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    UFRRJ

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO DE CINCIASSOCIAS EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA

    E SOCIEDADE

    TESE

    PODER JUDICIRIO E CONFLITOS DE TERRA:A EXPERINCIA DA VARA AGRRIA DO SUDESTE PARAENSE

    MARIANA TROTTA DALLALANA QUINTANS

    2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO DE CINCIAS SOCIAS EMDESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

    PODER JUDICIRIO E CONFLITOS DE TERRA:A EXPERINCIA DA VARA AGRRIA DO SUDESTE PARAENSE

    MARIANA TROTTA DALLALANA QUINTANS

    Sob a Orientao da Professora

    Leonilde Srvolo de Medeiros

    Tese submetida como requisito parcialpara obteno do grau de Doutora emCincias, no Programa de Ps-Graduao de Cincias Sociais emDesenvolvimento, Agricultura eSociedade.

    Rio de JaneiroAgosto de 2011

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    Quintans, Mariana Trotta Dallalana.Poder judicirio e conflitos de terra: a experincia da

    vara agrria do sudeste paraense / Mariana TrottaDallalana Quintans, 2011.

    278 f.

    Orientador: Leonilde Servolo Medeiros.Tese (doutorado) Universidade Federal Rural do Rio

    de Janeiro, Instituto de Cincias Humanas e Sociais.Bibliografia: f. 264-278

    1. Poder judicirio Teses. 2. Vara agrria Teses. 3.Conflitos de terra Teses. 4. Democratizao da justia Teses. I. Medeiros, Leonilde Servolo de. II. Universidade

    Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de CinciasHumanas e Sociais. III. Ttulo.

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    pequena Luisa, pela alegria de todos os dias;

    Ao meu av Eurys,em memria;

    Aos advogados, sindicalistas, trabalhadores ereligiosos vtimas da violncia no campo no Par eaqueles que conseguem seguir lutando. Com vocs

    compartilho a luta e a esperana da efetivao daReforma Agrria no Brasil.

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    Agradecimentos

    Meu agradecimento muito especial a Leonilde Medeiros, minha orientadora, uma grandeprofessora, humana e dedicada, cuja participao foi fundamental para a elaborao destetrabalho.

    minha famlia, pelo apoio incondicional ao longo da vida e o respeito por minhas escolhas.Agradeo especialmente a minha me Regina, minha av Ludma, ao meu querido LuizFernando, meu irmo Fernando, meu tio Fred e Rose, cujo apoio foi fundamental para aconcluso desta tese.

    Ao Roosivelt, meu companheiro, pelo apoio na realizao deste trabalho, em suas diversasetapas e que, nos ltimos dias, me auxiliou na elaborao dos mapas.

    s minhas grandes amigas, Ana Maria, Mari Patrcio e Liza, com quem divido angstias emuitas alegrias.

    Aninha, Fernanda, Aline e Francine, amigas, interlocutoras nas reflexes sobre o Direito, oJdicirio e os movimentos sociais e companheiras nas batalhas jurdicas promovidas junto aoCentro de Assessoria Popular Mariana Criola;

    s companheiras e companheiros da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares,pelas entrevistas concedidas e pelas trocas de informaes sobre as varas agrrias e oJudicirio em seus estados;

    Aos companheiros e companheiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,agradeo as trocas com os companheiros (as) no estado do Rio de Janeiro. Aos companheirosdo estado do Par agradeo, alm das entrevistas concedidas, o acolhimento durante arealizao da pesquisa de campo em Marab. Agradeo especialmente a Maria Raimunda,Charles, Isabel e Suely.

    Aos advogados e agentes da Comisso Pastoral da Terra do Par, em especial ao Batista e Regina, pelas entrevistas concedidas, pela abertura dos arquivos processuais da CPT e pelahospedagem. Tambm agradeo Cleide, que me acolheu em sua casa durante minhapermanncia em Belm, no perodo da primeira fase da pesquisa de campo.

    Aos advogados da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), pelaentrevistas concedidas e pela interlocuo. Gostaria de agradecer em especial ao Srgio e Sandy.

    A todos (as) juzes, promotores, defensores pblicos, desembragadores, advogados edirigentes sindicais que gentilmente me concederam entrevistas, permitindo-me entendermelhor as prticas nos conflitos por terra no Par.

    Aos juzes Claudia Favacho e Lbio Moura que frente da vara agrria de Marab, atuaramcom respeito aos movimentos sociais e estabeleceram prticas importantes para ademocratizao do Judicirio.

    Aos professores Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes e aos colegas e amigosdo Centro de Estudos Sociais (CES/FEUC/UC) com quem travei interessantes debates sobre a

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    possibilidade emancipatria do Direito durante o doutorado sanduche de janeiro a agosto de2010.

    Aos professores do CPDA/UFRRJ, em especial Regina Bruno, interlocutora durante o

    doutorado.

    s professoras Veronica Secreto e Marcia Motta pelos instigantes dilogos sobre aperspectiva histrica do Direito a propriedade.

    Aos amigo Francisco Guimaraes, pela interlocuo ao longo dos anos de convivncia e pelapresena fundamental na banca da tese.

    Aos professores Maria Tereza Sadek e Roberto Fragale pela leitura da tese e peloscomentrios durante a defesa da tese.

    Aos colegas do CPDA/UFRRJ, em especial a Terezinha Feitosa, que me acolheu em sua casano Municpio de Rio Maria durante a pesquisa de campo na regio sul paraense.

    Aos funcionrios do CPDA/UFRRJ, especialmente a Teresa e Henrique, pelo apoio ao longodos anos de doutorado.

    CAPES pela bolsa de pesquisa durante a realizao do doutorado e ao CNPQ, pela bolsa dedoutorado sanduche no exterior.

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    RESUMO

    QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. Poder Judicirio e conflitos de terra: a experincia

    da vara agrria do sudeste paraense. 2011. Tese (Doutorado de Cincia Sociais emDesenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Instituto de Cincias Humanas e Sociais,Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.

    O Brasil, ao longo da histria, foi palco de fortes conflitos pela posse da terra. Muitos destesconflitos foram, no decorrer dos anos, levados ao Judicirio. A Constituio Federal de 1988estabelece a possibilidade dos Tribunais de Justia criarem varas agrrias para dirimirconflitos agrrios. Diante desta previso legal, vrios estados as instalaram ou nomearam

    juzes para estas funes. O Par foi um deles. Em 2001, o Tribunal de Justia do Estadocriou cinco varas agrrias em diferentes municpios. A primeira delas foi instalada em 2002,

    na regio sudeste paraense, na cidade de Marab. Este trabalho investiga as prticas ediscursos dos atores sociais envolvidos nos processos judiciais relativos a conflitos coletivospela posse da terra julgados por esta vara agrria. Estes processos, em sua maioria, so aespossessrias propostas por fazendeiros ou empresas detentoras de ttulos relativos terra, nemsempre legais, contra ocupaes de fazendas por trabalhadores rurais. Dentre os atoresenvolvidos nestes conflitos e nos processos judiciais decorrentes, destacam-se: advogados deproprietrios de terra e organizaes de trabalhadores rurais, magistrados, promotores,funcionrios de rgos agrrios e fundirios e ouvidores agrrios. Este trabalho confereespecial ateno aos juzes que atuam junto s varas agrrias, investigando as caractersticasdesta magistratura, sua origem, seu perfil social e etrio e suas concepes sobre questesrelativas aos conflitos de terra, analisando se a pluralidade entre a magistratura permite uma

    abertura interpretativa e mudanas no campo jurdico, dialogando para tanto com Sadek(2006) e Vianna et al. (1996). Buscando compreender melhor o tema, este trabalho tambmanalisa o caminho constitucional e legislativo de criao das varas especializadas e da reformaagrria no pas. Para a anlise da elaborao das constituies, partimos da concepo daconstruo histrica do Direito, assim como trabalhado por Marx (1987 e 1991), Lefort (1989e 1991), Bobbio (2004), Thompson (1997), Boaventura de Sousa Santos (2005), entre outros.A dimenso da construo histrica dos direitos fundamental para a compreenso dos usosdos direitos e das leis pelos atores sociais nas varas agrrias. O trabalho explora osargumentos dos advogados dos trabalhadores rurais e dos proprietrios de terra nos processospossessrios julgados pela vara agrria de Marab. Tambm analisa as prticas e decises

    judiciais dos juzes, como: as audincias de justificao de posse e as decises sobre ospedidos liminares (verificando se h a anlise do cumprimento da funo social pelapropriedade); anlise das provas; participao do Incra, Iterpa e Ministrio Pblico nosprocessos; percia judicial; deslocamento ao local do conflito; posio dos desembargadores ecumprimento das liminares (realizao de audincias/reunies de conciliao e mediao deconflitos e o papel da tropa especializada pelo cumprimento das liminares).

    Palavras-Chave: Poder Judicirio, vara agrria, conflitos de terra e democratizao dajustia.

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    ABSTRACT

    QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. Judicial Power and land conflicts: agrarian courtexperience in south-west of Brazil (State of Para). 2011. Thesis. PHD in Social Sciences

    in Development, Agriculture and Society of the Human and Social Sciency Institute, FederalRural University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

    The course of Brazilian history has showed strong conflicts involving land property. Alongthe years many of those conflicts were taken to courts. The Federal Constitution of 1988established the possibility of Agrarian Courts to be set in order of solving those kinds ofconflicts. In face of this legal prevision, many states, including the State of Para, set agrariancourts or nominate Judges for the same functions. Thus, in 2001, the Justice of the Statecreated five agrarian courts in many municipal corporations. The first one was set in 2002, insouth-west of Para, in the city of Marab. Our work searches into the acts and discourses ofthe social actors involved in the judicial proceedings related to collective conflicts involving

    land property ruled by the agrarian court in south-west of Para. Those judicial proceedingsare in the most possessory actions proposed by land owners or enterprises that possesssometimes illegal land title-deeds, against the occupation of farms by rural workers. Amongthe social actors involved in those conflicts and the resulting judicial proceedings we have topoint out lawyers of farmers and rural workers organizations, judges, prosecuting attorneys,public servants of land property organizations in addition to agrarian ombudsmen So, ourwork gives special attention to the judges that act in agrarian courts, investigating thecharacteristics of this Judiciary System, its origins, social and land age group profiles, andtheir concepts related to the issues of land conflicts. Thus, we have been analyzing if pluralityof Judiciary System permits a comprehensive approach and changes in juridical sphere. Toachieve our goal we establish a dialogue with Sadek (2006) and Vianna et all (1996). Tryingto understand better the subject, our work also analyzed the constitutional and legislativepathway for the creation of specialized agrarian courts and agrarian reform in the country. So,to analyze the elaboration of Constitutions, we started from the notion of the historicalconstruction of law as worked by Marx (1987; 1991), Lefort (1989; 19910, Bobbio (2004),Thompson (1997), Boaventura de Souza Santos (2005) among other authors This explanationis basic to understand the use of rights and laws by the social actors in the agrarian courts. Inthis way,our work explores the argumentation of rural workers and land owners lawyers inthe possession proceedings ruled by agrarian court of Maraba. In addition, our work alsoanalyzes the judicial practices and decisions of the judges, for example: hearing sessions ofpossession justification and decisions about preliminary orders (checking if the social

    function of the property was analyzed); analysis of evidences; participation of INCRA(National Institute for Colonization and Agrarian Reform), Iterpa (Law Institute of Par) andPublic Prosecution Service in the proceedings; judicial examination; a visit to the place of theconflict; opinion of the high court of justice; and compliance with preliminary orders(accomplishment of hearing sessions/ meetings of conciliation and mediation of the conflictsand the role of the specialized policefor the compliance with preliminary orders)

    Key words: Judicial power, agrarian court, land conflicts e democratization of justice.

