susto e uma vergonha.
Domingos - Impede-nos de caminhar de cabeça erguida!
Criados - É um empecilho!
MÚSICA (ENQUANTO OCORRE A DISCUSSÃO EM CASA DO MENEZES)
6º. TEMA “ESTE NOSSO FILHO É UM EMPECILHO”
7
Rita - Este nosso filho
É um empecilho
Lutas, brigas, rixas, discussões e confusões.
Os dois- Simão é mesmo um empecilho.
Coro - Este vosso filho! Este vosso filho!
Domingos - Este nosso filho
é um empecilho
não sei a quem sai, não é à mãe, nem é ao pai.
Os dois: Simão é mesmo um empecilho.
Coro - Este vosso filho! Este vosso filho!
Os dois - Este nosso filho
é um empecilho
Temos cinco filhos só Simão nos dá cadilhos
Coro - Ele é mesmo um empecilho!
Os dois - Este nosso filho!
Coro - Orgulhoso como o pai
E teimoso como a mãe
É rebelde até não mais
Os dois - Mas nisso não sai aos pais!
Coro - Este vosso filho
É um empecilho
Manuel - A culpa é das más companhias!
Domingos - O senhor , que é irmão e mais velho, bem podia ter feito qualquer coisa!
Mandei-os para Coimbra para quê!? Para estudarem.
Manuel - Simão gastava todo o dinheiro dos livros ... em pistolas.
Rita - Um filho meu armado e pistoleiro!
Manuel - E convivia com os mais famosos perturbadores da academia.
Rita - Que vergonha!
Domingos - Vergonha é roubar, D. Rita!
Manuel - Corria de noite pelas ruas, insultando os habitantes e provocando-os à luta.
8
Domingos - E entretanto que é que o senhor fazia?
Manuel - Eu?!... roubava ...
Domingos e Rita - Roubava?
Manuel - Roubava horas aos estudos ... porque viver com o mano Simão é difícil ... e eu não
conseguia concentrar-me.
Domingos - Enquanto um andava aos tiros o outro não conseguia concentrar-se.
Se não conseguia concentrar-se, fizesse ao menos qualquer coisa para salvar a
reputação dos Menezes!
Rita - Nisso, por acaso, o senhor tem, outra vez, razão!
Domingos e Rita - Nós aqui em Viseu é que não podíamos fazer nada!
MÚSICA “PAM! PAM! PAM! PAM!” 7º. TEMA RUFOS
Manuel - Eu tentei indicá-lo o bom caminho.
Rita - Então e ele?!
Manuel - Dizia que eu era ... um Choninhas.
Rita - O quê?
Manuel - Mandava-me calar e chamava-me de Choninhas.
Rita - Choninhas!
Manuel - E à frente dos outros.
Rita - O teu pai tem de saber isto.
Manuel – Não lhe conte, senão ele ri-se.
Rita – O teu pai rir-se ?!!! Vê-se bem como não o conheces. Menezes!
Domingos - Sim, D. Rita.
Rita - Simão chamava constantemente ao irmão Choninhas.
(Domingos ri-se e todos os outros menos Rita e Manuel)
Domingos – E o que a gente pensou para lhe chamar Manuel!
Rita - O irmão chama-lhe Choninhas!
Domingos – Chama-lhe então Choninhas! Nunca ouvi.
9
Assenta-lhe que nem uma luva.
Rita – Nunca ouviu porque o senhor só ouve o que lhe convém!
Domingos – E por que é que havia de ouvir?
MÚSICA SEGUE ATÉ O FIM (A FALA CONTINUA ACIMA DA MÚSICA)
8º TEMA FILME MUDO COM TEXTO DRAMA
Rita – Porque o senhor é pai e devia pôr cobro a estas impertinências de Simão!
Domingos – Sou pai, mas também sou corregedor e tenho mais o que fazer!
Rita – Menezes!!!
Domingos- E para pôr cobro a esse tipo de impertinências, nada melhor que a mãe! Mas a mãe, D.
Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco de Mesquita Menezes, onde é
que estava a mãe?
Rita – Aqui em Viseu!!!
Domingos – Em frente ao tocador, recordando os tempos em que era dama do paço, cortejada por
tudo quanto era homem, incluindo os primos; e esquecendo por completo que é uma senhora
casada com cinco filhos! A sua cabeça está vazia, D. Rita!
Rita – Pois a sua está bem cheia!
Todos – Cheia?
Rita – Cheia de pensamentos ignóbeis e mesquinhos!
Sempre lhe fui fiel, senhor Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Menezes!
Domingos – Muito obrigado!
Criados – Era obrigada! Pelo fidalgo!
Rita – Mas o senhor, de fidalgo só tem nome!
O teu pai foi terrivelmente ciumento.
Manuel – Por quê?
Rita – Porque quando olha para o espelho vê o rosto que eu tenho que ver todas as manhãs, todas
as noites, e o que vê não lhe inspira confiança nenhuma!
Domingos – Basta D. Rita! Basta!
É verdade que a sua mãe enlouqueceu muitos homens,
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Todos: Incluindo os primos
Domingos: Mas nenhum ficou louco ao ponto de a pedir em casamento; beleza sem dote pode
proporcionar um bom futuro ... mas perde-se a liberdade por completo, não é D. Rita?
Rita – O senhor não tem nem motivo, nem idade, nem figura para me falar nesse tom e dessa
maneira!
Domingos – Sou seu marido e falo-lhe no tom que me apetecer!
Quanto às alusões que fez a minha figura...
Rita – Triste figura!
Domingos – Devo lembrar- lhe que quando me casei consigo a minha figura era mesma, mas isso
não a impediu de aceitar o meu idiota pedido de casamento, nem tão pouco que nos
reproduzíssemos em três filhas e dois filhos!
Mas eu sei que casou comigo por causa de meu dinheiro!
Rita – Casei porque simpatizava consigo! Achava-lhe uma certa graça, descobri-lhe um encanto
que afinal era mentira! O senhor está diferente!
Domingos – Pois a senhora está a mesma, continua a parece que tem 20 anos e isso põe-me
doido!
Rita – Não aguento mais!
Domingos – Nem eu!
Os outros – Nem nós!
Manuel – Por favor, não discutam por minha causa!
Rita – Tréguas! Menezes, Tréguas!
Domingos – Tréguas.
Criados – Tréguas.
MÚSICA 9º. TEMA: TANGO
(FINAL DA DISSENÇÃO DOS MENEZES)
(ENTRA SIMÃO)
Simão – Juro que não estava à espera desta recepção!
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Domingos – E eu esperava que esses seis meses no cárcere académico lhe tivesse feito perder a
arrogância ... mas verifico que me enganei.
Simão – Enganou-se redondamente, senhor meu pai.
Domingos – E ainda se atreve a confessá-lo?
Simão – De que me vale negar?!
Domingos – Insolente!
Rita – O seu pai mando-o para Coimbra para estudar, não foi para se meter em politiquices.
Simão: Tem razão, minha mãe.
Manuel – Nem se meter com tricanas.
Rita – Nem para se meter com ... o que é uma tricana?
Simão – Uma espécie de barco rebelo minha mãe!
Rita – Vejo que agora também se interessa pela marinha!
Não admira que nos estudos tenha metido tanta água!
Domingos – O senhor transformou-se no terror de Coimbra!
Uma espécie de Robbespièrre de capa e batina!
Rita – E foi preso, isso é muito lindo, não é? A cadeia!
Simão – Fiz amizade com uma ratazana que adorava o nosso apartamento! Uma ratazana de
esgoto! Assim!
Rita – Não me fale em ratazanas que me provoca peles de galinha!
Menezes! Mande o seu filho calar-se!
Domingos – Cale-se!
Rita – Para o tirarmos da prisão tivemos de recorrer aos amigos e aos parentes; uma vergonha, um
enxame!
MÚSICA 10º. TEMA FILME MUDO (SEGUE PARA A OUTRA CANÇÃO)
MÚSICA DA CONFUSÃO (VAI BAIXANDO PARA A FALA)
Simão – A Margarida não tinha parentes, nem outros amigos, além de mim!
Rita – Margarida? Quem é essa Margarida?
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Simão – Não posso dizer-lhe minha mãe.
Rita – Quero saber quem é!
Simão – Não vai gostar.
Rita – Mesmo assim quero saber!
Domingos (FALA POR CIMA) – Responda a sua mãe!
Simão – Margarida ... eu chamava-lhe Guida ... foi o nome que dei à ratazana!
Rita – Menezes! Isto é demais! O nosso filho quer dar cabo de mim! Chamar um nome tão lindo a
uma coisa tão feia!
Manuel – E a mim chamava-me Choninhas!
Criado 1- Margarida à ratazana ....
Manuel – E a mim, Choninhas!
Criada 2 – Parece impossível !
Manuel – Simão defendia que Portugal devia regenerar-se num baptismo de sangue!
Criada 1 – Impressionante!
Manuel – E foi preso!
Simão – Fui denunciado!
Domingos – Eu próprio o denunciaria se lá estivesse!
Criados – Foi então preso por denúncia.
Simão – Traíram-me, é verdade! E fui preso.
Criado 1 – Pronto! Já passou!
Criada 1 – Já passou, já passou!
Domingos – Fique sabendo que não consisto que volte a dirigir-me a palavra. Saia!
A partir de agora, ou se porta ou deve ser ou...
Rita – Menezes, não lhe diga mais nada, que não vale a pena!
Domingos – Tem razão, é gastar o meu latim para nada!
Simão – Tem razão, meu pai, é gastar o seu latim para nada!
MÚSICA 12º. TEMA RUFOS
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Simão – Queridos pais, meus queridos pais, mais uma vez estamos de acordo. Quase já sinto
saudades da prisão.
(SEGUE PARA O ROCK)
MÚSICA 13º. TEMA ROCK “PRA PRISÃO”
Simão – Indesejado sempre fui e sou
um empecilho; não sei para onde vou!
Peço perdão; estou arrependido
oh! quem me dera dizer-lhes ao ouvido.
Todos – Já já já já já já já...
P’ra prisão!
Deviam ver p’racreditar
Aquele hotel é de tarar
o da prisão!
Dão-nos comida estragada
bons conselhos e porrada
na prisão!
Na prisão!
Com um grãozinho na asa
É bem melhor que estar em casa
Na prisão!
TODOS - TODOS P’RA PRISÃO!
TODOS P’RA PRISÃO!
TODOS P’RA PRISÃO!
VÃO JÁ TODOS P’RA PRISÃO!
SIMÃO – PASSEI UNS DIAS DIVERTIDOS
BELOS DIAS BEM CURTIDOS
14
TODOS – NA PRISÃO!
SIMÃO - TINHA UMA CELA PEQUENINA
E UMA CAMA APERTADINHA
TODOS - SEM COLCHÃO
SIMÃO - CÁ POR MIM NÃO RECLAMAVA
POIS NINGUÉM ME CHATEAVA
TODOS - TODOS P’RA PRISÃO!
TODOS P’RA PRISÃO!
TODOS P’RA PRISÃO!
VÃO JÁ TODOS P’RA PRISÃO!
TODOS – PASSOU UNS DIAS DIVERTIDOS
BELOS DIAS BEM CURTIDOS
NA PRISÃO!
TINHA UMA CELA PEQUENINA
E UMA CAMA APERTADINHA
SEM COLCHÃO
SIMÃO - CÁ POR MIM NÃO RECLAMAVA
POIS NINQUÉMEM ME CHATEAVA.
TODOS – NA PRISÃO!
TODOS P’RA PRISÃO
TODOS P’RA PRISÃO
TODOS P’RA PRISÃO
TODOS P’RA PRISÃO
VÃO JÁ TODOS PARA A PRISÃO!
JÁ
JÁ
JÁ
JÁ
P’RA PRISÃO!
RITA – Manuel vai para Bragança, para a escola de cadetes!
DOMINGOS – Quando os filhos não se dão, o melhor é separá-los.
15
RITA – Não nos podemos esquecer de Caim e Abel! E estavam no paraíso!
DOMINGOS – E nós no inferno! Simão fica em Viseu.
RITA – Mas no fim do período de férias regressa a universidade de Coimbra!
MANUEL – Com aquele feitio, aposto que não se vai aguentar lá por muito tempo!
DOMINGOS – Alguém lhe perguntou alguma coisa? Alguém lhe pediu sua opinião?
NARRAÇÃO – MÚSICA – CAIXA DE MÚSICA (REALEJO)
15º TEMA (CONTINUAÇÃO)
HOMEM – E assim passou um mês ... dois meses .. e depois três.
Estou a faltar a cena!
CRIADA 2 – No espaço de três meses
fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão.
CRIADO 2 - Simão estava diferente
Parecia outro Simão.
CRIADA 2 – E todos se admiravam com esta transformação.
CRIADO 2 – Mas de todos, quem mais se admirava era o pai quantas vezes pensava:
DOMINGOS – Alguma coisa se passa!
Desconheço este meu filho!
CRIADA 2 – Porque Simão deixou de ser um rebelde, um empecilho!
RITA – Já sei! Foram os conselhos que eu lhe dei!
DOMINGOS – Ou então ficou mansinho porque eu lhe castiguei!
CRIADO 2 – Mas é sabido que não são as punições; os castigos
CRIADA 2 – Grandes exemplos ou conselhos
OS DOIS CRIADOS – Quer eles venham dos novos quer eles venham dos mais velhos.
CRIADA 2 – Que modificam alguém
CRIADO 2 – E neste caso: Simão.
CRIADA 2 – Mas tem de haver uma razão.
CRIADO 2 – Simão estava diferente ...
16
OS DOIS CRIADOS – Porquê?
MÚSICA (CAIXA DE MÚSICA) (BAIXO COM A FALA EM CIMA)
16º. TEMA: REALEJO
HOMEM – Porque Simão amava sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira e bem
nascida: Teresa.
Filha de Tadeu Albuquerque,
que odiava profundamente Domingos Botelho.
TADEU – É verdade, sim senhor, e digo-o com orgulho: ódio! O ódio que eu sinto por esse
corregedor de meia tigela vem cá de dentro, das entranhas!
Esse espantalho já proferiu uma sentença contra mim, mas asseguro-lhe que não perde
pela demora.
DOMINGOS – Diga a esse patife, que só minha consciência é julgadora dos meus actos.
TADEU – Espantalho! Onde você estava bem era a espantar pardais.
DOMINGOS – Se continua com as suas torpezas, far-lhe-ei saber que os Correia Botelho de
Mesquita e Menezes saberão responder as injúrias pela boca de um bacamarte!
TADEU – O senhor é um espantalho vestido de juiz!
DOMINGOS – Pois o senhor para palhaço rico nem precisa de lantejoulas! O seu lugar é no circo.
HOMEM – Nesta vida, cada um tem o papel que tem!
MÚSICA 17º. TEMA REALEJO (ATÉ O FIM)
NARRADOR – Teresa e Simão, conhecedores deste ódio, encontraram ao fim forma de iludir as
duas famílias.
E durante três meses, às escondidas dos pais, trocaram mais lindas palavras de amor.
A cena passa-se num jardim.
E entendeu o encenador
realçar toda a magia
deste inocente amor
17
num quadro de fantasia
MÚSICA 18º. TEMA “SOU UMA FLOR DELICADA”
VIOLETA – Sou uma flor delicada
Fico bem numa opereta
Sou muito solicitada
o meu nome é Violeta
AMOR PERFEITO – Sou único! Sou diferente!
Observam-me com respeito
Faço feliz quem me tem
Eu sou Amor Perfeito
PAPOILA – Eu sou fogo, labareda
Não há outra, quente assim!
Entonteço quem me cheira
Sou Papoila de Jardim
GIRASSOL – Eu, sou amarelado
Tostadinho pelo sol
Não sou um ovo estrelado
Sou um simples girassol
AMOR PERFEITO – Papoila! ó Papoila!
PAPOILA – Quem me chama?
AMOR PERFEITO. – Sou eu, o amor perfeito. Que horas são?
VIOLETA – São horas de te calares porque eles devem estar a chegar!
GIRASSOL – D.Violeta! Tenho tanto medo de ser desflorado!
AMOR PERFEITO – Convencido!
PAPOILA – Peneirento!
VIOLETA – Não és nenhum malmequer!
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PAPOILA – Eles gostavam de arrancar pétalas aos malmequeres!
GIRASSOL – Mas é de noite, podem-me confundir, não podem?!
Tenho tanto medo de ser desflorado! Era a 1º vez!
AMOR PERFEITO – Estão a ouvir o mesmo que eu? O amarelo convencido que passa por
branco!
GIRASSOL – De noite todos os gatos são pardos!
PAPOILA – E todos os girassóis parvos!
GIRASSOL – Drogada!
VIOLETA – Que flor tão saloia!
PAPOILA – Campesino!
AMOR PERFEITO. – Calem-se! Aí vêm eles!
19º. tema BEM-ME-QUER MAL-ME-QUER
... A cena passa-se num jardim.
E entendeu o encenador
realçar toda a magia
deste inocente amor
num quadro de fantasia
PAPOILA – Estás muito contente ó Girassol!
GIRASSOL – Deve ser por estar perto de ti!
AMOR PERFEITO – Diz lá o que tens!
GIRASOL – Nada! Só estou contente!
VIOLETA – Se estás a espera que eu te pergunte por que, estás muito enganado!
GIRASOL – Então eu digo: Vocês repararam que já não há um único malmequer no jardim?
OS OUTROS – E então?
GIRASOL – Eu sou o mais parecido com um malmequer!
PAPOILA – Coitadinho! Ainda não perdeu a ideia de ser desflorado!
VIOLETA – Pode pôr as pétalas de molho que eles não vão repetir a cena!
GIRASSOL – Têm a certeza?
OS OUTRA – Claro!
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GIRASSOL – Acabar de me dar um grande desgosto: uma cena tão linda!
VIOLETA – Um bocadinho lenta!
AMOR PERFEITO – Uma cena de amor nunca pode ser feita á pressa!
PAPOILA – Falou o entendido!
GIRASSOL – Vocês por acaso não sabem se haverá alguma cena com abelhas?
VIOLETA – Por quê?
GIRASSOL – Não é para vos fazer inveja, mas estou carregadinho de pólen!
HOMEM – E assim passou mais um mês ... dois meses e depois três.
DOMINGOS – Seis meses!
TADEU – Seis!!
DOMINGOS – Durante seis meses Simão e Teresa encontram-se no jardim e sem nós sabermos!
TADEU – Nessas coisas somos os últimos a saber!
DOMINGOS – Problema maior é quando somos os últimos a saber noutras coisas!
TADEU – Sou viúvo: tenho esse problema enterrado!
DOMINGOS – Os meus sentidos são pensamentos.
TADEU – Muito obrigado.
DOMINGOS – Não se deixe iludir por esta aparência de amizade
TADEU – A verdade é que estávamos lá dentro
DOMINGOS - Nos bastidores
TADEU – e resolvemos abandonar por alguns instantes o papel de “pais tiranos”
DOMINGOS – Para podermos partilhar com os nossos filhos ... e convosco o próximo número.
TADEU – O número sobre o amor!
DOMINGOS – Aí vêm eles!
TADEU – Lindos!
DOMINDOS – Apaixonados!
TADEU – Chego a ter pena por ser obrigado a impedir o casamento!
DOMINGOS – Eu também; o público normal, não lhe parece?
TADEU – Sim , sim.
DOMINGOS – Portanto, apenas em espírito, porque as personagens ficaram no camarim.
TADEU – Mas não se esqueça que somos os maus da história.
DOMINGOS – Num parente sobre o amor!
TERESA – Há já seis meses que nos conhecemos
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SIMÃO – Que nos encontramos
OS DOIS – Em segredo!
PAIS – Shuuu!
TERESA – Se os nossos pais soubessem!
SIMÃO – Mais não sabem!
TERESA – Nem sonham ...
PAIS – Shuuu!
DOMINGOS – Formam um bom par.
TADEU – Seu filho é ...
TERESA – Simão ...
TADEU – Um rapaz perfeito
DOMINGOS – E a sua filha , sim!
SIMÃO – Teresa.
DOMINGOS – É a mulher ideal!
TADEU – Pst ! Irão ... fazer amor?
21º. TEMA “JÁ TENHO PAR”
Para fazer amor você primeiro vai ter de encontrar
A mulher ideal para amar
Só depois de serem dois
Olhos nos olhos
Bate Bate o coração
SALTA MAIS E MAIS E MAIS – QUASE A ARREBENTAR
MÃO NA MÃO E SEM FALAR – MAS QUE PAR
JÁ TENHO PAR! JÁ TENHO PAR!
AGORA TAMBÉM POSSO AMAR!
SINTO TONTURAS COM AMOR
BATE O MEU CORAÇÃO COM ESTA PAIXÃO CADA VEZ MAIOR
TUDO O MAIS É FULGAZ – NADA NOS APRAZ – APENAS O AMOR
SÓ QUERO AMAR! SÓ QUERO AMAR!
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CONTIGO VOU PODER VIBRAR
COM AS DELÍCIAS DO AMOR
TALVEZ DEPOIS! TALVEZ DEPOIS!
OU DOCE BEIJO OU ATÉ DOIS
ASSIM SE DESCOBRE O AMOR
DEPOIS TALVEZ! DEPOIS TALVEZ!
EM VEZ DE DOIS SEREMOS TRÊS
E ASSIM AUMENTA O AMOR!
BATE O MEU CORAÇÃO CADA VEZ MAIOR
TUDO O MAIS BATE É FUGAZ – NADA NOS APRAZ – APENAS O AMOR
JÁ TENHO PAR! JÁ TENHO PAR! AGORA TAMBÉM POSSO AMAR
SINTO TONTURAS COM O AMOR!
MÚSICA REALEJO (BAIXO PARA TEXTO)
TERESA – Quem me dera ser uma flor!
SIMÃO – Qual flor?
TERESA – Podia ser ... uma Papoila
SIMÃO – Ias entontecer-me ...
GIRASSOL – Pudera ! é só droga!
PAPOILA – Démodé!
TERESA - .... Ou uma violeta
SIMÃO – A violeta é ...
VIOLETA – Uma lady!
SIMÃO - .... Demasiado fúnebre
PAPOILA – Se não mudas de cor, não te safas!
TERESA – Ou então ... um girassol
GIRASSOL – Sim ... sim.
VIOLETA – Não te excites que entortas o pólen todo!
SIMÃO – O amarelo é desespero.
TERESA – Quero saber então ...
AMOR PERFEITO – Mas é evidente que sou a flor preferida pelos apaixonados!
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SIMÃO – Querias ser um amor perfeito?
TERESA – Sim ... para ti, eu quero ser um amor perfeito.
AMOR PERFEITO – Tem tão bom gosto de rapariga.
SIMÃO – O amor perfeito ... não existe!
GIRASSOL – Toma e vai-te curar!
PAPOILA – Nem deu pela sua presença!
TERESA – Não existe ?
SIMÃO – Só nos livros, no cinema e no teatro!
TEREA – Mas então ...
SIMÃO – Gosto de ti assim em carne e osso
TERESA – Oh! Meu galã de ponta!
SIMÃO – Oh! Minha ingénua dramática!
TERESA – Vem aí o seu pai!
SIMÃO – Oh! Vem aí o meu pai!
DOMINGOS – Vá imediatamente para casa!
Desde quando é que uma flor canta?!
TERESA – Eu... não sou uma flor...
IA A PASSAR...
DOMINGOS – Pois passe muito bem... mas passe ao largo... de forma a não se encontrar comigo e
muito menos com o meu filho!!!
TADEU – Teresa!
DOMINGOS – Se quer casar, case com um trolha, que é um digno genro para o labrego do seu pai!
TADEU – Teresa! Já te disse que não quero que fales com espantalhos!
DOMINGOS – Se o senhor não lhe sabe dar educação, tenha ao menos vergonha nessa cara! Seu
pai-palhaço!
FERNANDO GOMES: Clown!
MÚSICA 23º. TEMA REALEJO
HOMEM – Podem sair. Muito obrigado pela vossa colaboração.
TADEU – Não chores, minha filha. Conta-me tudo, Teresa. O que é que aquele espantalho quis
dizer ao proferir tais palavras?
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HOMEM – Tadeu de Albuquerque fingiu acreditar na filha quando ela se justificou dizendo que
tinha ido ao jardim dar de beber às flores, quando por ali passou Simão, que ela nem sabia ser
filho do corregedor.
Que apenas tinham dito um ao outro “olá” e depois apareceu o pai...
TERESA – ... e eu nem percebi porque é que ele ficou assim, tão zangado!
HOMEM – E o pai fingiu acreditar esperançado de que tudo aquilo não passasse duma criancice
de Teresa.
TERESA – Obrigada por ter acreditado em mim, senhor meu pai.
TADEU – Mas só por esta vez. E se o que aquele espantalho disse é verdade... vais para um
convento!
E agora, não te quero ver triste.
Quem é a mais linda flor do nosso jardim?
MÚSICA 24º TEMA “AS FLORES QUE NASCEM NO JARDIM”
TADEU – As flores que nascem no jardim
CORO – Lá lá!
TADEU – São plenas de cor e beleza.
Nenhuma é tão bela, tão linda assim
CORO – Nenhuma é tão bela tão linda assim
TADEU – Ao lado da mais bela: Teresa
CORO – Da sua filhinha Teresa.
TADEU – Menina bonita do meu coração
Canta p’ro Papá uma linda canção
TERESA – Trá – lá – lá – lá – lá – á
Trá – lá – lá – lá – lá – á
TADEU – Filhinha do meu coração
CORO - Trá – lá – lá – lá – lá
Trá – lá – lá – lá – lá
Trá – lá – lá – lá – lá
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Trá – lá – lá – lá – lá
TADEU – Quem quer ao seu pai agradar
CORO – Lá-lá!
TERESA – Tem de ser sempre obediente
TADEU – E então o Papá não tem de ralhar
TERESA E CORO - Não tem de bater nem castigar
E diz babado e contente
TADEU – A minha filha é obediente.
CORO E PAI – Mas se algum dia desobedecer
Vai para um convento e até morrer.
CORO - Trá – lá – lá – lá – lá
Trá – lá – lá – lá – lá
Trá – lá – lá – lá – lá
Trá – lá – lá – lá – lá
Fica lá até morrer.
MENDIGOS
MENDIGA 1 – Por que é que eles haviam de disparar primeiro?
MENDIGO 1 – Porque são polícias!
MENDIGO 2 – Pode baixar os braços que ninguém aqui p’ró roubar!
MENDIGA 1 – Nem p’ra roubar nem p’ra pedir que a gente agora mudou de tática!
MENDIGO 3 – É, a gente agora só ameaça!
MENDIGO 1 – Ou dás o que tens ou atiramos-te deste precipício!
HOMEM – Eu só tenho a roupa que trago no corpo!
MENDIGO 2 – Pensando bem, a roupa não serve a nenhum de nós e mesmo que ele dê o corpo,
onde é que a gente esconde?
MENDIGA 1 – Lá estás tu com pena do homem!
MENDIGO 2 – A gente ameaçou não é para sair daqui com as mãos a abanar!
HOMEM – Isso não é nada bonito!
MENDIGA 1 – Estás a ver? Que até ele concorda
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HOMEM – Ameaçar, seja porque motivo for, é que não é bonito! Tadeu ameaçou a filha mas não
serviu-lhe nada!
MENDIGO 3 – Quem é esse Tadeu?
HOMEM – É aquele!
MENDIGA 1 – Tem ar de quem tem!
HOMEM – A filha gosta de um tal Simão que foi estudar para Coimbra. O pai mandou vir o
sobrinho de Castro Daire...
MENDIGO 2 – (lendo) Baltazar Coutinho, senhor de casa igualmente nobre da mesma prosápia
MENDIGA 1 – Deve ser podre de rico!
MENDIGO 1 – É aquele!
TADEU E O SOBRINHO
TADEU – Mandei-o chamar a Viseu porque...
BALTAZAR – Fez-me estranheza tanta urgência ....
TADEU – É que tem acontecido umas coisas ...
BALTAZAR – Só vim pelo muito respeito que tenho ao meu tio ...
TADEU – E eu penso que não devemos atrasar
BALTAZAR – Porque para lhe falar com franqueza , nessa altura ...
TADEU – Atrasar por mais tempo a nossa combinação ..
BALTAZAR –Nesta altura não me dá feição!
TADEU – Não lhe dá feição?
BALTAZAR – Não me dá jeito ... por motivos de doença, claro!
TADEU – O meu sobrinho está doente ?
BALTAZAR – Pensei até que já se tinha apercebido ... por causa da minha postura!
TADEU – Por causa da sua postura?
BALTAZAR – Meu tio! Prezo-me de normalmente ter outra postura que não é esta!
TADEU – Sim, realmente está um bocadinho ... como direi .... empertigado!
BALTAZAR – Desde pequenino que sou alérgico a cães.
TADEU – Cães!
BALTAZAR – O tio não tem cães em casa?
TADEU – Não, não! Teresa tem um canário.
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BALTAZAR – Aguento canários e até gatos, mas cães não!
TADEU – Fica ... empertigado!
BALTAZAR – Pois ontem, sem querer, claro! Fui confrontado com um lobo da alsácia! Ainda subi
para uma árvore, mas fiquei com as marcas.
TADEU – O lobo da alsácia mordeu-lhe?
BALTAZAR – Não, mas com a precipitação da subida, raspou-se-me esta parte toda no tronco da
árvore. Era um carvalho.
TADEU – C’os diabos! Isso podia ter sido fatal!
BALTAZAR – Se eu tivesse pensado um bocado, tinha saltado em vez de trepar ... mas não ocorreu!
TADEU – Então trepou de frente?
BALTAZAR – De costas é mais difícil.
TADEU – Claro, claro.
BALTAZAR - E nem convinha porque ficar com essa parte para frente do lobo de alsácia.
TADEU - Trepou entanto de frente, fez muito bem!
BALTAZAR – Muito bem não teria sido, porque raspou-se-me esta parte todo no tronco do
carvalho. Mas isto que estou a contar é confidencial!
TADEU – Mas sem gravidade, espero!
BALTAZAR – Eu também! Vamos lá a ver como é que isto fica quando me tirarem o gesso!
TADEU – Está então engessado?
BALTAZAR – Daqui até aqui! Custa-me andar, custa-me a comer, custa-me ....
TADEU – Agradeço-lhe mesmo ter vindo.
BALTAZAR – Disse que era urgente espero que seja.
TADEU – É ! É porque receio que Teresa esteja embeiçada pelo filho daquele ... espantalho!
BALTAZAR – A prima Teresa embeiçada pelo filho dum espantalho?
TADEU – Domingos Botelho É esse o meu receio! Simão agora está em Coimbra
BALTAZAR – Sendo assim, não receie: longe da vista, longe do coração! E agora estou cá eu!
TADEU – Pois! Mas se agente não põe um travão nos acontecimentos, também pode acontecer
que do longe se faça perto! Tem de se declarar, de lhe abrir que o seu coração!
BALTAZAR – Mas o senhor meu tio! Como é que lhe posso abrir o meu coração com uma couraça
de gesso?
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TADEU – Amanhã pode ser tarde! O vosso casamento seria a suprema felicidade da minha velhice
... e um grande alívio em relação ao espantalho!
BALTAZAR – Bem , já que cá estou ...
TADEU – Viseu ... Castro Daire!
BALTAZAR – Posso dar-lhe a nossa união como certa. Daqui para o futuro, deixará de ser meu tio,
para passar a ser: Meu pai!
TADEU – Teresa ! Deixo-os a sós para ficar mais a vontade!
BALTAZAR – Eu bem queria, mas a couraça tolhe-me os movimentos.
MÚSICA 26º TEMA- “CANÇÃO PRIMO BALTAZAR”
BALTAZAR –Prima Teresa é a altura de lhe abrir o coração está pronta p’ra me ouvir?
TERESA – Comece, pois então!
BALTAZAR – Como saberá o seu pai tem um sonho – Deus do céu! É juntar as nossas casas, Castro
Daire e Viseu. Estamos de perfeito acordo eu e ele e então só falta a prima Teresa dar a sua
opinião eu já tenho a certeza daquilo que vai dizer esse seu silêncio é “sim” está claro de
entender diz o velho ditado que quem se cala consente diga lá o que é que sente diga lá o que é
que sente
POBRES - Diz o velho ditado que quem se cala consente
Diga lá o que é que sente
Diga lá o que é que sente
TERESA – Se quem se cala consente vou começar a falar
Eu detesto o seu visual! essa forma de estar!
O seu, ar convencido de que vou dizer sim
Falhou completamente, porque eu penso assim :
Há muito tempo que sou toda do meu querido Simão
E estou-me borrifando para a nossa união
Por isso se pergunta “ Qual a minha opinião”
Está na ponta da língua: evidentemente é NÃO
BALTAZAR – Dessas suas palavras ainda se há-de arrepender
eu cá estarei p’ra ver
eu cá estarei p’ra ver
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POBRES - Dessas suas palavras ainda se há-de arrepender
eu cá estarei p’ra ver
eu cá estarei p’ra ver
POBRES – Continuaram a conversa que acabou em discussão ele dizendo sim! Ela gritando não!
BALTAZAR – Assim é que eu posso
Chamar-lhe de “paizinho”
Diz que ama Simão, o filho daquele espantalho.
TADEU – Há de se casar consigo!
Tem medo quando eu ralho!
Vou dar-lhe uma tareia muda já de opinião!
Vai ficar num frangalho, depressa esquece de Simão!
BALTAZAR – Talvez seja melhor, por bem, chamá-la à razão!
Falar-lhe ao coração!
Falar-lhe ao coração!
TODOS – Talvez seja melhor, por bem, chamá-la a razão!
Falar-lhe ao coração!
Falar-lhe ao coração!
TADEU – Teresinha, minha filha! tu sabes como eu gostava de te ver casada com seu primo!
TERESA – Eu sei, meu pai, mas essa união é impossível!
POBRES – Castro Daire – Viseu!
TERESA – É impossível!
TADEU – Essa tua decisão, esse teu gesto, faz-me revelar para a sepultura, e tu ... resvalas para um
convento, não tarda a nada! Morreste para mim!
TERESA – Senhor meu pai! Não me mande para um convento, peço-lhe! Não me prive sua
companhia. Prometo-lhe que morrerei para todos os homens, menos para si.
MENDIGO 3 – Astúcia tem ela!
MENDIGO 2 – Aquilo é hipocrisia!
MENDIGA 1 – Seria mais correto chamar-lhe...
MENDIGO 1 – Perspicácia!
TADEU – Faço-lhe mais um ou dois choradinhos deste estilo e casa com o primo!
Viseu-Castro Daire!
MENDIGO 2 – Ainda não sei bem como, mais isto é capaz de render qualquer coisita!
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TERESA – Pst! ó PST!
MENDIGO 2 – Como está a menina Teresa?
TERESA – Preciso que me faça um favor ....
MENDIGO 2 – A menina manda!
TERESA – Não, não! Quem manda é o meu pai, mas estou pronta a desobedecer-lhe!
MENDIGO 2 – Não faz se não bem! Se estivéssemos todos de acordo a vida era monótona!
TERESA – Sabes onde fica Coimbra?
MENDIGO 2 – Sabem onde fica Coimbra?
TODOS – É p’rali!
TERESA – É p’raquele lado!
TERESA – Precisava que me levasses esta carta a Simão .....
MENDIGO 2 - .... e então lá vou eu a Coimbra!
MENDIGO 1 – Esta visto que o pai não lhe dá dinheiro p’ros selos!
MENDIGO 3 – E vais de bolas?
MENDIGO 2 - Deu-me um anelzinho ... mas já prometeu um par de luvas e brincos!
MENDIGO 3 – Então a gente vai contigo! Viseu-Coimbra
MENDIGA 1 – E Coimbra – Viseu!
MENDIGO 2 – Porquê ?
MENDIGA 1 - Então havias de ir sozinha? E podemos pedir pelo caminho!
MENDIGO 1 – E a gente até gosta de viajar, lá por sermos pobres
MENDIGO 2 – Cá vai uma cartinha p’ra contar tudo ao Simão
TODO - E DIZ-LHE QUE JÁ MANDOU BUGIAR
O PRIMO BALTAZAR QUE
JÁ SE FOI
JÁ PARTIU
JÁ NÃO VOLTA A VISEU
O AMOR É TEU!
O AMOR É TEU!
E EU
CONTINUO A ALDRABAR AO MEU PAI SEM PARAR
ESTARÃO A PENSAR ESTARÃO A PENSAR
QUE MENTIR ASSIM AO PAI NÃO É BONITO
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TALVEZ NÃO SEJA, MAS HÁ-DE FAZER!
O NOSSO AMOR É BEM MAIOR QUE UMA PAIXÃO
EU SEI QUE ELE SERÁ AMANHÃ DE PERDIÇÃO
MAS TEM DE SER CONTINUAR E PERDER OU GANHAR
SE O AMOR ACONTECE NUNCA MAIS ARREFECE
E EU JURO NO PAPEL AO AMOR SER FIEL
SEJA AMOR OU PAIXÃO HÁ-DE SER PERDIÇÃO
29º TEMA – SINOS.
HOMEM – Ainda bem que já se foram todos embora! Vesti-me desta maneira porque pus-me a
pensar e não me lembro de saber de único padre que tenha sido assaltado! Assaltam ricos,
pobres, homens, mulheres, novos, velhos mas padres? Nunca ouvi dizer! Deve ser a batina que
afugenta o diabo!
TADEU – Vais hoje dar a mão ao teu primo Baltazar. É preciso que te deixes guiar cegamente pela
mão do teu pai.
Logo que deres esse passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam
de ser impostas pela violência.
Mas repara minha filha, que a violência dum pai é sempre amor.
POBRES – Eh!
MENDIGA 1 – O velho é mesmo foleiro!
TADEU – Dás-me o que peço ? Enches de contentamento os poucos dias que me restam?
MENDIGO 4 – Olha-me só o gajo, a fazer de conta que está com os pés p’ra cova!
TERESA - E será o pai feliz com o meu sacrifício?
MENDIGO 3 – Olha-me só o pai a pensar na bojarde que há-de dizer a seguir!
TADEU – Não digas sacrifício Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua
alma. Teu primo é um composto de todas as virtudes.... será um marido excelente.
MENDIGO 1 – Estás muito calada!
MENDIGO 2 – Estou a tomar nota de tudo... isto é material que bem contado ainda vai render
muito!
