Dissertação Felipe Trotta

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Felipe C. Trotta

PAULINHO DA VIOLA PAULINHO DA VIOLAE O MUNDO DO SAMBA E O MUNDO DO SAMBA

R iio d e J a n e iirro R o de Jane o 2001 2001

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Universidade do Rio de Janeiro Uni-Rio Centro de Letras e Artes CLA Instituto Villa-Lobos Escola de Msica Programa de Ps-Graduao em Msica (PPGM)

P A U L IIN H O D A V IIO L A PAUL NHO DA V OLAE O MUNDO DO SAMBA E O MUNDO DO SAMBA

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Msica (Musicologia) da UniRio como requisito parcial para a obteno de grau de Mestre

Rio de Janeiro 2001

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S U M R IIO SUMR OINTRODUO........................................................................................... 5 CAP. 1 -REVISO DE LITERATURA .........................................................101.1 - SOBRE MSICA POPULAR .................................................................................. 10 1.2 - SOBRE SAMBA .................................................................................................. 22

CAP. 2 O FATO MUSICAL SAMBA ....................................................292.1 - O GRUPO SONORO ........................................................................................ 29 2.2 O REPERTRIO DO SAMBA .............................................................................. 34 2.3 O COMPOSITOR-SAMBISTA.............................................................................. 36

CAP. 3 TRAJETRIA E INFLUNCIAS ...................................................403.1 ANOS DE FORMAO ....................................................................................... 40 3.2 O NASCIMENTO DO ARTISTA PAULINHO DA VIOLA ......................................... 45 3.3 UM INCIO POR ACASO.................................................................................. 49

CAP. 4 ANLISE MUSICAL ..................................................................524.1 - CONSIDERAES PRELIMINARES ...................................................................... 52 4.1.1 - Metodologia das anlises ......................................................................... 52 4.1.2 - Notao e cifragem................................................................................... 54 4.2 - AS ANLISES .................................................................................................... 58 4.2.1 - Argumento................................................................................................ 58 4.2.2 - Dana da Solido...................................................................................... 76 4.2.3 - Pecado Capital.......................................................................................... 95 4.2.4 - Corao Leviano .................................................................................... 114 4.2.5 - Foi um rio que passou em minha vida.................................................... 134

CONCLUSO .........................................................................................151 BIBLIOGRAFIA......................................................................................158 ANEXOS ................................................................................................161ANEXO 1: RESULTADO DA PESQUISA ...................................................................... 162 ANEXO 2: PARTITURAS DAS MSICAS ANALISADAS................................................ 163 Argumento ...................................................................................................... 163 Dana da solido ........................................................................................... 164 Pecado capital ................................................................................................ 166 Corao leviano ............................................................................................. 168

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Foi um rio que passou em minha vida ..................................................... 170ANEXO 3: DISCOGRAFIA ......................................................................................... 173 ANEXO 4: CD COM AS MSICAS ANALISADAS ........................................................ 175 1. Argumento ..................................................................................................... 175 2. Dana da solido............................................................................................ 175 3. Pecado capital ................................................................................................ 175 4. Corao leviano ............................................................................................. 175 5. Foi um rio que passou em minha vida........................................................... 175

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INTRODUO INTRODUOQuem sabe de tudo no fale Quem no sabe nada se cale Se for preciso eu repito Porque hoje eu vou fazer, Ao meu jeito eu vou fazer, Um samba sobre o infinitoPaulinho da Viola (Para ver as meninas)

A presente dissertao um estudo de caso cujo objetivo refletir sobre o samba a partir da obra de um dos sambistas de maior projeo nacional nos dias de hoje: Paulinho da Viola. Com base em uma anlise semiolgica de cinco canes de sua autoria, ser possvel entender a msica-samba como um fenmeno acstico dotado de significao especial para aqueles que possuem uma certa familiaridade com o gnero. Essas simbologias podem ser interpretadas como representativas de determinados sentimentos e valores, que por sua vez despertam nesses indivduos uma afinidade com o repertrio do samba. As canes so manifestaes culturais nas quais esto inscritos elementos simblicos capazes de estruturar identidades entre indivduos a partir de interpretaes de sentido individuais compartilhadas. A experincia do fazer musical (mais especificamente o fazer-samba) rene pessoas em torno desses elementos representados nas canes, formando aquilo que costuma ser classificado como mundo do samba. O mundo do samba aqui entendido de uma forma ampla, transcendendo delimitaes sociais, geogrficas, histricas e tnicas para ser abordado como um grupo de pessoas que admiram e praticam o gnero. Nesse sentido, ser discutida a importncia da obra do compositor como representao desses referenciais simblicos para essas pessoas. No sero abordadas questes estilsticas especficas do compositor, no se tratando de estudo sobre a obra de Paulinho da Viola, mas a partir dela.

6 A obra de Paulinho da Viola extensa. Tomando como base a sua discografia (ver ANEXO 3), pode-se contar 125 canes de sua autoria gravadas pelo sambista, a grande maioria (117) formada de sambas. Alm destas, h canes de Paulinho registradas por outros intrpretes que no constam em seus discos1. Na impossibilidade de se analisar todas essas canes, e tendo em vista que o objetivo desta dissertao a identificao de elementos simblicos que possam ser reconhecidos pelos ouvintes, decidiu-se por escolher como objeto de anlises os sambas mais conhecidos do compositor. A determinao da amostra baseou-se na idia de que os sambas mais conhecidos pelos indivduos do grupo sonoro do samba podem ser considerados os mais representativos das aspiraes, sentimentos e idias sobre msica para o grupo. Esta opo metodolgica esbarra invariavelmente na dificuldade de se estabelecer esta classificao. Apesar de o compositor Paulinho da Viola no ser um autor massificado e ter apenas poucas msicas realmente conhecidas de um pblico mais abrangente, a caracterizao desta amostra ter sempre um componente arbitrrio. Por outro lado, a quantidade relativamente reduzida de sambas efetivamente conhecidos e cantados de autoria de Paulinho me permitia supor com uma certa segurana quais seriam os sambas classificados como os mais importantes de sua obra. Considerando estas dificuldades metodolgicas preliminares de determinao desta amostra, foram utilizados dois recursos que resultaram nos cinco sambas escolhidos para anlise: uma pequena pesquisa realizada entre pessoas que se declararam admiradores e ouvintes do gnero e a garantia de uma certa diversidade de elementos musicais e simblicos nas canes escolhidas, atribuda arbitrariamente pelo pesquisador.

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Podemos citar como exemplo um samba intitulado Na linha do mar, composto em homenagem a Clementina de Jesus, gravado por ela e por Clara Nunes. Como esta dissertao no pretende abranger a totalidade das canes do autor, no foi feito um levantamento aprofundado das canes gravadas por outros intrpretes, mesmo porque h poucos casos e quase sempre so canes pouco conhecidas.

7 Para a realizao da pesquisa, foi utilizado um questionrio que convidava o entrevistado a elaborar uma lista de 5 a 10 sambas entre os mais significativos da obra de Paulinho. O questionrio foi distribudo a amigos e conhecidos meus e divulgado pela internet numa lista de discusso do site Agenda do Samba e do Choro (http//www.sambachoro.com.br). A lista de discusso era, na poca da pesquisa (de junho a novembro de 2000), assinada por cerca de 300 internautas (informao do webmaster Paulo Eduardo Neves). Ao final da pesquisa, foi possvel obter 39 respostas (21 atravs da internet e mais 18 de formulrios entregues diretamente ao entrevistado). O resultado da pesquisa confirmou minhas suspeitas iniciais baseadas em uma intensa vivncia no mundo do samba tanto como ouvinte quanto como instrumentista de quais seriam os cinco sambas apontados como mais significativos. A nica divergncia foi quanto ao segundo lugar, que na pesquisa ficou com a cano Sinal fechado2, desconsiderada por no ser uma cano que contenha elementos facilmente classificados como caractersticos do gnero samba, motivo pelo qual provavelmente ela nunca (pela minha experincia pessoal e por informaes obtidas de membros do mundo do samba) foi cantada em nenhuma roda de samba espao clssico do fazer musical do gnero. Ciente de que o universo da pesquisa (internet e amigos meus) representa apenas uma parcela (geogrfica e socialmente limitada) do mundo do samba, a determinao da amostra se completou a partir de uma anlise preliminar cujo objetivo foi checar a diversidade de elementos musicais dos sambas apontados pela pesquisa como os mais conhecidos. Coincidentemente, os cinco sambas escolhidos formavam uma mosaico bastante completo de

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A alta votao desta cano pode ser explicada pelo fato de a pesquisa ter sido realizada entre setores da classe mdia carioca, bastante influenciados pela obra de Chico Buarque, que gravou esta cano como faixa-ttulo de seu LP lanado em 1974. Este fato pode sugerir que, numa pesquisa mais ampla e metodologicamente mais apurada, pode haver alguma alterao entre os 5 primeiros lugares do resultado obtido. Entretanto, alm de ser indiscutvel a grande importncia que os sambas escolhidos representam na obra do sambista, eles apresentam uma boa diversidade de elementos musicais, necessria para a confirmao dos objetivos da presente dissertao.

8 elementos musicais frequentemente utilizados na msica-samba, o que garantiria a abordagem de uma boa variedade de formas, sequncias harmnicas e meldicas, temticas, imagens lingusticas, procedimentos de arranjo, estilo e um rico material comparativo do repertrio do samba. O objetivo das anlises extrair elementos musicais representativos de valores importantes para o mundo do samba. As anlises se iniciaro com a apreciao das relaes entre melodia, letra, harmonia e suas respectivas significaes, e sero entrecortadas por exemplos de elementos musicais anlogos - ou anfonos, como prope Philip Tagg (1982:40) - encontrados em outras msicas do repertrio. Sendo assim, o objetivo das anlises no encontrar o que as canes de Paulinho tm de particular, especfico. Ao contrrio, procurarei encontrar elementos comuns entre os sambas analisados e outros sambas de outros autores. Os cdigos musicais inscritos nestas canes podem ser entendidos como os mais importantes do universo simblico dos sambas de Paulinho e mais presentes no imaginrio coletivo representado pelo repertrio do samba. No Captulo 1, ser feita uma reviso do conhecimento acadmico e das discusses sobre msica popular e sobre samba. A reviso de literatura aqui apresentada busca inserir o estudo do samba numa tica mais ampla do que as anlises tcnico-formalistas normalmente empregadas nos estudos musicolgicos, incorporando aspectos semiolgicos e

antropolgicos. Em seguida, no Captulo 2, desenvolverei uma hiptese para anlise das simbologias no mundo do samba, formulando a idia de que as significaes codificadas nas canes esto inscritas numa espcie de estoque de smbolos, representado aqui pelo que pode ser chamado de repertrio do samba. Essas simbologias determinam ainda uma unificao de um grupo em torno da msica, formando o que John Blacking chamou de grupo sonoro (1995:232).