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    LISTA DE ABREVIAES E SMBOLOS

    Abra - Associao Brasileira de Reforma Agrria

    ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade

    AJD - Associao dos Juzes pela Democracia

    Alepa - Assemblia Legislativa do Estado do Par

    AMB - Associao dos Magistrados Brasileiros

    Amepa - Associao dos Magistrados do Estado do Par

    Anajucta - Associao dos Juzes Classistas da Justia Trabalhista

    Anamatra - Associao Nacional dos Magistrados Trabalhistas

    ANC - Assemblia Nacional Constituinte de 1987/88

    Arena - Aliana Renovadora Nacional

    ARPP - Associao Rural da Pecuria do Par

    CCJ - Comisso de Constituio e Justia

    CEBs - Comunidades Eclesiais de Base

    CF/88 - Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988

    CFE - Conselho Federal de Educao

    CGT - Confederao Geral dos Trabalhadores

    CJF - Conselho da Justia Federal

    CMP - Coordenao de Movimentos Populares

    CNA - Confederao da Agricultura e Pecuria do Brasil

    CNBB - Confederao dos Bispos do Brasil

    CNI - Confederao Nacional das Indstrias

    CNJ - Conselho Nacional de Justia

    CNMP - Conselho Nacional do Ministrio PblicoCNRA - Campanha Nacional pela Reforma Agrria

    Consep - Conselho Estadual de Segurana Pblica

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    Contag - Confederao Nacional de Trabalhadores na Agricultura

    CPC - Cdigo de Processo Civil

    CPEC - Comisso Provisria de Estudos Constitucionais

    CPI - Comisso Parlamentar de Inqurito

    CPT - Comisso Pastoral da Terra

    CUT - Central nica dos Trabalhadores

    Deca - Delegacia Especializada de Conflitos Agrrios

    Diap - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar

    Doamc - Ouvidoria Agrria e Mediao de Conflito

    DOU- Dirio Oficial da Unio

    Embrater - Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso RuralFaab - Frente Ampla da Agricultura Brasileira

    Faemg - Federao da Agricultura do Estado de Minas Gerais

    Faepa - Federao da Agricultura e Pecuria do Par

    Fecap - Federao das Centrais das Unies de Associaes do Estado do Par

    Fetagri - Federao dos Trabalhadores na Agricultura

    Fetraf - Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar

    FGV - Fundao Getlio VargasFHC - Fernando Henrique Cardoso

    Funai - Fundao Nacional do ndio

    Getat - Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins

    Gret - Grupo de Trabalho sobre o Estatuto da Terra

    Ibama - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

    Ibase - Instituto Brasileiro de Anlises Scio-Econmicas

    Incra - Instituto Nacional de Colonizao de Reforma AgrriaInpe - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

    Ipes Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

    Iterpa - Instituto de Terras do Par

    ITR - Imposto Territorial Rural

    MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens

    MDA - Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

    MP - Medida Provisria

    MP - Ministrio Pblico

    MS - Mandado de segurana

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    MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    NAEA/UFPA - Ncleo de Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par

    OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

    OCB - Organizao das Cooperativas Brasileiras

    PC do B - Partido Comunista do Brasil

    PCB - Partido Comunista Brasileiro

    PDC - Partido Democrtico Cristo

    PDS - Partido Democrtico Social

    PDT - Partido Democrata Trabalhista

    PEC - Proposta de Emenda Constitucional

    PFL - Partido da Frente LiberalPIN - Programa de Integrao Nacional

    PL - Partido Liberal

    PLC - Projeto de Lei Complementar

    PMB - Partido Municipalista Brasileiro

    PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

    PNRA - Plano Nacional pela Reforma Agrria

    PSB - Partido Socialista BrasileiroPSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

    PT - Partido dos Trabalhadores

    PTB - Partido Trabalhista Brasileiro

    PVEA - Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

    Renap - Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares

    Rianc - Regimento Interno da Assemblia Nacional Constituinte

    SBDP - Sociedade Brasileira de Direito PblicoSDDH - Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos

    SNA - Sociedade Nacional da Agricultura

    SR-01 - Superintendncia Regional do Incra de Belm

    SR-27 - Superintendncia Regional do Incra de Marab

    SR-30 - Superintendncia do Incra de Santarm

    SRB - Sociedade Rural Brasileira

    STF - Supremo Tribunal Federal

    STJ - Superior Tribunal de Justia

    STM - Superior Tribunal Militar

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    STR - Sindicatos de Trabalhadores Rurais

    Sudam - Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia

    TJ/PA - Tribunal de Justia do Estado do Par

    TSE - Tribunal Superior Eleitoral

    TST - Tribunal Superior do Trabalho

    UDR - Unio Democrtica Ruralista

    UFPA - Universidade Federal do Par

    Ultab - Unio dos Lavradores e Trabalhadores Agrrios do Brasil

    Unama - Universidade da Amaznia

    UNE - Unio Nacional de Estudantes

    Unifap - Universidade Federal do Amap

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    SUMRIO

    Introduo _______________________________________________________________ 15

    Primeira Parte: Marco legal e constitucional da Reforma Agrria e Justia Agrria noBrasil. ___________________________________________________________________ 50

    1. Reforma e Justia Agrria antes da Constituio Federal de 1988. _________________ 51

    2. Justia e reforma agrria na Assemblia Nacional Constituinte de 1987/88. _________ 64

    2.1.Os atores sociais e suas propostas na Constituinte: as teses inconciliveis entre

    representantes dos trabalhadores rurais e proprietrios de terra. _____________ 66

    2.2.Justia e reforma agrria nas Comisses e Subcomisses temticas da ANC. __ 70

    2.3.Os debates e resultados da Comisso de Sistematizao. _________________ 79

    2.4.A votao nos dois turnos do plenrio e a aprovao do texto constitucional. __ 86

    3. A Constituio Federal de 1988 e a sua regulamentao pela legislao

    infraconstitucional sobre a reforma agrria. __________________________________ 95

    3.1.A Constituio Federal promulgada em 1988 e as disputas pela sua interpretao. 95

    3.1.1. O Direito de propriedade e a funo social. ____________________________ 96

    3.1.2. A desapropriao para fins de reforma agrria. __________________________ 98

    3.1.3. A defesa da propriedade produtiva e a funo social. _____________________ 99

    3.2.A Legislao sobre reforma agrria. _________________________________ 102

    3.2.1. A Lei de Reforma Agrria n. 8629/93 e a Lei Complementar n.76/93. ______ 102

    3.2.2. A alterao da Lei de Reforma Agrria n. 8629/93 pela Medida Provisria 2.183-

    56 de 2001 e as interpretaes do STF. _______________________________ 104

    4. O Judicirio aps 1988 e suas reformas. ____________________________________ 109

    4.1. O Judicirio na Constituio Federal de 1988. _________________________ 109

    4.2. Os juzes especializados na questo agrria. ___________________________ 113

    4.3. A Reforma do Judicirio: objetivos e impactos na Constituio Federal de 1988. 116

    4.4. As varas agrrias federais e estaduais por estado: previso legal e situao real.126

    4.4.1. As varas agrrias federais. ______________________________________ 127

    4.4.2. As varas agrrias estaduais. _____________________________________ 129

    Segunda Parte: O Sudeste Paraense e a vara agrria. _____________________________ 134

    5. Apropriao ilegal de terras pblicas, violncia, conflitos e a criao das varas agrrias no

    Par. ________________________________________________________________ 1355.1.Contexto histrico do Par. ________________________________________ 135

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    5.2.A Assemblia Nacional Constituinte do estado do Par e a previso legal das

    varas agrrias. __________________________________________________ 142

    5.3.Mudanas institucionais no estado do Par a partir da segunda metade da dcada

    de 1990. _______________________________________________________ 149

    5.4.A instalao das varas agrrias no Par. ______________________________ 156

    6. As varas agrrias do Par: processos e magistrados. ___________________________ 169

    6.1.Os processos julgados nas varas agrrias: tipos e nmeros de demandas. ____ 169

    6.2.A magistratura e a formao jurdica. ________________________________ 175

    6.3.Quem so os magistrados das varas agrrias? __________________________ 188

    6.4.O que pensam os juzes? __________________________________________ 196

    7. Os processos judiciais na vara agrria de Marab: atores, prticas, argumentos e deciso nocampo jurdico. ___________________________________________________________ 204

    7.1. Argumentos mais freqentes dos advogados das organizaes de trabalhadores e

    proprietrios rurais. ______________________________________________ 205

    7.2. Prticas e decises dos juzes na vara agrria. __________________________ 214

    7.2.1.As audincias de justificao de posse e a anlise pelo juiz do pedido de

    liminar possessria. ______________________________________________ 215

    7.2.2. Poder discricionrio do juiz, as provas e a verdade. ________________ 2287.2.3. A participao do Incra, Iterpa e do Ministrio Pblico nos processos

    judiciais. _______________________________________________________ 231

    7.2.4. A possibilidade de perdica judicial e a verificao de apropriao ilegal de

    terras pblicas. __________________________________________________ 236

    7.2.5. A previso de deslocamento ao local de conflito e sua (no) aplicao

    prtica. ________________________________________________________ 242

    7.2.6. A posio dos desembargadores frente s decises dos juzes nas varasagrrias. _______________________________________________________ 243

    7.3. O Poder Executivo, as cautelas no cumprimento das medidas liminares e a

    oposio dos proprietrios de terra. __________________________________ 245

    7.3.1. Audincia de mediao de conflitos. ____________________________ 246

    7.3.2. O Comando de Misses Especiais da Polcia Militar e as presses dos

    proprietrios de terra. _____________________________________________ 249

    8. Concluso. ____________________________________________________________ 256

    9. Referncias Bibliogrficas. _______________________________________________ 264

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    legislativa brasileira, como na poca da elaborao do Estatuto da Terra (1964) e da discusso

    da Constituio Federal de 1967. No final da dcada de 1980 o tema retorna cena poltica e

    recepcionado pela legislao brasileira.

