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∗ Resultado dos trabalhos do Grupo de Pesquisa, 2, para o SEMINÁRIO LATINOAMERICANO DE PÓS-GRADUAÇÃO: “TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO”. 15-19 ago, 2011. São Paulo, Comissão de Pós-Graduação – FDUSP, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e COGEAE..

∗∗Grupo de Pesquisa, 2, formado pelos alunos André Norberto Carbone de Carvalho, Artur Rega Lauandos, Daniela Kalil, Fabiano Stefanoni Redondo, Fernando Fabiani Capano, Fernando Pinto Xavier Filho, Karin Pfannemüller Gomes, Marco Antonio Prado Nogueira Perroni, Natalie Dyermendjan, Renato Jaqueta Benine, Victor Henrique Grampa, do Programa de Pós-Graduação Scrito Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob a supervisão de Monica Herman S. Caggiano, Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Parte 2

TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO∗

Grupo de Pesquisa 2 - CNPq∗∗

Líder: Monica Herman S. Caggiano

Organizadora: Karin Pfannemüller Gomes

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie

n. 3, 2011

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©2011 Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: João Grandino Rodas Vice-Reitor: Hélio Nogueira da Cruz Pró-Reitor de Pós-Graduação: Vahan Agopyan Faculdade de Direito Diretor: Antonio Magalhães Gomes Filho Vice-Diretor: Paulo Borba Casella Comissão de Pós-Graduação Presidente: Monica Herman Salem Caggiano Vice-Presidente: Estêvão Mallet

Ari Possidonio Beltran Edmir Netto de Araújo Elza Antônia Pereira Cunha Boiteux Francisco Satiro de Souza Júnior Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka Luis Eduardo Schoueri Renato de Mello Jorge Silveira Serviço Especializado de Pós-Graduação Chefe Administrativo: Maria de Fátima Silva Cortinal Serviço Técnico de Imprensa Jornalista: Antonio Augusto Machado de Campos Neto Normalização Técnica CPG – Setor CAPES: Marli de Moraes Correspondência / Correspondence A correspondência deve ser enviada ao Serviço Especializado de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP / All correspondence should be sent to Serviço Especializado de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP: Largo de São Francisco, 95 CEP 01005-010 Centro – São Paulo – Brasil Fone/fax: 3107-6234 e-mail: [email protected]

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Direito da USP

Cadernos de Pós-Graduação em Direito : estudos e documentos de trabalho / Comissão de

Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011-. Mensal ISSN: 2236-4544 Publicação da Comissão de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 1. Direito 2. Interdisciplinaridade. I. Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de

Direito da USP CDU 34

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Os Cadernos de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, constitui uma publicação destinada a divulgar os trabalhos apresentados em eventos promovidos por este Programa de Pós-Graduação. Tem o objetivo de suscitar debates, promover e facilitar a cooperação e disseminação da informação jurídica entre docentes, discentes, profissionais do Direito e áreas afins.

Monica Herman Salem Caggiano

Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

Grupo de Pesquisa 2 - CNPq

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APRESENTAÇÃO

O objetivo geral dos Grupos de Pesquisas do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito

da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da

Universidade Presbiteriana Mackenzie é a análise e o fomento de debates acerca da evolução do constitucionalismo

latino-americano.

O exame busca investigar o movimento e as críticas que o atingem, principalmente no que diz respeito ao

exacerbado fortalecimento do Poder Executivo, tanto pela possibilidade de sucessivas reeleições quanto pela liberdade

de intervenção em assuntos econômicos, o que representaria uma ameaça às instituições em um sensível regime

democrático.

Os trabalhos aqui descritos fazem parte do diálogo entre estes Grupos de Pesquisa.

Monica Herman Caggiano

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SOBRE OS AUTORES

André Norberto Carbone de Carvalho. Advogado com pós-graduação "lato sensu" em Direito Público e Direito Processual Civil. Especialista em Governo e Poder Legislativo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP e mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Artur Rega Lauandos. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em São Paulo, Professor do Curso de Direito da Faculdade Carlos Drummond de Andrade, e Professor Colaborador do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Anhanguera.

Daniela Kalil. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, atua na Gerência de Contratação do Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo – SESC/SP, advogada em São Paulo.

Fabiano Stefanoni Redondo. Advogado em São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Mestrando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Fernando Fabiani Capano. Advogado em São Paulo, Coordenador Jurídico da Associação dos Policiais Militares Portadores de Deficiência Física do Estado de São Paulo - APMDFESP. Especialista em Administração de Empresas pela FGV/EAESP. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessor da Presidência do V TED da OAB/SP. Membro Efetivo da Comissão de Direito Militar da OAB/SP.

Fernando Pinto Xavier Filho. Estudante do curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Conciliador do Juizado Especial Cível – Anexo Mackenzie.

Karin Pfannemüller Gomes. Mestre em Direito Político e Econômico (2010) e Bacharel em Direito (2000), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada em São Paulo e Professora de Filosofia na FEBAT – Faculdade Evangélica Batista do Brooklin e de Direito Constitucional.

Marco Antonio Prado Nogueira Perroni. Estudante do curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Conciliador do Juizado Especial Cível – Anexo Mackenzie e estagiário jurídico do Escritório de Advocacia Justin, Pereira, Oliveira & Talamini – Sociedade de Advogados.

Monica Herman S. Caggiano. Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora Especial do Vice-Governador e do Governador do Estado de São Paulo (2003-2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1994-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do Município de São Paulo (1972-1996).

Natalie Dyermendjan. Estudante do curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Renato Jaqueta Benine. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel pela Faculdade de Direito de Bauru, mantida pela Instituição Toledo de Ensino. Professor do curso de pós-graduação em Educação Inclusiva do Instituto Superior de Educação – ISE Vera Cruz. Advogado atuante nas áreas de Relações Governamentais, Institucionais e Políticas Públicas.

Victor Henrique Grampa. Estudante do Curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, monitor das disciplinas de: Filosofia do Direito e Antropologia Social e Jurídica do Prof. Dr. Orlando Villas Bôas Filho; Sociologia do Direito com o Prof. Ms. Jarbas Geraldo de Barros Pastana; Direito das Obrigações com o Prof. Dr. Washington Carlos de Almeida e; Direito Constitucional I com a Profa. Dra. Monica Herman S. Caggiano, todos na mesma Universidade.

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SUMÁRIO

I. O PARLAMENTO DA BOLÍVIA SOB A ÉGIDE DE SUA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL .......................................................... 7 André Norberto Carbone de Carvalho

II. O PARLAMENTO MEXICANO NA CRISE LATINO AMERICANA .................................................................................................... 17 Artur Rega Lauandos

III. O PARLAMENTO BRASILEIRO SOB A CONSTITUIÇÃO DE 05 DE OUTUBRO DE 1988 ............................................................ 26 Daniela Kalil

IV. O PODER LEGISLATIVO URUGUAIO ............................................................................................................................................. 36 Fabiano Stefanoni Redondo

V. CUBA: ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO PARLAMENTAR ......................................................................................................... 46 Fernando Pinto Xavier Filho

Marco Antonio Prado Nogueira Perroni

Monica Herman Salem Caggiano

VI. O PARLAMENTO E AS CRISES NA REPÚBLICA ARGENTINA: Apontamos acerca do ferramental jurídico-constitucional do Poder Legislativo Argentino e seu comportamento nas crises das últimas décadas ..................................................................... 58 Fernando Fabiani Capano

VII. A COMPOSIÇÃO DO PARLAMENTO VENEZUELANO AO LONGO DO GOVERNO CHÁVEZ ................................................... 72 Karin Pfannemüller Gomes

VIII. O PARLAMENTO DE COSTA RICA NO CENÁRIO LATINO-AMERICANO .................................................................................. 84 Karin Pfannemüller Gomes

Natalie Deyrmendjian da Silveira

Victor Henrique Grampa

IX. MERCOSUL E SEU PARLAMENTO: DESAFIOS DA INTEGRAÇÃO REGIONAL .......................................................................... 92 Renato Jaqueta Benine

CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO: ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO ............................................... 104 Normas para Apresentação

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

I. O PARLAMENTO DA BOLÍVIA SOB A ÉGIDE DE SUA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

André Norberto Carbone de Carvalho∗

Introdução

Desde sua independência, advinda, em especial, pela vitória da resistência na famosa batalha de Junin, em 18241, liderada pelo comandante Simón Bolívar contra as forças espanholas, a Bolívia sempre enfrentou graves turbulências políticas.

No entanto, a Presidência de Evo Morales trouxe uma nova ordem constitucional, alterando substancialmente as instituições políticas da Nação, principalmente o Poder Legislativo. Abaixo, veremos como foi a chegada de Morales ao poder, quais as principais mudanças implantadas pela Constituição de 2009 e como tais alterações influenciaram o Parlamento, descrevendo o que aconteceu desde a eleição dos atuais parlamentares até os dias de hoje.

1. A ascensão de Evo Morales

Não há como falar da nova ordem constitucional boliviana sem tratar do líder popular Evo Morales. Camponês de origem indígena, Morales passou a infância em Orinoca, uma das regiões mais pobres e esquecidas do País2. Foi agricultor, padeiro, músico e jogador de futebol, quando se tornou líder sindical e referência para os camponeses da região de Cochabamba3.

A defesa da plantação de coca como forma de sobrevivência dos camponeses levou Evo Morales ao plano político. Foi eleito deputado “uninominal” pelo Departamento de Cochabamba nas eleições gerais de 1997, e, em 2002, tentou a Presidência da República, terminando o pleito em segundo lugar, com 20,94% dos votos válidos4. Após nova tentativa, em dezembro de 2005, aproveitou-se do quadro de grave instabilidade política para eleger-se Presidente com 53,74% dos votos válidos5, pelo partido que ajudou a criar, o MAS6.

Por seu caráter simbólico, a eleição de Evo, em 2005, pode ser considerada histórica: não obstante ser a Bolívia um país em que 50% da população reconhece-se como indígena e cerca de 40%,

∗Advogado com pós-graduação "lato sensu" em Direito Público e Direito Processual Civil. Especialista em Governo e Poder

Legislativo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP e mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

1VARGAS RIVAS, Gonzalo. História de las Constituciones em Bolivia. Cochabamba, 2005. p. 2. 2CASTRO, Luiz Fernando Damaceno Moura e. Nova Constituição boliviana. Conjuntura Internacional, Belo Horizonte, nov.

p. 1, 2007. 3PRESIDENCIA. Bolívia. Perfil biográfico. Disponível em: <http://www.presidencia.gob.bo/perfil.htm>. Acesso em: 28 maio

2011. 4TRIBUNAL SUPREMO ELECTORAL. Disponível em: <www.cne.org.bo>. Acesso em: 28 maio 2011. 5Id. Ibid. 6Movimiento al Socialismo.

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mestiça7, somente em 2005 um descendente dessa etnia conseguiu ascender ao poder, já que, em 1934, o indígena Francisco Tamayo, apesar de eleito presidente com 59,2% dos votos, não chegou a tomar posse devido a um golpe militar que iniciaria a fase conhecida como Socialismo Militar8.

2. A Assembleia Constituinte e a nova ordem constitucional

O projeto político de Morales que o levou à vitória foi baseado, principalmente, na busca da redistribuição de renda, da reforma agrária e da nacionalização de hidrocarbonetos, compostos químicos responsáveis pela produção de uma grande variedade de produtos, tais como o plástico, a borracha e combustíveis, dentre outros. No entanto uma das promessas de campanha que mais repercutiu foi a de trabalhar, junto ao Congresso, para a aprovação da lei convocatória da Assembleia Constituinte, destinada à confecção de uma nova constituição nacional.

Tal promessa de campanha refletia o desejo do povo boliviano de mudança da Constituição. A demanda por uma Assembleia Constituinte não era nova, e havia aparecido com força no final dos anos 80, como reação ao ambiente criado pela polêmica eleição presidencial de 1989, que consagrou Jaime Paz Zamora, o terceiro colocado na disputa, com apenas 19% dos votos9. Conforme o sistema eleitoral vigente, competia ao Congresso a escolha do Presidente, entre os mais votados.

Uma vez eleito, Morales foi hábil e conseguiu negociar com a oposição a aprovação da lei convocatória. Durante os meses de maio e junho de 2006, ocorreria a campanha para a eleição dos constituintes; em agosto de 2006, com os eleitos, a Assembleia seria instalada. A força do Presidente refletiu o resultado final do escrutínio: das 255 cadeiras, o MAS conseguiu 137, ou 53,72% das vagas. Embora o resultado não tivesse assegurado ao partido do Presidente a maioria qualificada de dois terços dos representantes, o que garantiria a aprovação de uma nova Constituição sem obstáculos, o pleito serviu para reafirmar o crescimento de Morales.

Apesar de o período que se sucedeu ter sido marcado por conflitos frequentes e de intensidades variadas, a nova Constituição Política do Estado boliviano foi aprovada pela Assembleia Constituinte em dezembro de 2007. Em meio à tensa situação política, Morales propôs uma tática arriscada: a aprovação de uma lei que o submetesse a um referendo revogatório, uma espécie de recall, onde o mandato de um político poderia ser revogado por consulta popular.

A Lei nº 3.850 foi aprovada pelo Congresso e sancionada em 12 de maio de 2008. Segundo a lei, os bolivianos iriam às urnas para responder a uma simples pergunta: “Você está de acordo com a continuidade do processo de mudança liderado pelo Presidente Evo Morales e pelo Vice-presidente Álvaro Garcia Linera?”.

7CUNHA FILHO, C. M. Reforma, reação e mobilização social na Bolívia de Evo Morales. In: PARENTE, F. J. C.; FROTA, F. H.; LIMA, H. Ferreira (Orgs.). Dos Andes aos Pampas: inclusão e cenários na América Latina. Fortaleza: Eduece, 2010. p. 95.

8Id. Evo Morales e os horizontes da hegemonia: nacional-popular e Indigenismo na Bolívia em perspectiva comparada. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2009. p. 18. Disponível em: <http://uerj.academia.edu/CunhaFilho/Papers/165755/Evo_Morales_e_os_Horizontes_da_Hegemonia_Nacional-popular_e_Indigenismo_na_Bolivia_em_perspectiva_comparada>.

9FRANCHINI, Matías. Asamblea constituyente en Bolivia: génesis, evolución y conflicto en el cambio. Documentos, Centro para la apertura y el desarrollo de América Latina – CADAL, año 5, n. 74, p. 3, jun. 2007.

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No dia 10 de agosto de 2008, mais de 2 milhões de bolivianos (67,41% dos votos) disseram “Sim” e autorizaram o governo Morales a terminar seu mandato. Assim, com a popularidade em alta, o Presidente conseguiu dar andamento ao projeto da nova Constituição: com algumas alterações feitas pelo Congresso, a Lei Maior foi levada à votação popular, sendo ratificada, em janeiro de 2009, e promulgada por Morales em fevereiro daquele mesmo ano.

3. Características gerais da Lei Maior de 2009

A nova Constituição redefiniu os conceitos de Estado e de cidadania, a partir de uma lógica plurinacional, multicultural e comunitária (artigo 1º da Constituição Política do Estado – CPE/2009). Uma de suas grandes virtudes foi combinar o desenvolvimento dos direitos, deveres e garantias com as demandas indígenas, formando um novo marco legal e institucional10. O termo “plurinacional”, aliás, está relacionado com a pré-existência colonial das nações indígenas originárias, reconhecidas como a matriz populacional do povo boliviano (artigo 2º, CPE/2009).

A caracterização do Estado como unitário social de direito plurinacional foi uma inovação, sugerindo aplicação bem mais ampla do que previa a antiga Constituição. O documento, aliás, é classificado como a “Constituição de Transição”, em virtude da retomada do federalismo, modelo renunciado depois da chamada “Guerra Federal”, realizada no final do século XIX e início do século XX, quando prevaleceu o unitarismo. Sendo assim, a descentralização politico-administrativa e a criação do sistema de autonomias tornaram-se medidas inovadoras da nova ordem constitucional.

Entre as garantias jurisdicionais, há a previsão das “ações de defesa”, nas quais se encontram a “ação de liberdade11”, a “ação de amparo constitucional12”, a “ação de proteção de privacidade13”, a “ação de inconstitucionalidade14”, a “ação de cumprimento15” e a “ação popular16”. Em comparação com o período anterior, atualmente há um constitucionalismo bem mais evoluído.

10PRADA ALCOREZA, Raúl. Análisis de la nueva Constitución política del Estado. Centro de Estudios Políticos para las Relaciones Internacionales y el Desarrollo (CEPRID), mar. 2009. Territórios/Latinoamérica, p. 1.

11Artículo 125. Toda persona que considere que su vida está en peligro, que es ilegalmente perseguida, o que es indebidamente procesada o privada de libertad personal, podrá interponer Acción de Libertad y acudir, de manera oral o escrita, por sí o por cualquiera a su nombre y sin ninguna formalidad procesal, ante cualquier juez o tribunal competente en materia penal, y solicitará que se guarde tutela a su vida, cese La persecución indebida, se restablezcan las formalidades legales o se restituya su derecho a la libertad. Constituição Política do Estado.

12Artículo 128. La Acción de Amparo Constitucional tendrá lugar contra actos u omisiones ilegales o indebidos de los servidores públicos, o de persona individual o colectiva, que restrinjan, supriman o amenacen restringir o suprimir los derechos reconocidos por La Constitución y la ley. Constituição Política do Estado.

13Artículo 130. I. Toda persona individual o colectiva que crea estar indebida o ilegalmente impedida de conocer, objetar u obtener la eliminación o rectificación de los datos registrados por cualquier medio físico, electrónico, magnético o informático, en archivos o bancos de datos públicos o privados, o que afecten a su derecho fundamental a la intimidad y privacidad personal o familiar, o a su propia imagen, honra y reputación, podrá interponer la Acción de Protección de Privacidad. Constituição Política do Estado.

14Artículo 132. Toda persona individual o colectiva afectada por una norma jurídica contraria a la Constitución tendrá derecho a presentar la Acción de Inconstitucionalidad, de acuerdo con los procedimientos establecidos por la ley. Constituição Política do Estado.

15Artículo 134. I. La Acción de Cumplimiento procederá en caso de incumplimiento de disposiciones constitucionales o de la ley por parte de servidores públicos, con el objeto de garantizar la ejecución de la norma omitida. Constituição Política do Estado.

16Artículo 135. La Acción Popular procederá contra todo acto u omisión de las autoridades o de personas individuales o colectivas que violen o amenacen con violar derechos e intereses colectivos, relacionados con el patrimonio, el espacio, la seguridad y salubridad pública, el medio ambiente y otros de similar naturaleza reconocidos por esta Constitución. Constituição Política do Estado.

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A Lei Maior, de 2009, também apresenta como característica a criação de um Estado interventor e protetor dos recursos naturais, inclusive com a incorporação de formas e práticas de povos nativos. Nessa linha, a norma altera substancialmente o poder entre as elites tradicionais e a maioria da população17. Os recursos naturais passaram a ser estatizados18, fator que diminuiu o poder político das regiões do leste, onde se concentrava a oposição.

Um ponto que gerou grande discussão entre os opositores, e até mesmo com os líderes internacionais, foi a questão da cláusula que permitia a reeleição ilimitada do presidente. No entanto a redação final da nova Constituição não conteve tal ressalva, estipulando, apenas, que o mandato do presidente passaria a ser de 5 (cinco) anos, podendo ele ser reeleito apenas uma vez de maneira contínua19.

4. O sistema eleitoral parlamentar na Constituição de 2009

A Constituição Política do Estado nasceu tendo como principal finalidade superar uma série de falhas estruturais da Nação, herdadas desde a fundação da República: um País marcado por enormes desigualdades sociais, que tem excluído do contexto social, político, econômico e cultural os camponeses indígenas, mulheres e jovens, dotado de uma gestão centralizadora, burocrática e, muitas vezes, corrupta, que tem marginalizado o desenvolvimento de 80% da Nação e cuja economia é dependente e monoexportadora de matérias-primas20.

Conforme dito anteriormente, a Lei Maior entrou em vigor em fevereiro de 2009, a partir de sua promulgação pelo Presidente Evo Morales. Já em dezembro do mesmo ano, o País estabeleceu um novo marco em sua história democrática: a eleição do primeiro Congresso Nacional da nova ordem constitucional, que passaria a denominar-se Assembleia Legislativa Plurinacional – ALP, composta por duas Câmaras: a dos Deputados e a dos Senadores.

A Constituição prevê que a Câmara dos Deputados terá 130 (cento e trinta) membros (artigo 146, I, da CPE/2009) e a Câmara de Senadores, 36 (trinta e seis), sendo quatro Senadores eleitos para cada um dos nove Departamentos (unidades de descentralização de poder equivalente ao nosso Estado-membro), todos através de votação universal, direta e secreta (146, III, da CPE/2009).

A eleição para a Câmara dos Deputados é complexa e, segundo a Lei Maior da República, respeitará a utilização de um sistema misto: a metade será eleita por simples maioria de votos, chamados de deputados “uninominais” e a outra metade pelo processo de votação proporcional, sendo conhecidos

17CASTRO, Luiz Fernando Damaceno Moura e. op. cit., p. 2, Citação de Javier Alberto Vadell. 18Artículo 349. I. Los recursos naturales son de propiedad y dominio directo, indivisible e imprescriptible del pueblo boliviano, y corresponderá al Estado su administración en función del interés colectivo. Artículo 360. El Estado definirá la política de hidrocarburos, promoverá su desarrollo integral, sustentable y equitativo, y garantizará la soberanía energética. Constituição Política do Estado.

19Artículo 168. El periodo de mandato de la Presidenta o del Presidente y de La Vicepresidenta o del Vicepresidente del Estado es de cinco años, y pueden ser reelectas o reelectos por una sola vez de manera continua. Constituição Política do Estado.

20YAKSIC, Fabián II. Asamblea Legislativa Plurinacional: desafíos, organización, atribuciones y agenda legislativa. La Paz, Bolívia: Muela del Diablo Editores, 2010. p. 18.

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como deputados “plurinominais” (artigo 146, II, da CPE/2009). Cada Departamento terá, na Casa, um número de assentos com base no número de seus habitantes.

É importante ressaltar que uma leitura desatenta do texto constitucional21 poderia levar o leitor a crer que, de fato, existem 65 deputados “uninominais” e 65 “plurinominais”, perfazendo o total de 130. No entanto, ao analisar os demais dispositivos, vemos que não é essa a interpretação correta da norma.

Isso porque a Constituição estipula ainda que algumas regiões do País não terão deputados “uninominais”, mas sim deputados chamados “especiais”, que, por motivos históricos, são destinados a representar uma parcela da população específica, qual seja, os índios. Em outras palavras, a Constituição de 2009 garante representação parlamentar especial à população indígena. No Brasil, esse tipo de representação boliviana já foi chamado de quota étnica22.

Ademais, na impossibilidade de divisão exata dos assentos “uninominais” e “plurinominais” dentro de cada Departamento (o número de assentos reservados para essas classes pode ser ímpar), dar-se-á preferência à vaga para deputados “uninominais”.

Assim, conforme dispõem os artigos 33 e 35 da Lei n° 4.021, de 14 de abril de 2009 (Lei Eleitoral Transitória – LET), editada especialmente para regular o processo eleitoral do pleito de dezembro, para a eleição dos deputados “uninominais” e dos deputados “especiais”, todo o território boliviano foi dividido em 77 (setenta e sete) circunscrições ou distritos.

Respaldada, posteriormente, pela Corte Nacional Eleitoral do País, a Lei Eleitoral Transitória (artigo 32) destinou 70 (setenta) distritos que elegeriam - cada um - por simples maioria de votos, um deputado “uninominal”, podendo o eleitor votar diretamente na pessoa do candidato. Os distritos, aqui, foram criados segundo critérios geográficos, com base na extensão territorial e no número de habitantes, conforme o último censo nacional, sem transcender os limites de cada Departamento. O País, então, contaria com 70 deputados “uninominais”.

Os outros 7 (sete) distritos foram considerados como circunscrições especiais, por se tratarem de área rural, onde a população indígena constitui uma minoria populacional. Aqui, diversamente do que foi utilizado com os distritos “uninominais”, a densidade populacional não foi utilizada como critério, por expressa disposição constitucional (artigos 146, VII e 147, III, da CPE/2009). Cada Departamento da Bolívia possui um distrito especial, com exceção de Potosí e Chuquisaca. Portanto esses distritos, em vez de elegerem deputados “uninominais”, votariam em deputados “especiais”, que também seriam eleitos por maioria simples de votos (artigo 35, V, LET).

Com 77 (setenta e sete) assentos já preenchidos para a Assembleia Legislativa Plurinacional, restaram 53 (cinquenta e três) vagas, que foram reservadas para os deputados “plurinominais”.

21Artículo 146 I. La Cámara de Diputados estará conformada por 130 miembros. II. En cada Departamento, se eligen la mitad de los Diputados en circunscripciones uninominales. La otra mitad se elige en circunscripciones plurinominales departamentales, de las listas encabezadas por los candidatos a Presidente, Vicepresidente y Senadores de la República. Constituição Política do Estado.

22CUNHA FILHO, C. M. O novo mapa político boliviano: uma interpretação a partir dos últimos resultados eleitorais. Observatório Político Sul-Americano. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM. Observador On-Line, v. 5, n. 6, p. 5, jun. 2010. Disponível em: <http://uerj.academia.edu/CunhaFilho/Papers/189656/O_novo_mapa_politico_boliviano_uma_interpretacao_a_partir_dos_ultimos_resultados_eleitorais>.

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Aliás, é importante frisar que tanto os deputados “plurinominais” quanto os 36 (trinta e seis) senadores foram eleitos rigorosamente da mesma forma: o partido político formava, previamente, uma lista fechada e com ordem pré-estipulada de deputados “plurinominais” e senadores; cada voto recebido pelo candidato à Presidência da República é um voto na lista feita pelo partido; o nome dos candidatos eleitos sairia após análise da votação geral sob o critério proporcional de alocação das cadeiras feita pela regra dos divisores naturais23 (artigos 34, 38, 39 e 40, todos da LET).

Assim, em linhas gerais, o sistema funcionou da seguinte forma: ao chegar ao local de votação, o cidadão boliviano recebeu uma única cédula eleitoral, dividida horizontalmente em duas partes: superior e inferior24. Na parte superior, o eleitor encontrou os nomes dos candidatos à Presidência e Vice-presidência e, na parte inferior, encontrou os candidatos a deputados “uninominais” ou deputados “especiais”, dependendo de sua região.

Na parte superior, ao votar no Presidente de sua preferência, o eleitor, na verdade, exercia o voto cumulativo, ou seja, votava em uma chapa única, escolhendo automaticamente o Vice-presidente, os Senadores e os Deputados “plurinominais”, definidos previamente pelo partido do presidenciável, por meio de lista fechada. Por outro lado, ao votar no deputado “uninominal” ou no deputado “especial”, conforme o caso, o eleitor exercia o voto seletivo, e escolhia diretamente o próprio representante.

5. O panorama atual do parlamento boliviano

As eleições gerais de dezembro 2009 foram acompanhadas por 504 observadores do Mercosul, da União Européia e da Organização dos Estados Americanos - OEA, entre outras organizações internacionais. Além da eleição para os membros da ALP, os bolivianos ainda elegeriam o novo Presidente.

A vitória eleitoral foi obtida pela chapa que concorria à reeleição (Evo Morales – Presidente e Álvaro García – Vice-presidente, pertencentes ao partido MAS), que conseguiu 64,22% do total dos votos válidos. Tal resultado expressivo (evolução de mais de dez pontos percentuais na votação final, uma vez que, em 2005, a chapa havia obtido 53,74% dos votos válidos), principalmente por conta do sistema eleitoral já exposto, ainda contribuiu para que o MAS atingisse 114 parlamentares, entre deputados e senadores, que representam 68,67% (leia-se: pouco mais de dois terços) do total de membros da Assembléia Legislativa Plurinacional25.

A título de comparação, cumpre ressaltar que foram quatro os partidos que lograram êxito ao obter representação política no parlamento. Além do MAS, o partido PPB conseguiu 47 parlamentares, o que representa 28,31% dos membros da ALP; o partido UNIDAD NACIONAL (UM-CP) conseguiu 3

23CUNHA FILHO, C. M. O novo mapa político boliviano: uma interpretação a partir dos últimos resultados eleitorais, cit., p. 5. 24ARTÍCULO 37 (Papeleta de Sufragio). La papeleta de sufragio para la elección de Presidenta o Presidente y Vicepresidenta o Vicepresidente, Senadoras o Senadores y Diputadas o Diputados estará dividida en dos franjas horizontales. En la franja superior se votará por las o los candidatas y candidatos a la Presidencia, Vicepresidencia, Senadores y Diputados Plurinominales, y en la franja inferior se votará por los candidatos a diputados de la circunscripción uninominal o de la circunscripción especial indígena originaria campesina, según corresponda. Lei Eleitoral Transitória.

25YAKSIC, Fabián II. op. cit., p. 22.

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parlamentares, representando 1,8% do total; e o ALIANZA SOCIAL (AS) atingiu 2 parlamentares, que representam os restantes 1,2% do total de membros da Assembléia Legislativa Plurinacional.

A vitória do MAS na eleição para a ALP desenhou uma nova estrutura política de governo. Isso porque, como se sabe, a nova Constituição exige da Assembleia Legislativa Plurinacional quórum especial de dois terços, ou 111 parlamentares, para votação de matérias importantes. São os casos, por exemplo, da eleição de seis membros do Órgão Eleitoral Plurinacional (artigo 158, item 4, da Constituição Política do Estado – CPE/2009) e a pré-seleção dos postulantes ao cargo de magistrado do Supremo Tribunal de Justiça boliviano, que são eleitos por sufrágio universal (artigo 182, inciso II, da Constituição Política do Estado – CPE/2009). Como se viu, o MAS superou, em três, esse número de parlamentares.

Ademais, cada uma das Câmaras contém previsões específicas acerca do quórum qualificado. Na Câmara dos Deputados, exige-se decisão de dois terços dos membros presentes (mínimo de 87 parlamentares) para aplicarem, conforme estipulado em regimento, sanções aos próprios deputados (artigo 159, item 4, da CPE/2009). Só o MAS tem 88; já na Câmara de Senadores, exige-se decisão de dois terços dos membros presentes (mínimo de 24 senadores) para aplicarem sanções aos parlamentares (artigo 160, item 4, da CPE/2009). Somente o MAS conta com 26.

Em toda a história das eleições, pelo menos desde a restauração da democracia, em 1982, época marcada pela continuidade ininterrupta de governos democráticos e constitucionais, o quórum de dois terços do parlamento só era alcançado por meio do que os bolivianos chamam de “democracia pactuada”, dada pela formação de megacoligações entre partidos políticos que administravam o Estado26. Hoje, o MAS não necessita de pactos no Congresso para obter o referido quórum.

6. O reflexo da Constituição de 2009 na composição da Assembleia Legislativa Plurinacional

Como vimos, o sistema constitucional vigente para escolha dos membros do Parlamento boliviano é misto. A eleição de parte da Câmara dos Deputados (“plurinominais”) e de todos os Senadores é feita por meio de lista fechada, confeccionada e pré-ordenada por dirigentes partidários, atrelada ao voto presidencial.

Percebe-se, então, que a maioria esmagadora que detém o partido do Presidente Evo Morales na ALP também é fruto da adoção desse determinado sistema eleitoral; ao votar somente na figura do Presidente, vota-se, automaticamente, em quatro senadores e em um número de deputados “plurinominais” que varia de um a treze, dependendo do Departamento a que o eleitor pertença, todos de um mesmo partido.

Não foi à toa que, em seu primeiro ano de trabalho, a Câmara dos Deputados se reuniu em 216 sessões; a dos Senadores, 213; e houve 20 sessões legislativas da Assembleia Legislativa Plurinacional, um verdadeiro marco histórico para os padrões do País27. Um grande número de leis foi aprovado nesse período.

26YAKSIC, Fabián II. op. cit., p. 23. 27PRENSA SENADO. Senador Adolfo Mendonza Leigue. Disponível em:

<http://adolfomendozasenador.blogspot.com/2010/12/asamblea-legislativa-cierra-la-gestion.html>. Acesso em: 28 maio 2011.

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Nunca é demais lembrar, todavia, que, conforme dito anteriormente, a Constituição Política do Estado boliviano dispõe que deputados e senadores são eleitos por meio de votação universal, direta e secreta. Nesse ponto, vale notar que a qualificação de “direta” prende-se mais ao sufrágio do que ao voto em si. O direito de escolha (sufrágio) é que pode ser direto ou indireto, caracterizando as eleições como diretas ou indiretas. Dessa forma o sufrágio (ou voto) é direto quando os eleitores escolhem, por si, sem intermediários, os seus representantes e governantes, sendo indireto, portanto, quando estes são escolhidos por delegados dos eleitores28.

O artigo 5º da Lei Eleitoral Transitória, entretanto, explica que o voto no País é direto por duas razões: primeiro, porque o cidadão intervém pessoalmente na eleição, votando nos candidatos de sua preferência29; segundo, porque tem a prerrogativa de tomar decisões diretas quando da abertura de consulta mediante referendo.

Ora, vemos aqui uma ligeira incongruência. O sistema do voto em lista fechada é conhecido notoriamente como um modelo que retira do eleitor o direito de escolher diretamente um candidato, substituindo-o pelo voto em um projeto político de uma organização impessoal e intangível30. No caso da eleição dos senadores bolivianos, por exemplo, não há opção de se votar no candidato de sua preferência. Vota-se em uma candidatura atrelada à figura do candidato à Presidência, não em um candidato próprio.

Assim, percebe-se que, pelo sistema eleitoral adotado, o eleitor tem, na eleição, o direito de intervenção mitigado. Ele não é livre para escolher o candidato de sua preferência para cada uma das vagas abertas. Para que se possa votar plenamente nos candidatos de sua preferência, entende-se que o eleitor, ao escolher aquele que irá representá-lo perante as instituições de poder, deve poder votar diretamente em tantos candidatos quantas forem as vagas em disputa, sendo eleitos, então, os mais votados.

Por conta da possibilidade, no Brasil, de reforma política sempre iminente, há discussões efusivas sobre a questão da adoção do voto proporcional em lista fechada, pelo fato de possível violação do artigo 14 da Constituição Federal, que estabelece que a soberania nacional é exercida pelo sufrágio universal por meio do voto direto e secreto, com igual valor para todos. Tudo isso para afirmar que, na Bolívia, no entanto, mesmo com disposição constitucional tal qual a brasileira, o referido sistema de lista tem prevalecido.

Assim, conclui-se que a relevância do sistema eleitoral é enorme. Isso porque, hoje, a obtenção da maioria parlamentar tornou-se uma condição fundamental para a governabilidade do presidencialismo. Na democracia, de fato governa a maioria, porém, ao exercer esse mister, ela não pode oprimir a minoria. Esta exerce função política importante e decisiva, qual seja: a oposição institucional.

28SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2000. p. 363. 29Artículo 5 (Del Sufragio y Escrutinio). El sufragio constituye la base Del régimen democrático, participativo, representativo y comunitario, se lo ejerce a partir de los 18 años cumplidos. Sus principios son: a. El voto igual, universal, directo, individual, secreto, libre y obligatorio. (...) Directo, porque el ciudadano interviene personalmente en la elección y vota por los candidatos de su preferencia; y toma decisiones en las consultas mediante referéndum; Lei Eleitoral Transitória – LET.

30SEPULCRI, Nayara Tataren. A reforma política e a votação por lista fechada. Revista Eletrônica Paraná Eleitoral, 10 maio 2008, p. 1. Disponível em: <http://www.paranaeleitoral.gov.br/artigo_eletronico.php?cod_texto=37>.

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Talvez esse seja o primeiro grande desafio do novo Congresso boliviano: a administração responsável desse patrimônio legislativo. O novo arranjo eleitoral, pós-2009, vem permitindo a um bloco majoritário, composto pelo Poder Executivo e pela maioria parlamentar, o governo do País praticamente sem oposição.

A esmagadora maioria partidária gera aos líderes do MAS a responsabilidade de incentivar a deliberação democrática dentro da bancada, trazendo os cidadãos para a discussão e elaboração dos projetos de lei necessários ao desenvolvimento do Estado. Nessa linha, a consulta a outros partidos, ouvindo propostas e sugerindo soluções advindas da minoria, é essencial para a plena integração do parlamento com a sociedade31.

Só há verdadeira democracia onde se assegure a atuação das minorias, com garantia de direito de dissensão, crítica e veiculação de sua pregação. O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Deve ter a liberdade de criticar, fiscalizar, apontar falhas, censurar a maioria e propor um modelo diverso para a opinião pública32. Em um sistema eleitoral que tende a favorecer a maioria, tais disposições são ainda mais importantes.

Conclusão

Não há dúvida de que a Bolívia passa por um momento delicado de sua história. Avanços foram feitos, e o País, pela primeira vez na história, está sob a égide de uma Constituição Política aprovada por voto democrático dos cidadãos. Tudo isso graças à aquiescência realizada por meio do famoso referendo de 25 de janeiro de 2009.

Após uma série de crises políticas, a Nação vem experimentando, desde o resultado do referendo revogatório, em 2008, certa estabilidade política, principalmente pela força do Presidente Evo Morales, que, através de sua popularidade e de um sistema eleitoral controverso, pôde criar maioria absoluta e qualificada no Parlamento Nacional boliviano.

No entanto, para que haja desenvolvimento democrático, isso só não basta. A maioria tem a responsabilidade de incentivar a discussão e a consulta a outros partidos, ouvindo propostas e sugerindo soluções conjuntas, de modo a criar um Parlamento verdadeiramente isento e responsável.

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31YAKSIC, Fabián II. op. cit., p. 23. 32ATALIBA, Geraldo. Judiciário e minorias. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 96, p. 189-194, 1977.

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II. O PARLAMENTO MEXICANO NA CRISE LATINO AMERICANA

Artur Rega Lauandos∗

Introdução

Um dos notáveis sintomas de fragilidade dos regimes democráticos nas sociedades modernas é a atual crise enfrentada pelo Poder Legislativo mundo afora. Após um período de grande prestígio no século XVIII, na Europa, sob inspiração dos ideais iluministas, o Parlamento, ambiente máximo da representatividade política do povo, passou a enfrentar uma fase de sensível declínio político.

Muitas de suas funções clássicas sofreram certo esvaziamento diante da força normativa do Poder Executivo, que, por ser mais ágil e dinâmico no acompanhamento das transformações sociais, passou a ser grande o pólo de poder político, a partir do século XX. De fato, tradicionais obstáculos à representação política, como a multiplicidade de mandatários (que leva à pluralidade, por vezes inconciliável, de tendências ideológicas, aspirações e interesses), fizeram com que fundamentais reformas políticas estruturantes ficassem em segundo plano.

Nesse contexto tormentoso de afirmação, os Parlamentos latino-americanos, instituições muitas vezes não maduras nas incipientes democracias da região têm, ainda, de lidar com uma mazela endêmica que realça os empecilhos à realização plena da representação política e leva à desconfiança (quando não à descrença) das instituições políticas: a corrupção.

Esse fenômeno, que causa sensíveis ruídos no canal de comunicação de via dupla entre mandatários e mandantes do poder político – aliado a um constante processo de fragilização da oposição e à utilização de instituições públicas como afirmação da hegemonia de um grupo político – tornou-se um dos principais motivos que levaram o Parlamento Mexicano a figurar como uma instituição de descrédito de seu povo.

É nesse panorama, eminentemente político, que se analisam não só as funções institucionais do Parlamento no México, após o período atribulado da transição do presidencialismo hegemônico para a democracia pluralista, mas também os principais desafios por que deve passar tal instituição, para que retome o prestígio experimentado pelo Poder Legislativo à época do liberalismo, funcionando como veículo efetivo de ressonância das aspirações populares e de reflexões e debates sobre o ideal democrático.

∗Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em São Paulo, Professor do Curso

de Direito da Faculdade Carlos Drummond de Andrade, e Professor Colaborador do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Anhanguera.

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1. Da crise dos parlamentos latino-americanos

1.1. Da desconfiança nas instituições democráticas na América Latina

É certo que o paulatino declínio político do Poder Legislativo, a partir do século XX, não é uma característica exclusiva do cenário político das democracias latino-americanas. Desde o implemento do Estado de Bem-Estar Social, há uma demanda por prestações materiais, cujo planejamento tem sido concebido pelo Poder Executivo, restando ao Poder Legislativo um papel de figurante, diante de seus instrumentos de funcionamento arcaicos.1

E, paradoxalmente, pelo fato de tal modelo Estatal não ter conseguido atingir seus objetivos de equiparação material entre os indivíduos, criou-se um obstáculo à afirmação de cidadãos convictos e conscientes para a escolha de seus representantes, sem sucumbir às influências de dominações patrimonialistas ou do poder econômico.2 Tal situação resultou em um sensível desinteresse da população sobre questões políticas, bem como em desconfiança da população nos atores políticos, vistos como defensores de privilégios ou interesses pessoais, ou muitas vezes flagrados em práticas de corrupção.

Tal situação de descrédito é sensivelmente mais preocupante nos países da América Latina, região que, muito embora tenha apresentado importantes resultados na consagração de seus ideais democráticos, foi palco de vários golpes de estado e rupturas institucionais a partir da segunda metade do século XXI.3

Timothy J. Power e Giselle D. Damison4, pesquisadores da Florida International University, examinando as causas e conseqüências da desconfiança nos políticos nas democracias latino-americanas, a partir de dados de 1996 a 2003 do Latinobarometro,5 verificaram, por exemplo, que taxa agregada de confiança no Parlamento, nos países pesquisados, atingiu o nível preocupante de 17%.6

1Segundo a lição de Jorge Carpizo e Jorge Madrazo (op. cit., p. 64): “Las características de la vida moderna han propiciado el desarrollo de una tendencia prácticamente universal que se manifiesta en el predominio del poder ejecutivo sobre los otros poderes u órganos del gobierno”.

2Sobre tal reflexão, Ingo Wolfgang Sarlet (Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 1999. p. 135) aponta que a crise das instituições representativas dos Estados modernos está intrinsecamente ligada a uma crise também dos direitos fundamentais.

3A despeito de haver uma tendência mundial de desconfiança nos políticos e nas instituições, detectada a partir da década de 1960, incluindo democracias consolidadas, as democracias em consolidação estão sensivelmente mais vulneráveis ao fenômeno, que pode culminar em um colapso de confiança pública. Sobre o tema refletem Timothy J. Power e Giselle D. Damison (Desconfiança política na América Latina. Tradução: Pedro Maia Soares. Opinião Pública, Campinas, v. 1, n. 1, p. 65, mar. 2005) e, levando em conta o fator da corrupção, Paul Heywood (Political corruption: problems and perspectives. In: HEYWOOD, Paul (Org.). Political corruption. Oxford (UK): Blackweel Publishers, 1997. p. 5).

4POWER, Timothy J; DAMISON, Giselle D. op. cit., p. 70-73. 5LATINOBARÓMETRO. Disponível em: <http://www.latinobarometro.org/latino/latinobarometro.jsp>, apresenta relatórios

anuais de entrevistas realizadas em 16 repúblicas latino-americanas, apresentando resultados de opinião pública dos cidadãos sobre diversos assuntos, incluindo confiança política.

6Os dados atualizados do Latinobarometro sobre a confiança no Parlamento, tomando-se os relatórios de todos os países pesquisados, desde 1995 até 2009, são os seguintes: muita confiança (6,8%); alguma confiança (23,8%); pouca confiança (35,7%); nenhuma confiança (33,8%). LATINOBARÓMETRO. Disponível em: <http://www.latinobarometro.org/latino/LATAnalizeQuestion.jsp>.

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Os referidos autores apresentam algumas possíveis causas desse índice, destacando-se entre elas: o fraco desempenho econômico (verificado desde as transições de regimes autoritários para os regimes democráticos a partir da década de 80) que teria levado à descrença nas instituições políticas em tais países. Dessa feita, supor-se-ia que os cidadãos, associariam, de forma imediata, más condições sociais e econômicas ao funcionamento das instituições democráticas.

De fato, muitos eleitores puniram os governantes de modo tão forte que sistemas partidários inteiros entraram em colapso (como, por exemplo, ocorreu na Venezuela e Peru). Dessa feita, as percepções subjetivas do desempenho econômico estariam claramente ligadas à confiança nos partidos políticos e no Congresso.7

Outra possível causa a ser apontada seria a utilização de instituições políticas como meio de benefício político individual, sendo a modificação de regras eleitorais o instrumento mais comum para veicular tais práticas de interesse pessoal em detrimento do interesse coletivo. Segundo Power e Damison (2005, p. 82), a percepção da população de que o governo é, via de regra, exercido em interesse de alguns poucos, levaria ao olvido das demais causas do ceticismo dos cidadãos frente às questões e instituições políticas.8

Como conseqüência quase intuitiva do descrédito dos políticos, haveria a descrença no próprio funcionamento do sistema democrático (atingindo-se, essencialmente o Parlamento, casa máxima da expressão da representatividade), em razão dos altos índices de avaliação da dispensabilidade dos políticos.9 E tal situação, não se deve esquecer, é propícia ao advento de regimes tirânicos e de rupturas institucionais.10

1.2. Dos desdobramentos da corrupção sobre a representatividade política

Sem descuidar das causas já apontadas da desconfiança nos políticos e nas instituições nas democracias latino-americanas, é mister que se pondere com muito cuidado sobre um fator de grande relevo no tocante às questões políticas. Referimo-nos ao fenômeno da corrupção, que, como já advertido por diversos pesquisadores de grande quilate,11 pode ter efeitos corrosivos sobre o funcionamento das democracias.

7POWER, Timothy J; DAMISON, Giselle D. op. cit., p. 76. 8Refletem Power e Damison (op. cit., p. 82): “Na medida em que percebem oligarquias, os latino-americanos tendem a

culpar os atores políticos, em vez de econômicos, por esse estado de coisas... Quando a oligarquia é percebida em termos de instituições políticas, em vez de econômicas, as autoridades eleitas têm uma obrigação especial de não tomar medidas que reforcem ou exacerbem essa visão cética”.

9Nesse ponto, por óbvio, adota-se a premissa da inafastabilidade dos partidos políticos para a veiculação da vontade popular por meio da representação, consagrada na doutrina da democracia procedimentalista defendida por inúmeros autores mundo afora, destacando-se, entre eles, Samuel P. Huntington (1975) e Norberto Bobbio (1984).

10Com bem ponderam Power e Damison (op. cit., p. 85): “Se não há confiança nos políticos, considerados dispensáveis, então para quem – se é que para alguém – os cidadãos transferem suas lealdades? Há alguns indícios de que um clima de desencanto disseminado com a democracia abre espaço para o retorno ao poder de ex-ditadores, como ocorreu na Bolívia, ou para a ascensão ao poder de golpistas fracassados (Venezuela, Equador)”.

11Citam-se, entre eles, Paul Heywood (op. cit.), John Girling (Corruption, capitalism and democracy. New York: Routtdege, 1997), Donatella Della Porta e Alberto Vannucci (The perverse effects of political corruption. In: HEYWOOD, Paul (Org.). Political corruption. Oxford (UK): Blackweel Publishers, 1997).

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É certo que, diante do modo hodierno com que se trata o fenômeno da corrupção nas sociedades modernas, ou seja, pela divulgação espetaculosa do que se denominam escândalos de desvios éticos, muitas vezes não se tem debruçado sobre as reais causas do fenômeno ou os seus efetivos impactos na democracia, no desenvolvimento das instituições e mesmo no desempenho econômico. Como aponta John Girling12, pesquisador da Universidade Nacional da Austrália, a distância entre a percepção (e efetiva compreensão da corrupção) e o simbolismo de sua denúncia pontual pode ser grande.

Contudo, o fato é que os efeitos da corrupção nos sistemas democráticos são visíveis e preocupantes, gerando sérios desgastes às suas instituições mais caras. Como bem lembra Paul Heywood,13 é legítima tal preocupação, pois, paulatinamente, adquire-se a consciência de que, em razão do fenômeno da corrupção, os princípios democráticos podem perder sua força regulatória sobre Governos e sobre as condutas individuais dos cidadãos, minando os alicerces básicos da democracia.14

A corrupção leva, em última análise, a uma deturpação do código democrático, que deveria ser seguido pelos componentes do sistema político, gerando, além de privilégios de interesses advindos de outros sistemas sobre o interesse público, também a própria desarticulação do sistema político, podendo colocar em risco a forma de organização e de governo.15

Especificamente sobre a representação política, a corrupção manifesta seus efeitos mais nefastos. Uma conseqüência, de certa forma intuitiva, é a perda da confiança do povo nos seus representantes e, conseqüentemente, a própria mitigação da credibilidade das instituições democráticas como um todo junto à opinião pública.

Minando a confiança política nas instituições representativas, especialmente nos Parlamentos, a corrupção pode levar ao desequilíbrio entre os Poderes. Não raro, o Poder Executivo passa a exercer cada vez mais influência sobre parlamentares cooptados por suborno, levando a um esvaziamento das funções legislativa e, principalmente, fiscalizatória. Funções como a eletiva também passam a ser deturpadas, de modo que as eleições (ou as chamadas “sabatinas” de nomeações) para funções públicas relevantes realizadas pelo Parlamento acabam tornando-se desvirtuadas como meros procedimentos simbólicos ou mesmo moedas de troca política entre Legislativo e Executivo.

Por fim, não se deve esquecer que a corrupção eleitoral desequilibra o jogo competitivo do pleito, contaminando a própria legitimidade política do mandato parlamentar, como se têm visto nas últimas eleições brasileiras, por exemplo.

12GIRLING, John. op. cit., p. 12. 13HEYWOOD Paul. op. cit., p. 5. 14Advertem Power e Damison (op. cit., p. 78) que a percepção da corrupção pela população, seja ou não amplificada pela

mídia, resulta em um desgaste imediato da democracia, paradoxalmente gerado pela maior transparência desse sistema, vez que a mídia, em regra livre, está apta a noticiar os casos que envolvem o fenômeno: “Tendo em vista que uma imprensa em larga medida livre é uma das realizações mais notáveis da democracia na maioria dos países latino-americanos, é possível que a corrupção não tenha aumentado de fato na região, mas que as pessoas simplesmente estejam agora mais bem informadas sobre isto. Se essa ‘hipótese da mídia’ é verdade, então, em certa medida, a democracia está desgastando sua própria legitimidade.”

15Faz-se referência, nesse excerto, à concepção teórica de interação de sistemas independentes construída a partir do método sociológico formulado pelo filósofo e sociólogo alemão Niklas Luhmann. A marca de tal concepção é a existência estruturas sociais com uma lógica própria de existência e de reprodução, funcionando a partir de um código próprio que determina e legitima os procedimentos e condutas individuais.

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2. Do Parlamento mexicano

2.1. Da transição do presidencialismo hegemônico para a democracia pluralista

A história política recente mexicana foi marcada por um período de dominação de um grupo político sobre os demais, afastando tal país do panorama de pluralidade política que, de certa forma, surgiu na América Latina no início do século XX.

Tal dominação, que se consagrou chamar de presidencialismo hegemônico representou uma real ausência de alternativas políticas ao partido dominante, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que reinou absoluto na cena política mexicana desde sua criação em 1929 até 2000, ocasião em que perdeu sua primeira eleição presidencial.16

Segundo José Luis Prado Maillard,17 Professor da Universidade de Nueva León, de fato, a causa simples para a manutenção, de tantas décadas, do “presidencialismo hegemônico” foi o fato de não haver uma oposição apta a fazer frente ao poderio político do Governo e que pudesse representar uma alternativa eleitoral ao partido da situação.18

Giovanni Sartori,19 no mesmo sentido, aponta que o sistema partidário mexicano, desde a Revolução de 1910 e, em maior ou menor grau, até 2000, não se caracterizou pela competição eleitoral efetiva e pelo exercício real de oposição política, mecanismo essencial ao funcionamento da democracia. Tratou-se, segundo o autor, não de um sistema de partido predominante, mas sim de partido hegemônico.

Monica Herman Salem Caggiano20 remete-nos às lições de Robert Dahl, para ressaltar a necessidade da existência da oposição política para que haja a efetividade do jogo democrático. Para tanto, segundo o autor, seriam indispensáveis os requisitos de oportunidade de expressão política, de participação no jogo político e igualdade de manifestações políticas.21

Tais requisitos começariam ser vislumbrados no panorama político mexicano, paulatinamente, somente a partir de meados da década de 60, do século XX. Com a reforma eleitoral de 1963, foi possível

16Na verdade, o nome “Partido Revolucionário Institucional” somente foi adotado em 1946, mas o partido é considerado o herdeiro político do antigo “Partido Revolucionário Nacional”, criado em 1929 e que teve como um dos seus expoentes Plutarco Elias Calles, presidente do México entre 1924 e 1928.

17PRADO MAILLARD, José Luis. Las relaciones de los órganos del poder político en el nuevo contexto político mexicano. Criterio Jurídico, Santiago de Cali, v. 6, p. 162, 2006.

18Segundo Maillard: “Vistos los elementos esenciales de la democracia observamos que México no pertenecía a la familia de las democracias pluralistas, pues, no contaba con una oposición que pudiera realmente ostentar el poder por la vía electoral. Es decir, que el ciudadano no tenía más que una sola opción: el PRI.”

19SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília, Ed. da UnB, 1982. p. 263. 20CAGGIANO, Monica Herman Salem. Oposição na política: propostas para uma rearquitetura na democracia. São Paulo:

Angelotti, 1995. p. 166-167. 21Monica Herman Salem Caggiano (Id. Ibid., p. 166-167) apresenta os referidos requisitos nos seguintes termos: “À vista das

funções que o atual estágio de desenvolvimento lhe confere, a oposição comparece como fator indissociável das fórmulas democráticas de estruturação do poder político. Isto porque, nesse clima, marcam presença os elementos propícios a sua efetiva manifestação, fatores que, na percuciente lição de Robert Dahl, resumem-se a: 1) oportunidade para que os cidadãos expressem suas preferências políticas; 2) possibilidade de participação, por via de ação; 3) idêntico peso a todas as manifestações de vontade política.”

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a apresentação de candidaturas pelo sistema proporcional, o que coincidiu, não ocasionalmente, com o crescimento político do Partido da Ação Nacional (PAN), que justamente a partir dessa data passou a ter um desempenho eleitoral cada vez maior.

É oportuno destacar, ainda, as reformas eleitorais de 1977 e 1996 que, respectivamente, permitiram as eleições proporcionais para Estados e Municípios e impuseram limite de assentos a um grupo político no Parlamento (máximo de 300). Essas reformas foram um importante fator para que, finalmente, rompesse-se a hegemonia do PRI e para que o partido de oposição, o PAN, conseguisse a Presidência da República em 2000 e em 2006.

2.2. Das funções institucionais: representativa; legislativa; fiscalizadora; e jurisdicional

Segundo a lição de Jorge Carpizo e Jorge Madrazo,22 o Parlamento Mexicano exerce funções legislativas, executivas e jurisdicionais.23 Dentre as funções executivas, destacaremos, nesse estudo, a fiscalização, encargo fundamental para o funcionamento de qualquer democracia. Além dessas funções apontadas, está, é claro, a função representativa, cerne de qualquer casa democrática.

Muito embora haja divergência quanto ao assunto, é comum tratar da representação política como a primeira das funções clássicas de um Parlamento, cronologicamente falando. De fato, a representação política simboliza a própria essência da instituição, dando-lhe legitimidade popular e é provável que tenha sido a primeira das funções a aflorar no Conselho do Rei, órgão consultivo que deu gênese aos parlamentos modernos.24

No cenário Mexicano, adota-se o sistema bicameral, tal qual o modelo inglês e norte-americano. Atualmente, o Senado do México é composto de 128 senadores, sendo que 32 deles são eleitos pelo sistema proporcional, de listas plurinominais, tendo como base eleitoral uma só circunscrição nacional. Os outros 96 senadores são eleitos mediante um mecanismo que combina o sistema majoritário relativo25 com um sistema de representação de minoria (cada umas 32 unidades federativas elege dois senadores pela maioria relativa e um é eleito como o candidato mais votado do segundo partido com maior votação nacional). A Casa se renova, inteiramente, a cada seis anos.

22CARPIZO Jorge; MADRAZO, Jorge. Derecho constitucional. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1991. p. 85. 23Lecionam Carpizo e Madrazo (op. cit., p. 85): “La clasificación de las facultades de las Cámaras desde el punto de vista de

la naturaleza de los actos que realizan, es una manifestación del sistema de coordinación de funciones que establece nuestra Constitución. Desde esta perspectiva, las Cámaras realizan facultades legislativas formal y materialmente, y ejecutivas y jurisdiccionales materialmente”.

24Acerca da matéria, tivemos oportunidade de escrever: “Talvez não seja desmedido dizer que a representação política está para o Parlamento assim como o princípio da dignidade da pessoa humana está para os direitos fundamentais; ela é o núcleo central e intangível da instituição: uma vez extirpado, retira-se a própria razão de ser do Parlamento. Portanto, é intuitivo dizer que só existe a figura do Parlamento, se estiver florescida a função representativa” (LAUANDOS, Artur Rega. O Congresso Nacional no século XXI: os efeitos da corrupção sobre a representação política. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico)–Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010. p. 47).

25O sistema majoritário é uma técnica eleitoral de expressão da vontade popular, pela qual se indicam os representantes identificados a um grupo, o qual detém a maioria dos votos. Leciona Dalmo de Abreu Dallari, acerca desse sistema (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 191): “Por este sistema, como o próprio nome sugere, só o grupo majoritário é que elege representantes. Não importa o número de partidos, não importando também a amplitude da superioridade eleitoral. Desde que determinado grupo obtenha maioria, ainda que de um voto, conquista o cargo de governo da disputa eleitoral”.

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Já a Câmara dos Deputados é composta por 300 deputados eleitos pelo sistema majoritário relativo, a partir da votação realizada em 300 distritos eleitorais (voto distrital uninominal) e 200 deputados eleitos pelo sistema proporcional,26 adotando-se o voto distrital regional plurinominal. Essa Casa se renova, na sua totalidade, a cada três anos.

Quanto à função legislativa, o Parlamento Mexicano, tem um rol de atribuições bastante amplo. Sob a denominação de Faculdades do Congresso da União (“Facultades del Congreso de la Unión”), segundo Carpizo e Madrazo (1991, p. 85) as Casas do Parlamento exercem atribuições legislativas de forma separada e sucessiva, iniciando-se o processo legislativo na Câmara dos Deputados. Entre tais competências, previstas no artigo 73 da Constituição Mexicana de 1917, está a legislação sobre mineração, indústria cinematográfica, serviços financeiros, energia elétrica, criação e supressão de empregos públicos, nacionalidade, cidadania etc.

Importante papel tem o Parlamento mexicano no tocante à fiscalização da condução do governo pelo Poder Executivo. Nessa seara, cumpre destacar a atribuição do Senado, em caráter eletivo, de ratificar as nomeações feitas pelo Presidente da República, quanto aos seguintes cargos: Procurador Geral da República, Ministros (incluindo-se os integrantes da Suprema Corte) agentes diplomáticos, cônsules gerais, cargos superiores na Fazenda Pública, coronéis e demais chefes superiores do Exército, Marinha e Aeronáutica, nos termos do artigo 76, II daquela Constituição.

Já a Câmara dos Deputados, ainda quanto à essencial prerrogativa da fiscalização do Governo, tem o mister de conduzir investigações sobre o manejo e aplicação de recursos financeiros dos Poderes da União e dos entes públicos federais, bem como de verificar o cumprimento de políticas públicas federais. Tal tarefa, como dispõe o artigo 79 da Constituição Mexicana, é realizada por meio de um órgão técnico pertencente à estrutura d Câmara, mas dotado de autonomia gerencial, chamado de Entidade de fiscalização superior da Federação.

Note-se, ainda, que o artigo 93 da Constituição Mexicana determinou a obrigação dos Secretários de Estado e chefes de departamentos administrativos de prestar contas, ao Congresso, da condução das políticas de seus respectivos ramos, bem como previu a faculdade de qualquer das Casas do Parlamento de convocar os mencionados funcionários, diretores de entes da Administração Pública Indireta, ou empresas de participação estatal majoritária, para que prestem esclarecimentos, quando entender-se oportuno à deliberação sobre um projeto de lei.27

Por fim, quanto à função jurisdicional, semelhante ao que acontece em muitos ordenamentos jurídicos, tal como no Brasil, a Câmara dos Deputados tem a prerrogativa de decidir, nos do artigo 74, V,

26O sistema proporcional é um método em que a representação política em cada circunscrição eleitoral deve ser distribuída em proporção às correntes ideológicas traduzidas pelos partidos políticos (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 370).

27Muito embora o instrumento de fiscalização de convocação de autoridades para prestarem esclarecimentos seja uma importante prerrogativa de fiscalização do Congresso, é imperativo reconhecer que, no caso mexicano, em razão da opção pelo sistema presidencialista, não se tem os mesmo efeitos gerados em um sistema parlamentarista. Jorge Carpizo e Jorge Madrazo (op. cit., p. 59) bem nos recordam de tal ponderação: “En un sistema parlamentario los ministros del gabinete tienen también la obligación de rendir informes al parlamento, pero la consecuencia de dichos informes puede ser la emisión de un voto de censura para los ministros, lo que los coloca ante la obligación de renunciar. En el sistema presidencial mexicano los secretarios de Estado sólo son responsables políticamente ante el presidente de la República y no ante el Congreso, por lo que un voto de censura de éste no los obliga a renunciar”.7

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da Constituição Mexicana, por maioria dos presentes, se autoriza o início da persecução penal, em juízo, de diversas autoridades elencados no artigo 111, entre elas: Deputados e Senadores, Ministros da Suprema Corte, o Procurador Geral da República, o Presidente da República, entre outros.

Interessante notar que para a Câmara dos Deputados funcionará, nesses casos, como órgão de acusação de tais delitos, por uma comissão específica para tanto, ante o Senado que, nos termos do artigo 76, VII, será o órgão responsável para o julgamento das já referidas autoridades.

2.3. Dos Desafios do Parlamento Mexicano no século XXI

Em face da preocupante crise de representatividade pela qual tem passado o Parlamento Mexicano, crise que tem se mostrado endêmica mundo afora (principalmente, nas jovens democracias latinoamericanas), novos rumos a serem percorridos pela instituição impõem-se para a sua sobrevivência política.

Fenômenos com impactante poder corrosivo, tais como a corrupção disseminada de partidos políticos e parlamentares, têm agravado tal panorama de descrédito do Poder Legislativo, levando-os ora à beira de uma falência legislativa, ora à cooptação pela força política que têm mostrado aqueles que exercem a condução administrativa da nação.

É certo que a predominância do Poder Executivo, no México, deva-se, em boa parte, ao modelo de interação entre Poderes, adotado pelo legislador constitucional, que como muito bem lembram Jorge Carpizo e Jorge Madrazo28 desenhou a predominância do Poder Executivo, ao dotá-lo de muitas e muito importantes atribuições constitucionais.29

Os referidos autores lembram, contudo, que foram outorgados aos outros poderes as faculdades necessárias para o controle do Poder Executivo, como se viu, de fato, no exame das prerrogativas de fiscalização do Parlamento Mexicano, nesse estudo. Torna-se imperativo, portanto, que os instrumentos que materializam tal importante função clássica parlamentar sejam, de fato, exercidos pelo Poder Legislativo, para que se busque dotar o Parlamento do real relevo político que merece.

A função fiscalizadora, dessa forma, tem um papel fundamental para a retomada da força política do Parlamento.30 Os parlamentar devem reconhecer a deficiência legislativa de suas Casas, decorrente da dificuldade de acompanhar as transformações sociais a partir do Estado de Bem Estar Social, mas podem se aproveitar dessa mitigação funcional para melhor dedicarem-se às tarefas de fiscalização (não devem, contudo, deixar que se esvazie a função legislativa por completo).

28CARPIZO Jorge; MADRAZO, Jorge. op. cit., p. 64. 29Em contrapartida, José Luis Prado Maillard (op. cit., p. 159) adverte que a crença de que a Constituição Mexicana foi

responsável por fortalecer o “presidencialismo hegemônico” é falsa, devendo-se ter em conta que as relações entre Executivo e Legislativo previstas pela Constituição guardavam muita similaridade com o desenho constitucional clássico.

30Fernanda Dias Menezes de Almeida (Imunidades parlamentares. São Paulo, 1979. Dissertação (Mestrado em Direito)–Universidade de São Paulo, São Paulo, 1979. p. 32) enfatiza a relevância da função representativa e fiscalizatória: “Dedicar-se [O Parlamento] mais à primordial tarefa de representação popular, assegurando perante as autoridades governamentais a expressão pública das reivindicações e protestos da coletividade; exercer um efetivo controle da vida financeira e da administração pública: esta parece ser a fórmula de redenção do Parlamento”.

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A fiscalização desponta, pensamos, com um potencial de estimular as demais funções, podendo, em tempos de predomínio legislativo do poder Executivo, fazer com que sejam retomadas as discussões necessárias para reflexão sobre as transformações, meditando-se, ainda sobre o papel da instituição no novo século, para que sejam formulados, assim, os reparos necessárias à retomada da consagração da representação política no Parlamento Mexicano.

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III. O PARLAMENTO BRASILEIRO SOB A CONSTITUIÇÃO DE 05 DE OUTUBRO DE 1988

Daniela Kalil∗

Introdução

O parlamento brasileiro está em crise. E essa crise não se limita ao Congresso Nacional, mas assola o Poder Legislativo como um todo.

Há muito tempo o bom desempenho do Poder Legislativo e o atingimento de suas finalidades vêm sendo maculados por problemas de ordens diversas, especialmente nos campos da ética e da moral.

A ética e o decoro devem ser base para o exercício da função parlamentar e o exercício parlamentar ético é imprescindível para a efetivação da plena cidadania. Nesse sentido, o Poder Legislativo tem papel fundamental, de modo a prevenir ou coibir comportamentos e práticas ilícitas daqueles que o compõem.

As sucessivas denúncias de corrupção, os recorrentes escândalos no campo político têm levado o parlamento brasileiro ao total descrédito. Diante disso, os cidadãos brasileiros se veem compelidos a questionar até que ponto os legisladores estão aptos para legislar, ou, até que ponto os representantes do povo são idôneos para representar. Qual o grau de comprometimento dos parlamentares com a sociedade brasileira?

Paralelamente a isso, surge a necessidade de transformar a máquina legislativa, tornando-a mais eficaz em relação às atribuições que lhe competem. Não há dúvida acerca da necessidade de se tornar o trabalho político ágil, eficiente, desimpedido de qualquer entrave estrutural, procedimental ou “manipulador”, a fim de que se fortaleçam as instituições políticas e de que se concretize a democracia em nosso país.

Para atingir as finalidades acima expostas é que se faz necessária a tão comentada e aguardada reforma política.

O presente artigo expõe, em primeiro lugar, um breve estudo sobre o parlamento brasileiro na Constituição Federal de 1988, sua estrutura e funcionamento. A seguir, será brevemente avaliada a atual situação da democracia representativa no Brasil e, por fim, o trabalho colocará em discussão a reforma política e analisará os principais pontos de mudança.

∗Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade

Presbiteriana Mackenzie, atua na Gerência de Contratação do Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo – SESC/SP, advogada em São Paulo.

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1. O parlamento brasileiro na Constituição de 1988

O parlamento brasileiro, previsto no artigo 44 da Constituição Federal, constitui-se de um sistema bicameral, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. A reunião dessas casas recebe o nome de Congresso Nacional que, a nível federal, exerce as funções de legislar1 e fiscalizar 2.

Em linhas gerais, a Câmara dos Deputados representa o povo, assim como o Senado Federal representa a Federação (Estados federados e o Distrito Federal).3 O período em que o Congresso Nacional exerce suas atividades recebe o nome de legislatura e será de quatro anos.

Relativamente à Câmara dos Deputados, o artigo 45 da Constituição Federal, em seu o parágrafo único, estabelece que o número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, deve ser determinado por lei complementar, de modo que nenhuma das unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.

A Lei Complementar nº 78, de 30 de dezembro de 1993, estabelece que o número de Deputados não pode ultrapassar quinhentos e treze e determina, ainda, que cada Território Federal será representado por quatro Deputados Federais. 4

No tocante à representação no Senado Federal, cada Estado-membro e o Distrito Federal elegem três senadores, totalizando 81, para mandatos de oito anos, com renovação a cada quatro anos: em uma eleição é escolhido um terço dos senadores e, na seguinte, escolhidos os outros dois terços. 5

O Senado é dirigido pela Mesa Diretora, eleita pelos parlamentares a cada dois anos. A Mesa é dirigida pelo presidente do Senado que também preside o Congresso quando as duas casas se reúnem para executarem suas atividades.

O Poder Legislativo Estadual é composto pelas Assembleias Legislativas, nos Estados, e o Legislativo Municipal, pelas Câmaras de Vereadores, em cada município brasileiro. O Legislativo Estadual tem como representantes os deputados estaduais, responsáveis por criar e aprovar as leis estaduais e fiscalizar o Poder Executivo. Na Câmara Municipal compete aos vereadores fiscalizar e assessorar o Executivo, além de elaborar leis sobre todas as matérias de competência do Município.6

1Pelo sistema brasileiro, tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal elaboram leis. Cada Casa tem sua competência exclusiva sobre determinadas matérias, entretanto, nos casos de não-exclusividade, as normas jurídicas devem passar pelas duas Casas, ou seja, se uma matéria teve início no Senado Federal, deverá passar pela Câmara para fins de revisão; caso a matéria tenha sido iniciada pela Câmara dos Deputados, será necessariamente revisada pelo Senado.

