Texto Complementar - Tema 2 - Cristo se refere ao Princípio

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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo 2010 ____________________________________________________ 1 1 Cristo se Refere ao “PrincípioIntrodução 1. As catequeses do papa João Paulo II iniciam-se com o cicloonde o Papa volta sua atenção, junto com as palavras de Cristo, para o “Princípio”, refletindo sobre os capítulos iniciais do livro do Gênesis. Esse ciclo consiste de 23 audiências gerais, proferidas entre 5 de setembro de 1979 e 2 de abril de 1980. 2. Esse tema integra a primeira grande parte da Teologia do Corpo, onde o Papa traça uma “adequada antropologia”, uma “visão integral do ser humano”. Os temas seguintes, que completam essa primeira parte, serão vistos nos próximos textos: “Cristo se Refere ao Coração Humano”, e “Cristo se refere à Ressurreição”. 3. O Papa sempre inicia cada ciclo de catequeses com as palavras de Cristo porque Cristo revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime (Gaudium et Spes 22). As palavras de Cristo 4. As palavras de Cristo que servem como base para este ciclo de catequeses são retiradas de Mateus 19, 3-8: “Alguns fariseus aproximaram-se de Jesus e, para experimentá-lo, perguntaram: “É permitido ao homem despedir sua mulher por qualquer motivo?” Ele respondeu: “Nunca lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e disse: „Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois formarão uma só carne‟? De modo que eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe”. Perguntaram: “Como então Moisés mandou dar atestado de divórcio e despedir a mulher?” Jesus respondeu: “Moisés permitiu despedir a mulher, por causa da dureza do vosso coração. Mas não foi assim desde o princípio.5. A partir daqui, citamos trechos das próprias catequeses do Papa. O arranjo das citações procura seguir uma ordem lógica, que permita a compreensão dos principais pontos, e a ligação entre eles. Alguns comentários podem ser adicionados, para facilitar a compreensão. Em cada citação segue-se a respectiva referência, de acordo com a numeração seguida pela tradução de Michael Waldstein (ver tabela específica entregue no início do curso). O que Significa o “Princípio”? 6. Jesus, na sua resposta aos fariseus, evita se embrenhar em controvérsias jurídicas ou casuísticas; em vez disso, faz referência duas vezes ao "princípio". "Princípio" significa, portanto, aquilo de que fala o Livro do Gênesis. (TdC 1) 7. Na presente análise procuramos, sobretudo, tomar em consideração o aspecto da subjetividade humana. (TdC 18) 9. A primeira narrativa da criação do homem é cronologicamente posterior à segunda. O conteúdo da primeira narrativa da criação do homem, embora cronologicamente posterior, tem sobretudo um caráter teológico. (TdC 2) 10. Nessa primeira narrativa, a criação do homem se diferencia da obra anterior de Deus. A criação O Papa explica agora os dois relatos da Criação. O primeiro relato está em Gênesis capítulo 1. Trata-se do ciclo de sete dias em que houve a criação do mundo, na qual o ser humano é criado no último dia, “à imagem e semelhança de Deus. O segundo relato está em Gênesis capítulo 2. Ele descreve a criação do homem a partir “do vivificado com o “sopro de Deus”, bem como a criação da mulher a partir da “costela” de Adão.

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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo – 2010 ____________________________________________________ 1

1

Cristo se Refere ao “Princípio”

Introdução

1. As catequeses do papa João Paulo II iniciam-se

com o “ciclo” onde o Papa volta sua atenção,

junto com as palavras de Cristo, para o

“Princípio”, refletindo sobre os capítulos iniciais

do livro do Gênesis. Esse ciclo consiste de 23

audiências gerais, proferidas entre 5 de setembro

de 1979 e 2 de abril de 1980.

2. Esse tema integra a primeira grande parte da

Teologia do Corpo, onde o Papa traça uma

“adequada antropologia”, uma “visão integral do

ser humano”. Os temas seguintes, que completam

essa primeira parte, serão vistos nos próximos

textos: “Cristo se Refere ao Coração Humano”, e

“Cristo se refere à Ressurreição”.

