Terra e Território Alumeia... · Da tensão social à conveniência e ... toral da Terra completa...

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Revista da Comissão Pastoral da Terra Bahia Edição 2 – Ano 2 – Outubro de 2015 Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ISSN 2318-6496

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Revista da Comissão Pastoral da Terra BahiaEdição 2 – Ano 2 – Outubro de 2015

Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

ISSN 2318-6496

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05 Artigos Da tensão social à conveniência e oportunidade: os caminhos político-jurídicos trilhados pela obtenção de terras para a reforma agrária no Brasil

18 Matéria Comunidades lutam para defender seus territórios

29 Depoimentos Everalda; Josileide; João Ferreira; Maria Inês e Dom Mauro

Alumeia é uma publicação da Comissão Pastoral da Terra Bahia, organismo ligado à Comissão para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Rua General Labatut, 78 – Barris, Salvador-BACEP: 40070-100Telefones: (71) 3328-4672 / [email protected]

COORDENAÇÃOAbeltânia de Souza SantosGilmar SantosLuciano BernardiTerezinha Maria Foppa

REALIZAÇÃOComissão Pastoral da Terra Bahia

APOIOFundo Nacional da Solidariedade

EXPEDIENTEColaboração: Ana Paula Alves, Beniezio Eduardo, João Marques, Nancy Cardoso, Thomas Bauer, Tatiana Emilia Dias GomesPesquisa e Fotos: Agentes CPT BAEdição: Assessoria de Comunicação CPT BAProjeto Gráfico, Editoração e Impressão: Autor Visual Design GráficoTiragem: 1.500 exemplares

ISSN 2318-6496

Sumário

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo APRESENTAÇÃO

Apresentação

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APRESENTAÇÃO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

Neste ano de 2015 a Comissão Pas-toral da Terra completa 30 anos de publicações do Caderno de Confli-tos no Campo Brasil. A mais recente

publicação, referente ao ano de 2014, aponta

que ocorreram 1.286 conflitos no campo no país,

envolvendo mais de 80 mil pessoas. Na Bahia, fo-

ram registrados 103 conflitos no campo, sendo

76 conflitos por Terra, envolvendo 1.940 famílias.

O Caderno de Conflitos no Campo Brasil se

propõe a registrar os conflitos em que estão

envolvidas pessoas e famílias de trabalhadores

e trabalhadoras do campo, e as mais diversas

categorias de camponeses do país. Nestes 30

anos foram registrados 29.609 conflitos no cam-

po, destes 23.079 são conflitos por terra.

Em 2014, o que sobressai é o número de

pessoas envolvidas nestes conflitos: 817.102,

número 43% maior que em 2013, que era de

573.118 pessoas.

Outro dado que se destaca da violência contra

os homens e mulheres do campo é o do núme-

ro de famílias despejadas, cresceu quase 92%.

Foram 6.358 famílias despejadas em 2013 e

12.188 em 2014. No Nordeste o número passou

de 1.769 para 4.174.

Cresceu também o número de famílias amea-

çadas de despejo, que passou de 19.250 para

29.280, um aumento de 52%. O número de

famílias ameaçadas de expulsão foi de 22.698

para 23.061 e o de famílias que viveram sob a

mira de pistoleiros de 13.638 para 17.695. Em

contrapartida, o número de famílias expul-

sas diminuiu de 1.144 em 2013, para 963 em

2014. Este dado sinaliza que quando é maior a

ação do poder público na defesa dos interes-

ses dos proprietários estes podem se eximir de uma ação direta.

Esta segunda edição da Alumeia trata sobre Terra e Território: A luta dos povos para perma-necerem no campo. Como acontece o enfren-tamento aos projetos de capital e aos empre-endimentos que se mostram como progresso e geradores de empregos para a região, ao mesmo tempo em que expulsam moradores de suas casas.

Trazemos relatos de moradores de comunida-des que resistem há mais de 30 anos para se manterem em seu território, como no município de Casa Nova, e comunidades de Caetité que enfrentam as obras da Ferrovia de Integração Oeste-Leste.

Apresentamos também os desafios da Juven-tude Camponesa que enfrenta dificuldades de se manter no campo por causa da pouca oferta de trabalho e de educação de qualidade.

A força das mulheres trabalhadoras rurais tam-bém é mostrada nessa edição. Como se organi-zaram em movimentos e como têm enfrentado os projetos de capital no Oeste do Estado. Além disso, um dos nossos artigos fala do papel da mulher na luta no campo a partir de relatos da Bíblia. Como ela era vista e que funções desempenhava.

Contamos também com depoimentos de mo-radores impactados com a construção do Porto Sul, em Ilhéus.

Esperamos que essa edição sirva de reflexão sobre as diversas formas de resistência das camponesas e camponeses da Bahia.

Boa leitura e muitas luzes!As/os agentes da CPT Bahia

Apresentação

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

PRIMEIRAS PALAVRAS

Quais ideias influenciaram as con-cepções sobre obtenção de ter-ras pelo Estado para a reforma agrária no Brasil? Quais transfor-

mações vêm ocorrendo nas propostas de obten-ção de terras para reforma agrária realizada nas últimas décadas? Incidir sobre a concentração fundiária foi um elemento importante para os sucessivos governos federais? Deixou de ser?

A concentração fundiária no Brasil é muito elevada. Pelo menos, desde os anos ses-senta, o índice de Gini da concentração se mantem no mesmo patamar – 0,8 (com pequenas variações).

Muito embora as raízes que explicam essa in-tensa concentração sejam bastante profundas, o que nos remete ao estatuto do solo brasileiro desde os tempos coloniais e imperiais, com destaque para as relações entre escravismo, direito de propriedade privada e sistema finan-ceiro, é importante não perder de vista que as escolhas e decisões políticas do presente e de

um passado muito recente agudizam o quadro e lhe dá um aspecto mais sombrio.

De um modo geral, o assentamento de traba-lhadores sem terra com condições de produção e acesso a direitos sociais sempre permaneceu aquém das reivindicações dos movimentos sociais organizados, resultado da combinação de um patronato rural fortalecido, de governos atrelados a seus interesses e de uma questio-nável demanda mundial pelo aumento da pro-dução de alimentos.

Da tensão social à conveniência e oportunidade:OS CAMINHOS POLÍTICO-JURÍDICOS TRILHADOS PELA OBTENÇÃO DE TERRAS PARA A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL

Tatiana Emilia Dias Gomes*

*Assessora da CPT/Bahia, Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.

Tupinambás lutam por território

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ARTIGO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

A OBTENÇÃO DE TERRAS PARA A REFORMA AGRÁRIA NO ESTATUTO DA TERRA

O primeiro instrumento legislativo que se dedi-

cou à obtenção de terras para a reforma agrária

foi a Lei Federal n.º 4.504, vigente desde 30 de

novembro de 1964, conhecida como Estatuto

da Terra.

Para compreender o Estatuto da Terra em con-

teúdo político-social e, consequentemente, a

arquitetura jurídica concebida para a obtenção

de terras para a reforma agrária, é importante

atentar para o momento histórico que o tor-

nou possível. O Brasil vivia o primeiro ano de

uma longa noite de 21 anos, em que um golpe

militar-empresarial derrubou um presidente

eleito democraticamente.