2Trata-se de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades públicas. (BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Estrutura do Poder Legislativo. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/sobre/o-brasil/estrutura/poder-legislativo>. Acesso em: 01 maio 2011).

3O sistema bicameral do Poder Legislativo Federal liga-se à forma federativa de Estado prescrita pelo constituinte. Todos os vinte e seis Estados-membros e o Distrito Federal são representados no Senado Federal, de forma igualitária, totalizando 81 senadores.

4BRASIL. Câmara dos Deputados. Conheça a Câmara. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br>. Acesso em: 01 maio 2011.

5Id. Presidência da República Federativa do Brasil. Estrutura do Congresso Nacional. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/sobre/o-brasil/estrutura/congresso-nacional>. Acesso em: 01 maio 2011.

6Id. Presidência da República Federativa do Brasil. Estrutura do Poder Legislativo, cit.

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2. Da Democracia Representativa

2.1. A Representação Política em Rousseau e Montesquieu

Jean Jacques Rousseau, em seu Contrato Social, defendia que o povo é o verdadeiro soberano e que a soberania do povo é a manifestação da vontade geral. Nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a vontade geral

é a razão, a voz da razão que os homens ouvem sobre o interesse geral, quando se despem do interesse privado e não estão sob a influência de associações particulares. Distingue Rousseau expressamente a vontade de todos, que é a soma das vontades dos particulares sobre seus interesses, da vontade geral, que só se manifesta se os homens deliberarem sem comunicação entre si, com suficiente informação, ou, como se poderia dizer em termos modernos, sem a influência dos partidos ou dos grupos de interesse. A vontade geral é o querer que resulta das vontades individuais quando estas atendem tão-somente aos ditames da razão. Presume, portanto, o Contrato Social que, se os homens deixarem de lado nas deliberações o seu egoísmo, a razão ditará necessariamente o que for conforme ao bem comum. 7

Para Rousseau, a soberania é indivisível e, como expressão da vontade geral, só pode ser atingida com a participação de todas as pessoas em assembleias, na busca do consenso e do bem comum. Essa é a verdadeira democracia que, porém, de tão perfeita, jamais existiu e jamais existirá. Esse pensamento de Rousseau pode ser observado quando ele afirma que “Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos homens.” 8

Além disso, a soberania é também inalienável, razão pela qual Rousseau não vislumbrava a representação como uma possibilidade, afirmando que, “no momento em que o povo adquire representantes, não é mais livre; não o é mais.” 9

Essa impossibilidade refere-se à representação pelo Poder Legislativo, posto que é esse Poder que elabora as leis, o que já não vale para o Poder Executivo (Governo), tido por Rousseau como “um corpo intermediário, estabelecido entre os súditos e o soberano, para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil quanto política”. 10

Rousseau compreendia, entretanto, que essa democracia direta, exercida por meio da reunião de todos os cidadãos em assembleias, seria realizável apenas nos pequenos Estados ou, em grandes Estados devidamente fracionados.

Montesquieu entendia que o povo não era capaz de discutir os assuntos de interesse da sociedade. Para tanto, havia homens verdadeiramente aptos, os quais deveriam ser escolhidos pelo povo. Assim, o povo, apesar de incapaz para debater os assuntos públicos, teria a capacidade de identificar os homens realmente habilitados para esse fim e deveria escolhê-los como seus representantes. Esses representantes falariam pelo povo, ou seja, seriam a expressão da vontade geral e

7FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 48. 8ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 92. 9Id. Ibid., p. 127. 10Id. Ibid., p. 82.

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da soberania. Nesse sentido, asseverava Montesquieu que “a grande vantagem dos representantes é serem capazes de discutir os negócios. O Povo não está apto para isso, o que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia.” 11

2.2. Breves reflexões sobre a crise da democracia representativa no Brasil

A Constituição Federal de 1988 declarou a soberania do povo ao estabelecer que todo o poder emana dele, que exerce esse poder diretamente ou por meio de representantes (CF, artigo 1º, parágrafo único).

Monica Caggiano informa que “representação política corresponde a um sistema. Um arranjo político-constitucional em cujos quadros os governantes são eleitos pelos integrantes do corpo social e considerados seus representantes.” 12 No entendimento de Georg Jellinek, representação é “la relación de uma persona com outra o varias, em virtude de la cual la voluntad de la primera se considera como expresión imediata de la voluntad de la última, de suerte que juridicamente aparecen como uma sola persona.” 13

Um país é representado por seu Parlamento, na medida em que os seus membros são escolhidos e eleitos pelo povo, que o faz de forma consciente e livre. Os parlamentares são mandatários do povo, o que implica uma relação de extrema confiança, já que o Parlamento age em nome do povo e para o povo, representando seus interesses da melhor forma possível. Os eleitores têm ampla liberdade e oportunidade para se manifestar e se expressam por meio de seus eleitos. Essa é a denominada democracia representativa, e, nesse contexto, a soberania pertence ao povo.

Maurice Duverger, analisa a definição de Democracia e registra "a definição mais simples e mais realista de democracia: regime em que os governantes são escolhidos pelos governados, por intermédio de eleições honestas e livres." 14

Mas, será que a democracia representativa no Brasil tem sido fiel a sua clássica definição?

Não há dúvida de que democracia representativa no Brasil está em crise. A soberania almejada pela Constituição Federal já não tem sido exercida e os representantes do povo há muito deixaram de defender interesses do “soberano” para defender interesses próprios.

A crise democrática em nosso país se dá por muitos motivos: falta de legitimidade do Poder Legislativo, manipulações diversas, deficiência do sistema eleitoral, dentre outros. A esse respeito, manifesta-se Paulo Bonavides:

Os vícios eleitorais, a propaganda dirigida, a manipulação da consciência pública e opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de informação, a serviço da classe dominante, que os subornou, até as manifestações executivas e legiferantes exercitadas

11MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 172. 12CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas eleitorais x representação política. Brasília: Centro Gráfico do Senado

Federal, 1987. p. 19. 13JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Buenos Aires: Albatroz, 1970. p. 429. 14DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 387.

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contra o povo e a nação e a sociedade nas ocasiões governativas mais delicadas, ferem o interesse nacional, desvirtuam os fins do Estado, corrompem a moral pública e apodrecem aquilo que, até agora, o status quo fez passar por democracia e representação. 15

Em seu artigo intitulado “A Democracia Representativa está morta: viva a Democracia Participativa!”, Roberto Amaral analisa a crise do Legislativo e registra que

Não há uma só pena de analista da política brasileira que não escreva, como denúncia, a crise do Poder Legislativo. Variáveis são os enfoques, mas a crítica é consensual em face de seu desempenho, seja em punir a docilidade com que as duas Casas se curvam aos impérios do Executivo, seja ao denunciar o preço cobrado por essas concessões; seja a denúncia do esvaziamento dos plenários, seja a denúncia do nepotismo lavar. Outras vozes se agigantam contra o corporativismo, que, numa leitura equivocada e muito peculiar do princípio da imunidade parlamentar, tem transformado esse instituto, de inestimável importância para a democracia parlamentar, em mero instrumento de proteção a criminosos comuns. 16

Diante de tamanha crise, a reforma política surge como um primeiro passo, essencial, para a transformação e melhora do sistema político-institucional brasileiro.

3. Reforma Política

Reforma política trata-se de um conjunto de propostas de reestruturação dos órgãos estatais para fins de desenvolvimento econômico e social, reorganização das instituições políticas e do sistema eleitoral, propostas para aprimoramento da democracia representativa, bem como fortalecimento e desenvolvimento dos mecanismos da democracia participativa.

São vários os dilemas do sistema político-institucional brasileiro e, na prática da reforma política, alguns merecem destaque, tais como: a questão da “desproporcionalidade” parlamentar, a infidelidade partidária, o financiamento de campanhas eleitorais e a influência dos “grupos de pressão”.

Proporcionalidade parlamentar: o sistema da proporcionalidade objetiva que cada partido político tenha representatividade no Parlamento, de acordo com “a sua força numérica na Sociedade, de maneira a refletir-se no Poder Legislativo, da maneira mais transparente e próxima possíveis, as diversas ideologias presentes na comunidade.” 17 Jairo Nicolau assevera:

15BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2003. p. 25-26.

16AMARAL, Roberto. A democracia representativa está morta: viva a democracia participativa. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Ed., 2001. p. 42.

17MORAES, Alexandre de. Reforma política do Estado e democratização. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 05 maio 2011.

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Uma das principais patologias dos sistemas representativos das democracias contemporâneas é a não-proporcionalidade entre a população (ou eleitorado) de uma determinada circunscrição eleitoral e seu número de representantes na Câmara dos Deputados. O principal efeito dessa não-proporcionalidade é dar pesos distintos aos votos dos eleitores de diferentes circunscrições eleitorais, o que viola o princípio democrático de que todos os cidadãos tenham votos com valores iguais, evidenciado na máxima "um homem, um voto”. 18

Fidelidade partidária: trata-se da lealdade do candidato à ideologia do partido pelo qual pretende disputar eleições. Sobre essa questão, Monica Caggiano comenta que “o movimento de turismo interpartidário ou a dança das cadeiras, emerge da carência de um disciplinamento constitucional adequado e, essencialmente, pela fragilidade e plasticidade dos partidos brasileiros.” 19

É certo que, os eleitores brasileiros, na maioria das vezes, votam especificamente em um candidato, independentemente do partido ao qual ele pertença, justamente porque se identificam com a pessoa do candidato e não necessariamente com a ideologia do partido ao qual esteja filiado.

Muitos candidatos, porém, filiados a um determinado partido político, optam pela mudança de legenda após concorrer às eleições, por interesses diversos. Esse rompimento do parlamentar com seu partido é atentatório à democracia representativa.

Forçoso convir que no Brasil identifica-se uma peculiar tendência à ação denominada crossing the floor por parte dos parlamentares. Estes vão caminhando de partido em partido, uma verdadeira peregrinação entre as diversas agremiações [...] É quase que da natureza da político-partidária praticada entre nós e que gira, predominantemente, ao redor da figura do candidato e não da agremiação política que lhe sustenta a candidatura.20

Financiamento de campanhas eleitorais: o sistema de financiamento de campanhas eleitorais vigente é o sistema misto, ou seja, financiamento composto por recursos públicos e privados. Esse sistema, além de patrocinar campanhas eleitorais de altíssimo custo, dinheiro que deixa de ser investido em políticas e serviços públicos (no caso dos recursos públicos) e em pesquisa e desenvolvimento tecnológico (no caso de recursos privados), permite a disputa desigual entre os partidos políticos, alguns dos quais, a depender de sua “filosofia partidária”, acabam constituindo vínculos com grandes empresas.21 Assinala Monica Caggiano:

18NICOULAU, Jairo Marconi. As distorções na representação dos Estados na Câmara dos Deputados brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, 1997. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000300006>. Acesso em: 05 maio 2011.

19CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004. p. 112. 20Id. A fenomenologia dos trânsfugas no cenário político-eleitoral brasileiro. In: LEMBO, Cláudio;; CAGGIANO, Monica

Herman Salem (Orgs.). O voto nas Américas. Barueri: Manole, 2008. p. 232. 21MACHADO, Marcelo Passamani. O financiamento das campanhas eleitorais: perspectivas para uma reforma política. In:

LEMBO, Cláudio; CAGGIANO, Monica Herman Salem (Orgs.). O voto nas Américas. Barueri: Manole, 2008. p. 196-197.

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Com efeito, a idéia de financiamento público das campanhas, seguindo a matriz alemã, tem conquistado um número considerável de adeptos, principalmente em razão da ampla possibilidade de controle (pelo Tribunal de Contas da União) e, portanto , em face da idéia de garantia de maior transparência que oferece. 22

Grupos de pressão: Diante da crise de representatividade dos parlamentos, diversos atores surgem na vida político-social, cada qual com sua própria ideologia, no afã de defender interesses dos segmentos aos quais pertencem. Esses atores surgem na forma de associações, organizações, lobbies, sindicatos e são denominados “grupos de pressão”.

Ocorre que, ao exercerem pressão sobre os governantes e sobre a opinião popular, no intuito de influenciar diretamente no processo decisório político-governamental, nem sempre se utilizam de meios “politicamente corretos”, conforme explica Monica Caggiano:

Em verdade, são grupos e movimentos que, em geral atendendo a um esquema orgânico e com atuação coordenada, operam na clandestinidade, sob forma camuflada, ou, até mesmo dentro de um clima de ampla transparência. Têm em comum o objetivo de insuflar a decisão política. 23

No primeiro semestre do ano de 2011, a Comissão de Reforma Política do Senado apresentou 12 propostas de reforma política 24, as quais poderão tornar-se projetos de lei ou emendas constitucionais. São elas:

1. Voto em lista fechada nas eleições proporcionais: estabelecido o sistema eleitoral denominado sistema proporcional com lista fechada (em detrimento do distrital misto ou “distritão”). Hoje, o Brasil adota o sistema proporcional com lista aberta, em que os eleitores votam em um candidato ou em um partido (voto de legenda) nas eleições para deputados e vereadores. Nas eleições para presidente, governador, senador e prefeito o Brasil utiliza o sistema majoritário.

2. Financiamento eleitoral e partidário: a proposta de reforma é a de passar a fazer o financiamento eleitoral e partidário (que hoje é misto) exclusivamente com recursos públicos.

3. Suplência de senador: o suplente é um substituto do senador; pode substituí-lo temporariamente em caso de afastamento temporário, ou definitivamente, em caso de afastamento definitivo do senador. Atualmente, cada senador é eleito com dois suplentes, escolhidos livremente pelo senador e cujos nomes não são conhecidos no momento da eleição. As propostas de reforma sugerem que o senador tenha apenas um suplente e que seja substituído por ele apenas nos casos de afastamento temporário, sendo que, com o afastamento definitivo, seriam realizadas novas eleições para escolha de um novo senador25. Há, ainda, proposta que determina que o suplente será o

22CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral, cit., p. 142. 23CAGGIANO, Monica Herman Salem. Oposição na política: propostos para uma rearquitetura na democracia. São Paulo:

Angelotti, 1995. p. 88. 24GONZALEZ, Cláudio. Anteprojeto de lei do Senado traz problemas, mas contém avanços. Portal do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/16648-reforma-politica-anteprojeto-do-senado-traz-problemas-mas-contem-avancos>. Acesso em: 06 maio 2011.

25Só não haveria nova eleição caso faltassem apenas sessenta dias para a eleição regular, quando o suplente assumiria o cargo até o fim do mandato.

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deputado federal mais votado do mesmo partido e outra que indica para suplente o candidato a senador derrotado mais votado. Coligações: aprovada a proposta de extinção das coligações partidárias nas eleições proporcionais. Nas eleições majoritárias (senadores, prefeitos, governadores e presidente), entretanto, as coligações seriam admitidas.

5. Voto facultativo: houve proposta para tornar o voto facultativo, entretanto a comissão de reforma política do Senado manteve a obrigatoriedade do voto.

6. Data da posse dos chefes do Executivo: a posse do presidente da República, governadores e prefeitos, atualmente, se dá no dia 1º de janeiro. A proposta sugere que, a partir de 2014, a posse de prefeitos e governadores se dê no dia 10 de janeiro e a do presidente da República em 15 de janeiro.

7. Fidelidade partidária: mantido o entendimento do TSE e do STF de que o mandado pertence aos partidos e não aos eleitos e, no caso de abandono do partido sem justa causa, o político será punido com a perda do mandato. A comissão de reforma política do Senado aprovou esse entendimento.

8. Reeleição e mandato: aprovado o mandato de cinco anos para os cargos de presidente da República, governadores e prefeitos, sem possibilidade de reeleição.

9. Candidato avulso: proposta que possibilita a candidatura de quem não tenha vínculo partidário às eleições para prefeito e vereador, sendo que o registro junto à Justiça Eleitoral deverá ter o apoio de no mínimo 10% dos eleitores do município.

10. Cota para mulheres: a proposta sugere a adoção de cotas para mulheres nas eleições. A cota para mulheres seria de 50% das vagas nas eleições proporcionais (deputados e vereadores), com alternância entre um homem e uma mulher nas listas fechadas de candidatos. A proposta estabelece também que, caso esse percentual não for atendido, a lista deverá ser indeferida pela Justiça Eleitoral.

11. Federação de Partidos: é um sistema em que pequenos partidos, que compartilhem de uma mesma ideologia e de um mesmo conteúdo programático, possam unir-se para concorrer a uma eleição. Pelas propostas, esse sistema não foi admitido, sob a alegação de que não teria sentido acolhê-lo uma vez que foi aprovada a extinção das coligações partidárias.

12. Referendo: trata-se da proposta de realização de um referendo após a conclusão da votação sobre os temas da reforma política no Congresso Nacional, caso em que, a população ratificaria ou não o novo sistema.

Essas propostas serão apreciadas pela Comissão de Constituição e Justiça antes de seguir para o plenário do Senado Federal e, após, o anteprojeto será enviado à Câmara dos Deputados.

Conclusões

A concretização das propostas de reforma política acima descritas é, sem dúvida, um primeiro passo para a recuperação do sistema político-institucional brasileiro, entretanto, não são suficientes para instaurar uma real e sólida democracia representativa em nosso país.

O Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, conforme prega o texto constitucional, porém, o ideal de democracia definitivamente não passa de um ideal, pois não está ao alcance do povo.

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O exercício de uma real democracia somente se dará no momento em que o povo estiver certo de que é soberano, de que todo o poder dele emana e, para tanto, ao menos duas coisas são necessárias: os seus representantes, na qualidade de mandatários, devem fielmente refletir a vontade de seus representados, além de assumir um compromisso com o interesse público geral; o povo, por sua vez, deve ter resguardado o direito de participar ativamente da vida político-governamental do país.

Nesse contexto, a democracia participativa deve ser instaurada e desenvolvida, permitindo ao cidadão o seu exercício por meio dos instrumentos de controle e participação no poder, mecanismos esses dotados de eficácia jurídica, mas ainda desprovidos de eficácia social. A nosso ver, somente por meio da efetivação da democracia participativa, em que o povo se revela verdadeiramente soberano, seria possível a restauração da legitimidade do sistema político-institucional em nosso país.

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IV. O PODER LEGISLATIVO URUGUAIO

Fabiano Stefanoni Redondo∗

1. Histórico

Após a independência tanto do império espanhol como do português, e a total desvinculação do Império brasileiro, que se deu em 26 de julho de 1828, o General Juan António Lavalleja, convocou o povo à eleição de uma assembleia que devia exercer a função legislativa.

Essa assembléia devia, então, constituir-se formalmente e começar por formular uma Constituição. Em consequência, teve que dar-se caráter constituinte à legislatura eleita, que passou a chamar-se Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Estado.

Essa Assembleia cumpriu plenamente sua função, tendo sido sancionada a Constituição em 1° de setembro de 1829, mas esta não entrou em vigência até que foi solene e publicamente juramentada por todas as autoridades instituídas, como por todos os cidadãos, no dia 18 de julho de 1830.

A Constituição estruturava um Poder Legislativo composto por quatro órgãos:

● A Assembleia Geral ou reunião conjunta das duas Câmaras: só agia no caso de desacordos entre estas quando das sanções de leis e em outros poucos casos, estabelecidos expressamente pela Constituição;

● a Câmara dos Senadores, composta por um Senador por Departamento, eleito indiretamente pelo povo;

● a Câmara dos Representantes, eleita diretamente em circunscrições departamentais e com um legislador “por cada três mil almas ou fração que não seja menor a dois mil”, cujos membros seriam vinte e nove nas duas primeiras Legislaturas e, em diante, deveria arrumar-se por meio da realização de um censo geral, e renovados a cada oito anos;

● a Comissão Permanente, composta de dois Senadores e cinco Representantes, que agiria enquanto a Assembleia Geral e as Câmaras estivessem em recesso, cujos objetivos seriam a observância da Constituição e das leis, dar ou rejeitar seu consentimento ao Poder Executivo nos casos em que este o necessitasse ou requeresse.

As duas Câmaras tinham, em geral, idêntica competência em matéria legislativa, mas o Senado contava com algumas atribuições próprias, em matéria de autorizações para o exercício de algumas competências por parte do Poder Executivo.

Esta estruturação do Parlamento, com alterações importantes na forma de eleição e na composição de cada um dos quatro órgãos que o integram, tem ficado invariável até a Constituição atual,

∗Advogado em São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Mestrando do Programa de Pós-

Graduação stricto sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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que rege desde 1967 e que foi objeto de algumas emendas no plebiscito, ocorrido em 8 de dezembro de 1996.

O número de legisladores foi acrescentado progressivamente, em razão da criação de novos Departamentos que, no início, eram nove e que atingiram os atuais dezenove, já na década de 1880.

A Constituição de 1918, cuja entrada em vigência não modificou a estrutura nem a organização do Poder Legislativo, tendo o Senado continuado a ter um membro por Departamento e sua eleição continuou indireta (por Colégios Eleitorais eleitos diretamente pelo povo); no entanto, as leis constitucionais, de 22 de outubro de 1930 e de 27 de outubro de 1932, estabeleceram que “sua eleição será feita diretamente pelo povo, por maioria simples de votantes, por meio de um sistema de dobro voto simultâneo e com as garantias que, para o sufrágio, estabelece a Seção II”.

A nova carta não fixou o número de integrantes da Câmara Baixa, cuja determinação continuou sendo competência da lei. Mas eliminou-se a referência constitucional à eleição de um Representante “por cada três mil almas ou por uma fração que não seja menor de dois mil” No exercício dessa faculdade, a Lei complementar das Eleições, de 22 de outubro de 1925, estabeleceu no seu artigo 1° que “A Câmara dos Representantes estará composta de cento e vinte e três membros”.

Com respeito ao controle do Parlamento sobre o Poder Executivo, a Lei Magna de 1918 outorgou àquele importantes faculdades, inexistentes ou de muito difícil exercício na Constituição anterior. Assim, estabeleceu-se que todo legislador teria direito a pedir aos ministros de Estado os dados e informes que estimarsse necessários para cumprir seu objetivo e facultou-se às Câmaras nomear comissões parlamentares de investigação.

Por outra parte, a chamada Sala dos Ministros que, na Carta de 1830, dispunha-se por maioria de votos, facilitou-se em medida importante a autorizá-lo por resolução de um terço dos votos, ou seja, transformou-se uma faculdade de exercício impossível sem o consentimento da maioria – em favor do governo - em uma potestade da minoria, que é a que deve controlar o Poder Executivo.

No ano 1933, houve uma interrupção no funcionamento do Parlamento, em razão do golpe de Estado de 31 de março desse mesmo. Essa situação prolongou-se até 17 de maio de 1934, pois no dia seguinte entrou em função uma nova Legislatura, eleita de acordo com a nova Constituição de 1934.

Algo semelhante aconteceu no ano 1942, em virtude do golpe de Estado de 21 de fevereiro daquele ano. Em tal oportunidade a interrupção da atividade parlamentar prolongou-se até 14 de fevereiro de 1943. No dia seguinte instalou-se a nova Legislatura e entrou em vigência outra nova Carta, conhecida como a de 1942.

A Lei Magna de 1934 alterou de forma importante a integração das duas Câmaras. O Senado passou a ter trinta e um membros: trinta Senadores e o Vice-Presidente da República – cargo que antes não existia – o qual devia presidi-lo “com voz e voto”.

A Câmara dos Representantes passou a ter noventa e nove Deputados, eleitos por representação proporcional integral. O referido número e forma de eleição, assim como o número de Senadores, não foram alterados nas sucessivas reformas constitucionais.

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Uma inovação importantíssima da Constituição de 1934, mas nunca aplicada na prática, exceto em uma oportunidade – no ano de 1969 -, foi a introdução do mecanismo da censura parlamentar aos ministros, faculdade outorgada à Assembleia Geral com o contrapeso de que o Presidente da República (Chefe do Estado) pode, com determinadas condições próprias de um sistema de parlamentarismo racionalizado, dissolver as Câmaras e convocar imediatamente novas eleições parlamentares, de forma que o povo, por meio do pronunciamento da nova Assembleia Geral, decidiria o conflito entre os dois Poderes políticos do Governo, determinando a queda ou a confirmação do gabinete anteriormente censurado.

A Constituição de 1942 não alterou o sistema da Carta precedente no que se refere ao Poder Legislativo, exceto na forma de determinar e distribuir os trinta cargos de Senadores, que não é mais faculdade do partido majoritário e do partido da minoria maior. Optou-se pelo sistema da representação proporcional integral que continuou regendo até os dias atuais.

No ano 1951, surgiu a iniciativa de reformar novamente a Constituição para substituir a Presidência da República por um Executivo colegiado, composto de nove membros, chamado Conselho Nacional de Governo.

O projeto de reforma, que continha outras inovações, foi objeto de plebiscito, e aprovado, em 16 de dezembro de 1951, e entrou parcialmente em vigência, em 15 de fevereiro de 1952 e, totalmente, em 1° de março desse ano.

A Constituição de 1952 não alterou as disposições referentes à organização e funcionamento do Poder Legislativo. No entanto devemos assinalar que concedeu à Assembleia Geral a importante faculdade de nomear os membros da Corte Eleitoral e do Tribunal do Contencioso Administrativo – órgão de controle jurisdicional da legalidade dos atos da Administração que se instituiu diretamente pela nova Carta - assim como os da Suprema Corte de Justiça e do Tribunal de Contas –, este último, da legalidade da gestão financeira dos órgãos estatais - competência que já tinha desde a Carta de 1934.

A experiência do governo colegiado não foi considerada satisfatória e, no ano 1966, projetou-se uma nova reforma constitucional para restabelecer a Presidência da República, dentro de um esquema muito semelhante ao da Constituição de 1942. O texto projetado, que entrou em vigência em 15 de fevereiro de 1967, também foi objeto de plebiscito em 27 de novembro de 1966.

A Constituição Federal de 1967, que atualmente está em vigência com as emendas que nela foram introduzidas no plebiscito de 8 de dezembro de 1996 - as que entraram em vigência em 14 de janeiro de 1997 - também não alterou a estrutura nem a competência do Parlamento do Uruguai, valendo, contudo, ressaltar sob a justificativa de da necessidade de centralizar e fortalecer a condução da política econômico-financeira por parte do Poder Executivo, ampliou-se o âmbito das atribuições exclusivas deste último em matéria de iniciativa legislativa.

Desde 1967, outras leis relativas às matérias vinculadas com o funcionamento da economia também só podem ser iniciadas pelo Poder Executivo, que tem o poder de enviar ao Parlamento projetos de lei com declaração de urgente consideração, cuja tramitação e votação pelas duas Câmaras devem ocorrer dentro dos prazos predeterminados, relativamente breves, sob pena de que sejam dados por aprovados no vencimento dos prazos determinados. As Câmaras, no entanto, conservam sua faculdade de rejeitar expressamente esses projetos, da mesma forma que quaisquer outros, assim como podem,

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por maioria especial, deixar sem efeito a declaração de urgência e seguir considerando-os de acordo com as regras comuns do procedimento parlamentar.

Ainda no processo histórico do Parlamento uruguaio, é necessário destacar, ainda, que, em 27 de junho de 197, registrou-se um golpe de Estado no Uruguai e que seu Parlamento ficou fechado por doze anos até o dia 14 de fevereiro de 1985, tendo sido, nesse período, constatadas diversas desarticulações de ordem jurídica de base constitucional e a lesão violenta aos direitos fundamentais de dezenas de milhares de cidadãos.

Tal regime acabou por contabilizar a tortura de cerca de 4.700 civis ao longo desses anos de governo militarizado, sendo que, desses torturados, oito presos suicidaram-se para evitar a continuação da tortura, e 34 civis assassinados dentro do território uruguaio, e 106 uruguaios mortos fora do território do país, a maior parte deles na Argentina, por conta das ações do “Plano Cóndor”, denominação dada ao esquema de colaboração das ditaduras existentes nos Países do Cone Sul.

De forma a ilustrar o grande conflito existente no período no Uruguai, Charles G. Gillespie, em seu texto “Uruguay’s Transition from Collegial Military-Technocratic Rule1” constante no livro Transitions form Authoritarian Rule Latin America, ainda menciona:

“One of the more clearly unfavorable factors in Uruguay’s democratic restoration is the return to the old asymmetry between a strong left-led labor movement and a simultaneous tendency toward the traditional parties’ dominating presidential races.

(…)

The job of dealing with Uruguay’s crisis-ridden political economy has been handed firmly back to the politicians.

Furthermore, the Uruguayan military’s parting gesture was to promise military trials for corruption, whereas the Argentine military has issued a vain self-amnesty. This leaves a question mark over torturers and the actions that opposition senators take in launching parliamentary inquiries.”

Assim, para que se firmasse o período de transição, e a democracia se restabelecesse no Uruguai em 1986, um ano após a volta da democracia, o presidente Julio Maria Sanguinetti (1985-90) encaminhou o projeto da Lei de Caducidade Punitiva do Estado ao Parlamento, que anistiava os crimes da ditadura cometidos dentro do país, sendo que tal lei foi mais tarde confirmada por plebiscitos em 1989 e 2009 e objeto de nova discussão no Parlamento uruguaio no último ano, conforme poderemos observar na sequência.

1O’DONNELL, Guillermo; SCHIMITTER, Philippe C.; WHITEHEAD, Laurence. Transitions form authoritarian rule Latin America. Baltimore; London: The Johns Hopkins University, 1986.

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2. Regime Jurídico institucional no Uruguai

Diante de tal evolução histórica, podemos verificar que o sistema institucional vigente na República Oriental do Uruguai baseia-se, sobretudo, na Constituição de 1830, mesmo após as diversas emendas sancionadas pelo voto universal.

Assim, firmando-se com uma República unitária, o Uruguai, de acordo com o transcrito no artigo 82 da Constituição, adota como forma de governo a democracia republicana presidencialista, pela qual os órgãos representativos surgem do exercício direto da soberania, por meio do voto popular para legisladores nacionais e municipais, Presidente e Vice-Presidente da República e intendentes municipais e, indiretamente, pelos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) sob o princípio de repartição de poderes, sem prejuízo de órgãos de hierarquia constitucional que exercem funções específicas em matéria de controle externo de despesas e pagamento (Tribunal de Contas), de controle jurisdicional da legalidade dos atos administrativos (Tribunal do Contencioso - Administrativo) e da justiça eleitoral (Corte Eleitoral).

O regime de voto para eleição de Presidente e Vice-Presidente da República incorporou o segundo turno quando não se chega à maioria absoluta de votos no primeiro turno.

Os membros da Suprema Corte de Justiça são designados, assim como os membros do Tribunal Contencioso-Administrativo, da Corte Eleitoral e do Tribunal de Contas, por decisão da Assembleia Geral com maiorias especiais. O Poder Judiciário e os órgãos com hierarquia constitucional, cada um em sua matéria, são independentes no exercício de suas respectivas funções.

Já o Parlamento Uruguaio continua a ser formado por três órgãos: Senado, a Câmara dos Representantes e a Assembleia Geral.

No artigo 83 e seguintes da Constituição da República Uruguaia, ficou estabelecido que o Poder Legislativo será exercido pela Assembleia Geral, que é composta por duas Câmaras permanentes, uma dos representantes e outra dos Senadores, cuja Presidência será exercida pelo Vice Presidente da República e será composta por cento e trinta membros que poderão atuar em conjunto ou separadamente, segundo as disposições da Constituição.

A Assembleia Geral é um órgão que tem funções e competências específicas pela Constituição em seu artigo 85, no qual podemos destacar a designação das autoridades de órgãos do Estado, solucionar conflitos entre as duas Câmaras, considerar os vetos impostos pelo Poder Executivo às leis, instituir a Comissão Permanente que é um órgão competente durante o período de recesso das Câmaras e que não tem a seu cargo a função legislativa, mas sim de controlar e coadministrar junto com o Poder Executivo.

Essa Comissão Permanente, conforme consta dos artigos 127 a 132 da Constituição da República, é composta por quatro membros da Câmara dos Senadores e Quatro membros da Câmara dos Representantes, designados pelo sistema proporcional de suas respectivas Câmaras. Essa designação é feita anualmente, nos quinze dias da constituição da Assembleia Geral e se inicia em cada período de sessões ordinárias.

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A Câmara dos Representantes é composta por noventa e nove membros que são eleitos pelo povo, de acordo com um sistema de representação proporcional, em que se deve tomar em conta os votos emitidos a favor de cada partido em todo o país.

O Vice-Presidente é o Presidente do Senado, que tem 31 membros. A Câmara dos Representantes é integrada por 99 deputados, e a Assembleia Geral é a reunião conjunta das duas câmaras. O sistema eleitoral estabelece a representação proporcional integral, com atenuações.

O orçamento nacional é quinquenal, com prestações de contas anuais, ocasião em que o Parlamento considera a aprovação de contas e pode introduzir as modificações que julgar indispensáveis ao orçamento nacional, aprovado para o período quinquenal de governo, tal como transcrito no artigo 214, letra “D”. A iniciativa é de competência do Poder Executivo, salvo à que se refere aos orçamentos dos órgãos com hierarquia constitucional (Poder Judiciário, Tribunal do Contencioso-Administrativo, Corte Eleitoral e Tribunal de Contas), os quais também podem apresentar suas iniciativas ao Poder Executivo; este as incorporará ao Projeto de Orçamento Nacional, com as modificações que julgar oportunas, aceitando-se o que a Assembleia Geral decidir no âmbito da aprovada da Lei Especial de Orçamento; para o Parlamento, a Constituição, em seu artigo 108, estabelece que cada uma das Câmaras aprovará seu respectivo orçamento e o comunicará ao Poder Executivo para que o inclua no orçamento nacional.

3. Estrutura interna do Parlamento Uruguaio

O Parlamento Uruguaio é bicameral, com grau de incongruência entre as duas câmaras, entendendo-se como bicameralismo incongruente aquele cujos sistems são indiferentes, havendo a possibilidade de vetos recíprocos e com grau mediano de simetria entre as duas Câmaras, vez que a Câmara dos Deputados detém maior poder do que o Senado, conforme poderemos ver exemplificado a seguir.

Ao analisar exclusivamente o Senado Uruguaio, inicialmente verifica-se que o sistema adotado, nos artigos 95 e 96 da Constituição, eleva o nível de alta proporcionalidade, acrescido ainda pelo fato de que o Uruguai, por não ser um país federativo, acaba por adotar uma circunscrição única como 30 cadeiras. Assim como na Câmara dos Representantes que, por sua vez, é constituída por meio de um distrito único nacional, com distribuição posterior aos departamentos, ou seja, utiliza um cálculo proporcional muito mais exato, coerente e democrático.