    Em 1987, o ento Presidente da Repblica, Jos Sarney, publicou a Lei n.

    7.583/1987, que autorizava, em seu artigo 4, a criao, pelo Conselho da Justia Federal

    (CJF), de varas agrrias na Justia Federal. Entretanto, apenas na Constituio Federal de

    1988 foi estabelecida a possibilidade dos Tribunais de Justia dos estados designarem juzes

    especializados para dirimir conflitos agrrios. Diante desta previso legal, a partir da

    segunda metade da dcada de 1990, foram designados juzes especializados ou foram

    instaladas varas agrrias na Justia Estadual de alguns estados da federao, tais como

    Alagoas, Minas Gerais, Par, Paran, Paraba, Roraima, Santa Catarina e Mato Grosso2.A criao de varas agrrias faz parte de uma poltica pblica de Paz no campo

    proposta pelo Governo Federal na gesto do Presidente Luiz Incio Lula da Silva (2003 a

    2010), por meio do Departamento de Ouvidoria Agrria e Mediao de Conflito (Doamc) do

    Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA)3, e a primeira medida enumerada entre as

    metas do Plano Nacional de Combate Violncia no Campo. Deve ser destacado que o

    Doamc foi criado no final da dcada de 1990, ainda na gesto do ento Presidente da

    Repblica, Fernando Henrique Cardoso (FHC), devido aos intensos conflitos pela posse daterra que eclodiam no Brasil. O Ouvidor Agrrio Nacional, Dr. Gercino Jos da Silva Filho,

    desembargador aposentado do Tribunal de Justia do Acre, desde que assumiu a funo, ainda

    na gesto de FHC, defendeu a criao das varas agrrias no pas.

    No estado do Par, a partir de 2001, o Tribunal de Justia aprovou a criao das

    primeiras varas agrrias em trs diferentes municpios do estado. Posteriormente, o Tribunal

    aprovou a criao de outras duas varas. Atualmente, o estado se divide em cinco regies

    agrrias e h varas agrrias nas sedes de todas elas (municpios de Altamira, Redeno,Marab, Santarm e Castanhal). A primeira delas foi instalada em 2002, na regio sudeste

    paraense, na cidade de Marab4.

    2 No estado do Amazonas, apesar de existir um rgo do Poder Judicirio denominado Vara Ambiental e deQuestes Agrrias, no podemos considerar que exista uma vara agrria, pois, como verificamos na pesquisa decampo em novembro de 2009, a vara especializada em Direito Ambiental e apenas incorpora questesfundirias relacionadas aos problemas ambientais, como de demarcao de unidades de conservao etc. Paramaiores informaes ver Marinho (2004).3Neste trabalho empregaremos para este rgo apenas a denominao de Ouvidoria Agrria Nacional.4O Tribunal aprovou a instalao das primeiras varas agrrias atravs da Resoluo 0021/2001 do TJ/PA. Asvaras agrrias j estavam previstas no art.167 da Constituio Estadual do Par de 1989 e na Lei de OrganizaoJudiciria do estado (LC n. 14/1993).

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    Cabe destacar que o estado do Par foi escolhido como objeto de anlise por ser um

    dos primeiros estados onde foram instaladas varas agrrias e, tambm, devido ao elevado

    nmero de conflitos pela terra. Entretanto, devido dimenso continental do Par, com muitas

    diferenas na dinmica de colonizao de cada regio e, consequentemente, com diferenas

    nas formas de luta pela terra5, fizemos o segundo recorte, elegendo a regio sudeste em

    detrimento das outras quatro regies onde foram instaladas varas agrrias.

    A vara agrria de Marab foi instalada em 2002, devido aos violentos conflitos

    fundirios, tendo como smbolo mais conhecido o massacre de 19 trabalhadores rurais ligados

    ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 17 de abril de 1996 em

    Eldorado dos Carajs6.

    Este massacre no foi um caso isolado. Analisando os dados anualmente divulgadospela Comisso Pastoral da Terra (CPT)7, verificamos que a violncia tem sido uma marca no

    estado. Em que pese certa variao dos nmeros nos ltimos anos, tais dados demonstram a

    conflituosidade da regio. Segundo a entidade, em 2007, 17.996 famlias estavam vivendo em

    reas de conflito no Par. Foram registrados 300 casos de violncia contra a pessoa, entre

    assassinatos, tentativas de assassinatos, ameaas de morte, torturas, prises e agresses

    (CANUTO, 2008). Em 2009, foram registrados oito assassinatos, 24 tentativas de assassinato

    de lideranas, assentados ou acampados em reas de conflito. Tambm ocorreram 160conflitos por terra no Par, envolvendo 17.851 famlias. A entidade registrou ainda a priso de

    51 pessoas em decorrncia da luta pela terra (CANUTO, 2010). Em 2010, foram registrados

    pela CPT 18 assassinatos no meio rural paraense entre assentados, trabalhadores rurais e

    lideranas, com maior incidncia nas regies sul e sudeste paraense. Ainda segundo a CPT,

    9.225 famlias viviam em 107 reas em conflitos. Tambm ocorreram sete ocupaes em

    fazendas realizadas pelas diferentes organizaes de trabalhadores rurais do estado

    (CANUTO, 2011). Por fim, cabe destacar que, at junho de 2011, cinco assassinatos foram

    5Estas peculiaridades, somadas s riquezas naturais de cada regio, levam existncia hoje do debate sobre odesmembramento do estado, com a proposta de criao do estado do Tapajs (oeste paraense), do estado deCarajs (sul e sudeste do Par) e do estado de Maraj (ilha de Maraj). O Senado Federal aprovou a realizao,para o segundo semestre de 2011, de plebiscito para consultar a populao do estado sobre a proposta dedesmembramento do Par.6 O Massacre de Eldorado dos Carajs ocorreu em 17 de abril de 1996 e gerou a morte imediata de 19trabalhadores rurais sem terra e deixou outras 75 vtimas da polcia militar do Par. No processo de luta pelaterra, os sem-terra faziam uma marcha da regio sul do Par a Belm para reivindicar ao Incra a desapropriaoda fazenda Macaxeira. Como eles interditaram a PA-040 na altura da Curva do S em Eldorado dos Carajs, paradesobstruir a via pblica, os policiais empregaram armas letais, gerando a morte e leses em milhares de sem

    terra, entre homens, mulheres, crianas e idosos. Atualmente, o dia 17 de abril smbolo da resistncia e, todosos anos, neste perodo, vrias aes polticas so praticadas pelo MST e pela Via Campesina. Para maioresinformaes sobre este episdio ver Nepomuceno (2007) e Brelaz (2006).7A CPT publica anualmente o relatrio sobre a situao dos conflitos no campo.

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    registrados pela CPT e noticiados pelos principais meios de comunicao do pas, no meio

    rural paraense.

    Este quadro est relacionado com as polticas de colonizao promovidas

    especialmente a partir da dcada de 1970 pelo Governo Militar, no qual as terras pblicas

    foram destinadas ao assentamento de colonos vindos de outras regies do pas e tambm

    foram sendo vendidas para grandes empresrios que, muitas vezes, se apropriavam de

    extenses alm daquelas adquiridas pelos meios legais8. O modelo de desenvolvimento

    estimulado pelos militares acarretou vrias conseqncias negativas para a regio como a

    devastao da floresta amaznica e o desenvolvimento de formas degradantes de explorao

    da fora de trabalho, com a utilizao de mo-de-obra escrava9, principalmente na abertura

    de fazendas do sul e sudeste do Par10. Segundo dados da CPT, em 2009, foram verificados1.764 trabalhadores em situao de trabalho escravo, degradante ou super explorados no

    estado (CANUTO, 2010). Em 2010, segundo a mesma entidade, foram computadas 1.522

    denncias de trabalhadores em situao anloga escrava. Destes, 562 foram libertados

    (CANUTO, 2011)11.

    Em relao degradao ambiental, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas

    Espaciais (Inpe), de agosto de 2008 a agosto de 2009, foi registrada a rea de 7.464 km2 de

    desflorestamento. A taxa estimada pelo Inpe de desmatamento para o perodo de agosto de2009 a agosto de 2010 foi de 6.451 km2. Em que pese a reduo dos ndices de

    desmatamento12, percebemos que esta ainda uma questo problemtica na regio

    amaznica13.