TERESA - E ele quer-me,depois de eu me ter negado?
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TADEU – Se ele está apaixonado, filha! E tem bastante confiança em si para crer que hás-de amá-
lo muito!
TERESA – Pois pode ter a certeza que hei-de odiá-lo para sempre!
MENDIGO 5 – Agora é que vão ser elas!
TADEU – Hás-de casar!
TERESA – É escusada a violência porque eu não caso!
TADEU – Hás-de casar, ou então morrerás num convento! Nenhum infame há-de pôr um pé nas
alcatifas de meus avós! E com o filho daquele espantalho, nunca! Maldita sejas! Já para o seu
quarto! E espere que daí a arranquem para outro, onde não verá um raio de sol!
(Para Baltazar) Não te posso dar a minha filha, porque já não tenho filha!A miserável a quem eu
dei este nome, perdeu-se para nós e para ela!
32º TEMA – SINOS
PADRE – Eu não tenho nada contra os pobrezinhos, mas quando começam a roubar, chateiam-me!
TODOS – ÚÚÚ!
PADRE – Claro que eles têm o seu valor.
TODOS – Ah!
PADRE – Aos beneméritos eles proporcionam as portas do céu!
33º TEMA – ORGÃO
TODOS – Aleluia!
PADRE – São motivo de inspiração para os artistas!
TODOS – Aleluia!
PADRE – O papão que leva as criancinhas a comer sopa! A nobre causa que faz elevar a voz dos
políticos!
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TODOS – Aleluia! Aleluia! Aleluia!
PADRE – Sim! Eles têm o seu valor e fazem falta!
TODOS – Fazem falta!
PADRE – E se Deus lhe deu dentes, mas ao mesmo tempo se esqueceu de lhes dar nozes, Ele lá
sabe por quê! Os pobrezinhos são as formigas do nosso piquenique. Não deixem morrer as
formigas.
34º TEMA – “DEUS DO CÉU”
O padre e a Freira saem Durante o “sermão” os actores estiveram a embelezar-se
para o final. Tal como no princípio trazem os livros do Amor de Perdição.
Cantam:
DEUS DO CÉU – MAS QUE MAIS ESTARÁ P’RA ACONTECER JÁ NEM SEI SE VAI DAR
P’RA SOFRER ESTE DRAMA CONTINUARÁ E A CONCLUSÃO VAI SER: UM AMOR DE
PERDIÇÃO!
MENDIGO 4 – Simão está em Coimbra, transtornado, desesperado, porque acabou
de receber uma carta de Teresa em que lhe diz que o pai a vai mandar para um
convento!
MENDIGO 2 – A carta é um pedido de socorro que não lhe sai do pensamento.
TERESA – Socorro!
MENDIGO 4 – E Simão não se conforma!
SIMÃO – Isto não pode acabar assim!
MENDIGO 4 – E regressa a Viseu, decidido a enfrentar o pai, o primo, e se
necessário for a raptar Teresa!
MENDIGO 2 – E como isto não pode acabar assim, marca-lhe um último encontro
no jardim.
33
MÚSICA 35º TEMA – “NO JARDIM”
JARDIM – E DE NOITE PARA NINGUÉM VER
MAS ALGUÉM JÁ SABE O QUE ESTÁ P’RA ACONTECER
O PAI DELA DESCOBRE TUDO E ENTÃO
VAI SER: UM AMOR DE PERDIÇÃO!
MENDIGO 4 – Por ironia do destino, o pai descobre o bilhete que Simão enviara à
Teresa:
TADEU – Temos de fazer qualquer coisa!
BALTAZAR – Primeiro, deixamo-lo encontrar-se com Teresa. Quero saber o que é
que ele diz que eu não lhe tenha dito; o que é que ele lhe fez que eu não tenha
feito!
TADEU – O que é que o meu sobrinho lhe fez? Nada!!
BALTAZAR – Aquilo que não fiz, só não fiz por causa da couraça: tolhe-me os
movimento!
TADEU – O filho do espantalho não tem couraça!
BALTAZAR – Mas nós vamos oferecer-lhe um sobretudo de madeira!
TADEU – Um caixão ?
BALTAZAR – Mas primeiro quero vê-los no jardim!
TADEU – E se eles forem longe demais?
BALTAZAR – Impossível: o jardim é pequeno.
TADEU – Sendo assim ....
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BALTAZAR – Esperamos que eles se despeçam e depois PUM PUM
TADEU – E era uma vez o filho do espantalho!
VÃO – VÃO TER DE ESPERAR – POIS!
É CHEGANDO O MOMENTO DE INTERVALAR.
O MELODRAMA CONTINUARÁ POIS É ALTURA IDEAL PARA DESCANSAR DEPOIS
DESTE FINAL
DEUS DO CÉU – MAS QUE MAIS ESTARÁ P’RA ACONTECER
ESTE DRAMA CONTINUARÁ E A CONCLUSÃO
VAI SER – UM AMOR DE PERDIÃO
OU NÃO?
Canção dos bêbados
NO BORDEL A VIDA TEM MAIS EMOÇÃO
O AMOR COM VINHO Á MISTURA É BOM!
NO COVIL SÓ ENTRAM MARGINAIS E ATÉ
FAZ LEMBRAR UM VELHO CABARET
RECORDAÇ ÕES / P’RA RECORDAR
DESILUSÃO / PARA APAGAR
PORQUE A MEMÓRIA / NESTA HISTÓRIA
SEM MEMÓRIA / FOI-SE NO AR
NÃO É FIEL / DIZ O LEITOR
35
NEM AO PAPEL / NEM AO AUTOR
MAS SE O DESTINO / É UM DESATINO
TROCA-LHE AS VOLTAS P’RA MELHOR!
NO BORDEL A VIDA TEM MAIS EMOÇÃO
O AMOR COM VINHO À MISTURA É BOM!
NO COVIL SÓ ENTRAM MARGINAIS E ATÉ
FAZ LEMBRAR UM VELHO CABARET
NÃO É FIEL / DIZ O LEITOR
NEM AO PAPEL / NEM O AUTOR
MAS SE O DESTINO / É UM DESATINO
TROCA-LHE AS VOLTAS P’RA MELHOR!
E BEBE UM COPO / E BEBE DOIS
VAIS AGUENTAR / AGUENTAS POIS
ATÉ TALVEZ / AGUENTA TRÊS
E SEIS E SETE E CHEGA AO DEZ!
NO BORDEL A VIDA TEM MAIS EMOÇÃO
A VIDA É BOA / P’RA BEBER
ANDAR À TOA / E ESQUECER
QUE O AMANHÃ / NÃO VAI TARDAR
UM NOVO DIA ESTÁ A CHEGAR
QUARTA PARTE – Na taberna do Sete Olhinhos
36
Na TABERNA, bebe-se e canta-se uma canção. O ambiente é de grande alegria.
A meio da canção surge MARIANA.
MARIANA – Não sei bem como é que entrei nesta história.
Eu não fazia idéia ...... foi o destino.
CANÇÃO DA TABERNA
Também nunca tinha entrado na taberna do Sete Olhinhos ....
Diziam-me que aquilo não era lugar para mim... há sempre
uns sítios que só são bons para os outros.
MÚSICA – 2º TEMA – OFFENBACH
APARECE SIMÃO
.... e pessoas.
A gente nunca chega aonde quer; só chega até onde vai
.... e se às vezes não vai mais longe ... é porque
o nosso autocarro não há meio de passar .... ou se
passa é porque já vai cheio ... e se mesmo assim a gente
insiste em entrar .... sentimos lá dentro e cá
dentro .... um aperto .... e pisam-nos .... e a gente
só tem é vontade de sair e continuar a pé.
Mas a pé ... não se vai longe.
MÚSICA (TODA ALTA)
37
3º. TEMA “CANÇÃO DOS BÊBADOS”
SIMÃO SAI. FIM DA CANÇÃO DA TABERNA!
MARIANA - O meu nome é Mariana. Tinha uma vida simples; as coisas com que me
preocupava eram aquelas coisas do dia a dia, que a gente às vezes até lhes dá
muita importância porque não tem nada com que verdadeiramente se preocupe.
Não acontecia nada.
PEQUENO DIÁLOGO NA TABERNA
MARIANA - Sou solteira .... e virgem. Mas isso não me preocupava; tinha me
habituado à idéia de continuar assim e comecei a amar o trabalho, as flores, os
pássaros ... eu sei que não é bem a mesma coisa, mas rezava muito, e como não
sabia como é que era a outra coisa, pelo menos não sentia saudades.
Não sabia, nem sei; só que agora tenho sonhos ...sonhos estranhos, porque como
ainda não sei como é, os meus sonhos são uma confusão de braços e de pernas ... e
quando acordo, acordo extenuada ... e preocupada ... porque aquilo do sonho não
deve ser bem assim ... tem de haver mais qualquer coisa para além dos braços e
das pernas.
PEQUENO DIÁLOGO NA TABERNA
SIMÃO – Boa noite a todos!
TODOS – ‘noite!
38
TABERNEIRO – Isto é dos diabos! Olhe que inda mesmo a bocado estava a falar em
si! Mas onde é que anda metido o senhor Simão, que há já um ror de tempo que
não aparece por aqui, num foi, ó Rosa? que ela até me veio cá com uma história
que eu nem percebi patavina!
ROSA – Vê lá mas é se te calas!
TABERNEIRO – Que nem parecia seu ter ido para Coimbra!
SIMÃO – Tem razão,eu não devia ter deixado Viseu!
TOINO – Então sempre a verdade aquilo da...
SIMÃO – Aquilo da quê?
EMBARCADIÇO – Tenha calma, ó Sr. Simão!
TABERNEIRO – Não se enxofre!
TOINO – Só perguntei se era verdade, gaita!
ROSA – Largue lá o homem!
TABERNEIRO – A gente ouve aqui, ouve ali ....
SIMÃO – O que é que ouviram?
TABERNEIRO – O que .... o que é que ouviste?
ROSA – Eu já nem te oiço!
TABERNEIRO – É tu .... ouviste alguma coisa? !
EMBARCADIÇO – Sou cego, surdo e mudo?
TOINO – Eu já nem sei o que é que ouvi!
TABERNEIRO – Está a ver ? Isto é tudo pessoal fixe! A gente o que entre por um
ouvido sai pelo outro!
ROSA – Beba um corpo e acalme-se!
TABERNEIRO – É oferta da casa!
SI MÃO – Preciso de falar contigo, Toino!
TOINO – Se é por causa daquilo de há bocado ...
SIMÃO – Isso já passou à história! Preciso que me faças um favor.
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MARIANA – E calores. Também comecei a sentir calores e não era, nem sol, nem
por ser verão. Foi desde aquele dia, em que entrei nesta história e conheci o
senhor Simão. Eu ia passar á porta da taberna do Sete olhinhos e ouvi chamar...
TOINO – Mariana! Mariana!
MARIANA – O Toino chamou outra vez e eu também pensei que era uma falta de
educação não responder ... e eu tenho esta mania de ser muito educada!
TOINO – Estás a falar com quem?
MARIANA – Falava comigo e com Deus.
TOINO – E então?
MARIANA – Então o quê ?
TOINO – Como é que correu?
MARIANA – Como é que correu o quê?
TOINO – A conversa!
MARIANA – Não zombes! que me queres?
TOINO – Não é isso ! Ele está em Viseu mas não quer que os sabiam; precisa de um
sítio para esconder-se
MARIANA – Não sou nenhum buraco!
TOINO – Precisa de um sítio para dormir ... ele paga!
MARIANA – Se tem dinheiro que compre um saco cama!
TOINO – É o senhor Simão Botelho! Só tens de o deixar ficar lá em casa enquanto
ele resolve o problema.
MARIANA – Que problema?
TOINO – É um problema lá dele!
MARIANA – E vai resolvê-lo p’ra minha casa?
TOINO – Não! O problema está noutra casa.
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MARIANA – Então porque é que não dorme na casa onde já está o problema?!
TOINO – Por quê?!
MARIANA – Só tenho uma cama!
TOINO – Uma cama serve muito bem.
MARIANA – É de corpo e meio.
TOINO – Se serve para ti, também serve para ele!
MARIANA – E onde é que eu durmo?!
TOINO – Podes ir para o palheiro .... ganhar uns dinheiritos e é só enquanto ele
resolve o tal problema!
MARIANA – E vai demorar muito tempo a resolver?
TOINO – Ele está ali à espera da resposta .... entras e já falas com Toino; aquilo não
é sítio para mim!
TOINO – Podes entrar à vontade que as pegas já se foram embora!
MARIANA – Lá dentro é que começaram os problemas, porque eu assim que o vi ...
(desmaia)
SIMÃO – Toino, a pequena estará doente?!
TOINO – Há pouco estava fresca que nem um alface!
SIMÃO – A pequena está com baixa tensão.
TABERNEIRO – Foi-se abaixo só de olhar para si!
TOINO – Inda agora estava com muita atenção.
ROSA – Tanta ingenuidade eu juro nunca vi!
EMBARCADIÇO – Nunca namorou, não sabe o que isso é!
TODOS – Tanta ingenuidade eu juro nunca vi!
ROSA – Julga que a cegonha é que traz o bebê.
SIMÃO – Ah! Sim?!
TABERNEIRO– Ela pensa....
TODOS – Só serve pra fazer xixi.
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SIMÃO - Já acordou! está a abrir os olhos.
MARIANA – Onde é que eu estou?!
SIMÃO – Mariana,o Toino disse-me que a Mariana me podia ajudar ....
MARIANA – Ajudar? ...
SIMÃO – Ceder-me o seu quarto enquanto eu resolvo o problema....
MARIANA – Toino!
SIMÃO – São só duas ou três noites. Que me diz?
MARIANA – Toino!
TOINO – Ah?
MARIANA – Está um homem atrás de mim!
TOINO – É o Sr. Simão Botelho!
MARIANA – O Sr. Simão quê?
SIMÃO – O meu nome é Botelho! Simão Botelho!
(MARIANA DESMAIA NOVAMENTE)
SIMÃO – Ela desmaiou outra vez Toino!
TOINO – Deve ser por não estar habituada ao ambiente de taberna!
TABERNEIRO – É a primeira vez que põe os pés aqui dentro!
EMBARCADIÇO – É uma rapariga muito honesta ... percebe?
ROSA – Aqui dentro cheira-lhe o pecado e não agüenta com a tentação!
SIMÃO – Tem realmente um ar de ...
TODOS – Honesta!
TABERNEIRO – E o grande problema das mulheres honestas é que vivem
inconsoláveis.
SIMÃO – Inconsoláveis, por quê ?
ROSA – Por causa dos pecados que não cometeram.
TABERNEIRO – Do que ela precisava era duma ...
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ROSA – Tu cala-te, libidinoso, que eu já nem te oiço!
SIMÃO – Tenho de ir com Teresa, está na hora. Achas que posso contar com o
quarto?
TOINO – Mais que certo, que ela é boa rapariga! Quando ela acordar eu acerto os
pormenores.
SIMÃO – Obrigado, Toino.
TOINO – Esperamos aqui por si.
SIMÃO – O mais tardar, dentro de uma hora já cá estou.
MARIANA – Foi então que descobri que não poda olhar para o senhor Simão,
porque começavam a subir-me uns calores pelo corpo acima ... e eu caía redonda.
Depois comecei a evitar olhar para ele porque também parecia mal estar-lhe
sempre a cair aos pés.
Nessa noite, fiquei à espera dele e depois .... ainda desmaiei mais uma vez.
EMBARCADIÇO – Ajudem aqui ! o senhor Simão foi Ferido!
VOZES – Como é que foi? O Sr. Simão foi ferido! Foi uma emboscada! Fizeram-lhe
uma emboscada!
TOINO – Foram os criados do Sr. Baltazar Coutinho!
VOZES – Meu Deus! Irá morrer? Que grande desgraça!
MARIANA - Que drama!
4º tema – drama
TODOS – Ó DRAMA MAS QUE GRANDE DRAMA
FIZERAM-LHE UMA GRANDE EMBOSCADA
SIMÃO FERIU-SE NUMA PERNA
MAS NÃO LHE ACONTECEU NADA
TOINO – Temos de tirar-lhe a bala!
43
TODOS – Tiremos-lhe a bala !
SIMÃO – Esperem! Precisava escrever uma carta!
TODOS – RAIOS PARTAM COM TANTA ESCRITA
PRIMEIRO VAIS BAIXAR AS CALÇAS
P’RA LHE TRATARMOS DA PERNA
TOINO – Temos de tirar-lhe a bala!
MARIANA – Onde é que ela está? Onde é que ela está?
TODOS – AI A PEQUENA DESMAIOU
FOI COUSA DE BELZEBU
FICOU BASTANTE IMPRESSIONADA
NÃO É RAPAZ DE VER O CU.
ROSA – Uma mulher que nunca viu nada, com qualquer coisa se vê abaixo
duas coisas se vê abaixo duas canetas!
MÚSICA (tem o Registro muito baixo)
MARIANA – E levaram o Sr. Simão para minha casa, deitaram-no na minha
cama;
e desde essa noite passei a dormir, não no palheiro,
mas aos pés da cama;
e sentia cada vez mais calores
e comecei a ter aqueles sonhos com braços e com pernas
.... e mais nada!
(sobe música) Música segue caixa música (Realejo)
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TABERNEIRO - O pai da menina Teresa mandou-a para um convento.
7º TEMA – NUM BORDEL A VIDA TEM MAIS EMOÇÃO
NO BORDEL A VIDA TEM MAIS EMOÇÃO
O AMOR COM VINHO A MISTURA É BOM
NO COVIL SÓ ENTRAM MARGINAIS E ATÉ
FAZ LEMBRAR UM VELHO CABARET
E BEBE UM COPO / E BEBE DOIS
VAIS AGUENTAR / AGUENTAS POIS
ATÉ TALVEZ / AGUENTE TRÊS
E SEIS E SETE E CHEGA AO DEZ!
A NOITE É BOA / P’RA BEBER
ANDAR À TOA / E ESQUECER
QUE O AMANHÃ / NÃO VAI TARDAR
UM NOVO DIA ESTÁ A CHEGAR!
Mariana vai à frente baixa música para deixa.
MARIANA – (quando fala sai) Não vai contra o destino! Não vale de nada,
Sr. Simão
SIMÃO – Por que diz isso?
MARIANA - É o meu coração que fala por mim! Tenho o coração na boca!
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SIMÃO – Peço-lhe Mariana, pelo que mais ama neste mundo ... leve este
bilhete a Teresa e diga-lhe ... diga-lhe que a vida só faz sentido ao lado dela
... e se eu não a voltar a ver...
MARIANA – Se não voltar a ver? ...
SIMÃO – Prefiro renunciar à vida!
MARIANA – Não precisa de ser tão dramático ! a situação já é dramática só
por si ... e nestas alturas convém distanciarmo-nos um bocadinho.
Guarde essa arma; ainda pode precisar dela!
Eu levo o bilhete.
Posso não levar mais nada ... mas o bilhete eu levo.
SIMÃO – Não sei como pagar-lhe mais este favor.
MARIANA – Pois eu sei o que gostava que me desses ....
SIMÃO – Diga o que quer ! Por amor de Teresa eu dou-lhe, seja o que for!
MARIANA – Promessas ....
SIMÃO – Mariana, por que é que não me olha nos olhos?!
MARIANA – Já caí vezes demais ! Devemos parar a tempo.
9º tema – realejo
SIMÃO – Estará apaixonada por mim?
TERESA – Simão continuará apaixonado por mim?
MARIANA – Se eu conseguisse que ele se apaixonasse por mim!
BALATAZAR – A priminha ainda se há-de apaixonar por mim!
FREIRAS – SR BALTAZAR COUTINHO (3 badaladas e segue)
11º TEMA –ÓRGÃO
NO CONVENTO
TERESA – Não a conheço.
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MARIANA – Pois conheço-a eu que nestas últimas horas tenha ouvido falar senão
na menina.
TERESA – A quem?
MARIANA – O senhor Simão.
12º TEMA – (sinos 3 badaladas)
TERESA – Onde é que está? Ficou ferido?! Morreu?!
MARIANA – Não, menina. Só o atingiram no ânus.
TERESA – Onde?!
MARIANA – No cu! Eu própria lhe tirei a bala!
TERESA – Graças a Deus! Podia ter sido pior!
MARIANA – Sim! Se fosse mais ao lado, ficava inutilizado!
TERESA – Inutilizado?!
MARIANA – Foi o médico que disse porque eu desses assuntos não percebo!
13º TEMA – SINOS - 3 BADALADAS
Teresa – Diga-me: ele pensa em mim?!
MARIANA – Não pensa noutra coisa.
TERESA – Se ao menos eu pudesse vê-lo! ... se tivesse vindo ele ...
MARINA – Em vez de mim?
TERESA – Sim ... eu .... havia de lhe cair aos pés.
MARIANA – Eu sei o que isso é.
TERESA – É amor.
MARIANA – Ele diz que não quer viver sem a menina .... manda-lhe este bilhete.
TERESA – Eu não posso escrever; as freiras tiraram-me o tinteiro. Diga-lhe ....
MARIANA – Diga, diga!
TERESA – Que amanhã me vão mandar para outro convento, no Porto; ordens do
meu pai. Para ficar bem longe dele, do Simão .....
FREIRAS – Terminou a visita.
TERESA – E então ....
MARIANA – Então, boa viagem menina Teresa.
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FREIRAS – Não ouviu menina?! Terminou a visita!
TERESA – Diga-lhe que o meu primo Baltazar vai comigo. Tem medo que eu fuja!
FEIRAS – Bruxa!
(Elsa – Mulas – Música – órgão)
Pausa
14º TEMA – ORGÃO
FREIRAS – Sr. Baltazar Coutinho!
BALTAZAR – A Priminha está preparada para seguir para o Porto? Elsa levanta-
se. (começam – Sinos – segue Música – segue sinos)
15º TEMA – SINOS
16º TEMA – JÁ TENHO PAR....
MARIANA - ... e vai para um convento.
SIMÃO – Tenho de vê-la antes de partir!
MARIANA – Não faça uma coisa dessas!
SIMÃO – Tenho de vê-la, Mariana. Nem que seja pela última vez.
17º TEMA – SINOS
TABERNEIRO– Ninguém estava à espera que aquilo acontecesse!
ROSA – E à porta do convento ! Que desgraça!
(música 3 – piano)
18º TEMA – DRAMA PIANO
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BALTAZAR – A carruagem está à espera, prima Teresa.
TERESA – Eu sei, primo Baltazar.
SIMÃO – Agradeço-lhe tudo o que fez por mim.
MARIANA – Eu não fiz nada!
SIMÃO – Fez muito!
MARIANA – Muito mais podia eu ter feito; mas Deus não me deu essa
oportunidade.
ROSA – A princípio, nem me parecia ele!
TABERNEIRO– Disfarçou-se para não ser reconhecido.
ROSA – Se a menina Teresa não tivesse dito nada!
TABERNEIRO– Aquilo saiu-lhe sem ela querer!
ROSA – E foi o fim. Que desgraça!
BALTAZAR – Essa sua demora prima Teresa, quererá dizer que está a repensar?!
TERESA – Repensar?!
BALTAZAR – Sim ... na minha proposta : lembre-se que se aceitar o meu amor,
ainda pode evitar esta viagem tão enfadonha até ao Porto.
TERESA – Não conheço o Porto, primo; e não vou perder esta oportunidade.
BALTAZAR – Ainda se há-de arrepender.
MARIANA – Ainda vai se arrepender, senhor Simão.
SIMÃO – Porquê?
MARIANA – Não vão deixá-lo aproximar-se da menina Teresa.
SIMÃO – Ninguém me pode impedir.
MARIANA – Vista esta roupa. Assim, vão confundi-lo com um pobre.
SIMÃO – E posso aproximar-me dela ....
MARIANA – Pensaram que vai pedir-lhe uma esmola ...
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SIMÃO - .... um beijo ..... ( oh! desculpe Mariana, foi sem intenção .... desculpe.)
MARIANA – Eu sei .... foi um ensaio .... para quando chegar lá .... correr tudo bem
...
TERESA – Estou pronta !
SIMÃO – Adeus!
BALTAZAR – Vamos!
FREIRAS – Vamos!
TERESA – Vamos!
MARIANA – Ele beijou-me ...
BALTAZAR – Ela rejeitou-me ....
MARIANA – Foi sem querer!
BALTAZAR – Foi de propósito!
TABERNEIRO E ROSA – Uma desgraça!
NAQUELE DIA A PORTA DO CONVENTO
QUEM LÁ PASSOU POR CERTO NÃO ESQUECEU
UM SÓ SEGUNDO E NAQUELE MOMENTO
CRUEL DESTINO TUDO SE PERDEU
SIMÃO MATOU A LIBERDADE
PERDEU A VIDA O PRIMO BALTAZAR
TERESA PERDEU A OPORTUNIDADE
DE ALGUM DIA SIMÃO CASAR
MARIANA! CHORA! SABE QUE A VERDADE
VAI SER UM TRISTE FIM TRISTE ACABAR!
SIMÃO – Uma esmolinha pelo amor de Deus.
BALTAZAR – Não incomodes a menina.
FREIRAS – Estamos cheias de pressa.
BALTAZAR – Vamos para o Porto.
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TERESA – Não te posso dar nada porque o meu pai tirou-me tudo!
SIMÃO – Decerto não lhe tirou a esmola que eu lhe peço.
AS 3 MULHERES – Simão!
MÚSICA SEGUE
TERESA – Simão!
SIMÃO – Sou eu
(e música segue)
20º TEMA – “SIMÃO”
BALTAZAR – Afaste-se daqui seu espantalho!
dançam
21º TEMA – DUELO E 22º MORTE
FREIRAS – Vá-se embora, seu porco!
BALTAZAR – Fora do nosso caminho.
SIMÃO – Qual caminho?
FREIRAS – Vamos para o Porto!
TERESA – Ele está armado, Simão! Eu...
SIMÃO – Teresa vai para o Porto mas tu vais p’ro inferno!
Tiro e grito (pára)
SINOS
SIMÃO - Perdoa-me Teresa; apesar de tudo,sempre era da tua família.
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Sinos (12)
23º TEMA – SINOS
aqui segue música 24º
FREIRAS- Somos agentes da polícia disfarçados de freiras:
Considere-se preso.
Como é que se chama?
SIMÃO – O meu nome é Botelho! Simão Botelho!
MARIANA DESMAIA
MÚSICA DE SAÍDA
24º TEMA – “AMOR DE PERDIÇÃO”
e segue caixa de música
25º TEMA – REALEJO – (mais baixa com texto do padre)
ROSA – O Sr. doutor Simão Botelho... condenado à morte!
Tenho de fazer qualquer coisa!
Vou falar com o juiz.
Irmã.... sempre fui uma mulher séria, mas para salvar um homem da forca
... eu sou capaz de tudo!
Música baixa quando ela está na direita baixa e diz:
ROSA – E é que eu vou a tribunal (sobe)
(Rosa sai para o tribunal) (música para a caminhada)
26º TEMA – FILME MUDO JUIZ
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ROSA – Sr. doutor juiz, clemência!
JUIZ – Sim, sim, sim.
ROSA – O nome é Rosa, para o servir
JUIZ – Sim, sim, sim.
ROSA – Venho pedir a V. Exa. clemência!
JUIZ - Ofendeste a moral pública?
ROSA – Não.
JUIZ – Cometeste homicídio!
ROSA – Não
JUIZ – Matricídio!
ROSA – Não
JUIZ – Parricídio!
ROSA – Não
JUIZ – Suicídio!
ROSA – Não
JUIZ – Adultério
ROSA – Ainda não.
JUIZ – Mais afinal, o que tu fizeste?
ROSA – Eu não fiz nada, Sr. doutor Juiz!
JUIZ – Vem pedir clemência para uma falta que ainda não cometeste? Não deixa
ser original, fora do vulgar.
ROSA – Venho implorar clemência para o senhor doutor.
JUIZ – Para mim? Mais isso é contra os regulamentos!
ROSA – Para o senhor doutor Simão Botelho!
JUIZ – Simão Botelho? Não sei quem é!
ROSA – Mandou-o para a forca!
JUIZ – Ah! Esse!
ROSA – Sr. Doutor juiz ... Dê o dito por não dito e vai ver que não se arrepende.
JUIZ – Dar o dito por não dito?! Não posso! O carrasco ia ficar chateadíssimo
comigo; há mais de uma semana que não mando ninguém p’ra forca!
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ROSA – Arranja-te outro! Não falta por aí quem mereça esse destino!
JUIZ – Mas não há provas ... E o que a senhor me está a pedir é duma crueldade
sem limites!
ROSA – É cruel pedir que poupe a vida a um homem?!
JUIZ – E o carcereiro ?O carcereiro já está a contar com esse trabalho! O que é
que eu ia dizer ao pobre do carcereiro? Não posso agora desiludi-lo!
ROSA – O Sr. é juiz? Pode inventar uma desculpa qualquer que ninguém duvida!
JUIZ – Sim, sim, sim ... mas não ! Não posso!
ROSA – Pode dizer que pensava que tinha ... mas afinal não tem a prova do
crime.
JUIZ – Mas tenho e ainda ali está! Quer ver?
ROSA – A pistola?!Pode fazê-la desaparecer.
JUIZ – E o morto? Acha que também posso fazer desaparecer o morto?!
ROSA – Tive uma idéia, Sr. Doutor juiz! Podíamos fazer uma troca.
JUIZ – Uma troca?
ROSA – Simão ia para o lugar do morto ... e mandava-se o morto para a forca!
JUIZ – A senhora ainda é pior que a justiça! Quer enterrar um vivo e mandar para
a forca um inocente!
ROSA – O morto não ia dar por nada; o carrasco ficava contente; enchíamos o
caixão com pedras, Simão desapareceria sem deixar rasto... não acha que isto é
uma boa idéia?!
JUIZ – Peça-me outra coisa qualquer, mas isso não!
ROSA – Senhor doutor juiz... reconsidere, peço-lhe.
JUIZ – Eu já lhe disse ...
ROSA – Se não lhe agrada a idéia da troca, mude a sentença ... não fuja ... venha
cá ... vai ver que não se arrepende ...
Entra música 8
(Juiz e Rosa vão-se embora )
(Mesma situação do princípio desta cena )
27º TEMA – FILME MUDO JUIZ –
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- O que é que aconteceu á outra pequena, à Mariana?!
- Ao saber que o amante foi condenado e vai p’ra forca, enlouqueceu!
- Então ele era amante dela ou da outra?!
- Das duas!
- Xiça! Há gajos cá com uma sorte!
- Uns com tudo e outros sem nada!
- Então a Mariana enlouqueceu!
- Completamente ! Está, que nem parece a mesma!
Música
- Bandamerda!
(Vira-se entra música da Febre)
28º TEMA – FEBRE
MARIANA – Eu já não sei bem quem sou
CORO – Nunca soube bem quem é
MARIANA – Eu só sei que estou diferente
Sinto-me boa, à toa, neste cabaret
CORO – Ela está com febre!
MARIANA – Desde o dia em que te vi
Logo te perdi Simão
CORO – A pobre não se conforma
Foi um amor
CORO – Amor e de perdição
MARIANA – Devo estar com febre!
CORO – Febre!
55
MARIANA – Quero cobrir-te de beijos
Sentir o teu corpo nu
Saciar os meus desejos
CORO – Quer entregar-se toda, toda a Belzebu
Deve ser da febre!
CORO – Febre!
MARIANA – Não sei o que faço aqui
Donde venho ou para onde vou
Só sei que ao olhar p’ra ti
CORO – É evidente que Mariana desmaiou
Por causa da febre!
CORO – Por causa da febre!
Febre! Febre!
(Entra música mas não há!)
30º TEMA – FILME MUDO JUIZ
Nº. 26 – cassete
ROSA – Venha cá! Não fuja ... não se esconda ... Sr. Doutor juiz ... reconsidere ...
peço-lhe ...
JUIZ – Eu já disse ...
ROSA – Dê o dito por não dito ... o senhor pode ... se quiser ... um rapaz tão novo
...
JUIZ- Eu?!
ROSA – E com uma corda ao pescoço ...
JUIZ – Ninguém o mandou carregar no gatilho!
ROSA – Foi um crime de amor!
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JUIZ – Não tem perdão!
ROSA – O Sr. doutor nunca amou?
JUIZ – Já não me lembro ...
ROSA – Eu podia fazê-lo recordar ...
JUIZ – Esteja quieta!
Rosa – A toga fica-lhe tão bem ...
JUIZ – Esteja quietinha!
ROSA – Mas por baixo dessa toga eu sei que existe ...
JUIZ – Está a fazer-me cócegas
ROSA – Existe um homem com bom coração! ! Deixe-me ver o seu coração e eu
mostro-lhe o que é o amor ... e depois o senhor doutor vai concordar que é
possível matar por amor...
JUIZ – Quem é que quer que eu mate?! Eu mato! Eu mato!
ROSA – Mas eu não quero que mate ninguém! Só quero que lhe tire a corda do
pescoço.
JUIZ – Oh! D. Roooosa!
ROSA – O Sr. Doutor juiz é um croissant!
JUIZ – Meu pãozinho de leite!
ROSA – Se não fosse juiz, aposto que era bombeiro voluntário.
JUIZ – E se isto fosse ficção científica e D. Rosa era um micro-ondas!
JUIZ – A justiça esteve a reflectir ... e acabou de verificar que se baralhou um
bocadito !
(exclamações de desagrado da parte de todos)
JUIZ – Silêncio!
Decidi portanto ...que Simão Botelho não vai p’ra forca
(Simão exclama com alegria “não vou p’ra forca! Não vou p’ra forca” e todos os
restantes mostram desagrado).
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JUIZ – Silêncio ou mando evacuar a sala!
BALTAZAR – Sr. doutor juiz desculpe mas ...
ROSA – Você cale-se que já morreu!
JUIZ – O réu tem alguma coisa a dizer?!
SIMÃO – Sr. Doutor juiz ... se eu não vou para a forca ... então, para onde é que
eu vou?!
(exclamações:”p’ra câmara de gás!” “é matá-lo à pedrada!” “Afogá-lo, como os
gatos”!) “(guilhotina!)”.
JUIZ – Silêncio! Lembro aos presentes, que não estamos na Idade Média! Neste
momento e devido ao adiantado da hora o que é preciso é um fim feliz, um fim que
agrade a todos!
Simão Botelho, vou mandá-lo para o degredo!
TODOS – Onde?! Para onde?!
JUIZ – Ilha da Madeira!
(exclamações de desagrado “Oh!”)
SIMÃO – (feliz) Obrigado Sr., doutor juiz. Nunca fui à Ilha da Madeira!
ROSA – É um autêntico jardim!
PADRE – Não pode ser! Ele é deportado para a Índia, mas morre antes de lá
chegar!
ROSA – O senhor não tem vergonha?! Então o senhor é padre e quer que ele
morra?
JUIZ – O Sr. Quer saber mais do que eu que sou juiz?
Está decidido, vai para a Madeira!
BALTAZAR – Então e eu?!
JUIZ – Tem de compreender que eu sou juiz, não sou Deus!
Posso deixá-lo falar de vez em quando, mas não posso ressuscitá-lo por
completo!
ROSA – A Madeira é um jardim!
JUIZ – E a D. Rosa uma flor!
PADRE – Um fim feliz! Quem diria?!
SIMÃO – Mais uma vez ... obrigado!
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JUIZ – Agradeça à D. Rosa! Foi ela que abriu os olhos à justiça!
Música M7
30º TEMA – OPERA DITO POR NÃO DITO
ROSA – Senhor doutor juiz acabou de alterar a
A sentença vai de novo proclamar
POLÍCIAS – Não é justo Deus do Céu
Houve um homem que morreu
BALTAZAR – Quem me matou, ele vai ter de castigar
JUIZ – Reuni com D. Rosa
E alterei toda prosa
Vou mandá-lo para a Índia degredado
POLÍCIAS – ROSA – MARIANA – JUIZ
Senhor Simão saia daí, vai viajar
SIMÃO – Já só via a minha hora de morrer
TODOS menos JUIZ
Cuidado que vai p’ro mar
Entre o ir e o voltar
Muita coisa pode ainda acontecer
JUIZ – Eu não quero discussões
Já basta de opiniões
Dei a sentença já não há nada a fazer
Já disse tudo aquilo que teria p’ra dizer
Não dou o dito por não dito
Já cumpri o meu dever
JUIZ REPETE UMA VEZ
59
Todos – Já disse tudo aquilo que teria p’ra dizer
Não dá o dito por não dito
Já cumpri o meu dever
TODOS MAIS UMA VEZ
JUIZ – Não dou o dito por não dito já cumpri o meu dever
TODOS – Não dá o dito por não dito
JUIZ – Já cumpri o meu dever
TODOS – Dever
LISBOA ANTIGA – Um fim feliz! Quem diria?!
E no entanto, também eu queria!
Mas um fim feliz assim
É claro , não pode ser,
Que eu aprecio um bom drama
E Simão, Teresa e Mariana
Todos têm de morrer.
Faça-se luto pesado,
E nem mais uma cantiga!
LISBOA MODERNA – Mas quem és tu, mulher de negro?
LISBOA ANTIGA – Eu sou a Lisboa antiga!
LISBOA MODERNA – Pois eu prefiro um fim feliz
Divertido e brejeiro
Que p’ra ver grandes desgraças
O povo não dá dinheiro
Um guarda roupa cuidado
Um final bem arejado
Música, p’ra dar à perna.
60
LISBOA ANTIGA – Quem és tu, que odeias drama?
LISBOA MODERNA – Sou a Lisboa Moderna!
LISBOA ANTIGA – Se eu sou a Lisboa antiga
E tu Lisboa Moderna
Há algo aqui que está errado.
LISBOA MODERNA – Por isto não ser revista?!
Ó Antiga, qual é a tua?
Isto está tudo trocado
LISBOA ANTIGA – Estamos num quadro de rua
AS DUAS – Que faz ligação ao fado!
