TEXTO - Do Estado Social Ao Estado Penal - Invertendo o Discurso Da Ordem
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5/28/2018 TEXTO - Do Estado Social Ao Estado Penal - Invertendo o Discurso Da Ordem
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Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem*
Katie Argello**
Sumrio: 1. Introduo; 2. Liberdade apenas aos mercados; 2.1. Insegurana difusa; 3. Hipertrofia doEstado penal; 4. Enfoque criminolgico-crtico; 4.1. Finalidades subjacentes ao crcere; 4.2. Fbricas deexcluso; 5. Da poltica penal poltica de defesa dos direitos fundamentais.
1Introduo
Nas ltimas dcadas, houve um recrudescimento das estratgias de segregao punitiva
do Estado em quase todos os pases ocidentais, notadamente na Inglaterra e nos Estados Unidos.
As medidas que configuram tal postura so pouco originais e singularmente violentas:
condenaes mais severas, encarceramento massivo, leis que estabelecem condenaes
obrigatrias mnimas e perpetuidade automtica no terceiro crime (three strikes and youre
out), estigmatizao penal, restries liberdade condicional, leis que autorizam prises de
segurana mxima, reintroduo de castigos corporais, multiplicao de delitos aos quais so
aplicveis pena de morte, encarceramento de crianas (aplicao de legislao criminal adulta
aos menores de 16 anos), polticas de tolerncia zero, etc. Enfim, so legislaes que nada
mais expressam do que o desejo de vingana orquestrado pelo velho discurso da lei e da
ordem. Sob o enunciado da proteo ofertada aos cidados de bem, oculta-se a impotncia
dos governantes em face da catarse de conflitos e tenses aos quais eles no podem (ou no esto
dispostos a) responder seno atravs de uma justificativa meramente retrica opinio pblica,
criando uma falsa idia de unidade diante de um inimigo interno personificado na figura do
outro: selecionado entre os membros dos setores socialmente vulnerveis.1
Na Amrica Latina, a preocupao com a violncia criminal tambm se tornou uma
obsesso coletiva e toma propores que, de to graves, lembram os tempos sombrios das
ditaduras militares, quando a doutrina de segurana nacional legitimava a tortura e todas as
*O presente artigo foi originalmente produzido para a conferncia intitulada Do estado social ao estado penal,
proferida no 1 Congresso Paranaense de Criminologia, realizado em novembro de 2005, em Londrina.
** Professora dos cursos de graduao e ps-graduao em Direito da UFPR e do curso de especializao doInstituto de Criminologia e Poltica Criminal (ICPC). Coordenadora do Grupo de Pesquisas em criminologia crticada UFPR. Doutora em Direito pela Universit Paris VIII (Anthropologie et sociologie du politique). Mestra emDireito pela UFSC.
1Segundo Garland, a segregao punitivaconstitui-se de longos perodos de privao da liberdade em prises semcomodidades, alm de uma persecuo do Estado, atravs da vigilncia e da estigmatizao, daqueles que tenhamsido liberados. GARLAND, David.La cultura del control. Barcelona: Gedisa, 2005, p. 240.
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demais formas de violao dos direitos humanos, em nome da razo de estado. Hoje, no altar
da ideologia da segurana pblica que se tornam facilmente sacrificveis a democracia e os
direitos humanos.
A resposta tecnocrtica ao problema da criminalidade concentra-se nos efeitos do delito
(uma imagem projetada e politizada da vtima, o medo, os custos com a segurana), mais do que
nas razes estruturais (econmicas e sociais) e poltico-ideolgicas da questo. Atacam os
criminosos em vez de atacarem a violncia estrutural(a desigualdade social e a pobreza), razo
da definio e seleo de determinados indivduos como tais, simultaneamente imunizao de
outros, conforme veremos adiante.
Para analisar o tema que aqui se prope, partimos do pressuposto de que o acirramento
dessas tenses resulta das contradies inerentes estrutura social, poltica e econmica das
sociedades contemporneas, ao enfrentarem inmeras crises,2entre as quais destacamos: 1) crisesocioeconmica; 2) crise da poltica; e 3) criseexistencial.3
2 Liberdade apenas aos mercados!
Primeiramente, constata-se uma crise socioeconmica derivada da forma de reproduo e
acumulao do capital no processo de globalizao, cuja concentrao produz desigualdades
abissais.
Essa concentrao/centralizao do capital viabiliza-se, em grande medida, pela
globalizao das instituies bancrias e financeiras, pelo emprego de novas tecnologias para
intensificar as operaes globais, pela utilizao de tecnologias avanadas de comunicao que
tm a potencialidade de duplicar o capital produtivo, de torn-lo altamente mvel.4
O capital busca permanentemente livrar-se dos imperativos que (ainda) possam ser
estabelecidos pelos poderes do Estado-nao, como condio fundamental para sua valorizao.
A ascenso da reproduo e da acumulao do capital, notadamente na sua forma
financeira, no seria possvel, como assinala Chesnais, sem a adoo de formas agressivas de
aumento da produtividade do capital em nvel microeconmico, a comear pela produtividade
do trabalho. A frmula para tal aumento apropriar-se da mais-valia absoluta e relativa de
2O conceito de crise, captado em seu sentido contemporneo, j no apenas um infortnio, mas algo inexorvel condio humana atual: BAUMAN, Zygmunt.Em busca da poltica.Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 151.3Partimos da idia de uma crise existencial (ou da Unsicherheit), nos termos explicitados por: BAUMAN, Zygmunt.
Em busca da poltica.Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 13.4CHESNAIS, Franois.A mundializao do capital. So Paulo: Xam, 1996, p. 81.
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maneira combinada sem apreenses quanto ao aumento brutal do desemprego, ou aos
mecanismos viciosos da conjuntura ditada pelas altas taxas de juros.5
A frmula bem-sucedida do livre mercado pode ser traduzida da seguinte maneira: o
trabalho morto cristalizado no capital (mediante o desenvolvimento tecnolgico) torna o trabalho
vivo desnecessrio.6Segundo os pragmticos milionrios reunidos no luxuoso Hotel Fairmont,
na Califrnia, o futuro da relao entre capital e trabalho pode ser resumido em um par de
nmeros: 20 por 80. Vinte por cento da populao em condies de trabalhar no sculo XXI
bastariam para manter o ritmo da economia do planeta. Alguns desses altos executivos admitem,
com o mais absoluto sarcasmo, que no futuro a questo ser ter o que almoar ou ser
almoado.7
A tendncia geral a de uma acumulao capitalista ainda mais insidiosa, pois a ordem
agora criar condies favorveis confiana dos investidores,8o que Bordieu ironicamentetraduz como solicitar aos trabalhadores o seguinte: abandonem hoje as suas conquistas
sociais, sempre para evitar destruir a confiana dos investidores, em nome do crescimento que
isso nos trar amanh. Uma lgica bem conhecida pelos trabalhadores afetados que, para resumir
a poltica de participao que em outros tempos o gaullismo lhes oferecia, diziam: Voc me d o
seu relgio que eu lhe dou a hora.9
O Estado, portanto, deve limitar-se ao papel de coadjuvante no cenrio de sua prpria
desconstituio: eliminar o sistema de proteo social, controlar os gastos pblicos, reduzir
impostos e taxas, flexibilizar o mercado de trabalho (permitir ao mercado o emprego de um
mnimo de trabalhadores, extraindo-lhes o mximo de produtividade).