9 As influncias musicais e a trajetria de vida e artstica de Paulinho da Viola sero descritas no Captulo 3, onde ser discutida a relao que o compositor mantm com o mundo do samba, relao esta que continuamente reafirmada e representada em sua obra. No Captulo 4, destinado s anlises musicais, sero analisadas 5 canes: Argumento, Dana da solido, Pecado capital, Corao leviano e Foi um rio que passou em minha vida, todas de sua autoria exclusiva, sem parceiros. Nas anlises, sero identificados elementos musicais estruturadores de sentido nas canes, comparados a elementos similares anfonos encontrados em outros sambas do repertrio. A partir das canes analisadas, ser possvel concluir que a estratgia artstica de Paulinho a de incorporao de elementos musicais representativos de aspiraes e sentimentos importantes para comunidade musical que cultiva o samba, tornando-se ele mesmo herdeiro e representante destes valores, presentes em suas canes. Esta dissertao contm ainda em anexo os resultados da pesquisa sobre as msicas mais conhecidas do compositor (Anexo 1), as partituras de cada uma das 5 canes analisadas (Anexo 2), a discografia do compositor (Anexo 3) e um CD com as gravaes de Paulinho das msicas analisadas (Anexo 4).

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C a p .. 1 - R E V IIS O D E L IIT E R A T U R A Cap 1 -REV SO DE L TERATURAAs coisas esto no mundo S que eu preciso aprenderPaulinho da Viola, (Coisas do mundo, minha nega)

1..1 -- SOBRE MSIICA POPULAR 1 1 SOBRE MS CA POPULAREm 1964 Alan Merriam publicou o livro The Anthropology of Music, no qual ele discute os conceitos, problemas e caminhos da musicologia tradicional e, especialmente, da etnomusicologia. Em seu trabalho, Merriam destaca a importncia de a msica ser estudada de uma maneira ampla, entendida como um fenmeno humano, o que se oporia ao estudo mais limitado da msica na cultura Ocidental (Merriam, 1997:17). Neste sentido, o autor critica a forma atravs da qual a musicologia aborda o fenmeno msica: Ns falamos primeiramente do que chamam msica artstica [sic: art music], mas no consideramos que muitas outras formas de msica so tambm parte da nossa prpria cultura musical. (idem:213) A partir do pensamento expressado por Merriam, a msica popular vem sendo cada vez mais estudada em todo o mundo. Dos trabalhos mais recentes, deve-se destacar o de Richard Middleton Studying Popular Music, de 1990. Em seu extenso livro, Middleton traa um panorama geral dos estudos acadmicos sobre msica popular, observando as particularidades necessrias sua abordagem. Ele observa que, na apreciao crtica e analtica da msica popular, o pesquisador se depara com alguns problemas especficos, que envolvem o preparo tcnico sua disposio e a prpria natureza desta msica. De um modo geral, as ferramentas analticas da musicologia foram desenvolvidas para serem aplicadas numa msica de tradio clssico-romntica europia. Por este motivo, sua utilizao na msica popular nem sempre satisfatria, envolvendo diversos problemas

11 relacionados terminologia, metodologia e at mesmo ideologia que cerca este aparato de ferramentas. Middleton, entretanto, preocupa-se fundamentalmente em no isolar o estudo da msica popular do restante do corpus de estudos da musicologia. A msica popular s pode ser devidamente estudada no contexto da totalidade do campo musical, dentro do qual ela uma tendncia ativa; e este campo, assim como suas relaes internas, no nunca esttico est sempre em movimento (Middleton, 1990:7). Para ele, a msica popular no uma anttese da msica erudita (idem:117). Sob esta orientao, discute a abordagem que diversos autores fazem da msica popular, desde Adorno a autores mais atuais como Philip Tagg, tecendo comentrios crticos a vrios estudos. Em seus comentrios, o autor destina ateno especial ao equilbrio entre mtodos de abordagem especficos para a msica popular e conceitos amplos da musicologia tradicional. Paralelamente, observa as dificuldades oriundas do prprio treinamento do pesquisador de msica popular, formado em escolas de msicas nas quais o aparato instrumental e terico desenvolvido para o estudo da chamada msica erudita. O musiclogo de msica popular permanece, invariavelmente, no meio disso tudo, entre o lado cultivado do seu treinamento e o popular do seu objeto de pesquisa. Ao invs de pular de um lado para o outro, () seria melhor olhar os dois lados, vivendo a tenso (idem:123). A receita de Middleton teoricamente bastante pertinente. Entretanto ele no formula nenhum mtodo de abordagem que consiga trafegar pelas diversas prticas musicais. De qualquer forma, ele toca em um ponto fundamental, uma grande questo que percorre todas as suas anlises: que referencial metodolgico devemos utilizar para estudar e analisar a msica popular? Mais do que responder a esta pergunta, Middleton discute-a, destacando a necessidade de problematizarmos a escolha deste ou daquele caminho analtico. Martha Ulha, em seu artigo A Anlise da msica brasileira popular observa problemas semelhantes para o estudo da msica popular, no caso mais especificamente a

12 msica brasileira. Ulha, destaca a necessidade de estarmos atentos pertinncia da utilizao de determinadas ferramentas analticas para o estudo da msica popular. (Ulha, 1999a:67) Ulha manifesta a necessidade de ser desenvolvido um caminho prprio para o estudo desta msica, entendendo haver nela elementos que fazem com que ela deva ser estudada na sua especificidade. Algumas questes, entretanto, permanecem. O que fazer com esta msica? Como estud-la? Que processos composicionais esto envolvidos? Como adequar conceitos (como por exemplo frase, forma, harmonia e contraponto) s especificidades da msica popular? A resposta para estas questes parece ser dada pela abordagem semiolgica da msica popular, procurando entender o fazer musical como uma experincia cultural dotada de sentido. Para isso, pode ser interessanteassumir que a msica uma forma de comunicao interhumana na qual estados e processos afetivos individualmente experimentados so elaborados e transmitidos, - atravs de estruturas sonoras no-verbais organizadas por humanos - para aqueles capazes de decodificar sua mensagem na forma de respostas afetivas e associativas adequadas. (Tagg, 1982:40)

Desta forma, se inquestionvel que a msica produz sentido e transmite significados (Middleton,1990:172), o estudo se desloca do eixo descritivo para a contextualizao do objeto musical na sua forma mais ampla. Trata-se portanto, nem tanto de descrever e analisar a msica no seu domnio tcnico mais fechado, mas encar-la como um meio comunicativo que envolve indivduos, pocas, grupos, conceitos estticos, pensamentos e emoes. Trata-se de analisar o que Jean Molino descreve como fato musical. Para Molino, a msica um fato social, ou seja, o fenmeno musical est relacionado a outros fenmenos sociais como a linguagem e a religio. Este fato tratado por ele como um objeto simblico, relacionado a outros objetos simblicos presentes em uma sociedade.

13 A longa histria das teorias expressivas da msica () mostra perfeitamente como o fato musical aparece sempre no apenas ligado mas estreitamente misturado com o conjunto de fatos humanos. (Molino, 1975:114) Ao analisarmos a msica popular sob este enfoque, necessrio estipularmos e investigarmos as dinmicas sociais de codificao que permitem a comunicao atravs da msica. Aquilo que se chama msica , simultaneamente, produo de um objeto sonoro, objeto sonoro e, enfim, recepo desse mesmo objeto (idem:112). Assim, o autor assume trs dimenses que atuam na formao do sentido de uma msica: poitica (que envolve a etapa de produo do objeto), o nvel neutro (que poderia ser definido como a msica em si) e estsica (a fase da fruio do objeto pelo receptor ouvinte).Qualquer objeto simblico supe uma troca na qual produtor e consumidor, emissor e receptor, no so intermutveis e no tm o mesmo ponto de vista sobre o objeto (). Essas trs modalidades de existncia correspondero a trs dimenses da anlise simblica: a anlise poitica, a anlise estsica e a anlise neutra do objeto. (idem:135)

O modelo tripartite de Molino trabalhado e desenvolvido por Jean-Jacques Nattiez em seu livro Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Nattiez destaca que a dimenso poitica um processo que deixa um trao (nvel neutro), e este trao desencadeia um outro processo: o estsico. A construo das simbologias representadas em um fato musical estaria na interao dos dois processos com este trao (nvel neutro). Em sua discusso, o conceito peirciano de interpretante tem um papel fundamental. Para Peirce,um signo ou representamen, algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para algum. Dirige-se a algum, isto , cria na mente desta pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. (Peirce, 1972:94)

14 Nattiez afirma ainda que o objeto de um signo na verdade um objeto virtual, que ele no existe a no ser a partir da multiplicidade de interpretantes, atravs dos quais a pessoa que utiliza o signo procura aludir ao objeto (Nattiez, 1990:7). Seguindo este raciocnio, a msica como um fato simblico caracterizada pela presena de configuraes complexas de interpretantes. Como um fato simblico, a msica tem o poder de se referir a algo, ela tem modalidades referenciais (idem:102) O autor destina especial ateno ao papel ativo do receptor, afirmando queo significado de um texto ou, mais precisamente, a constelao de possveis significados no a transmisso de uma mensagem por um produtor que pode subsequentemente ser decodificada por um receptor. O significado, ao contrrio, a fixao construtiva de uma rede de interpretantes em uma forma particular. (idem:11)

A partir dessa reconstruo ativa de significados e interpretaes, que ocorre no processo estsico da semiose musical, Nattiez elimina a idia de que haja necessariamente uma comunicao inerente prtica musical. Referindo-se a ela como uma utopia, ele discute que a idia de comunicao pressupe que o ouvinte precisa descobrir o que o compositor deseja que ele oua (idem:98). Haver comunicao, ento, caso a mensagem seja satisfatoriamente decodificada pelo ouvinte a partir das intenes do compositor. Esta idia, portanto, no considera a participao ativa do ouvinte no processo estsico de estabelecimento e recriao de significados. Para Nattiez, a semiologia no a cincia da comunicao. Concebida desta forma, ela o estudo da especificidade do funcionamento das formas simblicas, e o fenmeno das referncias por elas despertadas. (idem:15) Entendendo a estruturao de sentido de uma msica a partir da idia de que o ouvinte reconstri ativamente sua interpretao sobre a obra e seus significados simblicos, nos deparamos com o problema da competncia musical. Quem este ouvinte e quo familiarizado com esta msica ele est? Ser que um campons chins capaz de reconstruir