Vale ainda destacar outro fator importantíssimo na formação do legislativo uruguaio: a lista partidária é previamente fechada pelos partidos.

4. O Poder do Parlamento no sistema presidencialista uruguaio

O Uruguai manteve com a democratização a carta constitucional de 1967, de tendência consensual e nacionalista. Durante a década de 1990 foram realizadas diversas reformas constitucionais com a finalidade de oferecer maior autonomia ao Presidente da República, no entanto, o seu caráter consensual ainda nos parece predominante.

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No entanto, diante de uma influência histórica e geopolítica, conforme expressa DUVERGER2, “el constitucionalismo iberoamericano consagro el principio de la separacion de poderes, el Poder Ejecutivo ejerce um claro predomínio sobre los Poderes Legislativo y Judicial”, o Uruguai acabou por conceder exclusivamente ao Executivo determinados poderes de legislar, sobretudo, no que tange às normas de gestão da economia e às questões que envolvem os gastos públicos e ainda a possibilidade contida no artigo 1683, inciso 7°, da Constituição, em que o Presidente da República pode indicar como urgente um projeto de lei encaminhado ao Parlamento, senão vejamos:

“Artículo 168- Al Presidente de la República, actuando con el Ministro o Ministros respectivos, o con el Consejo de Ministros, corresponde:

(...)

7º) Proponer a las Cámaras proyectos de ley o modificaciones a las leyes anteriormente dictadas. Dichos proyectos podrán ser remitidos con declaratoria de urgente consideración.”

Saliente-se também, no entanto, que está prevista a possibilidade, nesse mesmo artigo, de as Câmaras não acatarem a qualificação de urgência dada pelo Presidente e analisá-las nos moldes normais do Parlamento; de qualquer forma, desde que se consagrou esta inovação, o Poder Executivo fez uso moderado do poder que se lhe atribuiu. Poucos projetos de lei foram remetidos ao Parlamento com esse caráter, e menos, ainda mereceram a sanção legislativa por essa via de procedimento.

Por outro lado, no Uruguai, conforme já comentado, é possível ao Poder Executivo dissolver o Poder Legislativo.

Vale ainda adicionar uma peculiaridade existente no sistema legislativo uruguaio que é a possibilidade de moção de censura, sendo este um mecanismo típico dos sistemas parlamentaristas, pouco utilizada nos Países presidencialistas; assim, em conformidade com os artigos 147 e 148 da Constituição, pode até se ordenar a renúncia de um Ministro de Estado, quando tal determinação for aprovada por maioria absoluta da Assembleia Geral, caso a votação não conte com maioria absoluta, o Presidente da República poderá requerer à Assembleia um voto de confiança ao Ministro julgado.

Além disso, não se pode deixar de considerar que o Uruguai admite o veto integral e parcial e define que a decisão para derrubada dar-se-á em Assembleia Geral, sendo exigida a maioria de 3/5 dos presentes.

2DUVERGER, Maurice. Instituciones políticas y derecho constitucional. Caracas; Barcelona: Ariel, 1962. 3URUGUAY. Constitución de la República Oriental del Uruguay. Disponível em:

<http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/const004.htm>. Acesso em: 22 maio 2011.

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5. Um exemplo do cotidiano do Parlamento Uruguaio

De forma que se possa verificar a atuação do Parlamento Uruguaio nos dias atuais e exemplificar tudo aquilo que fora transcrito anteriormente, destaco a discussão ocorrida na Câmara dos Representantes acerca da já mencionada Lei de Caducidade Punitiva do Estado4, denominação da lei de anistia aplicada aos ex-integrantes da ditadura militar (1973-85) que foram responsáveis por torturas, sequestros e assassinatos de civis.

Apesar de a edição da lei datar de 1986, tendo sido matéria de dois plebiscitos, a matéria voltou à pauta do Senado e da Câmara dos Representantes do Uruguai, tendo sido aprovada pelo Senado a anulação de tal lei, no mês de abril de 2011.

Na Câmara dos Representantes, com uma forte pressão popular, a coalizão de centro-esquerda do governo do presidente José Mujica, contava com uma maioria ajustada para vencer a votação, já que possui 50 do total de 99 deputados. No entanto foi um parlamentar do próprio governo, Victor Semproni – líder sindical e guerrilheiro nos anos 70, que foi torturado pelos militares – que permitiu o empate. Durante os debates Semproni argumentou que a anulação da anistia “pisoteava os dois plebiscitos (de 1989 e 2009)” que confirmaram a aplicação do perdão aos ex-integrantes da ditadura.

O empate implicou a rejeição do projeto de lei. Mas, pelo fato de ter sido previamente aprovado pelo Senado em abril, o projeto teria que ser submetido à Assembleia Geral.

No primeiro plebiscito, em 1989, o respaldo à lei de anistia, aprovada pelo Parlamento em 1986, contou com 57% dos votos. No segundo, em 2009, 53% dos uruguaios votaram a favor da permanência do perdão aos ex-integrantes da ditadura.

Nos últimos anos, diversos setores políticos alegaram que a lei de anistia de 1986 era “ambígua”, pois impedia o julgamento dos militares, mas não a investigação sobre seus crimes.

Conclusão

Apesar de diversas peculiaridades existentes que trazem ao Parlamento Uruguai um poder diferenciado quando comparado com tantos parlamentos sul-americanos é notória a influência liberalizante que deu uma supremacia ao Executivo desse País.

De fato, o Uruguai, por ser um País unitário, acabou, durante toda sua história, sendo mais consensual, com poder menos personificado no Presidente da República, porém caracteristicamente presidencialista, o Parlamento aqui também acaba não exercendo todo o Poder a ele inerente, impedindo uma maior dinamização da democracia uruguaia, fundamental para o progresso do país e de toda a região, tão carente de um desenvolvimento não só econômico, mas também de todas as faces do cenário social.

4URUGUAY. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 maio 2011. Disponível: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110521/not_imp722041,0.php. Acesso em: 30 maio 2011.

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No entanto é evidente toda a evolução da democracia uruguaia e consequentemente do seu Parlamento, suas superações estão aqui mais do evidenciadas e as futuras conquistas estão dependendo da vontade popular que hoje está muito mais atenta e menos vulnerável a discursos fáceis e sem valor.

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V. CUBA: ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO PARLAMENTAR

Fernando Pinto Xavier Filho∗

Marco Antonio Prado Nogueira Perroni∗∗

Monica Herman Salem Caggiano∗∗∗

“As mudanças em Cuba surgirão através de pequenas medidas econômicas que podem transfigurar-se em elementos de transformação e assim contribuir para a derrubada do regime.” (Yoani Sánchez, dissidente)

Introdução

O tema proposto justifica-se por sua importância intrínseca e pelas atuais discussões sobre as reformas político-econômicas em Cuba. A problemática emerge da dificuldade da análise dos elementos conjunturais do modelo político cubano, uma vez que são raras as obras doutrinárias sobre o assunto dotadas de imparcialidade. Tal questão está diretamente relacionada aos efeitos provocados por mais de cinco décadas de isolamento informacional. Desde o êxito da Revolução de 1959, além do severo bloqueio intelectual, os dirigentes cubanos instituíram também uma poderosa imprensa estatal voltada a difundir concepções políticas para a manutenção do status quo.

Diante disso, buscaram-se fontes bibliográficas isentas e sem qualquer conteúdo eminentemente político que pudesse macular o resultado do exame proposto, opção esta que limitou o repertório de obras utilizadas. No entanto, ainda que o campo de pesquisa tenha sido reduzido, tal predileção mostra-se mais apropriada aos padrões acadêmicos e aos objetivos centrais desta investigação, principalmente no tocante à isenção na interpretação do tema e à ética na gestão das informações. Visou-se um resultado que se aproximasse ao máximo da realidade objetiva prevalente nas instituições políticas cubanas.

O presente estudo é dividido em três partes, primeiramente são perpassados os elementos e circunstâncias que confluíram para a formação da ordem política atualmente estabelecida em Cuba. Adentra-se, então, ao tratamento do sistema parlamentar e seu funcionamento, sendo apresentadas preliminares teóricas buscando, ainda que superficialmente, a delimitação do ente legiferante e exame dos órgãos que o compõe. Por derradeiro, confrontam-se os ideais de democracia subsistentes em Cuba com aqueles doutrinariamente admitidos nas democracias mais consolidadas, de modo a estabelecer algumas conexões e reflexões críticas sobre a possibilidade de Cuba ser subsumida ao campo democrático.

∗Estudante do curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Conciliador do Juizado Especial Cível –

Anexo Mackenzie. ∗∗Estudante do curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Conciliador do Juizado Especial Cível –

Anexo Mackenzie e estagiário jurídico do Escritório de Advocacia Justin, Pereira, Oliveira & Talamini – Sociedade de Advogados. ∗∗∗Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito

Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora Especial do Vice-Governador e do Governador do Estado de São Paulo (2003-2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1994-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do Município de São Paulo (1972-1996).

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1. Sistema político cubano: pressupostos teóricos e características

Em 1959, após a tomada do poder pelas forças revolucionárias, Cuba conheceu um longo período de vácuo institucional1, este cenário se deveu principalmente a ausência de ideais políticos bem definidos entre as lideranças revoltosas. Nos primeiros anos após a eclosão do movimento de ruptura que destituiu Fulgencio Batista, os revoltosos procuraram rapidamente romper com o modelo antes adotado. No entanto neste primeiro momento não surgiram em Cuba ideais políticos coesos e capazes de imprimir forte expressão ao movimento revolucionário. Por isso, com o desmantelamento do aparelho estatal até então existente, o governo de facto conheceu longo período de poder irrestrito, no qual as leis eram promulgadas por decreto, dispensando assim qualquer deliberação prévia.

Tais circunstâncias perduraram até abril de 1961, quando Fidel Castro, já alinhado politicamente com a ideologia soviética, anunciou ao povo o caráter socialista daquela revolução2. A partir daí, o governo passou a dar ênfase na organização da massa proletária e na criação de instituições que resguardassem seus interesses, bem como na representação das diferentes camadas sociais frente ao governo3. Nesta segunda fase do itinerário político cubano, o governo utilizou-se dos fundamentos teóricos fornecidos pelo marxismo soviético, para estabelecer a base sobre a qual se desenvolveu o modelo político pós-revolucionário que, com algumas ressalvas e modificações, é adotado em Cuba até os dias atuais.

Em linhas gerais, a construção do sistema político-representativo cubano sofreu influência direta das constituições adotadas até então na União Soviética4, do ideário da Revolução Soviética de 1917, da Revolução Russa de 1905, da Comuna de Paris de 1871, em especial no estabelecimento do chamado “Estado Socialista dos Trabalhadores”, consagrado no artigo 1º das Constituições Cubanas de 1976, 1992 e 2002, cujo propósito é representar e servir os interesses de toda a população. Ademais, foram influenciados também pelas ideias de Lênin e Marx, no tocante às propostas socializantes e de Rousseau no tocante ao alinhamento civil e político da sociedade5.

O modelo adotado desenvolveu-se com relativa normalidade, pois as vultosas injeções de capitais provindas da União Soviética não permitiam que Cuba sentisse diretamente os efeitos das crises que ocorriam no mundo. Nesse período, desenvolve-se o monopólio estatal sobre a propriedade e os meios de produção, bem como um planejamento da economia de forma centralizada, com grande integração com os Estados socialistas. Em contrapartida, ainda que os grandes aportes monetários estrangeiros

1Cf. BENGELSDORF, Carollee. The problem of democracy in Cuba: between vision and reality. New York: Oxford University Press, 1994. p. 66 e ss.

2Cf. ROMAN, Peter. People's power: Cuba's experience with representative government. Lanham. Rowman & Littlefield Publishers Inc: 2003. p. 63.

3Deste momento até 1975 desenvolveram-se na ilha organizações de perfil socialista, como as Organizações Revolucionárias Integradas, de 1960, composta pelos militantes dos grupos revolucionários, esta mais tarde deu origem ao Partido Unido da Revolução Socialista (PURS), o qual, posteriormente, tem seu nome mudado para Partido Comunista Cubano (PCC), este que persiste até hoje como o único partido de Cuba.

4Leia-se aqui da Constituição Russa, de 10 de julho de 1918, da Constituição Soviética, de 31 de janeiro de 1924 e em especial da Constituição Soviética, de 5 de dezembro de 1936.

5Na obra de Jean-Jacques Rousseau os teóricos marxistas atentaram principalmente à questão da soberania do povo (mandat impératif), de modo que com o advento da Constituição Soviética de 1924, as idéias do pensador francês, adaptadas à realidade e às necessidades do período corporificaram-se no chamado Congresso dos Sovietes, este que mais tarde exerceu notável influência no modelo representativo cubano, em especial no tocante à formação das Assembleias Municipais.

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permitissem em grande parte a concretização de importantes melhorias sociais, estes acabaram por isolar Cuba do modelo econômico adotado nos demais países.

Em 1989, como consequência da derrocada soviética, é cessado o auxílio financeiro à ilha, impõe-se então a maior crise do período pós-revolucionário. As dificuldades econômicas manifestaram as agruras do regime, e a inadequação do modelo político cubano às realidades globais dos anos 1990. Tal dissonância é expressa principalmente por elementos intrínsecos ao regime, dentre ele: i. O conservadorismo político; ii. O desvio entre a ordem institucional estabelecida e regime existente e; iii. A excessiva concentração de poder. Tais desarranjos estruturais somados a grande burocratização do sistema e das claras restrições à democracia6, impuseram fortes limitações ao seu desenvolvimento.

O choque forçado entre a realidade cubana e as recentes demandas políticas e econômicas da Nova Ordem Mundial, trouxe a necessidade de adaptação do modelo até então vigente em Cuba. Assim, em outubro de 1991 ocorre o IV Congresso do Partido Comunista Cubano7, em seguida, no ano de 1992, é promulgada uma reforma constitucional com base nos ditames estabelecidos pelo Congresso. Entretanto, as mudanças adotadas se mostraram insuficientes, uma vez que não atenderam aos principais anseios populares, dentre eles: i. Maior participação política e; ii. Gradual abertura econômica8.

Atualmente, Cuba passa por uma crise ideológica, sendo clara a ansiedade por uma nova reestruturação política e econômica a ser adotada na ilha. Para tanto, foram preparados os apontamentos gerais do VI Congresso do Partido Comunista Cubano9. No entanto, tal documento, que contém orientações gerais para a condução do Estado Cubano, acabou frustrando os reformistas que aguardavam avanços democráticos, pois foram abordadas somente questões relacionadas à economia e à produção. Logo, resta apenas aguardar os primeiros efeitos práticos das medidas recém-adotadas, para assim se aferir com precisão o novo rumo da trajetória política cubana.

2. Sistema parlamentar e seu funcionamento

2.1. Preliminares

Antes mesmo de se adentrar no estudo do sistema parlamentar cubano é necessário fazer uma consideração imprescindível à correta interpretação do tema. O termo parlamento está diretamente relacionado à produção legislativa, de modo que não há de se falar na existência de uma casa parlamentar sem poderes legiferantes10. Tal ressalva preliminar é relevante, pois o sistema político

6Cf. VALDÉS PAZ, Juan. El espacio y el límite: estudios sobre el sistema político cubano. La Habana: Ed. Inst. Cubano de Investigación Cultural Juan Marinello & Ruth Casa, 2009. p. 136.

7O referido evento resultou no chamado Período Especial, sob o lema “salvar a Pátria, a Revolução e o Socialismo”. Esse período ficou marcado por mudanças gradativas e cuidadosas nas estratégias econômicas, políticas e ideológicas, a fim de reinserir o Estado Cubano no cenário internacional e superar a esta nova crise.

8Cf. VALDÉS PAZ, Juan. op. cit., p. 141. 9DIARIO Granma. Disponível: <http://www.granma.cubaweb.cu/2011/05/09/nacional/folleto%20lineamientos%20vi%20cong.pdf>.

Acesso em: 11 maio 2011. 10Neste sentido, dissertando sobre o termo aqui estudado Norberto Bobbio pontua que: "do ponto de vista funcional, os

Parlamentos são instituições geralmente polivalentes. A variedade de funções desempenhadas tem uma explicação no papel característico dos Parlamentos, que faz delas os instrumentos políticos do princípio da soberania popular. É deste papel que nasce para o Parlamento o direito e o dever de intervir, embora de formas diversas, em todos os estádios do processo político. Segundo o estádio e as modalidades de tal intervenção, haverá atividades de estímulo e de iniciativa

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cubano se divide em três níveis: i. Municipal; ii. Provincial e; iii. Nacional. Entretanto, apenas a Assembleia Nacional é dotada de poderes legislativos. Assim, em decorrência da adoção do Estado unitário e centralizador, não é possível incluir os órgãos políticos locais existentes nas 15 províncias e nos 169 municípios no sistema parlamentar, pois as leis emanam somente do ente político central.

Muito embora diversos teóricos políticos cubanos defendam a superioridade de seu sistema representativo, aos olhos do observador dotado de isenção, tal assertiva se afigura falaciosa. Em breve análise das competências constitucionalmente definidas a cerca das Assembleias Municipais, constata-se que seus componentes, os delegados municipais, detém atribuições que muito se assemelham a uma zeladoria local dos interesses centrais11. Salvo raras competências relevantes ao desenvolvimento regional12, todos os demais encargos atribuídos às municipalidades pela Constituição Cubana visam à manutenção do poder político13. Em suma, o delegado municipal exerce função extenuante14, não remunerada, subserviente ao poder central15, além de ser impedido de sair da localidade pela qual foi eleito durante a vigência de seu mandato16.

Quadro semelhante se encontra no estudo do relevo político dos entes provinciais, compostos de delegados escolhidos em eleições não competitivas17, realizadas a cada cinco anos. No tocante às Assembleias Provinciais a realidade não difere da encontrada na investigação anterior, pois as

legislativa, de discussão e de deliberação, de inquérito e de controle, de apoio e de legitimação. Tão variadas atividades podem ser globalmente compreendidas no quadro das quatro funções parlamentares fundamentais: representação, legislação, controle do Executivo e legitimação". (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1998. p. 883).

11Cf. ROMAN, Peter. op. cit., p. 73 e ss. 12Artigo 106 - Dentro dos limites da sua competência, as Assembleias Municipais do Poder Popular tem as seguintes

atribuições: (...) h) propor a criação e organização dos Conselhos Populares, na forma da lei; (...) j) aprovar o plano econômico e social e do orçamento do município, seguindo a política estabelecida para este pelos órgãos competentes da administração central do Estado, e supervisionar sua execução; k) contribuir para o desenvolvimento das atividades e do cumprimento dos planos de produção e entidades de serviços localizados em seu território a que estão subordinados ao que pode ser apoiada em comissões de seu trabalho e órgão de administração; l) avaliar a prestação de contas a apresentar relatórios ao seu Conselho de Administração e tomar as decisões adequadas sobre os mesmos.

13Artigo 106 - Dentro dos limites da sua competência, as Assembléias Municipais do Poder Popular tem as seguintes atribuições: a) aplicar e fazer cumprir as leis e outras normas gerais adotadas pelos órgãos superiores do Estado; b) eleger ou reeleger o presidente e vice-presidente da Assembléia; c) designar ou substituir o secretário da Assembleia; h) supervisionar e controlar as entidades subordinadas à municipal, com base em comissões de seu trabalho; d) revogar ou modificar as resoluções e disposições dos órgãos ou autoridades subordinados a eles, em violação da Constituição, leis, decretos-leis, decretos, resoluções e promulgadas pelos órgãos superiores do Estado ou lesivas aos interesses da comunidade, ou de outros territórios do país em geral ou propor a sua revogação para o Conselho de Ministros, depois de terem sido aprovadas em conformidade com competências delegadas pelos órgãos da administração pública central; e) aprovar os acordos e adotar medidas no quadro da Constituição e as leis existentes sobre matérias de interesse municipal, e acompanhar sua execução; f) nomear e substituir os membros do seu Conselho de Administração, mediante recomendação do seu presidente; (...) i) estabelecer e dissolver comissões de trabalho; (...) l) resolver todas as questões relativas à implementação da política de quadros elaborados pelos órgãos superiores do Estado; m) fortalecer a legalidade, a ordem pública e da capacidade de defesa do país; n) quaisquer outras funções atribuídas pela Constituição e leis.

14GARCÍA BRIGOS, Jesús Pastor. People's power in the organization of the Cuban socialist state. Socialism and Democracy, v. 15, p. 127, 2001.

15Cf. dentre outros, artigos 98, l, ll e 105, h, i, da Constituição da República de Cuba. 16Cf. BENGELSDORF, Carollee. op. cit., p. 267. 17Assim como nas eleições para a Assembleia Nacional do Poder Popular, nas eleições para as Assembleias Provinciais, o

número de candidatos lançados é exatamente igual ao número de vagas disponíveis, de modo que o candidato é considerado eleito ao obter mais da metade dos votos válidos em uma disputa eleitoral com ele mesmo, deste modo, só deixa de ser eleito se mais da metade da população daquela localidade não comparecer às urnas ou comparecer e não ratificar seu nome, neste caso outro é escolhido e submetido ao mesmo processo. Tal sistema ignora a faculdade de escolha dos eleitores, pois compele os mesmos a apenas confirmarem uma escolha indireta feita por outrem.

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disposições constitucionais que regulam estes organismos são semelhantes as atinentes às municipalidades, com pequenas alterações pontuais18. Se antes assinalamos a função das Assembleias Municipais como mera atividade de zeladoria de interesses centrais, podemos certamente classificar as Assembleias Provinciais como os órgãos encarregados da fiscalização da zeladoria municipal, que assim como o outro ente citado em nada se relaciona à função parlamentar.

2.2. Delimitação do ente parlamentar

O único órgão político dotado de poderes legislativos e constituintes no sistema cubano é a Assembleia Nacional do Poder Popular. Esta é atualmente composta por 614 (seiscentos e quatorze) deputados, eleitos em pleito não competitivo, sendo o último realizado em 20 de janeiro de 2008, com mandato de cinco anos. Entretanto, o parlamento cubano, diferentemente dos Parlamentos das demais Nações, mantém-se dissolvido durante a maior parte da sessão legislativa, ocorrendo apenas duas reuniões ordinárias por ano19.

Conforme expresso no artigo 8920 da Constituição da República de Cuba, o Conselho de Estado é o órgão que representa os interesses da Assembleia durante os períodos que esta não se encontra reunida. O referido Conselho é órgão interno à própria Assembleia, composto por 31 (trinta e um) membros21. Interessante salientar que durante grande parte da trajetória institucional cubana, o Conselho de Estado governa de fato e guia os rumos da Nação Cubana. Na análise aprofundada da estrutura dos órgãos de poder aqui expostos, é mister adotar a ordem lógica e enfocar inicialmente a Assembleia Nacional do Poder Popular, para depois concentrar esforços na compreensão do Conselho de Estado.

2.2.1. Assembleia Nacional do Poder Popular

Conforme definido pela própria Constituição22, a Assembleia Nacional do Poder Popular é o órgão supremo do poder no Estado Cubano e representa a vontade soberana de todo o povo, além de ser o

18No que tange à falta de liberdade destes entes pode-se confrontar o artigo 75, q da Constituição da República de Cuba. Já sobre suas funções vale citar: Artigo 105 - Dentro dos limites da sua competência, as Assembleias Provinciais do Poder Popular tem as seguintes atribuições: (...) h) aprovar acordos relativos a questões de administração em seu território e que, por lei, não corresponde à jurisdição geral da Administração Central dos órgãos provinciais ou municipais do poder do Estado; i) aprovar a criação e organização dos Conselhos Populares, sob proposta das Assembleias Municipais do Poder Popular (...) k) avaliar a prestação de contas os relatórios que lhes são apresentados pelos órgãos de administração e as Assembleias do Poder Popular em nível menor e tomar as decisões adequadas sobre os mesmos.

19As convocações para eventuais reuniões extraordinárias ficam a cargo do Conselho de Estado, conforme estabelecido no artigo 90, a, da Constituição da República de Cuba. Cf. VALDÉS PAZ, Juan. op. cit., p. 72-73.

20Artigo 89 - O Conselho de Estado é o órgão do Poder Popular Assembleia Nacional que representa entre uma e outra sessão, executa suas resoluções e cumpri os deveres que lhe foram atribuídos pela Constituição. Tem caráter colegiado aos fins nacionais e internacionais e é o mais alto representante do Estado cubano.

21Artigo 74 - A Assembleia Nacional Popular elege entre os seus membros, o Conselho de Estado composto por um Presidente, um Primeiro vice-presidente, cinco vice-presidentes, um secretário e vinte e três membros.

O presidente do Conselho de Estado é chefe de estado e chefe de governo. O Conselho de Estado é responsável perante a Assembleia Nacional do Poder Popular e a ela presta esclarecimentos por todas as atividades.

22Cf. artigo 69 e 70, caput.

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único órgão com poderes constituintes23 e legislativos. A Assembleia é composta por deputados eleitos em eleições não competitivas24, na proporção das vagas existentes e segundo procedimento estabelecido em lei complementar25, tendo os representantes função política cujo mandato é de 5 (cinco) anos. O processo de escolha popular dos deputados em Cuba é sui generis e assemelhado ao adotado no Brasil em 1976, quando do advento da Lei Falcão26.

No que tange às competências do órgão ora estudado, a Constituição lhe confere mais de duas dezenas de atribuições, dentre as mais relevantes são: i. Decidir sobre as reformas da Constituição; ii. Aprovar, alterar ou revogar as leis, após consulta popular; iii. Revogar, no todo ou em parte, o decreto-lei emitido pelo Conselho de Estado; iv. Discutir e aprovar os planos nacionais de desenvolvimento econômico e social; v. Discutir e aprovar o orçamento, bem como aprovar os princípios do planejamento e da gestão da economia nacional; vi. Opinar sobre o sistema monetário e de crédito; vii. Aprovar as diretrizes gerais da política externa e interna; viii. Declarar o estado de guerra em caso de agressão militar; ix. Aprovar tratados de paz; x. Eleger o presidente, o primeiro vice-presidente, os vice-presidentes, o secretário e demais membros do Conselho de Estado; xi. Revogar a eleição ou nomeação de pessoas eleitas ou nomeadas por ele e; xii. Exercer controle sobre os órgãos de Estado e de governo, além de conhecer, avaliar e tomar as decisões adequadas sobre os relatórios de responsabilidade que lhes forem apresentados pelo Conselho de Estado, Conselho de Ministros, Tribunal Popular Supremo, Procuradoria Geral da República e as Assembleias Provinciais do Poder Popular.

Ressalta-se que, dentre as funções precípuas do órgão acima descrito, muitas são de extrema importância na definição dos rumos do Estado Cubano. Todavia, a baixa periodicidade e a insuficiente duração das reuniões deste órgão, sem dúvida tornam insatisfatórias as análise e discussões das matérias acima citadas, pois conforme anteriormente explanado, a Assembleia se reúne duas vezes por ano, em sessões não superiores há três dias consecutivos. Não obstante a escassez de deliberações nos

23Leia-se aqui Poder Constituinte Derivado ou Reformador, para mais, Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Ed. Almedina, 2003. p. 95 e s.

24Nos termos dos artigos 92 e 93 da Lei Eleitoral os candidatos ao cargo de deputado nacional serão escolhidos por comissões eleitorais das Assembleias Municipais que nomeiam os candidatos aptos a concorrem às eleições. Ressalta-se que conforme já explicitado anteriormente, aqui o número de candidatos é exatamente igual ao número de vagas que determinado município tem direito de colocar na Assembleia Nacional, não havendo então concorrência entre candidatos. Ademais, não obstante esta forma anômala de "sufrágio" é reconhecido que muito embora não de forma institucionalizada, o Partido Comunista Cubano influencie diretamente na escolha dos candidatos aptos a disputarem as eleições. Para mais sobre a ingerência ilegal do PCC nos pleitos; Cf. SUÁREZ SALÁZAR, Luis. El sistema electoral cubano: apuntes para una crítica. In: DILLA, Haroldo. La democracia en Cuba y el diferendo con los Estados Unidos. Ed.: CEA, La Habana, 1995. p. 205, bem como; ROMAN, Peter. op. cit., p. 132.

25Cf. artigo 13 da Lei Eleitoral (Lei 72, de 29 de outubro de 1992). 26Nos termos do disposto no artigo 171 Lei Eleitoral, em Cuba é vedada a propaganda eleitoral por parte dos candidatos.

Assim, aqueles que almejam exercer funções políticas são apresentados aos eleitores por intermédio da Comissão Nacional Eleitoral que divulga em locais públicos e de grande circulação a biografia e a foto de cada um dos concorrentes. Peter Roman assinala que tais publicações dão ênfase no patriotismo, no grau de comprometimento com a revolução e outros elementos não essenciais à biografia dos candidatos, em detrimento das idéias, da experiência legislativa e do conhecimento de cada concorrente (ROMAN, Peter. op. cit., p. 141). Em consonância com o defendido anteriormente, tal quadro é muito similar ao imposto pela Lei nº 6.339, de 1º de julho de 1976, quando ficou estabelecido que na propaganda eleitoral, os partidos se limitassem a mencionar unicamente a legenda, o currículo, a foto e o número do registro do candidato na Justiça Eleitoral. Cabe aqui pontuar que o episódio citado integra a mais lúgubre fase da história institucional brasileira, na qual o povo foi alijado de direitos outrora adquiridos, dentre eles o da livre escolha de seus representantes, contudo, o Estado Cubano adota tal prática eleitoral como regra e ainda proclama-se uma “república unitária e democrática”, conforme enunciado no artigo 1º de sua Carta.

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infrequentes encontros do referido órgão27, acarretam em domínio dos debates28, pelos líderes de Partido, impossibilitando discussões e novos temas a serem abordados.

Não obstantes tais adversidades, outras ainda dificultam o processo legislativo cubano, a exemplo da busca de consenso nas votações pelo comando da Assembleia, que pressiona politicamente os representantes a fim de obter concordância maciça dos deputados. A liderança do Partido busca obter unanimidade como argumento de que a falta de interesses corporativos e de lutas entre poderosos grupos de interesse, ausentes num Estado de perfil socialista, permitem que os representantes atinjam um grau de consentimento impossível no Capitalismo. Contudo, uma análise equilibrada da composição absolutamente heterogênea da Assembleia29 permite concluir que tal convergência de opiniões, num mesmo sentido só pode ser atingida com o emprego de forte coerção política30.

Ademais, muitas vezes em pleitos importantes como, a aprovação de orçamentos e planos econômicos, que exigem complexa análise dos materiais e dados a serem votados, os deputados recebem com antecedência apenas sinopses sobre o tema, tendo apenas no dia da votação acesso a íntegra do material a ser votado. No mais das vezes, os deputados são obrigados a participar das votações mesmo sem terem acesso aos documentos e ao projeto de lei em questão, sob o pretexto de que “o prestígio da liderança” garantiria uma votação idônea31.

Assim, torna-se claro que, a Assembleia Nacional do Poder Popular, embora exista física e formalmente constituída, é um órgão que não realiza suas funções de fato no Estado Cubano. Em suas raras reuniões, o elevado número de deputados a se pronunciar as ingerências dos líderes do Partido nas deliberações e todos os demais infortúnios acima descritos, não permite o progresso natural dos debates, no sentido do desenvolvimento de críticas construtivas ao sistema instituído, impossibilitando a representatividade do povo cubano na referida Assembleia.

27Tamanha a falta de assiduidade das sessões da Assembleia que esta não tem ao menos um local solene para se reunir, fisicamente os encontros são improvisados no Palácio de Convenções de um Hotel na região periférica de Havana (Hotel Palco). Ademais, durante estes encontros barricadas e bloqueios militares são montados a centenas de metros do Hotel, isolando o local da reunião da presença popular, como os próprios autores deste artigo puderam testemunhar. Assim, muito embora o artigo 69 da Constituição da República de Cuba consagre que a Assembleia Nacional do Poder Popular representa e expressa a vontade soberana do povo, em verdade as reuniões deste órgão ocorrem de forma despercebida e distante do povo.

28Como ressalta o autor: “Deputados disseram-me que, devido a limitações de tempo, eles são desencorajados a intervir nas discussões durante o debate (clara exceção ocorre ao presidente Fidel Castro), e que não há tempo suficiente para uma discussão séria para que os parlamentares sejam capazes de compreender as necessidades e modificar a legislação vigente” (ROMAN, Peter. op. cit., p. 84, tradução livre). Mais adiante o mesmo autor ainda salienta que em 1988, por exemplo, o então presidente Fidel Castro dominou as discussões do plenário, utilizou 35% do tempo reservado aos debates em seu discurso pessoal e ainda interveio em 75 dos 78 diálogos entre deputados.

29Dos 614 deputados a média de idade é de 49 anos, sendo que: 78.34% são universitários, 20.68% possuem Ensino Médio, 63.52% não eram da Legislatura anterior (2003-2008), logo, 36.48% foram reeleitos, 60.91% nasceram depois da Revolução de 1959, 21.82% tinham menos de 10 anos quando do advento da Revolução, 17.26% conheceram o Capitalismo, 43.16% são mulheres, 64.33% são brancos, 19.23% são negros, 16.45% são mestiços, 46,42% são também delegados municipais. Fonte: PARLAMENTO CUBANO. Disponível em: <http://www.parlamentocubano.cu/index.htm>.

30“Deputados da Assembleia Nacional disseram-me da pressão que sentem para se conformar com os resultados, especialmente no momento das votações. Um deputado me disse que muitos se sentem intimidados e outros têm medo de não serem re-nomeados e reeleitos (em 1992, uma deputada que manifestou discordância com certos aspetos da Lei Eleitoral no decorrer do debate na Assembleia Nacional, não foi re-nomeada), e mesmo de serem punidos, pois os deputados não têm nenhuma base independente de apoio” (ROMAN, 2003, p. 87, tradução livre).

31Cf. ROMAN, Peter. op. cit., e ss.

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2.2.2. Conselho de Estado

O Conselho de Estado é o órgão integrante da Assembleia Nacional do Poder Popular que a representa em seus períodos de recesso32. Dentre outras, suas principais competências são: i. Emitir os decretos-leis; ii.Dar às leis existentes, se necessário, uma interpretação geral e obrigatória; iii. Exercer a iniciativa legislativa; iv. Dar instruções gerais para os tribunais, através do Conselho de Governadores do Supremo Tribunal Popular; v. Ratificar e denunciar os tratados internacionais; vi. Suspender as disposições do Conselho de Ministros e as resoluções e disposições das Assembleias Locais que não estão em conformidade com a Constituição ou com as leis ou que afetarem interesses maiores; vii. Revogar as resoluções e disposições dos governos locais que violam a Constituição, leis, decretos-leis, decretos e outras disposições emitidas por um órgão superior, ou afetar os interesses de outras localidades, e por fim; viii. Exercer todos os outros poderes conferidos pela Constituição e pelas leis ou concedidos pela Assembleia Nacional do Poder Popular33.