A flexibilidadepara o lado da procura de mo-de-obra significa liberdade de ir aonde os
pastos so verdes, deixando o lixo espalhado em volta do ltimo acampamento para os
5CHESNAIS, Franois.A mundializao do capital. So Paulo: Xam, 1996, p. 16-17.6Segundo Mello, quando o capital se desenvolve, a taxa mdia geral de mais-valia tem de ser expressa em umataxa geral cadente de lucro e isto no pela diminuio da explorao do trabalho, e sim pela reduo relativa deseu emprego em face do capital constante aplicado. MELLO, Alex Fiza. Marx e a globalizao. So Paulo:
Boitempo, 1999, p. 170.7MARTIN, Hans-Peter; SCHULMANN, Harald. A armadilha da globalizao. 6. ed. So Paulo: Globo, 1998, p.11.8Segundo o presidente do Banco Central alemo, Hans Tietmeyer, em matria do Le monde, de 17 de outubro de1996: A questo, hoje, criar as condies favorveis para um crescimento duradouro e a confiana dosinvestidores. preciso, portanto, controlar os oramentos pblicos, baixar o nvel das taxas e impostos at chegarema um nvel suportvel a longo prazo, reformar o sistema de proteo social, desmantelar a rigidez do mercado detrabalho, de modo que uma nova fase de crescimento s ser atingida outra vez se ns fizermos um esforo deflexibilizao do mercado de trabalho. BORDIEU, Pierre. Contrafogos.Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 63.9BORDIEU, Pierre. Contrafogos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 66.
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moradores locais limparem; mas a flexibilidade para o lado da oferta de mo-de-obra significa
se lanar a um destino duro, cruel, inexpugnvel: os empregos surgem e somem assim que
aparecem [...], como assinala Bauman.10
O capital continua a franquear as fronteiras, tornando-se cada vez mais voltil, enquanto a
poltica permanece condenada localidade, o que provoca um constante deslocamento na relao
entre poder e poltica.11A dificuldade das instituies existentes em limitar a velocidade com a
qual o capital se movimenta tambm um dos fatores responsveis pelo crescente desinteresse
do eleitorado pela poltica. Conforme adverte Bordieu, talvez seja possvel aferir a raiz da
doena, desconfiana na poltica, se a relacionarmos com a confiana nos mercados
financeiros, que se deseja salvar a qualquer preo.12
2.1 Insegurana difusa
Nesse contexto, vislumbram-se, simultaneamente, a segunda e a terceira crises (da
poltica e a existencial), sobre as quais nos referimos inicialmente. Em face da incapacidade de
apresentar solues aos problemas coletivos,as elites polticas, que j no podem prometer uma
existncia estvel aos seus cidados, podem ao menos desviar o foco das incertezas individuais
sobre como garantir os meios de vida para uma preocupao desatinada com a segurana
pblica. De um ponto de vista estritamente pragmtico, recorrer aos sentimentos vingativos de
indivduos que necessitam ter onde despejar seus temores, sua ira, sua impotncia ou seu
fracasso pode render muitos votos. direita e esquerda, os discursos se assemelham: quase
todos preconizam a construo de mais prises, o aumento do nmero de policiais nas ruas, leis
mais rigorosas, enfim, a implacabilidade com o crime, como se a estivesse a verdadeira raiz de
toda a insegurana que necessita ser extirpada.
Essa uma das razes do triunfo das diretrizes neoliberais na medida em que prossegue
desmantelando as instituies polticas que poderiam em princpio opor resistncia liberdade
do capital: dissemina uma insegurana (ansiedade) difusa, de modo que a natureza mesma dos
problemas a serem enfrentados, como assinala Bauman, constitui-se em um impedimento para
solues coletivas: [...] pessoas que se sentem inseguras, preocupadas com o que lhes reserva o
futuro e temendo pela prpria incolumidade no podem realmente assumir os riscos que a ao
10BAUMAN, Zygmunt. Globalizao. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 112-113.11BAUMAN, Zygmunt.Em busca da poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 80.12BORDIEU, Pierre. Contrafogos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 69-70.
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coletiva exige. Isso o que torna ainda mais intricada a situao e se traduz na crise existencial,
(Unsicherheit: incerteza, insegurana e falta de garantia).13
A ausncia de um dos trs elementos da Sicherheit (segurana, certeza e garantia), os
quais podem ser sintetizados na crena de que a civilizao nos protegeria contra os perigos da
natureza, das outras pessoas e do prprio corpo, ou que ao menos tornariam nossos medos menos
intensos do que seria de outra forma, provoca, como assinala Bauman, dissipao da
autoconfiana, perda de confiana na prpria capacidade e nas intenes dos outros, uma
crescente incapacitao, ansiedade, esperteza e a tendncia a buscar defeitos e apont-los, a
arranjar bodes expiatrios e a agredir.14
Os sintomas dessa corrosiva desesperana existencial provocada pela Unsicherheit
podem ser sentidos, sobretudo, na desarticulao poltica para a construo de respostas coletivas
e na tendncia a arranjar culpados.15Quando viver na incerteza sobre como garantir a prpriaexistncia se torna o modus vivendidisponvel, a maioria pode se sentir na iminncia de resvalar
do purgatrio ao inferno, sobretudo se instilada pelos meios de comunicao, os quais extraem
lucrativa audincia da dramatizao desses conflitos e tenses.
Esse estado de nimo permite projetar o que est nas partes inferiores e desconfortveis
de ns mesmos sobre o outro, essencializando-o e, finalmente, culpabilizando-o pelos
problemas sistmicos enfrentados pela sociedade.16
Assim, preparado est o terreno onde se proliferam argumentos para uma permanente
poltica de violao dos direitos humanos contra os setores mais vulnerveis da escala social:
notadamente os negros, os pobres e os imigrantes indesejveis.
O clima difuso de insegurana e vulnerabilidade obscurece o mapeamento do problema
para oferecer respostas compatveis com os valores da democracia e dos direitos fundamentais,
13O termo Unsicherheit, antnimo de Sicherheit(que expressa alm de segurana, certeza e garantia, no original em
alemo), utilizado por Bauman para, sob uma perspectiva atual, rever o diagnstico de Freud, segundo o qual, acivilizao, ao impor o controle e represso dos instintos (cujo custo pode ser o desgosto, a neurose, a infelicidade),sacrifica parte da liberdade individual como contrapartida do que se ganha coletiva ou individualmente em termosde segurana (Sicherheit); segundo Bauman, se Freud tivesse de escrever esse livro agora, seu diagnstico seriaoutro, eis que, em nome da expanso da liberdade individual, a Sicherheitque sacrificada. BAUMAN, Zygmunt.
Em busca da poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 13-24; tambm: BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da ps-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.14BAUMAN, Zygmunt.Em busca da poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 25.15BAUMAN, Zygmunt.Em busca da poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 13.16YOUNG, Jock.A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 156.
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uma vez que as questes da esfera pblica tendem a se deslocar cada vez mais para o mbito do
direito penal, cuja soluo (repressora e simblica)17induz o mal que pretende curar.