15 os significados de uma msica punk americana corretamente? E mais: ser que existe uma maneira correta de se compreender uma msica? Que nveis de compreenso e/ou comunicao so passveis de serem observados em uma performance musical? Gino Stefani descreve a competncia musical como uma habilidade de produzir sentido atravs da msica. (Stefani,1987:7) Em sua teoria, ele assume como garantida a existncia de alguma habilidade comum a todos os membros de uma cultura de produzir e/ou se comunicar atravs de sons, apesar desta habilidade ser exercida de diversas maneiras (idem). Stefani no faz distines entre as competncias de quem produz msica e de quem a escuta. Para ele, a competncia musical se manifesta no uso que se faz dos cdigos relacionados aos sons. Cdigo para este autor a organizao e/ou correlao entre dois campos de elementos vistos respectivamente como expresso e contedo. Em nosso caso, de um lado temos os eventos sonoros, do outro toda a realidade que pode ser relacionada a eles (idem:8). Utilizando a terminologia pierciana, o cdigo pode ser definido como a relao entre significante e significado, relao esta produzida pelo receptor, no caso, o ouvinte. A partir desses conceitos, Stefani elabora o que ele chamou de Modelo de Competncia Musical, que consiste em um conjunto de nveis de cdigo. Em primeiro lugar teramos os Cdigos Gerais, que seriam representados por esquemas mentais de percepo sensorial e motivaes e atitudes antropolgicas. Em seguida viriam as Prticas Sociais, que seriam as instituies sociais como linguagem, tecnologia, religio, e outras estruturas simblicas comuns aos indivduos de um grupo social. Sobre este nvel de codificao e isso muito interessa ao estudo do samba ele afirma que muitas prticas sociais so limitadas a certo grupo humano, s vezes bastante pequeno. Dentro deste grupo, entretanto, elas so codificadas e reconhecidas por cada membro, de acordo com seu grau de socializao ou cultura geral (idem:12). Em seguida o autor apresenta mais trs nveis de cdigos, mais especficos: Tcnicas Musicais, que seria constitudo das teorias, mtodos e instrumentais

16 diretamente relacionados msica; Estilos, que compreenderia um grupo de obras, movimentos culturais e perodos histricos; e o que ele chama de Opus, que seria o nvel da obra individualizada. Baseando-se neste modelo, Stefani discute as diversas interaes possveis entre os vrios nveis de cdigos de competncia apresentados. O autor toca em um ponto importante, que deve nortear qualquer trabalho de anlise musical de inspiraes semiolgicas: que a questo da competncia no se resume produo do som (dimenso poitica) nem ao evento sonoro em si (nvel neutro), mas tambm est presente na fruio (dimenso estsica), onde os eventos sonoros sero identificados e (re-)interpretados. Torna-se importante, ento, discutir quem o ouvinte e como ele est ouvindo e utilizando esta msica. Esta questo est relacionada s especificidades de cada tipo de msica, de cada gnero musical, de cada estilo e/ou poca. Em seu estudo sobre os gneros musicais, Franco Fabbri discute o que ele chamou de regras de gnero, ou seja, demarcadores tcnico-formais, sociais, econmicos e polticos que caracterizam um gnero musical. Segundo este autor, um dos componentes mais caractersticos de um gnero o ambiente social no qual ele acontece, ou seja, o grupo de indivduos que ouvem aquele determinado gnero, sua comunidade musical. Ao mesmo tempo, o funcionamento simblico de uma msica para os indivduos que pertenam comunidade musical que a cultiva se relaciona com a capacidade destes ouvintes de fazer associaes. Seguindo este raciocnio, Philip Tagg afirma que o ouvinte de uma determinada msica constri associaes musicais e paramusicais (alm da msica) entre esta e outras msicas, trazendo para esta audio elementos de sua experincia musical associados a sentimentos, lembranas, imagens e cenas, gravadas na sua memria. Ao analisar uma msica, ele prope que se refaa essa teia de associaes musicais e paramusicais a partir dos itens do cdigo musical (que ele chama de musemas) presentes

17 na obra analisada e em outras msicas, comparativamente (Tagg, 1982:47-50). Em sua abordagem de anlise a comparao um instrumento central. Tagg, mais especfico que Nattiez, entende que a msica uma forma de comunicao e toda sua estratgia de anlise semiolgica est construda para tentar responder pergunta: Por qu e como quem comunica o qu a quem e com que efeito? (Tagg, 1982:39) O autor recupera uma questo apontada por Merriam quase 20 anos antes, na qual ele afirmava estarmos cientes de que a msica comunica alguma coisa, mas no estamos certos sobre o qu, como e para quem. (Merriam, 1997:223) A partir dessas questes, podemos entender que h uma mensagem emitida pelo produtor atravs do processo poitico, e cabe ao estudo semiolgico entender qual essa mensagem (comunica o que?) e com que efeito se d essa comunicao. A eficincia do processo comunicativo para Tagg estaria relacionada a uma competncia musical comum entre produtor e receptor, sem negar que este ltimo reconstruiria sua cadeia de interpretantes. Tagg aplicou sua metodologia de anlise em dois extensos estudos: sobre o tema de abertura da srie Kojak; e sobre um grande sucesso do grupo Abba, a cano Fernando. De acordo com Middleton, em ambos os casos as associaes musicais produzidas por ele eram facilmente deduzveis a partir do objeto musical escolhido. No caso do Kojak, havia uma sequncia de imagens que compunha a significao musical e no caso de Fernando, a letra conduz as teias de significao quase literalmente, fazendo o sentido brotar a cada instante na universo da cano (Middleton, 1990; 234). As observaes de Middleton so pertinentes e apontam para uma abordagem semiolgica mais ampla, no restringindo as teias de significao aos elementos musicais e incorporando outros elementos (como as imagens de Kojak e a letra de Fernando) na estruturao de sentido de uma msica. Entretanto, devemos observar que Tagg em momento nenhum ignora esses outros elementos, ao contrrio, eles so invariavelmente anexados e

18 discutidos como objetos intrnsecos s suas anlises. A crtica que pode permanecer sua metodologia com relao a sua enorme abertura de possibilidades analticas para um mesma cano. Assim sendo, a anlise permanece sempre aberta, espera de serem encontrados novos musemas ou novos significados para os musemas descritos. O que no chega a ser um problema se entendermos que a anlise, como uma obra musical (), uma construo simblica (Nattiez,1990:201). Desta forma, a anlise musical deixa um trao que d margem a leituras, interpretaes e crticas. () A anlise um fato semiolgico comparvel com todos os outros at aqui discutidos (idem:133). Entendida como uma construo simblica, qualquer anlise sempre aberta e subjetiva, tratando-se de uma interpretao terica sobre a obra, sem pretenses de chegar a uma verdade sobre a pea analisada. A anlise do fato musical interminvel. (Molino, 1975:158) Na metodologia de anlise proposta por Tagg podemos observar, entretanto, a ausncia quase que completa de consideraes sobre a relao texto e msica no mbito das canes. Por ter proposto uma metodologia generalizante, no especfica, sua anlise da cano Fernando praticamente no aborda as implicaes semiolgicas produzidas a partir da relao entre texto e melodia. Tagg parece incorrer no equvoco que Middleton afirma ser comum no estudo de canes:Infelizmente, a maior parte do estudo de canes tomam a forma de anlise de contedo na qual o texto tende a simplificar em demasia a relao entre a letra e a realidade, e a ignorar a especificidade estrutural dos sistemas de significao verbal e musical. (Middleton, 1990:227)

O que comum encontrarmos em anlises de canes produzidas por msicos uma certa negligncia derivada inclusive da falta de treinamento adequado com a parte textual das canes; da mesma forma como estudos conduzidos por pesquisadores nomsicos tendem a ignorar que a letra de uma cano est impregnada de significantes musicais, cuja maior expressividade reside na relao entre texto e melodia.

19 Em seu livro O Cancionista, Luiz Tatit prope uma metodologia de anlise concentrada quase que exclusivamente na relao texto/msica. De acordo com este autor, a cano um exerccio de equilbrio do cancionista3 entre a articulao lingstica do texto e a continuidade meldica da msica. Esses gestos aparentemente antagnicos so compatibilizados por ele em uma s dico: sua maneira de dizer o que diz atravs das canes (Tatit, 1996:11). O conceito de dico a sntese do que ele chama de gestualidade oral do cancionista/malabarista. Segundo ele, existe um projeto de narrao entoativa que seria uma instncia mais geral da significao, da comunicao da cano (idem:24). Sua anlise baseada na identificao dos caminhos entoativos percorridos pelo texto e pela melodia equilibrados para a estruturao do sentido da cano. Em seu livro so analisados 11 compositores escolhidos entre os mais representativos da msica brasileira. Tatit se preocupou em diversificar os estilos e gneros em sua abordagem, escolhendo representantes de quase todas as searas musicais mais em voga na msica brasileira atual. De Noel a Chico, passando por Tom Jobim, Dorival Caymmi, Roberto Carlos, Jorge Benjor, entre outros, o autor procura estabelecer uma metodologia geral de abordagem do objeto cano popular brasileira. Suas anlises so curtas e baseadas na identificao das inflexes entoativas de cada verso e sua significao. Talvez por ter tocado em assunto indito, Tatit esquece de abordar elementos ao meu ver fundamentais para a produo de sentido da cano, como o arranjo e a harmonia. Em suas anlises, ele menciona por vezes o estilo vocal de um ou outro cantor e alguns procedimentos harmnicos, mas no incorpora estes elementos em sua sistematizao. Alm disso, Tatit no considera o aparato cultural e esttico do ouvinte. Por isso, padroniza uma interpretao das instncias de significao dos caminhos entoativos sem problematizar ou relativizar as interferncias culturais, sociais, econmicas, histricas e at mesmo musicais

3 Termo por ele empregado para designar o compositor de canes populares.

20 que podem haver entre o objeto sonoro (nvel neutro) e o ouvinte. E desconsidera tambm as especificidades de cada gnero, que so diretamente relacionadas ao grupo que ouve e cultiva determinada msica a sua comunidade musical. Aqui retornamos questo da competncia, uma vez que os indivduos desta comunidade compartilham os mesmos cdigos (que estariam no nvel das Prticas Sociais do modelo de Stefani). Fora deste grupo mas dentro da mesma cultura/sociedade, os cdigos podem ser reconhecidos, mas a comunicao sofrer o que Philip Tagg chamou de interferncia codal: quando o transmissor e o receptor compartilham o mesmo estoque bsico de smbolos musicais, mas possuem normas e expectativas scio-culturais completamente diferentes. A interferncia codal significa que os sons so basicamente compreendidos , mas a resposta adequada obstruda por outros fatores () (Tagg, 1997:21). A idia de resposta adequada e de estoques de smbolos musicais central no desenvolvimento das anlises no presente trabalho. Creio que aqui reside a grande divergncia entre a concepo que Nattiez imprime comunicao e a utilizada por Tagg. Entre indivduos de um mesmo grupo social, o entendimento dos cdigos se dar de maneira relativamente natural. Se os cdigos so compartilhados, haver ento uma comunicao. Se verdade que haver produo de sentido mesmo sem resposta adequada e disso eu no discordo -, tambm devemos estabelecer que pode haver comunicao caso o estoque de smbolos seja comum e disso o prprio Nattiez no discorda. Tagg ainda alerta para a possibilidade de incompetncia codal, que ocorre quando o transmissor e o receptor no compartilham o mesmo vocabulrio de smbolos musicais (Tagg, 1997:19). Aqui realmente impensvel falarmos em comunicao e devemos incorporar o sentido semiolgico mais amplo de Nattiez para estudar os mecanismos de formao/construo de sentido possveis entre estes indivduos ou grupo de indivduos.