3. O Papa sempre inicia cada ciclo de catequeses

com as palavras de Cristo porque “Cristo revela o

homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação

sublime ” (Gaudium et Spes 22).

As palavras de Cristo

4. As palavras de Cristo que servem como base

para este ciclo de catequeses são retiradas de

Mateus 19, 3-8:

“Alguns fariseus aproximaram-se de Jesus e,

para experimentá-lo, perguntaram: “É permitido

ao homem despedir sua mulher por qualquer

motivo?” Ele respondeu: “Nunca lestes que o

Criador, desde o princípio, os fez homem e

mulher e disse: „Por isso, o homem deixará pai e

mãe e se unirá à sua mulher, e os dois formarão

uma só carne‟? De modo que eles já não são dois,

mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o

homem não separe”. Perguntaram: “Como então

Moisés mandou dar atestado de divórcio e

despedir a mulher?” Jesus respondeu: “Moisés

permitiu despedir a mulher, por causa da dureza

do vosso coração. Mas não foi assim desde o

princípio.”

5. A partir daqui, citamos trechos das próprias

catequeses do Papa. O arranjo das citações

procura seguir uma ordem lógica, que permita a

compreensão dos principais pontos, e a ligação

entre eles. Alguns comentários podem ser

adicionados, para facilitar a compreensão. Em

cada citação segue-se a respectiva referência, de

acordo com a numeração seguida pela tradução de

Michael Waldstein (ver tabela específica entregue

no início do curso).

O que Significa o “Princípio”?

6. Jesus, na sua resposta aos fariseus, evita se

embrenhar em controvérsias jurídicas ou

casuísticas; em vez disso, faz referência duas

vezes ao "princípio". "Princípio" significa,

portanto, aquilo de que fala o Livro do Gênesis.

(TdC 1)

7. Na presente análise procuramos, sobretudo,

tomar em consideração o aspecto da subjetividade

humana. (TdC 18)

9. A primeira narrativa da criação do homem é

cronologicamente posterior à segunda. O

conteúdo da primeira narrativa da criação do

homem, embora cronologicamente posterior, tem

sobretudo um caráter teológico. (TdC 2)

10. Nessa primeira narrativa, a criação do homem

se diferencia da obra anterior de Deus. A criação

O Papa explica agora os dois relatos da Criação. O primeiro relato está em Gênesis capítulo 1. Trata-se do ciclo de sete dias em que houve a

criação do mundo, na qual o ser humano é criado no último dia, “à imagem e semelhança

de Deus. O segundo relato está em Gênesis capítulo 2. Ele descreve a criação do homem a

partir “do pó” vivificado com o “sopro de Deus”, bem como a criação da mulher a partir

da “costela” de Adão.

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2

do ser humano é precedida por uma solene

introdução (“Deus disse: „Façamos o ser humano

à nossa imagem e segundo nossa semelhança‟” –

Gen 1, 26), como se fosse o caso de Deus estar

deliberando antes desse importante ato. E, acima

de tudo, a excepcional dignidade da pessoa

humana é realçada pela “semelhança” com Deus.

(TdC 2)

11. O primeiro relato é conciso, livre de qualquer

traço de subjetivismo, mas contém em si um

poderoso conteúdo metafísico. O primeiro

capítulo do Gênesis formou a base sólida para

uma metafísica e também para uma antropologia e

uma ética, segundo a qual "ens et bonum

convertuntur" (o ser e o bem convergem). (TdC 2)

12. O segundo relato da criação está no capítulo 2

do Gênesis, e constitui, de certo modo, a mais

antiga descrição e registro da auto-compreensão

do homem e, juntamente com o capítulo 3º, é o

primeiro testemunho da consciência humana. Esse

relato nos maravilha com a sua profundidade de

natureza sobretudo subjetiva, e portanto, em certo

sentido, psicológica. (TdC 3)

1º Relato da Criação 2º Relato da Criação

Deus é chamado

“Elohim”

(texto elohista)

Deus é chamado

“Javé” (texto javista)