Nos anos sessenta, a soma de pressões internas

e externas sobre o governo militar inspirou o

Estatuto da Terra. De um lado, lideranças do

patronato rural exigiam modernização e apoio à produção agrícola e, de outro, a Aliança Para o Progresso1 incentivava os governos da Amé-rica Latina a promoverem reforma agrária com caráter preventivo (MEDEIROS, 1993), a fim de evitar outras Cubas.

Desse caldo político amargo resulta a primei-ra ideia de reforma agrária regulamentada. A concepção que prevalece no Estatuto da Terra, em detrimento da reforma agrária, é a de desenvolvimento rural pautado na transfor-mação do latifúndio arcaico em empresa rural moderna. Para tanto, seria necessário facilitar o acesso a um maior volume de crédito rural, apoiar a mecanização, a compra de insumos e a pesquisa científica.

Além disso, a incidência nos problemas gerados pela concentração fundiária era traduzida em propostas de ocupação de espaços suposta-mente vazios (regiões na Amazônia, no Cerra-

1 Programa de cooperação concebido pelos EUA para os países da América Latina a fim de frear possíveis influências socialistas.

Moradores são despejados para instalação do projeto de irrigação, em Ponto Novo (BA) (esq.). Manifestantes reivindicam maior atenção para a agricultura familiar no Grito da Terra (dir.).

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

do e na Caatinga) para o avanço da fronteira agrícola. A reforma agrária se confunde com a colonização (MEDEIROS, 1993).

A reforma agrária aparece apenas como medida residual naquelas áreas reconhecidas como de tensão social. E a obtenção de terras para a reforma agrária deve acontecer de maneira gradual, parcelar, isto é, imóvel por imóvel, e excessivamente onerosa ao orçamento público.

A OBTENÇÃO DE TERRAS PARA A REFORMA AGRÁRIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal resultante do fim da

ditadura militar-empresarial, promulgada em

1988, derivou de intensas lutas políticas e dispu-

tas interpretativas pelo seu conteúdo escrito. A

redação da Constituição atual é um amálgama

dos distintos interesses que influenciaram os(as)

parlamentares constituintes, interesses confli-

tantes entre si em grande medida, e o assunto

reforma agrária não escapou dessa disputa.

As diversas lutas ocorridas pelo Brasil afora,

pelo menos desde as Ligas Camponesas, reivin-

dicando acesso à terra para os camponeses e

camponesas sem-terra atingiram um alto grau

de organização e mobilização popular. Os mo-

vimentos sociais gestados nesse ambiente po-

lítico de esperança conseguiram imprimir a sua

marca no texto constitucional, muito embora

essa marca tenha sido esmaecida pela oposição

Moradores são despejados para instalação do projeto de irrigação, em Ponto Novo (BA) (esq.). Manifestantes reivindicam maior atenção para a agricultura familiar no Grito da Terra (dir.).

Ocupação do MPA

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ARTIGO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

dos setores patronais que excluiu a propriedade considerada produtiva da desapropriação para fins de reforma agrária.

A ideia de obter terras apenas onde houvesse tensão social, como propunha o Estatuto da Terra, foi substituída por outra: a obtenção de terras deveria ocorrer onde houvesse latifúndio improdutivo.

Muito embora, desde 1934, as Constituições Federais fizessem referência ao bem estar so-cial como elemento constitutivo do direito de propriedade, é na Constituição Federal de 1988 onde houve um maior detalhamento desse elemento, agora chamado função social da propriedade.

A função social se concretiza quando atendidos, simultaneamente, quatro requisitos:

I. Aproveitamento racional e adequado;

II. Utilização adequada dos recursos natu-rais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III. Observância das disposições que regulam as relações de trabalho e;

IV. Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Na prá-tica dos gestores públicos, o requisito “uso adequado e racional” acabou prevalecendo para a obtenção de terras para a reforma agrária, em detrimento dos outros três.

Propriedade que não cumpre a função social deve ser desapropriada para fins de reforma agrária. Eis o mandamento constitucional. No entanto, a racionalidade que inspira a obtenção de terras para a reforma agrária continuou a mesma do Estatuto da Terra: parcelar, imóvel por imóvel, gradual (a regulamentação do capí-tulo constitucional dividiu o procedimento em duas fases, uma administrativa e uma judicial), e excessivamente onerosa aos cofres públicos, com a indenização do proprietário sendo paga em títulos da dívida agrária pelo valor da terra nua e, em dinheiro pelo valor das benfeitorias úteis e necessárias.

Comunidade de Ilhota mobilizada

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

A OBTENÇÃO DE TERRAS SEGUNDO A REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO

Durante os anos (1995-2002) dos governos

do presidente Fernando Henrique Cardoso,

segundo o INCRA, foram assentadas quase

540.704 famílias, com a desapropriação de

3.532 imóveis rurais.

A expressiva distribuição de terras foi favorecida

por um desaquecimento do mercado fundiário

e não veio acompanhada de condições ade-

quadas de instalação e produção das famílias

(SABOURIN, 2008), bem como acesso a outros

direitos sociais como saúde e educação.

Além da distribuição de terras sem garantir

condições de produção e vida para isso, du-

rante a era FHC, tomou corpo uma proposta

de obtenção de terras em que o Estado abdi-

cava o seu poder de desapropriar o latifúndio

improdutivo.

Análises sobre a questão fundiária no Brasil nesse período indicaram que, nesse governo, o Banco Mundial exerceu forte influência sobre a política fundiária executada, então chamada Novo Mundo Rural, articulada em três princípios (MARTINS, 2004):

(1) O assentamento de famílias sem terra

como política social compensatória; (2) a “es-

tadualização” dos projetos de assentamento,

repassando responsabilidades da União para

estados e municípios; (3) a substituição do

instrumento constitucional da desapropria-

ção pela propaganda do “mercado de terras”.

Durante o governo FHC, o Banco Mundial

iniciou três programas que inauguram uma

trajetória de acesso à terra e uma concep-

ção de desenvolvimento rural: Cédula da

Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário

de Combate à Pobreza. (MARTINS, 2004)

A “reforma agrária de mercado” foi amplamente questionada e combatida pelos movimentos e organizações populares, mas continuou a ser executada nos governos seguintes.

Comunidade de Ilhota mobilizada

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ARTIGO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

A OBTENÇÃO DE TERRAS PARA A REFORMA AGRÁRIA NOS GOVERNOS DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

Os governos do Partido dos Trabalhadores, nas

gestões de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rous-

sef, tiveram dificuldades em manter o mesmo rit-

mo de desapropriações dos governos de Fernan-

do Henrique Cardoso, o que se explica, em parte,

pelo aquecimento do mercado de terras no Brasil,

em função da supervalorização no mercado in-

ternacional da produção de grãos e carne bovina.

O governo Lula assentou 614.088 famílias e

desapropriou 1990 imóveis rurais, segundo o

INCRA. A obtenção de terras para a reforma agrá-

ria perdeu o fôlego completamente no governo

Dilma Roussef. Conforme o INCRA, no primeiro

mandato, foram desapropriados 216 imóveis ru-

rais desapropriados no Governo Dilma e 107.354

famílias assentadas. Sem esquecer que, em ou-

tubro de 2013, após campanha de denúncia do

Sindicato Nacional dos Peritos Agrários Federais,

a possibilidade daquele ano ser o pior para a

reforma agrária, com desapropriações zero, ga-

nhou espaço de destaque na imprensa brasileira.