21 Entretanto, esse no o eixo bsico deste trabalho, no qual sero discutidos os significados simblicos compartilhados por um grupo de pessoas em uma prtica musical. A idia de que existe um grupo de indivduos que dividem as mesmas impresses (cdigos) sobre msica est presente tambm no trabalho de John Blacking Music, Culture and Experience, no qual ele define o que chamou de grupo sonoro: um grupo de pessoas que compartilham uma linguagem musical comum, assim como idias comuns sobre msica e seus usos (Blacking, 1995:232). H em Blacking a noo de uso de uma determinada msica, assim como idias sobre msica, o que chama a ateno para o que podemos chamar de funo social da msica, sua importncia para este ou aquele grupo (sonoro). Sobre esta questo, Merriam afirma que no seria adequado falar de funo, mas chamar a ateno para o uso da msica (Merriam, 1997:213). Assim, todas as associaes musicais e paramusicais que Tagg procura podem ser entendidas sob a tica da comunidade musical (ou grupo sonoro) que se utiliza desta msica, o que implica em uma competncia musical comum (apesar de no homognea) entre os indivduos deste grupo (evitando os problemas de interferncia ou mesmo de incompetncia codal). Como veremos no decorrer deste trabalho, esses conceitos so especialmente importantes no universo do gnero samba, onde a caracterizao de grupo, sua identidade e os pensamentos sobre msica e sobre seus usos tornam-se elementos primordiais na abordagem de qualquer cano (nvel Opus de Stefani) produzida neste meio.

22

1..2 -- SOBRE SAMBA 1 2 SOBRE SAMBAA literatura sobre samba extensa. Entretanto, os trabalhos produzidos sobre o assunto normalmente tm como objeto principal de estudo os sambas no ambiente das Escolas de Samba, evitando trat-lo como gnero musical que transcende os limites dos barraces e do Carnaval. Muito tem sido escrito tambm sobre o gnero sob a forma de biografias de sambistas, que sempre trazem grande quantidade de informaes (infelizmente nem sempre confiveis) sobre prticas, pocas, grupos e lugares onde o samba praticado. Destacam-se (as mais confiveis) as escritas por Marlia Barboza Silva em parceira com Lygia Santos (sobre Paulo da Portela) e com Arthur Azevedo Filho (sobre Cartola e Silas de Oliveira). A extensa biografia de Noel Rosa escrita por Joo Mximo e Carlos Didier tambm fonte importante de dados sobre o samba na dcada de 30. Alis, o corte temporal preferido dos pesquisadores de samba exatamente esta dcada. Por tratar-se de momento importante de fixao do gnero, o perodo que se inicia em 1930 sempre descrito como um marco e tomado como fonte de reflexo por parte dos pesquisadores. Eduardo Coutinho foi provavelmente o primeiro autor a utilizar como objeto de estudo mais especificamente a obra de Paulinho da Viola. Em sua tese de doutoramento Velhas Histrias, Memrias Futuras o sentido da tradio na obra de Paulinho da Viola, ele discute a maneira atravs da qual Paulinho articula a tradio em sua obra. Em seu trabalho, Coutinho desenvolve o que ele chama de compreenso dialtica de tradio, entendida como uma afirmao da histria e da cultura de um grupo (), um operador poltico capaz de reelaborar o acervo legado pela histria como patrimnio das comunidades proletrias, de modo a garantir a memria e a identidade desse grupo social (Coutinho,1999:9). Sob esse enfoque, o autor reconstri a carreira e a obra de Paulinho da Viola, utilizando-a como um exemplo do que ele entende por esta tradio.

23 A partir dessas reflexes, Coutinho entende o samba e toda a msica popular no mbito da indstria cultural como uma fala histrica (idem:71). Seu raciocnio sobre a atuao artstica de Paulinho baseado no papel de mediao exercido pelo compositor no trato com a comunidade do samba, com a indstria cultural, e com o pensamento sobre msica popular na dcada de 60, numa interpretao poltica. Segundo ele,Paulinho da Viola seguramente uma dessas pessoas que se colocam a misso de conservar a memria e a sabedoria popular. Para ele, preservar o samba como forma de expresso da vida das camadas populares dos morros e subrbios cariocas significa necessariamente conservar uma concepo de mundo, um contedo histrico, a capacidade de dar conselhos (idem:10)

Em sua concluso, Coutinho explicita o objetivo central da tese, que o dedemonstrar que a caracterstica poltica especfica de Paulinho da Viola a afirmao da histria das comunidades negro-subalternas do Rio de Janeiro que tm o samba como forma de expresso. () A tradio em Paulinho apresenta, portanto um duplo carter: processual e subalterno; ela ao mesmo tempo viva e marginal eis as suas determinaes fundamentais. (idem:242)

Seu trabalho traz importantes discusses sobre o samba e consideraes relevantes sobre a obra de Paulinho, alm de vrios dados obtidos em fontes primrias. Entretanto, o samba para este autor entendido sob a tica da luta de classes da sociedade capitalista, o que o induz a alguns equvocos na interpretao dessa prtica musical. Mesmo entendendo que a questo scio-econmica bastante relevante para o estudo do gnero, creio que Coutinho trata o samba com um certo reducionismo, desconsiderando elementos importantes como o carter ldico e o prazer da msica na vida comunitria e a prpria identidade catalizada pelo samba nos indivduos deste grupo sonoro. Coutinho muitas vezes entende o samba como uma manifestao de grupos subalternos e termos como comunidade negro-proletria aparecem em seu trabalho sem maiores explicaes e caracterizaes, discutindo de maneira

24 monoltica e simplificada a origem scio-cultural-econmica dos indivduos do grupo sonoro que se costuma classificar como mundo do samba. No livro Acertei no Milhar samba e malandragem no tempo de Getlio, Cludia Matos analisa a obra de Wilson Batista e de Geraldo Pereira sob a tica do que ela entende por samba malandro. Matos apresenta um maior cuidado na classificao scio-econmica da comunidade do samba, justificando a utilizao de expresses como classes populares, classes desfavorecidas, comunidades negro-proletrias e procurando entender o samba de uma forma mais ampla, no estritamente como uma manifestao cultural de afirmao poltica. Sob esse prisma, ela afirma que se atentarmos para o objetivo mais imediato e manifesto do acontecimento-samba, veremos que se trata antes de mais nada de uma brincadeira, de uma fonte de prazer ldico para os que dele participam (Matos,1982:31). Essa idia aparentemente se choca com a interpretao de Coutinho, que entende este acontecimento-samba como uma manifestao de um grupo marginal e excludo. No meu entender, a questo da brincadeira e do prazer so fundamentais para um entendimento mais completo e correto das reais motivaes estticas, sociais e at mesmo polticas da prtica do samba. As anlises e concluses de Matos partem quase que exclusivamente das letras das canes, o que torna o seu trabalho especialmente importante para a compreenso do ponto de vista do sambista. a partir do discurso artstico deste indivduo que a autora discute suas posies polticas, sociais e comportamentais. O sambista objeto do seu trabalho , na verdade, o malandro, caracterizado pela autora como um ser da fronteira, um personagem/mediador que se afirma em sua condio scio-econmica desfavorvel a partir do seu jeito peculiar de lidar com o mundo, com o trabalho, com o samba e com a polcia. O malandro um ser da linguagem, e ela sua maior arma, seu maior atributo e sua grande defesa. Matos descreve a linguagem malandra a partir dos sambas por ela identificados

25 como malandros como um linguagem de fresta, de trfego, de mobilidade social. E d ao malandro o papel de porta-voz: pela boca do malandro, fala a comunidade negro-proletria dos morros da cidade em seus aspectos mais peculiares, no que ela tem de inconfundvel (idem:214) A autora define muito bem o seu objeto de estudo o samba malandro evitando traar concluses generalizantes sobre o gnero. Nessa estratgia, desenvolve uma interessante discusso na diferenciao entre o que ela chama de samba de temtica malandra daquele (mais comum) de temtica lrico-amorosa. Sua abordagem trata da voz que fala nesses sambas, o sujeito das letras. Enquanto o samba lrico-amoroso trabalha com categorias abstratas como emoo e senso tico (idem:150), quase sempre levando ao sofrimento, abandono e dor, o tratamento malandro do samba consiste em configurar dialogicamente situaes, sentimentos, termos correntes no discurso monolgico do samba lrico-amoroso. Nesse caso, a configurao dialgica produzida pela interferncia de vozes estranhas ao discurso amoroso tradicional (idem:159). quando aparece o humor, a ironia, a mistura de linguagens diferentes (culta e vulgar) e at mesmo a incluso de frases soltas em outros idiomas (o francs o preferido). Por causa desta delimitao especfica, seu trabalho pouco desenvolve questes mais abrangentes do mundo do samba. O conceito de mundo do samba em Matos mais amplo do que o trabalhado por Coutinho, transcendendo a delimitao scio-econmica e passando a ser entendido como um sistema de relaes que se estabelecem entre aqueles que, de alguma forma, praticam e apreciam o samba. Ele engloba o conjunto de manifestaes culturais, sociais polticas, que se relacionam com o samba e todos os que dele participam. (Matos, 1982:34) Esta definio, apesar de no ser efetivamente utilizada no decorrer do seu trabalho , ao meu ver, mais prxima realidade do complexo acontecimento-samba.

26 Esta complexidade apontada por Samuel Arajo em seu trabalho Brega, Samba e Trabalho Acstico: Variaes em torno de uma contribuio terica etnomusicologia. Arajo entende o fazer musical como resultado de um trabalho humano. Desta forma, o estudo das chamadas msicas populares deveria incorporar a idia de que existe um trabalho anterior a este fazer musical, desvelando dialogicamente as mltiplas relaes estabelecidas entre seres humanos ao fazer msica, bem como as demais relaes subjacentes a esse fazer e as noes de valor que o permeiam (Arajo, 1994). Ao tratar a msica como resultado de um trabalho, que ele prope chamar de trabalho acstico, Arajo incorpora noes de valor de uso e valor de troca do produto deste trabalho. A formulao de Arajo, inspirada no conceito de Rossi-Landi de trabalho lingustico, pretende inserir o estudo do samba e de outras msicas populares ditas urbanas numa discusso mais ampla e multidisciplinar, envolvendo questes antropolgicas, polticas, econmicas e musicais que se cruzam no fazer musical. Sua abordagem de estudo para o samba pode ser entendida como anloga s propostas por Tagg e Molino, que procuram discutir no o objeto musical em si, mas estudar o fato musical, na conceituao de Molino. Uma abordagem parecida sobre o samba pode ser encontrada no livro O Mistrio do Samba, de Hermano Vianna. Logo nas primeiras pginas, Vianna afirma queo samba no apenas a criao de grupos negros pobres moradores dos morros do Rio de Janeiro, mas que outros grupos, de outras classes e outras raas e outras naes, participaram desse processo, pelo menos como ativos espectadores e incentivadores de performances musicais. (Vianna, 1995:35)