É importante salientar que nos termos do artigo 75, incisos, h e r, da Constituição da República de Cuba, cabe à Assembleia Nacional, revogar no todo ou em parte os decretos emitidos pelo Conselho de Estado. Contudo, tal hipótese não é factível, pois a Assembleia não irá revogar normas emitidas por um órgão que tem poderes de impor sanções políticas34. Ademais, ainda que o faça, certamente tal revogação tardaria a ocorrer, em virtude as reuniões de a Assembleia Nacional ocorrer apenas uma vez por semestre. Tal observação corrobora a tese aqui apresentada, no qual, o Conselho de Estado tem poderes quase ilimitados em Cuba, sendo a Assembleia Nacional mero “adereço popularesco” que confere robustez e legitimidade ao sistema político cubano.

Outrossim, conforme disposto no parágrafo único do artigo 74 da Constituição da República de Cuba, o presidente do Conselho de Estado é ao mesmo tempo chefe de Estado e chefe de Governo. Portanto, não obstante as atribuições do Conselho de Estado, ao presidente deste órgão, somam-se ainda os poderes enunciados no artigo 9335. Ante o demonstrado, observa-se ainda que no modelo cubano inexista a separação harmônica dos poderes, posto que a chefia do Poder Executivo seja exercia pelo presidente do Conselho de Estado, que é órgão interno do Legislativo36. Assim, em última instância, o Estado Cubano não é dotado de mecanismos fundamentais voltados à limitação do poder dos governantes e à garantia dos direitos fundamentais.

32Tendo em vista que as reuniões da Assembleia Nacional do Poder Popular ocorrem ordinariamente apenas duas vezes ao ano, e em períodos não superiores há cinco dias, pode-se aferir que o Estado Cubano fica mais de 95% do ano sob o jugo do Conselho de Estado.

33Note-se que com a inserção do último item elencado (Art. 90, q - Las demás que le confieran la Constitución y las leyes o le encomiende la Asamblea Nacional del Poder Popular) o legislador originário se absteve de limitar o poder do Conselho de Estado, pois não suficientes os dezenove incisos anteriores, o constituinte ainda introduziu ao texto este último dispositivo, carregado de subjetivismo, de modo a transpor quaisquer limites materiais ao poder do órgão.

34Cf. Artigo 90, incisos a, b e ñ, da Constituição da República de Cuba. 35Dentre outras competências se podem citar: representar o Estado e o governo e orientar a sua política geral; organizar e

dirigir as atividades, convocar e presidir às reuniões do Conselho de Estado e de Governo; assumir a liderança de qualquer ministério ou órgão central de governo; assumir o comando supremo de todas as instituições armadas e determinar a sua organização em geral; presidir o Conselho de Defesa Nacional; assinar os decretos-leis e outras resoluções do Conselho de Estado e das leis aprovadas pelo Conselho de Ministros ou do seu Comitê Executivo e determinar a sua publicação no Diário Oficial da República.

36Ao descrever a estruturação do modelo político inglês, Charles de Montesquieu exprimiu de forma irretocável o conceito basilar de separação dos poderes e assinalou que se um só órgão concentrar todo o poder, este certamente será corrompido, pois o poder corrompe o poder. Neste sentido, cf. MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das leis. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1997. p. 201, também: LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel, 1986. p. 54.

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3. Reflexões: Cuba e a Democracia

A exata noção do que é democracia é por certo inatingível por um só conceito37, pois tal termo possui complexa significância38. Como explana Canotilho, a impossibilidade de clara definição do termo ocorre, já que o princípio democrático não se compadece com uma compreensão única ou estática de democracia, ensina também o autor que: “democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e ativa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral e de liberdade de participação crítica no processo político em condições de igualdade econômica, política e social”.39

Ainda que sem a existência de definição precisa sobre o exato teor do princípio democrático, é possível afirmar que o sistema político cubano não apresenta elementos mínimos que possibilitem sua inserção no rol de Estado Democrático. Com efeito, em Cuba os eleitores não são colocados diante de alternativas reais de alternância e alçados à condição de poder manifestar suas predileções políticas, posto que as eleições não são competitivas e o candidato nomeado pelo Partido é o único em condições de ser eleito. Não obstante a relativização da soberania do povo, também inexistem fontes alternativas de informação e liberdade de expressão, uma vez que o Estado, através de seus agentes, controla todos os meios de comunicação.

Com efeito, em Cuba se pratica um exercício cosmético de democracia40, no momento eleitoral, pois inexiste o direito dos diferentes líderes políticos competirem por apoio e votos em eleições livres, apoiadas por instituições sólidas e capazes de refletir a vontade popular41. Em face de tais adversidades institucionais, é fundamental destacar que a democracia tem relação direta com a liberdade, e, sem ela, não é mais que mera retórica infundada, neste sentido, rememora-se o ensinamento de Norberto Bobbio, sobre o qual

É preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direito de liberdade de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc.42

37Para conceitos de democracia: Cf. FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 126, bem como; AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 42. ed. São Paulo: Ed. Globo, 2001. p. 331 e ss., também; BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. p. 30-31.

38Neste sentido, Fernanda Montenegro de Menezes pontua que: “a confusão terminológica começa na etimologia da palavra e espraia-se em regimes que são e dizem ser democráticos. Assim, o freqüente e banalizado emprego do termo democracia deve ser observado de forma criteriosa, uma vez que sua utilização nem sempre reflete ambientes que se coadunam com a vontade soberana do povo”. (MENEZES, Fernanda Montenegro de. A democracia econômica no constitucionalismo brasileiro. 2010. f. 17-18, 206 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010).

39CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 289. 40Analisando os escritos de Giovanni Sartori sobre "o que a democracia não é", podem-se encontrar vários elementos

integrantes do sistema político cubano, dentre eles; autoritarismo, Estado total, autocracia e outros. Assim, Cf. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada: o debate contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994. p. 250 e ss.

41Cf. LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 69 e ss.

42BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 20.

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Outro ponto que vai ao encontro dos argumentos apresentados, é o cerceamento incutido aos parlamentares que não desfrutam de prerrogativas que lhes assegurem liberdade, autonomia e independência no exercício de suas funções. Em julho de 1997, membros da dissidência interna do Grupo dos Trabalhadores foram presos pela publicação e distribuição de um artigo intitulado “O país pertence a todos”, no qual se defendia a adoção de um sistema multipartidário em Cuba. Observa-se que tal quadro de repressão aos dissidentes segue inalterado. Neste sentido, em escritos recentes que abordam a situação atual de Cuba, Oscar Espinosa Chepe considera que:

Em termos de liberdades civis, a sua posição é das piores, no quesito democracia tem nota zero, enquanto na violação dos direitos humanos iguala-se a países como a Eritréia, Guiné Equatorial, Mauritânia e Uganda, na liberdade de imprensa é reconhecida situação pior do que a da China e do Vietnam.43

Frente a toda conjuntura aqui evidenciada, pode-se asseverar que não é factível a subsistência de um Parlamento em um regime subjugado pela opressão. Ao mesmo tempo, também é impossível constituir uma democracia pluralista sem uma instituição parlamentar sólida, que ofereça espaço político à oposição e que seja palco de debates em favor da soberania popular. Neste caso, o Parlamento seria tão somente uma casa de leis, jamais um espaço aberto a propostas divergentes e opiniões contrárias que fortificam os alicerces de todo e qualquer sistema democrático.

Conclusão

O presente estudo pretendeu investigar a organização e funcionamento do sistema parlamentar cubano, comentou-se ainda, a perspectiva das transformações desenvolvidas na ilha a partir do êxito do movimento de 1959. Do exposto, extraiu-se que após o alinhamento com a ideologia soviética, Cuba passou por transformações estruturais que cercearam suas relações internacionais. Após anos de isolamento e prosseguidas medidas centralizadoras, o modelo político cubano se resume a relações de poder inteiramente fechadas e impositivas.

Concluiu-se que muito embora tal Estado atualmente se proclame uma república unitária e democrática, não o é, dados os traços fundamentalmente desfavoráveis que caracterizam seu regime de liberdades. A análise da atividade parlamentar demonstrou inequivocamente que o poder não reside na Assembleia Nacional do Poder Popular, mas sim, sob o jugo do Conselho de Estado e de seu presidente, o que configura clara perturbação à separação harmônica dos poderes.

No mais, verificou-se a existência de grande controle sobre os meios de comunicação de massa, posto que toda a mídia é controlada por entes governamentais, o que obsta, no todo ou em grande parte, o exercício das liberdades de opinião, de reunião e de associação política. Não suficientes tais restrições, notou-se ainda que em Cuba, mesmo os parlamentares não tem direitos fundamentais à opinião e são presos quando externam posições que contrariam frontalmente os anseios do poder central.

43ESPINOSA CHEPE, Oscar. Cambios en cuba: pocos, limitados y tardios. La Habana, Cuba, 2011, p. 89. Disponível em:

<http://reconciliacioncubana.files.wordpress.com/2011/03/cambios-en-cuba.pdf>. Tradução livre.

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Finalmente, foram brevemente perpassadas reflexões comparativas entre a situação política prevalente em Cuba e a democracia. Findou-se o presente estudo consolidando o posicionamento no qual sem o estabelecimento de uma democracia equilibrada é inviável a sustentação de um Parlamento aos moldes democráticos, restando neste caso, apenas um órgão legislativo ornamental, que não reflete as aspirações populares. Por esta razão, afirma-se que enquanto o governo instituído conservar práticas de poder como as explanadas neste trabalho o povo cubano permanecerá distante da verdadeira democracia.

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VI. O PARLAMENTO E AS CRISES NA REPÚBLICA ARGENTINA:

Apontamos acerca do ferramental jurídico-constitucional do Poder Legislativo Argentino e seu comportamento nas crises das últimas décadas

Fernando Fabiani Capano∗

Introdução

A República Argentina não se difere dos seus demais vizinhos sul-americanos no que diz respeito ao enfrentamento regular de crises envolvendo suas instituições políticas e econômicas. País que se estende por vasta e complexa região geográfica da América do Sul, o exercício da democracia, ainda que com peculiaridades, é ainda jovem em seu território e sujeito a regulares percalços. É o que nos indica sua história ao longo do século XX e, por que não dizer, neste primeiro decênio do século XXI.

Em artigo versando acerca de hipóteses sociais e políticas comparativas entre Brasil e Argentina ao longo dos últimos cem anos, Vicente Palermo afirma:

E quanto à Argentina? No século XX, ela tem sido uma república muito precária - tanto assim que precisamos de muito boa vontade para falar de "história republicana argentina" durante o último século. Muitas vezes, afirmo, em ambos os países, que, com a corda no pescoço e diante da obrigação de fazer uma distinção resumida entre nossas culturas políticas, tentaria salvar-me dizendo: enquanto no Brasil se diz "ao inimigo, a lei", na Argentina, usa-se "al enemigo, ni justicia". Aliás, "ao inimigo, nem justiça" não é uma expressão que eu tenha imaginado em pesadelos, ela foi concebida (ou recuperada) por Juan Perón. Gostaria de enfatizar que ela fez escola, não somente entre os peronistas, mas também entre os "gorilas". É claro que isso tem uma justificativa movimientista, tanto em uns como em outros: se os inimigos são inimigos da pátria, do povo, da liberdade, da razão, da justiça, então por que haveriam de merecer nossa justiça? E a validade do dictum torna-se rotineira, porque todo o adversário é "inimigo de", e todo o conflito de interesses transforma-se em "política" de inimizade. Na Argentina dos extremos, tem-se apagado a lei, enquanto, no Brasil dos extremos, tem-se utilizado a lei como instrumento a serviço de quem está, por condição social e estatal, acima dela.1

É no contexto trazido por Palermo, em que a lei, no bojo da luta entre os grupos sociais argentinos foi freqüentemente ignorada em diversos momentos do século passado, que surge a necessidade de indagar-se acerca do papel institucional que possui o Parlamento deste País, quer seja do ponto de vista de sua participação no agravamento dos episódios de rompimento do tecido social, quer seja do ponto de vista do ferramental colocado à sua disposição para o enfrentamento da crise, já que, além de espelho da

∗Advogado em São Paulo, Coordenador Jurídico da Associação dos Policiais Militares Portadores de Deficiência Física do Estado

de São Paulo - APMDFESP. Especialista em Administração de Empresas pela FGV/EAESP. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessor da Presidência do V TED da OAB/SP. Membro Efetivo da Comissão de Direito Militar da OAB/SP.

1PALERMO, Vicente. Algumas hipóteses comparativas entre Brasil e Argentina no século XX. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 33, jun. 2009.

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sociedade em que está inserido, o Poder Legislativo de um País complexo como a Argentina pode-nos fazer entender as razões pelas quais determinadas políticas são levadas a cabo e terminam, por assim dizer, em imenso sucesso ou (e por vezes ‘e’, dependendo do ângulo de visão adotado), em retumbante fracasso.

1. Breve histórico dos governos argentinos das últimas décadas e suas principais crises

Os últimos trinta anos têm sido de relevante importância para a República Austral. Neste período, a nação Argentina retomou seu exercício democrático formal, saindo, no início dos anos 80 de uma ditadura famosa por suas atrocidades, capazes até de chocar os regimes fortes de seus vizinhos na época2, para se estabelecer como sociedade preocupada em garantir aos seus cidadãos uma existência digna, na esteira da cartilha que prega a efetivação dos direitos humanos em sua máxima amplitude.

Com efeito, no final da década 80, a sociedade argentina imbuiu-se em praticar os valores neoliberais então vigentes, cujos resultados, positivos e negativos, apareceram com força na década seguinte.

Raúl Alfonsín foi escolhido para conduzir o País após o regime militar e, comprometido com a asfixiante luta contra a espiral inflacionária, propõe, lastreado pela sua grande coalizão de forças políticas, o ‘Plano Austral’, visando, entre outros objetivos, ajustar-se às exigências do Fundo Monetário Internacional, querendo com isso garantir o fluxo regular de capitais estrangeiros para o País, a estabilização da economia e, por via de conseqüência, da moeda. O plano visava ainda criar condições para a rápida conquista do superávit comercial com o incremento das exportações, viabilizando, portanto, o pagamento dos empréstimos que estruturavam a dívida externa da Argentina.

Apesar de afinado com as necessidades econômicas e políticas da época, os efeitos da aplicação do Plano Austral agravaram os problemas enraizados na estrutura social argentina, terminando por fazer o plano e o próprio Governo naufragarem. Em artigo intitulado “Argentina: os dilemas da democracia restringida”, as sociólogas Aída Quintar Alcira Argumedo tratam da questão da seguinte maneira:

A implementação do Plano Austral agrava a polarização socioeconómica e deteriora ainda mais a capacidade reguladora do Estado. Essa falta de regulação favorecia os grupos econômico-financeiros, que utilizariam esses imensos recursos para incrementar a fuga de capitais, iludindo sistematicamente a inversão produtiva no país, enquanto que a especulação financeira continuou atuando como o elemento fundamental para a obtenção de benefícios. Por causa dessa dinâmica, o plano começa mostrar suas fraquezas. Estas tornam-se manifestas na crise estrutural do Estado, que já não pode continuar com as transferências para os grupos empresários concentrados e, ao mesmo tempo, cumprir com os serviços da dívida. Em 1987 esses limites obrigam a uma reformulação da política econômica, que entretanto não consegue atingir resultados satisfatórios, alimentando ainda mais o protesto dos trabalhadores. Nesse contexto, diante uma forte pressão dos militares e apesar da grande mobilização de massas que se realizou em apoio ao presidente, ele decide não apenas desmobilizar a população

2Acerca deste triste período histórico da Argentina, recomendamos, entre outras obras e artigos de relevo, o trabalho de Maria José Guembe, cuja análise da decisão judicial que reabriu os processos que versavam sobre os crimes políticos cometidos durante a ditadura Argentina é leitura obrigatória. GUEMBE, María José. Reabertura dos processos pelos crimes da ditadura militar Argentina. Sur, Revista Internacional de Direitos humanos, São Paulo, v. 2, n. 3, dec. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452005000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16 jul. 2011.

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mas coloca no Parlamento os projetos de lei de Ponto Final e de Obediência Devida, cujo objetivo era garantir o resguardo da impunidade militar. A confluência desses fatores influi em 1987 na perda de apoio eleitoral para os deputados e governadores da UCR, enquanto que o partido Justicialista consegue triunfar na maioria das províncias.3

A crise de estrutura do Estado Argentino desenhou-se de maneira bastante gravosa para a sociedade, corroendo os salários e precarizando a situação da classe média. Neste cenário, as greves trabalhistas da época, acrescidas de um momento de hiperinflação, erodiram a imagem do Presidente Alfonsín, inflando a oposição do Partido Justicialista. Carlos Menem, seu líder, triunfaria nas eleições de 1989.

Menem, ex-governador da província argentina de ‘La Rioja’, era o típico caudilho regional. Sua campanha, cujo lastro foi a convulsão social instalada durante o governo anterior, baseou-se no clássico discurso populista dos políticos da linha peronista.

No governo, diante da consolidação de um mundo unipolar após a queda do muro de Berlim e a desintegração da União Soviética, empenhou-se em construir uma relação bastante estreita com os Estados Unidos, adotando suas recomendações plasmadas no que ficou conhecido como “consenso de Whashington”4. Nesta linha, aceitou de maneira incondicional o paradigma liberal-econômico, implantando um ousado programa de governo pró-mercado, cuja linha mestra passava pela privatização de empresas públicas, liberalização do sistema financeiro e pela edição da famosa ‘lei de convertibilidade’5, ocasião em que, com base em uma taxa de câmbio fixa, uma nova moeda argentina, o peso, passaria a ter relação de igualdade com o dólar.

O programa de Menem logrou êxito inicial em derrubar o monstro inflacionário, tornando o País mais palatável ao gosto da opinião pública argentina e também mais seguro e atrativo para investimentos estrangeiros. No entanto, mais uma crise se avizinhava. Acerca deste período, Vadell assevera:

(...) os primeiros problemas surgiram em 1995. A Argentina sofreu o impacto da crise econômica de dezembro de 1994 no México, o que provocou a saída de capitais e mostrou a fragilidade de programa econômico baseado no Currency Board e na abertura indiscriminada da economia. O governo Menem, com o ministro de Economia Cavallo, e seu sucessor, Roque Fernández, não modificou as diretrizes da política econômica. Em finais de 98, a economia argentina começou a entrar numa espiral de queda. O círculo vicioso de déficits crescentes e confiança em declínio mostrou-se impossível de ser quebrado. Além dessas variáveis da economia doméstica, o contexto externo não se mostrou favorável. (...) A sobrevalorização da moeda, acompanhada de um programa de abertura comercial na Argentina, favoreceram as importações. Assim, a balança

3QUINTAR, Aída; ARGUMEDO, Alcira. Argentina: os dilemas da democracia restringida. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 49, 2009.

4Sobre o que representou o chamado ‘Consenso de Whashington’ para as economias latino-americanas, recomenda-se a leitura de importante artigo de autoria de Paulo Nogueira Batista, cujo título é O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. Disponível em: http://www.fau.usp.br/cursos/graduacao/arq_urbanismo/disciplinas/aup0270/4dossie/nogueira94/nog94-cons-washn.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2011.

5Lei, de iniciativa do Poder Executivo, aprovada pelo Congresso Argentino em 22 de março de 1991.

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comercial de bens e serviços foi negativa em praticamente todo o período que durou a conversibilidade.6

Importante ressaltar que no governo Menem, o expediente dos ‘decretos de emergência’ expedidos pelo Poder Executivo (alguns de duvidosa legalidade constitucional), em especial aqueles destinados a regular assuntos econômicos, foi amplamente usado para dar lastro às reformas e políticas que estavam sendo implementadas. De certa forma, a debilidade do Poder Legislativo argentino na década de 90 criou um cenário de ‘hiper-presidencialismo’7 que apenas aprofundou, nas portas do século XXI, a noção por parte do povo argentino de que o governo Menem estava severamente envolvido em escândalos, permitindo o fortalecimento das condições que, somadas ao temerário cenário externo mencionado por Vadell, resultaram na grave crise econômica-institucional pela qual ainda passaria o País no início do primeiro decênio do século XXI.

No final dos anos 90, o enfraquecimento do Partido Justicialista, representado fortemente, na oportunidade, pela figura de Menem, foi cristalino. A derrota sofrida na capital do País em 1996, ocasião em que o eleitorado escolheu um Chefe de Governo de corrente política distinta, bem como a maioria obtida pelo Partido FrePaSo nas eleições legislativas da Província de Buenos Aires de 1997, foram signos distintivos para a oposição unir-se em ampla coalizão para derrotar o Governo nas eleições presidenciais de 1999.

Nesta conjuntura, em 10 de dezembro de 1999, Fernando de la Rúa e seu vice, Carlos ‘Chacho’ Alvarez, lastreados no que a oposição eleitoral convencionou chamar de “Aliança”, assumiram o poder após dez anos de governo peronista-justicialista. Embora compromissados em governar com a máxima transparência, destruindo o ‘gosto’ pela corrupção associado ao Governo de Menem pela sociedade argentina, Fernando de la Rúa e sua plataforma política eram reconhecidamente fracos, sem grandes oportunidades de agir com condições reais de governabilidade.

Na época, além de enfrentar um Senado com maioria ampla de peronistas, Fernando de la Rúa governava um País em que 17 províncias estavam nas mãos da oposição. Dois outros fatores foram também fundamentais para a derrocada política do Governo. Novamente iremos nos socorrer de Vadell:

O segundo fator é constituído pelas próprias características pessoais do ex-presidente De la Rúa. A falta de liderança e carisma fazia dele um presidente dependente de outros líderes partidários e de um círculo familiar e de amigos fechado que influenciava suas decisões. O terceiro acontecimento que enfraqueceu ainda mais esse governo foi a

6VADELL, Javier Alberto. A política internacional, a conjuntura econômica e a Argentina de Néstor Kirchner. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 49, n. 1, jan./jun. 2006.

7Acerca deste período da história argentina em que floresceu o hiper-presidencialismo, Mili Legrain nos fala: “Desde el inicio, el mandato de Menem se caracterizó por una fuerte concentración del poder en manos Del Ejecutivo. El nuevo presidente supo aprovechar la amenaza de la crisis fiscal y de una hiperinflación galopante para justificar un estilo de gobierno por decretos, que se mantendría tras el periodo de emergencia. Los decretos de necesidad y urgencia no eran autorizados por la Constitución, pero personalidades oficiales proclamaban que la República Argentina se encontraba ante una emergencia económica que requería métodos drásticos para afrontarla, con el pretexto de que ‘Mañana puede ser demasiado tarde’.” LEGRAIN, Mili. La crisis Argentina de diciembre de 2001: debilidad Institucional y falta de legitimidad del Estado. Biblioteca Universidad Complutense. E-prints Complutense. Disponível em: <http://eprints.ucm.es/11249/1/WP08-04.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2011.

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renúncia do vice-presidente, por um acontecimento de corrupção e subornos no Senado, no tratamento da lei de reforma trabalhista.8

De outro lado, a perspectiva econômica, após décadas de esforço ‘liberalizante’, também era extremamente delicada. Em pouco tempo, o País pagaria um preço extremamente caro por ser aluno exemplar do FMI, desaguando em um terremoto institucional que teve seu ápice nos dias finais do mês de dezembro de 2001.

No dia 19 daquele mês, o Presidente de la Rúa, após constatar o estado falimentar técnico das finanças do País e o grande volume de capitais estrangeiros em fuga, decretou a restrição aos saques de depósitos bancários em território argentino, gerando um furioso protesto popular nas ruas das principais cidades, culminado com uma violenta repressão das forças policiais do Estado (com trinta mortos saídos do confronto) e a conseqüente decretação de estado de sítio. Ato contínuo, no anoitecer do dia seguinte, Fernando de la Rúa apresentou sua renúncia, saindo da cena política e deixando o País no mais profundo caos institucional.

Durante os dez dias seguintes, reflexo da completa desorganização política, quatro Presidentes se sucederam no poder. Em difícil composição das forças políticas durante este complexo período, o Congresso acordou a assunção à Presidência da República do senador Eduardo Duhalde, que, de imediato, na esteira da moratória decretada naqueles dias, acabou com a conversibilidade monetária, pondo fim na norma primordial que dava esteio à política econômica praticada desde o início do governo menemista.

Avaliando o enorme impacto deste período nefasto para a sociedade argentina, mais uma vez Vadell afirma:

O impacto social das crises da segunda metade dos anos 90 foi dramático para a sociedade argentina. Alguns dados mostram o grau de seriedade da situação social do país. O desemprego aberto superou, em 2002, 20% da população ativa, o PIB tinha declinado numa taxa anual de 16,3% durante o primeiro trimestre de 2002, o que representou um recorde. Os salários reais abaixaram 18% durante o decorrer desse ano. As taxas de pobreza e de indigência chegaram a níveis nunca antes vistos: os dados do governo indicam que 53% dos argentinos viviam abaixo da linha de pobreza, sendo 25% da população indigente (necessidades básicas não satisfeitas). Entre 1998 e 2002, elevou-se a pobreza extrema em 223% na Argentina. Um fato único num espaço de tempo tão reduzido. Em 2001, a participação dos trabalhadores no PIB caiu ao nível mais baixo da história argentina.9

Eduardo Duhalde conduziu um governo de transição com mandato não outorgado pelo povo argentino através de eleições regulares. Apostando na ‘pesificação’ da economia do País, ajustou o valor da moeda para, após a estabilização, ocorrida em 12 meses, flutuar em 33 centavos de dólar para cada peso argentino aproximadamente10. Tomou medidas duras na esfera econômica que incluíam, entre

8VADELL, Javier Alberto. op. cit. 9Id. Ibid. 10LEGRAIN, Mili. op. cit.

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outras decisões, a manutenção da restrição aos saques bancários e a proibição da indexação de tarifas, com preços ditados e controlados por política governamental.

Embora amargas, posto que prejudicavam milhares de empresas e correntistas do País, ocasionando uma enorme corrida ao Judiciário argentino, além de carecerem de certa legitimidade política, tais medidas, que, por óbvio, só poderiam ser levadas a cabo por uma governo-tampão, ajudaram, no longo prazo, a colocar a economia Argentina de volta nos trilhos da governabilidade.

Do ponto de vista da prática política, o Presidente Duhalde convocou, no ano de 2002, uma mesa de diálogo com amplos setores da sociedade. Seus objetivos, além de dar mínimo calço ao governo, eram fomentar um consenso nacional em torno da implementação de novas políticas sociais visando contornar a preocupante degradação das classes média e baixa argentinas, além de tentar superar, pela via da legitimação da atuação estatal, a credibilidade perdida ao longo dos primeiros anos da década nas instituições democráticas do País. Tais metas não foram alcançadas em sua plenitude, pois, com a antecipação das eleições presidenciais, Nestor Kirchner chegou ao poder em 2003.

Kirchner era, no momento em que se tornou Presidente, considerado um governante fraco pelos analistas políticos e pela população em geral. Segundo se dizia, estaria exposto às intermináveis e virulentas disputas políticas internas havidas no seio do Partido Justicialista-Peronista e, portanto, seu governo poderia rapidamente sucumbir em conseqüência da possível, e neste caso alarmante, falta de lastro político. Outro argumento que se colacionava a esta linha de raciocínio era o fato de Kirchner ter sido eleito, formalmente, com apenas 22% dos votos do eleitorado argentino, já que, o segundo turno das eleições presidenciais havia sido abruptamente cancelado em conseqüência da desistência de Menem, então detentor de aproximadamente 24% das preferências argentinas. Concluía-se, portanto, que o governo eleito neste confuso cenário político-institucional poderia carecer severamente de legitimidade para impor sua agenda.

Logo que tomou posse, ciente do panorama que se desenhou acima, Kirchner procurou rapidamente cimentar sua liderança junto ao fragmentado Partido Justicialista, causando excelente impressão aos olhos da opinião pública. Buscou, outrossim, a construção de uma ampla aliança no Congresso Argentino como meta política prioritária e de curto prazo, movimento que foi batizado de ‘transversalidade’, porquanto congregou peronistas e não-peronistas, incluídos, nesta miríade de forças, ex-membros do Partido FrePaSo, nacionalistas de esquerda, sociais-liberais, e sociais-democratas, além de sindicalistas e outros grupos sociais que deram ao Governo o calço político necessário para agir.

Ao longo de seu governo, Kirchner optou, na esfera econômica, por dar contorno nacionalista preciso nas negociações com o FMI, rompendo com as tradicionais relações de submissão que eram características dos governos Menem e De la Rúa. Deste modo, empurrado também pela conjuntura internacional propícia ao enfraquecimento do Fundo em suas intervenções nos países periféricos, Kirchner optou por conceder prioridade ao desenvolvimento do mercado interno em detrimento das organizações que estavam inseridas em setores dependentes de vínculos internacionais, que, até aquele ponto, conduziam direta e indiretamente os destinos econômicos do País. Este cenário nos é apresentado por Roberta Rodrigues Marques da Silva:

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No âmbito doméstico, a emergência de uma nova coalizão governante, que concedeu centralidade ao setor empresarial voltado para o mercado doméstico, que apóia um modelo cambial competitivo, definiu quais interesses foram incluídos na agenda definida pelo governo Kirchner no engajamento das negociações com o FMI. Setores com vínculos internacionais, como credores da dívida, bancos estrangeiros e firmas prestadoras de serviços públicos privatizados perderam o poder de veto sobre o sistema político argentino, e viram seus interesses excluídos no processo decisório em matéria de política econômica.11

Esta linha de condução política esculpida em um novo tipo de nacionalismo latino-americano, cujo paradigma era o governo chavista venezuelano, acrescida, no âmbito econômico, da mantença de uma política de câmbio chamada ‘competitiva’ (cujos resultados propiciavam uma efetiva valorização da balança comercial do País, com os produtos argentinos atingindo bons preços no mercado internacional e um grande crescimento do PIB), mantendo, de outro lado, a inflação controlada, premiaram com sucesso os primeiros anos do governo kirchnerista. Nesta linha, as eleições de 2005 foram encaradas como plebiscitárias da atuação do Governo e nelas, Kirchner sagrou-se, de uma maneira geral, vencedor.

No entanto, e aqui pretendemos traçar algumas linhas do momento contemporâneo argentino, a segunda metade do primeiro decênio deste século não foi, sobremaneira, amplamente favorável ao modo kirchnerista de governar, embora ainda encontre eco em parcela respeitável da sociedade Argentina.

Reflexo deste pensamento é a leitura de César Altamira, que, refletindo acerca do contexto social e político argentino em que agia o governo de Nestor Kirchner nos últimos anos de seu mandato, cuja atitude, até com mais flagrância, é também perpetrada pela Presidente Cristina, nos diz:

O kirchenrismo recorreu, quase que de maneira permanente, a uma lógica política inscrita em uma abordagem assentada em leituras binárias (nós eles; povo-antipovo; povo-oligarquia). Trata-se de leituras que reclamam interdependências, onde um pólo não existe sem o outro; neste sentido o kirchnerismo mostrou-se como um fiel continuador da tradição política peronista, ao instalar um olhar assentado no grande relato nacional. Mas, este esquema de pensamento acelera o caminho para uma perigosa redução da política, na medida em que desloca o conflito para fora de toda disputa democrática. Nesse sentido, o conflito com o campo não pode ser reduzido, como tentou o governo e seu coro de intelectuais, a oposição de duas Argentinas em conflito: campo-governo, oligarquia-povo, direita-governo nacional e popular. Esta abordagem fecha imediatamente a possibilidade de complexificar a análise, os posicionamentos e antagonismos, ao mesmo tempo em que busca a deslegitimacão política do outro. O que não inibe a necessidade de reconhecer a existência de antagonismos irreconciliáveis (capital-trabalho), que, sem dúvida, estão longe de corresponder aos mencionados pelo governo. Não existem duas Argentinas. O pensamento binário se referencia em épocas historicamente superadas. Pelo contrário, são múltiplas e variadas as Argentinas que existem. Nesse sentido, devemos reconhecer, com relação a nova geografia social agrária, que desde a década de 90 se instalaram novas cadeias produtivas que modificaram drasticamente a geografia social no campo, mediante a utilização intensiva de biotecnologia, que alteraram as relações sociais produtivas fomentando o surgimento de novos atores: desde Monsanto e Cargill, passando pelos pools de sementeiras que cresceram a sombra dos ganhos gerados no

11SILVA, Roberta Rodrigues Marques da. A Argentina entre as reformas econômicas neoliberais e a redefinição das negociações com o FMI (1989-2007). Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 17, n. 33, jun. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782009000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 29 jan. 2011.

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setor financeiro, até os subcontratados e os pequenos e médios produtores – muitos deles rentistas – ainda que marginais na hora da distribuição da renda.12

É de se perguntar se a Presidente Cristina, agora agindo em vôo solo, em conseqüência do recente falecimento de Nestor Kirchner, conseguirá manter-se na liderança e condução do movimento político-social organizado por seu marido e que dá lastro ao modo e método de governo kirchnerista, ainda que a crítica acerca do freqüente uso da lógica “amigo-inimigo” de que se vale a mandatária argentina e seus aliados, ignorando a complexidade da sociedade que governam e do mundo atual seja, a nosso ver, bastante consistente.

Com este questionamento, buscando perceber se há no horizonte de nosso País vizinho uma nova crise institucional se avizinhando, encerramos este tópico que tratou de analisar os governos argentinos das últimas décadas e a realidade política, social e econômica em que se encontravam mergulhados, quando enfrentaram dificuldades, sendo certo que, antes de cuidarmos das ações comissivas e omissivas do Parlamento Argentino ao longo do cenário histórico que desenhamos acima, necessário se faz tratar, em breve análise, das instituições parlamentares argentinas positivadas em seu ordenamento jurídico-institucional.

2. Do Direito Parlamentar Argentino – breve perspectiva constitucional

Com vistas a iniciar este tópico em que buscaremos analisar, de maneira concisa, a estrutura legal-constitucional em que se assenta o Parlamento Argentino, é preciso trazer a lição do Professor Jorge Horácio Gentile que, tratando da história da instituição parlamentar argentina, assim assevera:

Entre 1930 e 1983, (...), o Congresso esteve fechado durante 23 anos, 02 meses e 18 dias, pelo motivo dos seis golpes de Estado que quebraram a continuidade constitucional. (...). Lamentavelmente, os presidentes da República que mais influíram na vida política argentina do século XX, e que lideraram os partidos políticos mais importantes da nossa história: a União Cívica Radical e o Partido Peronista, logo chamado de Justicialista, não foram muito respeitosos com o Congresso.13

Como vimos, à semelhança de diversos países do continente sul-americano, a história parlamentar argentina é bastante conturbada e marcada por longos períodos em que a voz congressual do povo esteve calada.