Além dos fatores referidos anteriormente, que

aumentaram o custo da terra, é importante

destacar que decisões tomadas por essa gestão

impactaram severamente a obtenção de terras,

decisões essas fundamentadas em leituras de

que a reforma agrária deveria caminhar em

direção a uma “nova rota”.

A “nova rota” proposta pelos gestores públi-

cos seria “conectar a reforma agrária aos gran-

des objetivos de desenvolvimento do país”

(VARGAS; GUEDES, 2013) e garantir a “eman-

cipação” dos assentamentos. Essas leituras

partem do princípio que os assentados rurais

existentes se tornaram “favelas rurais” onde não

valeria a pena haver investimento estatal, que

só geraria reprodução desse modelo. Os gran-

des objetivos de desenvolvimento do país, em

realidade, são os velhos objetivos de sempre:

manter a posição geopolítica do Brasil de país

mono-agro-exportador, com os assentamentos

articulados à cadeia produtiva do agronegócio.

Com isso, foram introduzidas modificações na

arquitetura institucional da obtenção de ter-

ras para reforma agrária a partir de portarias

do Ministério do Desenvolvimento Agrário

(MDA), portarias essas que contrariam o texto

da Constituição Federal de 1988, por extrapolar

os critérios estabelecidos na Constituição e em

sua legislação regulamentar. As portarias MDA

n.º 5, 6 e 7 foram publicadas em janeiro de 2013.

O cumprimento da função social não é mais o

critério suficiente para determinar a desapro-

priação de um imóvel para fins de reforma agrá-

ria, será necessário também avaliar se a área se

enquadra nos requisitos de priorização estabe-

lecidos pelo INCRA, bem como o atendimento

de critérios de elegibilidade de imóveis, exigên-

cias estabelecidas pelo juízo de oportunidade e

conveniência dos gestores públicos. O que não

encontra qualquer ressonância na Constitui-

ção Federal e na legislação infraconstitucional.

Em linhas gerais, a portaria de n.º 5 estabeleceu

como requisito complementar ao laudo agro-

nômico de fiscalização e ao laudo de vistoria e

avaliação do procedimento de desapropriação,

a elaboração de um Estudo de Capacidade de

Geração de Renda.

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

A portaria de n.º 6 determina indicadores que devem ser observados para a obtenção de ter-ras, sendo eles:

I. Densidade de população em situação de pobreza extrema no meio rural;

II. Concentração fundiária;

III. Incidência de minifúndios;

IV. Disponibilidade de terras públicas não destinadas;

V. Demanda social fundamentada; e

VI. Existência de ações do Poder Público no âmbi-to do Plano Brasil Sem Miséria e do Programa Territórios da Cidadania ou outras iniciativas

que facilitem o acesso das famílias assenta-das às políticas de inclusão social e produtiva.

Com isso, o atrelamento aos programas de enfrentamento à miséria e a pobreza tornaram indicadores relevantes para a indicação de áreas para a instalação de novos assentamentos.

A portaria n.º 7, revogada, instituiu o critério limitador do custo do imóvel por família assentada. Assim, superados os valores mínimos estabelecidos por família na divisão do valor do imóvel pelo número de famílias assentadas, o imóvel rural não poderia ser desapropriado. O que traria como consequência excluir os imóveis em regiões onde o valor do hectare fosse supervalorizado, mesmo que não cumprida a função social da propriedade.

Em outubro de 2013, o MDA publicou a porta-ria de n.º 86, a fim de suspender os efeitos das portarias citadas acima nos procedimentos de desapropriação já em curso, uma vez que elas inviabilizariam completamente qualquer desapropriação naquele ano, produzindo o temido “ano zero” da reforma agrária, dado o significativo impacto na campanha eleitoral do ano seguinte.

Tabela 1 – Valores para obtenção de imóveis por família

Região Geográfica Bioma Valor por família

Norte

Amazônia R$ 90.000,00

Cerrado (apenas Tocantins) R$ 80.000,00

Outros biomas R$ 140.000,00

Nordeste

Caatinga R$ 40.000,00

Cerrado R$ 40.000,00

Amazônia R$ 80.000,00

Mata Atlântica R$ 80.000,00

Outros biomas R$ 140.000,00

Sul Pampa R$ 90.000,00

Outros biomas R$ 140.000,00

Sudeste Qualquer bioma R$ 140.000,00

Centro-Oeste Amazônia R$ 90.000,00

Outros biomas R$ 140.000,00Fonte: Portaria MDA n.º 07/2013.

Comunidade pesqueira quilombola de Graciosa luta por seu território

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ARTIGO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

Em 8 de julho de 2015, foi publicada no Diário Ofi-cial da União nova portaria de n.º 243, revogan-do a portaria n.º 7. A portaria n.º 243/2015 indica que as diretrizes que orientam a obtenção de terras para a reforma agrária são: o encurtamen-to, a rapidez e a eficiência dos procedimentos, a conciliação dos interesses públicos do Estado e a viabilidade econômica dos assentamentos. Essa última diretriz articula-se com a ideia de “nova rota” e de impedir a criação de novas fa-velas rurais com os recursos públicos do Estado.

Essa nova portaria estabelece como parâmetro de priorização para vistoria de imóveis para fins de reforma agrária, após pesquisa das Superin-tendências Regionais do INCRA e/ou indicação de organização representativa de trabalhadores:

I. Indicativos de descumprimento da sua

função social; II. Os imóveis constantes no

Cadastro de Empregadores que tenham

mantido trabalhadores em condições aná-

logas à de escravo; III. As terras públicas,

desde que apresentem viabilidade para a

implantação de projetos de assentamento;

IV. Os imóveis rurais de maior dimensão e

aqueles ofertados para a compra e venda

de que trata o Decreto nº 433, de 1992; e V.

Localização em área de influência de outros

assentamentos ou centros consumidores.

Ademais, aponta que no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o processo ad-ministrativo de desapropriação será objeto de, além de outros elementos de ordem técnica, de um juízo de oportunidade e conveniência da autoridade administrativa do órgão. Dessa forma, concentra-se na figura do gestor decidir, a partir de critérios muito abertos e elásticos, dando margem a possíveis arbitrariedades e violação do direito à terra de milhões de tra-balhadores sem terra.

A obtenção de terras para a reforma agrária no molde estatal que, desde sua concepção, se mostrou ineficiente para atender às lutas e reivindicações justas, legítimas e urgentes dos camponeses e camponesas do Brasil, na conjuntura atual, sofre intensos processos de demolição, ocultados por portarias adminis-trativas que não ganham a visibilidade neces-sária para provocar reações mais expressivas e seguem desrespeitando as conquistas legais.

REFERÊNCIASMEDEIROS, Leonilde Servolo. Reforma Agrária: concepções, contro-vérsias e questões, 1993.

SABOURIN, Eric. Reforma Agrária no Brasil: considerações sobre os debates atuais. Revista Estudos Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro, n.º 2, 2008, p. 151-184.

MARTINS, Mônica Dias (org.). O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004.