Seu livro busca investigar o processo atravs do qual o samba inicialmente uma prtica marginal e reprimida pela polcia, mal vista pela elite e cercada de preconceitos se torna smbolo de unidade nacional. Este, para ele o grande mistrio, tratado pelos textos acadmicos como uma espcie de absolvio mgica, de metamorfose repentina. Sem pretender desvendar este mistrio, Vianna levanta uma srie de questes scio-polticas que

27 operaram nesta poca (dcada de 30) e que teriam favorecido a eleio do gnero como smbolo. O autor discute a relao entre msicos eruditos e intelectuais com o mundo do samba especialmente os msicos populares -, relao que data dos primeiros anos do sculo XX, qui de antes. Segundo ele,muitos laos (maonaria, culinria, festas) uniam esses segmentos distintos da sociedade brasileira. O toque do pandeiro era reprimido por policiais e, ao mesmo tempo, convidado a animar recepes de um senador da repblica. E a circulao de novidades culturais por diferentes bairros e classes sociais do Rio de Janeiro, apesar das reformas urbansticas e da belle poque, continuava intensa. (idem:114)

O Mistrio do Samba traz ainda importantes consideraes sobre os debates que a elite econmica e intelectual da poca travava a respeito de temas como unidade nacional, mestiagem e povo. Alm disso, soma-se ao caldeiro do perodo as profundas transformaes tecnolgicas e polticas que o Rio de Janeiro e o Brasil sofriam sob a ditadura do Estado Novo e o advento da cultura de massa atravs da profissionalizao das rdios e da indstria do disco. Tudo isso, segundo Vianna, fez com que o samba tivesse tudo a seu dispor para se transformar em msica nacional (idem:110) O grande mrito e a grande colaborao de Vianna ao debate sobre samba o de no tratar elite e povo como grupos sociais homogneos (idem:34), refletindo sobre a intensa miscigenao scio-tnico-cultural que sempre caracterizou o samba e sua prtica. Desenvolvendo seu trabalho a partir dessa tica, ele foge do reducionismo polticoesquerdista que aparece de forma bastante intensa no trabalho de Coutinho e tambm em Matos (mais relativizada e em menor grau) para entender o samba no como uma manifestao cultural de um grupo social subalterno, mas passando a abordar o mundo do samba como uma comunidade heterognea. Deste grupo social faziam parte, desde os primeiros acordes de sua msica, diversas camadas sociais em contato com variadas instncias de poder. Podemos entender esse grupo melhor se olharmos para ele no como um grupo social, mas como um grupo sonoro, no qual seus indivduos podem ou no ter outras

28 afinidades sociais. Classes sociais diferentes numa mesma sociedade podem ser distinguidas como diferentes grupos sonoros, ou elas podem pertencer a um mesmo grupo sonoro apesar de poderem ser profundamente divididas em outros aspectos (Blacking,1995:232). O conceito de Blacking incorpora a idia de heterogeneidade presente na descrio de Vianna, e que, ao meu ver, se aproxima com mais preciso da realidade scio-cultural do acontecimento-samba. Por este motivo, o mundo do samba ser tratado neste trabalho como um grupo sonoro, o grupo sonoro do samba, com suas diversas heterogeneidades scio-econmicas, tnicas e culturais. Entendendo o samba e o mundo do samba como uma prtica e um grupo no-homogneo, poderemos ter liberdade para discutir o papel da msica como agente unificador desse grupo. Poderemos discutir tambm a significao desta msica para aqueles que a ouvem e a fazem e a funo social do samba que,no somente pelo divertimento que proporciona, mas sobretudo pelo seu papel de agente unificador e mantenedor da identidade scio-cultural do grupo que o pratica, ganha estatuto de patrimnio coletivo a ser cultuado e preservado. (Matos, 1982:31)

Para terminar, cito um trecho do prefcio de Hermano Vianna para o livro Choro do quintal ao Municipal, de Henrique Cazes, no qual ele comenta o ttulo do livro. Apesar de tlo escrito pensando no choro, o trecho se adequa perfeitamente ao samba e ilustra com preciso a noo de miscigenao que entendo acontecer em todas as msicas, especialmente a msica popular brasileira.Do quintal ao Municipal sim, mas tambm de volta ao quintal, e assim sem parar, num movimento de ida e vinda () que confunde muitas noes preestabelecidas, como a de alta e baixa cultura, ou erudito e popular. () Ento o que veio primeiro: o Quintal ou o Municipal? () Nem o Quintal, nem o Municipal. O melhor acontece entre, na possibilidade de ultrapassar as fronteiras rgidas que separam os vrios mundos culturais, na traduo de vrias linguagens musicais, na genial atuao de mediadores (entre-mundos, entre-linguagens) como Pixinguinha ou Radams Gnatalli (Vianna, em: Cazes, 1998:12-13)

ou Paulinho da Viola.

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C a p .. 2 O F A T O M U S IIC A L S A M B A Cap 2 O FATO MUS CAL SAMBAChama que o samba semeia a luz de sua chamaPaulinho da Viola (Bebadachama)

2..1 -- O GRUPO SONORO 2 1 O GRUPO SONOROA msica como fenmeno simblico tem a capacidade de se referir a algo (Nattiez,1990:102). A qu uma msica se refere depende da capacidade do ouvinte de fazer associaes musicais e paramusicais (Tagg, 1982). Uma vez que esta construo de referncias e de significao depende do ouvinte, as associaes por ele produzidas esto diretamente relacionadas com sua memria, sua experincia de vida, enfim, com sua vivncia musical e paramusical. Neste processo fundamental entender como essa bagagem musical e afetiva individual formada e como os referenciais simblicos das canes funcionam num contexto coletivo de prtica musical como o samba. Tomemos como exemplo a cano Apoteose ao samba, de Silas de Oliveira e Mano Dcio da Viola. Samba Quando vens aos meus ouvidos Embriagas meus sentidos Trazes inspirao A dolncia que possuis na estrutura uma seduo Vai alegrar o corao daquela criatura Que com certeza est sofrendo de paixo Samba Soprado por muitos ares Atravessaste os sete mares Com evoluo O teu ritmo quente Fica ainda mais ardente Quando vem da alma de nossa gente

30 Eu quero que sejas sempre meu amigo leal No me abandones no Vejo em ti o lenitivo ideal Em todos os momentos de aflio s meu companheiro inseparvel de tradio Devo-lhe toda gratido Samba, eu confesso s a minha alegria Eu canto pra esquecer a nostalgia

Em sua apoteose os autores atribuem ao gnero algumas caractersticas como a embriaguez dos sentidos, a inspirao, a capacidade de seduzir e de alegrar o

corao. O samba classificado como o lenitivo ideal em todos os momentos de aflio. Seduzidos pela dolncia da estrutura do ritmo quente, os autores entendem que o samba vem da alma de nossa gente e confessam que o samba a alegria. Seguindo o mesmo raciocnio, a cano Eu Canto Samba, de Paulinho da Viola, se inicia com os versos: Eu canto samba / porque s assim eu me sinto contente. Neste samba, Paulinho reafirma sua relao ntima com o gnero (com ele eu tenho de fato uma velha intimidade) e responde aos que dizem que o samba acabou, concluindo que s se foi quando o dia clareou. Conversando com admiradores do gnero tambm podemos encontrar algumas referncias a um certo poder mgico por ele proporcionado. Segundo uma frequentadora de rodas de samba, ficar nesse ambiente at final da noite uma experincia que lava a alma4. Da purificao da alma perda parcial de conscincia pela embriaguez dos sentidos, passando pela sensao de felicidade por ele s por ele provocada, podemos constatar que a importncia da msica-samba como fenmeno simblico reconhecida por aqueles que a cultivam.

4 Depoimento pessoal ao autor, em 12/12/2000.

31 Sendo assim, podemos supor que as simbologias das canes interpretadas individualmente a partir da memria musical e afetiva de cada um podem ser tambm compreendidas coletivamente. possvel entender, ento, que os referenciais associativos individuais podem ser compartilhados nos eventos realizados em torno do samba. Como isso acontece? Recuperando diacronicamente a trajetria do gnero, aquilo que se entende atualmente como samba, ou (como seria prefervel chamar) samba carioca, se estruturou a partir da necessidade de diverso de uma determinada parcela da populao do Rio de Janeiro. Esse heterogneo grupo de pessoas, sem maiores recursos para as diverses pagas do incio do sculo XX (Tinhoro, 1998:276), organizava-se em reunies nas quais cantavam e danavam variados tipos de msica. Incorporando uma enorme diversidade cultural prpria sua heterogeneidade esses indivduos desenvolveram coletivamente uma maneira peculiar de fazer msica (e dana), misturando ritmos, melodias, harmonias e temticas de fontes distintas. No cabe aqui entrar na interminvel discusso sobre a origem do samba, apenas destacar que ele foi formado a partir de diversas matrizes culturais, num encontro de diversos personagens sociais (Vianna, 1995:35) e que seu objetivo mais imediato era o lazer, a diverso e a festa (Matos,1982:31). Entendendo o gnero desta forma, o grupo de indivduos que frequentava (e frequenta) o samba deve ser encarado como no-homogneo, uma vez que sua diversidade, assim como a diversidade musical e cultural que formou o gnero, era (e ) grande. Por este motivo, podemos entender que a msica opera como uma espcie de agente unificador entre essas pessoas, estabelecendo uma afinidade entre elas. Esta afinidade momentnea e se manifesta nos eventos nos quais o samba realizado. Na hora de sua execuo e nos encontros nos quais ele ser executado, se forma um elo entre os indivduos

32 que admiram o samba. Neste momento, forma-se o grupo sonoro do samba. importante destacar que a heterogeneidade do grupo durante a prtica musical fica momentaneamente neutralizada, passando os indivduos a compartilhar o fato musical samba. Como fato musical, a experincia sonora est relacionada com o evento social, com as expectativas e vivncias individuais, com o estabelecimento de relaes interpessoais, enfim, com uma srie de outras experincias no-musicais. A msica-samba, ento, pode ser compreendida como um fenmeno simblico que ocorre no contexto mais amplo do fato musical samba. Para entend-la, necessrio descobrir como as pessoas relacionam a experincia musical com a no-musical (Blacking, 1995:227). Mais do que isso, precisamos entender o samba como um agente que promove uma experincia de sociabilidade. O meio de encontro mais caracterstico dessas pessoas, onde o samba utilizado, a roda de samba. Apesar de podermos garantir que h diversos outros espaos de sociabilidade extremamente importantes para a prtica do samba, a roda de samba, desde a origem do que podemos chamar de samba at hoje, permanece como referncia social, esttica e simblica fundamental para o imaginrio daqueles que admiram e praticam o samba. A roda uma reunio de pessoas em torno de uma mesa de bar (ou outro local parecido), onde se localizam os msicos que tocam e cantam as canes do repertrio. Em torno deste local, as pessoas ficam sentadas ou em p danando e participam das msicas cantando, batendo palmas e, eventualmente, batucando. Trata-se, portanto, de um evento social e festivo, no qual as pessoas se relacionam de diversas formas a partir da msica. Nestes encontros, a possibilidade de participao ativa dos espectadores atravs do canto fundamental. Segundo Wisnik,cantar em conjunto, achar os intervalos musicais que falem como linguagem, afinar vozes significa entrar em acordo profundo e no visvel sobre a intimidade da matria, produzindo ritualmente, contra todo o rudo do mundo, um som contrastante. (Wisnik, 1999:27)