3 Hipertrofia do Estado penal
Um dos exemplos mais contundentes da hipertrofia do Estado penal, em detrimento de
um Estado social, o que ocorre na poltica de segurana pblica dos Estados Unidos, cujo
modelo de Estado-centauro (guiado por uma cabea liberal sobre um corpo autoritrio),
segundo Wacquant, tem sido exportado para diversos pases do mundo, inclusive para os
continentes europeu e latino-americano. Sua regra aplicar a doutrina do laissez faire, laissez
passer a montante em relao s desigualdades sociais, mas se mostrar brutalmente
paternalista a jusante no momento em que se trata de administrar suas conseqncias.18
A fim de garantir a conteno das desordens geradas pela excluso social, desempregoem massa, imposio do trabalho precrio e retrao da proteo social do Estado, utiliza-se
amplamente da estratgia de criminalizao das classes potencialmente perigosas.
As duas principais modalidades de poltica de criminalizao que, nos Estados Unidos,
substituram progressivamente, nas ltimas trs dcadas, um semi Estado-providncia por um
Estado policial foram: a) os dispositivos do workfare, que transforma os servios sociais em
instrumento de vigilncia e controle das classes consideradas perigosas condicionam o
acesso assistncia social adoo de certas normas de conduta (sexual, familiar, educativa,
etc.), e o beneficirio do programa deve se submeter a qualquer emprego (no importa a
remunerao nem as condies de trabalho); e b) a adoo de uma poltica de conteno
repressiva dos pobres, por meio do encarceramento em massa, tendo como resultado mais
visvel e estarrecedor um crescimento da populao carcerria nunca visto em uma sociedade
democrtica, de 314% em 20 anos (entre 1970 a 1991). Se contabilizados os indivduos
colocados em liberdade vigiada (probation) e soltos em liberdade condicional (parole) por falta
17Segundo Baratta, a resposta do direito penal repressora, pois eleva as penas e aumenta a populao carcerria,em muitos pases, e simblica, porque recorre s leis manifestos como tentativa de recuperar a legitimidade daclasse poltica perante a opinio pblica. BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e polticacriminal.In:Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, n. 3, 1997, p. 65; tambm: CIRINO DOS SANTOS,Juarez.Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 32-33.18WACQUANT, Loc. Punir os pobres.2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 24.
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de lugar nas penitencirias, so cerca de cinco milhes de americanos, ou seja, 2,5% da
populao adulta do pas que caem sob jurisdio penal.19
O baixo ndice de desemprego americano dos anos 90 comparado ao dos pases europeus
, em parte, um resultado do elevado ndice de encarceramento nesse perodo. Em 1995 quase
5% da populao adulta se encontravam sob tutela penal.20 Os economistas norte-americanos
freqentemente atriburam o dinamismo da economia americana ao sucesso do no-
intervencionismo estatal sobre o mercado de trabalho. De uma perspectiva criminolgica, no
entanto, isso no se sustenta. Sem a indstria de controle do crime, o quadro sobre o mercado de
trabalho no seria to otimista. Os gastos anuais com o controle do crime nos EUA chegaram a
US$ 210 bilhes. Se comparados com os US$ 256 bilhes gastos em 1998 pelas Foras
Armadas, possvel fazer uma comparao. Segundo Christie, o custo da guerra contra os
inimigos internos est se aproximando dos custos militares contra os inimigos externos.Enquanto os custos militares caem, as despesas contra o crime crescem.21A forte interveno
americana no mercado, portanto, modelada pelo seu sistema penal.22
Esse paradigma de intervencionismo estatal, paradoxalmente liberal e repressivo, tem
sido amplamente disseminado no planeta. Na Europa e na Amrica Latina, os polticos j se
prontificam importao das tcnicas agressivas de segurana dosEstados Unidos, entre elas a
da tolerncia zero como panacia para o problema da violncia criminal.
Segundo Wacquant, a interveno das foras da ordem decorrente da influncia de
think tanks conservadores como o Manhattan Institut, que vitalizou a broken windows
theory tem levado a uma aplicao inflexvel da lei sobre delitos menores (mendicncia,
atentados aos costumes, embriaguez, jogatina e demais comportamentos associados s condutas
dos sem-teto), tendo como alvo dessas polticas o subproletariado, que deve ser alijado dos
espaos pblicos para maior comodidade dos cidados-consumidores.23
19WACQUANT, Loc. Punir os pobres. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 30.20BECKETT, K.; HARDING, D.; WESTERN, B. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos. In:BORDIEU, Pierre (Org.). De ltat social ltat penal.Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11,2002, p. 43.21CHRISTIE, Nils. Crime control as industry. 3. ed. London e New York: Routledge, 2000, p. 140-141.22BECKETT, K.; HARDING, D.; WESTERN, B. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos. In:BORDIEU, Pierre (Org.). De ltat social ltat penal.Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11,2002, p. 41.23A teoria das janelas quebradas, formulada pelo Rasputin da criminologia conservadora nos Estados Unidos,James Wilson, parte do princpio de que lutar contra pequenos distrbios cotidianos a maneira correta para fazerrecuar grandes patologias criminais. WACQUANT, Loc.As prises da misria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 26.
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a essa represso ensandecida que os polticos e a mdia nacional e internacional
atribuem precipitadamente a queda da criminalidade em Nova York nos ltimos anos, embora
silenciem sobre ao aumento vertiginoso das denncias de brutalidades policiais e tambm sobre
o fato de que no h nenhuma correlao entre a adoo desse tipo de estratgia e a queda da
taxa de criminalidade, eis que esta precedeu em trs anos a implementao dessas medidas e
pode ser observada em outras cidades daquele pas que no a aplicam, como Boston, Chicago ou
San Diego.24
O aumento da populao carcerria nos Estados Unidos no se deve, portanto, ao
aumento da criminalidade violenta, e sim, como assevera Wacquant,25 mudana de atitude dos
poderes pblicos em relao aos setores pobres, considerados como ncleo irradiador da
criminalidade, e aos quais se dirige a campanha cvica dos valores da moralidade e do
trabalho, exatamente na mesma proporo em que a precarizao deste e a contrao daspolticas sociais tornam a vida das classes populares ainda mais insuportvel e catica. A
desregulamentao da economia e a destruio do Estado social, que produzem desigualdades
sociais, exigem o fortalecimento do Estado penal para normalizar o trabalho precrio.
Os resultados dessa violncia punitiva so obviamente mais sinistros em pases onde
imperam a desigualdade social, a pobreza e a ausncia de tradio democrtica, nos quais a
influncia norte-americana, tanto no plano econmico como no penal, pode ser sentida com
maior intensidade. Na Amrica Latina, quase todos os candidatos a cargos eleitorais,26 nos
ltimos anos, tm como tema central o discurso sobre a segurana pblica. Na maioria das vezes,
sem o menor pudor de proclamar, como soluo definitiva para os problemas atuais, a volta do
suplcio,27abolido oficialmente h sculos.
24WACQUANT, Loc.As prises da misria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 28-29.25WACQUANT, Loc. A ascenso do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De ltat social ltatpenal.Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 20.26Eis algumas prolas proferidas em discursos polticos, segundo Galeano: Eleies legislativas na Argentina,[...] a candidata Norma Miralles proclama-se partidria da pena de morte, mas com sofrimento prvio: Matar umcondenado pouco, porque no sofre. Pouco antes, o prefeito do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde, dissera quepreferia a priso perptua ou os trabalhos forados, porque apena de morte tem o inconveniente de ser uma coisamuito rpida. GALEANO, Eduardo.De pernas pro ar. 6. ed. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 88.27O suplcio parte de um ritual organizado que marca o corpo dos condenados e manifesta o poder de quem pune, a arte quantitativa do sofrimento. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir.8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 35.