Música (Desgarrada)
31º TEMA – DESGARRADA
Só o fado é a verdade
Nesta mentira que é a vida
No teatro há falsidade
Toda a verdade é fingida
E quem já riu do amor
vai passar um mau bocado
Deus inventou p’ra castigo
A dor sentida do fado
Que o destino de Simão
61
Foi um destino danado
Tanta dor não cabe não
Na letra triste de um fado
Ele não foi para a forca
É verdade sim senhor
Mas não partiu p’ra Madeira
esse jardinzinho em flor
A Índia foi o seu destino
Para lá foi degredado `
Mariana foi com ele
Não largou o seu amado
Ao ver partir o barquinho
Teresinha estremeceu
e à janela do convento
a pobre desfaleceu
Os três amantes tiveram
Destino triste e igual
Com grande mágoa vos digo
Morrem todos no final
Com grande tristeza nossa
o final é p’ra chorar
Contém mensagem singela
vão para casa pensar
Que este amor sincero e puro
62
Também é de perdição
Por isso lá vamos juntos
Nesta nossa procissão
E à luz das velas partimos
para a grande catedral
do fado! Fado chorado
sofrido e sentimental
Também ele o expoente
Da perdição nacional.
Segue
32º TEMA – SINOS
1
O Sangue
Os actores/personagens assistem ao final de um dos actos de “O Fantasma da Ópera”. No camarote da família Barros preparam-se para “comer o farnel”, mas a própria cena leva-os a guardarem o petisco para mais tarde. Nicolau não tira os olhos de Tomasinha. É intervalo. AMIGO Fiz mal em ter-te convidado! Durante todo o acto não paraste de olhar para aquele camarote! NICOLAU Não! Fizeste bem! Nem imaginas o quanto! AMIGO Imagino que não deves estar a perceber nada do que se está a passar no palco! NICOLAU Enganas-te novamente! Já vi “O Fantasma da Ópera” umas quatro ou cinco vezes! AMIGO É um privilégio de quem tem dinheiro para correr mundo! NICOLAU Começo até a pensar que há qualquer coisa que me liga a esta ópera! AMIGO Só falta dizeres que de certa forma te identificas com o protagonista! NICOLAU Desta vez acertaste! AMIGO Por amor de Deus! Não me vais agora tentar convencer que a tua cara não é a tua cara, mas sim uma máscara com a qual escondes as cicatrizes provocadas por um incêndio ou mordeduras de ratos ou qualquer outra catástrofe!
2
NICOLAU Este rosto é o meu... mesmo assim... tenho atravessado a vida como um fantasma!... AMIGO Já percebi que te agrada o papel de mártir! NICOLAU Não podes entender!!! Não nos víamos há cinco anos!... AMIGO Aviso-te que estás tal e qual como sempre te conheci: um dramático! Um grande amigo, um homem bom, mas acima de tudo: um dramático! NICOLAU Não nego que sempre fui um romântico! AMIGO Negar não te valia de nada! Mas gostava que me explicasses... com mais clareza... o que é que a tua vida tem a ver com “O Fantasma da Ópera”! NICOLAU Ele ama Cristina desde o primeiro momento em que a viu... mas sabe que o seu coração pertence a outro. Sofre em silêncio... mas não desiste de conquistar o seu amor. Ele sabe que é capaz de tudo por aquela mulher. Decide raptá-la e leva-a consigo para o seu esconderijo, nos subterrâneos do teatro. Tudo o que ele pretende é fazer dela uma diva... a sua diva... E Cristina descobre aos poucos que no interior daquele que todos consideram um monstro se esconde uma alma boa, um coração puro... está a um passo de se apaixonar por ele... mas a sociedade que os rodeia nunca permitiria esse final. Levam-no à loucura... e ao suicídio... Cristina foi a sua doce fatalidade. AMIGO Esqueceste-te da célebre cena em que o fantasma faz cair o candelabro, matando uma série de pessoas! NICOLAU A cena do candelabro não passa dum “pormenor cénico sem importância”... AMIGO Para ti, talvez, mas não para o autor e muito menos para o público de ópera que adora ouvir uma ária enquanto o sangue escorre e os mortos não morrem! Seja como for, continuo sem perceber o que é que te liga a esta ópera! NICOLAU Vi-a pela primeira vez em Caminha...
3
AMIGO Não sabia que em Caminha já há teatro de ópera!!! NICOLAU Aquela mulher... vi-a pela primeira vez em Caminha... e desde esse dia que não me sai do pensamento... desde esse dia que outra imagem não mais pude ver em meus sonhos... Ela... é a minha inevitável fatalidade! Que julgas tu que sou capaz de fazer por aquela mulher? AMIGO Asneiras superiores ao meu cálculo. NICOLAU Amo-a desde o primeiro momento... se me perseguirem e eu me vir em risco de a perder... sou capaz de tudo! AMIGO Nicolau de Almeida: sempre foste um romântico, mas o destino continua a fazer de ti um homem com pouca sorte! A D. Tomasinha casou há pouco mais de dois meses. NICOLAU Como é que sabes o seu nome?! AMIGO Frequentei a mesma escola do marido. NICOLAU És amigo desse homem?! AMIGO Apenas colegas de carteira; fui a casa dele duas ou três vezes. Sabes portanto que ela é casada?! NICOLAU E isso que importa? Se o destino quis que eu hoje a tornasse a encontrar! AMIGO Não foi o destino! Fui eu que te arranquei de casa para virmos ao teatro! NICOLAU Tens de ajudar-me! Conheces a família, podes arranjar forma de eu me encontrar com ela... tenho de lhe falar! AMIGO Estás doido?!
4
NICOLAU Se não me ajudares é isso que me espera: a loucura... talvez o suicídio... AMIGO És um romântico doentio! O que tu queres é ficar imortalizado numa ópera!!! Mas em Portugal não há autores de grandes óperas! Verdi! Wagner! Etc. Etc... esses sim; mas nenhum deles é português!!! NICOLAU Queres dizer com isso que não me ajudas? AMIGO A ajuda que tu pedes, não! NICOLAU Haverá outra?! AMIGO Conheces Camilo? NICOLAU Qual Camilo?! AMIGO Camilo Castelo Branco! Escreve romances de fazer chorar as pedras da calçada! Posso falar-lhe de ti; talvez se interesse pelo teu melodrama, ainda que na sua vida não lhe faltem temas para desenvolver! NICOLAU Se outra ajuda não me queres dar... conta-me tudo o que sabes dela... da Tomasinha... AMIGO Sei que a mãe morreu de parto, e alguns meses depois morreu-lhe o pai... NICOLAU É órfã!... AMIGO Foi recolhida pelos padrinhos, judeus e muito ricos, que nessa altura já tinham um filho de 3 anos, o Inocêncio. NICOLAU Foram então os padrinhos que arranjaram o casamento?!
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AMIGO Consta que sim; mas a ama de Tomasinha - penso que se chamava Custódia da Porciúncula - fez tudo para impedir que eles se casassem! Era uma velhota muito crente a São Gonçalo de Amarante e foi a principal responsável por uma troca de cartas de namoro entre a Tomasinha e aquele que foi o seu primeiro amor... TOMASINHA «Suspiro por vós como o rolo que geme na árvore solitária pela rolinha amada.»... CUSTÓDIA "O rolo geme pela rolinha amada"... TOMASINHA Mas que bem que ele escreve, Custódinha! CUSTÓDIA Foi São Gonçalo d'Amarante quem mo enviou, menina!!! Olhe que quando ele se achegou a mim com a primeira cartinha... lembro-me tão bem!... tinha acabado de pedir a São Gonçalo que arranjasse à menina um noivo como deve ser! Que o seu padrinho bem quer casá-la com o filho, esse narizinho de judeu! Mas a menina merece melhor!!! O Inocêncio é um safado dum mulherengo! Um tirano! Um malcriadão! Judeuzinho rico, mimado! Sempre a zombar de tudo e de todos! Aquele velhaco, ainda era menino já me fazia a vida negra; pinchava-me às cavaleiras, dava-me aqui com os calcanhares nas ilhargas, aqui onde tenho uma obstrução de cada lado. Outras vezes fazia-me aqui por detrás pontaria às ilhargas, com a bengala do pai, Jesus, até se me repuxavam os refegos do nariz...! Mas o que é que ele diz mais?! Leia! Leia, menina! TOMASINHA Diz que gosta muito de mim... e, olha!.. CUSTÓDIA Vejam vocês!!! Que graça têm estes bonecos! E este menino, tão gordo! Isto não pode ser o menino Jesus, porque tem aqui uma cestinha à bandoleira. Será São Joãozinho? TOMASINHA Não é! Isto é o Amor!!.. CUSTÓDIA O amor?! Este rapazinho assim em pêlo é o amor?... TOMASINHA É pois! Chama-se Cupido.
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CUSTÓDIA Ah! isso pode ser; que eu, lá em Serpa, quando era moça, bem me lembra de ouvir cantar o boticário, umas modinhas à guitarra, onde dizia lá o verso:
Maldito seja o Cupido Que cravou no peito meu
A «setra» que não penetra, Marília no peito teu.
Já hoje se não cantam destas modinhas! Agora o que se ouve por aí é umas senhoras a dar uns guinchos que parece que estão com as dores de parto. Pelos modos cantam à moda italiana... Mas continue lá, menina, que eu ainda não ouvi aquilo que quero ouvir! TOMASINHA Que queres tu ouvir mais, Custódinha? CUSTÓDIA Não se faça de novas!... Ele parece sincero, sim senhora, e lá letrado é ele, mas eu já lhe disse, menina, se ele demora muito a falar em casamento, acaba-se o namoro e pronto! TOMASINHA
Ele diz que "o rolo quer a rolinha"...
CUSTÓDIA Isso do rolo e da rolinha já eu sei! TOMASINHA Que suspira por mim como o rolo... CUSTÓDIA Suspira pela menina como o rolo... e que mais? TOMASINHA Diz que o rolo que geme pela rolinha... CUSTÓDIA Também já ouvi! "O rolo que geme pela rolinha"... mas casar?!... Se não fala aí em casar acabam-se hoje mesmo as cartinhas! TOMASINHA Fala! Fala!... Aqui está... "o rolo... ...quer casar...!"... CUSTÓDIA
Quer casar?
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TOMASINHA Com a rolinha!!! CUSTÓDIA Quer casar! Então é um homem honrado! Eu sabia que São Gonçalo d'Amarante lhe havia de arranjar um noivo como deve ser! Vá lá escrever-lhe, enquanto me apronto! O boticário de Serpa também cantava esse verso à guitarra! TOMASINHA Qual verso?! CUSTÓDIA Deixa cá ver se me lembra... ...já sei!
“O rolo quer a rolinha E a gemer chama por ela;
O pombo quer a pombinha; Só tu me desprezas, bela!”
TOMASINHA
Sempre que o vejo na rua ao rosto me sobe a cor,
...Mesmo que eu queira, não posso... Mesmo que eu queira, não posso,
negar que lhe tenho amor. SEBASTIANA Não sei porquê, mas de há uns tempos para cá, que a Tomasinha me parece diferente... as manas não notaram?! FLORÊNCIA Está agora diferente! SEBASTIANA Está diferente! FLORÊNCIA Lá crescer, cresceu ela! Está tão linda, mana Sebastiana! TOMÁSIA Já tem 16 aninhos e hoje em dia as crianças desenvolvem mais depressa do que no nosso tempo. SEBASTIANA Acho-a muito diferente!
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GUIMARÃES
Vai-te carta aventurada, ver um bem que Deus me deu,
Tu vais para lá ficar, em teu lugar... fora eu!
TOMASINHA
Meu amor, eu disse ao Sol, que não tornasse a nascer.
Eu tenho o Sol dos teus olhos; que vem o Sol cá fazer?
SEBASTIANA Acho-a muito diferente! FLORÊNCIA Eu com 16 aninhos já era muito alta, mas nunca tive o seio tão desenvolvido como o da Tomasinha! SEBASTIANA Com certeza foi por isso que não casou! Não é o seio mana Florência! Eu noto-a diferente mas não tem a ver com o seio!...Parece-me... parece-me... mas só a mim é que me parece!...
TOMASINHA e GUIMARÃES
Há uma semana que te amo, Há duas te quero bem,
Há três te trago no peito, Sem o dizer a ninguém.
SEBASTIANA Parece-me... eu cá tenho as minhas razões... TOMÁSIA e FLORÊNCIA Parece-lhe o quê, mana Sebastiana?! SEBASTIANA Parece-me... muito feliz! Pronto!
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TOMÁSIA Por amor de Deus Sebastiana! A Tomasinha é uma menina que só tem motivos para se sentir feliz!!! FLORÊNCIA Eu concordo com a mana Tomásia! SEBASTIANA Mas de há um mês para cá que ela anda mais feliz do que o costume! Acho muito estranho, muito estranho!!! TOMÁSIA A mana desculpe, mas eu não vejo o que é que isso tem de estranho!!! SEBASTIANA Se houvesse um motivo... não seria estranho! E cá para mim há!!! Há, porque ela está diferente!!! FLORÊNCIA E a mana a dar-lhe!!! SEBASTIANA Pois! Eu a dar-lhe e a burra a querer fugir! FLORÊNCIA Ó mana Sebastiana!!! TOMASINHA
Eu gosto tanto de ti, eu quero-te tanto tanto...
Parece ser o Diabo, ou o milagre de algum Santo.
GUIMARÃES
Eu quero-te tanto tanto, que não sei onde te meta...
dentro do meu coração, ou dentro duma gaveta!
TOMÁSIA Eu não queria dizer-lhes, porque ainda me parece muito cedo... mas talvez haja um motivo! Há muito tempo que o Gervásio alimenta o desejo de casar o Inocêncinho com a Tomasinha! Não é para já, que eles ainda não estão na
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idade... mas a seu tempo, se eles gostarem um do outro, é claro! Há oito ou dez dias... perguntei à Tomasinha o que é que ela pensava, se gostaria, de um dia mais tarde... vir a casar com o meu Inocêncio. FLORÊNCIA E ela?! TOMÁSIA A Tomasinha ainda é uma menina muito inocente... ruborizou... ia para dizer qualquer coisa mas não lhe saiu nada; eu disse-lhe que não precisava de me responder naquele preciso momento, mas a nossa Tomasinha ainda balbuciou: “Sim, madrinha! Sim madrinha!”. SEBASTIANA E o Inocêncinho! Qual foi a reacção do Inocêncinho?! TOMÁSIA O pai ainda não falou com ele... mas penso que vai falar... em breve! GERVÁSIO Ainda bem que... ainda bem... ainda bem que estamos todos... a família Barros!... e o Inocêncio... onde está o Inocêncio?... FLORÊNCIA Deve estar no quarto. GERVÁSIO Ainda bem. SEBASTIANA Quer que o chame? GERVÁSIO Ainda não! FLORÊNCIA Deve estar no quarto. GERVÁSIO Ainda bem. SEBASTIANA Quer que o chame? GERVÁSIO Ainda não!
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TOMÁSIA Não se chama! GERVÁSIO A Tomasinha também cá está, é claro! TOMÁSIA É claro! GERVÁSIO Ainda bem! FLORÊNCIA Passa-se alguma coisa?! GERVÁSIO Ainda não! SEBASTIANA Mas passa-se alguma coisa? GERVÁSIO Ainda não! TOMÁSIA Ainda bem TOMÁSIA Eu conheço-te Gervásio! Passa-se alguma coisa!!! GERVÁSIO Não se passa nada! TODAS Ai, não se passa nada; graças a Deus! GERVÁSIO O que se passa é que... sentem-se, sentem-se. A Custódia... não está?! SEBASTIANA A esta hora deve estar com S. Gonçalo de Amarante! GERVÁSIO Ainda bem! O assunto... é um assunto que só diz respeito à família. O que se passa é que... nós pensávamos que ainda era cedo... mas depois do que me foi dado saber... receio... receio que se continuarmos a pensar que ainda é cedo... é muito capaz... de... quando chegar a altura... já ser tarde demais!!!
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TOMÁSIA Assustas-me, Gervásio! GERVÁSIO Temos de os casar... e o mais depressa possível! A Tomasinha com o Inocêncio! TOMÁSIA O Inocêncio ainda só tem dezanove anos! GERVÁSIO Os tempos são outros! Eu tinha vinte e oito e alguns meses, quando pensei em procurar companheira. Isto agora é outra coisa. Voltou-se o mundo. As mulheres estão desaustinadas; e os mancebos, assim que lhes pinta o buço, ninguém tem mão neles... TOMÁSIA O nosso filho é bem comportado! GERVÁSIO O nosso filho é como o filho dos outros. O que me foi dado saber é que Inocêncio... o nosso filho... namora! FLORÊNCIA Virgem Santíssima! SEBASTIANA O cunhado tem a certeza?! TOMÁSIA Santa Maria Goretti! O meu filho namora! O meu menino tem uma namorada! Vamos ficar sem o nosso menino! GERVÁSIO Temos de casá-lo com a Tomasinha... e já!!! TOMÁSIA Mas se ele já tem uma namorada!... GERVÁSIO Aí é que está, antes tivesse! Aquele pedaço de asno não tem uma! Tem seis!!! ELAS Seis?!!!
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GERVÁSIO
Pois que cuidam? Vocês não sabem que ele é rico? O Inocêncio vem a ser o homem mais rico do Porto! Vocês também não sabem, mas há por aí muita moça que pensa que há-de casar-se rica, porque tem um palmo de cara ajeitada!
TOMÁSIA
Seis?...
GERVÁSIO
De seis, vim eu a saber que andam na peugada do Inocêncio, mas podem muito bem ser mais! E não há uma que tenha dez reis de seu!
TOMÁSIA
Mas elas não vêem, essas mulheres desaustinadas, que o nosso Inocêncinho ainda é uma criança?!
GERVÁSIO
Elas vêem o que querem ver... e o que elas querem ver, D. Tomásia, é o dinheiro dos Barros!!! O nosso dinheiro!!! Que me dizem agora vocês? É tempo de o casarmos ou não? TIAS E quanto antes! GERVÁSIO E tu que dizes, Tomásia? TOMÁSIA Que hei de eu dizer?... Afigura-se-me que a Tomasinha gosta dele... mas ele?! E se o nosso menino não gosta da nossa afilhada? Tínhamos combinado que eles a casar, tinha de ser como nós... por amor; achas que o nosso filho, se quisesse casar com Tomasinha, andaria lá com esses namoros que dizes?...
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GERVÁSIO Valha-te Deus, mulher! Valha-te Deus! É claro que gosta! Mas um homem é um homem. A culpa não na têm eles; são elas. Elas... e as famílias! Não têm dez reis de seu, Tomásia!!! Para nos apanharem o dinheiro são capazes de tudo e o que eu tenho medo é que alguma mais espertalhona enfeitice o rapaz!!! FLORÊNCIA Tem de falar com ele, cunhado! GERVÁSIO E quanto antes! TOMÁSIA Eu ainda nem quero acreditar! Apenas com 19 anos... e já com seis mulheres! SEBASTIANA Há-de ouvir os seus conselhos; sempre foi tão respeitador, tão bem educado...
“E o até então tão falado Inocêncio, faz a sua entrada em cena!”
INOCÊNCIO Bom dia paizinho! Bom dia mãezinha! Bom dia tia Florência! Bom dia tia Sebastiana! ELAS (Chorosas) Bom dia... Inocêncinho!... GERVÁSIO Bom dia meu filho. INOCÊNCIO Aconteceu alguma desgraça?! ELAS Ainda não! INOCÊNCIO Alguma coisa aconteceu para estarem assim!... Podem dizer-me!... Já sou um homem! ELAS O nosso menino!
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INOCÊNCIO Foi o tio Luís que morreu?! GERVÁSIO Inocêncio, precisamos de ter uma conversa, de homem para homem! Quero ficar a sós com o meu filho. Não!... O teu tio ainda não morreu! INOCÊNCIO Mas então... está para breve? GERVÁSIO Há cinco anos que o teu tio Luís está para morrer, Inocêncio... INOCÊNCIO Coitado do tio Luís! Lá longe, no Brasil, cheio de dinheiro... e às portas da morte! GERVÁSIO Sim, mas agora não é dele que eu te quero falar. É uma conversa de homens... sobre... sobre mulheres! INOCÊNCIO Eu sabia que lhes tinha acontecido qualquer coisa! O que é que aconteceu à mãezinha, à tia Florência e à tia Sebastiana?! ELAS Nada!!! GERVÁSIO Nada! Não lhes aconteceu nada! Não é dessas mulheres que eu te quero falar! É das outras! INOCÊNCIO Da Custódia e da Tomasinha?!... Estão doentes?! GERVÁSIO Nesta casa ninguém está doente, Inocêncio! INOCÊNCIO Graças a Deus! Mas então?... GERVÁSIO Então... cala-te um bocadinho e... escuta: A minha afilhada... a Tomasinha... INOCÊNCIO Eu conheço!
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GERVÁSIO ...tu sabes como eu gosto dela... como se fosse uma filha... e tu... com certeza que também gostas dela!? INOCÊNCIO Pois não havia de gostar?! É a minha maninha! GERVÁSIO Sim... mas na verdade... sabes que não é! INOCÊNCIO Não é... mas é como se fosse! GERVÁSIO Claro, claro! Mas agora que já são ambos crescidos – e aqui está uma parte da tal conversa “de homem para homem” - ...eu tenho motivos para pensar que ela vê em ti... mais do que um irmão!... E gostava também de ter motivos para pensar que tu... embora inconscientemente, porque ainda és muito novo... gostavas de casar com a Tomasinha. INOCÊNCIO Casar com a mana?!!! GERVÁSIO Ai, ai, ai, ai, ai! Vocês não são irmãos de sangue! INOCÊNCIO É verdade que não somos irmãos... e somos muito amigos... mas, casar com a Tomasinha?! Ela ainda é uma miúda!... Ela nem tem... quero dizer... ela só tem... 12 ou 13 anos!... ELAS 16! GERVÁSIO A Tomasinha já tem 16 anos! INOCÊNCIO Já?!... mas sempre me pareceu mais nova!... GERVÁSIO E sempre foi mais nova do que tu três anos, mas já tem 16... e se olhares bem, vais reparar que já não é nenhuma criança... está até... bastante desenvolvida
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para a idade... e está numa boa idade para casar!... contigo! Aqui para nós, é o meu sonho! E o da tua mãe também!... Então?! O que é que dizes? Pára de desenhar narizes, que me enervas!!!! Vou dar-te um conselho; tu tem-me lume nesse olho: pensa bem! Não faças cavalada. Eu ouvi uns zunzuns... INOCÊNCIO Uns zunzuns?! GERVÁSIO Sim, uns zunzuns!... Mulheres!... INOCÊNCIO Mulheres?! GERVÁSIO Não tens que ter vergonha Inocêncio, eu sou teu pai, eu compreendo isso tudo e sei que a culpa não é tua! Elas agora andam desaustinadas! Mas olha que as moças que te fazem festas, o que querem é o teu dinheiro; mas vão erradas; que elas podem levar-me o filho e tu podes querer ir... mas o dinheiro é que não me levam... Elas não sabem... mas tu sabes... que o dinheiro dos Barros tem de continuar na família dos Barros! A Tomasinha é minha afilhada... é como se fosse da família... INOCÊNCIO Mas eu tenho a certeza que ela não gosta de mim... GERVÁSIO Como é que podes dizer uma coisa dessas?! INOCÊNCIO Para casar! Ela não gosta de mim para casar, nem eu dela! (D. Tomásia tem o terceiro desmaio da noite) GERVÁSIO Outra vez?!!!
(Vão para outro “espaço” e Tomasinha é surpreendida a escrever)
TOMASINHA Ai, que susto, carago! Padrinho!!! GERVÁSIO Que é isso?! Que medo tiveste, rapariga?! TOMASINHA
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Eu estava aqui... Estava... a escrevinhar... GERVÁSIO Deixa cá ver! Vês como ela está adiantada... TOMASINHA Ora... INOCÊNCIO
“Meu caro amor do meu coração, e único bem da minha paixão...”
GERVÁSIO
Ai! A menina faz versos? TOMASINHA
Ora...
GERVÁSIO Ou isso não é da tua cabeça?... INOCÊNCIO “Não tenho palavras com que possa explicar-vos...” O paizinho não sabe o que é isto?... Não sabe? É uma carta de namoro. GERVÁSIO
Escrevias esta carta a alguém, Tomásia?!
TOMASINHA
Escrevia, sim senhor... mas não a mandava... Eu bem sei que me não ama a pessoa a quem eu escrevia... GERVÁSIO Querem vocês ver... que maravilha... querem vocês ver... Tu ainda não percebeste, Inocêncio?! INOCÊNCIO
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Eu, não, senhor.
GERVÁSIO
Pois não percebeste, pedaço de asno?... A carta era para... Diz tu, menina... Diz tu para quem era a carta...
TOMASINHA O Inocêncinho bem sabe... mas não lhe faz mossa contar. GERVÁSIO Entendeste agora, rapaz? INOCÊNCIO Ora, meu pai... eu não engulo maranhões... Esta carta não era para mim... GERVÁSIO Pois para quem havia de ser, pedaço de asno?! Eu bem sei que és boazinha. Pena é que este rapaz não tenha o coração de teu padrinho... Ó alma de cântaro! Pois tu acharás debaixo da rosa do sol rapariga mais galante e que mais te encha as medidas?! INOCÊNCIO Esta carta não era para mim... “Não tenho palavras com que possa explicar-vos...” Pois ela que me queria explicar?! Sim; que me queria explicar ela a mim? GERVÁSIO Eu te desengano e já!... Pateta! Tomasinha: diz ao padrinho como é que estavas a pensar continuar esta carta. TOMASINHA Ora, já me não lembro como tinha começado. GERVÁSIO Eu leio-te: “Não tenho palavras com que possa explicar-vos...” TOMASINHA “...a satisfação que recebi quando sua mãe me disse que nos queria ligar pelos sagrados laços do...” não me lembra do que ela disse... é uma coisa muito falada nas comédias... os sagrados laços do... laços do... TOMÁSIA Do himeneu!
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TOMASINHA É isso: os laços do himeneu. Escrevia-lhe, porque me envergonhava de lho dizer de cara a cara. Ai que vergonha! GERVÁSIO Percebes agora, pedaço de asno?! Que estás aí malucando? A apostar que tens alma de não amar este serafim!! Esta criaturinha tão linda que foi criada contigo! Inocêncio de Barros, queres receber por legítima esposa a minha afilhada Tomasinha? (deteve o rapaz a resposta, roendo a unha do dedo polegar) Então? Comes os dedos ou respondes? INOCÊNCIO Ela que diga... D. TOMÁSIA Tomasinha, queres receber por legítimo esposo o meu filho Inocêncio de Barros? TOMASINHA A madrinha bem sabe a minha vontade... mas eu sou órfã... e venho doutra classe social... não me corre nas veias sangue judeu... e sou pobre... GERVÁSIO Qual quê?! Fica sabendo que mesmo que ele não te queira, metade do que eu tenho há-de ser teu; essa fortuna, já nem a justiça nem o Bersabu ta tiram! Quanto ao nosso sangue, ainda não te corre nas veias... mas há-de correr! E agora, responde lá rapaz: Queres receber por legítima esposa a minha afilhada Tomasinha? INOCÊNCIO Ela ainda não respondeu... D. TOMÁSIA Responde tu a teu pai, menino! Ou sim, ou não. Contra vontade não quero que te cases... CUSTÓDIA Peço desculpa! Peço desculpa por vir interromper... mas eu tenho de dizer isto: a senhora D. Tomásia tem razão. Casar, se o coração não puxa, é mau arranjo.
“Menina casar sem gosto, por fazer vontade alheia; é cair no inferno em vida,
remar contra a maré cheia!” GERVÁSIO
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Não venha com sentenças, que o negócio há-de arranjar-se sem o seu voto, se Deus quiser... CUSTÓDIA Pois; se Deus quiser sim... mas se Deus não quiser... SEBASTIANA Deixe-a falar cunhado, deixa-a falar, que é mulher experimentada. GERVÁSIO Fale! Mas depressa! CUSTÓDIA Estes meninos, afiançou-me S. Gonçalo de Amarante, não estão talhados para se casarem. O senhor Inocêncinho não gosta da senhora D. Tomasinha; se gostasse, já lho tinha dito. Queira perdoar o meu atrevimento, mas S. Gonçalo de Amarante aconselha-o que os deixe ficar solteiros. Ao seu filho não hão-de faltar noivas... e olhe bem p’ráquela carinha! Isto que digo é p'ra seu bem, menino; está-lhe estampado que não gosta da menina! Prometo-lhe que intercedo por si a S. Gonçalo, que lhe há-de arranjar noiva de seu agrado... e rica... muito rica! GERVÁSIO Um momento... conhecem esse tal S. Gonçalo de Amarante? D. TOMÁSIA É um santo de confiança e com muito prestígio! FLORÊNCIA Muito amigo das velhas... a quem gosta de fazer milagres! D. TOMÁSIA Dizem que esse poder está no bastão! SEBASTIANA É! As velhas agarram-se-lhe ao bastão enquanto fazem os pedidos. Recorri a ele três dias antes do meu falecido dar o último suspiro! GERVÁSIO Mas então não lhe valeu de nada; se ele morreu!
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SEBASTIANA Foi isso mesmo que eu lhe fui pedir, cunhado!... Estava num grande sofrimento... Ainda demorou três dias, porque a grande especialidade do santo são os casamentos! GERVÁSIO Ah! Sim?... D. TOMÁSIA Diz que sim... e eles a casar... tem de ser por amor, como nós! GERVÁSIO Estou esclarecido. Inocêncio! Gostas da rapariga ou não gostas? Diz lá o que quiseres, que eu não to levo a mal. Se vês que te não agrada o casamento, di-lo à boca cheia. Cá às costas não quero culpas. Queres a moça ou não queres?... INOCÊNCIO Meu pai... eu então... peço quinze dias para pensar. GERVÁSIO Para pensar o quê?! Deixemo-nos de histórias. Se o coração to não pede, acabou-se. Arrumou-se a pendência. (D. Tomásia desmaia) Preparem as malas do rapaz! Hoje mesmo vai pisar uvas p’ró Douro! FLORÊNCIA Vai mandar o Inocêncinho p’ró Douro?! GERVÁSIO Pois se quer “pensar”, que vá pensar p’ra longe!!! SEBASTIANA Sábia decisão, cunhado! Longe dessas mulheres desaustinadas o nosso menino talvez consiga raciocinar com mais clareza! GERVÁSIO Talvez!... e ouve lá, que isto é a valer: Se a não quiseres para tua companheira, quero-a eu para minha filha. Para ela ter que comer à farta não precisa de casar contigo. Olha se me entendes, Inocêncio! Se deixas a minha afilhada lá por alguma farroupilha que te botou o anzol... não és só um pedaço de asno!... És um asno completo!!! Boas noites. TODOS Boas noites. SEBASTIANA Aqui para nós...eu também já tinha reparado que de há uns tempos para cá o Inocêncinho andava diferente! Muito Estranho!!! A mana não notou?!
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FLORÊNCIA Para lhe responder francamente... SEBASTIANA Não notou, é claro! Nem sei porque lhe fiz esta pergunta! Nunca nota nada!!! FLORÊNCIA Estou preocupada é com a mana Tomásia! Continua desmaiada. SEBASTIANA Pois! Mas olhe que isso é que não tem nada de estranho! Só nos últimos dez minutos a mana Tomásia já desmaiou quatro vezes! FLORÊNCIA Mas desta vez está a durar mais tempo que o costume! SEBASTIANA Pois!... Deixe lá... sempre é menos uma a debitar texto! FLORÊNCIA Não lhe ocorre que a mana... possa estar morta! SEBASTIANA Eu já teria percebido! Desde o funeral do meu marido que sou alérgica a corpos mortos! Começo a espilrar e nunca mais paro!... Deve ter adormecido... TOMÁSIA Gervásio... onde está o Gervásio?!... SEBASTIANA Eu não dizia?!... Acabou de acordar! TOMÁSIA O Gervásio acabou de acordar?! SEBASTIANA Não, mana! Acabou de sair! TOMÁSIA Onde é que ele foi?! SEBASTIANA Como é que quer que eu saiba?! Nunca fui mulher de andar atrás de homens casados!
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FLORÊNCIA Quem acabou de acordar foi a mana! TOMÁSIA Devo ter adormecido! SEBASTIANA A mana não adormeceu, teve mais um chelique! TOMÁSIA Ah!... Já me lembro! Desmaiei... porque o Inocêncio não ama a Tomasinha! SEBASTIANA Mana! Onde essa cena já vai! TOMÁSIA Não percebo o que quer dizer! SEBASTIANA Exactamente o que ouviu, mas eu repito: Onde essa cena já vai! Há uma semana que o Inocêncinho foi p’ró Douro! Trabalhos forçados nas vindimas! FLORÊNCIA Esteve desmaiada uma semana inteirinha. SEBASTIANA Cá para mim esteve uma semana em estado de coma! Para a mana... foi um tempo morto! Mas não se preocupe... que nós encarregamo-nos de o preencher! TOMÁSIA Manas! Manas! Como é que o destino pode ser tão cruel?! Acabo de sair dum estado de coma e sou informada que o meu filho está no Douro, descalço, com as calças arregaçadas, sabe Deus até onde... e a pisar uvas! Um Barros! Pergunto a mim própria: Que teria acontecido e que mais ainda estará para acontecer?! O meu coração de mãe pressente... tragédia! TOMASINHA
Eu Quero amar, amar, perdidamente... amar por carta é uma espécie de vaivém! E ao apalpá-las sinto um desejo ardente...
de te apalpar, amor, a ti também! CUSTÓDIA Ai menina, menina! Nem sei como lhe dê a notícia! Mas trago notícia ruim!
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TOMASINHA Que aconteceu, Custodinha?!... Já sei! Faleceu o tio Luís?! CUSTÓDIA Antes tivesse falecido, menina! TOMASINHA Credo, Custódia, isso nem parece teu! CUSTÓDIA Pois se há tanto tempo ninguém está à espera doutra coisa, antes isso do que a desgraça que trago no peito, que até se me embarga a voz, que eu quero falar e nem me saem as palavras! TOMASINHA Poderá haver coisa mais terrível que a morte?! CUSTÓDIA Há sim, menina! A vida! Quando ela não corre à nossa feição! TOMASINHA Mas o que é que não corre à tua feição?! CUSTÓDIA Não corre à minha nem vai correr à sua, quando souber; que eu só quero o seu bem menina, mas eu ia lá agora duvidar de S. Gonçalo de Amarante; é que levou-me à certa! Ele, o bastão e o outro! TOMASINHA Qual outro?! CUSTÓDIA O Guimarães, menina! Esse Guimarães! O tanto que eu rezei!... mas não há-de ser ele... que a vai levar à igreja! TOMASINHA Estás a dizer-me que o Guimarães não me quer levar à igreja... o Guimarães não gosta de mim?!... não... não pode ser... deves estar enganada Custódia... CUSTÓDIA Antes estivesse, minha rica filha!... TOMASINHA ...se ele não gostasse de mim, para que me havia ele de escrever tantas cartas...
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CUSTÓDIA Para a iludir... e para a menina lhe responder com outras tantas, que ele lê aos amigos... e todos se riem com os dizeres da menina!!! TOMASINHA Ele lê as minhas cartas aos amigos?! CUSTÓDIA Vi eu com este olhos, quando vinha a sair da igreja. Reparei num ajuntamento duns quatro ou cinco basbaques, todos a olhar para o Guimarães, que estava empoleirado num palanque a ler um papel, que eu ainda não sabia o que era. E então pensei: “Querem ver que o homem anda metido em coisas da política?!” e aproximei-me sem eles dar conta! Pois eram as cartas da menina! E todos, numa galhofa pegada! As lágrimas saltaram-me como punhos! TOMASINHA Que diziam eles? CUSTÓDIA Chamavam-lhe seresma... que queriam conhecer essa seresma da rua das Cangostas!!! Não chore, meu anjinho, não chore, que me parte de meio a meio o coração. TOMASINHA Disseste-me que ele era um enviado de S. Gonçalo de Amarante! CUSTÓDIA Tem razão, tem razão: mas que quer, menina? A gente engana-se. E o santo também! TOMASINHA O Guimarães!... CUSTÓDIA Que leve a breca o homem e má peste o tolha! Tantos diabos o apanhem como bagadas me caíram por esta cara!... Ora diga-me cá, menina... que lhe parece... o Inocêncio? TOMASINHA O Inocêncio?! CUSTÓDIA É que está-me a parecer que o rapaz lhe quer bem, e lá como casamento não era desarranjo! Eu tomara ver a menina casada com outro!... mas se ele fosse bom marido... e rico é ele! A menina tem de casar quanto antes!
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TOMASINHA Quanto antes porquê?! CUSTÓDIA Por causa das cartas, menina! Antes que chegue aos ouvidos do Inocêncio que andou a mandar cartas ao Guimarães e que ele as lê na praça pública! TOMASINHA Casar com o Inocêncio?! Mas... eu gosto dele, mas não o amo Custódia! CUSTÓDIA Ora! O amor vem depois, vai ver! Pense no dinheiro. A menina sabe lá quanto esta gente tem de seu! TOMASINHA E se ele não gosta de mim?... CUSTÓDIA Não há-de agora gostar! A menina deixe-me manobrar, e lá pela sua parte não faça nada! Isto é, quando o Inocêncio olhar para a senhora D. Tomasinha, olhe também; se ele lhe falar, fale-lhe; se ele não falar, não fale. E deixe-o andar; que o rapaz há-de ganhar-lhe paixão. TOMASINHA Mas ele está no Douro... CUSTÓDIA Há-de voltar!... Há-de voltar!!!
Inocêncio de Barros. Eu te salgo e te ressalgo e te torno a ressalgar P’ra que não possas comer, nem dormir, nem sossegar!
Pensa só na Tomasinha, sempre ela no teu pensar! Hás-de amá-la sem sossego , hás-de querê-la p’ra casar!
Eu te salgo e te ressalgo e te torno a ressalgar!... TOMASINHA Inocêncio!!! INOCÊNCIO Shuu! Os meus pais ainda não sabem que já cheguei! Tenho de falar contigo... tinha de ver-te... desde que parti que não tenho sossego. TOMASINHA Estás com um ar cansado... INOCÊNCIO Tenho pensado muito...