    8Trecanni (2001) destaca como marca secular das ocupaes da fronteira no Brasil a apropriao ilegal de terraspblicas, popularmente conhecida como grilagem. O autor enumerou os meios para tal: esticar os limites daposse legal falsificando ttulos, queimar cartrios, subornar fiscais e invadir terra camponesa com gado(TRECANNI, 2001:198). Completa o autor afirmando que no comeo se estimula o avano dos camponeses

    para desbravar a mata, quando ela comea a ser beneficiada, chegam os grandes empreendedores capitalistas quelimpam a rea e se apoderam da mesma (TRECANNI, 2001: 198). Esta prtica foi a caracterstica tambm daocupao do sudeste paraense desde o incio do sculo XX.9Segundo Rezende (2001), o termo trabalho escravo surge como uma expresso de denncia utilizada pelasentidades de defesa dos direitos humanos. Segundo o autor esta denominao atribuda a situaes de trabalhoinvoluntrio, fruto da coero, sob o pretexto da dvida, em fazendas da Amaznia (...) (Rezende, 2001: 33-34).10 A dinmica deste modelo econmico era a derrubada da mata nativa pelos trabalhadores, a venda destamadeira de forma ilegal e, na sequncia, formao de pasto para o desenvolvimento da pecuria.11 Estes aspectos ambientais e trabalhistas nas fazendas do Par so importantes para este trabalho, poiscompem os requisitos da funo social da propriedade, junto aos aspectos, social e da produtividade, presentesno art.186, da Constituio Federal. Estes elementos, como ser analisado posteriormente, aparecem nosprocessos judiciais decorrentes da luta pela terra e de formas diferentes nos argumentos dos proprietrios de terrae das organizaes de trabalhadores rurais.12http://www.obt.inpe.br/prodes/index.html, acessado em 24 de junho de 2011.13Deve ser destacado que, no momento em que esta tese estava sendo redigida, estava em votao no CongressoNacional projeto de alterao do Cdigo Florestal brasileiro. A proposta flexibiliza ainda mais a utilizao dereas de floresta nativa para as atividades agropecurias. Este projeto tem gerado inmeras tenses entre os

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    Tavares dos Santos (1993) descreve vrias formas de violncia: contra a natureza, nas

    relaes sociais do trabalho, violncia fsica, violncia simblica, dentre outras. Segundo o

    autor, estas vrias manifestaes convergem para a produo social de uma cidadania

    dilacerada na sociedade brasileira (TAVARES DOS SANTOS, 1993:7). O autor localiza as

    origens destas formas de violncia no processo de modernizao da agricultura impulsionado

    pelos governos militares a partir da dcada de 1970, pois, segundo ele, a maioria dos conflitos

    sociais no campo, na regio amaznica, teve incio naqueles anos. Tambm aponta para um

    aumento destes conflitos no perodo da redemocratizao do pas, na dcada de 1980,

    principalmente nas regies Nordeste (Bahia e Maranho) e Norte (Par), quando se debatia os

    temas da redistribuio da terra e o modelo de desenvolvimento agrrio. Almeida (1997)

    destaca a freqncia, durante a dcada de 1985-1996, da violncia fsica no campo, com omassacre de trabalhadores rurais e indgenas na Amaznia.

    Tavares dos Santos (1993) chama a ateno para a conivncia da polcia, dos rgos

    pblicos responsveis pela poltica fundiria, como o Grupo Executivo de Trabalho do

    Araguaia Tocantins (Getat) com o desenvolvimento e manuteno da violncia na regio

    sudeste paraense, devido ao fato de, naquele perodo, no serem desenvolvidas polticas para

    coibir a violncia. Assinala o papel do Poder Judicirio ao no julgar os casos de assassinatos

    contra trabalhadores rurais. Segundo o autor, de 1964 a 1991, dos 29 julgamentos, em apenas13 casos houve a condenao dos rus das aes, acusados de assassinatos.

    Medeiros (1996) destaca que este quadro revela uma face da violncia, que demonstra

    o profundo comprometimento do Poder Judicirio com os interesses ligados propriedade da

    terra, o que coloca um impasse nessas situaes de disputa (MEDEIROS, 1996: 126-141). A

    autora completa afirmando que:

    a violncia no campo indica a existncia de uma face da sociedade incapazde reconhecer direitos e negociar interesses, visto que nega o outro. Como

    h, de um lado, a defesa dos interesses absolutos da propriedade, nega-sequalquer possibilidade de discuti-los atravs da constituio de uma outraconcepo de direito que coloque em pauta o tradicional lugar dapropriedade fundiria (MEDEIROS, 1996: 139).

    Foi em meio ao cenrio de violncia no sudeste paraense que trabalhadores rurais se

    organizaram e passaram a atuar na cena poltica. Atualmente, l esto presentes trs principais

    organizaes de trabalhadores rurais: a Federao dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri),

    o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Federao dos Trabalhadores

    ruralistas, apoiados pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, de outro lado, ambientalistas, organizaes detrabalhadores rurais e setores do governo federal.

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    na Agricultura Familiar (Fetraf). Apesar dos diferentes momentos histricos de constituio,

    de concepes polticas e algumas diferenas nos mtodos de luta, so principalmente os

    conflitos pela posse da terra envolvendo estas organizaes que so levados vara agrria de

    Marab. Nos processos judiciais relativos a estes conflitos, as organizaes de trabalhadores

    rurais lutam pelo reconhecimento da legalidade e legitimidade das ocupaes de terra e os

    proprietrios rurais buscam a reintegrao na posse das propriedades que reivindicam como

    suas e a retirada dos trabalhadores.

    Este trabalho tem como objetivo principal investigar a administrao da justia pela

    vara agrria de Marab, buscando verificar como ocorre a mediao dos conflitos coletivos

    pela posse da terra neste subcampo especializado do campo jurdico. Para entendermos o seu

    funcionamento, as possibilidades de usos da lei e as prticas dos atores sociais envolvidos nosconflitos julgados por elas, essencial analisarmos o percurso de discusso e implementao

    destes rgos especializados e da legislao agrria brasileira. Desta forma, propuseomo-nos a

    entender o processo de criao da vara agrria de Marab, partindo da anlise dos debates na

    ANC, das modificaes introduzidas no texto constitucional pela Reforma do Judicirio em

    2004 e dos debates da Assemblia Constituinte estadual, analisando os atores sociais

    envolvidos nestes processos legislativos, os interesses que estavam em jogo e no que se

    configurou ao final. Desta forma, obtivemos elementos importantes para identificar osinteresses em conflito e as possibilidades de disputa pela interpretao da lei nas varas

    especializadas.

    Conflitos de terra e o Poder Judicirio no Brasil.

    Ao longo dos anos, muitos dos conflitos por terra foram levados ao Judicirio. Motta

    (1996) analisa o recurso aos tribunais por homens pobres livres na defesa de suas posses nosculo XIX e que utilizavam brechas e interpretaes da Lei de Terras de 1850 na luta pelo

    reconhecimento de direitos.

    Medeiros (1989), ao analisar a histria dos movimentos sociais no campo at a dcada

    de 1980, aponta como uma das tticas de luta das organizaes de trabalhadores rurais o

    recurso aos tribunais. O perodo da ditadura militar destacado pela autora como um

    momento em que o recurso ao Judicirio tem grande importncia na defesa possessria contra

    aes de reintegrao e manuteno de posse e de reivindicao do cumprimento do Estatuto

    da Terra de 1964, especialmente pelos sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) e pela

    Confederao Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag).

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    Entretanto, uma srie de trabalhos analisa que foi a partir do final da dcada de 1980 e

    incio dos anos de 1990, posteriormente promulgao da Constituio Federal de 1988

    (CF/88), que o recurso aos tribunais ganhou maior importncia social, acarretando a

    judicializao da poltica e das relaes sociais no Brasil. Nesta linha, destacamos os

    trabalhos de Santos (2007), Vianna (et. ali, 1997) e Sorj (2001).

    Santos (2007) destaca um crescimentos da importncia do papel do Judicirio na

    resoluo dos conflitos sociais tanto nos pases da Amrica Latina como nos demais

    continentes. Sinaliza como um importante fator para isso a ascenso do Estado Providncia

    nos pases da Europa, com a luta e a conquista pela classe trabalhadora de direitos sociais

    (SANTOS, 2005). Posteriormente, com o declnio deste modelo de Estado, segundo o autor,

    houve um aumento dos conflitos sociais levados ao Poder Judicirio, transformando-os emconflitos jurdicos (SANTOS, 2005).

    A ocorrncia deste fenmeno tambm apontada pelo autor nos pases em

    desenvolvimento (perifricos e semi-perfericos). Nesta linha, defende que, no Brasil, apesar

    de nunca ter existido um Estado-providncia muito denso, a transio democrtica e a

    promulgao da CF/88 geraram expectativas muito grandes na populao. Entretanto, estas

    expectativas foram frustradas, pois a cidadania no gozou dos direitos estabelecidos no texto

    constitucional, motivando o maior recurso aos tribunais (SANTOS, 2007). O autor destacaque o fenmeno da judicializao das relaes sociais provocou uma exploso de

    litigiosidade da qual a administrao da justia no deu conta, produzindo uma crise

    relacionada com o acesso justia por parte dos setores populares, com a necessidade de

    processos mais simplificados, capacitao dos juzes (formao alm da tradicional) etc.

    (SANTOS, 2005).

    Outros autores como Vianna et al. (1999 e 2007) tambm analisam a judicializao em

    curso no Brasil, desde ao menos a metade da dcada de 1990, relacionando este fenmeno busca pela concretizao de direitos no Judicirio. Defendem que a falncia do Estado de

    Bem Estar Social e a adoo das polticas neoliberais teriam levado a sociedade a buscar no

    Judicirio a efetivao dos direitos de cidadania. A perda de direitos e o afastamento do

    Executivo e do Legislativo do compromisso na formulao de polticas pblicas capazes de

    melhorar as condies de vida da sociedade teriam levado as classes populares a verem na

    atuao do Judicirio a possibilidade de concretizao de seus direitos. Vianna et al. (1997)

    consideram que:

    as transformaes por que tem passado o imaginrio da sociedade civil,especialmente dos seus setores mais pobres e desprotegidos que, depois da

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    deslegitimao do Estado como instituio de proteo social, vmprocurando encontrar no Judicirio um lugar substitutivo, como nas aespblicas e nos Juizados Especiais, para as suas expectativas de direito e deaquisio de cidadania. (VIANNA et al., 1997:42).

    Sorj (2001) tambm chama a ateno para o fenmeno dejudicializao ocorrido nas

    sociedades ocidentais a partir do fim do sculo XX e defende que, na atualidade, as bases do

    Welfare State esto se diluindo, em particular com as privatizaes dos servios pblicos.

    Nesta passagem, o Poder Executivo perde o controle do sistema, que passa ao Poder

    Judicirio.

    Segundo Vianna et al. (1997:150), a judicializao em curso torna necessria a

    expanso de segmentos especializados do Judicirio como forma de responder s demandasda sociedade. Os autores apontam como necessria a institucionalizao de novos ramos desse

    Poder, como, por exemplo, a criao de uma Justia Agrria.

    Fernandes (1999) analisa a judiciarizao da luta pela Reforma Agrria e sinaliza

    para peculiaridades desta tendncia no campo brasileiro. Segundo o autor, a judiciarizao

    da reforma agrria explicitada na criminalizao das ocupaes de terra, por um lado, com

    a ocorrncia de inmeras prises, assassinatos, massacres, ordens de despejos e reintegraes

    de posse contra trabalhadores rurais e, por outro lado, com a no efetivao da Reforma

    Agrria e da retomada de terras pblicas apropriadas ilegalmente por particulares

    (FERNANDES, 1999: 399). Apesar de apontar excees a esta postura, destaca que a

    interpretao da lei pelos juzes se d de forma linear e positivista, o que leva a crer que a lei

    neutra e a postura como juiz diante da realidade apenas tcnica.