Caráter metafísico e

teológico

Caráter subjetivo,

psicológico, e mítico1

Sete dias da criação,

ser humano criado “à

imagem e semelhança

de Deus”

Homem criado do pó,

mulher criada da

costela do homem

Cronologicamente

posterior

Cronologicamente

anterior

O ser humano não é

criado de acordo com

a sucessão natural

Mais antigo relato da

consciência humana

13. A Bíblia chama o primeiro ser humano

“homem” („ādām = “humanidade”). Depois do

momento da criação da primeira mulher, começa a

chamar o homem “varão”, „îš (pronuncia-se

“eesh”), em relação à „îššā (pronuncia-se

“eeshsha”), que significa mulher, porque foi

tirada do homem-varão. (TdC 3)

1 Mito é entendido aqui como um símbolo constituído de

elementos de realidade, com o propósito de apresentar o

absoluto e o transcendente. Não se refere a um conteúdo

fictício-fabuloso, mas simplesmente é um modo arcaico de

expressar um conteúdo mais profundo. (TdC 8)

Voltando ao “Princípio”

14. Gênesis capítulo 3 inicia a narrativa da

primeira queda do homem e da mulher, ligada

com a árvore misteriosa, que já antes fora

chamada “árvore do conhecimento do bem e do

mal”. A primeira situação é de inocência original

(estado “original”), e a segunda situação, pelo

contrário, é aquela em que o homem, depois de

transgredir o mandamento do Criador por

sugestão do espírito maligno simbolizado pela

serpente, se encontra, de certo modo, dentro do

conhecimento do bem e do mal

(estado”histórico”). Quando Cristo, referindo-se

ao "princípio", dirige a atenção dos fariseus para

as palavras escritas em Gênesis, ordena-lhes, em

certo sentido, que ultrapassem os limites

existentes entre a primeira e a segunda situação do

homem. Isso significa que a ordem inicial em que

Deus criou o homem não perdeu sua força, ainda

que o homem tenha perdido a inocência primitiva

(TdC 3)

15. As palavras de Cristo, que se referem ao

"princípio", permitem-nos encontrar no homem

certa continuidade essencial e um laço entre estes

dois estados diversos ou duas dimensões do ser

humano. Em todo homem, sem exceção, o estado

"histórico" tem suas raízes profundamente na sua

"pré-história" teológica, que é o estado da

inocência original. Mas o ser humano não está só

fechado, pela sua pecaminosidade, à inocência

original, mas ao mesmo tempo ele está aberto para

o mistério da redenção, que se realizou em Cristo

e por meio de Cristo. É a perspectiva da redenção

do corpo que assegura a continuidade e a unidade

entre o estado de pecado do homem e a sua

inocência original. (TdC 4)

A partir de agora veremos seis conceitos fundamentais do “princípio”: a solidão original,

a unidade original, a nudez original, o significado esponsal do corpo, a inocência

original, e o ciclo “conhecimento-procriação”. Eles constituem e explicam a condição humana

no “princípio”. Lembre-se que cada aspecto desses não ficou perdido na nossa “pré-história” teológica, antes do pecado original. Apesar de

termos perdido de forma irremediável esse estado de inocência original, guardamos ainda

um “eco” dele em nosso coração. Como vimos, isso é possível através da redenção do corpo, que

Cristo veio nos trazer.

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A Solidão Original

16. “E o Senhor Deus disse: „Não é bom que o

homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que

lhe corresponda‟” (Gen 2, 18).

17. É significativo que o primeiro homem

(„ādām), criado do "pó da terra", só depois da

criação da primeira mulher seja definido como

“varão” ou “macho” („îš). Assim, portanto,

quando Deus-Javé pronuncia as palavras a

respeito da solidão, refere-as à solidão do "ser

humano" (tanto o homem quanto a mulher)

enquanto tal, e não só à do “macho” ou “varão”.