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As idias de segurana, como designa Baratta, so metforas incompletas
acompanhadas de hbitos mentais seletivos, internalizados pela opinio pblica e declarados
pelos juristas, que resultam em aumento de polticas penais.28
Diante do atual acirramento da eficincia repressiva, as indicaes tericas da
criminologia crtica se tornam ainda mais imprescindveis ao deslindamento dessas metforas,
pois submetem o discurso oficial crtica, no sentido empreendido por Foucault, de
questionamento da verdade nos seus efeitos de poder e do poder nos seus discursos de
verdade.29
4 Enfoque criminolgico-crtico
O pano de fundo terico da atual segregao punitiva continua a ser uma criminologia
positivista que mistifica os mecanismos de seleo e de estigmatizao da criminalidade,atribuindo-lhes simultaneamente uma justificativa ontolgica de base cientfica, e dessa maneira
contribui produo de esteretipos e de preconceitos sobre a criminalidade e o criminoso.
A criminologia positivista tradicional caracteriza-se por um paradigma etiolgico, pelo
qual a criminalidade se torna um atributo de determinados indivduos (anormais), cuja
propenso a delinqir pode ser determinada pelas suas caractersticas biolgicas e psicolgicas
(diferenciando-os dos indivduos normais), ou pelos fatores socioambientais a que esto
submetidos. Essa criminologia etiolgica (individual ou socioestrutural) parte das seguintes
questes, entre outras: quem o criminoso? Por que pratica o crime? Quais fatores
socioambientais influenciam nas taxas de criminalidade? Enfim, busca as causas ou os fatores da
criminalidade com o objetivo de individualizar as medidas adequadas para elimin-los,
intervindo sobre o comportamento do autor. A ideologia da defesa social ainda predomina na
criminologia contempornea, embora tenha sido questionada e praticamente substituda por um
outro paradigma, o do labeling approach(paradigma da reao social).30
28 BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e poltica criminal. In:Discursos sediciosos. Rio deJaneiro: Revan, n. 3, 1997, p. 59.29FOUCAULT, Michel.Illuminismo e Critica. Roma: Donzelli, 1997, p. 31-78.30BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 29-30.
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As investigaes sobre a criminalidade do colarinho branco,31 a cifra negra da
criminalidade32e a crtica das estatsticas criminais nas quais se fundamenta a Criminologia da
reao social so muito importantes ao processo de descaracterizao da concepo de
criminalidade presente no senso comum, pois revelam o carter seletivo do sistema penal.33
No possvel nem desejvel que o discurso jurdico-penal realize o seu programa de
interveno repressiva pelas seguintes razes estruturais, conforme demonstra Zaffaroni:
primeiro, porque se fosse possvel realiz-lo (se a capacidade operativa dos rgos suportasse)
conseguiria criminalizar diversas vezes toda a populao, provocando uma verdadeira catstrofe
social.34 Segundo, porque o sistema penal ardiloso, pretende dispor de um poder que no
possui, ocultando o verdadeiro poder que exerce: a legalidade processual no pode operar para
que a arbitrariedade seletiva dirigida aos setores socialmente vulnerveis continue a existir.35
A escola interacionista (entre os anos 1940 e 1950) estabelece um marco de rupturafundamental, segundo Aniyar de Castro,36 com as questes da criminologia positivista,
liberando-se dos esteretipos das condutas desviantes e tambm daqueles representados pelas
prprias codificaes, e conclui: a lei que produz o delito, transformando condutas lcitas em
ilcitas.37
Dessa maneira, as perguntas comeam a mudar de direo: quem definido como
desviante? Qual o resultado dessa definio sobre o indivduo? Em que condies esse indivduo
31Teorias liberais, como a obra de Edwin Sutherland, White collor crime (1949), contriburam para mostrar ocarter desigual do direito penal. Em suas investigaes, comprova-se que condutas delitivas de grande magnitudeeconmica (cometidas por altos executivos), que afetam uma quantidade indeterminada de pessoas, permanecemimunes ao controle penal. SUTHERLAND, Edwin. A theory of white collor crime. In: RUBINGTON, Earl;WEINBERG, Martin. The study of social problems. 6. ed. New York: Oxford University Press, 2003, p. 141-153;tambm: TAYLOR, Ian et al. La nueva criminologia. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2001, p. 157-187.32A cifra negra a constatao de que a criminalidade oculta (praticada pela maioria) no quantificada nasestatsticas.33 BARATTA, Alessandro.Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 198; tambm: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal mximo x cidadania mnima. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 50.34 Se todos os furtos, todos os adultrios, todos os abortos, todas as defraudaes todas as falsidades, todos ossubornos, todas as leses, todas as ameaas, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente no haveriahabitante que no fosse, por diversas vezes, criminalizado. ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas
perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 26.35ZAFFARONI, Eugenio Ral.Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 26-27.36ANIYAR CASTRO, Lola. Criminologia da reao social.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, p. 96-97.37TAYLOR, Ian et. al. La nueva criminologia. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2001, p. 157-187.
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pode se tornar objeto de uma definio? Conduz-se, assim, ao problema da distribuio do
poder de definio e muda-se o objeto de estudo para as agncias de controle social.38
Como se sabe, desde o surgimento do labeling approach,39 o desvio e a criminalidade
no so uma qualidade intrnseca da conduta ou uma entidade ontolgica preexistente reao
social e penal,40 e sim uma qualidade atribuda a determinados sujeitos mediante complexos
processos de interao social (formais e informais) de definio e de seleo, segundo a
distribuio de poder na sociedade. A crtica, segundo Baratta, atinge seu ponto de maturao
exatamente quando a perspectiva macrossociolgica se desloca do comportamento desviante
para os mecanismos de controle social, particularmente para o processo de criminalizao.41
No se trata, pois, de discutir uma criminalidadeem si, mas o processo de criminalizao
que atribui o status de criminoso aos indivduos concentrados nos setores mais vulnerveis da
sociedade.42 A criminalidade deve ser reconhecida como um bem negativo (Sack),desigualmente distribudo na sociedade, segundo uma hierarquia de interesses estabelecidos pelo
sistema socioeconmico e a desigualdade social.43
O elemento que caracterizar o aspecto macrossocial do labeling,como assevera Aniyar
de Castro, j est presente na afirmao de Sack, segundo a qual a sua perspectiva deve
integrar-se a uma teoria geral da sociedade, partindo do mtodo materialista histrico para a
anlise do poder.44
A criminologia crtica (ou radical) parte do conhecimento dos mecanismos seletivos e das
funes reais do sistema, vinculadas distribuio desigual do bem negativo, para ir alm no
38BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 161-162.39Hassemer empreende uma interessante crtica sobre o futuro das teorias da definio. HASSEMER, Winfried.
Introduo aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Fabris, 2005, p. 105-109.40BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 162; tambm: TAYLOR, Ian et al.La nueva criminologia2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2001, p. 157-187.41BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1999, p. 161.42Segundo Anyiar de Castro, isso gera uma ruptura com o princpio da legalidade que est na base do sistemapenal, pois no este o critrio vigente para definir a criminalidade, e sim os critrios dos que executam o controlesocial formal. ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reao social.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, p.111; tambm: BARATTA, Alessandro.Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: FreitasBastos, 1999; TAYLOR, Ian et al.La nueva criminologia. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2001, p. 157-187.43 BARATTA, Alessandro.Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 161; tambm: TAYLOR, Ian et al.La nueva criminologia. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2001, p. 157-187.44ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reao social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, p. 111.