VARGAS, Pepe; GUEDES, Carlos. A Nova Rota da Reforma Agrária no Brasil. Folha de São Paulo, 3 de março de 2013.

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

Mulheres na luta por terra e território marcadas para desaparecer?Nancy Cardoso*

PARA CONTAR A HISTÓRIA DAS MULHERES NAS LUTAS POR TERRA E TERRITÓRIO A GENTE PRECISA PERGUNTAR: QUEM CONTA? O QUE CONTA? MAS TAMBÉM: O QUE NÃO SE CONTA? O QUE FICOU ESCONDIDO? É QUE OS DOCUMENTOS, OS RELATOS, AS ATAS E O DISCURSO TÊM SIDO UM PRIVILÉGIO DOS HOMENS E AS MULHERES FICAM ESCONDIDAS NO NÚMERO DE FAMÍLIAS ENVOLVIDAS, NA BASE DOS MOVIMENTOS DE MASSA E NAS AÇÕES COTIDIANAS DE RESISTIR. COMO ESCREVER UMA HISTÓRIA DAS MULHERES?

MARCADA PARA DESAPARECER: AS MULHERES ESTAVAM NAS LIGAS CAMPONESAS?

A partir de 1945, comunidades camponesas em Pernambuco se organizam na forma de ligas e associações rurais sob influência

do Partido Comunista Brasileiro. As motivações assistencialistas iniciais logo foram abandona-das por conta dos conflitos surgidos com os senhores de engenhos e latifundiários da região preocupados com o caráter associativo das ligas. Em 1948, com a ilegalidade do Partido Comunis-ta, as ligas foram fragilizadas na sua liderança e poucas resistiram até o período de 1954 – uma exceção é a Liga Camponesa da Iputinga, diri-gida por José dos Prazeres em Pernambuco.

*Agente de pastoral da CPT Bahia.

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ARTIGO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

de Massas, aqueles que se destacavam em

seu trabalho, reunindo qualidades políticas,

ideológicas e morais que justificassem sua

condição de militante da organização.

No âmbito da Organização de Massas e das

Ligas Urbanas e Femininas, muitas mulheres se

envolveram com o conjunto de propostas das

Ligas Camponesas. Algumas delas chegando a

fazer parte da Organização Política, como é o

caso de Elizabeth Teixeira.

Elizabeth Teixeira ficou mais conhecida como

a viúva de João Pedro Teixeira,  líder da Liga de

Sapé, assassinado em 1962 por dois policiais

disfarçados, a mando de usineiros paraibanos.

Elizabeth já exercia liderança antes da morte

do marido e antes de se envolver com as Ligas.

Ela tomou atitudes bastante avançadas para a

época. Maria Elizabeth fugiu com João Pedro

para Pernambuco, teve 11 filhos e o ensinou a

ler, quando ambos começaram a se envolver

na luta política. Durante sua liderança na Liga

Camponesa de Sapé, chegou a liderar 30 mil

homens e mulheres na organização.

“Ela era vista como uma mulher que não se

enquadrava, ela tinha uma imagem nega-

tiva. Ela deixava os filhos em casa e ia fazer

Em 1955 ressurge o movimento das Ligas Camponesas no Nordeste, a partir da organi-zação dos trabalhadores no Engenho Galiléia, com uma característica muito mais definida de movimento agrário, já pautando a questão da reforma agrária e conseguindo agregar apoios de segmentos organizados das cidades. O movimento tinha como objetivos básicos lutar pela reforma agrária e a posse da terra.

A partir do Primeiro Congresso de Camponeses de Pernambuco, em 1961, o movimento das Ligas se espalhou para outros estados: Paraíba – o núcleo Sapé era um dos mais importantes; Rio Grande do Norte, Bahia, Rio de Janeiro/Guanabara, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás e Acre.

As Ligas Camponesas funcionavam com duas seções:

• a Organização de Massas, que reunia mo-radores da cidade (Ligas Urbanas), mulheres (Ligas Femininas), pescadores (Ligas dos Pescadores), Ligas dos Desempregados, Ligas dos Sargentos e todas as pessoas que admitiam a necessidade da reforma agrária

• e a Organização Política, que aceitava ape-nas determinados membros da Organização

Tida como uma mulher que não se enquadrava, Elizabeth Teixeira chegou a liderar 30 mil homens e mulheres na Liga Camponesa de Sapé

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

política na rua. Foi reduzida a ‘mulher de

comunista que quer mandar nos homens’,

pois comandava centenas de camponeses

nas tentativas de negociações com latifun-

diários em conflitos de terra. Enfim, são vá-

rias leituras que explicitam de uma forma

acentuada essa dificuldade que os homens

têm de reconhecer a liderança feminina. Daí

talvez, a ideia desse lugar social que insistem

em lhe dar, a de viúva de João Pedro Teixei-

ra e não a Elizabeth presidente das Ligas”.

(Fala da historiadora e pesquisadora Maria

do Socorro Rangel, em entrevista ao site do

MDA, publicada em 27/03/2005.)

Com o Golpe Militar de 1964, o movimento cam-

ponês foi desarticulado e perseguido. Elizabeth

foi presa, interrogada e quando liberada pelo

exército fugiu para o Rio Grande do Norte levan-

do só um dos filhos. Permaneceu clandestina

por 17 anos, até a abertura política, em 1979.

Já havia sido dada como morta pela repressão

política quando, em 1981, apareceu no filme Ca-

bra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.

Elizabeth também estava marcada para desapa-

recer da história, ela e todas as outras que foram

ativas na luta e também sofreram perseguição

da ditadura militar... Mas elas estavam marcadas

também pelo silêncio da história dos homens.

Até que o cineasta Eduardo Coutinho, 17 anos

depois, em 1981, volta para recuperar e continu-

ar o filme sobre as Ligas e reencontra Elizabeth.

A história recontada pelo filme recupera a im-

portância de Elizabeth e das mulheres. Este

tempo de silêncio e a recuperação posterior

criam um espaço de possibilidade para que

a história das mulheres apareça. E tem sido

assim que os movimentos de mulheres e uma

historiografia feminista insistem em recontar

as histórias, fazendo a crítica da versão oficial,

mesmo aquela dos movimentos e seus líderes.

Elizabeth termina a entrevista dizendo com

suas palavras:

“A luta é que não para. A mesma necessi-

dade de 64 está plantada, ela não fugiu um

milímetro. A mesma necessidade está na

fisionomia do operário, do homem do campo

e do estudante. A luta que não pode parar.

Enquanto se diz que tem fome e salário de

miséria, o povo tem que lutar. Quem é que

não luta por melhores dias de vida? Tem

que lutar. Quem tem condições, quem tem

sua boa vida que fique aí. Eu, como venho

sofrendo, eu tenho que lutar e tenho peito

de dizer: é preciso mudar o regime, é preciso

que o povo lute”.

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ARTIGO Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

MARCADAS PARA DESAPARECER: TEM MULHER NA LUTA PELA TERRA NA BÍBLIA?

As grandes narrativas de conquista de terra na Bíblia são quase sempre histórias de lideranças masculinas como Moisés e Josué. Os textos pri-vilegiam os atos heroicos de personagens mas-culinos nas narrativas de conquista e também privilegiam “os pais e anciãos” nos documentos de definição da propriedade ou das fronteiras na consolidação da posse/acesso da terra.