Essa solidão tem 2 significados: um que deriva da

própria criatura do homem, isto é, da sua

humanidade (o que é evidente na narrativa de Gn

2), e o outro que deriva da relação macho-fêmea,

o que é evidente, de certo modo, com base no

primeiro significado. (TdC 5)

18. “Então o Senhor Deus formou da terra todos

os animais selvagens e todas as aves do céu, e

apresentou-os ao homem para ver como os

chamaria; cada ser vivo teria o nome que o

homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os

animais domésticos, a todas as aves do céu e a

todos os animais selvagens, mas não encontrou

uma auxiliar que lhe correspondesse.” (Gen 2,

19-20)

19. O primitivo significado da solidão original do

homem é definido em função de um "teste"

específico, ou de um exame a que o homem é

submetido diante de Deus (e em certo modo

também diante de si mesmo). Graças a esse

"teste", o homem toma consciência da própria

superioridade, quer dizer, de não poder colocar-se

em igualdade com nenhuma outra espécie de ser

vivo sobre a terra. Portanto, o ser humano criado

encontra-se, desde o primeiro momento da sua

existência, diante de Deus, em busca da própria

"identidade". A solidão significa também a

subjetividade do homem, a qual se forma através

do autoconhecimento. O homem está só, porque é

"diferente" do mundo visível, do mundo dos seres

vivos. (TdC 5)

20. O homem está "só": isto quer dizer que,

através da própria humanidade, através daquilo

que ele é, o homem é constituído em uma relação

com o próprio Deus que é única, exclusiva e

irrepetível. Pode-se afirmar com certeza que o

homem assim constituído tem o conhecimento e a

consciência do sentido do próprio corpo. E isto

baseado na experiência da solidão original. (TdC

6)

A Unidade Original

21. “Então o Senhor Deus fez vir sobre o homem

um profundo sono, e ele adormeceu. Tirou-lhe

uma das costelas e fechou o lugar com carne.

Depois, da costela tirada do homem, o Senhor

Deus formou a mulher e apresentou-a ao

homem.” (Gen 2, 21-22)

22. O homem („ādām) cai em um „profundo sono‟

ou „torpor‟ para acordar "macho" („îš) e "fêmea"

(„îššā). Talvez a analogia do “profundo sono”

indique aqui um retorno específico ao “não-ser”,

ou a momento que antecede a criação, para que o

"homem" solitário possa, por iniciativa criadora

de Deus, ressurgir daquele momento na sua dupla

unidade de macho e fêmea. De todo modo, à luz

do contexto de Gênesis 2, não há dúvida que o

homem cai nesse "profundo sono" com o desejo

de encontrar um ser semelhante a si. (TdC 8)

23. “E o homem exclamou: „Desta vez sim, é osso

dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será

chamada „humana‟ porque do homem foi tirada‟”

(Gen 2, 23). Deste modo o homem (macho)

manifesta pela primeira vez alegria e até mesmo

exultação, de que anteriormente não tinha motivo,

por causa da falta de um ser semelhante a si. (TdC

8)

24. O significado da unidade original do homem,

através da masculinidade e da feminilidade, se

expressa como uma ultrapassagem dos limites da

solidão, e ao mesmo tempo como afirmação –

para ambos – de tudo na solidão que constitui o

"ser humano". A comunhão das pessoas só podia

se formar com base em uma "dupla solidão" do

homem e da mulher, ou seja, como encontro em

sua mesma “distinção” do mundo dos seres vivos.

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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo – 2010 ____________________________________________________ 4

4

(...) O homem se tornou "imagem e semelhança"

de Deus não só mediante a própria humanidade,

mas ainda mediante a comunhão de pessoas, que

o homem e a mulher formam desde o

“princípio”. O homem torna-se imagem de Deus

não tanto no momento da solidão quanto no

momento da comunhão, (...) como imagem de

uma imperscrutável comunhão divina de

Pessoas. (TdC 9)

25. A busca da identidade humana daquele que no

princípio está "só", deve passar sempre pela

dualidade, através da "comunhão". (TdC 10)

26. A unidade, de que fala Gênesis 2, 24 ("os

dois serão uma só carne"), é sem dúvida aquela

que se expressa e se realiza no ato conjugal.