    Durante a elaborao da nossa pesquisa para dissertao de Mestrado (QUINTANS,

    2005), observamos a tendncia em curso de judicializao dos conflitos de terra, por meio de

    aes de reintegrao de posse ajuzadas contra ocupaes promovidas pelo MST no estado

    do Rio de Janeiro. Entretanto, constatamos que este fenmeno no se relaciona com a

    concretizao de direitos pelo Judicirio. Identificamos que o discurso hegemnico no

    Judicirio fluminense sobre a questo agrria apresenta uma viso absolutista do direito de

    propriedade, excluindo deste conceito o condicionamento do cumprimento da funo social

    para a proteo da posse ou da propriedade. Verificamos que os magistrados, de forma

    majoritria, tambm consideram as ocupaes de terra como atos ilegais. Em poucos casos

    rompem com esta interpretao, analisando o direito de propriedade associado ao princpio,

    tambm constitucional, do cumprimento da funo social e conceituam a ocupao de terra

    promovida pelo MST como ato de presso poltica para que o governo realize a poltica

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    pblica de reforma agrria, assim como entendeu o Superior Tribunal de Justia (STJ) no

    Habeas Corpusn. 5.574, cujo Desembargador relator do acrdo foi o Ministro Luiz Vicente

    Cernicchiaro, em 08 de abril de 199714(QUINTANS, 2005).

    Na poca da redao da dissertao, tinha sido aprovada no Congresso Nacional e

    sancionada a esperada Emenda Constitucional n. 45/2004, conhecida como Reforma do

    Judicirio, depois de 12 anos de tramitao legislativa. Uma das modificaes desta emenda

    foi a introduo no texto constitucional da possibilidade da criao das varas agrrias pelos

    Tribunais de Justia nos estados.

    Esta mudana no texto constitucional e a observao da atuao do Judicirio

    fluminense (estado que no possui vara agrria) despertaram a curiosidade de estudar outras

    experincias j existentes. Poucos trabalhos no campo da sociologia foram desenvolvidossobre o tema, no existindo uma sistematizao sobre o impacto destes rgos na conjuntura

    agrria nos diferentes estados em que eles foram criados.

    Nossa primeira hiptese de trabalho foi a de que as varas agrrias no seriam rgos

    capazes de por fim aos conflitos por terra, devido presena hegemnica do discurso

    proprietrio no Judicirio e prpria funo das varas que no abrangeriam os mecanismos de

    promoo da poltica de reforma agrria (as desapropriaes). Entretanto, para nossa surpresa,

    esta hiptese se desestruturou no primeiro momento da pesquisa de campo, com asinformaes levantadas j nas primeiras entrevistas e posteriormente confirmadas na anlise

    dos processos judiciais. Percebemos indcios que nos demonstraram que na vara agrria de

    Marab estava sendo adotado o princpio da funo social da propriedade nos conflitos

    possessrios, afastando a leitura civilista do direito de propriedade absoluto. Diante destes

    sinais, formulamos como hiptese de trabalho que na vara agrria do sudeste paraense os

    juzes estariam transformando as aes possessrias em procedimentos mais democrticos,

    com a realizao de audincias de justificao

    15

    antes da deciso sobre as liminares dereintegrao de posse.16Tambm identificamos pistas que nos apontavam que nestas aes

    14 HC- CONSTITUCIONAL HABEAS CORPUS LIMINAR FIANA REFORMA AGRRIA MOVIMENTO SEM TERRA Movimento popular visando a implantar a reforma agrria no caracteriza crimecontra o Patrimnio. Configura direito coletivo, expresso da cidadania, visando a implantar programa constanteda Constituio da Repblica. A presso popular prpria do Estado de Direito Democrtico. (Destaques dooriginal).15O art. 928 do CPC faculta ao juiz, caso no esteja comprovada a posse, realizar audincia de justificao deposse para que o autor leve testemunhas e demonstre que possui a posse do imvel. Os juzes podem marcarestas audincias nos casos nos quais entendam que o autor da ao no juntou provas suficientes para demonstrara veracidade das suas alegaes. Desta forma, o CPC autoriza os juzes nestas aes a decidirem sem ouvir a

    outra parte, sem que a parte r possa se defender das alegaes do autor, ou seja, no caso em tela, sem que asorganizaes de trabalhadores rurais apresentem defesa, apenas aceitando os argumentos dos fazendeiros.16A liminar uma medida de urgncia que pode ser concedida pelo juiz, a pedido de uma das partes sem a oitivada outra parte.

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    seria possvel discutir a legalidade dos ttulos de propriedade, atravs de informaes

    solicitadas pelos juzes aos rgos agrrios e fundirios e de percias judiciais17.

    Varas agrrias e democratizao do processo judicial e do Judicirio

    A democratizao dos processos judiciais e do Judicirio j foi abordada por diferentes

    pesquisas e esteve pautada nos debates tanto da ANC como da Reforma do Judicirio.

    Entretanto, esta democratizao foi pensada em diferentes sentidos. Para Baldez (1999), por

    exemplo, (...) a democratizao do processo s ser concreta, primeiro, quando a juris-dico

    deixar de ser um monoplio da magistratura, abrindo-se espaos para juzes de outros cortes e

    culturas sociais (...) (BALDEZ, 1999: 260). Por outro lado, Vianna et al. (2007) relacionamdemocratizao do Judicirio com a ampliao do acesso a justia e a pluralidade social dos

    magistrados.

    Junqueira et al. (1997) ainda acrescentam a necessidade da percepo pelos

    magistrados da sua funo social nos conflitos coletivos que marcam a contemporaneidade.

    Santos (2007) tambm relaciona a democratizao da justia com a mudana de postura dos

    juzes que, segundo o autor, pode vir com alteraes no processo de formao de magistrados.

    Marilena Chaui (2008:67-68) analisa a democracia como um processo no qual oconflito considerado legtimo e necessrio, buscando mediaes institucionais para que

    possa exprimir-se. A autora completa associando a democracia com a ideia dos direitos

    (econmicos, sociais, polticos e culturais) (CHAUI, 2008: 68). Segundo a mesma autora,

    graa aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espao poltico para

    reivindicar a participao nos direitos existentes e, sobretudo, para criar novos direitos.

    (CHAU, 2008: 68). Neste sentido, entende a autora a necessidade de se repensar a questo da

    representao poltica, pois() desenvolvem-se, margem da representao, aes e movimentossociais que buscam interferir diretamente na poltica sob a forma de pressoe reivindicao. () Assim sendo, a cada passo, a democracia exige aampliao da representao pela participao e a descoberta de outrosprocedimentos que garantam a participao como ato poltico efetivo queaumenta a cada criao de um novo direito (CHAUI, 2008:70).

    Santos (2007) tambm destaca a necessidade de se ampliar a democracia e associa no

    campo do Direito esta tarefa ampliao do acesso justia e aos direitos e utilizao de

    17A percia judicial a diligencia realizada ou executada por peritos, a fim de que se esclaream ou evidenciemcertos fatos. (Percia. In: DE PLCIDO E SILVA, 2000). A percia judicial est prevista no Cdigo deProcesso Civil.

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    forma de comunicao e uma estratgia de deciso, assente na persuaso ouconvencimento atravs da mobilizao do potencial argumentativo desequncias e artefactos verbais e no verbais comumente aceites. Aburocracia aqui entendida como uma forma de comunicao e umaestratgia de deciso, baseada na imposio autoritria por meio damobilizao do potencial demonstrativo de procedimentos regularizados epadres normativos. Por ltimo, a violncia uma forma de comunicao euma estratgia de deciso assente na ameaa da fora fsica (SANTOS,2003a: 50).

    Segundo o autor acima citado, a caracterizao de um campo jurdico deve ser feita

    pela anlise da combinao destes trs elementos, devido ao fato de que a prevalncia de um

    sobre os demais pode gerar diferentes naturezas de campos jurdicos dentro do mesmo Estado,

    pois nos campos jurdicos complexos podem existir diferentes formas de dominao em

    diferentes reas de aco poltico-jurdica (SANTOS, 2003a: 51). Os exemplos de Santos

    (2003a) para demonstrar esta tese so as reformas da informatizao das justias nos pases

    centrais: geraram o aumento da retrica e, ao mesmo tempo, tem ocorrido o aumento do

    direito penal (ou seja, da burocracia e violncia). Estes exemplos demonstram que o direito

    estatal internamente muito heterogneo, incorporando em si vrios tipos de dominao

    jurdica (SANTOS, 2003a: 51).

    No Judicirio brasileiro tambm h diferenciaes destes elementos. Em algumas

    regies e para algumas temticas h a prevalncia da retrica na resoluo dos conflitos e em

    outras esferas existe ainda a dominao da burocracia e da violncia em detrimento da

    retrica.

    Formulamos como hiptese de trabalho que, na vara agrria de Marab, houve uma

    ampliao da retrica, com a prtica judicial de realizao de audincias de justificao de

    posse antes da deciso pelos juzes sobre a medida liminar solicitada pelos fazendeiros. O

    Tribunal de Justia do Estado do Par (TJ/PA), atravs de sugesto da Ouvidoria Agrria

    Nacional, tem orientado os juzes agrrios a adotarem esta prtica. Deve ser destacado quetambm consideramos possvel que a ampliao da retrica nas varas agrrias no sinalize

    necessariamente para o alargamento democrtico nos demais ramos do Judicirio paraense,

    como na justia penal, pois, como destacado por Santos (2003), existem diferentes

    combinaes e uma pluralidade interna ao Judicirio19.

    Estas diferentes caractersticas tambm marcam as prticas e decises dos magistrados

    no Judicirio nos diferentes estados do Brasil. Por exemplo, verificamos que no estado do Rio

    19 No temos a pretenso nesta tese de verificar a relao dos ramos do judicirio, apenas nos limitamos ainvestigar a vara agrria de Marab.