As narrativas que fazem memória das mulheres são fragmentadas e precisam da metodologia da suspeita e da desconstrução para que superem o aspecto superficial e secundário. O mais com-plicado é que as mulheres aparecem nos aconte-cimentos narrados, mas... desaparecem! Não há uma continuidade no desenvolvimento dos fatos.

MiriamNo Êxodo (1) os primeiros capítulos dão um grande destaque para as mulheres: as parteiras, a mãe e irmã (Miriam) de Moisés são importan-tes nos relatos de resistência do povo contra a escravidão e na criação de condições para a saída em direção à terra prometida... mas depois elas desaparecem.

Miriam reaparece na celebração da saída e da travessia do “mar” (Êxodo 15); ela lidera as mu-lheres na “mística”: tamborins nas mãos elas cantam e dançam a conquista do povo, mas de novo elas desaparecem.

Toda a narrativa da travessia pelo deserto, as formas de organização inicial para a conquista da terra e os relatos dos Dez Mandamentos si-lenciam sobre as mulheres! Nem Miriam nem as mulheres têm nenhuma participação. Com estas

idas e vindas fica difícil avaliar a qualidade da liderança de Miriam. Parece que a mulher tem mesmo um papel secundário, de cuidar, de juntar forças, de fazer a mística, de ajudar... mas é só isso!

Miriam vai reaparecer somente no capítulo 12 do livro de Números, em um relato de muita violência. Ela aparece no texto fazendo uma pergunta incômoda:

“Será que o Senhor tem falado somente por Moisés? Não falou também por nós?”

(Números 12,2).A pergunta de Miriam acende a ira de Deus – ou dos homens? - que vai defender a liderança exclusiva de Moisés. O texto vai fazer uma dis-tinção importante: Miriam tem sonhos e visões; Moisés fala direto com Deus e vê a Deus! A narrativa claramente quer colocar Miriam num lugar secundário e identificar sua ação a partir de práticas da religião popular.

A pretensão de Miriam vai ser castigada com a lepra: todo o corpo fica marcado e contami-nado e ela vai ser expulsa do acampamento, e ficar afastada até a lepra desaparecer. Esta violência no texto revela as dificuldades e os limites impostos às mulheres nos processos de luta pela terra.

Como se atreve a querer ser como o grande líder, Moisés? Insubordinada e ousada, ela vai ser silenciada com a marca no corpo: o texto se refere à Miriam como “aborto de sua mãe”, e “cuspida do pai”! Proibida e excluída, Miriam não sabe o lugar definido para as mulheres na caminhada pela terra. Silenciada na pele, por querer um poder circular e inclusivo. Por querer libertar a terra e libertar as mulheres das formas de submissão dentro do movimento mesmo e suas contradições.

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo ARTIGO

O único respiro que este texto apresenta é uma pequena referência na conclusão. Como na história de Elizabeth Teixeira, um pequeno de-talhe da edição do material, libera o texto para recuperar a memória das mulheres para além do silêncio e da subordinação:

“E o povo não partiu enquanto Miriam não

voltou para o acampamento” (Números 12, 15)

O povo esperou por Miriam porque se alimen-tava na caminhada e na luta pelos sonhos e visões das mulheres. Este fragmento revela que Miriam/as mulheres estavam presentes e atuantes, caminhavam juntas para a terra prometida. E o povo não partiu! Esperou por Miriam porque precisava dela, reconhecia sua liderança mesmo em meio às contradições do movimento e dos poderes de exclusão.

Assim, temos que evitar uma visão idealizada e superficial sobre as mulheres da Bíblia e a luta pela terra: somente com instrumental de análise feminista e articulando com as lutas concretas das mulheres hoje, o texto bíblico pode contribuir para uma espiritualidade de crítica e criatividade de comunidades de iguais!

MARCADAS PARA VIVER! POR COMUNIDADES DE IGUAIS!

Muitas mulheres enfrentam violências, silencia-mentos e exclusão nas lutas por terra e território. Os modelos de família e de poder nas diversas culturas acabam reforçando as lideranças mas-culinas. Os embates políticos e o enfrentamento com polícias, juízes, governos e fazendeiros podem exigir um enrijecimento dos modos in-ternos de poder, reforçando o lugar subalterno de mulheres e jovens, ou dificultando outras vozes e protagonismos.

Mas elas estão presentes e resistentes, numa du-pla jornada de libertação: pela terra e o território, por elas mesmas e por uma comunidade de iguais.

A luta de libertação da terra e do território no âmbito mais amplo da luta de classes no Bra-sil, precisa ser também espaço e oportunidade para a reformatação dos mecanismos de poder no âmbito dos povos e suas culturas, superan-do a masculinização e o envelhecimento que ameaçam a recriação da capacidade de luta. As mazelas da dominação patriarcal-colonial e a moldura familiar do capitalismo destruidor não podem ser desculpas para a defesa das contradições internas e do machismo nas lutas e organizações populares.

Com esperança afirmamos:

Junto com a luta pela reforma agrária, a luta

pela terra e por território vem afirmando

sujeitos como sem terra, quilombolas, indí-

genas, extrativistas, pescadores artesanais,

quebradeiras, comunidades tradicionais,

agricultores familiares, camponeses, traba-

lhadores e trabalhadoras rurais e demais

povos do campo, das águas e das florestas.

Neste processo de constituição de sujei-

tos políticos, afirmam-se as mulheres e

a juventude na luta contra a cultura pa-

triarcal, pela visibilidade e igualdade de

direitos e dignidade no campo. (Trecho da

“Declaração do Encontro Nacional Unitário

dos Trabalhadores e Trabalhadoras e Povos

do Campo, das Águas e das Florestas”, de

agosto de 2012)

Como na história de Elizabeth Teixeira (foto),

narrativas sobre mulheres são silenciadas na Bíblia.

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MATERIA Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

Comunidades lutam para defender seus territóriosJoão Marques e Beniezio Eduardo*

EM CASA NOVA, FAMÍLIAS RESISTEM HÁ MAIS DE 30 ANOS

O lema das mais de 360 famílias cam-ponesas do território de fundo de pasto Areia Grande, no município de Casa Nova-BA é revelador: “Re-

sistir para existir”. E elas têm resistido a sucessivas

grilagens de terra, desde a década de 1980.

Nessa época, as trabalhadoras e trabalhadores

tiveram que enfrentar peixes graúdos: um grupo

de empresários chegou a instalar uma fábrica cha-

mada Camaragibe nas terras do fundo de pasto,

mas as famílias não arredaram pé. Pouco tempo

depois, descobriu-se que o empreendimento

era de fachada e fazia parte de um esquema de corrupção que ficou conhecido como Escândalo da Mandioca.

Entre os anos de 2008 e 2009 o povo de Areia Grande mostrou outra vez fez sua força, ao resistir a uma reintegração de posse equivo-cada concedida pelo juiz Eduardo Padilha a dois grileiros. No ato de resistência, o campo-nês José Braga, conhecido como Zé de Antero, foi assassinado.

Até hoje o crime não foi esclarecido, mas a organi-zação das famílias do território continua e motiva outras comunidades de fundo de pasto da região.