(TdC 10)

27. Quando se unem entre si (no ato conjugal) tão

intimamente, que se tornam "uma só carne", o

homem e a mulher redescobrem, a cada vez e de

modo especial, o mistério da criação. Voltam,

assim, àquela união na mesma humanidade ("osso

dos meus ossos e carne da minha carne"), que lhes

permite reconhecerem-se reciprocamente e

chamarem-se pelo nome, como fizeram da

primeira vez. Isto significa reviver, em certo

sentido, o original valor virginal do homem, que

deriva do mistério da sua solidão diante de Deus e

no meio do mundo. (TdC 10)

28. O ato conjugal expressa uma sempre nova

superação do limite da solidão do homem. Esta

superação sempre implica, de certo modo, que a

pessoa assume a solidão do corpo do segundo

"eu", como sua própria. (TdC 10)

29. Criados à imagem de Deus também na medida

em que formam autêntica comunhão de pessoas, o

primeiro homem e a primeira mulher devem

constituir o início e o modelo dessa comunhão

para todos os homens e mulheres que, em

qualquer época, se unem entre si tão intimamente

que formam "uma só carne". (TdC 10)

A Nudez Original

30. “O homem e sua mulher estavam nus, mas não

se envergonhavam.” (Gen 2, 25)

31. O significado da nudez original, que é

claramente realçado no contexto de Gênesis, não é

coisa acidental. Pelo contrário, forma

precisamente a chave para a sua plena e completa

compreensão. O texto de Gênesis 2, 25 exige

expressamente que se liguem as reflexões sobre a

teologia do corpo com a dimensão da

subjetividade pessoal do homem. A frase, segundo

a qual os primeiros seres humanos, homem e

mulher “estavam nus” mas “não se

envergonhavam”, descreve indubitavelmente o

estado de consciência de ambos. (TdC 11)

32. Devemos nos perguntar se é possível

reconstruir, de algum modo, o significado original

da nudez. Isto parece possível, se tomarmos como

ponto de referência a experiência da vergonha

como uma experiência "limítrofe" (TdC 11). Na

experiência da vergonha (ou pudor), o ser humano

experimenta medo em face do "segundo eu"

(assim, por exemplo, a mulher diante do homem),

e isso é substancialmente medo quanto ao próprio

"eu". Com a vergonha, o ser humano manifesta

"instintivamente" a necessidade da afirmação e da

aceitação deste "eu" de acordo com o seu justo

valor. (TdC 12)

33. Devemos estabelecer, primeiramente, que se

trata de verdadeira não-presença da vergonha, e

não de uma falta ou subdesenvolvimento dela. As

palavras “não se envergonhavam” servem para

indicar a plenitude de compreensão do significado

do corpo, ligada ao fato de “estarem nus”. (TdC

12)

34. “E Deus viu tudo quanto havia feito e achou

que era muito bom.” (Gen 1, 31). A “nudez”

significa a bondade original da visão divina.

Significa toda a simplicidade e plenitude dessa

visão, que mostra o valor "puro" do homem como

macho e fêmea, o valor puro do corpo e do [seu]

sexo. Vendo-se reciprocamente, como que através

do mistério mesmo da criação, o homem e a

mulher vêem-se a si mesmos mais plena e mais

distintamente do que através do próprio sentido da

visão, isto é, através dos olhos do corpo. Vêem-se,

de fato, e conhecem-se a si mesmos com toda a

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paz do olhar interior, que cria precisamente a

plenitude da intimidade das pessoas. Se a

"vergonha" traz consigo uma específica limitação

do ver mediante os olhos do corpo, isto acontece

acima de tudo porque a intimidade pessoal é como

que perturbada e quase "ameaçada" por tal visão.

(...) O significado original da nudez corresponde à

simplicidade e plenitude da visão, em que a

compreensão do significado do corpo nasce quase

no coração mesmo da sua comunidade-comunhão.