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TOMASINHA Eu também... INOCÊNCIO ...crescemos juntos Tomasinha e eu sempre olhei para ti como uma irmã... TOMASINHA E eu também... INOCÊNCIO Depois, comecei a olhar para outras raparigas... e às vezes, até pensava que gostava duma... ou doutra... mas nunca tinha a certeza... porque não sentia... TOMASINHA Não sentias o quê?... INOCÊNCIO ...não sentia o que agora sinto... E só agora é que eu sei o que realmente se sente... quando se gosta de alguém. TOMASINHA Sabes?... INOCÊNCIO Sei: É de ti que eu gosto Tomasinha. TOMASINHA Não acreditaste em mim... INOCÊNCIO Perdoa-me ter duvidado do teu amor... e não duvides tu do meu. TOMASINHA Como posso acreditar... que o que dizes é verdade? INOCÊNCIO E eu vinha de tão longe para te mentir?! Trouxe-te uma lembrança. Não consigo comer, não consigo dormir... desde que olhei para ti com outros olhos que não tenho um minuto de sossego... sempre a pensar em ti... TOMASINHA Também tenho pensado muito em ti Inocêncio... Cheguei a escrever-te... mas depois guardei a carta... INOCÊNCIO Porquê?!
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TOMASINHA Tive receio de que não acreditasses nas minhas palavras... INOCÊNCIO E que palavras eram essas! Quero ouvi-las agora! TOMASINHA
"Eu gosto tanto de ti, eu quero-te tanto, tanto...
Parece ser o diabo, ou milagre de algum santo."
INOCÊNCIO Tomasinha!... CUSTÓDIA
Tomasinha é nome doce, marmelada derretida
GERVÁSIO
Vai casar com a Tomasinha! TODOS
Vai comer doce toda a vida! GERVÁSIO Eu vos agradeço meu Deus! Sou um homem feliz!... Não posso ser mais feliz!... O meu filho vai dar o sagrado nó com a minha afilhada... que já era minha filha adoptiva... e que muito em breve vai também passar a ser... a minha nora... a futura mãe dos meus futuros netos... herdeiros absolutos da fortuna que os Barros acumularam ao longo dos anos! Eu sei que sou judeu, e vós sabeis que eu sou e que me orgulho do meu sangue de judeu... mas não tenho vergonha de me ajoelhar perante vós... porque agora... eu já posso morrer com a consciência tranquila... já posso morrer e descansar em paz... porque o dinheiro dos Barros... vai continuar na família dos Barros!!! TOMÁSIA Não sei o que se passa comigo, mas desde que eles partiram, tenho andado numa preocupação constante... tenho tanto receio que lhes possa acontecer alguma coisa... SEBASTIANA Foram em Lua de Mel, mana Tomásia! Mal fora que não lhes acontecesse... alguma coisa!
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FLORÊNCIA E correu tudo tão bem! O noivado, o casamento, o copo de água... e fiquei tão contente por ter sido eu a apanhar o ramo da noiva, quando a Tomasinha o atirou! TOMÁSIA Teve muita sorte, mana. FLORÊNCIA Muita!... Ainda nem sei que pensar! SEBASTIANA Se não sabe, eu digo-lhe: Pense que o mais difícil não é apanhar um ramo mana Florência! É apanhar um homem! TOMÁSIA Não leve a peito o que ela diz; ambas sabemos que a mana Sebastiana fala assim... porque nunca foi feliz; o marido gastou tudo o que tinha ao jogo... e com outras mulheres; quando morreu não lhe deixou nada... nem um filho... nada... FLORÊNCIA Eu sei... mas não precisava de se ter tornado tão amarga... tão agressiva; fala connosco duma maneira... – que Deus me perdoe, porque nós somos manas – mas às vezes, a mana Sebastiana... parece mais um homem do que uma mulher! SEBASTIANA Eu só nunca lhe disse para não a ferir, mas quantas vezes também pensei: “Há qualquer coisa de errado na mana Florência, porque se não olharmos para as saias... coitadinha, tem tão pouco de feminino!”. TOMÁSIA A mana não quis ofendê-la... nunca diria que parece um homem, se soubesse que estava a ouvir! FLORÊNCIA A mana sabe como eu gosto de si... eu seria incapaz... desculpe...eu pensava que tinha saído! SEBASTIANA Foi uma saída por entrada! “Falsa saída”... “Entrada brilhante”!... ...Terei de voltar a sair para continuarem a falar?!... FLORÊNCIA O Inocêncio e a Tomasinha... fazem um bonito casal, não fazem? Fiquei tão emocionada quando o padre disse: ”estão unidos para sempre!”... marejaram-se-me os olhos de lágrimas!
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SEBASTIANA Ah! Sim? Não reparei, mas deve ter sido uma imagem muito bonita!... TOMÁSIA E eu, que estou farta de pensar... e não me lembro de ter ouvido essa parte...! SEBASTIANA É natural que não se lembre; foi logo a seguir à mana ter tido o chelique! TOMÁSIA Eu tive um chelique?! FLORÊNCIA Dois! TOMÁSIA Dois cheliques?! Não me lembro de nada! FLORÊNCIA O primeiro foi logo à entrada na igreja. Deve ter ficado almariada da cabeça com o cheiro das velas e então teve o chelique, mesmo quando ia a dirigir a mão para a pia da sagrada água benta! SEBASTIANA Resultado: o que lá meteu não foi a mão, foi a cabeça! TOMÁSIA Enfiei a cabeça na pia de água benta?! FLORÊNCIA A cabeça e o chapéu! TOMÁSIA Podia ter morrido afogada! SEBASTIANA A mana salvou-se... o chapéu é que não. TOMÁSIA Não me lembro de nada!... mas que vergonha! FLORÊNCIA Ora! Vergonha é roubar!... E foi há uma semana, já ninguém se lembra, mana! TOMÁSIA Graças a Deus.
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SEBASTIANA Pois eu garanto-lhe que foi uma cena que quem viu... dificilmente esquecerá! FLORÊNCIA Mesmo assim... foi uma cerimónia muito bonita! SEBASTIANA Em toda a cidade não se fala noutra coisa! TOMÁSIA O meu marido é um homem muito rico! Faz gosto que este casamento seja falado em todo o lado! SEBASTIANA Eu sei que o seu marido é muito rico e este casamento, notícia de primeira página, mas quando eu disse que em toda a cidade não se fala noutra coisa, estava a referir-me ao chelique da mana, que continua a ser o pico das audiências!... porque foi muito ridículo!!! (Tomásia desmaia) FLORÊNCIA Dou-lhe razão, mana! Enfiar a cabeça na pia baptismal... FLORÊNCIA e SEBASTIANA Foi muito ridículo!!! GERVÁSIO Depressa D. Tomásia! Venha ver quem acabou de chegar! SEBASTIANA Ela agora não pode sair daqui cunhado! FLORÊNCIA Teve mais um chelique! TOMÁSIA Gervásio... onde está o Gervásio?!... SEBASTIANA e FLORÊNCIA Está aqui, mana! GERVÁSIO O Inocêncio e a Tomasinha acabaram de chegar! TOMÁSIA Mas eles... não iam ficar lá por fora 15 dias?!
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GERVÁSIO E ficaram! TOMÁSIA Então... isso quer dizer que... SEBASTIANA Quer dizer que a mana esteve outra vez desmaiada... TODOS Uma semana!!! CUSTÓDIA E então, menina?! Que cara é essa?! Conte lá como é que foi! TOMASINHA Ora!... CUSTÓDIA Não me diga que já não tem confiança em mim!... TOMASINHA É claro que tenho Custódinha! CUSTÓDIA E então?!... O que é que o rolo disse à rolinha?!... O que é que o Pombo fez à Pombinha?! Vá lá, desembuche!... TOMASINHA Lua de mel, lua de mel!!! Não foi nada como eu imaginei! CUSTÓDIA Pois como é que a minha menina imaginou que havia de ser?! TOMASINHA Quando entramos no comboio eu perguntei logo para onde é que íamos, mas ele fez um grande mistério e só respondeu: “É surpresa!” Ora, eu pus-me logo a pensar que íamos para Itália, ou França! Agora vê tu bem como é que eu não fiquei quando saímos na estação em Caminha e ele diz: “É aqui que vamos passar a lua de mel!”. CUSTÓDIA Eu nunca lá fui, mas dizem que Caminha é uma terra muito bonita!
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TOMASINHA Será, mas com tanto dinheiro que a gente tem, eu até sinto vergonha de dizer a alguém que fui passar a lua de mel em Caminha! Eu pôs-se-me um nó que nem lhe respondi, mas fiquei tão desiludida!!! É que não estava nada a contar! Pois temos nós tanto dinheiro para quê?!!! CUSTÓDIA Deixe lá! A menina tem de compreender que eles não são como nós, são judeus! Sempre foram muito agarrados ao dinheiro, mas não é por mal! E se não o gastaram agora, pense que vai poder gastá-lo à sua feição quando eles morrerem, que o dinheirinho há-de ser todo seu!!!... Mas aparte isso... conte lá... o que é que o rolo mostrou à rolinha?!... INOCÊNCIO A senhora Custódia não se importa de sair?! Eu preciso de... CUSTÓDIA Mas com certeza senhor Inocêncio!... Não querem lá ver que vão tomar banho juntos!... Com licença... INOCÊNCIO Agora, que estamos em casa, eu espero que tenha a delicadeza de disfarçar, pelo menos à frente dos outros! TOMASINHA Está a pedir-me para mentir?! INOCÊNCIO Peço-lhe apenas para mostrar um pouco de consideração pelo paizinho e pela mãezinha, já que por mim não mostrou nenhuma! TOMASINHA Já lhe disse mil vezes que não tive culpa do que aconteceu... e não aconteceu nada de que me possa envergonhar! INOCÊNCIO Eu estou coberto de vergonha! Vergonha! E a senhora tem o desplante de dizer na minha cara que não aconteceu nada?!!! TOMASINHA Eu não podia impedir que as pessoas olhassem para mim!!! INOCÊNCIO As pessoas que olhavam para si eram homens!!!
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TOMASINHA E que culpa tenho eu?! Já pensou o que vai ser a nossa vida se continuar a sentir esses ciúmes doentios, de cada vez que alguém olhar para mim?! INOCÊNCIO Não é “alguém”, são os homens! Os homens!!! TOMASINHA Pois sejam homens! E depois?! Que pensa fazer?! Cegá-los a todos?!!! Ou mandar sair uma lei para proibi-los de olharem para as mulheres?!!! Não tem tanto poder assim senhor Inocêncio de Barros!!! Nem eu casei para isto! INOCÊNCIO Então casou para quê?! Para me desfeitear?! Para me faltar ao respeito?! TOMASINHA Como é que pode dizer que eu lhe faltei ao respeito?! INOCÊNCIO Sabe muito bem ao que eu me refiro! Não se faça de lorpa! Um homem pode olhar uma vez para uma mulher que passa! Mas quando ele olha pela segunda vez e pára para olhar uma terceira, com a cobiça estampada nos olhos e a baba a escorrer-lhe pelos queixos, é porque há qualquer coisa nessa mulher que... que lhe dá coragem!!! TOMASINHA Eu não encorajei ninguém!!! INOCÊNCIO Ah, não?! Então como é que explica que no restaurante, no miradouro, no jardim público, junto ao coreto, onde quer que fôssemos, eu desse de caras com o mesmo indivíduo, que não tirava os olhos de si! Esse inegrúmeno perseguiu-nos para todo o lado desde o primeiro dia! A senhora foi a cobiça de todos... mas esse homem foi longe demais!!! E só pode ter ido longe demais porque a senhora o encorajou! TOMASINHA Não vi ninguém a olhar para mim com a cobiça estampada nos olhos senhor Inocêncio!!! INOCÊNCIO Não me desminta! Olhava! Olhava!!! TOMASINHA Com admiração... talvez!... E uma mulher gosta de ser admirada!!! INOCÊNCIO Finalmente confessa que também viu!?
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TOMASINHA E também confesso que apenas vi um a espumar-se de raiva, mas foi o senhor!!! INOCÊNCIO Acabou-se a conversa!!! TOMASINHA Foi o senhor quem a começou! Mas pode ficar descansado que não voltarei a dirigir-lhe a palavra... nem hoje, nem nunca mais! INOCÊNCIO Tomasinha... acabemos com “o senhor e a senhora”... vamos começar tudo do princípio, está bem?... vamos fazer de conta que não se passou nada... TOMASINHA Não precisamos de fazer de conta Inocêncio... não se passou nada!... INOCÊNCIO Está combinado: não se passou nada... e não te esqueças... eles iam ficar muito tristes se soubessem que a nossa lua de mel foi... foi o que foi! TOMASINHA Foi de fel e vinagre! INOCÊNCIO Amo-te muito Tomasinha... deixaste de ser apenas a minha mana... e a verdade é que eu nunca pensei gostar assim tanto de ti... eu amo-te muito... é por isso que eu... eu amo-te muito... Vou agora até ao café... cumprimentar os amigos... dizer que já chegamos... CUSTÓDIA Ele gosta muito da menina! É natural que sinta ciúmes! TOMASINHA Pois fez-me desesperar e arrepender mais de cem vezes de ter casado com ele! CUSTÓDIA Não diga isso! Ele zela pela menina... porque o amor é assim! O amor é cego!... INOCÊNCIO Calem-se todos! A minha mulher é uma mentirosa! O amor é cego, mas estas cartas não mentem!!! Tenho vergonha de ser seu marido! Tenho vergonha de ter casado com a senhora!!! GERVÁSIO Inocêncio!
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TOMÁSIA Que tens tu meu filho?! INOCÊNCIO Afastem-se de mim! Deixem-me!!! E a senhora, diga-me agora na minha cara que estas cartas não existem! Vá! Diga que nunca existiram nem foram escritas por si! Vá lá! Minta! Minta à frente de todos! Diga quem é que escreveu estas cartas ao Guimarães e quem é que as levou!!! Não foi a senhora! É claro que não foi a senhora! Eu digo quem foi: Ninguém!!! Ninguém!!! Sou eu que estou doido!!! Vá lá!!! Convença a família Barros que Inocêncio de Barros está doido!!! Estas cartas não existem! Estas cartas não deviam existir... nem estes versos...
“Eu gosto tanto de ti, eu quero-te tanto, tanto...“
É verdade... "o amor é cego..." Tenho vergonha de ter casado com a senhora!!! Tenho vergonha de ser seu marido! GERVÁSIO Saiam. Eu falo com ele. INOCÊNCIO Tenho vergonha de sair à rua... a Tomasinha é uma mulher sem honra... escrevia cartas ao Guimarães... e todos sabem... só não sei porque casou comigo... GERVÁSIO Casou contigo porque gosta de ti Inocêncio. Fez uma acção muito má em escrever a esse Guimarães; mas olha que na idade dela... também não é crime que te envergonhe! Todas namoram, todas escrevem e a gente não pode pedir-lhes contas do que fizeram antes de serem nossas mulheres. Tua mãe, quando me escreveu a mim, já tinha escrito a outro; e há muitas senhoras honradas que escreveram a uma dúzia deles ao mesmo tempo. Mau é terem elas quem lhes leve as cartinhas... INOCÊNCIO Era a Custódia quem as levava. GERVÁSIO Isso é que foi muito feio da parte dela, um mau exemplo! Não se portou nada bem a senhora Custódia!!! Foi ela a verdadeira responsável... mas esse assunto eu resolvo, e já. GERVÁSIO Custódia, não podes estar mais tempo em minha casa. Escuso de te dizer as razões que tenho para te despedir. Não me serves... CUSTÓDIA Então... Assim se põe na rua uma velhinha...
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GERVÁSIO Não vais p’rá rua. Vais para o convento de Santa Clara, onde te mandarei dar todos os meses o necessário. INOCÊNCIO No convento podes rezar e ouvir muitas missas à tua vontade. GERVÁSIO Cá em casa é que me não serves. CUSTÓDIA E a minha menina! A minha filhinha do meu coração... hei-de deixá-la?!... eu morro! Não me faça uma coisas dessas senhor Gervásio! Se me afasta da minha menina... que eu embalei nos meus braços... que eu ajudei a criar... a quem eu quero como se filha fosse... eu morro, não me afaste da minha menina... GERVÁSIO A tua menina ia por bom caminho, se tu continuasses a levar e trazer cartinhas de sujeitos que tu lá sabes... CUSTÓDIA Mas eu só queria o bem dela senhor Gervásio... eu sei que fiz mal e fui a primeira a sofrer, Deus sabe quantas lágrimas eu derramei por causa desse homem que não a merecia e Deus é testemunha que mil vezes me arrependi e ele mil vezes me perdoou! Perdoe-me também o senhor Gervásio, que eu sei que tem bom coração e perdoe-me o menino a quem eu sempre quis muito... e se nem sempre o mostrei não foi porque não o sentisse... a menina também gosta muito de si... fazem um par tão bonito e hão-de ser muito felizes... GERVÁSIO Basta!!! Não quero polémicas! Sou um homem de palavra e já te disse que cá em casa não me serves! Prepara as tuas coisas, que daqui a uma hora vais para o convento! CUSTÓDIA ...Eu quero dizer-lhe tudo o que me vai na alma... mas não tenho palavras menina... sei que vou morrer antes de partir... porque jurei à sua mãezinha que nunca havia de a abandonar... até que a morte me levasse... Deus entendeu por bem que aquele homem nos quisesse afastar... mas Deus também não há-de querer que eu falte ao prometido... perdoe-me menina... perdoe-me... TOMASINHA Eu é que te peço perdão Custódinha...
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CUSTÓDIA E eu à minha menina, à filhinha do meu coração... perdoe-me... porque vou ter de lhe morrer nos braços... Morro nos braços da menina... que em meus braços embalei!!!... SEBASTIANA O cunhado desculpe a intromissão, mas acaba de chegar um mensageiro! TOMÁSIA Eu bem lhe disse que a altura não era própria, mas ela insistiu! SEBASTIANA Insisti devido à insistência do mensageiro! Veio do Pará! TODOS Do Pará?!!!! INOCÊNCIO Deve trazer notícias do tio Luís! FLORÊNCIA Posso mandá-lo entrar cunhado?! GERVÁSIO Que entre o mensageiro! MENSAGEIRO Minhas senhoras e meus senhores, sou portador de uma notícia que por certo vai agradar a todos! GERVÁSIO Neste momento nada me podia dar mais prazer do que ouvir uma notícia agradável! Sente-se, sente-se! INOCÊNCIO Quer dizer-nos o seu nome? MENSAGEIRO O meu nome não importa! Importante é a mensagem que lhes trago! Podem pois chamar-me apenas “Mensageiro”. TODOS É o mensageiro!
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MENSAGEIRO Relações públicas da agência de Viagens “Mensageiro”! “O Prazer de viajar por pouco dinheiro”. Venho da parte do senhor Luís de Pinhel! MANAS O nosso mano Luís! MENSAGEIRO As senhoras são portanto todas “de Pinhel”? TOMÁSIA Eu agora sou “de Barros” pelo meu Gervásio! SEBASTIANA Eu fiquei “de Freitas” pelo meu defunto! FLORÊNCIA Eu sou a única que ainda me mantenho “de Pinhel”! MENSAGEIRO Permita que lhe diga menina... FLORÊNCIA Florência. MENSAGEIRO Menina Florência de Pinhel! É a cara chapada do mano! SEBASTIANA Não é só a cara que é chapada!!! GERVÁSIO Não se importa de continuar! É que temos ali um problema que ficou em suspenso! Se pudesse ir direito ao tal assunto agradável, eu agradecia! MENSAGEIRO Nada me dá mais prazer! Como sabem, o senhor Luís de Pinhel esteve durante cerca de cinco anos a lutar entre a vida e a morte! Ele queria morrer no seu país... mas o destino prega partidas e ele chegou a falar comigo para saber se no caso de vir a falecer antes de poder concretizar esse sonho eu arranjava maneira de mesmo assim o transportar para a sua terra natal, dentro do respectivo caixão, é claro! Mas o que ele mais desejava, antes de partir para a última viagem era poder voltar a Portugal para conhecer o sobrinho... rever as manas... enfim, matar saudades... - disse-mo de viva voz, quando ainda articulava sem grande dificuldade. Prestem atenção.
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LUÍS Chamo-me Luís de Pinhel e nasci no Porto, mas vim para o Pará há mais de quarenta anos para encontrar uma vida melhor; comecei a trabalhar na apanha da banana e foi aí que conheci um amigo com quem fiz sociedade e os dois montamos um negócio de bananas por conta própria. Ele depois montou-se noutro ramo mas eu continuei no ramo das bananas... e assim consegui amealhar bom dinheiro... De há cinco anos para cá não tenho andado muito bem porque fizeram-me uma macumba e todos os dias me aparecem frangos sem cabeça à porta de casa... e eu tenho andado estes anos todos a matutar onde estarão escondidas as cabeças... porque em algum sítio elas hão-de estar! E é assim que eu agora passo o meu tempo, à procura das cabeças... Tenho três irmãs, de nomes Sebastiana, Tomásia e Florência... que eu nunca mais vi e de quem sinto muitas saudades. A Tomásia casou com um judeu muito rico, de quem tem um filho, que eu nunca vi e que gostava muito de poder abraçar antes de morrer. INOCÊNCIO Diga-nos, depressa! MANAS Onde está o mano Luís?!!! LUÍS Estou muito contente por saber que andam todos à minha procura e espero em breve, poder abraçar-vos. TOMÁSIA O mano Luís ainda está vivo?! MENSAGEIRO Eu não quero dar-lhes falsas esperanças; passados uns tempos de ele ter tido comigo este monólogo... ele deixou de falar tão articuladamente... metade do que ele diz não se percebe... SEBASTIANA Mas talvez se consiga tirar o sentido pela outra metade!... MENSAGEIRO Bem... eu não quero fazê-los sofrer mais tempo... FLORÊNCIA Ora essa, demore o tempo que entender... MENSAGEIRO Vá lá... olhem todos para ali... pode entrar senhor Luís de Pinhel! (Vem “entubado” e com aqueles aparelhos na garganta para poder falar, mas ainda se percebe pior o que ele tenta dizer).
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LUÍS Estou muito feliz por conhecer-te Inocêncio! (Nada se percebe) MENSAGEIRO Diz que está feliz por ter conhecido o sobrinho! INOCÊNCIO Sou eu, tio Luís!!! E estas são as suas irmãs! LUÍS Isso agora não interessa nada!!! É muito tarde! MENSAGEIRO Disse que isso agora não interessa porque é muito tarde! LUÍS Quando eu morrer a fortuna que eu fiz com as bananas é toda para ti... só tens de ir buscá-la ao Pará... MENSAGEIRO Quando morrer a fortuna dele é toda para si, só tem de ir buscá-la ao Pará!
GERVÁSIO
Mas porque é que ele não a trouxe?! Já cá ficava e pronto! MENSAGEIRO Informei-o desse pormenor, mas ele não gosta de viajar com dinheiro, tem medo dos assaltos... FLORÊNCIA E cada vez estão mais barcos a ir ao fundo! E homens! LUÍS Está-se-me a acabar o oxigénio, vou morrer não tarda nada! MENSAGEIRO Sabe que vai morrer, porque o oxigénio está a chegar ao fim! MANAS Mano! Ó mano!!!! LUÍS Então... já chamaram as carpideiras?!
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MENSAGEIRO Pensa que são carpideiras! INOCÊNCIO Assim que ele morrer, parto imediatamente para o Pará! GERVÁSIO Levas a Tomasinha contigo? INOCÊNCIO Faz-me tanta falta a sua companhia como uma viola num enterro! O Mensageiro não está aqui por acaso! É Deus que através dele, me indica um caminho a seguir! A luz ao fundo do túnel está no Pará!... Talvez aí eu consiga esquecer a afronta... Consente que eu parta? GERVÁSIO Talvez seja melhor para ti... mas espera ao menos que o teu tio morra! TOMASINHA A Custódinha... morreu... e o meu sogro foi o causador da sua morte! TOMÁSIA Não lhe chames sogro Tomasinha! SEBASTIANA Isto é muito estranho!... Não deve estar morta... ou então eu já tinha começado a espilrar! FLORÊNCIA A mana é alérgica a corpos mortos! LUÍS Está quase... MENSAGEIRO O seu tio está a dizer que está quase... TOMASINHA A Custódinha... morreu atormentada e sem os sacramentos... CUSTÓDIA Ai minha rica filha, minha rica menina... SEBASTIANA Eu não dizia?!
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LUÍS Está quase... (vai repetindo nos intervalos da morte de Custódia) CUSTÓDIA Adeus filhinha do meu coração... até ao dia do juízo final... saibam que não vou descansar em paz... hei-de amaldiçoar-te a cada minuto, porco! Judeu!... o dinheiro não te há-de valer para nada!... separaste-me da minha menina... eu te amaldiçoo para que durante o tempo que te resta de vida sejas roído e corroído pelo remorso e quando morreres hás-de arder nas chamas do inferno!... (Silêncio total e absoluto e depois... Sebastiana começa a espilrar) FLORÊNCIA Agora é que já morreu!!! MENSAGEIRO O tio também já cá não está! TOMÁSIA É estranho... GERVÁSIO É a vida. TOMÁSIA ... tenho estado este tempo todo à espera de ter mais um chelique! GERVÁSIO Se não tiveste é porque Deus achou que não era oportuno mais um corpo morto! INOCÊNCIO Posso agora ir à procura da minha luz ao fundo do túnel? GERVÁSIO Já podes partir filho! Vai! E que Deus te traga com mais juízo do que levas. Eu cá fico a proteger a tua mulher, que eu desgracei, pensando que a fazia feliz! TOMASINHA Bem me dizias tu: Pobres órfãos, vós não chorais em meninos, porque a vossa vez de chorar vem depois! GERVÁSIO D. Tomásia: parece-me que temos de repensar muito bem a nossa vida! A partir de hoje temos de poupar, poupar, poupar... TOMÁSIA Mas nós sempre fomos muito poupados!
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GERVÁSIO Sim, mas vejo as despesas a aumentar e de que maneira! Só este ano... já vamos em um casamento e dois funerais!!! SEBASTIANA Aaaaaaatchim!!!! TODOS (incluindo os “mortos”) Santinha!
... e finalmente... ... é o FIM do Primeiro ACTO!
E aqui temos o princípio do SEGUNDO ACTO,
que tal como o primeiro, tem lugar no Teatro S. João do Porto, onde se representa mais um final de acto de
“O FANTASMA DA ÓPERA”.
É a célebre cena do candelabro que o Fantasma faz cair sobre o público que assiste à representação do “Fausto”.
No seu camarote a família Barros come o farnel. Quando o candelabro começa a tremer ficam boquiabertos! O Sr. Gervásio segura na mão uma coxa de carneiro;
quando a vai levar à boca ouve-se um grito de mulher e ele deixa-a cair!!!
E é mais um intervalo! AMIGO Querias aproximar-te da tua Mulher Fatal! Aí tens uma oportunidade! O patriarca da família deixou cair uma perna de carneiro! FLORÊNCIA Esta cena do candelabro a cair foi muito impressionante, não foi? SEBASTIANA Podia ser mais!!! Só matou dois figurantes! GERVÁSIO Para onde raio teria caído a perna de carneiro?!
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TOMÁSIA Nem sei como é que a mana não desatou a espilrar! SEBASTIANA Se ainda não percebeu, isto é tudo a fazer de conta! Só espilro com mortos verdadeiros! GERVÁSIO Eu só gostava de saber... NICOLAU É disto que V. Excelência anda à procura?! TOMÁSIA Que graça! Também se lembrou de trazer carneiro?!!! AMIGO É a perna do seu marido! GERVÁSIO É a minha perna, Tomásia! Muitíssimo obrigado! FLORÊNCIA Tenho a impressão de já o ter visto! AMIGO É natural, sou um colega do Inocêncio! SEBASTIANA Pelos vistos, a mana só é cega para algumas coisas!!! TOMASINHA Ficou com as mãos todas besuntadas de gordura. NICOLAU Não tem importância! FLORÊNCIA Dizem que gordura... é formosura! TOMÁSIA Eu tenho de ir aos lavabos e trago-lhe um cleanex! Não querem aproveitar?... GERVÁSIO Eu também tenho de ir, estou aflitinho, este acto era enorme!!!
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AMIGO Como tem passado o Inocêncio? GERVÁSIO Está no Pará há pouco mais de um mês... foi receber uma herança... (Nicolau e Tomasinha ficam sós) NICOLAU Algo me diz que ainda se lembra de mim. TOMASINHA Mesmo que quisesse, nunca poderia esquecer o seu rosto. O meu marido passou a lua de mel a falar em si; na forma como olhava para mim... (sorri) NICOLAU Porque ri?!... TOMASINHA Estava a lembrar-me... ele dizia que o senhor se babava. NICOLAU Isso é mentira! TOMASINHA Eu sei; eu só vi que havia muita tristeza no seu olhar! NICOLAU No seu também. TOMASINHA Pareceu-me uma pessoa infeliz. NICOLAU E sou... (ela ri de novo) De que ri agora?... TOMASINHA Não queria rir!... Penso que foi uma reacção nervosa!... NICOLAU Ficou impressionada? TOMASINHA Porquê?! Costuma impressionar as pessoas?
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NICOLAU Não sei; é a primeira vez que faço esta pergunta a alguém. TOMASINHA O senhor aparecia em todo o lado para onde nós íamos... decerto por acaso! Essa coincidência impressionou-me um pouco... NICOLAU Não foi por acaso! Desde o primeiro momento em que a vi, mandou-me o coração que a perseguisse para todo o lado. TOMASINHA Mas se eu estava com o meu marido! NICOLAU Só tinha olhos para si. Amo-a desde o primeiro momento e cada vez mais. TOMASINHA Não diga isso por amor de Deus! Não diga mais nada!!!... Já sofri demais! NICOLAU Eu sei. Não ter pai nem mãe é a maior pobreza deste mundo. Também sou órfão. Tive por mãe uma ama e o meu pai adoptivo era o Padre Almeida, prior duma igreja... foi ele que me encontrou numa cesta de verga, aos pés do altar de S. Nicolau, recém-nascido... por isso me chamaram Nicolau. Até aos dezoito anos vivi no desespero por não saber quem eram os meus verdadeiros pais e qual o motivo porque me tinham abandonado! TOMASINHA Os pais verdadeiros fazem sempre muita falta. NICOLAU Mas eu amava aquela ama e o meu pai adoptivo! TOMASINHA Isso é natural... foi com eles que cresceu. NICOLAU Amava-os demais! Demais!!! Eu não devia amá-los tanto! Porque eles não eram os meus verdadeiros pais, que não me saíam do pensamento e tinham no meu coração um lugar cativo. TOMASINHA E nunca chegou a saber quem eles eram?
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NICOLAU A minha ama morreu quando eu tinha 15 anos; no dia em que completei 18 anos, morreu o padre Almeida e deixou-me por herança toda a sua fortuna, e uma longa carta onde me pedia perdão e me revelava que a ama... era a minha verdadeira mãe... e ele o meu pai. No dia do meu aniversário fiquei a saber que era filho do pecado! E o desespero que me tinha acompanhado até então transformou-se em revolta!!! Uma vida inteira à procura de saber quem eram os meus pais... e eles, sempre tão perto de mim! E só então é que eu percebi que aquela força que fazia com que eu os amasse tanto... era a voz do sangue! Ninguém pode fugir à voz do sangue! TOMASINHA A sua história... é muito comovente... NICOLAU Agora... há outra força que me impele para os seus braços... TOMASINHA Isso não é possível!... Sabe bem que não é possível!... NICOLAU Ambos podemos pensar que isso não é possível... mas neste preciso momento... também sabemos que não podemos fugir ao destino! Desde que a vi, eu soube que a Tomasinha estava destinada a ser a minha doce fatalidade. SEBASTIANA Tens lágrimas nos olhos Tomasinha. FLORÊNCIA A cena do candelabro foi muito impressionante! TOMASINHA Pois foi! Esta ópera é... é muito pesada!... GERVÁSIO Fiz mal em trazê-la... com o marido fora há mais de um mês ela naturalmente sente saudades. AMIGO E ele também, com certeza! GERVÁSIO Sim! São um casal muito feliz! TOMÁSIA Estás tão branca! Preferes ir embora Tomasinha?!
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FLORÊNCIA O último acto ainda deve ser mais impressionante! AMIGO O fantasma enlouquece e suicida-se! TOMASINHA Prefiro ficar. Quem aguentou até aqui... aguenta até ao fim... seja ele qual for.
E pronto! Tomasinha e Nicolau já estão completamente perdidos um pelo outro! E o público já só anseia vê-los...
na cena de sexo!
Vamos agora mudar de cena e surpreender o público com... CABARET!!!
Inocêncio está no quarto do hotel. Olha para o relógio. Está nervoso porque aguarda a chegada duma artista de cabaret. O público não sabe... Ouve-se a campainha da porta. Ele levanta-se para se mirar rapidamente num espelho.
Poderá pôr um spray na boca, não vá estar com mau hálito! Vai finalmente para abrir a porta, mas ela entra, plena de salero! Vê-se à légua que é espanhola. Trás uma mala, de onde irá tirar os “adereços” necessários ao “número” que vai fazer
em privado. Na mala poderá ou não ler-se “Sarita Star” – “Spanish Private Dancer”. Fala em espanhol, Inocêncio fala em português, tentando fazer-se
entender pela beldade do país vizinho. INOCÊNCIO Sarita Star! SARITA Como não abrias, o garçon do hotel abriu-me a porta! INOCÊNCIO Estava em lá casa de banho! SARITA Hoje não posso perder muito tempo; tenho consulta marcada no dentista! Porra! Acordei com uma dor de dentes que estava a ver que não vinha! Estás pronto?! INOCÊNCIO Estou! Puedes começar quando quiseres! SARITA Não queres fazer o jogo de luzes, querido?! Ou hoje não te apetece?!
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INOCÊNCIO Quero! Tinha-me esquecido, desculpa! SARITA Vá lá... depressa!... que a sua queridinha tem dói-dói no dentinho!... (Inocêncio prepara umas luzes “ridículas” de discoteca foleira. Ela põe-se em “pose” e a um sinal ou um “abrir de leque” por exemplo, entra a banda sonora, sobre a qual ela recita um poema. Depois, ainda sobre a música continua:) SARITA Confessa lá à tua Sarita Star: é mesmo verdade aquilo que me disseste ontem?!... Vais pedir o divórcio da tua mulher?... INOCÊNCIO Ela só casou comigo por causa do meu dinheiro... nunca gostou de mim... SARITA Mas agora tens quem goste de ti... não tens?... e tu também gostas muito de mim não gostas?!... Promete que nunca me abandonas... promete... INOCÊNCIO Nunca!... SARITA E também é verdade que vamos viajar pela Europa?... E Estados Unidos?... Só nós dois!... INOCÊNCIO Sim... SARITA Prometo-te que abandono a vida artística... e só danço para ti, meu amor!... INOCÊNCIO Sim! Só para mim, só para mim!... SARITA Agora tenho de ir, querido! Está na hora do dentista!... a tua Sarita vai tratar do dói-dói e já volta! GERVÁSIO Finalmente chegou uma carta do Inocêncio!!! TOMÁSIA Graças a Deus!... Tomasinha, vem cá depressa!!! Chegou uma carta do Inocêncinho!
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GERVÁSIO Finalmente! TOMASINHA Para mim?! GERVÁSIO Não... só há uma... é para mim... mas com certeza que também te vai escrever... TOMASINHA Há dois meses que partiu... e nem uma palavra! TOMÁSIA Talvez já te tenha escrito! A carta pode ter-se extraviado... TOMASINHA Pois pode... GERVÁSIO Não queres saber o que ele diz?!... TOMASINHA O mais importante é que esteja bem de saúde... GERVÁSIO “Querido Pai, só agora lhe escrevo, porque não tenho andado muito bem de saúde...” Ó diabo! TOMÁSIA Com certeza anda lá por fora a comer coisas que não deve! Não há nada como a comidinha caseira e ele sempre sofreu muito do estômago! Continua, Gervásio! GERVÁSIO “...mas felizmente agora já me sinto bastante melhor!” TODOS Graças a Deus! GERVÁSIO “Fico por cá mais uns tempos para conhecer melhor esta terra. Quem vê o mundo aprende tudo quanto há sem ler livros e as viagens dão muita experiência aos homens; estou também a aprender dois dedos de idioma espanhol, pois estou a pensar ir visitar o México e é para não fazer má figura! Saudades para as titis e para a mãezinha. Um abraço do seu filho...” TOMASINHA E para mim, nem uma palavra!
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TOMÁSIA É o que eu digo: escreveu-te e a carta perdeu-se, foi o que foi! TOMASINHA O que se perdeu foi o nosso casamento, a nossa felicidade... e para sempre! GERVÁSIO Escreve-lhe tu Tomasinha; agora pelo menos já sabemos onde ele está... e que está bem... há-de gostar de receber uma carta tua... faz isso por mim e pela tua madrinha... TOMASINHA Está bem...mas eu sei que ele não me vai responder. GERVÁSIO Quando um homem gosta duma mulher, não leva a bem que andem por aí a dizer que ela gostou doutro;... fizeste mal com aquela história das cartas, mas o que lá vai, lá vai! Agora tens de ajudá-lo a esquecer o passado. Ficou como louco! Temos de ter paciência e esperar que a razão lhe volte! TOMASINHA Vou escrever-lhe. TOMÁSIA Que te parece agora esta ideia dele ir para o México?! GERVÁSIO O que é que me havia de parecer? Uma grandessíssima asneira!!! TOMÁSIA Também acho. Dizem que a comida mexicana faz muito mal ao estômago! GERVÁSIO Eu quero lá saber do estômago do rapaz! Eu estou é preocupado com o dinheiro!!! Não vai descansar enquanto não gastar o dinheiro todo da herança!!! TOMÁSIA Se ao menos esse dinheiro o fizesse feliz!... GERVÁSIO Anda a esbanjá-lo em aulas de espanhol e sabe-se lá mais em quê!!! Só espero que quando se lembrar de regressar, não nos apareça no mesmo estado em que apareceu o teu irmão Luís de Pinhel!
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TOMÁSIA Por amor de Deus, Gervásio! Se alguém te ouvisse falar assim, até havia de pensar que não gostas do nosso filho! GERVÁSIO Não digas isso Tomásia! Não digas isso que me magoas! O que me faz falar assim... é porque eu gosto muito do nosso filho, do nosso Inocêncio, o Inocêncinho! E custa-me sabê-lo lá longe... sem querer saber de nós... sem querer saber da desgraçada da mulher... que a Tomasinha sim, sente-se-lhe o desgosto... o arrependimento sincero... a angústia de ser esposa sem marido... a dor... só de pensar que o pode ter perdido para sempre!