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    Grande do Sul, a luta pela terra tem vivido um processo de forte criminalizao 20. Santos

    (2009) descreve este fenmeno como uma contra-revoluo jurdica, que consiste numa forma

    de ativismo jurdico conservador que pode neutralizar os avanos democrticos advindos com

    a CF/88 (SANTOS, 2009). O autor acrescenta que este processo:

    (...) Cobre um vasto leque de temas que tm em comum referirem-se aconflitos individuais diretamente vinculados a conflitos coletivos sobredistribuio de poder e de recursos na sociedade, sobre concepes dedemocracia e vises de pas e de identidade nacional. (SANTOS, 2009: 01)

    No entanto, o carter heterogneo do Judicirio e da magistratura que, por um lado,

    nega direitos e, por outro, os reconhece, estimula a realizao de lutas importantes dentro do

    Judicirio, como a defesa jurdica promovida pelas organizaes de trabalhadores rurais na

    vara agrria de Marab.Neste trabalho investigamos estes conflitos e identificamos os argumentos e as

    prticas dos mediadores (advogados), dos fazendeiros e das organizaes de trabalhadores

    rurais nos processos judiciais relativos s ocupaes coletivas julgadas pelas varas agrrias.

    No campo jurdico, as disputas sociais diretas entre as partes so transformadas num

    debate jurdico entre profissionais, cujo poder foi delegado pelos profanos por procurao.

    Desta forma, est sempre presente a figura do mediador (advogado). Estes profissionais

    conhecem as regras escritas e no escritas deste campo, os rituais, as linguagens, utilizam osmesmos trajes etc. Podemos explicar as relaes entre os profissionais, atravs da anlise feita

    por Bourdieu (2004) sobre o campo jurdico e o poltico. Bourdieu (2004) utiliza-se da

    metodologia de anlise da delimitao de campos e da utilizao do conceito de habituspara

    analisar as relaes sociais. O autor destaca a existncia de vrios campos como o dos

    esportes, das artes, do direito e do poltico (BOURDIEU, 2005).

    Bourdieu (2005) afirma que o Estado deve ser entendido como um campo do poder,

    ou seja, um espao de jogo, no qual os detentores de capital lutam pelo poder do Estado, quegarante poder sobre os demais capitais. Em todos os campos existe esta disputa pelo controle

    do poder, uma disputa entre a doxa (viso conservadora dos dominantes) e a heterodoxia

    (viso transformadora dos dominados dentro dos limites do campo que disputa o poder e quer

    ser a viso dominante). A doxa como ponto de vista dos dominantes, apresenta-se como o

    20Vieira (2010) destaca as aes de criminalizao dos judicirios estadual e federal do Municpio de Carazinhoe do Ministrio Pblico Estadual e Federal como sendo: a propositura de uma ao penal com base na Lei deSegurana Nacional (Lei n 7170/83), em que so rus oito integrantes do MST, e aes civis pblicas paraimpedir o funcionamento das escolas itinerantes, a realizao de marchas, o impedimento da permanncia de

    acampamentos nos acostamentos das estradas pblicas, o impedimento de ocupaes em reas da prpriaorganizao ou estabelecidas por meio de contratos, como arrendamentos. Tambm afirma que estas medidas

    judiciais foram pensadas para promover a extino do MST na regio.

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    ponto de vista universal, o ponto de vista dos que dominam o Estado e, por dominarem o

    Estado, transformaram este ponto de vista em universal.

    Dezalay e Garth (1999) chamam a ateno para a categoria guerras palacianas para

    analisar as perspectivas de mudanas nos campos, que, segundo eles, representam lutas no

    apenas pelo controle do Estado, mas tambm pelos valores relativos dos indivduos e dos

    conhecimentos que do forma e direo ao Estado (DEZALAY e GARTH, 2000: 164). Os

    autores destacaram a perspectiva de pensar no apenas os elementos de manuteno do

    habitus dos campos, mas a perspectiva de mudana presente na obra de Bourdieu, a partir de

    lutas e disputas dos atores participantes dos diferentes campos.

    O campo poltico definido por Bourdieu (2004) como um campo de foras e de lutas

    pela modificao das foras que conferem a estrutura do campo em cada momento, por meiode relaes de intermdio entre mandantes e mandatrios. O autor entende que toda anlise da

    luta poltica deve ser observada a partir das determinantes econmicas e sociais da diviso do

    trabalho social, para no se correr o risco de naturalizar os mecanismos de produo e

    reproduo da separao dos agentes politicamente ativos e passivos, a relao de

    delegao/representao, a diviso entre profanos e profissionais, estes ltimos dotados de um

    capital delegado. Existe uma diferena entre o capital pessoal, que desaparece com a pessoa

    do seu portador e o capital delegado, imbudo de autoridade poltica, atribudo aosprofissionais, como os funcionrios pblicos, sacerdotes, professores e advogados.

    O mesmo ocorre no campo jurdico, onde existe uma diviso social do trabalho

    jurdico e a delegao a profissionais, os advogados, para representarem os profanos nos

    tribunais. Estes profissionais conhecem as regras, os saberes especficos e tm o domnio da

    linguagem e retrica jurdica. Segundo o autor:

    O campo jurdico regido por certas regras, que limitam o universo dodiscurso jurdico, das tomadas de posio que podem existir dentro deste

    campo. As regras do campo jurdico, assim como do campo poltico, seassemelham s regras do jogo de xadrez e so fundamentais, pois s existejogo de xadrez porque existem regras que so conhecidas pelos jogadores, seexiste a inteno de jogar xadrez porque existem as regras do jogo(BOURDIEU, 2005: 169).

    Estas regras e caractersticas do campo jurdico, capazes de garantir a unidade de estilo

    que condiciona as prticas e os bens dos agentes no campo, so denominadas por Bourdieu

    (2004) como habitus. Nas palavras de Bourdieu (2004):

    Oshabitus

    so princpios geradores de prticas distintas e distintivas - o queo operrio come, sobretudo sua maneira de pratic-lo, suas opinies polticase sua maneira de express-las diferem sistematicamente do consumo ou dasatividades correspondentes do empresrio industrial; mas so sistemas

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    classificatrios, princpios de classificao, princpios de viso e de diviso egostos diferentes (BOURDIEU, 2004:22).

    Segundo o autor, o habitus que garante uma espcie de consenso sobre asexperincias compartilhadas e constitutivas do senso comum. Assim como os demais campos,

    o campo jurdico para o autor detentor de um habitus especfico, que condiciona o

    comportamento dos agentes dentro do campo. Entretanto, apesar desta caracterstica,

    Bourdieu (2004) entende que existe a possibilidade de disputas no campo jurdico, com a

    possibilidade de diferentes interpretaes dos textos legais e das disputas por estas

    interpretaes, mas destaca que ele est hierarquicamente organizado e possui uma lgica

    interna prpria que acaba por limitar a possibilidade das interpretaes:

    (...) por mais que os juristas possam opor-se a respeito de textos cujo sentidonunca se impe de maneira absolutamente imperativa, eles permaneceminseridos num corpo fortemente integrado de instncias hierarquizadas queesto altura de resolver os conflitos entre os intrpretes est limitada pelofato de foras polticas medida em que apresentem como resultadonecessrio de uma interpretao regulada de textos unanimementereconhecidos: como a Igreja e a Escola, a Justia organiza segundo umaestrita hierarquia no s as instncias judiciais e os seus poderes, portanto, assuas decises e as interpretaes em que elas se apiam, mas tambm asnormas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decises(BOURDIEU, 2004: 213-214).

    O autor segue explicando os limites da interpretao no campo jurdico:As prticas e os discursos jurdicos so, com efeito, produto dofuncionamento de um campo cuja lgica especfica est duplamentedeterminada: por um lado, pelas relaes de fora especficas que lheconferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrncia ou, maisprecisamente, os conflitos de competncia que nele tm lugar e, por outrolado, pela lgica interna das obras jurdicas que delimitam em cada momentoo espao dos possveis e, deste modo, o universo das solues propriamentejurdicas (BOURDIEU, 2004:211).

    O habitusdo campo jurdico em geral marcado pelo discurso que analisa o direito depropriedade de forma absoluta. Este habitus conforma as prticas e os discursos dos

    magistrados, fazendo com que os mesmos tenham em sua maioria um olhar conservador para

    os conflitos coletivos pela posse da terra. Entretanto, este habitusvem sendo tensionado pelas

    organizaes de trabalhadores rurais, por meio de seus mediadores, os advogados.

    Delma Pessanha Neves (2009) trabalha com o tema da mediao, a partir das reflexes

    de Weber sobre os tipos de dominao. Chama ateno para a existncia de dois tipos de

    mediadores: os que vivem pela mediao e os que vivem da mediao. O primeiromodelo est relacionado a formas de dominao pessoal ou tradicional e o segundo

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    dominao formal-legal, s representaes delegadas, aos denominados agentes de mediao

    profissional. Para a autora, a mediao como tarefa tcnica relaciona-se com uma diviso

    social do trabalho, assim como verificamos na anlise de Bourdieu (2004 e 2005).

    Os advogados das organizaes de trabalhadores rurais classificam-se entre os

    mediadores do segundo tipo: so agentes que vivem da mediao e, a partir de um atributo

    tcnico e profissional, estabelecem relaes entre as organizaes de trabalhadores e os juzes,

    o poder Judicirio, o Estado. Com rituais e linguagens especficos do campo jurdico

    traduzem as reivindicaes destas organizaes, ou seja, estabelecem a relao entre este setor

    especfico e a lei que se prope universal.

    As reflexes de Bourdieu (2004 e 2005) e Neves (2009) nos ajudam a analisar o papel

    dos advogados das organizaes de trabalhadores rurais e a construo da legitimidade daslutas polticas no campo jurdico. atravs da delegao de poderes a estes profissionais

    especficos que estas organizaes disputam a interpretao das leis, no sentido de garantir a

    legitimidade de suas aes.

    Houtzager (2007) promoveu um dilogo interessante com Bourdieu ao analisar a

    tenso promovida pela mobilizao do MST, por meio de seus advogados, na sua defesa

    jurdica para a mudana no campo jurdico. Apesar das lgicas internas especficas do campo

    jurdico e poltico, destacados por Bourdieu (2004), segundo Houtzager a atuao articuladapromovida pelo MST entre a mobilizao jurdica e a poltica, tem relacionado a lgica de

    dois campos: o dos movimentos sociais e o do Direito, acarretando mudanas na dinmica do

    campo jurdico, por exemplo, com a constitucionalizao da interpretao do direito de

    propriedade.