Chamaremos esse significado de “esponsal”. (TdC

13)

O Significado Esponsal do Corpo

35. A dimensão do “dom” é decisiva para a

verdade essencial e a profundidade de significado

da solidão-unidade-nudez original. A leitura dos

primeiros capítulos do Livro do Gênesis nos

introduz no mistério da criação, isto é, do início

do mundo por vontade de Deus, que é onipotência

e amor. Por conseguinte, toda a criatura traz em si

o sinal do “dom” original e fundamental. (TdC

13)

36. Mas devemos observar que, até nesta situação

de felicidade original, o mesmo Criador (Deus

Javé) e depois também o "homem", em vez de

sublinharem o aspecto do mundo criado para o

homem como dom subjetivamente beatífico,

fazem notar que o homem está "só". De fato,

nenhum dos seres vivos (animais) oferece ao

homem as condições básicas que tornariam

possível ao homem existir em uma relação de dom

recíproco. "Sozinho" o homem não realiza

totalmente a sua essência. Ele só a realiza

existindo "com alguém" – e, ainda mais profunda

e completamente, existindo "para alguém".

Atravessando a profundidade da solidão original,

o homem surge agora na dimensão do dom

recíproco, cuja expressão – que por isso mesmo é

expressão da sua existência como pessoa – é o

corpo humano em toda a verdade original da sua

masculinidade e feminilidade. O corpo, que

exprime a feminilidade "para" a masculinidade e,

vice-versa, a masculinidade "para" a feminilidade,

manifesta a reciprocidade e a comunhão das

pessoas. Este é o corpo: uma testemunha que a

criação é fundamentalmente um dom, e portanto

uma testemunha de que o Amor é a fonte da qual

brota esse mesmo “doar-se”. (TdC 14)

37. O corpo humano, com o seu sexo – a sua

masculinidade e feminilidade – visto no próprio

mistério da criação, é não só fonte de fecundidade

e de procriação, como em toda a ordem natural,

mas encerra desde "o princípio" o atributo

"esponsal", isto é, a capacidade de expressar

amor: exatamente aquele amor em que a pessoa

humana se torna um dom e – mediante este dom –

realiza o próprio sentido do seu ser e existir.

Recordamos agora o texto do último Concílio,

onde se declara que o homem é a única criatura no

mundo visível que Deus quis "por si mesma",

acrescentando que esse homem "não se pode

encontrar plenamente a não ser no sincero dom de

si mesmo" [Gaudium et spes, 24, 3]. (TdC 15)

38. No primeiro encontro beatífico, o homem

assim encontra a mulher e ela encontra-o a ele.

Deste modo ele acolhe-a interiormente; acolhe-a

assim como ela é querida "por si mesma" pelo

Criador, como é constituída no mistério da

imagem de Deus por meio da sua feminilidade

(ou seja, única e irrepetível, escolhida pelo eterno

Amor). E, reciprocamente, ela acolhe-o a ele do

mesmo modo, como ele é querido "por si mesmo"

pelo Criador e por Ele constituído mediante a sua

masculinidade. Nisto consiste a revelação e a

descoberta do significado "esponsal" do corpo.

A narrativa javista, e em particular Gênesis 2, 25,

permite-nos deduzir que o homem e a mulher

entram no mundo exatamente com esta

consciência do significado do próprio corpo, da

sua masculinidade e feminilidade. (TdC 15)

39. A perspectiva "histórica" (depois do pecado

original), se construirá de modo diverso do que

era no "princípio" beatífico. Mas nela o homem

não deixará de conferir um significado esponsal

ao próprio corpo. Mesmo que esse significado

sofra e venha a sofrer muitas distorções, ele

sempre permanecerá o nível mais profundo, que

exige ser sempre revelado em toda a sua

simplicidade e pureza, e se manifestar em toda a

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3º Curso Virtual de Teologia do Corpo – 2010 ____________________________________________________ 6

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sua verdade, como sinal da "imagem de Deus".