33 possvel afirmar, ento, que, a partir do canto grupal, instaura-se um processo de interao (comunicao) entre os que dele participam. No momento do canto coletivo das rodas de samba (e em outros eventos de samba como shows, festas, gravaes, audies coletivas, etc), os cantores compartilham determinadas idias e sentimentos presentes nas canes, o que provoca uma sensao de pertencimento a um grupo. O processo de interpretao do contedo simblico das canes, quase sempre intuitivo, se d a partir da possibilidade de reconhecimento nelas de determinados elementos musicais e paramusicais. Os eventos sonoros so associados individualmente pelos ouvintes a outros eventos sonoros gravados em sua memria musical e estes, relacionados a sentimentos, imagens, cenas e valores que pertenam a sua experincia de vida, sua memria afetiva. No difcil imaginar, ento, que pessoas que ouvem e admiram um mesmo gnero musical iro compartilhar boa parte dessas memrias musicais e afetivas. Assim, no caso de pessoas que utilizam e praticam o samba, pode-se acreditar que haja o estabelecimento de uma memria musical e afetiva coletiva, formando uma enciclopdia musical e paramusical comum entre estes indivduos. Logo, os referenciais associativos que sero utilizados pelos indivduos do mundo do samba para (re)construir as sensaes das canes esto presentes nas msicas cantadas nos eventos de samba, que, por sua vez, pertencem a esta mesma memria musical coletiva. Estas canes formam o que podemos chamar de repertrio do samba, que por sua vez cultivado pelo grupo sonoro que costuma ser denominado como mundo do samba.

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2..2 O REPERTRIIO DO SAMBA 2 2 O REPERTR O DO SAMBAPodemos entender repertrio no seu sentido mais corrente: conjunto das obras interpretadas ou compostas por um autor, orquestra, companhia teatral, etc. (Dicionrio Aurlio, 14ed., Nova Fronteira:1218). Num sentido mais estrito, o repertrio do samba aquele formado por um conjunto de msicas recorrentes nos eventos realizados em torno do gnero que so conhecidas pela maioria dos indivduos que deles participam. Para que isso ocorra, necessrio que a msica seja repetida em diversos eventos e que possa ser reconhecida como parte dessa memria musical e afetiva coletiva. Esse processo envolve escolhas, que se relacionam com a capacidade de determinada msica de agradar aos frequentadores dos sambas e ser cantada por todos. O repertrio das rodas formado, portanto, por msicas eleitas. Paralelamente, a recorrncia desses sambas em diversas rodas (ou outros espaos) resulta em uma escolha simblica de um grupo mais amplo, podendo estas msicas adquirirem significao especial para todo o grupo sonoro do samba, sendo incorporada ao repertrio preferencial da maioria das rodas, shows e discos; o repertrio do samba. A eleio de uma cano para integrar o repertrio do samba se d, na maioria dos casos, a partir da conjugao de trs fatores bsicos: sua divulgao comercial, as simbologias por ela despertada e o grau de legitimao do compositor perante o mundo do samba. No sentido estrito que estou empregando para a expresso repertrio do samba, importante que as canes deste repertrio tenham tido uma gravao significativa, que possa ser adquirida pelos admiradores do gnero. Neste processo de divulgao comercial das canes, destacam-se alguns artistas com vendagens expressivas de discos que, ao gravarem canes do repertrio do samba, tornam seus discos objetos de consumo daqueles que admiram o gnero. Num processo cclico, os artistas gravam canes j conhecidas do grupo

35 sonoro do samba e divulgam novas canes, que podem ento ser cantadas nas rodas e tornarem-se conhecidas da maioria de seus admiradores. Existe uma inter-relao entre a indstria cultural e a prtica espontnea da roda e outros eventos de samba. Como aponta Middleton, a estrutura do campo musical est relacionada com estruturas de poder, mas no determinada por elas. Ns precisamos falar da relativa autonomia das prticas culturais (Middleton, 1990:7). No caso do samba, esta relativa autonomia possibilita uma boa dose de dinamismo no repertrio, fazendo com que novas canes possam sempre ser a ele incorporadas de acordo com o momento. Esta caracterstica estimula a produo de novas msicas, formando continuamente um repertrio amplo e sempre em movimento. Apesar deste dinamismo, o repertrio do samba apresenta alguns pilares solidamente moldados ao longo dos anos. Refiro-me aqui a algumas canes consagradas, de autoria de autores importantes, cuja legitimidade e popularidade (no sentido mercadolgico-quantitativo do termo) so, nos dias de hoje, inquestionveis: Noel Rosa, Geraldo Pereira, Cartola, Nelson Cavaquinho, Z Kti e Paulinho da Viola, por exemplo. Estes sambistas, alm de terem suas canes preferencialmente gravadas em discos de vendagem expressiva, ainda so continuamente relembrados e cantados em diversas rodas de samba. Algumas canes destes compositores tm o poder de estabelecer uma espcie de catarse coletiva em rodas e shows de samba. Normalmente elas apresentam elementos simblicos que despertam valores importantes para o grupo sonoro, como o amor, a malandragem e o prprio samba. Ao ouvir os primeiros versos, por exemplo, de A Voz do Morro, de Z Kti, todas as pessoas presentes nos espaos de samba so compelidas a participar atravs do canto, engrossando o coro:

Eu sou o samba A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor Quero mostrar ao mundo que tenho valor

36 Eu sou o rei dos terreiros Eu sou o samba Sou natural daqui do Rio de Janeiro Sou eu quem leva a alegria Para milhes de coraes brasileiros

Ao participar do canto coletivo do incio desta cano, os indivduos tm a sensao de serem o prprio samba; ou seja: naquele momento, participando do canto junto com o restante das pessoas, eles esto efetivamente sendo o samba, no seu sentido mais amplo. E, como todos que esto ali fazem parte de um mesmo fato, o samba, as pessoas ali presentes compartilham os sentimentos manifestados na cano (como ser o samba e levar alegria a milhes de brasileiros). As canes consagradas tm uma importncia especial por serem conhecidas por um nmero maior de pessoas e de atingirem algumas simbologias importantes para a identidade psicolgica e at mesmo geogrfica do grupo (Eu sou o samba, sou natural daqui do Rio de Janeiro). Seus autores esto legitimados perante o grupo e a repetio das msicas refora a sensao de unidade em torno do fazer musical, funcionando como uma espcie de pilar simblico.

2..3 O COMPOSIITOR--SAMBIISTA 2 3 O COMPOS TOR SAMB STAO compositor figura central para o mundo do samba. ele o fornecedor de material simblico que produz o compartilhamento de idias e valores a partir dos quais se molda a unidade do mundo do samba. Por isso, ele assume o importante papel de agente possibilitador dos encontros em torno do gnero. A incluso de uma cano de determinado autor no repertrio representa ainda a legitimao e o reconhecimento deste compositor perante o grupo.

37 No processo de legitimao de um autor e de suas msicas no repertrio do samba, os sambistas utilizam um recurso com bastante frequncia: a metalinguagem. H diversos exemplos de canes do repertrio do samba que tematizam ou enaltecem a obra e/ou a figura de um sambista normalmente j falecido. Com isto, o imaginrio coletivo do grupo sonoro do samba incorpora e solidifica a obra deste autor como referencial do patrimnio do grupo e seu prestgio aumenta. Como exemplo, vamos analisar este samba de Joo Nogueira intitulado Wilson, Geraldo e Noel, que alis o ttulo do LP deste cantor no qual o samba foi gravado:

Eu bem que sabia Que o samba que eu tinha na mente Era diferente com jeito de Wilson, Geraldo, Noel Puxei a cadeira, no bati mais papo Peguei a caneta e o guardanapo Passei meu samba pro papel Nos versos, joguei a malcia l da malandragem Correr da polcia tem que ter coragem Malandro que dorme vai cedo pro cu Da em diante eu j fui consagrado Oh nega Eliseth, meu muito obrigado E do outro lado Obrigado a Wilson, Geraldo e Noel

O exemplo de Joo Nogueira bastante esclarecedor. Se valendo de uma relao espiritual com trs sambistas importantes j falecidos (Wilson Batista, Geraldo Pereira e Noel Rosa), o autor incorpora o jeito diferente dos seus dolos e passa o samba recmcomposto para o guardanapo. No final, ainda agradece cantora Eliseth Cardoso (que gravou sambas seus, lanando-o como compositor) do lado de c e a inspirao atribuda ao outro lado com um afetuoso agradecimento a Wilson, Geraldo e Noel. Podemos observar que o compositor se posiciona como uma espcie de herdeiro da inspirao e do estilo de vida dos sambistas citados (a malcia da malandragem signo do imaginrio do

38 sambista das dcadas de 30 e 40), sentindo-se recompensado por isso (da em diante eu j fui consagrado). O recurso da metalinguagem tem ainda como objetivo o estabelecimento de uma histria, o que fica bem claro no samba de Joo Nogueira. Ao exaltar figuras importantes do passado, o sambista ratifica uma continuidade, reafirmando uma espcie de linhagem qual pertence, reivindicando indiretamente sua legitimao e estabelecendo uma historicidade para esta prtica musical. Paulinho da Viola utiliza este recurso com frequncia. De sua obra, podemos destacar o samba Argumento, que ser analisado mais adiante neste trabalho, Quando bate uma saudade, Eu canto samba e Bebadosamba, na qual ele cita 38 nomes de sambistas falecidos, convidando o ouvinte a beber dessa fonte. Com essa referncia a dolos de outras pocas, a msica passa a servir metalinguisticamente como um elo de continuidade entre o passado e o presente, representando determinado sentimento histrico do grupo. Esta estratgia normalmente utilizada para unificar o grupo em torno da msica, dos autores e desse bem o repertrio que na verdade passa a representar valores importantes para a memria coletiva do grupo. O repertrio do samba atua, portanto, como uma espcie de patrimnio deste grupo, assumindo mltiplas funes que vo da legitimao dos compositores prpria unidade do heterogneo grupo sonoro do samba, passando pelo estabelecimento de um estoque de smbolos musicais e paramusicais para aqueles familiarizados com suas canes (pessoas que praticam e utilizam esta msica). Por ser formado por msicas conhecidas pela maioria dos frequentadores dos eventos de samba, o repertrio possibilita o canto coletivo e a troca interpessoal atravs dele, reafirmando sentimentos simbolicamente representados nas canes e compartilhados no momento da execuo dos sambas. Assim, ele funciona como uma memria coletiva comum maioria dos indivduos que frequentam esses espaos. Deste

39 compartilhamento de smbolos solidifica-se o grupo, formado a partir dos encontros em torno do gnero. Isto nos ajuda a entender a embriaguez dos sentidos como o resultado da alegria levada pelo samba s por ele a milhes de coraes brasileiros. A importncia dos compositores neste processo proporcional recorrncia de suas canes no repertrio, o que por sua vez est relacionado com a capacidade de um autor de articular simbolicamente em seus sambas certos ideais de vida e emoes representativas das expectativas do grupo. Ao mesmo tempo, a legitimao de determinado compositor est ligada utilizao de alguns procedimentos musicais que possam ser reconhecidos e decodificados pela maioria das pessoas que admiram o gnero. Como veremos adiante neste trabalho, os elementos musicais presentes na obra de Paulinho da Viola estabelecem relaes estreitas com procedimentos musicais comuns no repertrio do samba, articulando nas canes determinados sentimentos e valores importantes para o grupo. Sua msica tem ainda a capacidade de invocar um sentimento de histria de vida, tanto de sua vida pessoal como da histria do prprio samba e de seus protagonistas. Na verdade, Paulinho colabora para a solidificao de um patrimnio, divulgando procedimentos musicais e paramusicais legitimados pelo grupo sonoro do samba e reafirma sua filiao para com esta histria, com este mundo.