Atualmente, as famílias são representadas pela Associação das Comunidades de Fundo de Pasto de Casa Nova (Unasfp), presidida pelo

*Agentes de pastoral da CPT Bahia.

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo MATERIA

camponês Zacarias Rocha, uma das lideranças de Areia Grande. Toda essa organização tem motivado também os jovens, que desde 2014 se reúnem mensalmente para discutir assuntos da realidade local.

Um dos encontros do grupo de jovens para de-bater “Terra e Território” contou, inclusive, com a presença de moradores que foram agredidos por homens encapuzados durante a tentativa de reintegração de posse de 2008.

PRODUÇÃOA prática de uso comum do território de Areia Grande reúne quatro comunidades: Melancia, Salina da Brinca, Jurema e Riacho Grande. Jun-tas, possuem produção agropecuária considerá-vel. “Tem ano que a gente tira até 60 toneladas de mel”, afirma o camponês Ivo de Castro.

Na localidade, há também cerca de 20 mil ca-beças de cabra e bode, além de 4 mil de gado. E as mulheres também geram renda na região, como explica Estelina Rocha: “Hoje, graças a Deus, nós já temos uma casa de beneficia-mento da mandioca, que conseguimos com muita luta”, disse.

O território de Areia Grande também é um es-paço de tradição. Todo ano ocorrem diversos festejos populares, entre eles a roda de São Gonçalo, que é um momento festivo e religio-so sempre motivado pelo pagamento de uma promessa, e também a Festa da Mandioca em homenagem à produção agrícola, comemorada há quase 15 anos.

Jovens de Areia Grande

Mulheres Areia Grande

Manifestação dos Fundos e Fechos de pasto

Assim como Areia Grande, comunidade de Curral Velho se organiza para resistir

Derrubada da casa de Zé de Antero em Areia Grande

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MATERIA Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

pios circunvizinhos. Mas, com as obras da Fiol, inúmeras propriedades agrícolas produtivas estão sendo destruídas e, com o fechamento das estradas para as obras, as populações têm ficado isoladas.

Além disso, as detonações têm provocado poeira, rachaduras nas casas e destruição da vegetação nativa em larga escala. Frente a este contexto, as famílias vêm intensificando os processos de organização e luta e em março deste ano, mais de 100 pessoas paralisaram o trecho do lote 5F da Fiol, reivindicando a garantia dos direitos da comunidade.

As lutas promoveram uma reunião entre os mo-radores e representantes da Valec Engenharia,

COMUNIDADES RESISTEM ÀS OBRAS DA FIOL EM CAETITÉ

A organização do povo de Areia Grande é uma

forma de resistência encontrada em outras

localidades da Bahia, como na comunidade de

Curral Velho, em Caetité, que tem enfrentado

diversos problemas com as obras da Ferrovia de

Integração Oeste Leste (Fiol), que ao longo dos

seus 1022 km de extensão tem provocado uma

série de impactos socioambientais à população.

As famílias da localidade são grandes produto-

ras de verduras e hortaliças na região, sendo esta

a principal produção que abastece os muníci-

Morro cortado e vegetação derrubada para dar passagem à FIOL

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo MATERIA

das casas ao término da obra; intensificação da molhagem das estradas; aviso com carro de som sobre os horários de detonações de explosivos; e aluguel social para os moradores que tiveram suas casas destruídas, enquanto uma nova residência não é entregue.

Para as famílias, as conquistas obtidas são re-sultado da luta organizada e da mobilização, diante da falta de planejamento e preparo das empresas responsáveis pela obra, que coloca-ram em risco constante as populações.

Processos de luta, como os dos moradores de Areia Grande e Curral Velho, vêm sendo um exemplo para outras comunidades que come-çam a se mobilizar para exigir das empresas e do poder público, a garantia dos seus direitos.

A Comissão Pastoral da Terra-Bahia acompa-nhou de perto as comunidades e auxiliou na sua luta em defesa dos territórios que garan-te a centenas de famílias camponesas uma vida digna.

Construções e Ferrovias S.A, que administra a obra, e empresas do consórcio responsáveis pelo trecho junto ao Ministério Público Federal. Como resultado, conseguiram o fim do trabalho noturno das obras, que tem prejudicado o des-canso dos moradores; a reparação e indenização

Reunião da VALEC/FIOL com comunidades

Erosão causada por obras da FIOL em Caetité

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MATERIA Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

Integrante do Movimento de Trabalhadores As-

sentados e Acampados (CETA Bahia), ele conta

que os jovens que ficam são aqueles que têm

alguma forma de sobrevivência.

José Miguel Jesus dos Santos, também de 19

anos, vive na Comunidade do Valão, em Ilhéus,

localidade impactada pelas obras da Ferrovia

de Integração Oeste-Leste (Fiol), Rodovia e Por-

to Sul, e também aponta a falta de emprego

como o principal obstáculo para manter os

Fábio Santos de Souza tem 19 anos e é coordenador de Juven-tude do Assentamento Terra de Santa Cruz, em Santa Luzia-BA.

Jovem e morador do campo, ele reconhece que boa parte dos seus colegas vão embo-ra para outras cidades e centros urbanos em busca de alternativas para ganhar dinheiro. “Muitos não conseguem sequer chegar ao se-gundo grau na escola e vão embora tentar um emprego nas cidades grandes”, confessa.

Desafios da juventude camponesaBeniezio Eduardo*

Juventude do CETA do Assentamento Terra de Santa Cruz

*Agente de pastoral da CPT Bahia.

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo MATERIA

jovens no campo, mas considera que a região tem outro atrativo: “Quando estamos viven-do em tranquilidade, sem a interferência de grandes projetos, não sentimos a vontade de ir embora”, disse.

JUVENTUDE CAMPONESADados da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgados em 2014, indicam que exis-te no mundo 1,8 bilhão de pessoas na faixa etária de 10 a 24 anos, correspondendo a 28% da população mundial. No Brasil, a popula-ção jovem (de 15 a 24 anos) chega a 51 mi-lhões, o que corresponde a um quarto da po-pulação brasileira. Já a juventude camponesa no Brasil, foi calculada em 2011 (PNAD) em 7 milhões de jovens.

Esses 7 milhões de jovens são privados de diversos direitos, o que impede seu desen-volvimento social, cultural, político e econô-mico. A inexistência de políticas públicas di-rigidas à juventude rural e à sua permanência no campo, resulta numa educação precária e na falta de espaços de lazer e de acesso a um emprego.

CAMPO BRASILEIROO campo brasileiro historicamente sempre foi espaço de disputa pelos dominantes (e de re-sistência dos povos) para construção dos seus projetos de exploração. O cenário começou a mudar em meados do séc. XX, quando os grandes centros urbanos tornam-se estratégi-cos para o capitalismo. Nas décadas de 1970 e 1980, milhões de trabalhadores do Nordeste, incluindo os jovens, migraram para o sudeste, em busca de empregos. Essa mudança esva-ziou o campo e o deixou invisível às políticas públicas, mas favorável ao avanço do capital.

Na Bahia, o campo se tornou um cenário fértil para esses grandes projetos, com a instalação de parques eólicos e o avanço do agronegócio e da mineração. Esses grupos vêm ocupando o território baiano e se colocando como uma alternativa de desenvolvimento no campo e para o campo, tendo como grande porta-voz o emprego para os jovens. No entanto, aqueles que conseguem um trabalho, obtêm de forma temporária e precarizada. Paralelo a isso, nas grandes cidades, os jovens que migraram do campo têm sua força de trabalho transformada em mão de obra escrava.