Por aqui passa também o caminho que leva do

mistério da criação à “redenção do corpo”. (TdC

15)

A Inocência Original

40. Essa inocência pertence à dimensão da graça

contida no mistério da criação, isto é, àquele

misterioso dom oferecido ao íntimo do homem –

ao "coração" humano – que permite a ambos,

homem e mulher, existirem desde o "princípio" na

recíproca relação do dom desinteressado de si

mesmos. A inocência original é, portanto, o que

"radicalmente", isto é, nas suas próprias raízes,

exclui a vergonha do corpo na relação entre

homem e mulher, que elimina a necessidade dessa

vergonha em ambos, em seu coração, ou

consciência. A consciência beatífica do

significado do corpo – isto é, do significado

esponsal da masculinidade e da feminilidade

humanas – é condicionada pela inocência original.

Parece não haver nenhum impedimento para

entender aqui a inocência original como uma

especial "pureza de coração". (TdC 16)

41. Reduzir o ser humano (o homem para a

mulher e a mulher para o homem) interiormente a

puro "objeto para mim", deve assim assinalar o

princípio da vergonha. Esta, na verdade,

corresponde a uma ameaça feita ao dom na sua

intimidade pessoal, e testemunha o desabar

interior da inocência e da experiência recíproca

(TdC 17). Se o homem e a mulher deixam de ser

reciprocamente um dom desinteressado, como o

eram um para o outro no mistério da criação,

então reconhecem que "estão nus". É então que a

vergonha acerca da nudez nasce neles, uma

vergonha que não sentiram no estado de inocência

original. A inocência original manifesta e ao

mesmo tempo constitui o “ethos” perfeito do dom.

(TdC 18)

42. Depois do pecado original, o homem e a

mulher perderam a graça da inocência original. A

descoberta do significado esponsal do corpo deixa

de ser para eles uma simples realidade da

revelação e da graça. Todavia, esse significado

ficará como dever imposto ao homem pelo ethos

do dom, inscrito no fundo do coração humano

como eco longínquo da inocência original. (TdC

19)

43. Assim, nesta dimensão, constitui-se um

sacramento primordial, entendido como sinal que

transmite eficazmente ao mundo visível o mundo

invisível oculto em Deus desde a eternidade. E

este é o mistério da Verdade e do Amor, o

mistério da vida divina, da qual o homem

participa realmente. Na história do homem, é a

inocência original que inicia esta participação e é

também fonte da felicidade original. O

sacramento, como sinal visível, constitui-se com

o homem, enquanto "corpo", mediante a sua

"visível" masculinidade e feminilidade. O corpo,

de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é

invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para

transferir para a realidade visível do mundo o

mistério oculto desde a eternidade em Deus, e

assim ser sinal d'Ele. Esse sacramento primordial

provém da fonte divina da santidade, e ao mesmo

tempo é instituído para a santidade. (TdC 19)

“Conhecimento” e Procriação

44. Em Gênesis 4, e portanto ainda no âmbito do

texto javista, lemos: “O homem se uniu a Eva, sua

mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, dizendo:

„Ganhei um homem com a ajuda do Senhor‟”

(Gen 4, 1). Não deixa de ter significado que a

situação em que marido e mulher se unem tão

intimamente entre si a ponto de formar "uma só

carne" tenha sido definida como "conhecimento".

Deste modo, na verdade, é da pobreza mesma da

linguagem que parece deduzir-se uma

profundidade específica de significado. Quando

fala aqui de "conhecimento", mesmo que apenas

por causa da pobreza de sua língua, a Bíblia indica

a essência mais profunda da realidade da

convivência matrimonial. Isto autoriza-nos, em

certo sentido, a afirmar que "o marido conhece a

mulher" ou que ambos "se conhecem"

reciprocamente. Então eles revelam-se um ao

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outro com aquela específica profundidade do

próprio "eu" humano, que por sinal se revela

também mediante os sexos, masculinidade e

feminilidade. (TdC 20)

45. Já desde agora, porém, é preciso verificar que,

no "conhecimento", de que fala Gênesis 4, 1, o

mistério da feminilidade se manifesta e revela em

toda sua profundidade mediante a maternidade,

como diz o texto: "concebeu e deu à luz". A

mulher apresenta-se diante do homem como mãe,

sujeito da nova vida humana, que nela é

concebida e se desenvolve, e dela nasce para o

mundo. Assim se revela também em toda

profundidade o mistério da masculinidade do

homem, isto é, o significado gerador e "paterno"

do seu corpo. (...) A procriação faz com que "o

homem e a mulher (sua esposa)" se conheçam

reciprocamente no "terceiro", originado de ambos.