12ALTAMIRA, César. O Kirchenerismo e as últimas eleições: uma leitura crítica. Revista Lugar Comum, Buenos Aires, n. 28, p. 87-103. Disponível em: <http://www.universidadenomade.org.br/userfiles/file/Lugar%20Comum/28/8%20O%20kirchnerismo%20e%20as%20ultimas%20eleicoes%20uma%20leitura%20critica.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2011.

13GENTILE, Jorge Horacio. Derecho parlamentario. Buenos Aires; Madrid: Ed. Ciudad Argentina, 2008. p. 98-99. Tradução livre do trecho: “Entre 1930 y 1983, (...), el Congreso estuvo clausurado durante 23 años, 2 meses y 18 días, con motivo de los seis golpes de Estado que quebraron la continuidad constitucional. (...). Lamentablemente, los presidentes de la Republica que más influyeron en la vida política argentina del siglo XX, y que lideraron los dos partidos políticos más importantes de nuestra historia: la Unión Cívica Radical y el Partido Peronista, luego llamado Justicialista, no fueron muy respetuosos del Congreso.”

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Hoje, com as bases e práticas democráticas lastreadas em quase três décadas de regularidade ininterrupta, embora com certos percalços, como já apontamos, o funcionamento bicameral do Parlamento Argentino tem como marco regulatório a Reforma Constitucional de 1994, sendo certo que os artigos 45 e 54 do referido documento legal tratam da composição da Câmara dos Deputados e do Senado respectivamente, visando garantir em suas redações, em teoria ao menos, a representação eqüitativa (no caso da Câmara) e igualitária (no caso do Senado) dos habitantes de cada uma das províncias que formam o Estado Argentino.

Merece nossa atenção, no contexto deste artigo, o mecanismo legal de impedimento das autoridades constitucionais previsto na Constituição Argentina, de cuja redação, em sua totalidade, é de claríssima inspiração norte-americana.

Deste modo, no momento em que o legislador constituinte trata da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, há previsão expressa, dentro das atribuições específicas de cada uma das Casas, sobre a possibilidade de início de um processo de impedimento mediante iniciativa da Câmara dos Deputados, bem como seu juízo de valor, a cargo do Senado Argentino.

Assim, à Câmara dos Deputados, cujos membros precisam ter ao menos vinte e cinco anos de idade, quatro anos de exercício pleno da cidadania e serem naturais da província que os elegeu (art. 48 da Constituição Argentina), cabe dar início ao processo que buscar apurar a responsabilidade do Presidente, Vice-Presidente, Chefe do Gabinete dos Ministros, Ministros e membros da Corte Suprema do País, em conseqüência de mal desempenho ou prática de crime durante o exercício de suas funções ou ainda pelo cometimento de crimes comuns (art. 53 da Constituição Argentina).

Já ao Senado, cujos membros necessitam ter no mínimo trinta anos e seis como cidadão argentino efetivo, além da renda anual de dois mil pesos, sendo também exigida a naturalidade da província que os elejam, ou ao menos ter dois anos de residência contínua nela (art. 54 da Constituição Argentina), cabe julgar os ocupantes dos cargos mencionados acima se processados pela Câmara, sendo certo que, no caso do Presidente da República, a sessão senatorial será presidida pelo Presidente da Corte Suprema.

Será necessário, para a declaração de culpabilidade dos envolvidos, o voto da maioria dos presentes, admitindo-se para tanto quorum de funcionamento de dois terços dos senadores argentinos (previsões do artigo 59 da Constituição Argentina). Importante acrescer, todavia, que tal julgamento não implica em atividade jurisdicional desempenhada pelo Senado. Trata-se, como dissemos, do mecanismo de impedimento, cuja valoração é de conteúdo meramente político, o que fica claro na redação do artigo 60 do diploma constitucional argentino.

É bem verdade que seu uso não é (e nem pode ser) freqüente. No entanto, em momentos de crises político-institucionais profundas e graves, como a que assistimos entre nós com o Presidente Fernando Collor no início da década 90, o Poder Legislativo Argentino encontra lastro constitucional autorizador para a retomada de rumos, sendo remédio amargo, porém, por vezes, necessário.

Seguem-se, da leitura da Carta Argentina, trinta e duas atribuições congressuais, todas expostas no artigo 75 da Constituição. Entre elas, legislar sobre matéria aduaneira e sobre as fronteiras do País, legislar acerca do sistema tributário nacional, bem como sobre a repartição de rendas entre os entes provinciais e a Nação, regular a moeda, ditar códigos legislativos, estabelecer Tribunais Regionais,

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construir um sistema de proteção dos direitos e garantias individuais dos cidadãos argentinos, aprovar tratados internacionais, declarar estado de sítio, etc.

Embora o legislador maior tenha sido corajoso quando da redação da Reforma Constitucional de 1994, em cristalino movimento que buscava, apenas alguns anos após a saída da ditadura argentina, construir e solidificar o Poder Legislativo como supremo comandante dos rumos do País, visto que eram pesadas as responsabilidades constitucionais inclusas no supramencionado artigo 75, a realidade, como pudemos perceber no primeiro tópico deste artigo, mostrou-se diferente.

Com efeito, diante da constante fragmentação dos movimentos políticos-sociais, aliado ao visível enfraquecimento dos partidos e a descrença popular na classe dos representantes do povo, características que se desenharam na década de 90 e afloraram com força no primeiro decênio do século XXI, o palco reservado aos legisladores foi tomado pelas figuras dos Presidentes da República e seus ministros.

Como já mencionamos aqui, exemplo cristalino deste processo se deu primeiro com Menem, governando sob a égide de leis de emergência, bem como com o Ministro Domingo Cavallo, figura de proa em diversos momentos da história recente argentina. É neste cenário de achatamento do Poder Legislativo argentino que iniciaremos o tópico conclusivo de nosso artigo, analisando o comportamento das correntes políticas, inseridas no Parlamento Argentino, ao longo das sucessivas crises das últimas décadas.

3. Comportamento das correntes e partidos políticos argentinos frente às crises das últimas décadas

Abrimos este tópico com a necessária contextualização do sistema de forças partidárias-eleitorais na Argentina dos últimos anos. Para tanto, nos utilizaremos das lições de Hochstetler e Jay Friedman que, centrando-se na historicidade das agremiações políticas argentinas, assim nos falam:

Historicamente, o sistema partidário argentino era classificado entre bi-partidário e moderadamente multipartidário; além dos dois partidos dominantes, o peronista Partido Justicialista (PJ) e a União Cívica Radical (UCR), havia considerável representação de terceiros na Esquerda e na Direita. Os partidos dominantes refletiam a principal divisão de classe, com apoio das classes baixas e trabalhadoras para os Peronistas e apoio das classes médias e altas para os Radicais, ainda que ambos os partidos se dirigissem a pessoas em todo o espectro econômico. As regras constitucionais reforçavam o controle bi-partidário: eleições simultâneas, nesse sistema presidencialista, produzem o efeito legislativo de "carona" de eleições presidenciais, em que o vencedor leva tudo. Mas outras regras permitiam representação mais ampla: eleições legislativas com listas partidárias e representação proporcional; estrutura federal; e a eleição indireta do Senado por assembléias das províncias. Tais fatores levaram a mais partidos que ocupavam cargos, especialmente nas províncias.14

14HOCHSTETLER, Kathryn; JAY FRIEDMAN, Elisabeth. Representação, partidos e sociedade civil na Argentina e no Brasil. Cadernos CRH, Salvador, v. 21, n. 52, jan./abr. 2000.

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E, continuando em suas análises, quando tratam da grande crise ocorrida em 2001, asseveram:

A sociedade argentina rebelou-se fortemente contra sua classe política em meados de dezembro de 2001. Sob a bandeira’ de que se vayan todos’, desde defensores de direitos humanos e Mães da Praça de Maio a movimentos de desempregados foram às ruas protestar contra o fracasso dos mecanismos formais de participação. Em 2002, parecia que um conjunto diverso de ONGS não-partidárias estava construindo uma arena alternativa para participação política horizontal e localizada. Mas quão profunda foi essa mudança? O sistema partidário argentino está em uma fase de incerteza, mas nem todos os partidos entraram em crise. E ainda que a sociedade civil tenha oferecido formas alternativas de representação, elas não estão substituindo a política de partidos.15

As grandes crises possuem, entre outras características, o condão de fazer despertar, nas massas populares, questionamentos acerca da salubridade de seu sistema de representação.

De um regramento constitucional reinaugurado em 1994, ocasião em que vigorava de maneira plena algumas regras ditadas pelo ‘Consenso de Whashington’, com Menem sobrepujando os demais atores da sociedade de Argentina; passando pela falência confessa do regime econômico-institucional em 2001, momento em que coube ao Congresso, ainda que com certo titubeio, retomar as rédeas da Política; até o surgimento de Nestor Kirchner e sua ampla coalizão com grandes setores políticos, alicerçando o surgimento de um novo líder que manejou, para o bem e para o mal, os destinos contemporâneos da Argentina; os papéis desenvolvidos pelos partidos argentinos, em especial pelo Partido Justicialista e pela União Cívica Radical, foram pendulares e viveram, desde a volta da democracia formal, momentos em que sua atuação congressual foi condição sine qua non para a mantença da normalidade e continuidade das instituições do País, como também ocasiões em que pagaram preço alto pelas infelicidades da Nação.

Foi, por exemplo, a falta de apoio congressual que minou o governo de Raúl Alfonsín da União Cívica Radical, colocando termo em seu mandato meses antes do previsto. Foi também o lastro da Partido Justicialista no Parlamento Argentino que possibilitou a Menem, como vimos no primeiro tópico deste artigo, a implantação de profundas e rápidas reformas neoliberais, cuja pedra de toque foi a criação de um regime de cambio fixo com paridade ao dólar.

Menem promoveu as reformas que entendeu necessárias pois o Congresso da época, cuja maioria justicialista funcionou como força política afiançadora, delegou poderes legislativos ao Presidente da República. Nesta oportunidade, o Poder Executivo Argentino concentrou grandes poderes e governou quase que de maneira unilateral, sendo certo que, para tanto, Menem abusava da edição dos decretos de necessidade e urgência, semelhantes, entre nós, às nossas medidas provisórias no regramento da década 90.

No governo seguinte, mais uma vez o Congresso delegou parte de suas atribuições ao Poder Executivo, o que revela, a nosso ver, curvatura indevida na relação entre Poderes. De la Rua, através de seu ministro Cavallo, conseguiu a aprovação no Parlamento Argentino, da concessão de poderes vastos para adotar medidas no campo econômico através de decretos.

15HOCHSTETLER, Kathryn; JAY FRIEDMAN, Elisabeth. op. cit.

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Com Duhalde, em um contexto em que havia de fato emergência e fragilidade das instituições e da própria democracia no País, em conseqüência direta da crise de 2001, ocorreu também a aprovação pelo Congresso da Lei de Emergência Pública e Reforma do Regime Cambial16, o que, por via de conseqüência, também foi lastro autorizador para uma autonomia cada vez mais flagrante do Poder Executivo, sendo certo que, diante deste cenário, o Parlamento Argentino esteve, após o controle da crise em 2002, novamente em posição secundária no palco da Nação.

Finalmente, nesta mesma linda de raciocínio, o Governo de Kirchner também se caracterizou por centrar grande parte das decisões políticas nas mãos do titular do Poder Executivo. Além disto, Nestor Kirchner manejou convencer também o Congresso a delegar-lhe poderes para tratar de assuntos orçamentários, sendo certo que também recorreu ao mecanismo dos decretos emergenciais de maneira abusiva.

Diante das relações descritas acima entre o Parlamento e os demais atores sociais argentinos, em especial no contexto das crises das últimas décadas, fica claro que os partidos e o próprio sistema político argentino, plasmados no Poder Legislativo, necessitam retomar o exercício de suas atividades com mais vigor, posto que possuem, como vimos no tópico anterior deste artigo, lastro constitucional suficiente para tanto.

4. Conclusões

Iniciamos nosso artigo analisando um período histórico bastante efervescente para a Argentina e seus cidadãos, posto que, saídos de um período obscuro de seu passado, enfrentaram com coragem as turbulências advindas da tentativa, com erros e acertos, da consolidação de instituições e práticas calcadas na democracia. Ao mesmo tempo, os desafios no campo econômico também foram gigantescos e exigiram dos sucessivos governos argentinos, grande capacidade de adequação, quer seja para se adaptar às exigências neoliberais dos organismos internacionais no último decênio da década 90, quer seja na oportunidade em que o impacto da grande crise de 2001 exigiu uma completa mudança de rumos.

Na análise da carta maior argentina, saltou-nos aos olhos a grande capacidade de atuação autorizada que possui o Parlamento do País. De outro lado, as últimas décadas mostraram que, por diversas vezes, em diferentes governos e contextos, o Poder Executivo ocupou o espaço reservado ao Congresso, em especial sob o fulcro da necessidade da tomada de medidas emergenciais. Tal tendência parece ser mundial, no entanto, seu reflexo na Argentina é especialmente preocupante.

A concentração de poder em uma de suas esferas, em especial no âmbito do Poder Executivo, gerou na Argentina o que Legrain17, já mencionada neste artigo, chamou de ‘hiper-presidencialismo’, sendo certo, que é por demais perigoso considerar o achatamento do Poder Legislativo como circunstância normal das nossas sociedades contemporâneas.

16Lei aprovada pelo Congresso Argentino em 06 de janeiro de 2002. 17LEGRAIN, Mili. op. cit.

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Finalizamos este artigo com as palavras de Antonio Carlos Alpino Bigonha e Luiz Moreira, que prefaciando a obra de Bruce Ackerman “A nova Separação dos Poderes”, nos alertam acerca da urgência em:

(...) restabelecer a democracia deliberativa e a multiplicidade típica dos Parlamentos; restabelecer a dignidade da política; restabelecer a importância para a sociedade do mandato parlamentar; restabelecer os Parlamentos como foro das tomadas de decisão;(...).18

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18BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz. Prefácio. In: ACKERMAN, Bruce. A nova separação dos poderes. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. xiii.

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VII. A COMPOSIÇÃO DO PARLAMENTO VENEZUELANO AO LONGO DO GOVERNO CHÁVEZ

Karin Pfannemüller Gomes∗

“...no es siempre la mayoría de la masa física que decide, sino que es la superioridad de la fuerza moral la que inclina hacia si la balanza política.” (Simón Bolívar, El Libertador )1

Introdução

Em virtude das transformações vivenciadas no cenário Latino-Americano desde a última década do século XX até os dias atuais, a democracia tem sido estabelecida nas nações sul-americanas em conformações diferentes das praticadas no Continente Europeu, ou mesmo na América do Norte.

“Junto con el control que se realiza a través de los votos populares, el control parlamentario constituye unos de los medios, más específicos y más eficaces del control político.2”

As crises econômicas e sociais têm grande vinculação com a crise política que se estabeleceu na América Latina, especialmente no tocante a democracia representativa e suas instituições. Mister se faz identificar alguns fatores que abrangem o quadro político, econômico e social da Venezuela que tem produzido um fenômeno singular na atualidade, comumente denominado “chavismo”

“(...), que la representación política no deja de ser ‘política’ porque existan normas electorales ni ha de ser concebida como representación ‘jurídica’ (lo que sería un dislate, claro está) para que pueda ser estudiada y tratada en el campo del Derecho Constitucional.3”

Portanto, o objetivo do presente artigo é identificar os fatores históricos, sociais, jurídicos e políticos que contribuíram para a composição do parlamento durante o governo de Hugo Chàvez.

∗Mestre em Direito Político e Econômico (2010) e Bacharel em Direito (2000), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Advogada em São Paulo e Professora de Filosofia na FEBAT – Faculdade Evangélica Batista do Brooklin e de Direito Constitucional.

1BOLÍVAR, Simón. Manifestó de Cartagena. Ministerio del Poder Popular para la Comunicación y la Información. Caracas, Venezuela: Impreso en la Imprenta Nacional, 2008. p. 28. Disponível em: <www.minci.gob.ve>. Acesso em: 09 jul. 2011.

2Id. Ibid., p.122. 3ARAGÓN REYES, Manuel. Constitución y control del poder: introducción a una teoría constitucional del control. Universidad

Externado de Colombia, 1999. p.119.

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1. Contexto Histórico da Venezuela

Como é notório, a província da Venezuela, primeiro estabelecimento espanhol nas Américas4, foi denominada como “Caracas”, local onde eram trazidos os índios5 escravos pelos traficantes. A História remonta frequentes disputas sangrentas entre os colonizadores e os habitantes naturais da Venezuela6, culminando sempre com a execução e martirização dos índios “com bárbaro refinamiento de crueldad.7”

“Sucedió á luego la eterna historia de la conquista: tratados de paz com los caciques, mala fe em cumplirlos, ora por los españoles, ora por los índios, y lo que no faltaba nunca, violentas disputas entre los mismos conquistadores.8”

As colônias espanholas também promoveram a comercialização de escravos negros durante todo o século XVIII. Segundo cálculos elaborados em 1812 por D. Andrés Bello, D. Luis Lópes Méndez, D. Manuel Palacio Fajardo, cerca de 62.000 (sessenta e dois mil) escravos negros foram introduzidos na Venezuela, sendo mais de 40.000 (quarenta mil) somente na província de Caracas9.

Durante todo o período colonial da Venezuela havia muita diversidade étnica e desigualdade de tratamento na legislação incipiente, de forma que, os grupos sociais se tratavam com grande inimizade e formou-se uma oligarquia social, principalmente para decisão de determinados assuntos municipais10.

Os índios obtiveram certa proteção legal, embora ainda reduzidos à servidão; os negros eram dizimados pelo trabalho escravo e totalmente excluídos da participação política; os crioulos não podiam conquistar altos empregos públicos, judiciais, militares e eclesiásticos; os pardos pobres eram excluídos do governo municipal e menosprezados pelos próprios crioulos e; os brancos peninsulares buscavam uma liberdade favorável aos mestiços auxiliando a própria atividade comercial existente11.

1.1. Representatividade no período Colonial

Os conquistadores espanhóis utilizaram sua experiência de governabilidade e representatividade na colônia, instituindo um Governador da província, que representava a autoridade do próprio Rei e o “Ayuntamiento”, órgão de autonomia municipal12, além a dualidade político-religiosa existente à época.

4A origem do nome “Venezuela” remonta às viagens de Américo Vespúcio. FOURTOUL, José Gil. Historia constitucional de Venezuela: la Colonia, la Independencia, la Gran Colombia. Berlín: Carl Heymann Editor, 1907. p. 27-28. Disponível em: <www.archive.org>. Acesso em: 04 fev. 2010.

5“...los aborígenes venezolanos encontrábanse (sic.) todavía en un estado social rudimentario, inferior no solamente al de los españoles sino también al de los indios que desde México hasta el Perú habían ya constituido poderosos y civilizados imperios.” Id. Ibid., p. 49-50.

6Id. Ibid., p. 39-40. 7Id. Ibid., p. 41-42. 8Id. Ibid., p. 27-28. 9Id. Ibid., p. 49. 10Id. Ibid., p. 58-59. 11Id., loc. cit. 12“El Licenciado Miquel José Sanz, á quien el gobierno de la Colonia encargó de formular las leyes municipales de Caracas.”. Id. Ibid., p. 87-88.

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Eram os próprios Governadores que indicavam seus “Tenientes” e “Regidores”, estes por sua vez, indicavam “Alcaldes Ordinarios”. Consta que em 1560, a comunidade da província da Venezuela elegeu um procurador para suplicar ao Rei que, no falecimento do então Governador, os “Alcaldes Ordinarios” governassem cada um em sua jurisdição13.

Durante todo o transcurso dos séculos XVI, XVII e XVII, a Espanha mantinha a Venezuela sob seu domínio econômico, social e político, com limitação de liberdades e direitos.14 Entretanto foram transformações no seio da sociedade15, notadamente nos de 1810 e 1811, que promoveram a Primeira Revolução Social e Política16 da Venezuela, abarcando ideias novas, tais quais: i. Eliminação das castas sociais; ii. Garantia de liberdade política a todos os mestiços e; iii. Adoção de novos métodos de “pensar e legislar.” Entretanto,

“La verdadera revolución, la que rematará en el Acta de Independencia, comienza con las representaciones políticas del Ayuntamiento y vecinos de Caracas en 1808. Pero como sucede siempre en casos semejantes, dividióse (sic.) en seguida la opinión en dos partidos; el uno radical, que abogaba por la revolución violenta é inmediata, y moderado el otro, que prefería los medios aparentemente legales de una evolución pacífica…17”

Entretanto, os nobres e fidalgos estabelecidos na Colônia permaneceram ao lado do Governo espanhol, com o objetivo de manter seus privilégios oligárquicos18, acarretando grandes dificuldades na confluência de forças e objetivos. Enfim, as eleições nacionais na Venezuela foram realizadas em outubro e novembro de 1810, com resultados significativos na representatividade americana no Parlamento, notadamente nas províncias de Caracas, Cumaná, Barcelona, Mérida, Trujilo e Margarita19.

Em 7 de julho de 1811 é aprovada no congresso a Ata de Independência da Venezuela, publicada em 14 de julho do mesmo ano, iniciando-se os trabalhos para elaboração das leis constitucionais que manteriam a segurança jurídica da República, Constituição esta que foi sancionada em 21 de dezembro do mesmo ano20.

13“Y à fin de aclarar más el punto, el Ayuntamento comisionó à Estaña al regido D. Juan de Arrechedera, quien obtuvo la real cédula de 18 de setiembre de 1676, en virtud de la cual siempre que hubiese vacante en el Gobierno lo ejercerían en toda la provincia los alcaldes de Caracas, sin que la Audiencia de Santo Domingo pudiese nombrar Gobernadores interinos. Privilegio que conservaron hasta fines del siglo XVIII.” FOURTOUL, José Gil. op. cit., p. 60-61.

14“En Venezuela no hubo periódicos hasta 1808. El primer número de la Gaceta de Caracas se publicó el 24 de octubre de este año, y sus editores anunciaron que no imprimirían ningún artículo sin la previa censura del Gobierno.” Id. Ibid., p. 90.

15Em 04 de junho de 1797 o movimento revolucionário recebe contornos de Programa com as seguintes proposições: i.abertura dos portos para o comércio exterior; ii. Proclamação da igualdade natural de todos os brancos, pardos índios e negros; iii. Abolição do tributo dos índios e da escravidão dos negros; iv. Composição da República em quatro províncias (Caracas, Maracaibo, Cumaná e Guayana) e; v. Composição da Bandeira Nacional com as quatro cores (branco, azul, amarelo e “encamada”). Id. Ibid., p. 93-94.

16No ano de 1795 houve um movimento revolucionário por parte dos negros e mestiços que nos anos seguintes tomou forma e acordo com os crioulos venezuelanos com a proposta de proclamar a República, proposta esta que continua o germe par realização da Primeira Revolução Social e Política da Venezuela. Id. Ibid., p. 81, 93.

17Id. Ibid., p. 114. 18Id. Ibid., p. 96. 19Foram garantidos pelos espanhóis, os direito de: i. Igualdade de representação política; ii. Liberdade de comércio

(indústria, e agropecuária) e; iii. Igualdade para empregos públicos. Id. Ibid., p. 137. 20Id. Ibid., p. 154-155.

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Diante de todo o histórico apresentado, resta salientar que os Governos provinciais da Venezuela não gozavam de autonomia21, iniciativa decisória ou legislativa durante o período Colonial, sendo que muitas delas não existiam efetivamente. Quando da proclamação da República e da necessidade de elaboração de uma Constituição Nacional houve muitas dificuldades de adaptação do modelo norte-americano para a realidade venezuelana, acarretando em centralização do Poder Federal e dependência dos Estados Federados ao Governo Federal.

“En efecto, lo mismo en la una que en la otra el Gobierno federal depende, en su origen, de los Gobiernos seccionales, y los representa en calidad de mandatario: por consiguiente, sus atribuciones son propriamente (sic.) una delegación de poderes. En Venezuela, la mayor ó menor autonomía de las provincias ó Estados ha dependido siempre del Gobierno federal; y éste no ha permitido nunca la variedad de leyes civiles y penales, que es en otras partes condición esencial del régimen federativo.22”

1.2. As Revoluções e Crises no período Pré-Chávez

A Venezuela, uma das mais antigas Nações Democráticas sul-americanas23 obteve a consolidação democrática, entre outros fatores, por meio do importante papel dos partidos venezuelanos, os quais24: i. Superaram “diferenças ideológicas e formaram pactos de governabilidade”; ii) Eliminaram a atuação de grupos anti-democráticos em momentos de crise; iii) Aplacaram os militares e os submeteram ao controle civil e; iv) Demonstraram grande “organização, mobilização e representação dos grupos sociais.”

A Democracia Representativa Venezuelana25 emergiu da força organizacional dos partidos políticos ainda no período pré-democrático, pois na ditadura militar de Jiménez26 a oposição do Partido AD (Acción Democrática) foi de fundamental importância para a derrocada do, então, Ditador.

Na transição para a democracia, a AD, já auxiliada pelo COPEI (Comitê de Organización Electoral Independiente) uniram forças e objetivos a URD (Unión Republicana Democrática) para estabelecer as bases políticas de um regime democrático para a Nação Venezuelana. Fruto dessa União Partidária de preparação para a democracia, antes das eleições de 1958, a “AD, COPEI e URD assinaram dois acordos históricos: o Pacto de Punto Fijo27 (...) e o Programa Mínimo de Gobierno28”

21A Autonomia dos “Ayuntamientos” foi diminuindo no decurso dos anos, conformando-se em uma tendência centralista. FOURTOUL, José Gil. op. cit., p. 158.

22Id. Ibid., p. 158-159. 23“Pouco conhecida no Brasil, a Venezuela é, junto com a Colômbia, a mais antiga democracia sul-americana, tendo

ingressado no seleto clube dos regimes livres em fevereiro de 1959, quando Rômulo Betancourt assumiu a presidência após disputar a primeira eleição direta realizada no país em 11 anos (a última havia sido em 1947) AMORIM NETO, Octavio. De João Goulart a Hugo Chávez: a política venezuelana à luz da experiência brasileira. Opinião Pública, Campinas, v. 8, n. 2, p. 252, 2002. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/pdf/329/32980205.pdf>.

24Id. Ibid., p. 253-254. 25A Constituição Nacional da Venezuela de 1961 definia expressamente a forma de governo do país como “uma democracia

representativa e outorgava aos partidos políticos um papel destacado como instrumentos através dos quais se exercia a representação política.” REY, Juan Carlos. El ideario bolivariano y la democracia en la Venezuela del siglo XXI. Revista Venezolana de Ciencia Política, n. 28, p. 168, jul./dic. 2005.

26Pérez Jiménez (1952 – 1958). AMORIM NETO, Octavio. op. cit., p. 253. 27O “Pacto de Punto Fijo” tinha por objetivo que os seus signatários respeitassem o resultado das eleições; estabelecessem

consultas inter-partidárias em situações complicadas; e partilhassem cargos e responsabilidades. Id. Ibid., p. 254. 28Id., loc. cit.

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Foi então adotado o sistema de representação proporcional com listas fechadas, outorgando “grande poder às instâncias decisórias mais altas dos partidos, dificultando a articulação de interesses locais no seio das bancadas legislativas” e condicionando os membros do partido a “uma fiel obediência a seus líderes.29”

Com a crescente burocratização dos Partidos Políticos e a dificuldade de atuação de seus membros nos sistemas eleitorais, frente a listas fechadas e liberdade de atuação diminuída, os líderes de partido abarcaram poderes de representação político-partidária:

“En el seno de las relaciones Parlamento-Gobierno se introduce, pues, una férrea estructura jerárquica que descansa en la subordinación del parlamentario individual a su jefe de grupo, en la de éste a su partido y en la del partido a su líder. Como el líder del partido mayoritario dirige (oficial u oficiosamente) el Gobierno, se encuentra ocupando la cúspide del poder: a él están subordinados el Gobierno, el partido y el grupo parlamentario, esto es, a él está subordinada la voluntad del Ejecutivo y del Legislativo.30”

Alguns fatores foram relevantes para a alteração do sistema político31, antes mesmo da eleição do Presidente Hugo Rafael Chávez Frias, tais como: i. Alternância significativa do índice de fragmentação legislativa32; ii. Grande abstenção eleitoral; iii. Quebra do sistema político estabelecido pelo “Pacto de Punto Fijo”; iv. Levantes Sociais sangrentos33; v. Tentativas de Golpe de Estado; vi. Instabilidade Econômica, causada pela queda do preço do petróleo34 e; vii. Ineficácia das Reformas Políticas efetuadas entre 1989 e 199535.

Nos dizeres do próprio Octavio Amorim Neto36, as condições que alavancaram e consolidaram a Democracia na Venezuela já não estavam presentes37 em meados da década de 90 do século XX, acarretando, portanto a Ruptura Institucional de 1999.

29FOURTOUL, José Gil. op. cit., p. 254. 30ARAGÓN REYES, Manuel. op. cit., p. 138. 31“La nueva Constitución de 1999, al referirse a la democracia venezolana, suprime totalmente l adjetivo ‘representativa’ para calificarla, en cambio, como ‘participativa y protagónica’, y elimina la anterior mención a los partidos políticos y sus funciones.” REY, Juan Carlos. op. cit., p. 168.

32“O desenvolvimento do sistema partidário venezuelano ao longo de quatro décadas é fielmente retratado pelo número efetivo de partidos (N), também chamado de índice de fragmentação legislativa, que, ao dar maior peso aos maiores partidos e menor peso aos menores, reflete mais validamente a distribuição de poder legislativo do que uma simples contagem do número de siglas. (...) A fórmula do número efetivo de partidos é N=1∑xi², onde xi é o percentual de cadeiras de cada partido representado na legislatura.” AMORIM NETO, Octavio. op. cit., p. 255 e nota de rodapé 5.

33BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As políticas neoliberais e a crise na América do Sul. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 45, n. 2, p. 142, 2002.

34“...el discurso de Chávez integra todo un conjunto de reinvindicaciones (sic.) populares, (...) del pasado democrático bipartidista, marcando el ‘nuevo comienzo’, que debía dejar atrás el ‘antes’, rápidamente identificado como la causa de la frustración y de una crisis económica agravada con la baja de la renta petrolera.” RAMOS JIMÉNEZ, Alfredo. Chávez en el poder: notas sobre la transición venezolana. Reflexión Política, Universidad Autónoma de Bucaramanga, Colombia, Bucaramanga, año 4, n. 7, p. 4, 2002. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/110/11040703.pdf>.

35As reformas políticas desse período tinham o objetivo de “suavizar o controle férreo exercido pelas lideranças partidárias sobre a representação política” e “reaproximar as instituições democráticas dos eleitores”, entretanto não tiveram êxito e culminaram com a eleição para presidência de um militar, Hugo Chávez, que “durante toda a campanha, atacou violentamente (...) os partidos dominantes, como toda a ordem política vigente, prometendo (...) a convocação de uma assembleia constituinte com poder para dissolver o Congresso.” AMORIM NETO, Octavio. op. cit., p. 259-260.

36Id. Ibid., p. 261. 37“Ese modelo bipartidista entra en crisis, (...) y ya podía advertirse una amplia aspiración colectiva que demandaba su reemplazo definitivo en la primera elección de Chávez en 1998. Así, la vulnerabilidad del sistema era evidente y para

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“La primera manifestación de secuestro del Poder Electoral por el poder político, y la primera violación de la Constitución de 1999, (…) mediante la emisión de un Decreto de ‘Régimen de Transición del Poder Público’, el 22 de diciembre de 1999, dos días después de la ‘proclamación’ de la Constitución, (…) el afán sobrevenido de quienes controlaban el Poder del Estado de asaltar todos los poderes mediante la sustitución de todos los titulares de tos órganos del Estado sin esperar la elección de la nueva Asamblea Nacional; la Asamblea Nacional Constituyente, sin tener competencia constitucional alguna para ello y, por tanto, en forma ilegítima, dicto el mencionado Decreto de Régimen de Transición, destituyendo a todos los titulares del Poder Público constituido (excepto el Presidente de la República) creando entonces un ‘vacio institucional’. 38” (grifo nosso)

2. O Sistema Político Atual da Venezuela

A denominada Quinta República, iniciada efetivamente quando aprovada a Constituição Bolivariana da Venezuela em 15 de Dezembro de 199939, traduz-se na personalização da decisão política com a imposição da vontade presidencial sobre o seu partido40 e a excessiva concentração de poderes no executivo.

Embora a oposição tenha sido desestruturada, nos últimos anos ela reaparece

“disputándole al presidente el apoyo popular. Asimismo, el espacio de la comunicación ‘chavista’, ampliamente dominado por la imagen reinvindicadora (sic.) del líder carismático, se ha visto reducido en el último año, debido en parte a la creciente influencia de los medios en la discusión de los asuntos públicos.41”

Jimenéz ressalta a importância dos debates acadêmicos sobre as reformas políticas na Venezuela, comparativamente aos demais governos democráticos da América Latina, para o amadurecimento político dos cidadãos venezuelanos e fomento de novos movimentos sociais democráticos.

Embora não seja objetivo do artigo, vale ressaltar que a legitimidade do governo democrático decorre primordialmente da observância da Lei Maior da Nação, ou seja, da Constituição Federal, abarcando ainda, conforme estudos políticos recentes sobre a América Latina42, a noção de “accountability”, “responsibility”, e “liability”.

“Embora nem sempre são tão claras e precisas como a ‘criminal or civil liability’, em particular no que diz respeito à sua condição e os seus efeitos, a ‘liability’ é parte integrante do conceito de um Estado moderno e democrático. Hoje em dia, os atos do mandato político devem ser responsáveis. Se até o século XIX o Estado foi considerado,

muchos anunciaba el advenimiento de una nueva etapa en la construcción de la democracia (…)” RAMOS JIMÉNEZ, Alfredo. op. cit., p. 3.

38BREWER-CARIAS, Allan R. El secuestro del poder electoral y la confiscación del derecho a la participación política mediante el Referendo Revocatorio Presidencial. Venezuela, 2000-2004. p. 5-6.

39Constituição aprovada por 71,7% do total de 4.819.786 votantes, sendo o nível de abstenção de 55,6% do total do eleitorado. RAMOS JIMÉNEZ, Alfredo. op. cit., p. 4 e nota de rodapé 8.

40Id. Ibid., p. 5. 41Id. Ibid., p. 6. 42Id., loc. cit.