Tomasinha entra no seu quarto. O público só percebe que lá está também Nicolau, no momento em que ele responde (Se fosse uma comédia de boulevard,
ele surgiria do roupeiro, da varanda ou de baixo da cama; todo nu, é claro e segurando na mão a roupa com que taparia ou não as “partes baixas”. Neste
“melodrama”... ainda não sei de onde ele aparecerá! A ideia do “todo nu” mantém-se... Tomasinha entra apreensiva. Estava muito bem, mas aquela chamada do
Padrinho por causa da carta caiu-lhe muito mal e veio fazer-lhe lembrar que é uma grandessíssima pecadora! Com este espírito de remorso a primeira parte do
diálogo, após o que se entregam às mais lindas fantasias de amor! TOMASINHA Já se foram deitar. NICOLAU Desconfiam de alguma coisa?... TOMASINHA Não. Chegou uma carta... do meu marido. NICOLAU Não fales assim. Ele não é digno dessa palavra! Abandonou-te... TOMASINHA Um dia, há-de voltar. NICOLAU Escreveu-te a dizer que voltava? TOMASINHA Escreveu ao pai... não pronuncia sequer o meu nome... não vai voltar tão cedo... NICOLAU Então... está tudo bem...
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TOMASINHA Até quando?!... Eu não aguento esta situação por muito mais tempo! Quando estou contigo, ao escutar as tuas palavras... consegues fazer-me acreditar que ainda posso ser feliz... NICOLAU Havemos de ser felizes... TOMASINHA Mas assim que te vais embora... e até voltares no dia seguinte... vivo carregada de medos, angústias, remorsos... ando pela casa toda como uma louca... sem saber que fazer... sempre a pensar em ti... e em mim... e que este nosso amor é impossível! NICOLAU Não digas isso! TOMASINHA Ele vai voltar! Um dia... mais tarde ou mais cedo;... Mas ele vai voltar! NICOLAU Podemos fugir para Espanha! TOMASINHA Fugir?!... Não posso dar mais esse desgosto aos meus padrinhos. NICOLAU Mas então... quando ele voltar, o que é que fazemos?! TOMASINHA Não sei! Não me obrigues a pensar nisso! Não sei responder-te! Havemos de encontrar uma solução; amanhã ou depois!
(E pronto! Ela tem aquela brasa à sua frente... e lá por dentro toda ela já é também um braseiro... está mais que disposta a continuar o que já tinham
começado... está por tudo e o “tudo” é aquele momento; nem precisa de tirar muita roupa porque já pouca tem para tirar... mas a que tem pode tirá-la muito
lentamente... com um tema musical por fundo... e ambos iluminados por um candeeiro de petróleo. Depois vão falando, brincando aos namorados...
TOMASINHA Agora... eu só quero pensar que está tudo bem... porque tu estás aqui... e eu amo-te muito... És o meu Fantasma...
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NICOLAU E tu a minha Diva... vou ter de raptar-te... TOMASINHA Sim... leva-me para o teu refúgio... NICOLAU Podes ter a certeza que te levo... TOMASINHA Não penso noutra coisa... NICOLAU Não tens medo de estar comigo?!... TOMASINHA Sim... mas é este medo que me faz desejar-te ainda mais!... NICOLAU És a minha doce fatalidade! TOMASINHA E tu, a minha doce fantasia...
A próxima cena passa-se no hotel onde está hospedado o Inocêncio. Em cena apenas se encontra “Sarita Star” (que afinal é uma falsa espanhola! Ou seja, é
uma portuguesa que vive de expedientes no Brasil... e um dos expedientes dela é fazer-se passar por espanhola! Camilo havia de gostar desta ideia!). Como toda e qualquer pessoa, o amor é um factor importante na sua vida, que só parece fácil
para quem está de fora! Há um homem na sua vida: José! Para não o perder ela é capaz de tudo e por isso se entrega aos “Inocêncios” que lhe aparecem à frente. José é de descendência cigana e mais novo que ela, com quem forma parelha,
sob o disfarce de “recepcionista” do hotel. Sarita Star, vestida de “Bárbara Guimarães”, aguarda no quarto a chegada de Inocêncio, mas quem entra em cena
é o tal José.
JOSÉ (Fala-lhe em espanhol, apenas esta frase.) Então Sarita Star?! Deixaste fugir o teu Inocêncio? SARITA Nunca! Está pelo beicinho, já não me foge!!! Teve de ir à farmácia; parece que sofre do fígado!!! JOSÉ O anjinho acreditou mesmo que eras espanhola!!!
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SARITA Os homens acreditam sempre naquilo que eu quero que eles acreditem! JOSÉ Estou incluído nessa lista?! (Aqui, Sarita vai ter de mostrar que está “sinceramente” louca por aquele miúdo; aquilo que lhe diz é verdade e é uma verdade sentida, em contraste com a falsidade profissional com que fala a Inocêncio; talvez possa falar-lhe com um pouco de amargura... mas com muito amor.) SARITA Tu és o meu homem! É por ti que eu vendo o meu corpo, que me entrego aos solitários, aos mal amados, aos maridos enganados e a todos aqueles que têm de comprar o que o destino sempre lhes negou! Mas tu és o meu homem! Não estás nessa lista! Estás no meu coração! É pelo amor que te tenho que eu me vendo! (Ele não sente a mesma paixão, nem de perto nem de longe. Nem se preocupa com a forma como lhe fala; a verdade é aquela e pronto! Ele está com ela porque ainda “rende”) JOSÉ Sarita Star: antes de me teres conhecido... já trabalhavas neste ramo! SARITA Nesse tempo entregava-me só por dinheiro. Agora, entrego-me por amor! (Sarita entrega-lhe umas notas, que ele conta e guarda, enquanto continuam o diálogo) JOSÉ Como é que te lembraste de ser “espanhola”?! SARITA Um ricaço que chega ao Pará não vem à procura duma portuguesa; e eu ainda não apanhei bem o sotaque brasileiro: fico sempre meio brasileira e meio palhaça! Mas um papalvo português até se vem, só de pensar que engatou uma estrangeira! Escolhi ser espanhola porque nasci em Elvas... tinha Badajoz à vista... domino a língua! JOSÉ E os homens! És uma mulher... fatal! SARITA Agora vai, ele pode aparecer!
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JOSÉ Chegou mais uma carta do paizinho do papalvo... e outra da mulher. SARITA Depois leio; ele pode entrar de repente. INOCÊNCIO Demorei porque a farmácia estava à cunha! (acha estranho a presença do recepcionista) Aconteceu alguma coisa?! SARITA (obviamente a partir de agora fala em espanhol) Nada, querido! Está tudo bem!... O rapaz da recepção só subiu ao quarto para... para despejar os penicos! (Para José) Muitas gracias! (Para Inocêncio) Estava no ar um cheiro que não se aguentava! INOCÊNCIO Já que aqui está leve esta carta e ponha no correio. (Dá-lhe a carta, uma gorjeta e José sai) SARITA Devias dar-lhe uma gorjeta maior! INOCÊNCIO Só tem de meter a carta; o que lhe dei até é muito! Quem costuma despejar os penicos não é aquela empregada mulata?! SARITA Sim, mas hoje faltou – deve estar com o período – e ele teve de substituí-la! INOCÊNCIO Não gosto nada da cara dele! SARITA Ele também não gosta da tua!... mas gosto eu... estava cheinha de saudades... anda cá... vamos já tratar desse fígado... E então... aquela carta era para quem?... INOCÊNCIO Para o paizinho... a dizer que te conheci... e que vou viver contigo... SARITA ...e também lhe disseste para mandar a tua mulher dar uma volta... porque quem não volta para ela és tu...? INOCÊNCIO Nunca mais!... Eu agora só me volto para ti... sou todo para ti Sarita... sou todo para ti... e nada para ela!...
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(... e quando estiverem quase a chegar à “queca”... baixa a luz ou baixa o pano!)
Voltemos agora para as Manas, que ainda têm muito textinho para debitar! Estão em casa, entregues aos seus pensamentos e ocupações habituais.
SEBASTIANA A Tomasinha não anda bem!... Ninguém me tira da ideia que ela não está bem! TOMÁSIA É claro que não está bem; já lá vão mais de quatro meses e o Inocêncinho nunca mais voltou a escrever! Tenho tanto medo que lhe tenham feito alguma macumba! SEBASTIANA Já é um homem! Deve andar distraído no meio... das bananas! Se fizeram alguma macumba foi à Tomasinha, porque ela é que não está nada bem! FLORÊNCIA Com o marido tão longe como queria a mana que ela estivesse?! SEBASTIANA Branca de desgosto! Magra! Seca! Chorosa! TOMÁSIA Ela está com muitas olheiras... SEBASTIANA Sim, mas de há umas semanas para cá subiu-lhe um rosado às faces... e está mais gorda... ninguém me tira da ideia que ela está mais gorda... FLORÊNCIA Não digo que não tenha razão, mas olhe que eu não notei nada! SEBASTIANA Quando é que a mana assume que está quase cega?!!! TOMÁSIA Pensando bem, ela talvez esteja um bocadinho mais gorda de cintura... SEBASTIANA ... e de peito! TOMÁSIA Tem razão... o peito também aumentou um bocadinho. FLORÊNCIA Eu sei que vejo mal, mas oiço muitíssimo bem!!!
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TOMÁSIA Por amor de Deus! A mana não lhe chamou mouca! FLORÊNCIA Anteontem, acordei às quatro da manhã com vontade de ir à casa de banho – a dobradinha do jantar deve-me ter caído mal – ia pelo corredor e ao passar pela porta do quarto da Tomasinha... ouvi-a... ela estava aos vómitos!!! TOMÁSIA Agora já percebo donde é que veio aquele vomitado que apareceu à porta de casa!!! O passeio da rua estava um nojo! SEBASTIANA Está explicado o mistério! TOMÁSIA Cheguei a pensar que fosse de algum cão vadio, ou algum bruxedo... mas tem razão: está explicado o mistério do vomitado! SEBASTIANA O mistério deixou de ser mistério: A Tomasinha está grávida!!! (D. Tomásia desmaia uma vez mais! Entra Gervásio) GERVÁSIO Porque será que sempre que eu entro a minha mulher está esvaída?!!! SEBASTIANA Ainda pergunta? FLORÊNCIA Tem a certeza que ela está grávida?! GERVÁSIO Mas que disparate mana Florência! Isso é impossível! Eu sei muito bem o que faço e o que não faço! SEBASTIANA Não é a mana Tomásia que está grávida! TOMÁSIA Gervásio... Gervásio... ela... ela está grávida!... GERVÁSIO A cunhada Sebastiana está grávida?!!!
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SEBASTIANA O meu marido onde está, já não engravida ninguém! FLORÊNCIA A Tomasinha é que está grávida! MANAS (perante a reacção de Gervásio) Fez-se luz! GERVÁSIO Bendito seja Deus!... Vou ser avô! É preciso chamar um médico imediatamente, uma parteira, uma ama! Vou já escrever ao meu filho a dar-lhe a notícia! Bendito seja Deus, porque o meu filho partiu, mas deixou dentro dela a semente! Quando o Inocêncio souber que a sementinha germinou, ele vai perdoar-lhe... e vai voltar! Comprem um berço, façam uma limpeza geral a esta casa! Abram as portas e as janelas para que todos saibam que o meu filho vai voltar! O nosso filho D. Tomásia, vai voltar! A honra voltou a instalar-se na família dos Barros!!!
Tomasinha está no quarto, aguardando a chegada de Nicolau! Pela primeira vez está visivelmente grávida. Nicolau entra com os sapatos na mão.
TOMASINHA (Está de costas, para o público só ver a barriga depois; sente que ele chegou) Já descobriram! NICOLAU Mas eu nunca fiz barulho!... Descalço-me sempre!... TOMASINHA Já descobriram que eu estou de esperanças! (E pelo tamanho da barriga, era preciso ser-se mesmo cego para não descobrir!) O Padrinho já escreveu ao Inocêncio! Ele vai voltar!... Mas mesmo que não volte, eu estou perdida! NICOLAU Mas então, eles pensam que o meu filho... é filho do Inocêncio?! TOMASINHA Pois de quem querias tu que eles pensassem que era a criança?! NICOLAU Mas ele está longe! Como é que é possível que eles pensem... TOMASINHA Não é possível nas nossas contas... mas é nas deles!!!
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NICOLAU São mesmo judeus! Só sabem fazer contas ao dinheiro! TOMASINHA Conhecemo-nos um mês depois dele partir; para quem não sabe, tanto posso estar grávida de quatro, como de cinco ou seis meses!!! NICOLAU E o Inocêncio, quando souber, achas que também vai acreditar que o filho é dele?! TOMASINHA Não, isso não! NICOLAU Também pode ser fraco em contas! TOMASINHA É impossível que ele acredite que o filho lhe pertence! Não houve nada entre nós!... NICOLAU Então... não tens que te preocupar! Se ele sabe que o filho não é dele... não volta com certeza! TOMASINHA Pode voltar, sim! NICOLAU Para se cobrir de vergonha?! TOMASINHA Para dar cabo de mim! Para me matar!... Se não tiver coragem, escreve ao pai a contar tudo! Seja como for, estou perdida! NICOLAU Só há uma coisa a fazer: temos de fugir. TOMASINHA Fugir?!... E o nosso filho?! NICOLAU Está contigo... vai connosco... (Tomasinha tem medo de tomar uma resolução... e dá a volta ao texto, vira o bico
ao prego!) TOMASINHA
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E daí... talvez Inocêncio não lhe conte... nunca respondeu às cartas do pai... talvez não queira mais saber de mim, nem da família... talvez não volte... NICOLAU Talvez... TOMASINHA E depois, os meus padrinhos e as titis... estão tão felizes... faz-me pena dar-lhes assim de repente mais uma desilusão;... a vida nesta casa tem sido um inferno para todos... está nas nossas mãos prolongar-lhes este momento de felicidade... NICOLAU Mais tarde ou mais cedo vão ter de saber a verdade... TOMASINHA Mas não é preciso que seja já!... Peço-te Nicolau: deixa o bebé nascer primeiro, para que eles o possam ao menos conhecer... deixa-o nascer primeiro, e fugimos depois. Prometo. NICOLAU Prometes? TOMASINHA Prometo.
No quarto de hotel, no Pará. José está a ler a carta de Gervásio. Entra Sarita Star
JOSÉ O anjinho mentiu-te! Disse-te que nada o ligava à mulher, que ela não lhe interessava. SARITA E não lhe interessa, já deu provas disso! JOSÉ Ela talvez não lhe interesse, mas está à espera dum filho! SARITA A mulher está à espera duma criança?! JOSÉ Deixou-a de esperanças! A criança deve nascer daqui a dois meses, lá p’ra Dezembro! SARITA Isso não é possível! Não é dele! Ele jurou-me que... não! Não pode ser dele! JOSÉ
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O velhote está convencido que vai ser avô! E o dinheiro há-de ir todo p’rá criança! SARITA Se lhe mostrarmos a carta, ele vê que a mulher o atraiçoou... e isso pode ser mais um trunfo a nosso favor! Vai desprezá-la ainda mais... vai querer desmascará-la perante a família!!! JOSÉ Estás a esquecer-te do reverso da medalha! Ele pode ter-te mentido... e o filho ser mesmo dele! Uma amante como tu pode ganhar a batalha... contra uma esposa... mas nunca contra um filho. A voz do sangue! dificilmente alguém lhe pode resistir! SARITA Eu só não quero é perder-te! JOSÉ Não o percas a ele também!... Saca-lhe o resto da herança... e depois já podes enfiar-lhe a carta pelas goelas! SARITA Hão-de aparecer mais papalvos como ele! JOSÉ Papalvos sim... mas com tanto dinheiro não.
(Inocêncio entra; Sarita imediatamente tenta justificar a presença de José; pega numa toalha de rosto e entrega-a ao chulo)
SARITA (em espanhol) Pode levar! Muitas grácias!
(Ele sai com a toalha. Inocêncio ficou desconfiado) INOCÊNCIO Não gosto nada da cara deste tipo! SARITA Já me tinhas dito, querido. INOCÊNCIO Mas não valeu de nada, pois não?! Que veio ele cá fazer?! SARITA Não viste?! Só veio buscar a toalha! INOCÊNCIO Veio buscar a toalha p’ra quê?!
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SARITA Para substituir por outra! INOCÊNCIO E aposto que vai esperar que eu saia para trazer a outra... é isso?! SARITA Não te entendo!... INOCÊNCIO Mas eu é que já estou a entender! Ele entra quando eu saio e sai assim que eu entro! Eu já fui enganado uma vez Sarita! À primeira quem quer cai, mas à segunda só cai quem quer, ouviste?! SARITA Já te disse que não te entendo! INOCÊNCIO Se me andas a pôr os cornos com o rapaz da recepção eu dou cabo de ti! SARITA Ah, sim?! Matas-me?! É isso?! Matas-me!!! Não tens coragem, senão também tinhas morto a outra!!! (Ele prega-lhe uma violenta bofetada, com que ela não contava! Cai. Quando se levanta, tem sangue a escorrer-lhe da boca, ou do nariz). Se queres dar murros, vai dá-los à tua mulher! Não há-de ser um porco como tu que me levanta mais a mão! INOCÊNCIO Sarita! Tem piedade de mim! Tu não vês que eu estou doido de ciúmes! Eu amo-te! Perdoa-me! Ouve Sarita... não me deixes! Se não voltas eu mato-te!... e mato-me depois a mim!... ... Não volta... já vi que não volta... gostava dela... ainda gosto dela... mas estraguei tudo... não posso matá-la!... E de nada vale matar-me a mim... ninguém ia querer saber... o meu pai nunca respondeu às minhas cartas... a minha mulher escrevia cartas a outro... e com esta... nem sequer cheguei a aprender espanhol como deve ser!... Não me dou bem com este clima... tenho saudades da minha casa... tenho saudades dos meus pais... das titis... e até tenho saudades da Tomasinha... de quando éramos irmãos e brincávamos às escondidas... o destino nunca quis que gostássemos um do outro doutra forma... Tenho tantas saudades!... Já sei!... Vou escrever à minha mãe a dizer que vou voltar e para ela interceder junto do paizinho... ele acha que eu fui injusto com a Tomasinha... mas não há-de fechar-me a porta na cara! “Querida mãezinha... eu sei que não me portei lá muito bem , mas morro de saudades...”
(O fim da carta ouvir-se-á na próxima cena.)
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Em casa dos Barros, estão todos com os olhos postos na carta. Ouve-se a voz de Inocêncio
INOCÊNCIO “...já falei com aquele senhor da Agência Mensageiro, o mesmo que aí esteve com o tio Luís, que me tratou da viagem; diz ele que o barco deve chegar ao cais de Leixões no dia 24 de Dezembro...” FLORÊNCIA Já só falta uma semana! TOMÁSIA Se Deus quiser faz a consoada connosco! INOCÊNCIO “...e se Deus quiser ainda faço a consoada convosco”. SEBASTIANA A mana às vezes parece bruxa! GERVÁSIO O nosso filho vai voltar! Tomasinha, o teu marido vai voltar!!!! TOMÁSIA Diz que morre de saudades, ouviste?!! TOMASINHA Ouvi sim... morre de saudades. SEBASTIANA É estranho! TOMÁSIA Pronto! Lá está a mana com as suas estranhezas! SEBASTIANA Não me digam que não é estranho ele não falar da criança que vai nascer!!! GERVÁSIO O Inocêncio nunca foi de falar muito... mesmo quando a gente lhe fazia perguntas... punha-se a desenhar narizes e primeiro que lhe arrancássemos qualquer coisa! FLORÊNCIA O cunhado tem razão, ele nunca foi de exteriorizar sentimentos...
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GERVÁSIO Mas de certeza que se sente feliz por ir ser pai , doutra forma não vinha a correr assim que recebeu a minha carta!
(Tomasinha começa a ficar com as dores de parto) SEBASTIANA Ele não respondeu à sua carta, ele escreveu à mãe! GERVÁSIO Lá está! Porque não gosta de exteriorizar comigo! TOMÁSIA E toda a gente sabe que “Mãe” sempre é “Mãe”! SEBASTIANA E algumas não são mesmo mais nada! São mães!
(Percebem que Tomasinha não está bem) GERVÁSIO O que é que tens, filha?!
(Tomasinha está cada vez com mais dores) TOMASINHA Não sei... parece que vai ser... não quero... quero morrer... matai-me Senhor!... Etc... (Frases a distribuir pela gritaria que se vai gerar) SEBASTIANA A criança vai nascer! TOMÁSIA E a parteira que não foi avisada! GERVÁSIO Alguém que traga toalhas! Água a ferver! FLORÊNCIA Toalhas! Água a ferver! TOMÁSIA É melhor ires chamar a parteira, Gervásio!
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SEBASTIANA Deixe lá agora a parteira! Segure-lhe nas pernas cunhado! FLORÊNCIA Eu também quero ajudar, mas não sei como! TOMÁSIA Reze, que já é uma grande ajuda! SEBASTIANA Segurem-lhe nos braços, que ela não pára quieta!!!!... SEBASTIANA Pronto, já está!!!! É um menino!
(Gervásio ergue-se e D. Tomásia também. Tomam cena frente ao evento) TOMÁSIA Nasceu de oito meses. Está vingado e perfeitinho! GERVÁSIO Não me lembro de nada!...
(Gervásio desmaia)
É o dia 24 de Dezembro. Num dos espaços estará uma árvore de natal e a família Barros. No outro, é o quarto de Tomasinha.
FLORÊNCIA Está tudo tão bonito mana Sebastiana: a árvore de natal, os enfeites, o presépio!... SEBASTIANA Fiz o melhor que sei. TOMÁSIA Dou-lhe os meus parabéns! SEBASTIANA Mas olhe que a mana Florência também se esmerou a embrulhar as prendas! FLORÊNCIA E já viu a travessa de aletria que fez a mana Tomásia?!
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TOMÁSIA Sempre tive mão para a aletria, mas o mais bonito é o que a mana Florência escreveu com a canela em pó: “Benvindo Inocêncinho!”. SEBASTIANA Como é que conseguiu, mana?! FLORÊNCIA Não sei se é por ser Natal, mas estou a ver muito melhor! GERVÁSIO (Trás um barrete de Pai Natal) Feliz Natal! MANAS Feliz Natal!!! NICOLAU Feliz Natal! TOMASINHA Feliz Natal!... NICOLAU Está tudo pronto? TOMASINHA Está tudo pronto. NICOLAU O nosso filho? TOMASINHA Está ali... está a nanar... NICOLAU Trouxe-lhe uma prenda... um ursinho de peluche... TOMASINHA Nicolau... tenho tanto medo... NICOLAU Vai correr tudo bem... TOMASINHA Não é por mim... é por ele!...
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NICOLAU Está tudo preparado, não lhe vai faltar nada; vamos daqui direitos a Vila Nova de Famalicão e lá encontramo-nos com a ama que hoje mesmo segue connosco para Caminha. Amanhã de manhã partimos para Espanha. TOMASINHA Quando eles descobrirem... nem quero pensar no que pode acontecer! NICOLAU Pensa que está em jogo a nossa felicidade e a do nosso filho! TOMASINHA Eu sei. NICOLAU Agora não podemos voltar atrás. O meu amigo deve estar a chegar com a carruagem.
(As manas e Gervásio cantam uma canção de natal.) GERVÁSIO Daqui a uma hora ou duas chega o nosso Inocêncio! Não quero desmaios!!! É Natal! SEBASTIANA Que horas são cunhado?! GERVÁSIO São... quatro e meia! SEBASTIANA Que estranho! Está na hora da ama dar de mamar ao Pedrinho e lá nisso a Tomasinha costuma ser pontual! TOMÁSIA É capaz de ter adormecido ao lado do bebé, o parto cansou-a muito! SEBASTIANA É capaz...o melhor então é eu ir acordá-la... Tomasinha!... TOMASINHA Vem aí alguém! Esconde-te, depressa!... Sim?... SEBASTIANA Afinal estás acordada! Está na hora do Pedrinho ir mamar! Esqueceste-te?!
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TOMASINHA Não... mas agora... talvez seja melhor não... mais tarde... SEBASTIANA Os bebés têm de mamar a horas certas!... TOMASINHA Eu sei... mas ele está a dormir tão bem... parece um anjinho... SEBASTIANA Acorda-se o anjinho... olha, nem é preciso. Já acordou! Vá lá, venha ao colo da titi que está na hora da papa do bebé... olha que gracinha!... não larga o ursinho... quem deu o ursinho ao bebé, quem foi?, quem foi?... foi a mamã?!... (enquanto fala chega ao “espaço” dos outros”) Quem estava a dormir era o bebé, mas já acordou! GERVÁSIO Venha ao colo do avô!... sou o avô!... dê um beijinho ao avô!... olha, não me deu um beijo, mas deu-me um ursinho!... TOMÁSIA É muito bonito! Foi a mana Florência que lho ofereceu?! FLORÊNCIA Não; Deve ter sido a mana Sebastiana!... NICOLAU A carruagem acabou de chegar à porta! Temos de ir! TOMASINHA Agora não podemos! A tia Sebastiana levou o menino! NICOLAU Levou o menino para onde?! TOMASINHA Estava na hora dele mamar! NICOLAU Tens de ir buscá-lo, depressa! TOMASINHA Como é que eu posso ir buscá-lo?! O que é que eu digo à ama?!
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NICOLAU Não tens que lhe dizer nada! Ela sabe que és a mãe dele! (Ouve-se um assobio lá fora) Estão à nossa espera!!! TOMASINHA Os outros hão-de querer saber porque é que eu vou buscar a criança! Temos de esperar... NICOLAU Não podemos!... TOMASINHA É só meia hora, ou menos! E depois vou buscá-lo!... NICOLAU Não queria dizer-te... mas soube antes de vir para aqui que o barco já atracou no cais há muito! O Inocêncio está aí não tarda nada!!! Temos de fugir quanto antes! Não quero que esse homem te torne a ver Tomasinha! TOMASINHA Mas o nosso filho!...
(Ouvem-se dois assobios)
NICOLAU Só há uma solução: fugimos agora os dois e eu venho buscá-lo mais tarde! TOMASINHA Eles não te dão a criança!!! NICOLAU Assim que o Inocêncio chegar eles vão saber que o filho não é dele! Não vão querer ficar com o menino, sabendo que ele é filho doutro homem!!! São demasiado orgulhosos para o aceitarem na família! Não tem o sangue dos Barros!!! TOMASINHA Vão amaldiçoar-me para sempre! NICOLAU Vamos.
(Todos cantam o “Noite de paz, Noite de amor...”, a dada altura, ouve-se a campainha da porta. Florência vai à porta!)
FLORÊNCIA Eu vou abrir!
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GERVÁSIO Deve ser o Inocêncio! TOMÁSIA Mas onde se meteu a Tomasinha?! SEBASTIANA Então, é ele?! FLORÊNCIA Ainda não! Mas é o Mensageiro outra vez! Reconheci-o logo assim que abri a porta! GERVÁSIO Mas então porque é que não o mandou entrar?! FLORÊNCIA Já mandei! Mas ele vem com uma muleta! SEBASTIANA Se vem do Pará, deve trazer é uma mulata! MENSAGEIRO Minhas senhoras e meus senhores, hoje sou portador duma muleta! FLORÊNCIA Eu não dizia?! GERVÁSIO Venha como vier, será sempre bem recebido neste lar! Só espero que desta vez não demore tanto tempo a mostrar-nos quem trouxe para nos mostrar, porque já fez esse número com o tio Luís, deve lembrar-se! MANAS O nosso falecido mano! MENSAGEIRO Vejo que estão muito esperançados... mas eu não lhes quero dar falsas esperanças... GERVÁSIO Por amor de Deus, já sabemos que faz esse “suspense” muito bem feito, mas é Natal! Mande-nos a todos olhar para ali... e mande-o entrar! SEBASTIANA Espere cunhado! Falta aqui a Tomasinha!
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TOMÁSIA Mas onde se teria metido a pequena! FLORÊNCIA Eu vou chamá-la! MENSAGEIRO Não vale a pena menina Florência! Verifico que ainda não sabem... embora já conste... mas o barco em que viajava o Sr. Inocêncio de Barros... foi... a pique... e ele lá ficou!
(Silêncio) TOMÁSIA Mas a ilha de Pique não é nos Açores?! Que ficou ele a fazer nos Açores?! SEBASTIANA Nos Açores é “Pico!”... a pique... é ao fundo! TODOS (Só agora perceberam) O barco foi ao fundo?!!! MENSAGEIRO O barco e toda a tripulação! Fui o único que escapou à tragédia! Agarrei-me à muleta e fiquei a boiar, até ser salvo por um barco de carga, que por feliz coincidência também vinha para Leixões! TOMÁSIA A Tomasinha... está viúva!... SEBASTIANA E ainda não sabe! FLORÊNCIA Eu vou chamá-la! MENSAGEIRO Não vale a pena, menina Florência! SEBASTIANA Já é a segunda vez que diz isso! O senhor repete-se!!! TOMÁSIA Não vale a pena porquê?!
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MENSAGEIRO Porque não está cá em casa! Quando eu estava a chegar aqui à rua, estava ela a descer por uma escada de corda, duma janela do primeiro andar! Depois um vulto, que me pareceu dum homem com uma capa negra, amparou-a até uma carruagem... e partiram!!! TOMÁSIA A minha afilhada foi raptada! SEBASTIANA O senhor viu isso tudo e não estranhou?! MENSAGEIRO Quem tem uma profissão como a minha, vê tanta coisa que já não estranha nada! GERVÁSIO Tragam-me a criança que nunca há-de conhecer seu pai! (Com a criança nos braços) Meu anjinho... o que é que eu te hei-de dizer?!!!... É noite de Natal... o teu paizinho morreu afogado... a tua mãezinha foi raptada pelo homem da capa negra... e por agora... meu anjinho... não me ocorre dizer-te mais nada... que mais é que eu te posso dizer?!... Seja como for... é Natal!... cantemos!... cantemos para não chorar!!!
E cantam: “Noite de paz... noite de amor, etc.”
(No dia seguinte, ou dias depois!)
GERVÁSIO A Tomasinha não foi raptada! A Tomasinha tinha um amante, com quem fugiu! O cocheiro que os transportou bateu com a língua nos dentes! Em toda a cidade não se fala de outra coisa!!! Que vergonha! O marido no fundo do mar e ela nos braços dum miserável!!! TOMÁSIA Meus Deus! Abandonar o filho para se entregar a uma vida de luxúria e de pecado! SEBASTIANA Esse homem tem de ter qualquer coisa!... FLORÊNCIA Tem a nossa Tomasinha! GERVÁSIO Miserável!
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FLORÊNCIA Esta noite de Natal vai ficar inesquecível!!! GERVÁSIO Nunca mais vamos poder festejar o Natal sem nos lembrarmos desta vergonha e desta tragédia! TOMÁSIA Meu querido marido! Está a cair-te em cima a maldição da Custódia!!! SEBASTIANA Era uma mulher muito experimentada cunhado! GERVÁSIO Não posso fazer o funeral ao meu filho, mas posso fazer-lhe o enterro a ela!!! E a esse miserável que veio emporcalhar a honra dos Barros!!! TOMÁSIA Estás a pensar em matá-los Gervásio?! FLORÊNCIA Sabe quem ele é, cunhado?! GERVÁSIO Um aventureiro! Um vagabundo! Um miserável! Um oportunista! TOMÁSIA Como é que sabes tantas coisas sobre esse homem?! GERVÁSIO Seduziu a Tomasinha para apanhar o nosso dinheiro! Mas está muito enganado que não vai apanhar-me nem uma moeda!!! Tomasinha é uma mulher, foi uma presa fácil, mas de mim não vai ele conseguir nada! TOMÁSIA Ele pode roubar-nos?! GERVÁSIO Qual é o homem que quer uma mulher que já é mãe, senão para roubar o dinheiro do sogro?! FLORÊNCIA Mas como?! GERVÁSIO Ele sabe que o meu dinheiro há-de ser todo para o meu neto! Ele é filho do meu filho, é sangue do meu sangue e juro por Deus que há-de ser o herdeiro de toda a
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minha fortuna!!! A Tomasinha é a mãe, figura no meu testamento, também tem direitos enquanto for viva e esse miserável vai obrigá-la a reclamar, a invocar a lei! Sabem que o meu filho morreu! SEBASTIANA Isso eles ainda não sabiam, quando fugiram! GERVÁSIO Essa gente sabe sempre tudo antes dos outros! Até o Mensageiro pensava que nós já sabíamos, mas só nós, os mais interessados, é que fomos os últimos a saber!!! MANAS Virgem Maria Santíssima! Santa Maria Goretti! Sagrado Coração de Jesus! GERVÁSIO Mas não está nada perdido! Temos o poder do dinheiro! Usêmo-lo!!! Mesmo nas grandes catástrofes, nas grandes derrocadas, quem tem poder nunca fica mal, mesmo que sejam obrigados a abandonar tudo! E é isso mesmo que nós vamos fazer!!! MANAS Vamos deixar o país?! GERVÁSIO Preparem as malas! Os ricos têm sempre um plano de emergência! Vou levantar todo o dinheiro, anular o testamento, espalhar aos sete ventos que fomos roubados e que estamos na miséria! Mantemos apenas esta casa... tal como está... um dia, talvez possamos voltar... quando todos esquecerem esta vergonha. TOMÁSIA E vamos, para onde?!... Para África?!!! GERVÁSIO Não vamos daqui deportados, D. Tomásia!!!! Ninguém sabe, mas continuamos ricos! Vamos para Londres! FLORÊNCIA e SEBASTIANA Londres! TOMÁSIA Mas eu nem falo francês!
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SEBASTIANA Não lhe vai fazer falta nenhuma, pode ter a certeza! GERVÁSIO Londres... vai ser muito bom para a educação do menino... o ensino em Portugal está cada vez pior!... FLORÊNCIA Vamos conhecer Londres!!! Piccadilly! O Covent Garden! O Hyde Park!!! GERVÁSIO E vamos poder ver... TODOS Os grandes Musicais!!! AMIGO Dona Tomasinha?... TOMASINHA Sim... sou eu... AMIGO Não sei se ainda se lembra de mim... sou amigo de Nicolau de Almeida... estava com ele no dia em que lhe falou pela primeira vez... no Teatro São João... não se lembra?!... TOMASINHA Já passou... tanto tempo!... AMIGO Dezassete... ou dezoito anos... TOMASINHA Uma vida! AMIGO Desde que saíram do Porto, nunca mais o voltei a ver... julgava-os em Espanha. TOMASINHA Soubemos da morte do Inocêncio... já não era preciso fugir... e ficávamos mais próximos do nosso filho...! Não... não me lembro do senhor... AMIGO O seu marido há-de lembrar-se de mim.
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TOMASINHA Talvez... não sei... ele... está diferente... AMIGO Diferente?!... Como?!... TOMASINHA Tentámos tudo... e nunca soubemos do paradeiro do nosso filho... onde é que está... se ainda é vivo... e se sabe da nossa existência; o que pensa de nós... não sabemos nada!... Há dezoito anos que vivemos neste inferno!... Mil vezes a morte! NICOLAU Pedro!... Pedro!... ...Onde está o Pedrinho?!... ...Saiu de casa e ainda não voltou!... ...Quando ele chegar temos de falar com ele... um filho não pode estar tanto tempo longe dos pais... ...Não sabes onde ele está, pois não, Tomasinha?... ...Talvez seja melhor eu ir procurá-lo... pode ter-lhe acontecido alguma coisa... ...é isso!... ...eu vou procurá-lo... e quando o encontrar, eu vou falar-lhe ao coração... ele há-de ouvir-me... ...um filho nunca pode ficar indiferente à voz do sangue!... TOMASINHA A voz do sangue!... A voz do sangue!... AMIGO Vai deixá-lo partir?!! TOMASINHA Mil vezes partiu e mil vezes voltou... AMIGO Tenho de falar-lhe! Ele não me reconheceu, mas mesmo assim... TOMASINHA Às vezes nem a mim reconhece!... AMIGO Lembre-se que a esperança é a última coisa a morrer! TOMASINHA A minha, já morreu há muito tempo... e a dele... morre aos poucos... NICOLAU ...Perdoa-me Tomasinha, perdoa-me... prometi-te que o trazia de volta... ...mas não consigo encontrá-lo!... ...Não consigo... perdoa-me...! TOMASINHA Descansa, Nicolau... descansa um bocadinho...! Não penses agora nisso... não penses em nada... ...descansa... ...Vá-se embora, peço-lhe!
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AMIGO O seu padrinho voltou ao Porto... e o seu filho também! GERVÁSIO Quis voltar a Portugal, porque quero acabar os meus dias na terra onde nasci e também queria que conhecesses a casa que te viu nascer... you were born here... this is all yours... PEDRO It's a very nice house, indeed... GERVÁSIO Filho do meu sempre chorado Inocêncio... é chegada a hora de te dizer o que não sabes... tua avó e tuas titis, que Deus tem... disseram-te que teu pai e tua mãe tinham morrido. Teu pai... your daddy... é certo que morreu... mas tua mãe... não! You understand? PEDRO My mother is alive?!
GERVÁSIO Your mother is alive! PEDRO My mother is alive?! GERVÁSIO Yes! Yes! Yes! Morreu para nós, porque foi a vergonha da minha cara e a desonra do teu pai! PEDRO My mother is alive?! GERVÁSIO Yes!!! Só o teu pai é que morreu! Na noite em que o esperávamos, era noite de Natal... Christmas!... fugiu ela para a companhia de um homem, com quem ainda vive amantizada!!! PEDRO My mother is dead! GERVÁSIO No! She's amantizada with a man... you uderstand? PEDRO Yes! Then, for me, my mother is dead too!... compreende?!