(TdC 21)

46. A consciência do significado do corpo e a

consciência do seu significado generativo entram

em contato, no homem, com a consciência da

morte. Todavia, sempre volta na história do

homem o ciclo do "conhecimento-procriação", em

que a vida luta, sempre de novo, com a inexorável

perspectiva da morte, e sempre a domina. Apesar

de todas as experiências da própria vida, apesar

dos sofrimentos, das desilusões, de sua

pecaminosidade, e apesar da perspectiva

inevitável da morte, o ser humano coloca sempre

de novo o "conhecimento" no "início" da

"geração"; desse modo ele parece participar

naquela primeira "visão" do próprio Deus: o

Criador "viu tudo..., e achou que era muito bom".

(TdC 22)

Conclusão

47. Penso que entre as respostas que Cristo daria

aos homens do nosso tempo e às suas

interrogações, muitas vezes tão impacientes, seria

ainda fundamental a que deu aos fariseus.

Respondendo àquelas interrogações, Cristo iria se

referir antes de qualquer coisa ao "princípio". É a

resposta através da qual entrevemos a própria

estrutura da identidade humana nas dimensões do

mistério da criação e, ao mesmo tempo, na

perspectiva do mistério da redenção. O estudo

destes capítulos, talvez mais do que o de outros,

torna-nos conscientes do significado e da

necessidade da "teologia do corpo". O fato de a

teologia compreender também o corpo não deve

maravilhar nem surpreender ninguém que seja

consciente do mistério e da realidade da

Encarnação. Pelo fato de o Verbo de Deus se ter

feito carne, o corpo entrou, eu diria, pela porta

principal da teologia, isto é, na ciência que tem

por objeto a divindade. (TdC 23)

48. Quanto é necessária uma precisa consciência

do significado esponsal do corpo, do seu

significado gerador – dado que tudo isto, que

forma o conteúdo da vida dos esposos, deve

encontrar constantemente a sua dimensão plena e

pessoal na convivência, no comportamento e nos

sentimentos! E isto, ainda mais no contexto de

uma civilização que permanece sob a pressão de

um modo de pensar e de julgar materialista e

utilitário. (TdC 23)

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Perguntas para estudo 1. Falando de divórcio, Jesus nos diz em Mateus 19, 8

que “no princípio não era assim”. Parece-lhe possível

que nós tenhamos sido criados para estar no mundo

não no sofrimento e no pecado, mas na graça e

felicidade beatífica?

2. Qual seu entendimento acerca do significado

esponsal do corpo? Os conhecimentos adquiridos

mudam a percepção da sua própria dignidade

enquanto pessoa humana?

3. Um dos ensinamentos do Concílio Vaticano II diz

que o “homem não pode se encontrar plenamente a

não ser no sincero dom de si mesmo”. O que isso

significa?

4. Tornar-se “uma só carne” refere-se muito mais que

ao encontro de dois corpos. Discuta o conceito de

“comunhão de pessoas” na unidade original.

5. João Paulo II considera a nudez isenta de vergonha

como a chave para entender o plano original de Deus

para o homem e a mulher. Para nos ajudar a entender

porque, discuta as seguintes questões:

a) Porque Adão e Eva não sentiam vergonha da sua

nudez antes do pecado original?

b) O que significava a nudez deles?

c) Como Adão e Eva experimentavam o desejo sexual

antes do pecado original?

d) Com base no que foi visto até agora, como o

desejo sexual pode ter mudado depois do pecado

original?

(Sugere-se enviar as respostas para [email protected]) ____________________________________________

© Texto elaborado pela equipe Teologia do Corpo - Brasil

exclusivamente para fins didáticos, contendo trechos das

catequeses do Papa. As citações das catequeses TdC seguem

a numeração de Michael Waldstein (ver quadro de referência

em separado) As citações bíblicas são da tradução da CNBB.