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em princípio, juridicamente irresponsável, depois desse momento, seguindo – em particular – a evolução da ciência jurídica alemã, o Estado e as autoridades públicas têm sido confrontadas com formas específicas de ‘liability’. A auto limitação do poder estatal (Rechstaat) é a forma mais representativa de ‘liability’ de Direito Público, mas com o tempo, outras ferramentas também se desenvolveram, através do qual, as autoridades públicas podem ser responsáveis por suas ações. Em toda característica abstrata e específica, a ‘liability’ do Direito Público tem, atualmente, tornado-se um fato normal da vida de quase todas as autoridades públicas. Sendo democraticamente eleitos ou nomeados administrativamente, [as autoridades públicas] são responsáveis ainda perante a comunidade que as designou. ‘Legal liability’ pressupõe um sistema judicial capaz de abarcar a grandiosa tarefa da ‘general responsibility’ das autoridades públicas.43” [inclusão nossa]

A Venezuela identifica o seu sistema político de Governo como “democrático, participativo, protagónico, electivo, descentralizado, alternativo, responsable, pluralista y de mandatos revocables.44”, sendo que o Poder Público45 é distribuído entre o Poder Municipal, Poder Estadual e o Poder Nacional e este último dividido entre: i. Poder Executivo; ii. Poder Legislativo; iii. Poder Judicial; iv. Poder do Cidadão e; v. Poder Eleitoral.

Faz-se necessário ressaltar que a Constituição de 1999 da Venezuela elevou a divisão dos 5 (cinco) Poderes Públicos Constitucionais à mesma autonomia e independência46, ao passo que o Poder Eleitoral, exercido pelo “Consejo Nacional Electoral” - composto de órgãos subordinados a ele, tais quais: i. Junta Eleitoral Nacional; ii. Comissão de Registro Civil e Eleitoral e; iii. Comissão de Participação Política e Financiamento - é regido pelos princípios de independência orgânica, na qual busca “assegurar sua sujeição exclusivamente à Constituição e à Lei, garantindo sua não sujeição aos partidos políticos ou às maiorias parlamentares47.

O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, atualmente Hugo Rafael Chávez Frias, seus ministros e funcionários, ao passo que o Poder Legislativo é composto pela Assembleia Nacional. Este órgão é integrado por deputados eleitos nas entidades federais por meio de “votación universal, directa, personalizada y secreta.48” Vale mencionar que os titulares dos órgãos do Poder

43Tradução livre: “Although not always as clear and precise as criminal or civil liability, particularly with regard to its conditions and effects, liability is part and parcel of the concept of a modern and democratic State. Nowadays holders of a political mandate are kept responsible for their acts. If until the 19th century the State has been considered, in principle, legally irresponsible, after that moment, following – in particular – developments of the German legal science, the State and public authorities have been confronted with specific forms of liability. The self-limitation of the State-power (Rechstaate) is the most representative form of liability in public law, but in time other tools have also developed through which public authorities can be hold responsible for their actions. For all is abstract and specific characters, liability in public law has nowadays become a regular fact of life and almost all public authorities, be they democratically elected or administratively appointed, are held responsible either in front of the community which designated them. Legal liability presupposes a judicial system able to cope with the huge task of the general responsibility of public authorities.” TÃNÃSECU, Elena Simina. On responsibility in public law. p. 2.

44GOBIERNO BOLIVARIANO DE VENEZUELA. Disponível em: <www.presidencia.gob.ve/gobierno_sistema_p.html>. Acesso em: 08 jul. 2011.

45“El Poder Público Nacional se divide en Legislativo Ejecutivo, Judicial, Ciudadano y Electoral.” Artículo 136 da Constitución Bolivariana da Venezuela de 15 de diciembre de 1999.

46BREWER-CARIAS, Allan R. op. cit., p. 2. 47Princípio da “despartidización” estabelecida na Constituição de 1999, artigo 294. 48GOBIERNO BOLIVARIANO DE VENEZUELA. Disponível em: <www.presidencia.gob.ve/gobierno_sistema_p.html>.

Acesso em: 08 jul. 2011.

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Eleitoral são indicados pelos membros da Assembleia Nacional, nos termos do artigo 296 da Constituição de 1999, o qual requer que as indicações sejam de representantes dos diferentes sectores da sociedade49.

O Poder Judicial é constituído pelo Tribunal Supremo de Justiça, demais Tribunais, Ministério Público, Defensoria Pública e órgãos de investigação. Ainda nos termos do artigo 296 da Constituição de 1999, há previsão da possibilidade de remoção de quaisquer membros integrantes do “Consejo Nacional Electoral”, pela Assembleia Nacional, com o prévio pronunciamento do Tribunal Supremo de Justiça50, limitando, ou melhor, contradizendo o princípio de independência do Poder Eleitoral anteriormente explanado.

E, por fim, o Poder do Cidadão é exercido pelo “Consejo Moral Republicano”, composto pelo Defensor do Povo, Fiscal Geral e Controlador Geral da República.

2.1. A Função do Parlamento

O Parlamento tem função democrática em Nações constitucionais, sem, contudo “substituir o povo, tampouco pode substituir o Estado51”, com natureza constitucional e democrática, reconhecendo assim, a importância pública de suas atividades, entretanto, permanecendo uma associação privada, mantendo a sua liberdade como associação desvinculada do Estado, natureza fundamental para o exercício de sua função parlamentar de discussão e controle.

“Es curioso, y perturbador, que allí donde tiene toda su legitimidad la actuación de los partidos, que es en la vida parlamentaria, se donde resulta más débil su papel en la práctica política actual de muchos países.52”

Conforme reza o artigo da Profa. Dra. Monica Herman Salem Caggiano, são muitas as funções do Parlamento, entre elas, “função de controle, de investigação, eleitorais, jurisdicionais, deliberativas, administrativas, de orientação política e de comunicação.53”

A crise funcional da Democracia na Venezuela apresenta um abismo entre o parlamento e a sociedade, ou seja, entre representantes e representados, respectivamente, acarretando na perda gradativa da representatividade do parlamento e, principalmente, na incapacidade do Parlamento de canalizar as demandas e expectativas da sociedade54.

49“La Asamblea Nacional, por tanto, no puede designar persona alguna que no venga incluida en las propuestas del Comité de Postulaciones. En esta forma se quiso garantizar en el propio texto de la Constitución un mecanismo de participación de la sociedad civil en la designación de los miembros del Consejo Nacional Electoral” BREWER-CARIAS, Allan R. op. cit., p. 3-4.

50BREWER-CARIAS, Allan R. op. cit., p. 4. 51Traducción libre: “sustituir al pueblo, tampoco pueden sustituir al Estado.” ARAGÓN REYES, Manuel. op. cit., p. 141. 52Id. Ibid., p. 142. 53CAGGIANO, Monica Herman Salem. O parlamento no cenário político do século XXI. Revista do Advogado, São Paulo, n.

73, p. 149, nov. 2003. 54RIVAS LEONE, José Antonio. Transformaciones y crises de los partidos políticos: la nueva configuración del sistema de

partidos en Venezuela. WP, Instituto de Ciències Politiques i Sociais, Barcelona, n. 202, p. 12, 2002.

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Madueño relaciona uma série de estudos que busca analisar as dimensões da legitimidade do governo com indicadores de satisfação com o regime. Os resultados são interessantes ao demonstrar que, dentre as 5 dimensões da legitimidade (apoio da comunidade, a democracia, as instituições, as autoridades e desempenho do regime) :

“Los principios del régimen reflejaron seis ítems, que evalúan las actitudes hacia la democracia y autocracia, por ejemplo, las preferencias por tener un ‘líder fuerte que no tome en cuenta ni el parlamento ni as elecciones’, ‘la confianza en el ejército’. Y para determinar la efectividad de la democracia escogería ‘el desempeño de la economía.55

O resultado apresentado por Madueño é inconclusivo ao demonstrar que não “há nenhuma medida apropriada para medir a confiança nos atores políticos específicos”, refletindo, então, a cerca da escolha dos cidadãos em validar e conservar valores democráticos, fortalecendo as instituições políticas e organizações governamentais, ou permanecer “brindando seu apoio a um líder em particular.56”

Conforme clarifica Rey, a condição mínima para a existência de um regime democrático é que o governo e o parlamento sejam escolhidos pelo povo mediante eleições livres, sinceras e realmente competitivas, sendo o exercício do poder público realizado por meio da separação de poderes, haja o reconhecimento dos Direito Fundamentais e limitação dos poderes públicos pela Lei57.

Com a crescente personalização da política venezuelana e, consequentemente, diminuição das funções das instituições e organizações democráticas, o Parlamento da Venezuela sobrevive com atividade meramente ratificadora do Poder Executivo.

Na opinião de Luis Madueño “el descontentamiento con la eficiencia o ineficiencia del régimen o de las autoridades, no debe confundirse con el apoyo o falta de apoyo al mismo, que eventualmente podría desembocar en la deslegitimación de la democracia.58”

2.2. A Participação Popular na Política Venezuelana

A Constituição Bolivariana da Venezuela de 1999 inclui em seu texto a expressão “democracia participativa y protagónica” que tem por objetivo substituir o conceito de democracia representativa e a estrutura democrática organizada em partidos políticos que a precedia.

Ocorre que a estrutura política plebiscitária aplicada na Venezuela entrou em conflito com a democratização efetiva do Estado e da sociedade, exatamente quando houve desentendimentos entre o regime novo e as promessas eleitorais.59

55MADUEÑO, Luis. La legitimidad de la democracia en la Venezuela de Chávez: una indagación sobre el grado de satisfacción y la respuesta antisistema. Revista Venezolana de Ciencia Política, n. 29, p. 98, ene./jun. 2006. Disponível em: <http://www.saber.ula.ve/bitstream/123456789/24888/2/articulo4.pdf>.

56Id. Ibid., p. 98-99. 57REY, Juan Carlos. op. cit., p. 180. 58Id. Ibid., p.96. 59RAMOS JIMÉNEZ, Alfredo. op. cit., p. 8.

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“El partido del gobierno estaba más cerca del modelo de ‘partido de cuadros’ que del ‘partido de masas’, según la conocida clasificación de Maurice Duverger60.”

O paradoxo estabelecido na proposta política do novo regime “democrático participativo” revelou-se logo no terceiro ano da experiência chavista, pois restou impossível “ajustar a ação e decisão política às regras democráticas, expressas na nova Constituição” buscando ainda ampliação da participação dos cidadãos e a necessidade de “impor um projeto hegemônico de transição, anunciado nas plataformas político-eleitorais, no contexto nacional e local61”.

A aparente participação popular, por meio da experiência plebiscitária de Chávez, transfigurou-se em uma “...idea abstrata de revolución y la exclusión de todos aquellos que no se identificaban com la misma”, emergindo fortes acentos autoritários ao regime e despojando-o de todo conteúdo democrático62.

Brewer-Carias apresenta um caso concreto de limitação da participação popular e sujeição do Poder Eleitoral ao Tribunal Supremo de Justiça, ocorrido em 3 de dezembro de 200263 quando mais de 2 milhões de eleitores convocaram um referendo consultivo64, nos termos do artigo 71 da Constituição de 1999, com o objetivo de

“preguntarle a los ciudadanos si estaban o no de acuerdo con solicitar al Presidente de la República Ciudadano Hugo Rafael Chávez Frias la renuncia voluntaria a su cargo; fijando la fecha de realización del referendo para el 2 de febrero de 2003.”

Com a impugnação da Assembleia Nacional sob o argumento de ilegalidade da Resolução, em razão da incorporação do cidadão Leonardo Pizani como membro Suplente, houve o congelamento das atividades do “Consejo Nacional Electoral” até a data de 26 de março de 2003, quando foi publicada, na Sala Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça, a “nulidad de los actos del Consejo Nacional Electoral atinentes a la realización del referendo consultivo cuya celebración estaba prevista para el 2 de febrero del presente año (2003).65”

Em 22 de janeiro de 2003 a Sala Eleitoral já havia se manifestado66 interpretando o artigo 71 da Constituição em relação ao referendo consultivo convocado pelo “Consejo Nacional Electoral” da seguinte forma:

“el resultado del referéndum consultivo previsto en el artículo 71 de la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela no tiene carácter vinculante en términos jurídicos, respecto de las autoridades legítima y legalmente constituidas, por ser éste un mecanismo de democracia participativa cuya finalidad no es la toma de decisiones por

60RAMOS JIMÉNEZ, Alfredo. op. cit., p. 8. 61Id. Ibid., p. 8-9. 62Id. Ibid., p. 9 e nota de rodapé 23. 63Resolução nº 021203-457 de 3 de dezembro de 2002 do “Consejo Nacional Electoral” BREWER-CARIAS, Allan R. op. cit.,

p. 12-13. 64Importante salientar que em meio a crise política, a Venezuela estava também passando pela crise econômica, com

redução brutal de gastos no Orçamento, corte de dívidas e um “ajuste econômico tão forte que derrubou abruptamente o valor do bolívar.” BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. op. cit., p. 143.

65BREWER-CARIAS, Allan R. op. cit., p. 14. 66Sentença n° 23 do Caso Harry Gutiérrez Benavides e Johbing Richard Alvarez Andrade. Id. Ibid., p. 15.

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parte del electorado en materias de especial trascendencia nacional, sino su participación en el dictamen destinado a quienes han de decidir lo relacionado con tales materias.67”

Embora haja oposição clara ao Governo Chávez, outros estudos vem diagnosticando um sentimento geral de alienação do sistema político, identificado pelos sintomas: i. Desinteresse pela política; ii. Sentimento de ineficácia pessoal e; iii. Cinismo ou desconfiança política e a crença que a elite política não se importa com o bem-estar dos outros cidadãos68.

Conclusão

A Venezuela, em toda a sua história, foi dominada e controlada por líderes que limitavam a autonomia e liberdade dos venezuelanos. A partir da Independência da República em 1811, os cidadãos venezuelanos emergem da servidão para conquistar seus direitos entre seus próprios compatriotas.

Há 200 anos a Venezuela vem buscando estabelecer direitos sociais, políticos e econômicos à sociedade de forma integrada e ordenada, entretanto é notória a luta constante pelo Poder Centralizador, limitando a discussão parlamentar, a multidisciplinaridade política e ideológica, acarretando danos profundos na democracia incipiente.

O amadurecimento do regime democrático pode ser obtido gradualmente com o fortalecimento das suas instituições políticas e jurídicas; promoção e educação política desde o ensino fundamental; fomento de discussão política nas academias e organizações sociais; participação da sociedade por meio de organizações sociais e políticas públicas; garantia do exercício das liberdades públicas; plano de governo com políticas públicas para a saúde, educação, transporte, moradia e trabalho.

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67BREWER-CARIAS, Allan R. op. cit., p.16. 68Extraído de: MADUEÑO, Luis. op. cit., p. 101.

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VIII. O PARLAMENTO DE COSTA RICA NO CENÁRIO LATINO-AMERICANO

Karin Pfannemüller Gomes∗

Natalie Deyrmendjian da Silveira∗∗

Victor Henrique Grampa∗∗∗

Introdução

Costa Rica é uma das poucas Nações Democráticas que faz um contraponto no cenário latino-americano. Um pequeno país que surgiu da exportação de frutas tropicais1, em meio a uma região conflituosa, marcada por guerras e instabilidade político-social, desponta atualmente como uma das mais sólidas democracias da América Latina e uma das maiores no cenário mundial2.

A consolidação atual das instituições democráticas da Costa Rica se deve a sua trajetória sui generis, do ponto de vista histórico, cultura, social e político, fazendo-se necessário, uma breve retrospectiva histórica, adentrando ainda na evolução do parlamento, do sistema partidário costa-riquense e sua estrutura constitucional até o início do século XXI.

Por derradeiro, será analisado, ainda que incipientemente, os desafios e perspectivas do cenário institucional que se criou no final do século XX e, sobretudo, após a consolidação de seu novo regime “bipartidário”.

1. Breve Histórico Político

O descobrimento de Costa Rica ocorreu em 1502 por Cristóvão Colombo. Diferentemente do restante da América Latina, a escravidão na Costa Rica foi pouco numerosa, acarretando em facilidade de acesso às terras e ocupação fortemente camponesa. Tal fato gerou uma sociedade pouco estamental. A Independência da Costa Rica ocorreu em 1821, momento no qual passou a pertencer à República Federal da América Central. Entretanto, os conflitos da região levaram o Estado Federado a se separar

∗Mestre em Direito Político e Econômico (2010) e Bacharel em Direito (2000), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Advogada em São Paulo e Professora de Filosofia na FEBAT – Faculdade Evangélica Batista do Brooklin e de Direito Constitucional.

∗∗Estudante do curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie ∗∗∗Estudante do Curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, monitor das disciplinas de: Filosofia do

Direito e Antropologia Social e Jurídica do Prof. Dr. Orlando Villas Bôas Filho; Sociologia do Direito com o Prof. Ms. Jarbas Geraldo de Barros Pastana; Direito das Obrigações com o Prof. Dr. Washington Carlos de Almeida e; Direito Constitucional I com a Profa. Dra. Monica Herman S. Caggiano, todos na mesma Universidade.

1Teve estreitas relações com a United Fruit Company, empresa norte-americana que importava frutas para os Estados Unidos da América. O pilar econômico era a monocultura de café e banana. Ver BRIGNOLE.

2Vide referencia da tabela I, a Costa Rica foi posta entre as cinquenta maiores do mundo. Ocupa a posição de número 25 entre as chamadas democracias completas.

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da Federação e em 1848, tornando-se o Estado Soberano Independente da Costa Rica. Seu período inicial, até 1870, foi marcado por golpes de Estado e muita instabilidade política3

1.1. Crises Políticas

Tomás Guardia sobe ao poder pela via militar e governa até 1882, nesse ínterim, é elaborada a Constituição de 1871 que modificaria certos paradigmas sociais preparando o Estado para a laicidade, o que não ocorreu de forma completa até hoje4.

A Crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial geraram um desconforto econômico muito grande na sociedade ocasionando várias greves, porém o regime democrático permaneceu incólume até 1940.

Em 1940 foi eleito presidente Rafael Ángel Caldeirón Guardia (PRN – Partido Republicano Nacional), governo de absoluta importância para o cenário de Costa Rica. Com o apoio do Partido Comunista, o governo criou a Previdência Social em 19415, aprovou o Código do Trabalho6 e elevou os direitos sociais como Direitos Constitucionais7, fundando ainda a Universidade de Costa Rica em 1940.

A década de 40 do século XX, também trouxe mudanças no cenário político, com a bipartição política8. O resultado das eleições presidenciais de 1948 apresentou Ulate vitorioso, mas o Congresso, calderonista, anulou a decisão das urnas9.

Em 12 de março de 1948, emerge uma guerra civil, liderada por Figueres Ferrer, que dura cerca de um mês e culmina com o exílio de Calderón. A tomada de poder de Figueres foi, institucionalmente, o fenômeno mais marcante de Costa Rica, pois, em seu governo, se comprometeu com a reforma social de Calderón e foi além. Figueres, após dezoito meses de governo, devolve o poder ao povo, respeitando as eleições de 1948, restaurando a presidência a Ulate10.

1.2. Democratização da Costa Rica

Politicamente Figueres rompeu com a visão liberal11, pois em 1948 nacionalizou todos os bancos privados e aboliu o Exército, resultando, em novembro de 1949, a Constituição da República de Costa

3SADER, Emir. Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 352. 4Artigo 71 da Constituição – “La Religión Católica, apostólica, Romana, es la del Estado, el cual contribuye a su

mantenimiento, sin impedir ellibre ejercicio en la República de otros cultos que no se opongan a lamoral universal ni a las buenas costumbres.”

5Juntamente com a CCSS – Caixa Costa-Riquense do Seguro Social. 6Em 1943 pela lei nº2. 7Essa gama de direitos permanece até hoje de forma latente na Constituição - artigo 50 e seguintes – Capitulo V – Derechos

y Garantias Sociales. 8Os partidos dominantes PUN – Partido da União Nacional - apoiado pelo PSD - Partido Social Democrata - liderado por

Otílio Ulate e PRN – Partido Republicano Nacional – apoiado pelo PC – Partido Comunista – liderado por Rafael Angél Caldeirón Guardia, formavam dois blocos partidários que se revezavam no poder.

9Na célebre decisão de 1º de março de 1948. 10Em resposta a anulação da eleição de Ulate pelo Congresso. 11Adeptos, fundamentalmente, ao keynesianismo e a intervenção estatal na economia.

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Rica12. Costa Rica, após a outorga da Constituição de 1949, ingressou em uma nova fase institucional, o Exército foi proibido pelo artigo 1213 e foi encerrado o período da ordem agroexportadora.

As décadas de 50 a 80 do século XX são consideradas como “os anos dourados”14 da Costa Rica, sendo governadas grandes partes pelo PLN – Partido da Libertação Nacional15. Houve a predominância dos ideais do Estado benfeitor e redução das desigualdades sociais. O PLN tinha como forte oposição a aliança entre o PUN e PRN, os quais, apesar de antigos opositores, fizeram coalisões eleitorais de fachada.

Com instituições estatais de grande prestígio popular e importância social, o Estado passou a ser um agente econômico fundamental na Costa Rica. Os monopólios estatais de depósitos bancários, seguros, energia elétrica, telefonia e a abolição das forças armadas, liberando grandes verbas para o serviço público civil, tiveram papel fundamental nesse crescimento do Estado no setor econômico.

A expansão da educação pública de qualidade também é um elemento marcante, pois os irrisórios índices de analfabetismo e o grande acesso ao ensino superior formaram sólida base cultural diferenciada no país.

A partir de 1962 as principais forças políticas disputaram as eleições e a democracia se consolidou como forma única e legítima de se atingir o poder.

2. O Cenário Latino-Americano

Em um cenário mais amplo, discute-se sobre o desenvolvimento do Regime Democrático em forma “cascata”, nos Estados Soberanos com certos requisitos fundamentais para seu estabelecimento16. Na Europa, após a 2ª Grande Guerra Mundial17, houve a procura pela democratização dos regimes outrora autoritários ou totalitários, avançando ainda na América Latina e Central. Entretanto, a consolidação dos Regimes Democráticos na América Latina e Central só ocorreriam após 197418.

A tabela 1 apresenta o Cenário Latino-Americano no qual estão inseridas as nações que se estabeleceram em Regimes Democráticos, Semi-Democráticos, Democráticos-Híbridos e Autoritários, muito embora haja opiniões discordantes sobre a presente nomenclatura entre os estudiosos e pesquisadores do campo jurídico e de ciência política.

12Embora com várias emendas, a Constituição da República de Costa Rica de 1949 está em vigor até a atualidade. 13A defesa da Costa Rica foi entregue aos Organismos Internacionais (OEA – Organização dos Estados Unidos e TIAR – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca).

14SADER, Emir. op. cit., p. 352. 15Partido fundado em 1951. 16A democracia só é possível em ambientes com liberdades garantidas à sociedade, de forma clara e precisa, estabelecida

em lei. “Traduz-se, na verdade, num acordo social acerca do traçado governamental e deve contar com o respaldo das garantias consubstanciadas nos elementos da democracia arrolados por Dahl. Isto porque o consenso somente é implementado diante da presença dos direitos de reuni9ão e de associação, de expressão e manifestação do pensamento, tudo isso num contexto de eleições livres e competitivas (free and fair elections), configurando esta última exigência uma ‘garantia da mecânica democrática’.” (grifos da autora) CAGGIANO, Monica Herman Salem CAGGIANO, Monica Herman S. Oposição na política. São Paulo: Angelotti, 1995. p. 57.

17Observa-se grande democratização dos países Ocidentais, notadamente o período de 1943 a 1967. 18A consolidação da democratização pôde ocorrer principalmente pelo término da restrição constitucional aos partidos

comunistas existentes após a repressão de 1948, última mácula à plena democracia costa-riquense. (SADER, Emir. op. cit., p. 354).

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É interessante também citar a classificação feita pelo pesquisador Scott Mainwaring, da Universidade de Notre Dame, num estudo sobre a democracia na América Latina, em que divide os regimes políticos em democráticos, semidemocráticos ou autoritários, estabelecendo quatro requisitos necessários para alcançar o nível democrático:

i. Presidente e parlamentares eleitos sob standard do free and fair elections;

ii. Autoridades eleitas detentoras de um poder real de governo e não-submetidas à influências de caráter militar ou de nonelected shadow figures;

iii. Respeito às liberdades civis;

iv. Identificação entre os governantes e a maioria dos cidadãos.

Seguindo tal definição e se valendo também dos estudos de James Malloy, que adicionou à tal divisão política o grupo da democracia híbrida, a tabela a seguir mostra o ranking mundial dos países latino-americanos e suas pontuações (de 0 a 10) em aspectos importantes da Democracia:

Tabela 1

PAÍSES DA AMÉRICA LATINA

RANK MÉDIA GERAL

PROCESSO ELEITORAL E PLURALISMO

FUNCIONAMENTO GOVERNAMENTAL

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

CULTURA POLÍTICA

LIBERDADES CIVIS

DEMOCRÁTICOS

COSTA RICA 25 8,04 9,58 8,21 6,11 6,88 9,71

URUGUAI 27 7,96 10 8,21 5 6,88 9,71

SEMIDEMOCRÁTICOS

CHILE 30 7,89 9,58 8,93 5 6,25 9,71

COLOMBIA 40 6,4 9,17 4,36 5 4,38 9,12

BRASIL 42 7,38 9,58 7,86 4,44 5,63 9,41

PANAMÁ 44 7,35 9,58 7,14 5,56 5,63 8,82

MÉXICO 53 6,67 8,75 6,07 5 5 8,53

ARGENTINA 54 6,63 8,75 5 5,56 5,63 8,24

HONDURAS 69 6,25 8,33 6,43 4,44 5 7,06

EL SALVADOR 70 6,22 9,17 5,43 3,89 4,38 8,24

PARAGUAI 71 6,16 7,92 5 5 4,38 8,53

REPÚBLICA DOMINICANA

74 6,13 9,17 4,29 3,33 5,63 8,24

PERU 75 6,11 8,75 3,29 5,56 5 7,94

GUATEMALA 77 6,07 8,75 6,79 2,78 4,38 7,65

BOLÍVIA 81 5,98 8,33 5,71 4,44 3,75 7,65

DEMOCRÁTICOS HÍBRIDOS

NICARÁGUA 89 5,68 8,25 5,71 3,33 3,75 7,35

EQUADOR 92 5,64 7,83 4,29 5 3,13 7,94

VENEZUELA 93 5,42 7 3,64 5,56 5 5,88

HAITI 109 4,19 5,58 3,64 2,78 2,5 6,47

AUTORITÁRIOS

CUBA 124 3,52 1,75 4,64 3,89 4,38 2,94

Fonte: Disponível em: <http://www.economist.com/media/pdf/democracy_index_2007_v3.pdf>. Acesso em: 19 jul. 2011

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3. Situação Política atual da Costa Rica

Atualmente a Costa Rica utiliza-se do sistema de Governo presidencialista, pautada na democracia, sob o sistema de representação proporcional para escolha19 de seus representantes por sufrágio universal20. O Parlamento costa-riquense é Unicameral21 e o mandato parlamentar é de quatro anos.

O Tribunal Supremo Eleitoral22 atua como quarto ramo do poder político, independente do Poder Executivo, Poder Legislativo e Judiciário. A Suprema Corte do Poder Judiciário indica integrantes do Tribunal Supremo Eleitoral, com mandato de seis anos, constituído assim de forma apolítica, evitando fraudes eleitorais. A função do Tribunal Supremo Eleitoral é organizar, monitorar e reformar leis eleitorais, incluindo elaboração de regras para partidos políticos.

Diferentemente de outros países23, as decisões do Tribunal Supremo Eleitoral, não são revisadas pelo Poder Judiciário na Costa Rica, garantindo ainda a ordem e o controle da Guarda Civil em época eleitoral. A Atuação do Tribunal Supremo Eleitoral tem sido reconhecida como importante para garantir a segurança, honestidade e legitimidade das eleições.

A Guarda Civil tem função de estabilidade militar no país após o fim do Exército, atuando como força policial e aplicando a lei interna, apesar de não possuir papel militar, político ou econômico.

3.1. As Instituições Parlamentares

O Poder Executivo, representado pelo Presidente da República e dois vice-presidentes tem mandatos de 4 (quatro) anos. Os Poderes do Executivo são bem restritos tendo em vista o regime estabelecido – democracia – e o temor pela concentração de poderes no Executivo abarcando um regime autoritário.

O Presidente indica os governadores, indica e remove os Ministros, atua como comandante da Guarda Civil, representa a nação em cerimônias oficias e apresenta o situação da Assembleia Legislativa. Entretanto o Presidente não pode instituir decretos, nem vetar propostas legislativas sem o apoio de, no mínimo, um dos membros de seu gabinete e, não tem influência sobre a seleção dos membros da Suprema Corte do Poder Judiciário.

Algumas atividades do Poder Executivo supremo são interessantes na Costa Rica, pois limitam funções administrativas próprias do poder executivo, sendo necessária a participação de, no mínimo, um dos membros de seu gabinete, tais quais:

a. Formular o orçamento nacional;

b. Supervisionar a burocracia;

19O regime de voto da Costa Rica é compulsório desde 1959, tendo sido facultativo apenas no período de 1936 a 1959. 20O Sufrágio universal foi estabelecido constitucionalmente a partir de 1949. 21Unicameral é o sistema onde o legislativo de agrupa em uma única casa, diferente do modelo bicameral federativo

brasileiro onde Senado e Câmara dos Deputados (duas casas) compõe o Congresso Nacional. 22Originado em 1946 e reformado em 1949. 23Como Brasil e Estados Unidos da América.

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c. Nomear administradores do serviço público não-civis;

d. Assinar um projeto de lei;

e. Viajar para fora do país24;

O Poder Legislativo é composto pela Assembleia Legislativa Unicameral, composta por 57 (cinquenta e sete) deputados escolhidos em eleições simultâneas às presidenciais. A Assembleia Legislativa tem responsabilidade de realizar Emendas Constitucionais, legislar, declarar guerra e paz, aprovar o orçamento nacional, cobrar impostos, ratificar tratados, autorizar a suspensão de liberdades civis, depor e censurar altos funcionários, requerer informações dos Ministros do Governo e nomear os juízes da Suprema Corte.

Entretanto, os deputados não podem ser reeleitos em suas funções parlamentares, exatamente para não assumir uma posição de dominação no poder.

O Poder Judiciário é representado pela Suprema Corte, que se divide em 4 (quatro) câmaras:

1. Constitucional;

2. Penal

3. Civil;

4. Comercial;

Conforme já anteriormente explanado, a eleição dos deputados é conjunta à do presidente, sendo vedada a reeleição. Na Costa Rica, como em outros países democráticos, o Poder Executivo não tem poderes para dissolver o parlamento e a Assembleia Legislativa dispõe de poderosos meios de controle do Poder Executivo.

Entretanto, o país sofre atualmente, com a queda da qualidade dos serviços públicos e o enfraquecimento das instituições estatais. Emergem vários movimentos contra a corrupção parlamentar25.

4. Desafios Políticos da Costa Rica

Em 1983, o PUSC – Partido Unidade Social Cristã restabeleceu o modelo “bipartidarismo” na Costa Rica, embora institucionalmente haja o pluripartidarismo.

Há, hoje, um mimetismo programático. O exercício governamental dos dois grandes partidos também é muito parecido. Juntos somaram 94% dos votos para presidente e 87% dos votos para deputados. Isso num cenário unicameral de 57 membros deixa os outros partidos com 3 ou 4 membros diluídos entre si.

Apesar disso, nenhum partido governou o país por três mandatos consecutivos no ultimo meio século, tendo prevalecido a alternância de poder. Discute-se a possibilidade de uma crise de

24O Presidente não possui permissão para viajar para fora do país sem a aprovação do Congresso. 25Dentre eles o grande movimento popular contra o “golpe o ICE”.

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legitimidade26, entretanto, os “conluios” entre PUSC e PLN têm gerado aumentos sensíveis nas abstenções de votos, os índices subiram27 em 2002 para 31% e em 2006 para 34,8% do colégio eleitoral. Não há mais ideologia político-partidária de oposição desde o desaparecimento da esquerda28, sendo a representação parlamentar em Costa Rica totalmente em centro-direita.

A inexistência de ideologia político-partidária acarreta partidos de base e planos políticos genéricos, líderes receosos de mudanças intensas ou discussões parlamentares que possam gerar desconforto político.

Ainda que incipientes, surgem novas agremiações no ambiente político da Costa Rica, a exemplo do Partido da Ação Cidadã, o qual obteve bons resultados nas eleições municipais de 2002.

A busca parlamentar para privatizações tem gerado muitos protestos populares, tal qual, a manifestação popular contra a decisão parlamentar que, por maioria de votos alterou o estatuto do ICE – Instituto Costa-riquense de Eletricidade. Apesar dos inconvenientes institucionais, a Costa Rica é um dos países da América Latina com menor índice de pobreza.

Uma coalisão de interesses econômicos de grandes comerciantes, exportadores e um recém-chegado setor financeiro29 (após a queda do monopólio de 1995) unem-se aos parlamentares numa onde reformadora da reforma operada nos Anos Dourados. Essa coalisão frente à crise de 2008 encontra-se ansiosa para o retrocesso da ordem social em beneficio do setor econômico. O mecanismo efetivo de controle acaba sendo a organização social e manifestações populares em face a um parlamento monocromático.

As alternativas que emergem para esse cenário político são: ou as forças neoliberais triunfam enterrando definitivamente o estado benfeitor, tendo como única resistência o povo sem voz politica representativa, ou os que representa a visão da modernização progressista conseguirão unir forças e se opor ou ao menos negociar uma solução inovadora.

A Constituição, entretanto, em seu artigo 105 prevê a possibilidade da iniciativa popular para projetos de lei, veto e emendas à Constituição.

Conclusão

A experiência de Costa Rica, enquanto Estado Constitucional e Democrático de Direito, é muito importante no cenário latino-americano, mas vale ressaltar que a estruturação desse regime foi propiciada por um ativismo social historicamente desenvolvido. A alternativa apresentada trouxe em seu bojo uma vertente não extremista e largamente democrática de Estado benfeitor.

26“Assim é que, enquanto para as democracias ocidentais a eleição assume o papel de fonte de legitimidade do poder, de técnica de controle e elemento inerente à garantia da participação no pólo decisório, em territórios totalitários esse processo se acopla uma conotação instrumental específica, configurando um instrumento de exercício do poder sob o controle dos órgãos governamentais, com vistas à unidade política e moral do povo.” (grifos da autora) CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004. p. 75.

27Em 1998 eram estáveis em 19% do colégio eleitoral. 28Desde a década de 1990. 29SADER, Emir. op. cit., p. 360.

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O alerta que soa em Costa Rica, e deve ser recepcionado por todas as democracias modernas, é a constância do controle da corrupção e do desgaste das instituições estatais por forças econômicas e conjunturais internacionais.

O povo instruído e os mecanismos legislativos à disposição da população se mostram cada vez mais eficazes no controle de um parlamento inerte ou contrário aos anseios sociais. Devemos notar que Costa Rica se desenvolveu tanto sob a ótica democrática e institucional, graças a suas ousadas modificações, e hoje, tende a padecer pela cristalização de algumas instituições, em favor de interesses exclusivamente econômicos de pequenos grupos sociais, que não raras às vezes, tem fundos para eleger grande parte do Legislativo.