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GERVÁSIO Yes! Yes!... Trocou o teu pai... your daddy... e abandonou-te... por causa desse homem... you understand? PEDRO Yes! GERVÁSIO Foi ele que emporcalhou a nossa honra!!! Eu já não tenho forças para limpar a honra emporcalhada... mas tu, agora que és conhecedor da verdade, the truth and nothing but the truth... se algum dia te encontrares com esse homem... - chama-se Nicolau de Almeida... - podes fazer o que te ditar a voz do sangue... toda a minha fortuna é tua... e a vingança também! Eu já não vivo muito Peter... seis meses quando muito... PEDRO Don't go! Please don't go! GERVÁSIO Ainda não vou!... Mas quando for... vou feliz... porque o dinheiro dos Barros vai continuar na família dos B...! PEDRO My grand-pa... is dead!... TOMASINHA ...Pedro?!... PEDRO No... Gervásio... Gervásio de Barros!... Compreende?... TOMASINHA Sim... é o meu padrinho... eu depois falo com ele... PEDRO Christmas... Heaven... compreende? TOMASINHA Sim... foi no Natal que te levaram!... Eu sou... NICOLAU Pedro!... Pedro!... Não encontro o nosso filho... TOMASINHA O nosso filho... talvez não consiga entender as nossas palavras...
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NICOLAU Quem é aquele homem!? TOMASINHA ...Não ouves... a voz do sangue?!... NICOLAU O meu filho!... O meu filho!... Saiu de casa e ainda não voltou! Quando ele chegar temos de falar com ele... um filho não pode ficar tanto tempo longe dos pais!... Quando ele voltar... eu vou falar-lhe ao coração... um filho nunca pode ficar indiferente à voz do sangue!... PEDRO I don't understand... não compreende!... TOMASINHA Aquele ursinho... foi o teu pai que to deu... tinhas três ou quatro dias... o teu pai... PEDRO Pai?!... Daddy!?... TOMASINHA Sim... o teu pai e eu... procurámos-te por todo o lado! Há dezoito anos que a nossa vida é um inferno!!!... PEDRO My father is dead!... Meu pai morreu... compreende? TOMASINHA Não! O teu pai não morreu!... Meu Deus misericordioso fazei com que ele me entenda!!... Aquele homem... chama-se Nicolau de Almeida!... PEDRO Nicolau!?... TOMASINHA De Almeida!... E é ele o teu verdadei...
(Pedro saca de uma pistola e dispara sobre Nicolau)
NICOLAU Tomasinha... parece que vou morrer... sem ter conseguido encontrar o nosso filho... promete-me que não vais desistir... e quando o encontrares fala-lhe de mim... leva-o junto ao meu túmulo... fico à espera desse dia... ainda tenho esperança de ouvir da sua boca a palavra "pai"... fala-lhe ao coração... ele há-de ouvir-te... um filho nunca pode ficar indiferente à voz do sangue...
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TOMASINHA Perdoa-me, perdoa-me... ter-te amado tanto... e ter-te dado tão pouco... NICOLAU Não tens que me pedir perdão!... Desde aquele dia em que te vi... em Caminha... eu sabia que tu havias de ser a minha doce fatalidade.
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1
A Vida Trágica de
CARLOTA
A Filha da Engomadeira
A partir do romance de Camilo C. Branco Coisas Espantosas
COISAS ESPANTOSAS O enredo deste belo romance de Camilo Castelo Branco
gravita em torno do trinómio Crime – Expiação – Felicidade, três elementos essenciais, e omnipresentes,
no universo romanesco de Camilo.
“Coisas Espantosas”, o 16º romance do autor, saiu em primeira edição em 1862,
mas os primeiros capítulos foram publicados em 1859, com o título “A Natureza das Coisas”.
Quando, em 1861, um editor lhe pediu para escrever a sua
autobiografia romanesca, Camilo retomou o enredo de 1859 e pensou dar-lhe um novo título: “Os Miseráveis de Cá”,
procurando assim atingir um duplo objectivo: aproveitar em benefício do livro a publicidade
feita na época em Portugal aos “Miseráveis” de Victor Hugo e desafrontar-se pela pena – como costumava de resto fazer –
dos miseráveis que o perseguiram no processo de adultério.
A dinâmica da intriga impôs um desfecho incomum e o romance sairia com o título definitivo de “Coisas Espantosas”.
CARLOTA Carlota é uma das personagens que está no centro deste romance
e é a sua história que vamos contar, uma história comovente até às lágrimas, já que o autor é considerado por consenso universal um mestre do romance passional português.
2
KlássiKus associação cultural
Apresenta
A Vida Trágica de
CARLOTA A Filha da Engomadeira
A partir do romance de Camilo C. Branco Coisas Espantosas
Texto e Encenação Fernando Gomes
Coreografia Victor Linhares
Cenografia e Grafismo Jorge Galvão
Figurinos Lucilia Telmo
Direcção Vocal Fernando Luis
Fotografias Pedro Lemon Garcia
Desenho de Luz Luis Balola
Estreia: 11 Julho 2002 – Teatro Há-de Ver
Produção Manuela Jorge
3
A Vida Trágica de
CARLOTA
A Filha da Engomadeira
A partir do romance de Camilo C. Branco Coisas Espantosas
Personagens e Intérpretes
Mendigo, Inácio Botelho, Menino Augusto Carlos Macedo
Mendiga, Carlota dos Reis Elsa Galvão
Mendigo, Gregório Redondela Fernando Gomes
Mendiga, Carolina, Anita, D. Rosa, Madre Isabel Ribas
Mendigo, Manuel, Calmeirona Luis Pacheco
Mendiga, D. Leonor, Betinha, Françoise Paula Fonseca
Mendigo, Dr. Januário, Chulo, Adido Cultural, Freira Pedro Fernandes
Mendigo, Anão dos Assobios, Fininha, Garçon, Freira Rui Raposo
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A Vida Trágica de CARLOTA A Filha da Engomadeira
Melodrama Passional
Carolina dos Reis era uma engomadeira competente e assim ganhava dinheiro para o seu sustento e da filha
…até que um dia começou a ver mal, e já quase cega de todo, viu-se obrigada a abandonar a profissão!
Carlota, a filha da engomadeira, na sua inocência de menina,
brincava com bonecas e sonhava que ainda havia de conhecer o pai … até que um dia, apenas com 15 anitos,
teve de substituir a mãe e abraçar a profissão de engomadeira!
E Carlota começou a engomar as camisas do sr. Inácio, um viúvo endinheirado e pai dum menino com 4 anos, que ela ajudou a criar como se de um filho se tratasse
…até que um dia o viúvo não conseguiu resistir aos seus encantos e Carlota deixa-se arrastar para o leito do patrão!
Carlota já não era virgem, mas ainda não sabia
o que era o amor … até que um dia conheceu Manel, um rapaz com problemas económicos e também com uma grande
necessidade de afecto! E Carlota, a filha da engomadeira passou a ter dois amantes!
Ter dois amantes não é nenhuma tragédia … e a vida de Carlota,
a filha da engomadeira, nem estava a correr assim tão mal …até que um dia …cinco anos depois,
a “Morte” bate à porta da casa de Inácio Botelho …e o viúvo, que até então era o “mealheiro” do filho, da Carlota,
da mãe e do amante … é levado para descansar em paz!
A grande tragédia … vai começar! E ainda vai durar mais dez anos!
5
A Vida Trágica de CARLOTA A Filha da Engomadeira
Dez Anos Depois …
Dez anos depois – estamos no século XIX – continuava a ser
impressionante o número e condição dos mendigos de Lisboa. Mendigavam cegos, aleijados, velhos, doentes,
anormais, desempregados. Alguns mendigos, em troca duma esmola, cantavam e contavam,
pelas ruas e pelas feiras, histórias comoventes que relatavam amores não correspondidos ou crimes recentes.
Também para eles, a vida era madrasta, injusta, ingrata!
Até que um dia … ao saberem duma engomadeira que ficou cega, duma tal Carlota que esteve anos internada num manicómio,
dum criminoso que teve de abandonar o país e acabou por regressar riquíssimo,
dum tal Gregório que milagrosamente escapou à morte
quando já ia a caminho do cemitério e muitos outros espantosos
acontecimentos … nesse tal dia, os mendigos juntaram-se
e passaram a noite inteira a falar destas Coisas Espantosas …
E chegaram à conclusão de que tinham ali uma boa história,
coisa comovente que eles haviam de gostar de contar
e que o povo havia de gostar de ver!!!
Durante algumas semanas não pensaram noutra coisa
… até que um dia … acharam que já estavam preparados
para cantar e contar, para quem os quisesse ver e ouvir,
A Vida Trágica de CARLOTA A Filha da Engomadeira
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PRÓLOGO.
A Klássikus orgulha-se de apresentar em estreia absoluta:
“A Vida Trágica de Carlota, a Filha da Engomadeira”.
Trata-se de um Melodrama Passional, escrito a partir do enredo do 16º
romance de Camilo Castelo Branco: “Coisas Espantosas”, que saiu em
primeira edição em 1862.
Carlota é uma das personagens que está no centro deste romance e é a sua
história que vamos contar, uma história comovente até às lágrimas, já que o
autor é considerado por consenso universal um mestre do romance passional
português.
A acção decorre em Lisboa, na segunda metade do século XIX.
Grande parte do povo vivia de esmolas.
Era impressionante o número e condição dos mendigos de Lisboa.
Mendigavam cegos, aleijados, velhos, doentes, anormais, desempregados.
Alguns mendigos, em troca duma esmola, cantavam e contavam, pelas ruas e
pelas feiras, histórias comoventes que relatavam amores não correspondidos ou
crimes recentes.
Hoje, sem dúvida que teriam preferido um palco … e seria assim …
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MENDIGOS
Nas “Coisas Espantosas”
Que Camilo escreveu
Neste Romance passional a Carlota nasceu
É um melodrama
Com enredo até mais não!
Dava um grande programa
P‟rá tele-visão!
No palco este romance
Tem de ser encortado
É uma bela chance de fazer um reciclado!
Teatralidade
Tem para dar e vender
A grande dificuldade
Está no es-colher
Há sangue! Há crime! Há morte!
Cenas de amor também
E mulheres de mau porte, tudo isto a peça tem!
É um melodrama!
Cheio de cenas reais
E assim se enreda a trama
Mas ainda há mais!
Há o Inácio Botelho
Amante da Carlota
O homem não é velho, mas bem cedo bate a bota!
Porque alastra a peste
Mata sem escolher qual
Cena pungente e agreste
A deste fu-neral!
Gregório o seu criado
Noutra cena cruel
Vai ser assassinado e por causa dum papel!
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O tal papelinho
Causa do acto em questão
Rende bom dinheirinho a
Quem lhe deite a mão!
A Carlota enlouquece
Que o remorso é fatal
Teias que o autor tece e a levam p‟ró hospital
Pobre desgraçada
Que o destino maltratou
E ao sair curada
Vê que a mãe – cegou!
E é vê-las lado a lado
A cega e a pequena
Pedir esmola é o seu fado mas ninguém tem pena!
Quadros deste estilo
Continuam imortais
Assim escreveu Camilo
Mas ainda há mais!
Que às “Coisas Espantosas”
Não se lhes vê o fim
Tem cenas amorosas; é um grande folhetim!
É uma tragédia!
Cheia de cenas reais
Mas também tem Comédia!
Já vão ver! Que há mais!!!
É uma tragédia!
Cheia de cenas reais
Mas também tem Comédia!
Já vão ver! Que há mais!!!
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CASA DE CAROLINA DOS REIS
MENDIGO
A primeira cena passa-se numa pobre casa, situada no Beco das Gralhas.
Carolina dos Reis, assim se chamava a mãe da Carlota, era filha de família limpa,
mas foi amaldiçoada pelo pai por ter casado contra sua vontade.
CAROLINA
Teu avô não quer saber de nós, Carlota … e o teu paizinho, por môr de ter casado
comigo contra a vontade de quem mais pode … todas as portas se lhe fecharam e
ficou sem trabalho … e ele hoje, não está aqui ao nosso lado, porque teve de
embarcar p‟ró Brasil, a ver se … (chora a seco) … mas ele um dia vai voltar Carlota
… e assim que ajeitar emprego, há-de nos mandar algum p‟ra nosso arremedeio …
e entretanto, arremedeia-se a gente como pode e com a benção do Senhor! Graças a
Deus que aprendi a arte de engomadeira …por enquanto só engomo para o Sr.
Inácio Botelho …
MENDIGO
Ganhava pouco, mas era dinheirinho certo …
CAROLINA
… é pouco, mas é dinheirinho certo… e a ti, filhinha,
MENDIGO
E a ti, filhinha, continuou a pobre mãe, “nem que eu tenha de tirar da boca, não te
há-de faltar nada!”
CAROLINA
… Dorme … dorme, meu anjinho … pelo menos enquanto dormes não pedes papa!
…
MENDIGO
Carlota fingia dormir, para não atormentar ainda mais a pobre mãe … e continuou a
fingir … a fingir …
Até que um dia, … dez anos depois …
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CARLOTA (Off)
Quem era, mãezinha? …
(Carolina entra a ler um papel)
CARLOTA
Carta do paizinho?!!!
CAROLINA
A conta da mercearia! … A Ti Ingrássia diz que tem muita pena, que se lhe parte o
coração, mas que não pode continuar a fiar-nos enquanto não pagar esta dívida!
…Virgem Maria Santíssima! Que vai ser de nós, minha filha?! …
CARLOTA
O paizinho há-de voltar!!!
Não é o que a mãezinha me responde quando eu entristeço, por ter de brincar com
uma pobre boneca de trapos?!
Que o paizinho há-de voltar e que vai traser-me muitas bonecas … e que nenhuma
delas há-de ser de trapos! Todas de porcelana! …
O paizinho há-de voltar!!!
CAROLINA
Não sei, minha filha, não sei! … Eu agora já não sei! … esgotaram-se-me as ilusões
e já nem tenho forças para te mentir …se há já dez anos que ele partiu e nem uma
carta escreveu … diz-me o coração que o teu paizinho, Carlota, já não vai voltar …
nunca mais! …
CARLOTA
Nunca mais?! …
O pai natal não existe … o paizinho não vai voltar … as dívidas aumentam … e
Deus dorme …
CAROLINA
Não digas isso Carlota! Deus é Deus, é todo poderoso … “Sabe-se lá … se esta vida
é boa ou má … sabe-se lá, amanhã o que virá …
CARLOTA
Não podemos ficar mais tempo à espera, a ver o que é que acontece amanhã, ou no
outro dia, ou no outro …
O sr. Inácio Botelho … a mãezinha está sempre a dizer que ele é muito boa pessoa
…
CAROLINA
Pela vontade de Deus, é ele quem nos tem valido! …
CARLOTA
Podia pedir-lhe um aumento de ordenado …
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CAROLINA
Podia, mas … eu estou a ver cada vez pior … a tua mãe está quase a ficar cega,
Carlota! … eu já não engomo como dantes … eu não te contei nada, mas outro dia,
saltou uma fagulha do ferro, eu não reparei … e peguei fogo à casa …
CARLOTA
A mãezinha pegou fogo à casa?!
CAROLINA
Graças a Deus só ardeu metade da cozinha e a despensa … o Sr. Inácio perdoou-me e foi
quando me deu estes óculos … mas ele agora tem mais despesas … a Balbina, a
cozinheira, vai ser mãe …
CARLOTA
Não me disse que a Balbina tinha casado!
CAROLINA
Porque a desgraçada não casou! … que Deus lhe perdoe … o filho é do senhor
Inácio Botelho …
CARLOTA
Mas então ele … não vai reparar o mal que lhe fez?! …
CAROLINA
É um bom homem … tenho a certeza que vai perfilhar a criança …
CARLOTA
E a Balbina? …
CAROLINA
Também há-de ter as suas regalias! … desde que foi lá para casa, que ele obrigou
logo toda a gente a chamar-lhe “Dona”! … Dona Balbina.
CARLOTA
Se a Balbina é “Dona” e a criança vai ser perfilhada, isso quer dizer que o senhor
Inácio …
CAROLINA
É um homem como deve ser! … Um bom homem!
CARLOTA
Pois então, peça-lhe um aumento, mãezinha!
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CAROLINA
Não sei … tenho medo! …
MENDIGOS/CAROLINA
O preciso é ser-se forte
Ser-se forte e não ter medo
Porque na verdade a sorte, como a morte,
Chega sempre, tarde ou cedo.
Ninguém foge ao seu destino
Nem para o que está guardado
Pois por um condão divino
Há quem nasça pequenino
P‟ra cumprir um grande fado
Sabe-se lá, quando a sorte é boa ou má,
Sabe-se lá, amanhã o que virá
Breve desfaz-se, uma vida honrada e boa
Ninguém sabe quando nasce
P‟ró que nasce uma pessoa.
MENDIGO
E até agora, tudo leva a crer que o senhor Inácio nasceu para ser uma boa pessoa.
Acedeu ao pedido de Carolina e deu-lhe um aumento, por interferência da Dona
Balbina, a mãe solteira, que tinha tanto de sofrida como de bondosa …
E assim passaram mais cinco anos!
CAROLINA
Carlota! Carlota! Onde estás Carlota?!
CARLOTA
Estou na retrete, mãezinha! Já vou!
CAROLINA
Que grande desgraça! Mas que grande desgraça, minha filha!!! Agora é que eu não
sei mesmo o que é que vai ser de nós duas! …
CARLOTA
Mas que aconteceu?! Tanto alarido?! Que grande desgraça é essa?!
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CAROLINA
A D. Balbina! … A Dona Balbina morreu!
Não somos nada neste mundo Carlota! Nada!
CARLOTA
Morreu?! … Mas como?!
CAROLINA
A desgraçada, que a esta hora é cadavre, desceu à adega p‟ra buscar vinho para o
senhor Inácio e caiu-lhe uma pipa em cima que a esborrachou logo ali! … Não
somos nada neste mundo Carlota! Nada!
CARLOTA
Coitadinha … e o filhinho, o menino Augusto, já lhe disseram que ficou sem
mãe?!
CAROLINA
Parece que não, mas o menino, que só tem quatro aninhos mas é uma criança muito
inteligente, Carlota, percebeu logo que ali havia coisa! … não parava de gritar pela
mãe! … e o cheiro a vinho era tanto e entranhava-se de tal maneira, que naquela
casa até parecia que estava tudo bêbado! …
CARLOTA
Coitado do senhor Inácio; deve estar desfeito! …
CAROLINA
Ninguém estava à espera e ficou toda a gente desfeita, Carlota! O senhor Inácio, o
menino Augusto, eu! … Mas quem menos estava à espera e a que ficou mais
desfeita foi a Dona Balbina!
CARLOTA
Quem diria que havia de morrer esmagada por uma pipa de vinho!
CAROLINA
Ficou toda desfeita! A pipa … e a Dona Balbina! …
O senhor Inácio já fala que vai ter de meter uma pessoa para tomar conta do
menino! …
CARLOTA
Tem lá em casa aquele criado, o Gregório, que é como se fosse da família!
CAROLINA
Já está muito velho … e o que faz falta à criança não é um avô, é uma mãe! …
CARLOTA
A mãezinha é que podia tomar conta dele e sempre ganhava mais algum …
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CAROLINA
E bem falta nos fazia, mas … eu ainda não te disse … e nem sei como é que te hei-
de dar esta notícia … , uma meia hora antes de ter descido à adega, a Dona Balbina
disse-me que o sr. Inácio estava a pensar em despedir-me …
CARLOTA
Voltou a deitar fogo à casa?! …
CAROLINA
Não … mas esta semana já lhe queimei quatro camisas e dois pares de ceroulas …
eu então pedi à Dona Balbina para interceder por mim, que se ficasse sem engomar
havíamos de morrer as duas à fome … e ela teve pena e prometeu-me que havia de
falar com o sr. Inácio, assim que voltasse da adega! …
CARLOTA
E nunca mais voltou! …
CAROLINA
Ele ainda não me disse nada … mas eu já sei que vou ter de ser substituída! …
CARLOTA
Meu Deus! … não sei como é que a gente aguenta tanta desgraça! Elas são umas
atrás das outras! …
É a fome que aperta, o dinheiro que escasseia, o paizinho que está mais que visto
que já não volta, as dívidas que aumentam, a mãezinha que está quase cega, e agora
é uma pipa que cai e a outra que morre esmagada num banho de sangue e de
vinho!!!
Já que a minha mãe está cega, chegou a altura de eu fazer alguma coisa que se
veja!!!
CAROLINA
Eu ainda não estou cega!!!
Que vais fazer, minha filha! Carlota! Carlota!
MENDIGO
Que poderá ir fazer Carlota, com a inexperiência dos seus 15 anitos? …
CARLOTA
Vou malhar no ferro enquanto ele ainda está quente
A minha querida mãe não está cega, mas pouco falta! … e eu juro-lhe, por alma do
meu querido paizinho … o pão não há-de faltar nesta casa!
Vou ser a mãe do menino Augusto … e vou passar a engomar as camisas do pai!!!
Juro-lhe que o pão não há-de faltar nesta casa, não seja eu Carlota, a filha da
engomadeira.
15
MENDIGO
E a seguir a este monólogo, ainda acrescentou:
“Se Deus quer que seja este o meu fado … pois que seja!”
Bem pensado, todos temos nosso fado
E quem nasce mal fadado
Melhor fado não terá
Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge, por mais forte
Ao destino que deus dá
MENDIGO
E foi assim mesmo que tudo se passou! E que Deus castigue aquele que não
acreditar nas minhas palavras!
Em cima da cena que acabaram de ver já passaram cinco anos …
Carlota teve a sorte de logo agradar ao menino Augusto e a desgraça de também
agradar ao pai … que ela não queria … o coração dizia-lhe que não, mas a razão
soava-lhe lá dentro, cada vez mais forte …
Bem pensado, todos temos nosso fado
E quem nasce mal fadado
Melhor fado não terá
Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge, por mais forte
Ao destino que deus dá
NA TAVERNA
TONINHO
Cada um tem o seu fado …
GREGÓRIO
Pois! …
TABERNEIRA
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Estava a ver que não chegavas ao fim Gimbrinhas!
Que isto da gente não poder falar enquanto vocês cantam, não é nada bom p‟ró
negócio!!!
GREGÓRIO
… mas olha que nem todos têm o fado que merecem! …
TABERNEIRA
Vá lá! Toca a encher os copos ou então vai já tudo p‟ró olho da rua, que isto aqui
não é para alapar o cu sem fazer despesa! Isso é que era bom! …
TONINHO
Fado é sorte! …
TABERNEIRA
Pois! E a sorte de cada um está na letra dum fado, não é Gimbrinhas?!
GIMBRINHAS
E há fados para toda a espécie de má sorte! …
GREGÓRIO
Pois olha que até parecia não haver letra de fado que encaixasse na vida do meu
amo! …
ZÉZINHO
Ao sr. Inácio Botelho nunca faltou dinheiro! …
GIMBRINHAS
E que eu saiba continua a não faltar, senhor Gregório!
TABERNEIRA
O sr. Inácio é uma boa alma! Havia de haver mais como ele!
ZÉZINHO
Lá isso! E amigo de fazer bem! …
GREGÓRIO
Um exemplo para o filhinho, o menino Augusto …
TABERNEIRA
Pois! … Um bom pai! … Que idade é que já tem o miúdo?
GREGÓRIO
Nove, vai p‟ra dez anitos …
É como te digo Gimbrinhas! Se não fosse a peste … até parecia que não havia letra
de fado que encaixasse na vida do meu amo …
TONINHO
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E a guerra!!! A guerra, aí pelas ruas, que a gente nem sabe por onde é que há-de ir
p‟ra chegar vivo a casa! …
GIMBRINHAS
A guerra e a peste! …
TABERNEIRA
Que peçonha!
GREGÓRIO
A peste apanhou o meu amo desprevenido …
TABERNEIRA
Pois! … Há toque a finados a toda a hora! …
GREGÓRIO
Olha!!! … lá vai mais um! ….
Maldito troar dos canhões
E o dobre a finados
Na rua que se vê?! Caixões
Também homens fardados
Maldita seja esta guerra
Alastra em todo o lado
E que trás ela à nossa terra?!
Letra p‟ra mais um fado!
E que fizemos nós de errado p‟ra tanto tormento?!
Meu Deus, p‟ra quê mais este fado!
Assim, eu não me aguento!
Que mal Vos fez o meu patrão
P‟ra estar todo acamado!
Lá se me vai o ganha pão
Está aqui, está enterrado!
São os primeiros a partir
Os bons vão sempre à frente!
E nós ficamos a carpir
Com “ais” e água ardente!
Com a bebida a gente esquece a dor e o passado
O homem bebe e embrutece!
E que pariu o fado!
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Pois assim mesmo é que é falar
Vá lá! Mais um copinho!
Eu já „stou quase a vomitar!
Já não aguenta o vinho!
Se mais ninguém quer emborcar
Só tu me pões em brasa!
Tira as mãozinhas! Vou fechar!
Andor p‟ra vossa casa!!!
Com a bebida a gente esquece a dor e o passado
O homem bebe e embrutece!
E que pariu o fado!
CASA DE INÁCIO BOTELHO
MENDIGO
A guerra e a peste, devastavam Lisboa.
O troar da artilharia e o dobre a finados, estridor medonho com que falava o rancor
humano, casavam-se em lúgubre toada.
Inácio Botelho agonizava nas derradeiras ânsias da cólera.
INÁCIO
Carlota! … Carlota! ….
CARLOTA
Credo! Que embaciou o espelho todo! … Graças a Deus! … é bom sinal …
INÁCIO
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Au ….
CARLOTA
O quê?!
INÁCIO
Augusto … …
CARLOTA
… o menino Augusto está no quarto … já está a dormir … e o sr. Doutor Januário
há-de estar a chegar …
INÁCIO
Carlota … Carlota …
CARLOTA
… agora não senhor Inácio … por amor de Deus … agora não … olhe qu‟inda se
lhe apaga o bafo … bateram à porta … deve ser o Dr. Januário … sossegue um
bocadinho …
A CAMINHO DE CASA
TABERNEIRA
Vá lá! Que eu tenho mais que fazer! Ajuda aí! …
GREGÓRIO
Parece que vou vomitar!
TABERNEIRA
Outra vez?!
FANHOSO
Já Vomitou três vezes!!!
GREGÓRIO
Não! Parece que não! … E em continuação do que eu lhe estava a dizer … eu não
achei aquilo nada bem!…
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TABERNEIRA
Pois!
FANHOSO
O sr. Gregório não achou bem o quê?!
GREGÓRIO
O quê?!
TABERNEIRA
Ele está a perguntar o que é que não achou bem!
GREGÓRIO
Então …entra uma galdéria em casa de gente honrada e temente a Deus … e ter de
lhe chamar “Dona” … Dona Carlota!
… quando não passa duma espertalhona … ela e a mãe! …
TABERNEIRA
Pois! Já conheço a história! A engomadeira!
GREGÓRIO
Essa já Deus castigou, que está quase cega!…
TABERNEIRA
Ai está?! … Isso é que eu ainda não sabia! ….
FANHOSO
A engomadeira está ceguinha, há que tempos!!!
GREGÓRIO
Porque é que eu nunca percebo o que ele diz?!
TABERNEIRA
A mãe era alcoólica e ele nasceu sem céu da boca!
GREGÓRIO
Ah! … olhe! Não se esforce a falar porque não se percebe nada do que você diz! …
Você não tem céu na boca! …
Você tem boca, tem dentes e tem língua … mas não tem céu!
E então o meu amo teve pena da ceguinha e deu emprego à filha …
Mas gente dessa laia não perde tempo! …
Por compaixão o meu amo abriu-lhe as portas … e logo ela lhe abriu as pernas!
TABERNEIRA
E ele não queria, é claro! …
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GREGÓRIO
Pois não! …. Ele não queria, mas essa Carlota soube levá-lo à certa, instruída pela
mãe, de certeza! …
TABERNEIRA
Pois! … de certeza! … A mãe devia ter cá uma instrução! …
FANHOSO
A mãe está ceguinha, há que tempos!
TABERNEIRA
Está bem! Ele já sabe! … Olha a minha vida! …
GREGÓRIO
E a minha! Que eu assim que vi entrar a filha da engomadeira, estava o caixão da
Balbina a sair, eu disse logo cá comigo … “esta mulher está aqui p‟ra endrominar o
meu amo! … “ … e meu dito, meu feito, eu até parecia que já estava a adivinhar …
Primeiro ela … e agora a cólera! …. O pobre do meu amo às portas da morte … e a
puta com uma saúde de ferro! ….
CASA DE INÁCIO
JANUÁRIO
Dona Carlota … dona Carlota!
CARLOTA
Como é que ele está?
JANUÁRIO
Demorou o seu tempo a assinar o papel …
CARLOTA
Qual papel?! …
JANUÁRIO
O testamento … mas agora já está tudo em ordem … e ele sempre ficou mais
descansado …
CARLOTA
É ele que está a assobiar?! …
JANUÁRIO
Não, não! É o meu assistente … para ver se ele adormece mais depressa … isto
deixou-o um bocado excitado …
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CARLOTA
Já há pouco, quando lhe fui dar os medicamentos ele me pareceu …
JANUÁRIO
Pareceu-lhe? …
CARLOTA
Um bocado excitado … com certeza por estar à espera que o doutor chegasse!
ANÃO
Deve estar a chegar!
CARLOTA
Quem?!
ANÃO
A morte! …
JANUÁRIO
Ele não adormeceu?!
ANÃO
Sim, mas antes … esteve a falar com ela!
CARLOTA
Com quem?!
ANÃO
Com a morte!
E depois com ele … com o filho.
CARLOTA
Mas o menino Augusto está a dormir!
ANÃO
Falou comigo, mas a pensar que estava a falar com ele … chamou-me Augusto
JANUÁRIO
Deve tê-lo confundido com a criança …
ANÃO
E deu-me um bilhete, para quando ela chegasse entregar à Dona Carlota.
CARLOTA
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Quando ela chegasse … quem?!
ANÃO
A morte!
JANUÁRIO
Tem aí o bilhete?!
ANÃO
Não era para mim! Fui pô-lo no quarto do menino Augusto; na mesinha de
cabeceira. Ele depois há-de dar-lho … é por causa duns dinheiros …
JANUÁRIO
Podia dar-lho já!
ANÃO
O velho recomendou bem que era só para ser entregue depois dela chegar …
CARLOTA
A morte! …
ANÃO
Ah! E antes de adormecer ainda falou consigo!
JANUÁRIO
Comigo?!
ANÃO
Comigo, mas a pensar que estava a falar consigo!
Pediu para chamar um padre!
E depois … pediu-me um beijo!
JANUÁRIO
E pensava que estava a falar comigo?! …
ANÃO
Não! Nessa altura já não!
JANUÁRIO
Deve tê-lo confundido com alguma rameira!
ANÃO
Talvez seja melhor irmos chamar um padre! … Ele quer confessar-se …
MENDIGO
E o doutor Januário e o assistente - o anão dos assobios, como era conhecido –
24
partiram, na esperança de poderem regressar com um padre … ainda antes dela …
CARLOTA, ASSISTENTE, JANUÁRIO
Da morte! (a seco)
(Ouve-se um tiro e o MENDIGO é atingido)
MENDIGO
Maldita guerra! … Já nem os artistas escapam! …
E que fizemos nós de errado p‟ra tanto tormento?!
Meu Deus, p‟ra quê mais este fado!
Assim, eu não me aguento!
CARLOTA
Já podes sair.
MANUEL
O velho já morreu? …
CARLOTA
Ainda não … o dr. Januário e o Anão foram à procura dum padre … o sr. Inácio
quer confessar-se, antes dela chegar …
MANUEL
Está à espera de mais alguém?!!!
CARLOTA
Está à espera da morte, Manuel!
MANUEL
Estes ricaços são todos iguais: passam a vida a encher o bandulho e a lixar o
próximo; olham p‟rá gente todos empertigados, como se tivessem o rei na
barriga; põem-se nas criadas, e elas ... bico calado ou lá se vai o emprego;
são mais miseráveis que aqueles desgraçados que têm de roubar p‟ra comer,
ou daquelas que para aguentar a vida têm de aguentar com eles! ....
E depois querem um padre! ...
CARLOTA
Não fales assim, Manuel!
MANUEL
… E sabes porquê?! ... porque sabem muito bem
o que fizeram ... e têm medo!!! Têm medo de não ir d‟esta p‟ra melhor!!!
E gajos deste calibre são tão gananciosos que nunca se contentam com
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a riqueza que tiveram em vida, percebes?! ... Eles mesmo depois de mortos
estão-se nas tintas para quem fica ... e só querem é uma coisa: ir para melhor!
Ele agora quer um padre porque tem medo de não ir d‟esta p‟ra melhor!!!
CARLOTA
Cala-te! … Deus ainda nos castiga!
MANUEL
Mais?! Mais ainda? Então e o velho, não merece castigo, é?! ...
Vieste para aqui para tomar conta do filho que ele fez à outra amante e como
é que ele te pagou?!
CARLOTA
Sempre foi meu amigo ... sempre me deu bons tratos ...
MANUEL
Pois! E quando se meteu na cama contigo, também te tratou bem? ... gostavas
do que ele te fazia? ...
CARLOTA
Não! ... sabes bem que não! ...
MANUEL
Então porque é que vens agora com essa história dele te tratar bem?!
CARLOTA
Não era tratada como os outros criados ... até mandou que toda a gente me
chamasse dona ... dona Carlota ...
MANUEL
Olha o esperto! Andou a comer-te de borla durante cinco anos e em troca deu-te um
título!!! Tens ali um grande amigo, não há dúvida!
Julgas que é com o título de dona que vais fazer face à vida quando o
velho bater as botas?!
CARLOTA
Tu hás-de arranjar um emprego Manuel, vais ver!
Deus há-de ajudar-nos! … Foi ele que fez com que nos conhecêssemos, foi ele que
te mandou para os meus dias serem menos cinzentos e as noites menos negras …
Deus é testemunha de que te amo mais que a tudo na vida … se não fosses tu … eu
não sei se teria aguentado tanto tempo …
Havemos de ser felizes, Manuel! Ainda havemos de ser muito felizes!
….
MANUEL
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Mas mesmo que eu arranje trabalho ... daqui até lá, como é que a gente vive?!
O velho está por um fio ... aqui em casa já não há mais nada que se possa
gamar ... e tu, com o que é que ficas? … podes ter a certeza que não se
lembrou de ti no testamento!
CARLOTA
Manuel! Acabei de saber que ele deixou um bilhete ao filho ...
MANUEL
Um bilhete?! ...
CARLOTA
Parece que escreveu ... não sei bem o quê ... para me ser entregue … está no quarto
do menino.
MANUEL
Vai buscá-lo, depressa! Pode ser o testamento!
CARLOTA
Não! Quem tem o testamento é o doutor Januário; mas parece que o bilhete é por
causa doutros dinheiros …
MANUEL
O velho é bem capaz de ter mais graveto escondido, aqui em casa!
(Carlota vai ao quarto onde dorme Augusto, encontra o bilhete e entrega-o
a Manuel, que o lê).
CARLOTA
Então ... o que é que diz?! ...
MANUEL
Tinhas razão, Carlota! Deus está do nosso lado! Vamos ficar ricos, Carlota, muito
ricos! ...
CARLOTA
Então, ele não se esqueceu de mim! ... Eu não te dizia? ... Ele sempre me tratou
bem, sempre me considerou ...
MANUEL
Nem fala em ti, Carlota! ...
CARLOTA
Mas então?! ....
MANUEL
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Ouve ... “ ... escrevo este bilhete para dar conhecimento duma quantia em dinheiro
que tenho aqui em casa e que me esqueci de mencionar no testamento. Guardei-o
no baú de latão” … onde está um baú de latão?! …
CARLOTA
Deve ser aquele ali …
(Ele vai buscar o baú e Carlota continua a ler o bilhete)
“Nesse baú estão 300 peças de 7.500 reis e 200 moedas de prata em cruzados
Novos, para serem entregues à minha irmã D. Leonor Botelho, que reside
em Montalegre ... e tu, Carlota, és a pessoa indicada para lho fazeres chegar às
mãos.”
MANUEL
Somos ricos, Carlota, somos ricos!!!
E em tendo sorte ao jogo … em menos dum ano teremos o dobro!
CARLOTA
Mas … mas este dinheiro não nos pertence!
Eu trabalharei para te sustentar, Manuel! E não me dês nada! Não me dês nada que
para mim eu arranjarei! Torno para o ofício de engomadeira … e olha, quem sabe se
ele me deixa alguma coisa no testamento?!|
MANUEL
Que te há-de ele deixar?! Alguma dúzia de moedas para comprares um capote!
Ainda és de bom tempo!
(GREGÓRIO presenciou parte desta cena. Pega num objecto para bater com ele em
Manuel. Dá-se o confronto. MANUEL pega num garfo e dá garfadas no desgraçado,
que acaba por tombar)
CARLOTA
Pára! Pára, Manuel! Já chega!!! Pára!!!
Que fizeste?! … Que fizeste, Manuel?! …
CARLOTA
Que fizeste, Manuel?! … Que fizeste?!…
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MANUEL
Foi sem querer, Carlota! Eu não queria … mas o cabrão do velho assustou-me …
CARLOTA
E mataste-o! .. Mataste-o Manuel! …
MANUEL
Viu-nos com o dinheiro … havia de acusar-nos à polícia …
CARLOTA
Se lhe déssemos algum ele talvez se calasse …
MANUEL
Achas que sim?! …
CARLOTA
Não sei! … mas agora está morto! …
MANUEL
Já era velho …
CARLOTA
… mas ainda vendia saúde … e agora … quando descobrirem o corpo do homem, todo
crivado de garfadas … vão querer saber quem lhe fez aquilo …
MANUEL
Mas também são muito capazes de pensar que foi ele que se matou …
CARLOTA
Isso que estás a dizer não me tinha ocorrido! … mas pode ser! … Todos sabem que para
o Gregório, o sr. Inácio era como se fosse um filho e podem muito bem pensar que ele
…
MANUEL
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Não aguentou com o desgosto do amo estar às portas da morte … e resolveu ir primeiro
…
CARLOTA
… pediu perdão a Deus … pegou num garfo e zás, zás, zás …
GREGÓRIO
Bem pensado … (arrastam o corpo de Gregório para a rua)
Bem pensado … todos temos nosso fado …
E quem nasce mal fadado … melhor fado não terá
Fado é sorte … e do berço até à morte …
Ninguém foge por mais forte … ao destino que Deus dá.
CARLOTA
Mas ninguém foge ao seu destino, Manuel! Por culpa minha mataste um desgraçado
que ainda havia de viver, sabe Deus até quando! … Ninguém foge ao seu destino!
Entreguemo-nos nas mãos de Deus, antes que descubram o nosso crime e o nosso
pecado! Deus perdoou a tanta gente! Há-de perdoar-nos a nós também, Manuel!