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C a p .. 3 T R A J E T R IIA E I N F L U N C IIA S Cap 3 TRAJETR A E IN FLUN C ASMeu pai sempre me dizia Meu filho tome cuidado Quando eu penso no futuro No esqueo o meu passadoPaulinho da Viola (Dana da solido)

3..1 ANOS DE FORMAO 3 1 ANOS DE FORMAOAs influncias musicais de Paulinho da Viola esto diretamente relacionadas sua trajetria de vida, s suas experincias e sentimentos. A msica de Paulinho o resultado de uma relao afetiva com o fazer musical, presente em sua histria desde a infncia. Trata-se de um artista que incorpora com grande conscincia a histria de um grupo de pessoas, a histria da sua vida, da sua famlia e de seus amigos. Em seu trabalho, a msica est estreitamente relacionada a sentimentos, ela vista como uma forma de comunicao na qual estados e processos afetivos individualmente experimentados (Tagg, 1982:40) so compartilhados. Paulinho nasceu em 1942, tendo passado sua infncia numa rua sem sada no tranquilo bairro de Botafogo da poca. Em sua casa moravam diversas geraes de sua famlia, como podemos observar em duas declaraes suas:Minha famlia era tranquila, no era exigente demais conosco. Vivamos numa casa grande, meus pais, meu irmo e eu, a tia av madrinha, minha av e bisav. (JB, 4/3/73) Minha vida foi basicamente assim, de moleque de rua em Botafogo. (Revista Manchete, 21/1/84)

No difcil imaginar que essa vida de moleque de rua em Botafogo nas dcadas de 40 e 50, morando numa casa com av, tia-av e bisav, alm dos prprios pais, formou uma criana com fortes laos familiares, como ele mesmo viria a declarar anos mais tarde; com um profundo respeito aos mais velhos (Paulinho da Viola, jornal O Globo, 30/11/79).

41 A relao de Paulinho com a msica tambm domstica: seu pai, Csar Faria, um importante violonista de choro, integrante do famoso conjunto poca de Ouro, fundado por Jacob do Bandolim. Sua presena marcante em diversas rodas de choro e gravaes do gnero, desde os tempos de Pixinguinha e Jacob at os dias de hoje. Sobre ele, Paulinho declara: Papai faz parte de um esquema que est acabando: so os verdadeiros acompanhadores. Criam acompanhando; e acompanhar no choro no mole, no (Revista Manchete, 1970). A influncia paterna na formao musical de Paulinho constantemente reafirmada pelo compositor. Segundo ele,o interesse pela msica coisa de famlia. Na casa do meu pai havia muitos discos de samba e choro. Meu pai tambm participou de muitas gravaes, ento tinha quase tudo que se fazia em msica popular na poca e era a msica que eu ouvia. (Revista Manchete, 21/1/84)

Pode-se notar tambm que, ao lado dos discos de seu pai, Paulinho pde travar contato com uma vivncia musical, experimentando em casa a prtica do encontro em torno da msica, da realizao sonora:Vi muito l em casa o Pixinguinha, me lembro dele tocando saxofone, o pescoo grosso, soprando forte. Lembro-me do Jacob e muitos outros batutas. (JB, 4/3/73)

Com destaque para o choro, uma msica instrumental, Paulinho desde cedo aprendeu a respeitar o evento sonoro, a ouvir. Mais tarde iria declarar-se assustado com rock, afirmando que ele no entendia bem aquela reao frentica das pessoas frente a uma manifestao musical pois ele, aos 12 anos, estava acostumado a ouvir samba de quintal, aquela coisa dolente, o choro; a gente tinha que ficar ouvindo no maior silncio. (Revista Manchete, 21/1/84) De fato, as rodas de choro na casa de Jacob do Bandolim muito frequentadas por Paulinho tinham como marca o respeito que o anfitrio exigia de todos os participantes. Segundo Henrique Cazes, nos anos 50 e 60, nas concorridas rodas promovidas por Jacob,

42a msica vinha de fato em primeiro lugar e a bebida era consumida com parcimnia em intervalos peridicos. O silncio era total durante a msica e ai daquele que ousasse abrir a boca fora de hora!, pois Jacob no hesitaria em esculhamb-lo publicamente. (Cazes, 1999:112)

Neste ambiente de respeito, o menino Paulo Csar ficava no maior silncio ouvindo, admirando, formando o seu estoque de smbolos musicais, simbioticamente associados aos eventos de choro, de samba, aos laos afetivos familiares e de amizade. Esses valores esto presentes fortemente em sua obra e em diversas entrevistas; sentimentos estreitamente relacionados, para Paulinho, com o fazer musical. At mesmo a motivao de Paulinho da Viola para estudar violo relacionada a uma experincia emotiva. Em 1959,ele conhece o violonista Chico Soares, o Canhoto da Paraba. Ao ver o msico tocar com o violo invertido (era canhoto, mas tocava em violo para destros), o menino ficou fascinado. (Arley Pereira, Revista MPB Compositores, n 17, 1996:4)

E Paulinho confirma: Comecei a tocar influenciado pelo Canhoto. (Revista Manchete, 21/01/84) Em diversos momentos, o cancionista reafirma a relao entre sua emoo e sua obra:Meu caminho est ligado ao meu trabalho, minha poesia, ao meu verso. a minha transao do dia-a-dia, com o samba, a histria da cultura carioca. (JB, 7/3/80)

Para Paulinho da Viola, h uma relao entre a transao do dia-a-dia, uma experincia pessoal do compositor, com a histria, uma relao temporal, individualmente vivida e socialmente compartilhada. Em 1982, em entrevista a Ana Maria Baiana, por ocasio do lanamento do LP A toda hora rola uma histria, ele declararia:Nesse trabalho agora est tudo mais fluido, mais em cima da emoo mesmo. De sentimento. A histria a mesma, a minha histria, a histria do ambiente em que vivi. Mas contada de outra maneira (O Globo, 21/7/82)

43 Seu discurso potico e sua prpria insero no mercado como artista da MPB guardam uma relao estreita com a histria do ambiente no qual viveu, com o seu passado, sua afetividade e suas influncias. Seu trabalho entendido, portanto, como produto desta vivncia, dessas influncias musicais e afetivas:Quem me influenciou para a msica? Papai! O velho um choro e dos bons. Devo algo tambm a Jacob do Bandolim. Mas quem marcou meu estilo: Cartola. Digo isso com orgulho. (O Globo, 7/2/78)

Citando Cartola, Jacob, Pixinguinha, seu pai e outros chores e sambistas, Paulinho reafirma sua linhagem, sua influncia musical e paramusical. Mas essa afetividade e as influncias no se restringiam ao ambiente cerimonial do choro, vivido em casa. Em sua infncia de moleque de rua em Botafogo, Paulinho desde cedo brincava o carnaval nos blocos do bairro, consolidando nas ruas sua formao de sambista (Coutinho, 1999:151). Havia o bloco Carij, no qual ele tocava tarol, o concorrido Folies de Botafogo, e muitos outros. Tambm ia com frequncia casa de uma tia em Jacarepagu, o que acabou resultando, mais tarde, em sua entrada para a Escola de Samba Unio de Jacarepagu, cuja sede ficava no final da rua Andrade Franco, onde sua tia morava. Foi exatamente neste ambiente carnavalesco, dividido entre os blocos de rua e a escola de samba, que o compositor comea a se interessar pelo samba. A partir desse interesse, seu primo Oscar Bigode, diretor de bateria da Portela, o leva para a quadra da escola, em 1963. L, apresenta o jovem Paulinho para os veteranos compositores da histrica escola de samba de Madureira. Quem nos conta a histria desse encontro Arley Pereira, jornalista e amigo de Paulinho:Oscar Bigode apresentou o jovem msico: esse aqui meu primo. Ele quer sair com vocs. Conversa vai, conversa vem, o ainda hesitante Paulinho mostrou uma de suas primeiras composies, o samba Recado, ainda sem segunda parte (). Atento melodia, Casquinha pediu que o msico cantasse mais uma vez. Quando Paulinho terminou o bis, Casquinha completou [o samba] (). A Portela aprovava o jovem compositor. Paulinho da Viola mudava de escola e ganhava um novo parceiro. (Arley Pereira, Revista MPB Compositores, n 17, 1996:14)

44 Sobre sua entrada para o mundo do samba, ele declararia anos depois:Quando fui para a escola de samba e vi o povo do samba mesmo, como eles se comportavam, como compunham, como eles viviam, como que as pastoras reagiam aos sambas que eles cantavam, como a bateria entrava, a que eu percebi que era um universo que eu no conhecia direito, a voc comea a ver que tem toda uma histria ali atrs. Que histria essa? A minha primeira reao com tudo isso foi de fascnio, foi de deslumbramento, foi de dizer: que mundo esse? (Paulinho da Viola, depoimento a Eduardo Coutinho em 9/3/99, citado em Coutinho,1999:152)

Portanto, sua relao com o mundo do samba se inicia com um deslumbramento com esta nova realidade, fazendo o jovem compositor se dispor a apreender os significados deste mundo. No mesmo depoimento, mais adiante, ele afirma:E na verdade eu queria aprender algo que no podia ser aprendido da noite pro dia. Os caras estavam ali h 20, 30, 40, 50 anos. Tinha fundadores, que tinham toda uma experincia de vida que eu no tive. (idem)

Podemos identificar que Paulinho tinha conscincia da importncia do referencial paramusical presente no ambiente do samba. Com a sabedoria de um jovem disposto a aprender as coisas do mundo5, o compositor busca na Portela a compreenso deste mundo, dessa experincia de vida. Acostumado a uma audio atenta dos fenmenos musicais, cristalizada em sua longa vivncia nas rodas de choro, Paulinho consolida sua formao musical nos anos em que passa a frequentar a Portela. O ano de 1964 tem importncia central na carreira do ento jovem Paulo Csar. Sem maiores pretenses artsticas, Paulinho, formado em um curso tcnico de contabilidade, trabalhava num banco. Ele conta queum dia apareceu l no banco o Hermnio Bello de Carvalho, que j me conhecia da Portela, e me convidou pra ir com ele ao Zicartola, quando ento conheci o Nelson Cavaquinho e o Z Kti. Z ouviu algumas composies minhas e me entusiasmou. (Correio da Manh, 9/4/72)

5 Coisas do mundo minha nega o ttulo de um dos mais belos sambas de Paulinho da Viola, que termina com os versos: As coisas esto no mundo, s que preciso aprender.