    Nas varas agrrias, os advogados traduzem para a linguagem jurdica as reivindicaes

    das organizaes de trabalhadores rurais. Por outro lado, estas se utilizam da linguagem dos

    direitos nas reivindicaes em outros espaos polticos, como nos debates junto ao Incra, namdia, dentre outros, ao defenderem a legitimidade e legalidade de suas aes nos princpios

    constitucionais, por exemplo.

    Santos (2003b) apresenta pistas para a reflexo terica sobre a utilizao das leis pelos

    movimentos sociais de forma a produzir uma contra-hegemonia na interpretao do Direito

    dentro dos Tribunais. Para o autor, o Direito e as instituies estatais, como o Poder

    Judicirio, so campos hegemonicamente impregnados pela lgica neoliberal, mas permeados

    tambm por contradies. Esta caracterstica da lei possibilita usos contra-hegemnicos no

    campo jurdico pelos movimentos sociais, o que o autor designa por cosmopolitismo

    subalterno ou movimentos da globalizao contra-hegemnica ou alternativa, que devem ser

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    casados com a mobilizao poltica destas organizaes. Desta forma, o autor destaca a

    importncia da mobilizao poltica para que ocorram conquistas com a mobilizao jurdica,

    empreendida pela utilizao da lei nos Tribunais.

    A mobilizao poltica sinalizada como um elemento essencial no uso contra-

    hegemnico do Direito estatal: (...) Havendo recurso ao direito e aos direitos, h tambm que

    intensificar a mobilizao poltica, por forma a impedir a despolitizao da luta

    despolitizao que o direito e os direitos, se abandonados a si prprios, sero propensos a

    causar (SANTOS, 2003b: 41).

    Em dilogo com este referencial terico, partimos da hiptese de trabalho que, na vara

    agrria de Marab, seria empregada de forma majoritria a concepo da constitucionalizao

    do direito de propriedade destacada por Houtzager (2007). Buscando verificar esta hittese,analisamos a relao entre a mobilizao poltica e a mobilizao jurdica promovida pelas

    organizaes de trabalhadores rurais, por meio de seus advogados, e a recepo destas

    interpretaes nas decises dos juzes na vara agrria e, portanto, a possibilidade de conquista

    de direitos neste sub-campo. Por meio desta investigao observamos a configurao de um

    discurso agrarista e uma prtica democrtica, que sinaliza para a definio de um habitus

    prprio deste sub-campo especializado21.

    Por outro lado, analisamos a relao entre os desembargadores cveis do TJ/PA, quepossuem uma formao generalista, e os juzes especializados das varas agrrias, observando

    se os desembargadores analisam os conflitos pela posse da terra atravs da concepo de

    direito de propriedade constitucional ou se reforam o habitus do campo jurdico, da

    utilizao do discurso proprietrio, interpretando o direito de propriedade privada no seu

    carter de outrora, absolutista.

    Desta forma, analisamos a dinmica e a lgica do campo jurdico, pensando a relao

    entre primeira e segunda instncia e a relao de permanncia e mudanas de interpretaes eprticas no campo jurdico. Para tanto, usamos novamente os referenciais de Bourdieu (2004)

    sobre as disputas no campo jurdico e a estruturao hierrquica deste campo, que acaba por

    limitar as possibilidades das interpretaes de seus atores.

    A estrutura hierrquica dos tribunais, a diviso entre primeira e segunda instncia,

    limita a atuao dos juzes de primeira instncia, pois a segunda instncia, os

    desembargadores, pode rever as decises dos juzes de primeira instncia, quando acionados

    21Pensamos as varas agrrias como um sub-campo especializado do campo jurdico, assim como destacado porAlmeida (2010) ao identificar a existncia de sub-campos polticos no campo jurdico, como o Supremo TribunalFederal (STF).

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    Neste trabalho investigamos se a heterogeneidade tambm uma marca da

    magistratura que atua e atuou na vara agrria e analisamos se a heterogeidade etria e de

    gnero pressupe mudanas nas interpretaes e nas prticas judiciais e no prprio habitusdo

    campo jurdico. Por outro lado, buscamos verificar se as possveis mudanas no sub-campo

    especializado esto mais relacionadas com a prpria dinmica do ser magistrado, ou seja, com

    a dinmica da carreira, os critrios de promoo dos magistrados etc, ou com a maior

    recepo de novas teses jurdicas.

    Apesar de verificarmos que a presena de juzes mais progressistas nas varas agrrias

    auxiliou na configurao de novas prticas e interpretaes judiciais nas varas especializadas,

    a lgica interna do campo, com as regras de promoo da carreira de magistrado exerceram

    grande influncia.Observamos que os magistrados na vara agrria de Marab agem, de forma geral,

    preocupados com a ascenso profissional. Um dos elementos que motivam os magistrados a

    fazer os cursos de aperfeioamento em Direito Agrrio a possibilidade de, com estes cursos,

    concorrerem promoo, na medida em que as varas agrrias assumem na hierarquia

    judiciria a posio de segunda entrncia, abaixo apenas das varas situadas na capital do

    estado24. Desta forma, as varas agrrias podem representar uma possibilidade de ascenso

    profissional na carreira de magistrado.

    Outro fator importante analisado o papel que ao longo dos anos foi sendo

    configurado para o juiz agrrio. As prticas dos juzes na vara agrria de Marab no so as

    mesmas desde a poca de sua instalao em 2002. Atualmente h uma maior utilizao da

    linguagem da funo social e da realizao de audincias. Esta interpretao e prtica foram

    configuradas a partir das disputas pela interpretao das leis, da CF/88, do Cdigo de

    Processo Civil (CPC), dentre outros, pelos atores sociais envolvidos nos conflitos de terra.

    Tambm, foram produzidas pela mobilizao poltica das organizaes de trabalhadores ruraise seus mediadores (os advogados, especialmente, da Comisso Pastoral da Terra - CPT) junto

    Ouvidoria Agrria Nacional e Presidncia do TJ/PA. Estas reivindicaes podem ter

    encontrado ressonncia nos rgos pblicos, do Executivo e do Judicirio, devido ao quadro

    24Conforme o Cdigo de Organizao Judiciria do Estado do Par, o Judicirio comporta trs entrncias. O juzao ingressar na carreira, aps a aprovao no concurso e empossado, permanece por dois anos como juzsubstituto. Passado este perodo, ele se torna um juiz de primeira entrncia, que corresponde s comarcas dascidades do interior com poucos habitantes e nmero de processo. Com o passar do tempo, pode se inscrever nos

    concursos de promoo, para ascender segunda entrncia, cidades de mdio porte e comarca com um maiornmero de processos e, por fim, a terceira entrncia, esfera mxima na estrutura, que no Par corresponde apenas capital, Belm. Nesta gradao tambm aumentam os salrios. Atualmente, as varas agrrias compreendem asegunda entrncia, estando hierarquicamente apenas abaixo das varas situadas na capital.

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    de forte violncia e conflito que marcaram a regio ao longo da sua histria de ocupao,

    principalmente a partir da dcada de 1970.

    A luta por direitos, a elaborao das leis e a criao das varas agrrias

    A tese tambm analisa os debates e os interesses dos diferentes atores sociais presentes

    na ANC, na Reforma do Judicirio de 2004 e na Assemblia Constituinte do Estado do Par

    de 1989. Nestes espaos ocorreram disputas em torno da necessidade ou no de especializar o

    campo jurdico para lidar com os conflitos agrrios e estabelecer ao final certa especializao

    do judicirio para o tema, bem como conflitos que levaram a produo do atual marco

    constitucional para a reforma agrria.

    A reforma agrria apontada por autores como Pillati (1989 e 2009) e Silva (1989)

    como um dos temas mais polmicos na ANC. Segundo esses autores, este tema mobilizou,

    por um lado, diferentes atores, como organizaes de trabalhadores rurais e entidades

    defensoras da reforma agrria e, por outro, grupos ligados aos proprietrios de terra. Os

    autores descrevem a dimenso dos conflitos, que chegaram a provocar enfrentamentos fsicos

    entre estes atores. Estes embates quase levaram a excluso do texto constitucional do captulo

    relativo reforma agrria. Entretanto, ao final, esta pauta foi assegurada, mas aqum das

    expectativas dos setores pr-reforma agrria, embora tambm apresente limitaes aos

    interesses dos setores ligados grande propriedade rural.

    A bandeira da criao de um ramo especializado do Judicirio na questo agrria

    tambm encontrou adeptos e opositores na ANC. Alguns constituintes compreendiam que a

    Justia Agrria era essencial para a promoo da reforma agrria e para por fim aos intensos

    conflitos pela posse da terra, presentes historicamente no Brasil, mas acirrados na dcada de

    1970 e 80, como a Contag. Alguns setores ligados aos proprietrios de terras tambm

    defenderam a criao deste ramo especializado, por motivos semelhantes, mas objetivando a

    adoo de prticas diferenciadas, como a neutralizao da ao poltica das organizaes de

    trabalhadores rurais. Outros parlamentares progressistas entendiam que tal previso geraria

    muitos gastos numa situao que deveria ser transitria. Por este motivo no deveria ser

    instituda uma Justia Agrria, mas apenas varas ou juzos especializados para julgar conflitos

    agrrios. Como ser analisado, foi esta ltima posio que saiu vencedora na ANC.

    Na assemblia constituinte do estado do Par de 1989, as posies sobre o tema j

    foram menos conflitantes, sendo prevista a criao pelos Tribunais de Justia de varasagrrias sem grande oposio. Apesar de previsto no texto da Constituio estadual de 1989,

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    estes rgos apenas comearam a ser instalados em 2002, por vrios fatores que sero

    analisados ao longo da tese.

    Para a anlise da elaborao das constituies, partimos da concepo de direito como

    construo histrica assim como desenvolvido por tericos da sociologia, da histria e do

    direito, como Marx (1991), Lefort (1983 e 1991), Bobbio (2004), Thompson (1997), Santos

    (2003c), dentre outros. Esta noo histrica e sociolgica do direito fundamental para

    entendermos os debates para a produo e a condensao de conflitos nas leis e as disputas

    posteriores pela interpretao dos textos legais.

    Marx analisou o direito e seus impactos em alguns trabalhos. Em 1842, esse autor

    publicou uma srie de artigos na Gazeta Renana, nos quais investigava a lei sobre o roubo de

    lenha(MARX, 1987). Nas suas reflexes, expe como a lei transformava os cidados comunsem ladres. A prtica anteriormente comum dos homens pobres de recolher lenha seca nas

    terras comunais e senhoriais passava, com o aparecimento da propriedade capitalista da terra,

    a configurar um crime, uma vez que este ato era enquadrado na categoria de roubo,

    castigando-o como a subtrao de madeira verde e em p. Neste trabalho o autor destacou o

    papel da lei de dizer a verdade e de definir a natureza jurdica das coisas.