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questionamento das razes estruturais que sustentam, numa sociedade de classes, o processo de
definio e de seleo.Conforme ensina Cirino dos Santos,
O Direito Penal um sistema dinmico desigual em todos os nveis de suas
funes: a) ao nvel da definio de crimes constitui proteo seletiva de bensjurdicos representativos das necessidades e interesses das classes hegemnicasnas relaes de produo/circulao econmica e de poder poltico dassociedades capitalistas; b) ao nvel da aplicao de penas constituiestigmatizao seletiva de indivduos excludos das relaes de produo e depoder poltico da formao social; c) ao nvel da execuo penal constituirepresso seletiva de marginalizados sociais do mercado de trabalho e,portanto, de sujeitos sem utilidade real nas relaes de produo/distribuiomaterial, mas com utilidade simblica no processo de reproduo dascondies sociais desiguais e opressivas do capitalismo.45
Deslinda-se em definitivo o carter desigual do sistema penal, o qual, por um lado, punecertos comportamentos ilegais (das classes subalternas) para encobrir um nmero bem mais
amplo de ilegalidades (das classes dominantes), que ficam imunes ao processo de
criminalizao; e, por outro, aplica de modo seletivo sanes penais estigmatizantes,
especialmente a priso, incidindo no status social dos indivduos que fazem parte dos setores
mais vulnerveis da sociedade, os quais, dessa maneira, permanecem impedidos de ascender
socialmente.46
4.1 Finalidades subjacentes ao crcere
A sociologia e a histria do sistema penitencirio chegaram a concluses, a propsito da
funo real da instituio carcerria na nossa sociedade, que relegam as teorias idealistas dos fins
sociais e jurdicos da pena de priso, de preveno (geral e especial) ou de simples retribuio,
condio de ideologias insustentveis do ponto de vista emprico.47
Nessa via, a perspectiva epistemolgica econmico-poltica que estuda os sistemas
punitivos concretos e sua racionalidade especfica na histria contribui decisivamente para
desmistificar o papel da priso. Rusche e Kirchheimer empreendem, pela primeira vez na
45CIRINO DOS SANTOS, Juarez.Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 35.46BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 166-167.47Nesse sentido, ver: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005; tambm:CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. BARATTA, Alessandro.Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. ZAFFARONI, EugenioRal.Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
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histria, uma investigao dos sistemas de punio concretos e das prticas penais especficas
como um fenmeno independente de seus fins sociaise de sua concepo jurdica,48constatando,
ao final, uma tese fundamental criminologia crtica: em todo sistema de produo h uma
tendncia a descobrir e a utilizar sistemas punitivos que correspondems prprias relaes de
produo.49
Na sociedade capitalista, segundo Rusche e Kirchheimer,50 o sistema penitencirio
depende, sobretudo, do desenvolvimento do mercado de trabalho: a abundncia da fora de
trabalho est relacionada desvalorizao da vida humana para o sistema punitivo, o qual se
utiliza fartamente da pena de morte e das mutilaes dos corpos de suas vtimas (como na Baixa
Idade Mdia). Em momentos de escassez da fora de trabalho, no entanto, os mtodos punitivos
se transformam, em face da necessidade de explor-la por meio da pena de priso (como no
perodo do mercantilismo do sculo XVII).Entre os mritos da obra de Rusche e Kirchheimer destacam-se, alm da demonstrao da
relao entre mercado de trabalho e poltica penal, as consideraes econmico-financeiras no
estabelecimento de polticas penais e a compreenso das instituies penais como parte de
estratgias sociais muito mais amplas para manipular as classes subalternas.
Na primeira metade do sculo XIX, quando a priso se torna a pena mais importante em
todo o Ocidente, a elevao significativa da populao prisional simultnea reduo dos
gastos com o sistema (no mais lucrativo aos seus administradores). Segundo Rusche e
Kirchheimer, os relatrios da poca afirmam que a simples privao da liberdade no era uma
punio eficaz para as classes subalternas e que a condio necessria para a reinsero social do
preso a submisso incondicional autoridade,51para aprender a enquadrar seus desejos nos
limites das condies das classes subalternas.52
Na poca em que as Casas de Correo (sculo XVII) eram centros de produo, a
necessidade de manter a reproduo da fora de trabalho se estendia s prises. Mas, quando isso
se torna desnecessrio, estabelece-se que o limite mais alto de despesas com os detentos deve ser
determinado pela necessidade de manter o seu padro de vida abaixo do padro das classes
48RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 19.49RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 20.50RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.51Esse tema ser retomado posteriormente por Foucault, em Vigiar e punir. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER,Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 151.52 No caso especfico, trata-se do relatrio sobre a priso do canto de Waad (1825). RUSCHE, Georg;KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 151-152.
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subalternas da populao livre.53Assim, Rusche e Kirchheimer desnudam o princpio da menor
elegibilidade, de efeito dissuasivo-repressivo, para que o crcere no se torne mais atrativo que
as piores condies de vida do trabalhador livre.
A contribuio de Foucault, em Vigiar e punir, um marco fundamental para o avano
da criminologia crtica: investiga o sistema de pensamento subjacente idia de que a priso seja
considerada, desde o fim do sculo XVIII, o mais racional e mais eficaz meio para punir as
ilegalidades em uma sociedade.54
Foucault explica como na sociedade capitalista a priso evolui de um aparelho marginal
ao sistema punitivo a uma posio de centralidade como aparelho do controle social, em razo da
necessidade da disciplina (mtodos para impor uma relao de docilidade/utilidade) da fora de
trabalho, promovida pela singularidade do panptico,55 modelo arquitetnico idealizado por
Jeremy Bentham, cujo principal efeito induzir no detento um estado consciente e permanentede visibilidade que assegura o funcionamento automtico do poder.56O panptico tambm o
princpio de uma nova tecnologia do poder (panopticismo), um sistema de vigilncia geral que se
instaura na sociedade, estendendo-se desde as prises at as fbricas, as escolas, os hospitais, os
asilos, etc.