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3..2 O NASCIIMENTO DO ARTIISTA PAULIINHO DA VIIOLA 3 2 O NASC MENTO DO ART STA PAUL NHO DA V OLAO Zicartola funcionou de 5/9/63 a 26/5/65. O restaurante, situado rua da Carioca, foi um marco na aproximao entre a intelectualidade da classe mdia e os sambistas dos morros cariocas. Essa integrao, verdade, j vinha de antes, e muito antes (desde os tempos de Sinh, se pesquisarmos a histria do samba com cautela: ver Vianna, 1995), e se intensifica na dcada de 60. Nos primeiros anos da dcada de 60, Cartola promovia em sua casa encontros de sambistas que eram frequentados tambm por estudantes da classe mdia, vidos por conhecer a cultura popular, as manifestaes populares autnticas. De acordo com Elton Medeiros,O Zicartola nasceu dos encontros na casa do Cartola, na rua dos Andradas (). O Eugnio6 trazia todo sbado uns cinco carros lotados. Um que no saa de l era o Carlinhos Lira, que gravava tudo o que a gente cantava. () O Zicartola foi continuao disso tudo, j dentro de uma linha comercial. (citado em Silva & Oliveira Filho, 1997:101).

No agitado clima poltico da poca, estudantes, sambistas, jornalistas, diretores de teatro e cinema se reuniam no sobrado da rua da Carioca para ouvir as msicas do morro.Era poca do Centro Popular de Cultura (CPC) [da UNE], e os estudantes iam ao Zicartola para sorver os ensinamentos de brasilidade que norteariam suas atividades a partir da. (Hermnio Bello de Carvalho, citado em Silva & Oliveira Filho, 1997:108)

O perodo de dois anos entre 63 e 65 so fundamentais para a projeo comercial do jovem Paulinho. Nesta poca, Paulinho entra para a Portela e passa a integrar o conjunto fixo do Zicartola, onde, alis, batizado por Z Kti e Srgio Cabral com o nome pelo qual ele

6 Eugnio Agostini era amigo de Nuno Veloso, estudante de filosofia e amigo e parceiro de Cartola, que morou na Mangueira entre 1951 e 1963. Foi ele quem apresentou Eugnio a Cartola e sua esposa, Zica, em 1960. Anos mais tarde, Eugnio se tornaria scio do casal no restaurante Zicartola. (Silva e Oliveira Filho, 1997:97)

46 se tornou conhecido, em homenagem ao sambistas Mano Dcio da Viola (Coutinho, 1999:154). Neste mesmo bar, Paulinho se profissionaliza, conforme ele mesmo conta:Naquela poca, eu cantava todos os sambas do Cartola. E foi das mos dele que recebi o primeiro cach. Foi por meio do Cartola que deixei de ser bancrio e me tornei msico profissional. No Zicartola. (Paulinho da Viola, citado em Silva & Oliveira Filho, 1997:103)

O Zicartola tambm teve importncia crucial para o samba e para a msica brasileira. Foi l que Oduvaldo Viana Filho, Ferreira Gular e Armando Costa tiveram idia de escrever o show Opinio (), um encontro musical, o palco, de Z Kti, o favelado carioca, Joo do Vale, o migrante nordestino, e Nara Leo, a menina da Zona Sul. (Lopes, 2000:60) Foi l tambm que, incentivando os msicos a se profissionalizar, Z Kti rene Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Z Cruz, Oscar Bigode e Anescarzinho do Salgueiro para formar o conjunto A Voz do Morro, gravando pela Musidisc trs LPs intitulados Roda de Samba (Silva & Oliveira Filho, 1997:108). No mesmo bar foi concebido por Hermnio Bello de Carvalho o espetculo Rosa de Ouro, estrelado por Clementina de Jesus e Araci Cortes, acompanhadas pelos Quatro Crioulos: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento. (idem:109) A partir das noitadas no Zicartola, o samba assume novamente um papel de destaque no mercado musical. Elton Medeiros chega a afirmar que o Zicartola teve uma grande influncia nessa proliferao de rodas de samba, no s no Rio como em So Paulo e em todo Brasil. (idem:101) Se h um certo exagero na afirmao de Elton, inegvel que o Zicartola foi um marco importante para o samba e, especialmente, para Paulinho. Deve-se somar essa importncia ao agitado clima poltico e ideolgico da poca, que trazia tona mais uma vez a discusso sobre a identidade nacional e sobre a autenticidade das manifestaes culturais. Alm disso, nessa poca que a televiso instala-se definitivamente

47 no Brasil, solidificando de forma irrevogvel a massificao que marcaria a indstria cultural desde ento. Em 1965, a TV Excelsior de So Paulo inaugurava a era dos festivais, organizando o I Festival de Msica Popular Brasileira, que nos anos seguintes viriam a ser realizados na Record (Coutinho, 1999:117). Os festivais que no se restringiam aos promovidos pela TV, mas se proliferaram pelo pas eram uma oportunidade mpar para jovens artistas como Paulinho da Viola, de divulgarem o seu trabalho. Neste perodo, vrios compositores que se tornariam dolos da MPB lanaram suas carreiras a partir dos festivais: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros. Paulinho ir participar do festival de 1966, tirando terceiro lugar com a Cano para Maria, em parceria com o tropicalista Capinam. Entre 65 e 66, alis, o jovem artista se divide entre os espetculos do Rosa de Ouro, as noitadas no Zicartola, os encontros da ala de compositores da Portela da qual se tornou presidente e a gravao de seu primeiro LP, em parceira com Elton Medeiros, intitulado Samba na Madrugada. Ainda em 1966, compe um samba-enredo para o desfile da Portela, Memrias de um sargento de milcias, com o qual a escola sagra-se campe. Sua importncia cresce em Madureira e no cenrio do samba carioca. Em 1968 lana o seu primeiro LP solo, intitulado Paulinho da Viola pela gravadora EMI-Odeon. Sua carreira comercial explode em 1970, empurrada pelo grande sucesso de um compacto que trazia de um lado o samba Foi um rio que passou em minha vida e do outro, a moderna Sinal fechado7. No mesmo ano, Paulinho participa de um marco importante na histria das gravaes de samba, produzindo o LP Portela, passado de glria, no qual ele rene compositores antigos da escola, gravando algumas canes do grupo.

7 A cano Sinal Fechado tirou 1 lugar no V Festival da MPB, promovido pela TV Record, em 1969. Em 1974, Chico Buarque a gravou como faixa-ttulo de seu LP, tonando-a conhecida do grande pblico.

48 O LP no teve uma grande divulgao, mas a idia de gravar os sambas da escola o repertrio especfico da agremiao, com todas suas simbologias fez aumentar consideravelmente o j grande prestgio de Paulinho no meio do samba. A inteno do disco, conforme consta no texto do seu encarte, assinado por Paulinho, era de reunir o maior nmero possvel de obras inditas dessas figuras maravilhosas, que influram direta ou indiretamente na criao da escola, de dar uma idia ao pblico de sua importncia (Paulinho da Viola, 9/7/1970). Note que havia uma preocupao de Paulinho de apresentar ao pblico as obras dos compositores da Portela. Paulinho estava exercendo assim o seu papel de mediador, transpondo para o mercado do disco o repertrio de sambas da Escola depositrio de grande importncia simblica. Registrando em disco a memria musical coletiva da comunidade portelense, Paulinho da Viola cria a instituio Velha Guarda da Portela, conferindo quele grupo de sambistas uma fora e uma significao que at ento ele no possua. (Coutinho, 1999:189) Como consequncia desta intermediao, Paulinho se torna padrinho da Velha Guarda, que por sua vez assume a representao de guardi de um passado, de uma histria, de determinados valores e sentimentos. A dcada de 70 foi boa para o samba.Tendo ainda como figura principal o mestre Cartola, coadjuvado por Nelson Cavaquinho e diversos bambas como Paulinho da Viola, Martinho da Vila e Elton Medeiros, vindos da dcada de sessenta, o samba marca presena no perodo [de 1973 a 1985], salientando-se entre seus intrpretes Clara Nunes, Alcione, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro e Joo Nogueira, os dois ltimos tambm compositores. (Severiano & Homem de Mello, 1999:187)

Neste perodo, Paulinho lana praticamente um disco por ano, consolidando de forma inequvoca uma posio de destaque na msica popular brasileira comercial.

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3..3 UM IINCIIO POR ACASO 3 3 UM N C O POR ACASOEm suas declaraes imprensa, Paulinho destaca que o incio de sua carreira se deu por acaso. Com frequncia ele afirma que no pensava em se tornar msico profissional e que as coisas foram acontecendo de maneira natural.Eu nem tava pensando nisso, meu negcio era chegar l no Zicartola em 64 para jantar e tocar. (Manchete, 21/01/84) Meus projetos de vida eram outros. Estava me preparando para fazer vestibular, no tinha idia de ser cantor ou compositor. (citado em Arley Pereira, 1996:4) Mas ento eu comecei a me envolver com o samba e acabei gravando msica, algumas minhas, sem quase me dar conta do que estava acontecendo. (Revista Manchete, 21/01/84)

Esse sentimento de naturalidade ou de que as coisas aconteceram sem ele se dar conta atestado tambm por seu pai: Ele ficava ouvindo, quietinho. Nunca pensei que se tornaria msico. (Csar Faria, Revista Veja, 2/4/97) Essa viso do cancionista sobre seu trabalho refora a idia de que sua msica resultado de uma slida bagagem de referncias musicais e paramusicais. Sobre o LP Memrias, lanado em 1977, ele declararia:Este disco tem mais o significado de reviver minhas memrias de infncia, das coisas que vivi, das reunies que meu pai fazia em casa. As pessoas se reuniam ali para tocar samba, choro, para cantar. (Revista Veja, 12/1/77)

Sua carreira vista como uma consequncia destas experincias, que, por sua vez, retornam regularmente em suas composies. Sua profissionalizao e xito comercial parecem ser uma surpresa para Paulinho, que na poca queria apenas jantar e tocar. Por outro lado, no podemos ignorar que havia, na poca do surgimento de Paulinho como artista, uma srie de fatores que favoreciam seu estabelecimento no mercado da msica. Mais do que isso, podemos afirmar que Paulinho estava no lugar certo e na hora certa e soube potencializar esses f