    Pierre Vilar (s/d), ao analisar este texto de Marx, observa que a lei foi produzida

    contra o costume da poca. Devido a esta dissonncia entre a lei e o costume dos pobres dapoca, Marx entende que a lei, que deveria ter um carter de generalidade, defendeu os

    interesses de um grupo particular. Por este motivo, apontou para a possibilidade da

    contraposio do direito consuetudinrio dos pobres lei do roubo de lenha, que assegurou a

    noo de propriedade trazida pelas mudanas vividas naquele perodo.

    As reflexes de Marx nos remetem noo de direito como construo histrica. Nem

    todas as condutas entendidas hoje como criminosas e/ou ilegais esto de acordo com os

    costumes da sociedade, nem foram sempre consideradas desta forma. Tambm nem semprecategorias foram protegidas juridicamente ou reconhecidas como portadoras de direitos.

    A Questo Judaicafoi outro trabalho no qual Marx se preocupou com o direito. Neste

    texto, o autor analisou o contedo da Declarao de Direitos do Homem, elaborada no

    perodo da Revoluo Francesa, e defendeu que os direitos expressos nesta Declarao,

    denominados direitos do homem, eram, na verdade, os direitos do homem burgus, ou seja,

    do homem egosta, do homem separado do homem e da comunidade (MARX, 1991: 41).

    Da passagem do sistema feudal para a formao da sociedade capitalista, houve a separao

    do Estado e da sociedade civil, sendo a segunda esvaziada de carter poltico. O Estado

    passava a ter o monoplio do poder poltico e tinha o papel de atuar na manuteno dos

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    direitos do homem, ou seja, conservar a vida do homem egosta e suas propriedades. Os

    direitos humanos garantidos pelo poder poltico foram os direitos do homem burgus

    (liberdade, igualdade, propriedade e segurana) e no do homem em si. Dessa forma, a

    categoria cidadania era conferida a todos, mas como expresso dos homens burgueses.

    Marx analisa criticamente os direitos do homem e percebe que estes direitos, que se

    pretendem universais, so, na verdade, garantias determinadas a um tipo de homem

    especfico, o homem egosta da sociedade capitalista. Para Marx, o direito e a cidadania no

    podem ser universais, absolutos ou naturais, independentemente de quem os declare. Desta

    forma, o autor destaca a perspectiva histrica da construo dos direitos e as disputas por trs

    destas declaraes. Desta forma, rompe com as noes jusnaturalistas e positivistas do

    direito25. neste ponto que a obra de Marx apresenta-se como uma contribuio fundamentalpara as reflexes sociolgicas sobre o direito.

    Lefort (1983 e 1991) preocupou-se em resgatar o debate sobre os direitos do homem e

    sua importncia histrica na luta contra a opresso.26 Para o autor, o reconhecimento dos

    direitos do homem na declarao provocou uma reviravolta na vida social da poca

    (LEFORT, 1983). Lefort destaca a dimenso simblica dos direitos do homem, o direito como

    freio ao poder e a toda forma de totalitarismo. Seguindo esta linha, defende a perspectiva de

    ampliao e de conquista de novos direitos por meio da construo democrtica e destacacomo exemplo a contestao dos trabalhadores na luta pelo direito de greve, a organizao

    sindical, a previdncia social e a outros direitos (LEFORT, 1983).

    Segundo ele, a conscincia dos direitos e sua institucionalizao tm uma relao

    ambgua, pois, de um lado, a institucionalizao, com a constituio de um corpo jurdico de

    especialistas, pode afastar e ocultar os mecanismos necessrios ao exerccio dos direitos pelos

    interessados, mas, por outro, pode permitir a conscincia do direito, ou seja, conhecer e

    reivindicar os direitos institudos. O autor destaca ainda a perspectiva do direito que no selimita positivao pelo Estado num corpo legal. Abre espao para pensarmos na luta pela

    criao e pela interpretao da lei pelos diferentes atores sociais e, desta forma, a

    possibilidade da reivindicao constante por novos direitos, pois devido aos movimentos

    25Em linhas gerais, por jusnaturalistas englobamos as perspectivas que defendem um direito natural ou divinoanterior a previso legal. Nas Positivistas, apesar das diferentes vertentes desta perspectiva, agrupamos aquelasidias que resumem os direitos a lei, apenas importando-se com o que foi declarado. Para uma melhor anlisedestas correntes a partir de uma perspectiva crtica ver Lyra Filho (1999).26Claude Lefort, no trabalho aInveno Democrtica,escrito em maio de 1979, tece duras criticas s anlises de

    Marx sobre a Declarao de Direitos do Homem, entendendo que da vem a origem do totalitarismo sovitico,criticas que sero posteriormente retomadas no texto Os direitos do homem e o Estado-providncia (LEFORT,1991),escrito anos depois. No entraremos neste debate. Nosso interesse neste trabalho compreender a noode direito nestes autores.

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    reivindicatrios, novos direitos, ao longo de vrios sculos, foram incorporados s

    Constituies.

    Marshall destaca a formao de trs geraes de direitos da cidadania ao longo da

    histria da Inglaterra: os direitos civis, constitudos ao longo do sculo XVIII, os direitos

    polticos, durante o sculo XIX e os direitos sociais, formados no sculo XX (MARSHALL,

    1967). Jos Murilo de Carvalho (2007) destaca que a incorporao nas constituies

    brasileiras dos direitos civis, polticos e sociais no seguiram esta ordem. Em alguns

    momentos a previso dos direitos sociais avanou, mas a garantia dos direitos civis e polticos

    deram um passo atrs. O autor destaca que, ao longo do processo histrico de embates,

    reivindicaes, acordos e concesses, a Constituio Federal de 1988 incorporou direitos em

    todas estas dimenses.Boaventura de Sousa Santos, em suas anlises sobre o direito, destaca que o

    paradigma da modernidade esteve pautado na tenso entre emancipao27e regulao. Com o

    desenvolvimento do capitalismo, esta relao teria dado espao incorporao no direito da

    ideia de ordem e, portanto, de regulao necessria para por fim ao caos social. Entretanto, o

    autor chama a ateno para o fato de que a tenso entre emancipao e regulao perpassa as

    leis, possibilitando importantes lutas e usos contra-hegemnicos do direito por organizaes

    sociais (SANTOS, 2003b e 2005).Hobsbawn tambm assinala a importncia da linguagem dos direitos humanos como

    instrumento de reivindicao por novos direitos e concretizao dos existentes. Destaca o

    papel do movimento operrio na conquista dos direitos econmicos, sociais e educacionais

    que romperam com a natureza individualista da Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado francesa e da Constituio norte-americana. Segundo o autor, diferentemente do que

    alguns possam defender, os direitos no so abstratos, universais e imutveis, so construes

    sociais e histricas (HOBSBAWN, 2000: 417-439).Bobbio tambm observa o carter histrico dos direitos do homem, nascidos em

    certas circunstncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos

    poderes, e nascidos de modo gradual, no todos de uma vez e nem de uma vez por todas

    (BOBBIO, 2004: 25). Assinala que o que parece fundamental numa poca pode no ser

    27O autor explica que o conceito de emancipao social deve ser analisado em cada contexto, e destaca que talconceito pode ser dividido em fino e espesso. Segundo o autor possvel definir, em cada contexto dado, grausde emancipao social. Proponho uma distino entre conceitos de emancipao social finos e espessos, deacordo com o grau e a qualidade de libertao ou de incluso social que encerram. Por exemplo, a concepo

    fina de emancipao social est subjacente s lutas atravs das quais as formas de opresso ou de excluso maisduras e extremas so substitudas por formas de opresso mais brandas ou por formas de excluso social de tipono-fascista (SANTOS, 2003b:42).

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    fundamental para outra poca e cultura. O autor destaca que as atuais declaraes de direitos

    instituram, alm dos direitos individuais entendidos como liberdades, ou seja, obrigaes

    negativas impostas ao Estado e aos particulares, os direitos sociais, que so as imposies

    positivas aos rgos pblicos. No entanto, o autor chama ateno para o fato da maioria dos

    direitos sociais assegurados nas legislaes nacionais e internacionais no terem sado do

    papel, mas destaca a importncia da linguagem dos direitos de emprestar fora particular s

    reivindicaes dos movimentos dos sem-direitos.

    As geraes de direitos tambm foram institudas nas constituies brasileiras no

    contexto de lutas sociais em diferentes perodos histricos. Alguns destes direitos no

    possuem eficcia social, como o caso do direito ao trabalho, moradia dentre outros.

    Entretanto, estes direitos so bandeiras afirmadas por diferentes atores sociais no Brasil. Nestesentido, h uma utilizao pelas organizaes de trabalhadores rurais e urbanos da linguagem

    dos direitos, ao reivindicarem o cumprimento pelo poder pblico do direito estabelecido na

    lei. H assim uma disputa pela aplicao da lei.

    Santos (2005:178) acha possvel afirmar que quanto mais caracterizadamente uma lei

    protege os interesses populares e emergentes maior a probabilidade de que ela no seja

    aplicada. Por este motivo, defende que a luta democrtica pelo direito deve ser tanto a luta

    pela aplicao do direito garantido na lei, como a luta pela mudana da lei. A luta pelaaplicao do direito est relacionada inclusive com o desenvolvimento, a partir da linguagem

    do direito, de interpretaes inovadoras da lei, que possam ampliar seu entendimento para

    criar novas protees s demandas sociais, que a idia do uso alternativo do direito.

    Importantes tambm como referencial terico desta tese so as reflexes de Thompson

    (1997) sobre a Lei Negra na Inglaterra do sculo XVIII. Esse autor, ao se afastar das leituras

    do marxismo estruturalista, que entendia a lei e o Judicirio apenas como instrumentos da

    classe dominante, preocupou-se em entender a lei inglesa no contexto histrico em que foiproduzida (THOMPSON, 1997: 357). Ao analisar os impactos da Lei Negra, destaca que as

    leis naquele perodo mediavam relaes de poder, em favor das classes dominantes, mas estas

    prprias leis representavam um limite ao arbtrio destes dominantes, colocavam freios