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IX. MERCOSUL E SEU PARLAMENTO: DESAFIOS DA INTEGRAÇÃO REGIONAL

Renato Jaqueta Benine∗

Introdução

As primeiras manifestações acerca da integração regional de países da América Latina remonta à própria história de emancipação das colônias hispânicas do novo mundo e à atuação de Simón Bolívar e de seu Exército Libertador. É de autoria deste líder revolucionário a chamada “Carta de Jamaica”, documento em que expressava seu desejo de fazer da América a maior nação do mundo, não só pela sua extensão e riqueza, mas também por sua liberdade e glória1. Bolívar foi também responsável por convocar, em 1824, o primeiro congresso pan-americano, o qual denominou Congresso Anfictiônico2. No entanto, as investidas do libertador não foram suficientes para que a união da América Latina se tornasse uma realidade em seu tempo3, o que somente viria a ser percebido a partir da segunda metade do século XX.

Com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, nações por todo o globo buscaram intensificar a adoção de políticas integracionistas, fundamentadas por razões pacifistas, sociais, culturais, entre outras. Contudo, conforme salientado por Eduardo Biacchi Gomes, um dos principais motivos para a integração regional, na contemporaneidade, não é senão de caráter econômico, tendo em vista o fato de os Estados procurarem, nesta iniciativa, uma melhor inserção no mercado mundial e, consequentemente, melhores condições para competir com outros países ou blocos econômicos.4

Neste cenário, os países latino-americanos, no final dos anos de 1940, lograram êxito em sua pioneira iniciativa integracionista, com a criação, nos quadros das Nações Unidas, da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL). A este evento, sucederam outros como o nascimento, em 1960, da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) – substituída, nos anos de 1980, pela Associação Latino Americana de Integração (ALADI)5 – e a celebração do Pacto Andino, no ano de 1969, o qual almejava criar entre seus signatários – Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Chile – uma união aduaneira.6

∗Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel pela Faculdade de Direito de

Bauru, mantida pela Instituição Toledo de Ensino. Professor do curso de pós-graduação em Educação Inclusiva do Instituto Superior de Educação – ISE Vera Cruz. Advogado atuante nas áreas de Relações Governamentais, Institucionais e Políticas Públicas.

1BOLIVAR, Simón. Carta de Jamaica. Venezuela: Ministerio de Comunicación e Información, 2005, p. 25-26. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/9773/Carta-de-Jamaica-Simon-Bolivar>. Acesso em: 09 mar. 2011.

2NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. Parlamento do MERCOSUL: sobre a necessidade da definição de pressupostos e da adoção de procedimentos para a sua criação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p. 35.

3ACCIOLY, Elizabeth. MERCOSUL e União Européia: estrutura jurídico-institucional. Curitiba: Juruá, 2010. p. 63. 4GOMES, Eduardo Biacchi. Blocos econômicos: soluções de controvérsias: uma análise comparativa a partir da União

Européia e MERCOSUL. Curitiba: Juruá, 2001. p. 27. 5Eram signatários dos tratados constitutivos da ALALC e da ALADI os seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,

Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. 6ACCIOLY, Elizabeth. op. cit., p. 64.

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Todavia, as experiências integracionistas da América Latina não se restringem às citadas acima, havendo outra, compreendida pela queda das fronteiras econômicas de um grupo de países denominados Cone Sul e pelo anseio do estabelecimento entre eles de um Mercado Comum do Sul – o MERCOSUL. Este é, ainda, um projeto inacabado, dotado de desafios a serem superados, alguns dos quais tratados neste ensaio, notadamente, quanto à discussão de sua institucionalidade parlamentar. Desta forma, serão delineados, no presente estudo, os antecedentes históricos e a criação do chamado Parlamento do MERCOSUL (Parlasul). Serão apresentados ainda as competências do órgão, sua importância para o processo de integração, bem como os instrumentos a serem adotados para seleção de seus membros.

1. Fases da integração regional

A integração regional consiste em um processo que implica no desenvolvimento e na atenção a diversas fases, observadas pelos Estados – vinculados pela proximidade geográfica e por afinidades culturais, econômicas, políticas e históricas – como uma oportunidade de se fortalecerem internacionalmente. Reunidos em torno de metas e objetivos semelhantes, países integrados buscam na definição de políticas comuns, estabelecer melhores condições no enfrentamento aos desafios postos à segurança ou ao bem-estar de seu povo diante de um cenário político e econômico globalizado7.

A primeira das fases da integração regional – a mais incipiente – é a de constituição de uma zona livre de comércio, caracterizada pela “supressão de tarifas que incidem sobre o comércio intra-área e pela unificação das normas de controle de qualidade e de padronização de produtos”8. Para Carlos Maran de Oliveira, “esta fase ainda não poder ser considerada de integração, mas de cooperação entres os Estados”, visto objetivar tão somente a aproximação dos países participantes deste processo, os quais mantêm sua autonomia nas relações econômico-internacionais com países não integrantes do bloco.9

A fase seguinte compreende a constituição de uma união aduaneira, que se diferencia da primeira, pois “além da abolição das tarifas alfandegárias que incidem no comércio intra-área, ocorre a adoção de uma tarifa exterior comum para os Estados-Partes”10. A terceira fase é a que permite a livre circulação de mercadorias, serviços, pessoas e capitais entre os países integrados. Esta fase é ainda um desejo não realizado pelo MERCOSUL e consiste na efetiva implementação de um mercado comum, com a realização progressiva dos seguintes estágios: a) a adoção da livre circulação de mercadorias, eliminadas todas as barreiras tarifárias e não tarifárias para os Estados-Partes; b) o estabelecimento de uma política comercial comum nas relações dos Estados-Partes com outros países não integrantes do bloco; c) a eliminação de toda e qualquer restrição de circulação de pessoas, serviços e capitais entre os Estados-Partes; d) a regulamentação da concorrência no mercado comum.11

Já a quarta fase consiste na adoção de mecanismos de união econômica e monetária, configurando-se como a etapa em que o princípio da livre circulação de capitais é levado às últimas

7NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 12. 8SILVA, 1999, p. 30 apud NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 16. 9OLIVEIRA, Carlos Maran de. MERCOSUL: livre circulação de mercadorias. Curitiba: Juruá, 2002. p. 30. 10SILVA, 1999, p. 30 apud NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 17. 11OLIVEIRA, Carlos Maran de. op. cit., p. 34.

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conseqüências. De acordo com Amandino Teixeira Nunes Junior, é a fase mais complexa de integração que se tem relatado na contemporaneidade, tendo sido alcançada tão somente pela União Européia. Segundo o autor, nesta fase, são constituídas estruturas supranacionais – poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – cujas decisões emanadas são dotadas de primazia sobre as decisões de órgãos nacionais.12

Celso Maran de Oliveira, por sua vez, reconhece, ainda, uma quinta e última fase da integração regional, denominada de união política dos países integrados. Nesta etapa, os blocos regionais adquirem, paulatinamente, uma dimensão política. Além da agenda econômica comum, é ampliada a cooperação entre os países integrados no enfrentamento a questões políticas. Assim, são incluídos na agenda integracionista temas como a estabilidade dos preços, a inflação, os índices de desemprego e as taxas de crescimento regional, bem como a implantação de passaportes comuns, a adoção de mecanismo de registro único de automóveis e o estabelecimento de cláusulas democráticas e de planos de enfrentamento de conflitos e manutenção da paz e da ordem social no conglomerado regional. Em suma, haveria a integração também pela afirmação de uma agenda política compartilhada entre os Estados-Partes.13

Não se deve deixar de dizer que a adoção de mecanismos de integração econômica – especialmente quando levadas ao último estágio, com a criação de estruturas supra-nacionais – trazem em seu bojo não só conseqüências econômicas, mas também mudanças estruturais que repercutem em esferas mais amplas do convívio social. Dessa forma, à semelhança de Liszt Vieira, pode-se dizer que, assim como a globalização, a integração regional é processo que compreende não só uma dimensão econômica, mas também uma dimensão política, social, ambiental e cultural.14

2. O MERCOSUL e suas instituições

Em 26 de março de 1991, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai firmaram um tratado para dar início à constituição entre eles de um mercado comum, o MERCOSUL. O Tratado de Assunção, como ficou conhecido este ato internacional, consistia em uma resposta à “evolução dos acontecimentos internacionais, em especial a consolidação de grandes espaços econômicos, e a importância de lograr uma adequada inserção internacional para seus países”.15

Segundo Elizabeth Accioly, as raízes históricas do MERCOSUL são encontradas em acordos bilaterais celebrados entre dois países atualmente integrantes do bloco, os quais sejam, Brasil e Argentina16. Até meados dos anos 80, referidos Estados “viviam de costas um para o outro”, apresentando-se tradicionalmente como rivais. Este quadro só se modificaria no início de 1985, com a visita de Tancredo Neves a Raúl Alfonsín, em Buenos Aires. Inauguravam-se, então, tratativas de aproximação comercial e política entre os dois países. Mesmo com a morte de Tancredo, José Sarney e

12NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 16-18. 13OLIVEIRA, Carlos Maran de. op. cit., p. 37-38. 14VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 74. 15Preâmbulo, do Tratado de Assunção (Decreto n.º 350, de 21 de novembro de 1991). 16Neste período, o mundo presenciava também a emersão de ideais de integração regional e discussões acerca do fim de

fronteiras econômicas em escala mundial. Assim, países do Cone Sul não teriam ficado insensíveis a esta nova dinâmica internacional, instigando-se na promoção de uma maior aproximação diplomática entre eles. (ACCIOLY, Elizabeth. op. cit., p. 70).

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Raúl Alfonsín firmaram a Declaração de Iguaçu, em 30 de novembro de 1985, a qual lançou, neste solo fértil, o embrião do MERCOSUL, simbolizado pela inauguração da Ponte Presidente Tancredo Neves que unia Puerto Iguazu, na Argentina, com Foz do Iguaçu, no Brasil.17

A cooperação entre estes dois países evoluiu nos anos seguintes. Em julho de 1986, Brasil e Argentina assinaram uma ata de integração, criando o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE). Em novembro de 1988, firmaram o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento (TICD), com a perspectiva de criar, em 10 anos, um espaço econômico comum, a partir da eliminação de obstáculos alfandegários e da liberalização do comércio bilateral. O ponto máximo deste processo teria sido alcançado em julho de 1990, quando os então presidentes Carlos Menem (Argentina) e Fernando Collor de Mello (Brasil) firmaram a Ata de Buenos Aires, a qual trazia como meta reduzir o prazo de criação de um espaço econômico comum para dezembro de 1994.18

A preocupação com um possível isolamento econômico decorrente das tratativas de aproximação entre Brasil e Argentina, fez com que o Uruguai e, posteriormente, o Paraguai aderissem a este processo, o qual culminou na assinatura do Tratado de Assunção e a criação do MERCOSUL. Nos anos seguintes à assinatura do Tratado de Assunção, outros cinco países da América Latina se associaram à iniciativa, na modalidade de integração de uma zona de livre comércio. São eles: Bolívia e Chile (desde o ano de 1996); Peru (desde 2003); Colômbia e Equador (desde 2004). Em 2006, a Venezuela assinou um protocolo de adesão ao bloco, no qual assumiu o compromisso com as etapas do processo de ingresso no conglomerado regional.19

Recentemente, no ano de 2010, novos sócios, para além das fronteiras latino-americanas, formalizaram acordos para o estabelecimento de uma zona de livre comércio com os membros do MERCOSUL, sendo eles: Israel e Egito. Quanto a este último, a vigência do acordo ainda encontra-se pendente, devido à necessidade de sua aprovação pelos parlamentos dos Estados-Partes do bloco.20

O Tratado de Assunção previu, em seu artigo 1º, o objetivo de se constituir um Mercado Comum – um desejo, até o momento, parcialmente realizado –, o qual implicaria: (a) na livre circulação de bens serviços e fatores produtivos entre os países integrantes do bloco, a partir da adoção de mecanismos de eliminação de direitos alfandegários e restrições não tarifárias; (b) no estabelecimento de uma tarifa externa comum, bem como na adoção de uma política comercial comum com países ou agrupamentos de países externos ao bloco; (c) a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-Partes; e (d) o compromisso de harmonizar as legislações relativas ao fortalecimento do processo de integração.

Segundo leitura de Elizabeth Accioly sobre Tratado de Assunção, o processo de criação do MERCOSUL fora dividido em duas etapas. A primeira delas – uma fase provisória, prevista até 31 de dezembro de 1994 – consistia nos passos iniciais rumo à criação do Mercado Comum, conforme enunciado no artigo 3º do Tratado de Assunção. Tratava-se de um período de transição, com o objetivo de facilitar a constituição de um mercado comum, a partir da adoção de um Regime Geral de Origem, um Sistema de Controvérsias e a definição de Cláusulas de Salvaguardas. A segunda etapa – com início

17ACCIOLY, Elizabeth. op. cit., p. 70. 18Id. Ibid., p. 70-71. 19Id. Ibid., p. 71-72. 20Id. Ibid., p. 73.

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marcado para 1º de janeiro de 1995 – configur-se-ia na consolidação de uma zona aduaneira imperfeita, porém ainda distante de um verdadeiro Mercado Comum do Sul.

Para esta primeira fase o MERCOSUL buscou ajustes econômicos, políticos e jurídicos para que a engrenagem que move essa integração pudesse funcionar a partir da data estabelecida: 1º de janeiro de 1995. A partir daí passou-se para a etapa definitiva, com o estabelecimento de uma união aduaneira entre os quatro sócios, que vem cristalizar o caráter irreversível e dinâmico do processo de integração do MERCOSUL, reforçado pela adoção de um novo perfil institucional, consubstanciado no Protocolo de Ouro Preto, que trouxe um novo impulso à integração regional, [...].21

O Protocolo de Ouro Preto foi o instrumento que trouxe a definição da estrutura e órgãos do MERCOSUL, atendidas as diretrizes enunciadas no artigo 18 do Tratado de Assunção. De acordo com referido artigo, vencido o período de transição, os Estados-Partes deveriam, em reunião extraordinária, “determinar a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado comum, assim como as atribuições específicas de cada um deles e seu sistema de tomada de decisões”. Assim, foi feito e, em 17 de dezembro de 1994, em Ouro Preto (Minas Gerais, Brasil), na VII Reunião do Conselho do Mercado Comum do Sul, foi celebrado o Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobre a Estrutura Institucional do MERCOSUL, conhecido por Protocolo de Ouro Preto.

Entre os destaques deste protocolo estão o reconhecimento da personalidade jurídica de Direito Internacional do MERCOSUL22 e a definição, em seu artigo 1º, de seus seis órgãos institucionais, a saber: Conselho do Mercado Comum23, Grupo Mercado Comum24, Comissão de Comércio do MERCOSUL25; Comissão Parlamentar Conjunta26, Foro Consultivo Econômico-Social27 e Secretaria Administrativa do MERCOSUL28. Destes órgãos, somente os três primeiros são dotados de capacidade decisória29, sendo os demais meramente consultivos.

3. A dimensão parlamentar do MERCOSUL

Nos dizeres de Amandino Teixeira Nunes Junior, “se a relevância assumida por um Parlamento é facilmente compreensível na vida de um Estado, a sua ação dentro de um processo de integração não pode ser igualmente depreciada”30. Sua previsão entre os órgãos de um bloco regional compreende o equilíbrio e a harmonia de um processo de integração, tendo em vista sua suposta aptidão de garantir a esta suporte político e legitimação democrática.31

21ACCIOLY, Elizabeth. op. cit., p. 75-76. 22Artigos 34 e 35, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 23Artigos 3º a 9º, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 24Artigos 10 a 15, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 25Artigos 16 a 21, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 26Artigos 22 a 27, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 27Artigos 28 a 30, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 28Artigos 31 a 33, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 29Artigo 2º, do Protocolo de Ouro Preto (Decreto n.º 1.901, de 09 de maior de 1996). 30NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 131. 31Id., loc. cit.

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A tradicional e exclusiva atuação dos governos e executivos nacionais na integração regional tende a excluir a participação, neste processo, de grupos de interesses e de atores sociais e políticos diversos, além dos próprios cidadãos. Ao passo que a previsão de uma dimensão parlamentar em âmbito regional desempenha um papel fundamental de – afora a condução ou integração do processo de produção das normas de direito derivado e comunitário – construir um canal de legitimação democrática, mediante a representação e expressão da opinião da sociedade. Assim, no aprofundamento e na consolidação de um espaço regional comum integrado, o Parlamento – trazido da clássica divisão de poderes – figura-se como um elemento auxiliar na conformação definitiva e estável do projeto de integração.32

Em sentido semelhante, Francisco Pedro Jucá sustenta que a dimensão parlamentar de um bloco regional possibilita a manifestação ou, até mesmo, a formação de uma opinião pública regional, garantindo a expressão dos interesses da coletividade integrada e aumentando o comprometimento da toda a sociedade com o processo de integração. Ademais, segundo este autor, cabe também a esta institucionalidade parlamentar, “a missão de articular as sociedades nacionais e a regional, num processo democrático, estável e progressivamente amadurecido”33. Este demonstra-se ser também o posicionamento de José Mendonça de Araújo Filho, ao reconhecer que, na essencial uma dimensão parlamentar no âmbito do MERCOSUL tem por princípio, realizar a representação política dos povos e dos cidadãos da região integrada34, remediando eventual déficit democrático insurgido no processo de implementação do bloco.

Neste cenário, na opinião de Amandino Teixeira Nunes Júnior,

[...] torna [-se] inquestionavelmente evidente o papel de motor político que assume o Parlamento em contexto de integração regional, como depositário da vontade popular, cabendo-lhe o impulso propulsor no desenrolar de um percurso, gradual mas progressivo, rumo a uma integração estreita e para o cumprimento dos objetivos estabelecidos nos Tratados constitutivos.35

3.1 Antecedentes históricos do Parlamento do MERCOSUL

A instituição de uma dimensão parlamentar auxiliar aos processos de integração regional da América Latina pode ser verificada em diversas experiências que precederam à criação do Parlamento do MERCOSUL. Entre estes antecedentes históricos estão a criação do Parlamento Andino36 e do Parlamento Latino-Americano (Parlatino)37. No âmbito do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento (TICD) – um dos embriões do Tratado de Assunção – firmado entre Brasil e Argentina,

32NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 131-132. 33JUCÁ, Francisco Pedro. Parlamento do MERCOSUL: alterações necessárias à Constituição brasileira de 1988. São Paulo:

LTr, 2002. p. 125. 34ARAÚJO FILHO, José Mendonça de. Parlamento do MERCOSUL e internacionalizações de normas: medida provisória

legislativa. Dissertação (Mestrado em Direito)– Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2007. p. 39. 35NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 133. 36O Parlamento Andino é um dos órgão da Comunidade Andina formada por Bolívia, Colômbia, Peru, Venezuela e Equador. 37Criado em 1987 por Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras,

México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela, o Parlatino visa fortalecer os parlamentos sub-regionais e fomentar a integração Latino-Americana.

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também já se previa a existência de uma Comissão Parlamentar Conjunta, de caráter consultivo, formada por parlamentares deste dois países.38

Sob a vigência do Tratado de Assunção, seu protocolo adicional – Protocolo de Ouro Preto – definiu, entre seus artigos 22 e 27, a criação da Comissão Parlamentar Conjunta (CPC) para o MERCOSUL. Compreendida como o órgão representativo dos Parlamentos dos Estados-Partes, a CPC apresentava uma composição paritária entre os países membros, com representantes indicados de maneira indireta pelos respectivos Parlamentos nacionais, em consonância com os procedimentos por eles definidos.

A CPC tinha como atribuições: (a) “acelerar os procedimentos internos correspondentes nos Estados-Partes para a pronta entrada em vigor das normas” emanadas do Conselho do Mercado Comum, do Grupo Mercado Comum e da Comissão do Mercado Comum; (b) auxiliar na “harmonização de legislações [nacionais], tal como requerido pelo avanço do processo de integração”; além de (c) examinar temas prioritários, a pedido do Conselho do Mercado Comum. As manifestações da Comissão Parlamentar Conjunta seriam encaminhadas ao Conselho do Mercado Comum, por intermédio do Grupo Mercado Comum, na forma de recomendações.

Foram cerca de 12 anos de atuação da Comissão Parlamentar Conjunta até que se chegasse a criação do Parlamento do MERCOSUL. Vale ressaltar que, em regulamento assinado em 06 de dezembro de 1991, a CPC já previa trabalhar na promoção da integração regional e no fortalecimento desta dimensão parlamentar, com vista à criação futura do Parlamento do MERCOSUL (Parlasul), objeto de estudo da seção seguinte deste ensaio.

3.2. Parlamento do MERCOSUL: criação e competências

Em 15 de dezembro de 2004, chefes de Estado e de Governo dos países integrantes do MERCOSUL decidiram pela criação de seu Parlamento. Estabeleceram, à época, o prazo de dois anos para sua instalação. Assim, em 14 de dezembro de 2006, no Plenário do Senado Federal Brasileiro, realizou-se a Sessão de Constituição do Parlamento do MERCOSUL. A partir de então, entrava em vigor o Protocolo Constitutivo do Parlasul39, substituindo, no quadro organizacional do MERCOSUL, a anterior Comissão Parlamentar Conjunta. A primeira seção oficial do Parlamento do MERCOSUL ocorreria em 07 de maio de 2007, na cidade de Montevidéu, oportunidade em que tomaram posse 81 parlamentares dos Estados-Partes.

Para Alberto do Amaral Júnior, o Parlamento de MERCOSUL tem por escopo representar os interesses dos Estados que o integram.

A participação da sociedade civil no processo de integração, o desenvolvimento, a justiça social e o respeito à diversidade cultural da população são os objetivos que o Parlamento do MERCOSUL pretende realizar. Buscou-se, também, incentivar a formação de uma

38ACCIOLY, Elizabeth. op. cit., p. 84. 39Id. Ibid., p. 85.

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consciência coletiva de valores comunitários de modo a consolidar e aprofundar a integração latino-americana.40

No preâmbulo do seu Protocolo, os países integrantes do MERCOSUL demonstraram-se convencidos de que, para o alcance dos objetivos da integração do Cone Sul, seria importante a criação de um ambiente institucional equilibrado e eficaz, hábil a criação de normas efetivas e garantidoras de um cenário de segurança jurídica e de previsibilidade do processo de integração. Isso, com vista a promover a transformação produtiva, a eqüidade social, o desenvolvimento científico e tecnológico, os investimentos e a criação de empregos em todos os Estados integrados. Manifestava-se também a crença no Parlamento do MERCOSUL como a esfera adequada para o exercício da democracia, em âmbito regional, e para a representação da pluralidade de interesses dos cidadãos dos Estados-Partes, contribuindo, destarte, para a qualidade e o equilíbrio institucional do MERCOSUL, além das harmonizações das legislações nacionais de seus signatários.

Entre os propósitos do Parlamento do MERCOSUL, expressos em seu protocolo constitutivo, estão:

1. Representar os povos do MERCOSUL, respeitando sua pluralidade ideológica e política.

2. Assumir a promoção e defesa permanente da democracia, da liberdade e da paz.

3. Promover o desenvolvimento sustentável da região com justiça social e respeito à diversidade cultural de suas populações.

4. Garantir a participação dos atores da sociedade civil no processo de integração.

5. Estimular a formação de uma consciência coletiva de valores cidadãos e comunitários para a integração.

6. Contribuir para consolidar a integração latino-americana mediante o aprofundamento e ampliação do MERCOSUL.

7. Promover a solidariedade e a cooperação regional e internacional.41

Quanto a suas competências, cabe ao Parlamento do MERCOSUL (a) velar pela observância das normas do bloco regional e pela preservação do regime democrático nos Estados-Partes; (b) elaborar e publicar anualmente um relatório acerca da atenção aos direitos humanos em seu âmbito territorial; (c) solicitar, aos órgãos decisórios e consultivos do MERCOSUL, informações e opiniões acerca do processo de integração regional, podendo convidar, por intermédio da presidência do Conselho do Mercado Comum, representantes dos órgãos do bloco; (d) receber, da presidência Pro Tempore do MERCOSUL, relatórios sobre as atividades realizadas durante determinado período, e, no início de cada semestre, plano de trabalho acordado com os Estados-Partes, contendo objetivos e prioridades para o período; (e) realizar reuniões semestrais com o Foro Consultivo Econômico-Social para intercambiar informações pertinentes ao desenvolvimento do bloco regional; (f) organizar reuniões com atores da sociedade civil e setores econômicos para discussão de questões relativas à integração regional; (g) manifestar-se, por meio de pareceres, acerca de projetos de normas do MERCOSUL que requeiram a aprovação legislativa

40AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2011. p. 444. 41Artigo 2º, do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL (Decreto n.º 6.105, de 30 de abril de 2007).

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dos Estados-Partes; (h) propor ao Conselho do Mercado Comum projetos de normas do MERCOSUL; (i) realizar estudos e anteprojetos de normas nacionais, bem como desenvolver ações e trabalhos conjuntos com os Parlamentos Nacionais, com o fim de harmonizar as legislações nacionais e assegurar o cumprimento dos objetivos do bloco; (j) fomentar o desenvolvimento da democracia representativa e participativa no âmbito do MERCOSUL; (k) elaborar e aprovar seu regimento interno e orçamento anual; (l) e realizar outras funções pertinentes ao exercício de sua competência.42

José Mendonça de Araújo Filho, em análise crítica quanto às competências do Parlamento do MERCOSUL, reconhece a correlação existente entre esta esfera institucional e o “aperfeiçoamento de internacionalização das normas do Bloco e do próprio reforço da segurança jurídica regional”. No entanto, posiciona-se no sentido de reconhecer que um dos maiores desafios do órgão consiste, ainda, em conquistar o status de efetiva entidade legiferante, ou seja, dotada de competência decisória na produção de normas a viger na esfera regional.43 Para tanto, devem ser enfrentadas questões preliminares, como a definição de mecanismos hábeis a garantir o exercício da representação política cidadã no âmbito do legislativo regional.

4. Desafios da representação política no Parlamento do MERCOSUL

Quanto à representação política, o Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL previu dois momentos para sua definição. Na primeira etapa de transição, compreendida pelo período de 31 de dezembro de 2006 a 31 de dezembro de 2010, o Parlamento seria integrado por 18 legisladores de cada Estado, selecionados e indicados pelos respectivos parlamentos nacionais, segundo critérios próprios de cada país. Já, na segunda etapa – entre 1º de janeiro de 2011 e 31 de dezembro de 2014 –, os membros do Parlamento do MERCOSUL deveriam ser eleitos em seus Estados, por meio do sufrágio direto, universal e secreto44, em eleições, segundo agenda eleitoral de cada país, regidas pela legislação nacional e garantida a “adequada representação por gênero, etnia e regiões” de cada Estado-Parte45. E durante o ano de 2014, eleições deveriam ser realizadas, simultaneamente, em todos os países integrantes do bloco, em data definida pelo Conselho do Mercado Comum até o final de 2012 e intitulada “Dia do MERCOSUL Cidadão”.46

Ocorre, contudo, que até momento, à exceção do Paraguai, nenhum outro país membro do bloco realizou eleições diretas para o Parlamento do MERCOSUL. Desta forma, o órgão, em reunião realizada em 13 de dezembro de 2010, deliberou pela manutenção do sistema de indicação indireta de parlamentares nacionais47 – com mandatos vigentes e outorgados por voto popular – até que se realizem

42Artigo 4º, do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL (Decreto n.º 6.105, de 30 de abril de 2007). 43ARAÚJO FILHO, José Mendonça de. op. cit., p. 37. 44Artigo 6º c.c. Disposições Transitórias, do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL (Decreto n.º 6.105, de 30

de abril de 2007). 45Artigo 6º, do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL (Decreto n.º 6.105, de 30 de abril de 2007). 46Artigo 6º, alínea 4 c.c. Disposições Transitórias, do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL (Decreto n.º

6.105, de 30 de abril de 2007). 47No Brasil, permanece, portanto, em vigor a Resolução n.º 1 de 2007, do Congresso Nacional, que regulamenta o sistema

de representação no Parlamento do MERCOSUL por parlamentares nacionais indicados para a função.

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eleições específicas para o legislativo regional48. No Brasil, o principal desafio ou entrave à realização de eleições direitas para o Parlasul consiste no fato de o Congresso Nacional não ter ainda deliberado sobre projeto de lei (PL) que regulamentaria referida eleição49. Acerca deste tema, tramita, na Câmara dos Deputados, o PL n.º 5.279 de 2009, de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT/SP).

O texto original da proposição previa a realização da eleição em 03 de outubro de 2010, juntamente com as definições para os cargos dos poderes Executivo e Legislativo federais e estaduais. Diante da não aprovação da matéria em tempo hábil, o deputado Dr. Rosinha (PT/PR), em seu parecer na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados, apresentou um substitutivo ao projeto, segundo o qual a eleição somente será realizada em 05 de outubro de 2014. O referido parecer, acompanhado do substitutivo, foi aprovado pela CREDN em 13 de abril de 2011, mas aguarda as manifestações das Comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), e Finanças e Tributação (CFT), para, então, ser deliberado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e seguir ao Senado Federal.

Outro desafio quanto à representação política no Parlamento do MERCOSUL consiste na definição do número de assentos para cada Estado-Parte. Até o momento, todos os países membros do bloco possuem igual número de parlamentares no legislativo regional. Para a solução deste impasse, vem sendo discutida a adoção da sistemática de proporcionalidade atenuada das bancadas nacionais50, decorrente do critério de representação cidadã, aplicável a partir da segunda etapa do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL51. Segundo Francisco Eugenio Machado e Maria Cláudia Drummond, uma das principais “fontes de inspiração”, para a construção do acordo das autoridades diplomáticas e parlamentares do MERCOSUL quanto a este tema, tem sido o modelo adotado pelo Parlamento Europeu, que prevê a proporcionalidade das bancadas, segundo índices populacionais dos Estados-Partes.52

De acordo com o Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL, os critérios de representação cidadã e, consequentemente, de proporcionalidade das bancadas nacionais, deveria ter sido estabelecido por decisão do Conselho do Mercado Comum até 31 de dezembro de 2007, após a apresentação da respectiva proposta pelo Parlasul. No entanto, a inércia do legislativo regional vem

48AGÊNCIA Senado. Integrantes do Parlasul deverão ter mandato parlamentar. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/print.aspx?codNoticia=106171>. Acesso em: 08 mar. 2011.

49Id. Novo Congresso definirá se eleições para Parlasul serão em 2012 ou 2014. Disponível em: <http://senado.gov.br/noticias/print.aspx?codNoticia=106519>. Acesso em: 08 mar. 2011.

50De acordo com análise dos consultores legislativos do Senado Federal Francisco Eugenio Machado e Maria Claúdia Drummond, “os critérios de proporcionalidade deverão, inevitavelmente, sofrer certa atenuação, dada a impossibilidade de se adotar a proporcionalidade plena, tendo em vista a enorme disparidade existente entre as populações dos Estados-Partes” (MACHADO, Francisco Eugenio; DRUMMOND, Maria Cláudia. Parlamento do MERCOSUL: proporcionalidade das bancadas nacionais e questões eleitorais internas. Agência de notícias: Representação brasileira no Parlamento do MERCOSUL, ago. 2008. p. 4. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/evmmercosul/publico/setores/000/33/noticias/2008/8/359/pm-artigo-proporcionalidade-julho2008%20versão%20final.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2011).

51Artigo 5º c.c. Disposições Transitórias, do Protocolo Constitutivo do Parlamento do MERCOSUL (Decreto n.º 6.105, de 30 de abril de 2007).

52MACHADO, Francisco Eugenio; DRUMMOND, Maria Cláudia. op. cit., p. 11.

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protelando referida solução que, segundo Agência Senado, deve ser prolatada somente no curso de 201153.

Conclusão

No curso do processo de integração regional, o MERCOSUL ainda é um projeto inacabado. Consiste, pois, em uma zona aduaneira em consolidação, dotada do desafio de superar questões de ordem política, econômica, internacional e constitucional, que vão desde o progresso na criação de um efetivo mercado comum, à composição de estruturas supranacionais e, até mesmo, ao reconhecimento da existência de uma ordem jurídica comunitária – composta por normas dotadas de primazia, aplicabilidade imediata e efeito direto – bem como à adequação dos ordenamentos jurídicos dos Estados-Partes54.

A concepção de uma institucionalidade parlamentar, no âmbito dos quadros organizacionais do bloco regional, é, sem dúvida, uma iniciativa louvável, que poderia ser capaz de auxiliar na solução das questões adjacentes que impedem a efetiva instalação de um Mercado Comum do Sul. No entanto, as dificuldades do Parlasul em dar cabo à suas próprias definições internas – como os desafios da representação política apontados neste ensaio – parecem fragilizar sua suposta função de condutor e indutor democrático do processo de integração, impedindo-o, inclusive, de adquirir o status de órgão decisório e legiferante do conglomerado regional.

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53AGÊNCIA Senado. Ampliação de representação brasileira no Parlasul será decida em 2011. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/print.aspx?codNoticia=106502>. Acesso em: 08 mar. 2011.

54Cf. NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. op. cit., p. 149-179.

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Normas para Apresentação

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A apresentação do artigo para publicação nos Cadernos de Pós-Graduação em Direito deverá obedecer as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)

● Titulo: Centralizado, em caixa alta. Deverá ser elaborado de maneira clara, juntamente com a versão em inglês. Se tratar de trabalho apresentado em evento, indicar o local e data de realização.

● Identificação dos Autores: Indicar o nome completo do(s) autor(res) alinhado a direita. A titulação acadêmica, Instituição a que pertence deverá ser colocado no rodapé.

● Resumo e Abstract: Elemento obrigatório, constituído de uma seqüência de frases concisas e objetivas e não de uma simples enumeração de tópicos, não ultrapassando 250 palavras. Deve ser apresentado em português e em inglês. Para redação dos resumos devem ser observadas as recomendações da ABNT - NBR 6028/maio 1990.

● Palavras-chave: Devem ser apresentados logo abaixo do resumo, sendo no máximo 5 (cinco), no idioma do artigo apresentado e em inglês. As palavras-chave devem ser constituídas de palavras representativas do conteúdo do trabalho. (ABNT - NBR 6022/maio 2003).

As palavras-chave e key words, enviados pelos autores deverão ser redigidos em linguagem natural, tendo posteriormente sua terminologia adaptada para a linguagem estruturada de um thesaurus, sem, contudo, sofrer alterações no conteúdo dos artigos.

● Texto: a estrutura formal deverá obedecer a uma seqüência: Introdução, Desenvolvimento e Conclusão.

● Referências Bibliográficas - ABNT – NBR 6023/ago. 2000.

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