O que o capitalismo considera como progresso no campo, representa também a destruição dos modos de vida das comunidades rurais, a perda de identidade.

“Quando estamos vivendo em tranquilidade, sem a interferência de grandes projetos, não sentimos a

vontade de ir embora”José Miguel (esq.) e Fábio (dir.) lutam pela preservação dos modos de vida do povo do campo José Miguel dos Santos

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MATERIA Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

RESISTÊNCIADiante desse cenário, os jovens camponeses se deparam com duas alternativas: resistir ao lado dos seus (camponeses) e construir um novo pro-jeto de sociedade onde o povo possa ser protago-nista, ou se adequar e aceitar o projeto do capital.

É na intenção de resistir, de afirmar a vontade e o pertencimento, que jovens como Fábio e José Miguel lutam pela construção de um projeto que garanta a preservação dos modos de vida do povo do campo e também a permanência e convivência da juventude.

“Chegou um momento em que temos que reu-nir os jovens para fortalecer a nossa luta e as nossas reivindicações”, afirma José Miguel.

Faz-se necessário mudar o cenário atual para que o Estado construa políticas para manter os jovens no campo, mas com qualidade de vida, porque cada vez mais a juventude vem sendo expulsa das suas terras, principalmente por causa do mo-delo de produção excludente e antidemocrático.

“Esperamos que os jovens que saíram retornem aos assentamentos para lutar pela terra que nossos pais conseguiram com tanto esforço. E também para fortalecer o grupo de jovens dan-do suporte às lutas”, declarou Fábio, ressaltando que o campo se coloca como uma necessida-de para produção e reprodução da vida. Uma alternativa para cultivar a tranquilidade e o bem estar social e também a possibilidade de garantia de autonomia e soberania.

No Assentamento Terra de Santa Cruz, juventude se mobiliza para permanecer no campo

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo MATERIA

Projetos do capital no oeste baiano e seus impactos na vida das mulheres camponesasAna Paula Alves*

“PRA MUDAR A SOCIEDADE DO JEITO QUE A GENTE QUER, PARTICIPANDO SEM MEDO DE SER MULHER” – TRECHO DA CANÇÃO “SEM MEDO DE SER MULHER” DE ZÉ PINTO

As mulheres desempenham um papel social fundamen-tal no contexto da luta pelo direito à terra e ao território.

Elas são, numericamente, parte significativa

da população do campo e desempenham

importantes funções para a garantia dos

modelos de desenvolvimento sustentável.

Para reunir forças, no Oeste da Bahia, mais

precisamente nos municípios de Santa Maria

da Vitória e São Félix do Coribe, as mulheres

criaram, há mais de 20 anos, o Movimento de

Mulheres Unidas na Caminhada (MMUC).

A região, que tem como principal bioma o Cerra-

do, é uma das maiores fronteiras agrícolas do país

e há décadas vem sofrendo conflitos por terra e

território, por possuir áreas de muitas riquezas

naturais e abrigar comunidades tradicionais de

fundo e fecho de pasto, quilombos, pescadores,

assentados, acampados, ribeirinhos e indígenas.

A grilagem de terras é recorrente na localidade

e, na época, contava com a presença constante

de pistoleiros que perseguiam e ameaçavam os

camponeses. Incomodadas com a situação de

seus companheiros, as mulheres resolveram se

organizar em um sindicato e, posteriormente,

criaram um espaço próprio de diálogos sobre

suas realidades como mulher do campo e seus

direitos por documentação, saúde e tantos

outros assuntos. Esse movimento foi peça fun-

damental para o surgimento do Movimento de

Mulheres Camponesas Nacional.

Luzia da Silva Santos, 56 anos, membro do MMUC,

conta que o Movimento foi muito importante

para sua comunidade. “O grupo ajudou muitas

mulheres a se libertarem, a se verem como

pessoa, a sair da escravidão. Mas dependeu de

cada uma de nós para que esse movimento pu-

desse surgir e foi um grande aprendizado”, disse.

Ela, que também faz parte da direção do Sindi-

cato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais

(STR) de Santa Maria da Vitória e São Félix do

Coribe, comenta: “Nesses 20 anos muitas coisas

surgiram, saímos da cozinha e da garra dos ma-

ridos e dos filhos para participar de outros espa-

ços e lutar por nossos direitos, mas sabemos que

foi apenas um passo, pois o machismo continua”.

*Agente de Pastoral da CPT Bahia.

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MATERIA Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

A trabalhadora rural Sebastiana dos Santos, tam-

bém com 56 anos, é coordenadora do MMUC

e confessa que o movimento já esteve mais

forte. “Houve muitos momentos de luta, de con-

quistas para as mulheres aqui na região, temos

certeza que muitas mulheres não são mais as

mesmas depois que estiveram no movimento,

mas precisamos retomar as discussões acerca

do fortalecimento das mulheres, sobretudo na

produção”, disse.

Ela diz ainda que faltam condições para as for-

mações e mobilizações, já que não contam

com nenhum financiamento para manter as

atividades e o escritório. “Fundamos uma coo-

perativa, mas não tivemos condições de seguir

em frente”, lamentou.

Sebastiana é moradora de Nova Franca e Lu-

zia vive em Coragina, ambas as comunidades

pertencentes ao município de Santa Maria da

Vitória e impactadas pelas obras da Ferrovia

de Integração Oeste-Leste que prevê trechos

dos trilhos passando em áreas pertencentes

às comunidades. Segundo as militantes, não

está acontecendo uma negociação entre os

moradores e a VALEC Engenharia, Construções

e Ferrovias S.A., empresa responsável pela obra,

para a compra e venda das propriedades.

“Eles não esclareceram nada e nos intimida-

ram a vender nossas terras pelo valor que eles

ofereceram, sem negociação. Ameaçaram in-

clusive levar o processo à justiça e por isso,

muitas pessoas têm cedido a terra, por falta

de conhecimento e porque ficam assustadas”,

relata Luzia.

Para Sebastina, dificuldades como essas de-

vem ser contornadas com força de vontade.

“A mulher nunca deve se deixar abater diante

dos problemas que às vezes chegam até a co-munidade, não pode esmorecer, tem que lutar, mesmo com dificuldades na vida da comuni-dade e da família”, declarou.

ORGANIZAÇÃOAlém do MMUC e do STR, as mulheres seguem organizadas em outros grupos como o Mo-vimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Quilombos, assentamentos e acampamentos da Reforma Agrária onde o movimento orga-nizativo é o CETA. Nos últimos períodos nasceu também a organização dos Fundos e Fechos de Pasto do Oeste também conhecido como Coletivo de Fundo e Fecho de Pasto.

O MAB encabeçou diversas lutas ao lado de centenas de famílias que resistem até hoje con-tra empresas que planejavam a construção de barragens nos rios Formoso, no município de Jaborandi, e no rio Carinhanha, em Côcos.