A disciplina a tcnica especfica de um poder que funciona de modo calculado,
contnuo, fabricando indivduos, tomando-os simultaneamente como objetos e instrumentos de
seu exerccio.Trata-se de uma economia calculada e permanente de pequenos procedimentos,
que se distingue da soberania estatal, mas se constitui em uma nova forma de investimento
poltico, uma microfsica do poder, que invade aos poucos essas formas maiores do prprio
53RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.153.54FOUCAULT, Michel.Quappelle-t-on punir? In: Dits et crits.Paris: Gallimard, n. IV, 1994, p. 637; tambm:FOUCAULT, Michel.Luttes autour des prisons. In:Dits et crits. Paris: Gallimard, n. III, 1994, p. 806-818.55 O panptico, segundo Foucault: na periferia uma construo em anel; no centro, uma torre; esta vazada de
largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construo perifrica dividida em celas, cada umaatravessando toda a espessura da construo; elas tm duas janelas, uma para o interior, correspondendo s janelasda torre; outra, que d para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta ento colocar um vigiana torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operrio ou um escolar. Pelo efeitoda contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativasnas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator est sozinho, perfeitamenteindividualizado e constantemente visvel. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p.177.56FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 177; consultar tambm: CIRINO DOSSANTOS, Juarez.A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 49-59
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aparelho estatal.57Os mecanismos que possibilitaram o sucesso do aparelho disciplinar, segundo
Foucault, so a vigilncia hierrquica, a sano normalizadora e o exame. Sinteticamente, a
vigilncia hierrquica um dispositivo disciplinar exercido pelo jogo permanente de olhares
calculados ao qual nada escapa, produzindo efeitos de um poder mltiplo, automtico e
annimo.58 A sano normalizadora uma ordem portadora de uma referncia artificial59 de
penalidade permanente (sistema de recompensa/punio) que se difunde por todos os aspectos e
instantes da instituio disciplinar para comparar, diferenciar, hierarquizar, homogeneizar,
excluir, enfim, normalizar o comportamento dos indivduos.60O exame combina as duas tcnicas
anteriores, vigilncia e sano normalizadora, para, de modo ritualizado, constituir os indivduos
como elementos correlatos de um poder e de um saber.61Inverte a economia da visibilidade no
exerccio do poder, pois, ao contrrio do poder tradicional, cuja fora est em sua manifestao,
o poder disciplinar se torna invisvel, impondo a visibilidade queles que submete, de modo aobjetiv-los. Os procedimentos de exame so acompanhados de um sistema de registro intenso e
de acumulao de documentos, que, por um lado, constitui o indivduo como objeto descritvel e
analisvel e, por outro lado, instaura um sistema que permite a comparao e a descrio do
comportamento de populaes. Finalmente, o exame transforma cada indivduo em um caso,
de modo a ser descrito, medido, comparado, classificado, treinado ou retreinado, excludo,
normalizado, etc.62
A formao da sociedade disciplinar (sculos XVII e XVIII) e a consolidao da priso
(fim do sculo XVIII e incio do sculo XIX) esto intrinsecamente relacionadas ao processo
histrico das transformaes econmicas no Ocidente, a partir do qual a burguesia se
transformou em classe politicamente hegemnica (sculo XVIII). O desenvolvimento e a
generalizao de dispositivos disciplinares instituem, por meio de seus sistemas de micropoder
57FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 153.58FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 158-159.59 Segundo Foucault, essa ordem de natureza mista, por um lado, artificial, pois estabelecida por uma lei,
programa ou regulamento; e, por outro, definida por processos naturais e observveis, como, por exemplo, otempo de aprendizado, o nvel de aptido tendo por referncia uma regularidade. FOUCAULT, Michel. Vigiar e
punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 160.60Surge, dessa maneira o poder da Norma, atravs de um conjunto de instituies que analisam, medem, controlame corrigem os anormais. Segundo Foucault: compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro deum sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que a regra, ele introduz, como umimperativo til e resultado de uma medida, toda a gradao das diferenas individuais. FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 163-164.61FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 172.62FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 167-170.
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desiguais e assimtricos para submeter as foras e os corpos, o reverso sombrio que sustenta a
forma jurdica geral e abstrata de direitos em princpio igualitrios.63
A Reforma penal humanista (fim do sculo XVIII) est diretamente relacionada
transformao no regime de ilegalismos existentes, os quais se deslocam dos direitos para os
bens, em razo do enriquecimento da burguesia e do crescimento demogrfico. O direito de punir
transforma-se de uma vingana do soberano para a defesa da sociedade,64que se constitui em
nova economia e tecnologia do poder de punir.
O conjunto de dispositivos disciplinares das prises e de seus ortopedistas da alma tem
sido continuamente denunciado pelo fato de produzir a criminalidade que supostamente combate,
pois est amplamente comprovado que o encarceramento aumenta as taxas de criminalidade, em
vez de reduzi-la; provoca a delinqncia, induz reincidncia, transforma o infrator ocasional
em delinqente habitual.65A priso jamais reabilitou pessoas na prtica; provocou, ao contrrio, a
prisionalizao66dos internos, encorajando-os a absorver e adotar hbitos tpicos do ambiente
penitencirio: caracteriza-se por acentuar uma criminalidade que deveria destruir (eficcia
inversa) e repetir as mesmas reformas (isomorfismo reformista), em cada verificao histrica de
seu fracasso.67
O que explica, afinal, o sucesso de um fracasso de mais de dois sculos? Se as
finalidades declaradas da priso, de ressocializao, trabalho, controle tcnico da correo,
modulao da pena, etc., jamais foram cumpridas, o que explica a sua manuteno?
Segundo Foucault, na realidade, a priso no se desvia de seu objetivo ao aparentemente
fracassar. O sistema punitivo opera uma gesto diferencial das ilegalidades, cujo efeito
indireto golpear uma ilegalidade visvel (e til) para encobrir uma oculta; e diretamente,
alimenta uma zona de marginalizados criminais (produz uma ilegalidade fechada, separada e
til), inseridos em um prprio mecanismo econmico (indstria do crime) e poltico (utiliza-
se dos criminosos com fins subversivos e repressivos).68
63FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 194-195.64FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 78- 83.65FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir.8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 240.66BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 184.67FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 239.68BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 190; tambm: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 243-244.
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As teses de Rusche e Kirchheimer (aspecto econmico-poltico) e de Foucault (aspecto
disciplinar e ideolgico-poltico) so conclusivas para compreender que a rejeio/excluso
praticada por meio do sistema penal parte integrante da produo social do crime. Obviamente,
h limites apontados para ambas as teorias, embora no retirem de forma alguma o mrito de
seus trabalhos: considera-se que a obra de Rusche e Kirchheimer, tenha subestimado o papel das
foras ideolgicas e polticas;69 quanto a Foucault, critica-se o carter historicamente abstrato
que assume a disciplina, sem se reconduzir s relaes de produo.70 Os fundamentos
materialistas que reenviam a questo da disciplinas relaes de produo na fbrica, a partir da
contradio entre capital e trabalho, so desenvolvidos por Melossi e Pavarini, em Crcere e
fbrica, e tambm por outros tericos da criminologia crtica, impondo-se como outro marco
decisivo para essa disciplina.71Finalmente, como assinala Cirino dos Santos, possvel verificar
a centralidade da priso e da fbrica e sua relao de dependncia recproca nas sociedadescapitalistas, pois a priso tem por objetivo transformar o sujeito real (condenado) em sujeito
ideal (trabalhador), adaptado disciplina do trabalho na fbrica, principal instituio da estrutura
social.72
A priso realiza, assim, a funo de produzir a relao de desigualdade e os sujeitos
submissos dessa relao pelos seguintes meios: a) subordinao estrutural do trabalho ao
capital; eb) disciplina requerida pelo sistema capitalista fundado no binmio crcere/fbrica.73
No por acaso, a forma especfica pela qual o direito penal moderno realiza a retribuio
equivalente, medida em tempo de privao de liberdade, tornou-se definitiva no sculo XIX.
Embora as prises e as celas j existissem na Antigidade e na Idade Mdia, alm de outros
meios de violncia punitiva, naquelas pocas os indivduos permaneciam encarcerados at que
pudessem pagar os danos causados ou at a morte.74
69GARLAND, David. Castigo y sociedad moderna. Madrid: Siglo Veintiuno, 1999, p. 136.70 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 59; tambm:BARATTA, Alessandro.Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999,p. 192.71CIRINO DOS SANTOS, Juarez.A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 53.72CIRINO DOS SANTOS, Juarez.Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 43.73BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1999, p. 166-167; consultar tambm: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris,2005, p. 43. PAVARINI, Massimo. Control y dominacin. Buenos Aires: SigloVeintiuno, 2002, p. 152-153.74PASUKANIS, E. B.A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 158-159.