MANUEL
Entregarmo-nos nas mãos de Deus? …
CARLOTA
Sim, Manuel! Peço-te!!! Eu não ia aguentar com os remorsos … e tu também não, que
eu sei que só o mataste porque o garfo estava ali … e o demónio algures, para te atentar
… entreguemo-nos nas mãos de Deus! …
MANUEL
Estás arrependida por teres gostado de mim … é isso?
CARLOTA
Não, Manuel! Eu continuo amar-te e cada vez mais e mais, mas a culpa do que se
passou foi só minha, não te devia ter falado no bilhete nem no baú … eu havia de saber
que se visses tanto dinheiro …
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MANUEL
Sempre fomos uns miseráveis, Carlota … e sabes porquê?! Porque há outros, ainda
mais miseráveis que nós, que fazem sempre as contas à maneira deles, e à maneira deles
gente como nós nunca tem direito a nada! … Mas “cá se fazem, cá se pagam!” … e
agora … podemos refazer a nossa vida … não era isso que estavas sempre a dizer? …
CARLOTA
Mas esse dinheiro não nos pertence …
MANUEL
Não acreditas no destino?
CARLOTA
Acredito … que ainda podemos ser felizes …
MANUEL
Então, pensa que se o graveto está aqui é porque o destino assim o quiz! Para podermos
ser felizes! … Não tens que ter remorsos …
CARLOTA
… mas por causa dele morreu um homem; somos uns criminosos, Manuel!
MANUEL
Pois bem; … serei homicida, já que não posso deixar de o ser … mas não te esqueças
que foi para realizar a tua felicidade que eu me fiz assassino … que eu tingi as minhas
mãos de sangue …
CARLOTA
Perdoa-me, desculpa o meu remorso, que eu sou fraca, e receio que Deus mude em
Inferno a felicidade que esperas … e eu já não posso esperar …
MANUEL
Então deixa-me; deixa-me para sempre! … Eu rejeito esse dinheiro … não hás-de ir
presa! … eu direi que não te conheço, que entrei nesta casa p’ra roubar e por isso matei
o velho … não quero consolar-me de ter matado um homem, com a posse do teu amor
… se é assim que tu queres, assim será. Adeus Carlota.
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CARLOTA
Não, Manuel! Não me deixes, que me matas, e a consciência não se sossega com a
morte.
Liga-me ao teu destino; aceito-o, seja ele qual for.
Eu já sei que de hoje em diante sou entre as mulheres perdidas a mais desgraçada de
todas.
MANUEL
Com este dinheiro … podemos fugir para Espanha …
CARLOTA
Como tu quiseres … desde que não me deixes … preciso de ti para me defenderes deste
remorso …
MENDIGO
Por certo que devem ter estranhado que ao longo da cena violenta a que acabaram de
assistir, nem o menino Augusto nem o pai tivessem acordado …
Há uma explicação: de há uns tempos para cá que o menino Augusto sofria com
terríveis pesadelos, e então, antes de se deitar bebia sempre um copinho de leite bem
quente … ao qual Carlota tinha o cuidado de acrescentar um forte calmante, para a
criança ter um sono descansado …
Quanto ao senhor Inácio Botelho … que cada um tire as suas conclusões …
CARLOTA
Agora tens de te ir embora, Manuel; ninguém te pode ver aqui e o Dr. Januário há-de
estar quase a chegar com o Padre e o Anão dos Assobios …
MENDIGO
Ouvem-se passos a correr que se aproximam da casa!
Há cães que ladram!
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Carlota mal consegue balbuciar:
CARLOTA e MENDIGOS
Meu dito, meu feito! Devem ser eles! Esconde-te, depressa!!!
MENDIGO
Manuel tem esperança que não sejam eles!
MANUEL
Pode ser uma caravana!
MENDIGO
Se fosse uma caravana, o malandro fiava-se no ditado que diz:
MANUEL e MENDIGOS
Os cães ladram e a caravana passa.
CARLOTA
Os cães pararam de ladrar!
MENDIGOS
Mas não era uma caravana!
CARLOTA
Eu bem me parecia! … é o senhor doutor Januário! … esconde-te, depressa!
CARLOTA (Pª.Januário, que entrou)
… e o Padre? …
JANUÁRIO
Eu vim à frente … para preparar a D. Carlota para o que vem aí atrás! …
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CARLOTA
Vem aí alguém … atrás de alguém?! ….
JANUÁRIO
Quero dizer, eu entrei primeiro … para não ser um choque muito grande quando
perceber quem vai entrar a seguir …
CARLOTA
A seguir?! …
JANUÁRIO
Não conseguimos encontrar um padre! …
CARLOTA
Mas havia tantos padres em Lisboa! …
JANUÁRIO
E há! Mas estão todos ocupados! Com a maldita peste … os que não fugiram e os que
ainda não morreram, estão ocupadíssimos com as cerimónias fúnebres … ela está em
todo o lado … a morte …
CARLOTA
Mas o senhor Inácio Botelho mostrou tanta vontade de não morrer sem se confessar …
JANUÁRIO
E havemos de satisfazer a sua última vontade …
CARLOTA
Como?! Se não encontraram um padre …
JANUÁRIO
Nesta altura, o mais importante é que ele parta em paz … ora, ele já não diz coisa com
coisa … ele pensa que fala com a própria morte, ele confunde o anão com o filho …
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Fàcilmente pensará que está a falar com um padre … se lhe pusermos à frente uma
sotaina preta … ele estará acordado? …
CARLOTA
Não sei … talvez …
JANUÁRIO
Vou falar alto, para criar melhor a ilusão de que ele vem aí … Pode entrar senhor
padre! …
ANÃO (vestido de Padre)
Que a paz esteja convosco e comigo também! …
CARLOTA
Deus todo misericordioso! Afinal, sempre conseguiu encontrar um padre!
JANUÁRIO
Eu não lhe dizia que a ilusão havia de ser perfeita?!
Dona Carlota: Foi o hábito que fez o monge!
CARLOTA
Ah! É então um monge?
JANUÁRIO
Nem monge, nem padre!
Repare: É o anão dos assobios … e se a D. Carlota o confundiu com um padre, de
certeza que com ele, este nosso plano também vai resultar!
MENDIGO
E mal o Anão dos Assobios e o Doutor Januário se dirigiram para o quarto do
moribundo, Manuel escapulia-se do esconderijo e levava com ele o dinheiro roubado.
Começou então a ouvir-se o anão a assobiar, uma tentativa para acordar o moribundo.
De repente, o assobio deu lugar ao silêncio!
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ANÃO
Dona Carlota: Estou desfeito! Acabei de perder a grande oportunidade de representar o
papel de padre … padre e anão! Podia ter sido o papel da minha vida!
CARLOTA
Mas, o que é que aconteceu?!
ANÃO
… há pouco, consegui adormecê-lo tão bem… mas agora, por mais alto que assobie …
eu não consigo acordá-lo! …
JANUÁRIO
Talvez seja melhor … lermos o testamento.
ANÃO
Eu queria proporcionar-lhe um final de acto feliz … mas ela chegou primeiro … e
quando o pano caiu … eu não estava lá! … e foi a morte que recebeu os aplausos do
público!!!
E a Morte atravessa o palco, levando consigo o corpo inerte de Inácio Botelho.
E caiem pétalas pretas, ou rôxas … que se espalham por toda a cena.
Depois deste “final de quadro” Carlota lê o testamento …
CARLOTA
Eu não posso acreditar … eu não quero acreditar …
INÁCIO
E deixo à minha criada Carlota dos Reis a quantia de dez mil cruzados …
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CARLOTA
Dez mil cruzados! …
INÁCIO
… pela boa companhia que me fez no espaço de cinco anos …
CARLOTA
Dez mil cruzados …
INÁCIO
E porque além disso, lhe devo reparar de algum modo os danos que causei à sua
honestidade …
CARLOTA
Pai do céu! … Valei-me! Valei-me senhor! ….
INÁCIO
… gostava que o meu filho continuasse na companhia da dita Carlota dos Reis ….
Porque sei que ela continuará a ser, como sempre foi … uma segunda mãe para o
Augusto …
CARLOTA
… a gente devia ler os testamentos antes das pessoas partirem … porque o coração
dizia-me que sim … perdoai-me senhor! … perdoai-me por ter duvidado! … E valei-me!
Valei-me nesta agonia! …
- Como é que podes pensar que Ele te vai valer se acabaste de ser cúmplice dum
crime … e dum roubo?! …
Eu confesso! Eu vou confessar tudo!!!
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- E achas que isso vai ser o suficiente para que Ele, na sua infinita misericórdia
te perdoe?! …
Eu não quero nada do roubo nem da herança! Quero morrer penitente e contrita!|
Hei-de pedir que me deixem ser a mãe do menino Augusto nos poucos dias que me
restam de vida!
Oh meu Deus! O que eu estou sofrendo é maior castigo que o meu crime!
Morro! Morro se a graça de Deus me não acode!!! (E desmaia).
MENDIGO
Carlota dos Reis foi levada para o hospital e Inácio Botelho foi a enterrar no dia
seguinte.
(Os Mendigos vão limpar o “palco” …)
LEONOR
São os Almeidas aqui na zona?!
MENDIGOS
Não, não! … mas há pouco trabalho … e quando não temos carros para arrumar
fazemos aquilo que vai aparecendo para fazer …
LEONOR
E também dão informações … suponho!
MENDIGOS
É só perguntar …
LEONOR
Acabei de chegar a Lisboa! Sabem onde vive um tal
38
Inácio Botelho?!
MENDIGO
Dois dias mais cedo e ainda o encontrava com vida …
LEONOR
Isso, eu sei! Sou a irmã dele, Leonor Botelho, e não me dava ao trabalho de sair de
Montalegre se fosse apenas para falar com ele!
MENDIGO
Está no cemitério dos Prazeres …
LEONOR
Esteja onde estiver, que Deus o tenha em eterno descanso …
MENDIGO
Que Deus o tenha no céu e em eterno descanso!
LEONOR
E deve ter … porque não passava dum fraco! O meu irmão era um mulherengo e um
fraco! E sempre ouvi dizer que os fracos e os pobres de espírito têm sempre um cantinho
reservado no céu!
MENDIGO
Eu ainda cheguei a falar com o seu irmão! Um dia, ele até me disse que …
LEONOR
Não me interessa saber o que ele lhe disse! … Nunca disse nada que geito tivesse!
Sempre foi um fraco, um mulherengo e um tolo!!!
Sabem então onde ele morava?!
39
MENDIGO
Assim que a gente terminar isto …
LEONOR
Eu espero.
Só um tolo é que se deixava enrolar por mulheres que de seu nada tinham, a não ser a
esperteza suficiente para se aproveitarem da sua fraqueza!
Eu sempre o preveni mas ele nunca me deu ouvidos! Nunca! Saiu de Montalegre e veio
para Lisboa com uma putéfia que conheceu em Lamego só para não ter que me ouvir!!!
“A mana só por ser mulher, meteu-se-lhe na cabeça que as conhece a todas!”
Repetia esta frase vezes sem conta ao meu primeiro marido!
MENDIGO
É então … viúva?
LEONOR
Três vezes! Três casamentos, três funerais … e três idiotas que também devem ter o seu
cantinho no céu!
Ainda falta muito?!
MENDIGO
Não, está quase … está quase … é aqui!
LEONOR
Já não era sem tempo!
JANUÁRIO
V.Exa. é portanto a mana do falecido? O senhor Inácio Botelho era …
40
LEONOR
Eu sei o que ele era, não precisa de mo repetir!
Um fraco! Um mulherengo e um tolo!
Meteu-se-lhe na cabeça que era um bon-vivant, como dizem os franceses, e um homem
irresistível! Só podia ter acabado como acabou: com a peste!
Mas os homens são todos iguais e o meu irmão não fugia à regra! Nunca percebeu que
o que essas mantilhonas viam nele era o dinheiro!
ANÃO
Deseja tomar alguma coisa, enquanto espera?… um chá?!
LEONOR
O que eu espero é não ter de ficar muito tempo à espera!
Não vim a Lisboa para tomar chá … mas para resolver o que tem de ser resolvido …
por aqueles que cá ficam, com a árdua tarefa de arcar com a irresponsabilidade dos
que partem! Deixam as nódoas … e os familiares que as limpem!
JANUÁRIO
Ele deixou em testamento uns dinheiros para a educação da criança …
LEONOR
Levarei tudo o que me pertence por direito e por lei!
E por vontade de Deus, que eu amo e temo, levo também comigo esse filho de ninguém
… como é que ele se chama? …
ANÃO
Augusto …
JANUÁRIO
O menino Augusto é seu sobrinho …
LEONOR
Sim, mas não é por isso que deixa de ser filho duma rameira! …
41
ANÃO
A mãe do menino Augusto não era rameira!!!
LEONOR
Não minta! !!! Ou quer que Deus o castigue ainda mais do que já castigou?!!!
JANUÁRIO
Ele não está a mentir! A dona Balbina não era uma rameira!
LEONOR
Está aqui, está a dizer-me que ele também não é anão!!!
E a filha da engomadeira, também não era rameira, é claro!
ANÃO
A Dona Carlota estimava muito o senhor Inácio Botelho.
LEONOR
Se o estimava assim tanto, melhor fora que o tivesse acompanhado para debaixo da
terra!!!
JANUÁRIO
A verdade é que o sr. Inácio mostrou vontade que a dona Carlota continuasse a tratar
do menino Augusto …
LEONOR
Mostrou vontade? … mas então … é uma pena ele agora estar morto e não poder
confirmar essa sua pretenção … porque eu não vou consentir que um sobrinho meu
continue a ser educado por uma putéfia!
ANÃO
Um chàzinho de cidreira talvez não lhe fizesse mal …
LEONOR
42
Tragam-me o pequeno! … E acabou-se a conversa!!!
Já tive três maridos – e Deus mos levou!
E todos eles – me deixaram – as mãos a abanar!
Sou viúva sem vintém – Agora sei e Deus também!
Hei-de vencer!
Enriquecer! – E que doa a quem doer!!!
Que eu sou mulher!
E não desisto fàcilmente
Mesmo em frente da desgraça
Eu estou atenta e vou p’rá frente!
E sei que sou uma ameaça
Sou viúva sem vintém
Deus bem sabe e agora vocês também!
Hei-de vencer!
Neste momento – o pensamento
Todo ele está voltado
Para aquele testamento – que em breve será queimado!
Hei-de vencer!
Enriquecer! – E que doa a quem doer!
Que ela é mulher!
E não desiste fàcilmente
Mesmo em frente da desgraça
Eu estou atenta e vou p’rá frente!
Esta mulher é uma ameaça!
Sou viúva sem vintém!
Deus bem sabe e agora vocês também!
43
Agora o testamento – já desapareceu!
E o maninho! – Pobrezinho! – Esse está no céu!
Carlota enlouqueceu! – O dinheiro vai ser meu!
E vai vencer! Enriquecer! E que doa a quem doer!
Que eu sou mulher!
Mas o menino, o meu sobrinho
Um ano ou dois vai estudar …
Só que depois o “coitadinho” – Eu hei-de pô-lo a trabalhar!
Vá com Deus que eu também vou!
Que vá comer o pão que o diabo amassou!
E Vai vencer!
Só porque Deus assim o quer
E no livro do destino – Ele escreveu que esta mulher
Escreveu que esta mulher
Há-de vencer!
Enriquecer! – E que doa a quem doer! ….
MENDIGO
E o menino Augusto Botelho foi levado para Montalegre … sem lhe ter sido pedida a
sua opinião sobre o assunto …
CASA CAROLINA DOS REIS e HOSPITAL
44
CAROLINA
És tu, filha? … És tu, Carlota?! …
HOMEM
D. Carolina?
CAROLINA
Sim … quem é o senhor?! … não lhe reconheço a voz …
HOMEM
Não me conhece … trabalho no hospital … foi lá que conheci a sua filha …
CAROLINA
A minha Carlota?! …
HOMEM
Sim.
CAROLINA
Está então no hospital? … Ainda bem … Ela engoma muito bem … aprendeu comigo …
eu também era muito boa engomadeira, antes de ficar cega … mas trabalhei sempre
para o mesmo patrão … eram outros tempos … havia pouca procura … fico contente
por saber que a minha Carlota agora também engoma no hospital …
HOMEM
A sua filha Carlota ….
CAROLINA
É ela que me tem valido, é muito boa filha … não me falta com nada …
HOMEM
Ela não está no hospital como engomadeira! …
CAROLINA
45
Desde que o meu marido partiu para o Brasil … que só a tenho a ela …
HOMEM
A Carlota foi levada para o hospital há dois dias …
CAROLINA
E se ela um dia me falta …
HOMEM
… não sabe quem é … repete frases que não fazem sentido …
CAROLINA
Desde esse dia … que só peço a Deus que ela nunca me falte ….
HOMEM
D.Carolina, a sua filha teve de dar entrada na enfermaria dos doidos …
CAROLINA
Não quero saber mais nada … não diga mais nada … peço-lhe …
CARLOTA
Não me deixes … não me deixes, que me matas … e a consciência não se sossega com a
morte.
Liga-me ao teu destino; aceito-o, seja ele qual for …
Eu já sei que de hoje em diante sou entre as mulheres perdidas a mais desgraçada de
todas.
ENFERMEIRA
46
Consta que estava amantizada com o patrão há já cinco anos … e ao saber que ele tinha
morrido ficou assim! … Devia gostar muito dele …
HOMEM
D. Carolina … ainda há uma esperança …
CAROLINA
Só Deus é que sabe …
Sabe-se lá, quando a sorte é boa ou má,
Sabe-se lá, amanhã o que virá
Breve desfaz-se, uma vida honrada e boa
Ninguém sabe quando nasce
P‟ró que nasce uma pessoa.
SEGUNDA PARTE – Dez Anos Depois …
NO LARGO DAS ATAFONAS
MENDIGO
Passaram dez anos …
Lisboa continua na mesma … é uma cidade suja, desordenada, mal cheirosa … encanta
os estrangeiros pela sua beleza e pitoresco mas também os decepciona pelo aspecto
caótico das ruas e o atraso em que vive a população.
As ruas estão entregues ao povo …
É de noite.
Um Chulo lê o Diário de Notícias, encostado a um candeeiro … uma prostituta despacha
um cliente, enquanto uma outra observa a cena …
ANITA
Vá lá! … despacha-te que eu não tenho a noite toda! …
47
Uma outra aproxima-se do Chulo e dá-lhe dinheiro.
CHULO
Ó Betinha!
BETINHA
Que é que foi?! Não está certo, ou aumentaste a “percentage”?!
CHULO
Não é isso! Tu ainda te lembras do criminoso do garfo?
BETINHA
O gajo que deu 17 garfadas no Gregório Redondela?! Atão não me lembro!
CHULO
Vem aqui no jornal!
BETINHA
Mas isso já foi há dez anos, ou mais!!!
CHULO
Vem nas “infemérides”; “Lisboa … há uma década atrás: Acontecimentos de relevo: A
cólera, a Guerra Civil e o Mistério do Criminoso das Garfadas”.
BETINHA
Deixa ver … e até trás um desenho do Gregório com o garfo espetado nas costas! Ó
Anita, tu já viste isto?!
ANITA
Eu agora não posso! … Vá lá despacha-te!
BETINHA
48
… ela é que inda conheceu muito bem o Gregório … e a irmã …
FININHA
Ela agora não pode vir! Está a tentar despachar o guarda nocturno … quem é que vem
aí?!
BETINHA
Tu não te deves lembrar qu’inda eras um chiço! Foi o crime das garfadas!!!
FININHA
Atão não me lembro! A minha mãe não falava doutra coisa! Nem saía à rua com medo
de ser apanhada pelo tarado do garfo!!!
CHULO
Se não consegues, pira-te e já, t’ás a ouvir?!
GUARDA-NOCTURNO
Éstá quase … está quase …
ANITA
Há uma hora que está quase!!! …
CHULO
Já pagou?! …
ANITA
Já! …
CHULO
É pá! Pira-te e já! Andor! …
CALMEIRONA
A quem é que vocês estão a tentar convencer que sabem ler?! …
49
BETINHA
Só cá faltava a calmeirona! A tua zona não é no Terreiro do Paço?!!!
CALMEIRONA
Pois é! Gosto de espaço e de ter o Tejo aos meus pés … porquê?! …
FININHA
Não me digas que também gostas de despachar dentro d’água?!
CALMEIRONA
E se gostar, qual é o problema, ó Fininha?!
FININHA
Nenhum, filha! … E até ganhas tempo!!!
BETINHA
É! … Fica logo lavadinha p’ra atender o senhor que se segue! …
FININHA
Ou a senhora! … O que consta p’raí é que não é esquisita!!!
CALMEIRONA
Isso é mesmo paleio de quem está com dor de cotovelo! …
CHULO
Que é que estás aqui a fazer?
CALMEIRONA
Vim trazer-te o “cachet”! … Não estás sempre a dizer p’ra não andarmos com muito
dinheiro … que podemos ser assaltadas!!! …
50
ANITA
Ou mortas! …
BETINHA
Já lão vão 10 anos, mas ninguém nos diz que ele não volta a aparecer por aí!!!
ANITA
Quem?!
BETINHA
O que espetou 17 garfadas no Gregório! Tu conheceste-o!
FININHA
Um tarado!
BETINHA
Desconfiaram dum tipo que andava metido com a Carlota …
FININHA
Aquela doida, que às vezes aparece por aqui?!
ANITA
Ela já num está doida!
BETINHA
… mas as autoridades nunca o encontraram!
CHULO
Está visto que se pirou p’ró estrangeiro! …
BETINHA
Talvez … mas logo a seguir ouve mais dois casos de garfadas!!!
51
ANITA
Isso foi a Tininha Côxa e aquela galega que vendia rufadas!
FININHA
Da galega lembro-me eu! Mas quem lhe espetou um garfo na testa foi um tipo que não
lhe quiz pagar as rufadas …mas foi preso!!!
BETINHA
Ele disse que não foi ele e cá p’ra mim pode muito bem ter sido o outro!!!
CALMEIRONA
E a Tininha Côxa toda a gente sabe que quem lhe espetou c’um garfo nas mamas foi o
chulo …
BETINHA
Ele também negou! …
CHULO
E achas que o gajo era burro p’ra confessar!?
E desatam a falar …
Calou! … e vamos mas é ao trabalhinho, está bem?!
CALMEIRONA
Olhem! Aí vem a alma penada! …
BETINHA
Cheira-me que que quer entrar p’ró ramo! …
ANITA
Está um farrapo … coitada ….
52
FININHA
Era mesmo o que fazia aqui falta … p’ra afastar a clientela!!!
CALMEIRONA
Fazia falta, o quê?! P’ra eles darem de frosques já cá estás tu! …
FININHA
Eu vou-lhe às trombas! …
CALMEIRONA
Tenta! … e levas um murro nessa cabeça que ficas anã!!!
CHULO
Isto não é lugar p’ra ti …
CARLOTA
… Não tenho p’ra onde ir …
ANITA
Não vivias no Beco das Gralhas, com a tua mãe? …
CARLOTA
… A minha mãe estava cega … já morreu … enquanto foi viva … andavamos por aí … a
pedir esmola …
BETINHA
O povo sempre teve muita pena dos ceguinhos …
ANITA
E então quando são ceguinhos e velhos … chega a dar mais do que esta vida …
CARLOTA
53
Ainda não era muito velha … mas estava acabada …
FININHA
Mas se era ceguinha … deviam fazer uma boa semanada?! …
CALMEIRONA
Melhor que a tua era de certeza! …
CARLOTA
Ia dando p’rá renda da casa … mas morreu vai p’ra seis meses … continuei a pedir …
mas agora … até os cães fogem de mim … não faço pena a ninguém …
ANITA
A gente tem pena de ti … mas nesta vida também não se ganha tanto como as pessoas
pensam …
FININHA
Só algumas! …
BETINHA
Também gostava de te ajudar, mas só na percentage vai metade do que a gente faz …
CALMEIRONA
Toma …
CARLOTA
Que o Senhor te favoreça …
FININHA
Se eu fosse a ti, arranjava uma criança de colo e fazia de conta que era cega!
54
ANITA
Se ela se arranjasse melhor … podias tomar conta dela …
CHULO
Não sei se vale a pena …
BETINHA
Este mundo é uma miséria … ninguém quer saber de ninguém … e p’rá gente não
morrer de fome … somos condenadas a morrer de vergonha …
CALMEIRONA
Eu não tenho vergonha.
ANITA
Não temos que ter vergonha.
AUGUSTO
Boa noite …
ELAS
Boa noite! …
AUGUSTO
A senhora é capaz de me dizer …
BETINHA
Senhora!!!
55
FININHA
Ai mulher, que foste promovida!!!
ANITA
Não lhes ligues filho! … Qual é a graça?! Vá lá! Qual é a graça?!!!! …
CALMEIRONA
Não queres vir até ao Terreiro do Paço? …
ANITA
E tu, não te chega a tua zona?! Andor! …
CALMEIRONA
Não te zangues! … Só estava a fazer conversa! …
ANITA
E não era comigo que ele estava a conversar? Não era?!!!
CALMEIRONA
Vocês são mesmo pobrezinhas!!!
Queres fazer-me companhia até ao rio? …
CARLOTA
Eu?! …
CALMEIRONA
Podes aproveitar p’ra tomar um banho! Cheiras mal que tresanda! …
Podes comê-lo à vontade que eu já estou de barriguinha cheia!!!
BETINHA
Então tem cuidado! … Não vá apanhares uma indigestão! …
56
AUGUSTO
Eu peço desculpa por ter …
CHULO
Não peças! … É a primeira vez que vens aqui, não é?
AUGUSTO
É. Eu cheguei ontem a Lisboa … e ando à procura duma rapariga …
FININHA
E vieste ao sítio certo, meu lindo …
ANITA
Pois veio! Mas era comigo que ele estava a falar, num sei se reparaste, ó Fininha!
CHULO
Vá lá! Deixem-na trabalhar! …
ANITA
Diz lá, filho! … O que é que queres que eu te faça?! …
AUGUSTO
Eu ando à procura duma rapariga que morou por estes sítios … a senhora talvez a
conheça … eu já não a vejo há muitos anos, mas ela era …
ANITA
Estás a dizer-me que não sirvo p’ró que tu queres, não é?! … Puta de sorte! …
AUGUSTO
Eu não quiz ofendê-la! … eu não a conheço, mas …
ANITA
Ninguém me conhece!!! … Nem o guarda-nocturno …
57
….
Vá lá! … Como é que se chama a tal rapariga?
AUGUSTO
Foi ela que me criou … é como se fosse minha mãe.
Chama-se Carlota.
ANITA
Carlota?! …
AUGUSTO
Carlota dos Reis! Eu cheguei ontem a Lisboa e fui à junta perguntar se sabiam dela;
disseram-me que devia morar no Beco das Gralhas, eu fui lá, mas …
ANITA
Já não mora no Beco das Gralhas.
AUGUSTO
Então conhece-a?!
ANITA
A mãe era engomadeira, não era?
AUGUSTO
Sim!
ANITA
Então estamos a falar da mesma.
AUGUSTO
E sabe dizer-me onde é que ela agora vive?!
58
ANITA
Se é que se chama àquilo viver! …
AUGUSTO
Ela está mal?! …
ANITA
… então, tu és o filho do patrão da Carlota?
AUGUSTO
Sou.
ANITA
Está um farrapo humano! …
AUGUSTO
Ajude-me a encontrá-la, peço-lhe!
ANITA
.. tu próprio, não a reconheceste …!
AUGUSTO
Eu?! …
ANITA
Saiu daqui à bocado! … Deve estar no Terreiro do Paço;
Se fores depressa, talvez ainda a encontres!
AUGUSTO
Muito obrigado, muito obrigado! …
59
…
ANITA
Ó Betinha!!! Betinha!!!
BETINHA
Agora não posso ir aí! … Vá lá, despacha-te!!!!
ANITA
Nem vai acreditar quando eu lhe disser quem é o rapaz!!!
60
MENDIGO
Foi muito comovente o encontro de Carlota com o menino Augusto.
Perceberam com certeza que aquele era o filho de Inácio Botelho, que a tia levou para
Montalegre … e que veio para Lisboa com saudades do passado … da Carlota …
CARLOTA
Então é mesmo verdade! … o menino … é o menino Augusto …
AUGUSTO
E partir de hoje vai ser tudo diferente, Carlota ….
CARLOTA
Não é um sonho?! …
AUGUSTO
Não é um sonho! Agora, vou ser eu a tomar conta de ti …
CARLOTA
Deus castigou-me, mas foi um castigo merecido …
AUGUSTO
Mesmo que tenhas pecado, Deus já te perdoou, Carlota! …
CARLOTA
E o menino?
AUGUSTO
Eu não tenho nada a perdoar-te …
CARLOTA
61
O meu menino! …
…
Por culpa minha …… morreu um homem bom …
AUGUSTO
Pensavas que a culpa tinha sido tua … por isso é que estiveste internada … mas a culpa
não foi tua, Carlota! O meu paizinho morreu por causa da peste … não foi por falta de
cuidados teus! …
CARLOTA
Mas o Gregório! … também morreu.
AUGUSTO
O Gregório morreu?! … paz à sua alma.
CARLOTA
A sua tia não lhe disse?!
AUGUSTO
A minha tia?! … Nem do meu pai me falava …
Está a arrefecer. Vamos?!
CARLOTA
O menino Augusto! … Ainda me parece um sonho!
Nem quero acreditar
Que acabei de encontrar
Aquele que embalei, que tanto beijoquei
O meu menino que ajudei a criar
62
E que o destino de mim quiz afastar
Foi grande o meu sofrer! Enorme o meu penar
Mas Deus assim o quiz! E agora sou feliz!
Dê à mãe um beijoca! - É o meu menino!
Está nos braços da Carlota!
Agora vamos ser
Bem felizes os dois
Vou voltar a viver! Renascer e depois …
Basta esquecer tudo o que a gente passou!
Comi do pão qu’esse diabo amassou!
Do mesmo pão também! Eu tive de engolir!
Agora o sol nasceu! Já podemos sorrir!
Dê à mãezinha uma beijoca! - É o meu menino!
Está nos braços da Carlota!
Nem quero acreditar
Que acabou de encontrar
Aquele que embalou, que tanto beijocou!
O seu menino, que ajudou a criar
E que o destino dela quiz afastar!
63
Foi grande o meu sofrer! Enorme o meu penar!
Mas Deus assim o quiz! E agora sou feliz!
Dê à mãezinha outra beijoca! - É o meu menino!!!
Voltou p’rá sua Carlota!
CARLOTA
Ainda me parece um sonho! …
BETINHA
Eu … estou tão comovida!
ANITA
Ela tinha direito … a ser feliz! …
FININHA
Foi uma cena muito bonita, não foi? …
CALMEIRONA
Foi! Foi um momento musical de cinco estrelas!
CHULO
Foi tudo muito bonito … mas a noite ainda não acabou!
Toca a trabalhar!!!
64
A CAMINHO DO CEMITÉRIO
CARLOTA
… então a sua tia não o deixou continuar a estudar?! …
AUGUSTO
Com o dinheiro da herança mandou rezar dez missas por alma do meu pai …
depois, matriculou-me na escola, mas ao fim de sete meses … decidiu que era
melhor eu ir trabalhar …
CARLOTA
Era melhor, porquê?! …
AUGUSTO
Eu era mau aluno … e já que na escola não aprendia como deve ser, entendeu que
era melhor eu aprender um ofício qualquer …
CARLOTA
Parece impossível!
AUGUSTO
Mandou-me para Chaves porque era lá que morava um tio meu chamado João Torto
– chamavam-lhe assim porque ele era vesgo! - , que tinha uma mercearia e uma
quinta; primeiro eu era para ir atender a clientela, mas como era muito pequeno e
não chegava ao balcão ele disse: “és muito baixo, rapaz! Para este trabalho não
serves porque ninguém te vê!”. “Baixote como és, o melhor é ires aprender a tirar
leite às vacas!”.
CARLOTA
E o menino aprendeu?!
AUGUSTO
Mais ou menos! … Fazia-me muita impressão ter de me agarrar às tetas das vacas
… estava sempre com medo de as magoar …
CARLOTA
E deve doer-lhes, coitadinhas! …
AUGUSTO
65
Depois, com o desgosto comecei a definhar …
CARLOTA
Há quem diga que com o desgosto, até se pode morrer! …
AUGUSTO
Pois é! E com a falta de alimento também.
CARLOTA
O menino não comia?!
AUGUSTO
Comia o que me davam: caldo verde migado com pão de centeio … mas não retinha
no estômago! E então, como estava sempre a vomitar as couves e o unto do caldo,
desisti de comer.
CARLOTA
E não o levaram ao médico?!
AUGUSTO
Não! O meu tio até achou bem que eu deixasse de comer, porque como eu deitava
tudo cá p‟ra fora aquilo era um desperdício e uma afronta a Deus!
CARLOTA
Uma afronta a Deus, porquê?!
AUGUSTO
Ele nisso tinha razão Carlota; Há por aí tanta gente a passar fome e eu a deitar fora
as couves e o unto do caldo! …
CARLOTA
É ali que está o senhor Inácio Botelho …
AUGUSTO
Paizinho …
Querido paizinho, que eu mal conheci …
MENDIGOS
Está ali! Está ali! Está ali!
AUGUSTO
Estas flores silvestres que há pouco colhi
São P‟ra si! São p‟ra si! São p‟ra si!
Eu morri de saudades! Mil vezes morri!
66
MENDIGOS
Ele tinha ansiedades!
AUGUSTO
Papá o que eu sofri!
Meu anseio era vê-lo …
MENDIGOS
E por isso está aqui …
AUGUSTO
Estou aqui! Estou aqui!
MENDIGOS
Está aqui!
MENDIGOS
P‟ra longe a tristeza, sofrimento e dor!
Tanta dor! Tanta dor! Tanta dor!
MENDIGOS e AUGUSTO
Carlota vai ter um futuro melhor!
Bem melhor! Bem melhor! Bem melhor!
MENDIGOS
Vai poder esquecer para sempre o passado
Com a graça de Deus tem Augusto a seu lado!
Seu mal fadado fado acabou e ela diz:
CARLOTA
Sou feliz! Sou Feliz!
MENDIGOS
É feliz!
TODOS
Se pensam que a história está a chegar ao fim
Que é o fim! Que é o fim! Que é o fim!
Estão bem enganados porque ainda não!
Ainda não! Ainda não! Ainda não!
MENDIGOS
Que Camilo entendeu o enredo esticar!
Com saber e com arte vai fazer voltar,
Alguém que há muito tempo desapareceu!
Pensáveis vós! Pensava eu!!
67
Estar no céu!!!
E entra Gregório Redondela e D. Rosa, casados de fresco!
MENDIGOS
Para espanto de todos, Gregório Redondela não morreu!
Chegaram a passar-lhe uma certidão de óbito, mas quando ia a enterrar,
Um barulho estranho que vinha do interior da urna, obrigou a que suspendessem a
cerimónia!
E logo alguém jurou reconhecer a vós do próprio Gregório!
GREGÓRIO
Mas não era eu! Depois de me meterem no caixão, sem que ninguém se
apercebesse, entrou lá para dentro um ratinho, e quando colocaram a tampa ele ficou
a fazer-me companhia!
Como todos sabem o ratinho, não sendo uma toupeira, é um animal que gosta de
esgravatar! E foi esse ruído que ouviram e que levou o padre a ordenar que abrissem
a urna!
MENDIGOS
O ratinho saiu de imediato, e quando iam a repôr a tampa no seu devido lugar, uma
velha gritou:
D.ROSA
Párem, que ele está a mexer-se!!!
GREGÓRIO
Eu estou crente de que foi o contacto físico com o meu companheiro de cativeiro
que me fez voltar à vida!
MENDIGO
Chegaram a dizer que Deus tinha feito o Milagre do Rato!
D.ROSA
Levaram-no para o hospital, mas ainda esteve em estado de côma três anos. mas
depois, aos poucos, começou a recuperar e ao fim de sete anos … conhecemo-nos
…
GREGÓRIO
O casamento foi hoje mesmo e eu quiz vir aqui, com a minha mulher, para dizer ao
meu amo que ainda estava vivo e Ele, em paga da minha bondade, faz-me encontrar
o meu menino!!!
MENDIGO
68
Carlota, ainda bastante debilitada, recusa-se a acreditar no que os seus olhos vêem
….
CARLOTA
Não … não é verdade! ….
Foi Deus …que o mandou … para me castigar … daqui a nada vai desaparecer … é
um aviso de Deus para me lembrar que eu ainda não estou preparada para ser feliz
… Deus, com toda a sua misericórdia mostra-me a felicidade que ele podia ter
alcançado … se eu tivesse tido forças para impedir o acto cruel com que o meu
amante lhe tirou a vida …
Vou denunciar-me à justiça: quero ser castigada para salvar a minha alma!
D.ROSA
Quem é esta mulher?! …
GREGÓRIO
É Carlota, a filha da Engomadeira!
D.ROSA
Aquela … que foi amante do falecido?! …
AUGUSTO
Ela … foi amante do meu pai?! …
GREGÓRIO
… já lá vão dez anos … e estou agora a lembrar-me … ela tinha outro …
AUGUSTO
Pobre Carlota …
D.ROSA
Pobre mulher! …É uma mulher … perdida!
MENDIGOS
Quem vir uma mulher perdida
Que nunca a trate com desdém.
Eu vos lembro que Deus castiga!
Sem dizer quando nem a quem!
Todos devemos ter compaixão
Da mulher desprezada, chorosa!
Antes de cair na perdição,
69
ela também foi virtuosa!
EM CASA DE GREGÓRIO REDONDELA
MENDIGOS
Gregório Redondela era um bom homem e embora naquele dia,
ao ter recuperado a memória, tivesse percebido que Carlota tinha sido a causadora
do crime das garfadas, perdoou-lhe … e levou-a para sua casa.
A ela e ao menino Augusto. D. Rosa não se importou por no dia do seu casamento
ver assim alargada a família …
Também era uma boa mulher, e muito temente a Deus …
E assim passaram … três meses.
D. ROSA
O jantarinho está quase pronto!
AUGUSTO
D. Rosa, aquilo …que eu estive a desabafar consigo, … não conte nada ao
Gregório, nem à Carlota, promete?