Dona Dina, como é conhecida a trabalhadora rural Analdina Gramacho, 72 anos, é morado-ra da Comunidade de Salobro, ameaçada por barragens no rio Carinhanha. Membro do MAB, ela ressalta a importância da participação da mulher na luta e na resistência: “São as mulheres que participam das reuniões, dos encontros dominicais, que cuidam da casa, da família e da educação dos filhos. Por isso o nosso papel deve ser reconhecido pelos homens que não

Analdina Gramacho

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo MATERIA

valorizam as mulheres. E por isso também a mulher deve estar em todos os espaços, inclu-sive nacionais”, afirmou.

De acordo com dados do Ministério de Minas e Energia, estão projetadas para os rios do oeste baiano mais de sessenta e cinco empreendi-mentos de barragens, sendo Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) ou usinas, além da constru-ção da Ferrovia Integração Oeste Leste (FIOL), grandes projetos de irrigação do agronegócio para produção de grãos, algodão e eucalipto. Há rumores ainda de estudos para instalação de torres de energia eólica e exploração de gás de xisto.

Em defesa desses rios, as mulheres têm atuado cada vez mais, como é o exemplo das moradoras do município de Correntina, Aliene Barbosa, do fecho de pasto Brejo Verde, que vem enfrentando grileiros estrangeiros e processos judiciais que envolvem toda a comunidade, e Elia Sodré do Nascimento, da comunidade de Pedra Branca, que tem atuado nas mobilizações, reuniões e lutas contra o projeto de irrigação do Grupo Mizote, que pretende derrubar 24 mil hectares de Cerrado.

DESIGUALDADESResponsáveis também por um grande número de tarefas produtivas, dentro e fora da casa, as mulheres interagem com o meio ambiente e

fazem amplo uso de seus recursos. São muitas as frentes em que atuam as mulheres camponesas, trabalham na terra, na produção agrícola, no pro-cessamento de alimentos para a família, na caça e na busca de matérias primas para uso domiciliar.

Na maioria dos casos, enquanto o trabalho agrícola dos homens tem como produto uma renda monetária, as mulheres produzem ali-mentos para o consumo doméstico, não tendo recompensa financeira por esse trabalho.

Nas comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, tradicionalmente, quem leva o gado para os gerais são os homens, entretanto, há muitas mulheres que tem rompido com essa tradição e acompanhado seus companheiros. Elas tam-bém estão nas associações que organizam os fechos e cuidam da propriedade e da família.

Apesar de tudo isso, são frequentes as desi-gualdades de gênero no acesso a crédito para o trabalho, nos projetos de formação e de-senvolvimento tecnológico para melhorar a capacidade produtiva.

A realidade é que para Luzia, Sebastina, Dona Dina, Aliene, Elia e tantas outras trabalhadoras rurais, viver no campo sem lutar não é uma opção, pois se não continuarem na batalha podem perder o pouco que conseguiram conquistar até agora.

Aliene Barbosa

Elia Sodré do Nascimento

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MATERIA Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo MATERIA

DEPOIMENTOS

“...As pessoas de idade, nascidas e criadas aqui convivendo com a natureza, não vão saber viver na cidade...”

PELO DIREITO DE PERMANECER NO CAMPOA LUTA PELA TERRA NO BRASIL, JÁ HÁ ALGUNS ANOS, GANHA NOVOS CONTORNOS, A PARTIR DE VELHAS PRÁTICAS. MAIS DO QUE LUTAR PELA CONQUISTA DA TERRA, VÁRIOS POVOS SE VEEM OBRIGADOS A LUTAR PARA PERMANECEREM EM TERRAS QUE JÁ OCUPAM. ESSE É O CASO DAS COMUNIDADES IMPACTADAS PELA CONSTRUÇÃO DO PORTO SUL, EM ILHÉUS. A CHEGADA DESSE GRANDE EMPREENDIMENTO AMEAÇA, PRINCIPALMENTE, A MANUTENÇÃO E O ACESSO AOS RECURSOS NATURAIS. AS FONTES DE ÁGUA CORREM O RISCO DE SEREM EXTINTAS E AS TERRAS SÃO INVADIDAS POR EMPRESAS QUE NÃO SE PREOCUPAM EM RESPEITAR OS POVOS QUE NELAS VIVEM E PRODUZEM. VOCÊ, LEITOR, É CONVIDADO A CONHECER ALGUMAS DESSAS HISTÓRIAS!

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DEPOIMENTOS Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo

Everalda, Sítio Itariri, região atingida pela rodovia

“Nos preocupamos muito porque a rodovia vai passar por cima das águas e da plantação. Estamos lutando, mas não tempos

respostas da Bamin nem do Governo do Estado. Se a gente sair daqui, o que vamos fazer? Viver de quê? Ficar sem ter

onde morar? A gente vive do que a gente planta, se levarem tudo, vamos ter o que para sobreviver? As pessoas de idade, nascidas e criadas aqui convivendo com a natureza, não vão saber viver na cidade... Eles não vão dar um dinheiro que dê

para comprar um pedaço de terra fora. Dizem que vai ser bom, mas a gente sabe que não é.”

Josileide, Fazenda São João“Não queremos sair daqui. A nossa história é aqui e queremos ficar. O Governo não está querendo tirar a gente daqui, eles estão querendo prejudicar a gente e não vão valorizar a propriedade que temos. Disseram que iam nos chamar para acertar o valor da propriedade, mas tem gente que nem sabe ler e vai ser enganada e tem gente que mesmo sabendo ler não entende o que eles querem dizer. Eu queria que a gente lutasse pelo nosso lugar. Aonde houver luta eu estou junto.”

João Ferreira dos Santos Filho, 40 anos, na nascente do Itariri

“A nossa preocupação é essa rodovia que vai acabar com as nossas nascentes, a nossa riqueza da região é a água.

O que vejo é que o governo quer matar todos dessa região de sede. Não tem cabimento. A água é vida, se acabar a

água o que será do povo dessa região? O que vamos ter que fazer? Comprar água na cidade? Se pista enchesse barriga,

quem mora em beira de pista não trabalhava. O que nós precisamos é da terra.”

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Terra e Território: A luta dos povos para permanecerem no campo DEPOIMENTOS

Maria Inês - Assentamento Bom Gosto, do Itariri“Sempre trago pra feira minha mercadoria: banana da terra, quiabo, abóbora, banana, farinha, aipim, pimenta, cupuaçu, Jenipapo, mel de cacau. Tudo orgânico que plantamos na roça. Depois que surgiu esse projeto, trabalhamos com medo de perder o nosso sustento.”

João, Fazenda São João em Itariri“Eles chegaram e entraram nas nossas terras como se fossem donos. Pareciam que eram Deus. Agora estão construindo essa estrada em cima de um rio. Vão acabar com as nossas águas. Isso é indecente!”

Dom Mauro, Ilhéus“O Porto Sul foi retirado de uma área, devido a uns

corais, e foi levado para mais perto de Ilhéus, na Vila Joerana. Na época foi questionado, o que vale mais? Os

corais ou a vida humana? Espero que o poder público realmente esclareça à população e que os governantes

tenham cuidado com os pobres que estão na área, para que eles sejam respeitados e defendidos. É o que

a Igreja espera e o que Jesus Cristo quer de nós. Que defendamos os pobres como filhos e filhas de Deus.”

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“A maldição dos recursos naturais não é destino, é escolha.”

Joseph Stiglitz

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