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Para que surgisse a idia de retribuio equivalente com a privao de um quantum75de
liberdade, como ensina Pasukanis, foi preciso esperar a reduo de todas as formas de riqueza
social quela mais abstrata e simples: o trabalho humano medido em tempo.76 Assim,
conclui-se que a priso funciona no apenas como aparelho disciplinar, mas tambm como
aparelhojurdico econmico, que cobra a dvida do crime em tempo de liberdade suprimida.77
4.2 Fbricas de excluso
Hoje, a crise da tradicional ideologia legitimante do crcere coincide com um perodo de
retrao do Estado social e de expulso de um enorme contingente de trabalhadores para a
economia informal. A rede de instituies carcerrias (prises, colnias penitencirias, etc.)
tornou-se uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou de neutralizar a
populao inassimilvel pelo mercado.78Com a progressiva degenerao do Estado social em Estado penal, confirmam-se as teses
fundamentais da criminologia crtica sobre a relao entre mercado de trabalho e sistema
punitivo.
A tese de Rusche e Kirchheimer79(todo sistema de produo tende a descobrir e a utilizar
sistemas punitivos que correspondem s prprias relaes de produo), corroborada pelo
trabalho de Jankovic (o crescimento do desemprego determina o aumento do nmero de presos,
independentemente do volume de crimes),80encontra-se revigorada em face do exemplo enftico
dos Estados Unidos, cuja populao carcerria quadruplicou em duas dcadas, no pelo aumento
da criminalidade violenta, mas sim pela extenso do recurso ao aprisionamento a infraes
menores, para normalizar o trabalho precrio,81tendncia que se expande pelo Ocidente.
75 Pasukanis (1891-1937), relembrando antiga definio de Aristteles de delito como contrato firmadocontra a vontade, explica que a idia da troca pelo equivalente marca todas as relaes na sociedadecapitalista. [...] Dessa forma, [...] a pena criminal, entendida como fixao antecipada da medida daequivalncia, estipula o preo que ser pago por esse contrato. Nesse contexto, a pena ajustada culpabilidade, obtida atravs de um clculo aritmtico de acertamento da equivalncia, possui o mesmo
significado da reparao proporcional ao dano. SANTOS, Luciano Cirino dos. Teorias da pena. Curitiba:ICPC/UFPR, 2005, p. 50-53.76PASUKANIS, E. B.A teoria geral do direito e o marxismo.Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 159.77CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 39.78BAUMAN, Zygmunt. Globalizao. Rio deJaneiro: Zahar, 1999, p. 119-120.79RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 20.80JANKOVIC, Ivan apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez.A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981,p. 49.81WACQUANT, Loc. A ascenso do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De ltat social ltatpenal.Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 20.
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Ainda em Rusche e Kirchheimer, as condies miserveis da classe trabalhadora reduzem
o padro de vida na priso para bem abaixo do que possa ser oficialmente reconhecido como
o nvel mnimo (menor elegibilidade).82 Na Amrica Latina, as prises se assemelham a
verdadeiros campos de concentrao para miserveis, enquanto nos pases centrais possuem um
aspecto disciplinador.83 Tais condies no abstraem da aguda polarizao das desigualdades
econmicas nos planos interno e internacional.84H, todavia, dois fenmenos correlatos a esse
aspecto disciplinador e/ou destruidor da fora de trabalho humana nas prises.
Por um lado, temos o fato de que a fora de trabalho inassimilvel pelo mercado pode ser
utilizada nas prises como forma de extrair elevadas taxas de mais-valia: com o crescimento
exponencial das prises privadas, esse setor se tornou uma indstria altamente lucrativa.85 O
sistema de full-scale management86das prises americanas e inglesas, associado degenerao
do Estado social em Estado penal e criminalizao da pobreza, segundo Cirino dos Santos, noapenas confirma a relao do binmio crcere/fbrica de Melossi e Pavarini, como evidencia sua
evoluo para a simbiose fbrica/crcere: em que a fbrica construda sob a forma de
crcere, ou inversamente, o crcere assume a forma da fbrica, configurando o ideal de
explorao capitalista do trabalho humano, que realiza o trgico vaticnio de PAVARINI: os
detidosdevem ser trabalhadores; os trabalhadoresdevem ser detidos.87
Pensemos em alguns dos possveis desdobramentos dessa simbiose na diviso
internacional do trabalho: nos pases ricos, as prises privadas, alm de ser um negcio altamente
lucrativo, podem trazer s multinacionais a comodidade de explorar a mo-de-obra escrava,
legalmente,sem se deslocar para os quintais do mundo, onde normalmente exploram a fora
82RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.153.83ZAFFARONI, Eugenio Ral.Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 123-127.84Segundo Chesnais, a globalizao polarizou ainda mais as desigualdades. Internamente a cada pas, em razo daascenso do capital financeiro e das relaes salariais estabelecidas nos pases capitalistas avanados, alm dodesemprego, aumentou-se a distncia entre os salrios mais altos e os mais baixos rendimentos. No planointernacional, aprofunda terrivelmente a distncia entre os pases ricos e pobres. CHESNAIS, Franois. Amundializao do capital. So Paulo: Xam, 1996, p. 37.85WACQUANT, Loc. A ascenso do Estado penal nos Estados Unidos. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De ltatsocial ltat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 29; tambm: CHRISTIE,Nils. Crime control as industry. 3. ed. London e New York: Routledge, 2000.86Trata-se de uma gesto completa dos estabelecimentos penitencirios, o que nos Estados Unidos realizado pordezessete empresas privadas (quinze americanas e duas inglesas), sendo que sete delas esto cotadas no mercadoNasdaq e controlam um volume de negcios superior a 500 milhes de dlares. A maioria delas dobra o volume deprisioneiros e de vendas de um ano para o outro, e muitas delas dirigem tambm estabelecimentos para jovensdelinqentes. WACQUANT, Loc. A ascenso do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De ltatsocial ltat penal.Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 30.87CIRINO DOS SANTOS, Juarez.Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 53.
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de trabalho escrava e infantil, mas ficam sujeitas a alguns riscos que os capitalistas (ao contrrio
do que diz a teoria liberal) no gostam de ter: possibilidade de rebelies populares, instabilidade
poltica, denncias de organizaes internacionais sobre o uso de mo-de-obra escrava e infantil
que prejudicam o marketing do produto, etc. Nos pases pobres, ter a sua fora de trabalho
explorada na priso ainda pode vir a ser considerado um privilgio dos condenados, diante do
contingente de desempregados e miserveis que desfilam do lado de fora. A privatizao dos
presdios para explorar a fora de trabalho encarcerada reinstaura a escravido (pela
impossibilidade de resciso do contrato pelo preso), alm de ferir direitos fundamentais.88
Entretanto, continuar a ter apoio dos grupos econmicos e polticos interessados nessa forma de
investimento, e tambm da opinio pblica que clama por severidade nas penas e para que as
condies na priso sejam inferiores ao mais baixo nvel de vida da classe trabalhadora livre
(menor elegibilidade). Trabalho escravo em um mundo polarizado pelas desigualdades pode serfacilmente associado emblemtica frase inscrita nos portais dos campos de concentrao
nazistas: O trabalho liberta!