D.ROSA
Esteja descansado, menino!
AUGUSTO
Obrigado; e então, o que é que temos hoje?!
D.ROSA
Iscas, arrozinho de grelos, saladinha de tomate, pescadinhas com o rabo na boca,
sopinha de agriões e maçãzinha assada para a sobremesa.
AUGUSTO
Não será muito pesado, para a Carlota?!
D.ROSA
Para a Carlota grelhei um robalinho, com arroz branco a acompanhar e uma
canjinha de galinha!
AUGUSTO
A D. Rosa é uma santa! … Eu ainda não lhe disse, mas tenho a impressão de já a ter
conhecido …
70
D.ROSA
Augustinho …. Isto que não saia daqui; eu ainda não tive coragem de contar ao
Gregório, mas eu … muito antes de o ter conhecido … eu era meretriz …
AUGUSTO
Meretriz?! …
D.ROSA
Rameira …
AUGUSTO
Rameira?! …
D.ROSA
… era puta … no largo das Atafonas …
AUGUSTO
Foi nesse largo que eu encontrei a Carlota! … mas não a posso ter visto lá … foi na
véspera do seu casamento …
D.ROSA
Deus deu-me forças para conseguir sair dessa vida … mas ficou lá uma rapariga …
é esta … (mostra foto) …
AUGUSTO
É muito bonita! …
D.ROSA
Era …. Chama-se Anita … é minha irmã gémea!!!
Está-me sempre a dizer que um dia há-de casar com um guarda nocturno e que
deixa a vida … mas eu não sei! …
GREGÓRIO
A nossa doentinha está cada vez melhor!
D.ROSA
Sim, tem recuperado bastante bem! …
GREGÓRIO
E graças aos cuidados da D. Rosa, que é uma santa!!!
D.ROSA
Não me chames santa que Deus ainda me castiga!
AUGUSTO
Lembre-se que Deus, através de Jesus, perdoou a Madalena!
71
GREGÓRIO
O menino Augusto às vezes sai-se com cada uma! O que é que D.Rosa tem a ver
com a Madalena? Madalena era uma rameira e Rosinha é uma santa!
D.ROSA
Ora!
Há-de haver por aí quem diga que eu só casei contigo por causa do dinheiro!
GREGÓRIO
Pois deixa-os falar! …
É bem verdade que Deus escreve direito por linhas tortas, menino Augusto!
… lá no hospital, quando eu já estava capaz de entender e me disseram que o seu
paizinho me deixou aquele dinheiro todo em testamento, fiquei tão comovido, que
os médicos até tiveram medo que entrasse outra vez em estado de coma! … Quem
não gostou nada foi a sua tia Leonor, porque se eu tivesse morrido aquele dinheiro
havia de ser para ela! …
AUGUSTO
Nunca me disse que não tinhas morrido! …
GREGÓRIO
Sabia que o menino me estimava e não quiz dar-lhe essa alegria! …
D.ROSA
Desculpe que lhe diga, mas a sua tia é uma víbora!!!
GREGÓRIO
Rosinha, vai lá ver se a pequena já se aprontou … é uma boa mulher! …
Menino Augusto …. Isto que não saia daqui … que eu não lhe disse, nem tenho
coragem para lhe dizer … ela não merece que eu a magoe …
Mas a D. Rosa, antes de casarmos, era prostituta no Beco das Atafonas!
AUGUSTO
Tens a certeza, Gregório?!
GREGÓRIO
Mas ela não sabe que eu sei! … Foi um sinal de Deus! Quando saí do estado de
côma … eu não me lembrava de nada, fiquei sem memória! … pois a única imagem
que eu recordava com todos os detalhes … era o rosto da D. Rosa …
Eu já tinha ido com a Rosinha, no Beco das Atafonas! …
AUGUSTO
E mesmo assim, casaste com ela!
GREGÓRIO
72
Pois se Deus me mandou aquele sinal … foi com certeza porque queria que eu a
fizesse encontrar a felicidade … eu fui o instrumento nas mãos do Senhor, para a D.
Rosa ser feliz!
AUGUSTO
Deus escreve direito por linhas tortas …
GREGÓRIO
Porque é que eu recebi as 17 garfadas?
Porque é que aquela desgraçada enlouqueceu?
Porque é que a D. Rosa foi uma mulher perdida?
Porque é que o menino teve de comer o pão que o diabo amassou?
E depois de tudo isto, porque é que um simples ratinho entra para dentro do meu
caixão?!
Porque Deus escreve direito por linhas tortas.
D.ROSA
Vem aí a nossa menina!
CARLOTA
Eu agradeço-te do fundo do coração, Gregório! E à D. Rosa, e ao menino Augusto
… mas eu, eu não sou merecedora de tanta bondade …
TODOS
Ora ..
CARLOTA
Com estas roupas tão finas … eu não me sinto bem … quero dizer … eu olho para o
espelho e eu … eu não sou eu! …Não pareço eu …
GREGÓRIO
Foi isso que combinamos e é assim mesmo que vai ser …
D.ROSA
A partir de agora és outra mulher, Carlota! …
AUGUSTO
É a única forma de apagares o passado … que volta e meia continua a apoquentar-
te! …
CARLOTA
Mas tanta despesa por minha causa! … eu ainda não sei se mereço …
73
GREGÓRIO
Prometi que havia de fazer de ti outra mulher … e não te apoquentes com o dinheiro
… tenho o bastante para que todos possamos ser felizes!
CARLOTA
Mas, Gregório … a felicidade não se compra …
GREGÓRIO
Lá nisso tens razão; mas um título, isso sim, pode comprar-se!
D. ROSA
E olha que não vais ser a única a fazer-se passar por aquilo que não é!
AUGUSTO
A partir de agora passas a ser Dona Carlota dos Reis Redondela Pinto e Basto
ROSA
A Viscondessa dos Reis!
GREGÓRIO
E deixas de tratar o menino por Menino Augusto, que ele agora já é um homem!
D.ROSA
Já é um homem e tu … uma bonita mulher … e quem sabe?! … Deus está sempre a
escrever direito por linhas tortas …
AUGUSTO
Aceitavas ser minha mulher, Carlota? …
D.ROSA
Então?! …
CARLOTA
Eu andei com ele ao colo! …
D.ROSA
Isso faz parte do passado! … e nem queiras saber com quantos eu andei ao colo
antes de casar com o Gregório!
GREGÓRIO
Então a D. Rosa e a senhora viscondessa querem matar-nos à fome?!
CARLOTA
A Viscondessa dos Reis vai já para a mesa!
74
D. Carlota dos Reis Redondela Pinto e Basto …
D.ROSA
“Viscondessa dos Reis”, eu gosto! Mas … “Pinto e Basto”, porquê?!!!
GREGÓRIO
Isso, Rosinha, vais ter de perguntar ao Camilo Castelo Branco!
D.ROSA
E tu, chegaste a perguntar ao pequeno se ele sabe o que foi feito da tia?!
GREGÓRIO
Perguntei; e só para satisfazer a tua curiosidade!
Pouco antes dele ter vindo para Lisboa casou pela quarta vez com um emigrante que
apareceu em Montalegre cheio dele!!! O homem vinha de França disposto a gozar o
resto da vida na terra … mas ela convenceu-o a irem viver para Paris! …
PALACE HOTEL - PARIS
LEONOR
Agora já sou rica, vivo no estrangeiro
Meu maridinho! É velhinho! E cheio de dinheiro!
Em Paris enriqueceu! E o argent agora é meu!
E já venci! Enriqueci! E a Deus digo merci!
Já sei falar!
75
Qualquer coisinha em fraciú
O argent eu sei gastar!
E sei dizer merci beaucoup – ando a aprender p‟ra melhorar!
Sei que devo o que hoje sou
Ao idiota que comigo se casou!
ASSIM VENCEU!
Porque sou boa e sou mulher!
ELA HAVIA DE SER RICA E DÊ LÁ POR ONDE DER
APOSTOU ESTA MULHER!
Hei-de vencer!
ENRIQUECER! – E QUE DOA A QUEM DOER!
LEONOR
Deixa cá ver como é que eu hoje me vou desenrascar com o garçon!
Bonjour! …
GARÇON
Bonjour Madame! Le Palace hotel vous remercie votre préferance!
LEONOR
Já sei que estou em Ferance! Diz-me isto todos os dias o “papagaio”!
GARÇON
Qu‟est ce que vous désire, cette jolie matin!? …
LEONOR
“Matin”, é isso mesmo! …. Esta matin …manhã … mon mari …. Está trés fatigado
… comprenez?! …
GARÇON
Bien sur! Votre mari est trés fatiguée!
Et pourtant … il a besoin de rester à la chambre tout le jour!
LEONOR
Calma aí ó papagaio louro! Que eu falo franciú mas ainda não sou a Sara Bernard!!!
MANUEL
Posso ajudá-la, madame?
LEONOR
Um homem que fala português! Foi Deus que o enviou!
MANUEL
Não, Madame! Venho encontrar-me com um amigo …
76
LEONOR
E que bem que desenvolve o português! … Nem ponta de sotaque!
MANUEL
Se tivesse sotaque … eu não seria digno da pátria que me viu nascer!
LEONOR
Agora é que não estou a perceber!
MANUEL
Eu sou português!
LEONOR
Mon Dieu! … Pois olhe que não se nota nada! … Os meus parabens!
Eu digo isto, porque todos os portugueses que conheci até hoje têm estampado no
rosto que são completamente idiotas! Aqui p‟ra nós, já enterrei três!
MANUEL
Os meus sentimentos.
LEONOR
Serão entregues.
MANUEL
Há já muitos anos que vivo em Paris … se poder ser-lhe útil em alguma coisa.
LEONOR
Eu estava a tentar dizer àquele papagaio que o meu marido não quer ser
incomodado; demos ontem um passeio nos “Campos Elisês” e ele ficou de rastos!
…
MANUEL
Penso que o papagaio já a entendeu …
LEONOR
Tinhamos combinado para hoje um outro passeio com um amigo do meu marido …
deve estar a chegar … ah!!! Falai no mal!!!!
ADIDO
Et voilà! Una belle portuguèse à Paris!
Adido cultural eu sou no consulado português
77
Sou dado à cultura; como tudo-tudo o que é francês!
É língua que me agrada e em Paris fui colocado
Adoro opereta! O Moulin Rouge e um bom linguado!
E o Follies Bergère, Montparnasse e a Torre Eiffel
Pintores em todo o lado! Aguarela e também pastel!
Adoro mulher fina que a francesa é toda “queque”!
E até já me perdi pela divina Mistinguette!
Adora mulher fina e a francesa é muito queque!
Adora mulher fina e a francesa é muito queque!
A até já se perdeu pela divina Mistinguette, é do mais queque!
E este meu amigo é outro emigrante português!
Põe as mulheres malucas – eu já conheci duas ou três
Que ficaram de rastos só de verem o fulano
Ele é o supra-sumo do bom macho lusitano!
Elas ficam malucas só de verem o fulano
Ele é o supra-sumo do bom macho lusitano
Tenho muito prazer em conhecer Madame, é uma beleza
É rosto do mais fino e sangue azul, ai terá de certeza!
É linda e o recheio é um delicioso croissant
Um pãozinho francês que eu trinco logo p’la manhã!
É nossa obrigação dizer Madame seja bien-venus!
Por estar aqui, merci, merci, merci, merci, merci beaucoup
Em Roma sê romano! Aqui é tudo em francês!
As saudades que eu tinha de falar em português!!!
78
Em Roma sê romano! Aqui é tudo em francês!
Em Roma sê romano! Aqui é tudo em francês!
As saudades que têm de falar em português!!! Em português!
De Portugal recebo as notícias com atraso tal
“O crime das garfadas”! Imagine! Já foi no Natal!!!
Queremos saber tudo aquilo que por lá se passa!
Quando saí de lá, Lisboa estava uma desgraça!
E querem saber tudo aquilo que por lá se passa
Ao sairem de lá Lisboa estava uma desgraça!!!
LEONOR
Mas isto quer dizer que estavamos os dois à espera da mesma pessoa!
MANUEL
Parece que sim!
ADIDO
Tomei a liberdade de convidar este meu amigo, que conhece Paris bastante melhor do
que eu!
LEONOR
E fala um português que ninguém diria!
MANUEL
Ele é português!
LEONOR
Mesmo assim! Ali o papagaio é francês e não se percebe metade do que ele diz!
ADIDO
79
Então tu andaste a mentir à senhora?!
GARÇON
Pensei que estava a ajudar!
ADIDO
Ele veio da Madragoa, fui eu mesmo que lhe arranjei este emprego!
LEONOR
Palhaço! … Está a ver?! Outro com cara de idiota!
ADIDO
E pensavas que estavas a ajudar, porquê?!
GARÇON
Ela pensa que já sabe falar francês, mas não dá uma p’rá caixa! Por isso, o velho, o
marido, pediu-me para eu só falar com ela em francês, para ela praticar a língua e ao
mesmo tempo convencer-se que está a falar muito bem, porque julga que eu a entendo!
LEONOR
O papagaio já se calou?!
ADIDO
Já. Foi tudo um mal entendido! …
Ainda não lhe apresentei o meu amigo! É o conhecidíssimo Barão da Nóbrega!
LEONOR
Um Barão?! Oh! Mas quem me dera ser reposteiro!!! … foi uma graça!
GARÇON
Estou aqui que não me aguento de tanto rir! …
ADIDO
80
Podemos sair assim que o seu marido descer!
LEONOR
Felizmente ele não nos pode acompanhar! … A caminhada de ontem já foi demais para
quem tem tão pouca pedalada!
ADIDO
Podemos então tomar um chá … aqui mesmo … que lhes parece?!
LEONOR
Isso do chá fez-me lembrar um certo anão … mas vindo da sua parte, parece-me bem! E
o Barão?
MANUEL
Acho muitíssimo bem! Podemos aproveitar para nos falar de Lisboa.
LEONOR
Mas eu sou de Montalegre, Barão! … Lisboa! … não sei, mas deve continuar uma
desgraça! … A última vez que lá estive aquilo estava impossível, por causa da guerra e
da peste! …
ADIDO
Qual guerra? A guerra civil?!
LEONOR
Não sei ao certo, já foi há dez anos, mas devia ser! Essa ou outra qualquer!
Passam a vida a guerrear-se e vá lá a gente saber porquê! …
GARÇON
Tomam alguma coisa ou só vão fazer sala?
81
MANUEL
Um chá …
ADIDO
E dois bagaços!
LEONOR
Por amor de Deus! Dois, não! Que eu com um já fico tonta! …
GARÇON
Percebi perfeitamente: saiam três bagaços!
MANUEL
Disse que tinha estado em Lisboa há dez anos?
LEONOR
Mais coisa, menos coisa …
MANUEL
Eu tive um amigo … que vivia exactamente em Lisboa nessa altura, mas foi obrigado a
abandonar o país …
ADIDO
Por causa da guerra?
MANUEL
Parece que sim … divergências políticas! …
LEONOR
Claro!
MANUEL
82
Teve de fugir, primeiro para Espanha e depois para França … também esteve uns
tempos na Suiça … teve sorte, ganhou muito dinheiro ao jogo e ficou riquíssimo!
LEONOR
Foi o que me aconteceu e nem sequer precisei de sair de Montelegre!
(Campaínha para chamar Garçon, que sai)
MANUEL
Esse tal meu amigo gostava de voltar a Portugal, mas tem medo de ser preso …
ADIDO
Por causa da política?!
MANUEL
Parece que sim …
LEONOR
Desculpe que lhe diga isto, Barão, mas esse seu amigo é um tolo! Um idiota!
Para que é que ele quer voltar para um país onde se vive tão mal se no estrangeiro ele
está tão bem!? … Olhe que eu, mal o dinheirinho foi ter comigo a Montalegre, só pensei
numa coisa: pirar-me dali p’ra fora!
GARÇON
Posso interromper?!
LEONOR
É claro que não! …
MANUEL
O que o leva a querer voltar são razões … sentimentais … e remorsos …
ADIDO
Remorsos?
83
MANUEL
Sim … parece que sim.
LEONOR
Não diga mais, que eu já estou mesmo a ver a “opereta”!
Razões sentimentais: esse seu amigo tinha uma conversada a quem jurara amor eterno,
e eis senão quando, por causa das políticas, teve de a abandonar, porque ela – filha de
boas famílias – nunca poderia acompanhá-lo para o exílio! Não foi assim?
MANUEL
Deve ter sido … parece que sim.
ADIDO
E a razão para os remorsos?!
LEONOR
Muito simples! A conversada não lhe disse naquela altura, mas mais tarde ele veio a
saber que a deixou de esperanças! Ele sabe que ela vai ter de aguentar sòzinha, com o
desprezo da família, com a maldade do mundo e com a criança que ele nunca chegou a
conhecer. Naturalmente … sente remorsos!
Não teria sido assim?!
MANUEL
Assim … tal e qual … parece que não!
GARÇON
Já posso interromper?
LEONOR
Traga mas é o que lhe pediram e não se meta onde não é chamado!
MANUEL
84
Penso que se ela tivesse ficado de esperanças … os remorsos haviam de ser muito
maiores.
Não estou a maçá-los?!
LEONOR
De forma alguma! É uma história interessantíssima! … Pelo menos, da forma como eu a
estou a imaginar!
GARÇON (enquanto põe na mesa os copos)
O seu marido chamou-me e …
LEONOR
E então o que é que está aqui a fazer?!
Vá lá ver o que ele quer e cale-se! (Bebe)
ADIDO
Eu juro-te que tenho estado a tentar perceber onde é que queres chegar … e não
consigo!
MANUEL
Eu sei que esse meu amigo, na impossibilidade de voltar, havia de gostar de saber o que
aconteceu à conversada …
ADIDO
Pode ser que esteja bem! …
MANUEL
Se assim fosse, ele ia sentir-se melhor, tenho a certeza! …
85
Como tudo isto aconteceu quando a senhora estava em Lisboa … o destino tem coisas
inexplicáveis, pode ter ouvido falar no caso! … Foi na mesma altura do “criminoso das
garfadas”, talvez ainda se lembre!
LEONOR
Disso lembro-me perfeitamente e até lhe digo mais: foram 17 garfadas, mas se fosse
comigo haviam de ser 34!!!
MANUEL
Então, talvez também se recorde duma rapariga que era filha duma engomadeira … e
que foi dada como louca.
LEONOR
Carlota?! …
MANUEL
Parece que sim … Carlota.
LEONOR (Bebe mais um copo – o do Adido)
Como é que eu não havia de me lembrar! Se os mendigos e até os cómicos de terceira
categoria andaram de terra em terra a ganhar dinheiro à custa dessa miserável!!!
Chamavam à representação: “A Tragédia da Carlota!”.
Essa Carlota! …Uma putéfia, armada em heroína num romance de cordel!
(Bebe mais um copo – o do Manuel))
ADIDO
Porque é que não vais ver o que é que o homem quer?!
GARÇON
Não vale a pena. (Continua a falar-lhe, mas não se ouve)
MANUEL
E ainda se lembra como é que acabava … essa representação?!
86
LEONOR
Mal! É claro que só podia acabar mal! A mãe completamente cega, a que fazia de
Carlota magra que nem um cão, e as duas miseráveis a pedinchar na rua, à frente dum
cenário também muito pobre, uma pintura que dava ares de ser o cais do Sodré, com um
arco iris muito lá ao fundo! …
MANUEL
Um arco-iris?! …
LEONOR
Sim! … Mas era tudo tão pobre, tão pobre … que até o arco iris era a preto e branco!!!
ADIDO
Talvez seja melhor beber outro bagaço …
LEONOR
Já estava a sentir-lhe a falta …
ADIDO
O seu marido chamou o garçon …
LEONOR
Esse idiota é um chato! …
ADIDO
Mas quando entrou no quarto … deu com ele morto.
LEONOR
Está então morto! Felizmente quando eu dei com ele … ainda estava vivo!
GARÇON
Há já dez minutos que é viuva.
87
LEONOR
Já estou habituada! … e isto só vem confirmar o que eu sempre disse: Deus escreve
direito por linhas tortas! ...
EM CASA DE GREGÓRIO REDONDELA
D.ROSA
Pareces-me muito pensativa, Carlota! …
CARLOTA
Eu?! … estava a pensar nas voltas que a vida dá … no passado.
D.ROSA
Esquece o passado! … Tens de pensar é no futuro …
CARLOTA
Qual futuro?! …
D.ROSA
O futuro está nas tuas mãos, Carlota!
CARLOTA
O futuro só a Deus pertence!
D.ROSA
E Ele não está a querer ajudar-te?! Eu até me parece que o ouço: “P’rá frente Carlota!
P’rá frente Carlota!”, mas tu, filha, sempre a puxar p’ra trás, sempre a lembrares o que
já lá vai! … Assim, como é que queres encontrar a felicidade?
88
CARLOTA
Eu não mereço ser feliz, D. Rosa!
D.ROSA
Lá estás tu com essa mania que não te sai da cabeça! Toda a gente merece ser feliz,
Carlota.
CARLOTA
O que eu fiz não tem perdão …
D.ROSA
Não tem é remédio! Mas o que não tem remédio, remediado está!
E já toda a gente te perdoou, tens um lar, és Viscondessa, já engordaste três quilos, o
que é que tu queres mais?!
CARLOTA
Tem razão! Tem toda a razão D. Rosa!
Mas, está a ver?! Fazem-me bem e eu … até parece que não sei retribuir … sou mesmo
“pobre e mal agradecida!”.
Prometo que nunca mais volto a falar do passado!
D.ROSA
Nem mais uma palavra! … E quanto ao futuro … já pensaste o que vais responder ao
menino Augusto?
CARLOTA
Responder? … a quê?!
D.ROSA
Ora!…Não te faças de novas!
89
CARLOTA
Ele estava a brincar D. Rosa! …
D.ROSA
Os olhinhos dele não enganam! … ele gosta de ti, Carlota.
CARLOTA
Sempre foi um bom menino … e graças a Deus transformou-se num bom homem … e se
não estava a brincar … só pode ter dito aquilo porque tem pena de mim … quer ver-me
feliz.
D.ROSA
O que ele sente por ti é amor, não é pena. Ter pena é um sentimento tão … tão
mesquinho!
CARLOTA
Eu não posso casar com ele, não posso! Ele é mais novo do que eu dez anos!
D.ROSA
E o que são dez anos, quando é a felicidade que está em jogo?
CARLOTA
Era como se casasse com o meu próprio filho …
D.ROSA
Felizmente ele não é teu filho … e ama-te muito.
CARLOTA
Como é que pode estar tão certa do que diz?!
D.ROSA
Porque ele próprio mo confessou!!!
CARLOTA
90
Casar com o menino Augusto?! …
D.ROSA
Não foste a única que no passado teve de comer o pão que o diabo amassou.
Ele também sofreu muito …
CARLOTA
Eu sei …
D.ROSA
Todos nós sofremos; mas ele ainda era uma criança, deve ter sido pior, muito pior …
Mas agora ele encontrou uma razão para viver, encontrou uma pessoa de quem gosta
muito e acredita no amor.
Depois de tudo o que ele passou … e depois de tudo o que ele fez por ti … peço-te
Carlota, não o faças sofrer, não lhe dês mais um desgosto.
91
PALACE HOTEL - PARIS
GARÇON
Senhor Barão!
MANUEL
Sim?!
GARÇON
A viúva mentiu-lhe!
MANUEL
Mentiu-me?! … em quê?!
GARÇON
Não lhe mentiu … mas não lhe contou toda a verdade!
A Carlota passou um mau bocado, mas agora está bem!
Está até bastante bem!
MANUEL
Como é que sabes?!
GARÇON
Só estou aqui a trabalhar há dois meses … e algum tempo antes de vir p’ra Paris,
conheci a Carlota; … até lhe chamavamos “a alma penada!” … ela passou um mau
bocado! …
92
MANUEL
Então, tu conheceste a Carlota …?!
GARÇON
No Largo das Atafonas, que era onde eu trabalhava; ela aparecia muito por ali – cá
p’ra mim era p’ra ver se entrava pr’ó negócio!
MANUEL
Qual negócio?
GARÇON
O mesmo que há aqui em Pigalle! … Putedo, senhor Barão! Putedo! Mas nem p’ra isso
ela servia … Eu era … “transformista” … e olhe que era das que tinha mais saída! …
MANUEL
Que aconteceu à Carlota?
GARÇON
Teve uma sorte do caraças!
Encontrou o filho do antigo patrão e foram os dois viver para casa do Gregório
Redondela!
MANUEL
Isso não pode ser!!! … O Gregório Redondela morreu!!!
GARÇON
Morreu nada! Esteve não sei quantos anos no hospital mas escapou!
A minha mãe estava sempre a falar-me no milagre do rato e no tarado das garfadas!!!
Esse é que nunca foi apanhado!
MANUEL
O Gregório não o denunciou às autoridades? …
GARÇON
93
Ele não morreu, mas parece que perdeu a memória …
MANUEL
Portanto, a Carlota está bem … e o Gregório perdeu a memória!
GARÇON
Está riquíssimo! Abriu um restaurante …
GREGÓRIO
Agora sou rico!
Dinheirinho não me falta nem sei que lhe hei-de fazer!
Estava escrito, mas eu não sabia!
Havia de enriquecer!
Sou um Novo Rico!
Nem sabia como era ter dinheiro p’ra gastar!
De repente enchi o pé da meia!
E já posso descansar!
Logo montei um restaurante no Bairro Alto e aquilo cresceu!
Vai lá gente importante gastar o “seu”!
É o mais chique e o mais famoso, tem duas salas, sempre esgotadas!
E eu chamei-lhe por gozo … “O Rei das Garfadas!”
MENDIGO, MANUEL, GARÇON, D.ROSA
Logo montou um restaurante no Bairro Alto e aquilo cresceu!
Vai lá gente importante gastar o “seu”!
D.ROSA e GREGÓRIO
É o mais chique e o mais famoso, tem duas salas, sempre esgotadas!
MENDIGO
E chamou-lhe por gozo … “O Rei das Garfadas”!
94
TODOS
É tão bom ser rico!
Ter dinheiro na carteira, não precisar de pensar:
Está na hora de pagar a renda; o que tenho irá chegar?!
GREGÓRIO e ROSA
Somos Novos Ricos!
OS OUTROS
Nem sabiam como era ter dinheiro p’ra gastar!
GREGÓRIO
De repente enchi o pé da meia!
E já posso descansar! (senta-se a dormitar; D.Rosa sai)
MANUEL
Tudo está bem … quando tudo acaba bem! …
Porque é que eu não vim ao Palace Hotel há mais tempo?
GARÇON
Isto aqui é cinco estrelas, senhor Barão!
MANUEL
Toma; bem o mereces!
GARÇON
Merci Monsieur!
MANUEL
…Agora, já posso voltar!
95
GARÇON
E será sempre … “Bien Venu!”.
“Tudo está bem … quando tudo acaba bem!”
Que quereria ele dizer com isto?!!!
EM CASA DE GREGÓRIO REDONDELA
D.ROSA
Gregório! Gregório! Acorda Gregório!!!
GREGÓRIO
Mas, o que é que aconteceu, Rosinha?!
D.ROSA
É a Carlota! Ela não tem andado bem! Às vezes, lá conseguia disfarçar, e eu bem tentei
convencê-la que estava tudo bem … mas ela está sempre a matutar no mesmo! Sempre
a culpar-se de tudo, e agora isto! …
GREGÓRIO
Mas “agora isto”, o quê, Rosinha!
D.ROSA
Disto é que eu não estava à espera!
GREGÓRIO
Não estavas à espera de quê? Ó filha explica-te! …
D.ROSA
Valha-me Deus!
GREGÓRIO
96
Acalma-te! Estás a deixar-me ansioso! …
D.ROSA
A Carlota foi-se embora! Eu bem tentei impedi-la, mas não consegui!
Pediu-me para te entregar esta carta …
GREGÓRIO
“Meu bom Gregório” …
AUGUSTO
Boas noites!
D.ROSA
Boa noite, filho! … Espere um bocadinho … ele está a ler … uma carta …
AUGUSTO
Não são más notícias, espero!
D.ROSA
Quando se recebe uma carta e ninguém faz anos … a gente nunca sabe bem o que é que
pode vir lá dentro …
GREGÓRIO
A letra está muito tremida … e a tinta esborratada … percebe-se que enquanto escrevia
… um vale de lágrimas deslizava-lhe pelo rosto e caía em cima do papel de carta …
Metade do que escreveu não se consegue ler …
mas a outra metade diz tudo. … é da Carlota!
D.ROSA
A Carlota deixou-nos! …
AUGUSTO
A Carlota foi-se embora?! …
97
D.ROSA
Foi para um convento! Diz que quer ser freira! Que só assim poderá pagar pelos seus
pecados ….
GREGÓRIO
Pede-nos perdão não sei quantas vezes … e diz que aqui nunca iria conseguir encontrar
… nem sei bem o quê … a seguir está tudo muito esborratado, por causa das lágrimas
…
D.ROSA
Mas ela gosta muito do menino Augusto! Disso eu tenho a certeza! … Disse-me que
também lhe havia de escrever uma carta, assim que chegasse ao convento
AUGUSTO
Pobre Carlota …
GREGÓRIO
“ … não consigo encontrar …” pois! Está a ver menino Augusto?! Não se percebe o
resto …
AUGUSTO
Deve ser … a Felicidade.
D.ROSA
Mas ela aqui, estava bem, não lhe faltava nada …
GREGÓRIO
De que vale ser rico ;Quando a dor que a gente sente não se acalma com vintém! O
dinheiro ajuda a viver … Mas não faz feliz ninguém!!!!
NO CONVENTO
GAMA
Carlota! … Carlota! … mas onde é que ela se teria metido, irmãs! …
98
Receio ter sido um erro tremendo tê-la deixado entrar para o convento!
BORBULHA
Ali está ela!
GAMA
Onde, irmã?!
BORBULHA
Na sala das torturas! …
GAMA
Mas que está ela ali a fazer, se ainda nem sabemos qual foi o pecado que a trouxe até
nós!!!
CARLOTA (Voz OFF)
É este o castigo que eu mereço … ou então aquele! … depois … Deus vai perdoar-me
todos os meus pecados! …
GAMA
Estou bastante preocupada, irmãs!
Há já duas semanas que Carlota entrou para o nosso convento, mas não lhe sinto
vocação para ser freira!!!
LUFADINHA
Não diz uma palavra!
GAMA
Senta aqui Carlota … senta.
LUFADINHA
Para te integrares, tens de falar connosco Carlota … tens de nos contar os teus pecados
…
99
BORBULHA
Todas nós temos telhados de vidro …
GAMA
Vais sentir-te como peixe dentro de água! … Eu sou a irmã Gama; desde criança que
comecei a roubar nas igrejas as esmolas que os fieis lá deixavam … era fácil, porque os
fieis estavam sempre de cabeça baixa e não viam … os santinhos perdoaram-me e Deus
também! … És ladra?!
CARLOTA acena que sim.
LUFADINHA
Está visto que roubou! …
BORBULHA
Temos de ter cuidado com a caixa das esmolas! …
GAMA
Receio que não esteja aqui só por isso! …
LUFADINHA
Eu sou a irmã Lufadinha … porque passei metade da minha vida numa lufa-lufa à
procura dum marido … nessa lufa-lufa eu conheci muitos, mas nenhum me quiz …
GAMA
Acontececeu-te assim … alguma coisa idêntica?! … Homens!
CARLOTA acena que sim.
GAMA
Não restam dúvidas: temos aqui uma ladra que também pode muito bem ser … que
Deus me perdoe! … outra tarada sexual!
BORBULHA
100
Talvez seja melhor avisarmos o jardineiro! Já está muito velho! …
Eu sou a irmã Borbulha! … Naturalmente porque sou achacada às borbulhas!
As borbulhas, por sua vez, alteram-me o sistema nervoso … também deves ser muito
nervosa …
CARLOTA acena que sim
BORBULHA
Fui cozinheira em casa de gente rica e um dia pediram-me para matar um porco …
levei-o para a cozinha, mas o animal fugia-me por tudo quanto era sítio!
Finalmente consegui apanhá-lo e prendi-o bem no meio das minhas pernas! Mas ele
guinchava que nem um porco! Aquilo começou a mexer-me com os nervos e então
espetei-lhe na cabeça com a primeira coisa que me apareceu à mão! Um garfo!!!
CARLOTA reage à palavra “Garfo”
LUFADINHA
… “Garfo!”
GAMA
Isto é muito estranho, irmãs! … Tem reacção à palavra …. “Garfo!”.
LUFADINHA
Está visto que no seu passado há uma história qualquer relacionada com …
AS TRÊS
“Garfo!”
Batem à porta do Convento. As irmãs saiem. Carlota dirige-se para o camarim e começa
a escrever a carta. Irmã Gama volta a entrar.
GAMA
101
Carlota … acabou de chegar uma pessoa … que quer falar-te …
CARLOTA
Irmã Gama, … diga ao menino Augusto que eu … que eu aqui dentro não o posso
receber … diga-lhe que não é permitido …
GAMA
Mas, Carlota …
CARLOTA
Se ele quiser esperar … eu estou a terminar uma carta que lhe é dirigida, a irmã pode
entregar-lha, não pode?! …
GAMA
Com certeza que sim, que lha entrego;
mas só o poderei fazer quando esse tal menino Augusto vier ao convento.
CARLOTA
Mas a irmã não disse?! …
GAMA
Quem te procura é um cavalheiro, o … Barão da Nóbrega.
CARLOTA
Não conheço ninguém com esse nome!
GAMA
Chegou há dois dias de França e ele próprio receia que não te lembres dele; Por isso
recomendou-me para te dizer que o seu primeiro nome é Manuel.
CARLOTA
Manuel?! … Não é possível! …
GAMA
102
É isso que queres que lhe diga? … Que “não é possível”!
CARLOTA
Não, irmã! Se é ele … se é possível que seja ele … se me é permitido …
GAMA
Se Deus o enviou de tão longe … certamente é porque quer que se encontrem … vou
mandá-lo entrar.
CARLOTA
Bendito seja Deus! … Perdoai-me Senhor! Perdoai-me por não ter acreditado que
ainda podia ser feliz! …
(Vai ao camarim e está para rasgar a carta, quando a Madre regressa com Manuel)
GAMA
Irmã Carlota!
Sem palavras, mas com música, caiem nos braços um do outro.
MANUEL
Perdoa-me, Carlota!
CARLOTA
Sou eu que tenho de te pedir perdão!
MANUEL
A culpa não foi tua …
CARLOTA
Foi o destino … mas também estava escrito que tu havias de voltar, Manel …
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MANUEL
Para te ouvir dizer … “perdoo-te”; … só assim poderei encontrar a felicidade.
CARLOTA
Se tu dizes que só assim poderemos ser felizes, então eu … eu perdoo-te.
Seremos felizes … para sempre!
MANUEL
És … realmente feliz, Carlota?!
CARLOTA
Não posso ser mais feliz!
MANUEL
Fico muito contente … por ti … e por mim.
CARLOTA
Temos muito que agradecer a Deus, Manel.
GAMA
A senhora pergunta se já pode entrar.
MANUEL
Sim; agora já pode entrar.
FRANÇOISE
Bonjour Carlota.
MANUEL
Chama-se Françoise …
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CARLOTA
Françoise?! …
FRANÇOISE (Em francês)
O Manuel tem-me falado muito de si;
GAMA
Está a dizer que este senhor lhe tem falado muito de ti;
FRANÇOISE
Queria saber se estava bem …
GAMA traduz ..
FRANÇOISE
e vezes sem conta repetia que enquanto não soubesse o que lhe tinha acontecido …
GAMA traduz
FRANÇOISE
não poderia nunca ter paz e ser feliz …
GAMA traduz
FRANÇOISE
Acabei por compreender e aceitar, mas a princípio, confesso que senti ciumes!
GAMA traduz
MANUEL
Tudo está bem … quando tudo acaba bem.
A Françoise é minha noiva … e tu, noiva do Senhor.
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CARLOTA
Sim … está tudo bem …Temos de Lhe agradecer … tanta felicidade …
Manuel e Noiva saiem. Carlota entrega a carta à Irmã Gama e também sai.
Entra Augusto.
AUGUSTO
Peço desculpa por vir interromper.
GAMA
Se me interrompeu … foi porque Deus assim o quiz …
AUGUSTO
Deus escreve direito por linhas tortas.
GAMA
E eu também já não canto como cantava!
AUGUSTO
Ainda tem uma voz muito bonita …
GAMA
… Mas com pouca projecção! … Quando era jovem, sempre que cantava na igreja do
Mosteiro dos Jerónimos, ouvia-se na Basílica da Estrela!
Deve ser … o tal menino Augusto … e está aqui para visitar a irmã Carlota.
AUGUSTO
Como é que adivinhou?! …
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GAMA
Porque Deus, através da Carlota, confiou-me a missão de entregar esta carta a um tal
… menino Augusto; e naturalmente, ao encarregar-me desta tarefa, eu sabia que o
menino haveria de chegar, mais tarde ou mais cedo …
AUGUSTO
Não vim mais cedo porque … quiz dar-lhe tempo para pensar …
GAMA
Se Deus o levou a proceder assim … posso garantir-lhe que chegou na altura certa!
Ouve-se um grito e um corpo a cair na água.
Irmã Gama sai.
MANUEL lê a carta de Carlota …
“Menino Augusto, … eu só podia ser sua esposa no céu, onde a alma está pura das
nódoas do corpo … lá o espero, filho da minha alma; … enquanto viver, creio que verá
a minha imagem sem o estigma fatal … a terra no sepulcro é um crisol de purificação …
Agora lhe digo que o amei até morrer … e morri porque Deus não quis que os meus
olhos se afastassem do negro quadro do meu passado … as maiores desgraçadas são
aquelas que a si próprias não podem perdoar …
Adeus! … chore-me, não pelo que eu sou, mas pelo que fui …
Fui uma mulher perdida, mas Deus, deu-me o mais que podem ter mulheres como eu …
o amor do menino que eu ajudei a criar …
O seu retrato vai na minha mortalha … Adeus … Carlota.” …
Sabe-se lá, quando a sorte é boa ou má,
Sabe-se lá, amanhã o que virá
Breve desfaz-se, uma vida honrada e boa
Ninguém sabe quando nasce
P‟ró que nasce uma pessoa.
FIM.
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