Por outro lado, a fora de trabalho inassimilvel pelo mercado pode ser tout court
neutralizada/imobilizada/excluda, atravs do aperfeioamento da tecnologia do poder de punir
que leva quase perfeio a imobilidade de seus prisioneiros, como o modelo de priso
Pelican Bay, nos Estados Unidos, testado para confinar o lixo e o refugo da globalizao, cujo
objetivo no mais a disciplina para o trabalho.89Segundo Bauman, colocar a priso como
estratgia crucial na luta pela segurana dos cidados significa tambm atacar a questo em uma
linguagem contempornea representativa da excluso: imobilidade. Esta exala o odor
repugnante da derrota, da vida fracassada e do atraso.90No por acaso as celas de Pelican Bay
so comparveis apenas a caixes.
Assim como as teorias de Rusche e de Kirchheimer, a tese de Foucault sobre a gesto
diferencial de ilegalidades mantm toda sua vitalidade. No que concerne sua funo indireta,
de atingir uma ilegalidade visvel e til para encobrir uma oculta, sabe-se que o atual
88Segundo Cirino dos Santos, a privatizao do trabalho carcerrio configura institucionalizao do trabalho escravoe, no Brasil, deve ser considerada completamente inconstitucional, pois fere o princpio da dignidade da pessoahumana, recepcionado pelo art. 1 da Constituio Federal. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 55.89Segundo Bauman, uma reportagem do Los Angeles Times de 1 de maio de 1990 sobre a priso de Pelican Baymostra as condies em que so mantidos seus detentos: completamente incomunicveis, sem se misturar com osdemais internos, sem acesso recreao, sem trabalhar, no interior de celas sem janelas, feitas de blocos de concretoe ao inoxidvel. BAUMAN, Zygmunt. Globalizao. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 121.90BAUMAN, Zygmunt. Globalizao. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 129.
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encarceramento em massa tem como alvo os setores socialmente vulnerveis (pobres, negros,
imigrantes indesejveis), condenados imobilidade. Enquanto as elites planetrias cujas
condutas socialmente negativas causam grandes desastres ambientais, econmicos, sociais e
polticos permanecem imunes e desfrutam da vantagem de terem adquirido ainda mais
mobilidade (fogem para o local onde a ordem seja menos rgida, e no haja limites aos lucros
que se pode extrair da utilizao da mo-de-obra escrava, infantil, poluindo o meio ambiente e
desestabilizando naes). Quanto sua funo direta, de criar uma zona de marginalizados
criminais, sabe-se que o encarceramento em massa, com a degenerao do Estado social em
Estado penal, disponibiliza contingentes de marginalizados criminais a serem utilizados no
desenvolvimento de atividades ilcitas (mercado internacional de drogas, comrcio ilegal de
armas, trfico de seres humanos para realizao de trabalho escravo, etc.) e imprescindveis ao
mercado financeiro que movimenta grandes somas de capital em suas lavanderias de dinheiroadvindo de atividades ilcitas. H uma interpenetrao, como nunca antes vista, entre atividades
legais e ilegais,91 revelando a sordidez da acumulao capitalista. Como assevera Baratta, a
marginalizao criminal fundamental aos mecanismos econmicos e polticos do parasitismo
e da renda e simplesmente impossvel enfrent-la sem incidir na estrutura da sociedade
capitalista, que necessita de desempregados e da marginalizao criminal.92 Nesse sentido, a
pergunta lanada por Bertolt Brecht, na pera dos trs vintns, rompe com o cinismo
silencioso da nossa sociedade: que o roubo de um banco, comparado fundao de um
banco?
Alm dos demais aspectos abordados, o enfoque biopoltico93pode tambm auxiliar na
compreenso da existncia dessas fbricas de excluso em Estados democrticos de direito.
Embora no seja objeto deste artigo, vale lembrar a fragilidade prpria da noo de Estado
democrtico de direito, eis que vivemos sob a tenso de duas foras opostas, segundo Agamben,
91Os bancos comerciais internacionais tambm tm sido os fornecedores de crdito aos agentes do comrcio ilcito
internacional, em detrimento da agricultura e de atividades legais. DORNELLES, Joo Ricardo. Ofensivaneoliberal, globalizao da violncia e controle social. In:Discursos sediciosos.Rio de Janeiro: Revan, n. 12, 2002,p. 122.92 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas BastosEditora, 1999, p. 190.93Para Foucault, biopoltica deve ser entendida como a maneira pela qual se buscou racionalizar, depois do sc.XVIII, os problemas colocados prtica governamental pelos fenmenos prprios a um conjunto de pessoasconstitudo em uma populao: sade, higiene, natalidade, longevidade, raas. Em sntese, analisa a incluso davida natural nos clculos e mecanismos de poder do Estado. FOUCAULT, Michel. La naissance de labiopolitique. In:Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994, n. III, p. 818-819.
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uma que institui e que pe e outra que desativa e depe, de modo que o estado de exceo
constitui o ponto da maior tenso dessas foras e, ao mesmo tempo, aquele que, coincidindo com
a regra, ameaa hoje torn-las indiscernveis.94
A violncia e a exceo imperam nas sociedades modernas e, ao contrrio de um pacto
social representado pela modernidade, a violncia soberana se funda na incluso exclusiva da
vida nua(zo) no interior do Estado.95Essa vida nuaexposta morte, mas no-sacrificvel, cujo
referencial o homo sacer, a quem qualquer um pode matar sem cometer homicdio, cuja
existncia reduzida a uma vida nuadespojada de todo direito; esse homem que (habitando a
fronteira da humanidade) se encontra em constante relao com o poder que o baniu e o
persegue.96. O banido no est fora da lei, mas abandonado por ela, colocado em risco no
limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem.97Assistimos constantemente aos
efeitos dessa vida nua em campos de refugiados, nas periferias das cidades, na rede deinstituies carcerrias. Essa nova forma de totalitarismo moderno,98 em que a vida nua se
incluina poltica atravs da excluso, parece ter sido desde o incio a moldura da cidadania no
Brasil, a que Nilo Batista denomina cidadania negativa,99correlata ao princpio de apartao
socialdos que acalentam o sonho de converter as favelas em guetos desprovidos das garantias
constitucionais, com rgido controle fsico da prpria deambulao individual.100
Os que ainda hoje defendem e praticam o sistema penal no o fazem mais com base na
ideologia reabilitadora, mas sim com base na ideologia como falsa conscincia esclarecida, na
94AGAMBEN, Giorgio.Estado de exceo. So Paulo: Boitempo, 2004, p. 132.95A poltica ocidental , segundo Agamben, desde o incio, uma biopoltica. A relao poltica originria o estadode exceo como zona de indistino entre incluso e excluso, externo e interno (o bando). As tentativas defundamentar direitos dos cidados e liberdades polticas se tornam inteis medida que o poder soberano continua aproduzir vida nuacomo limiar de articulao entre natureza e cultura, como relao poltica original. AGAMBEN,Giorgio.Homo Sacer.Belo Horizonte: UFMG, 2002 p.187.96AGAMBEN, Giorgio.Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 189.97Para Agamben, A relao originria da lei com a vida no a aplicao, mas Abandono. AGAMBEN, Giorgio.
Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.36.
98O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instaurao, por meio do estado de exceo, deuma guerra civil legal que permite a eliminao fsica no s dos adversrios polticos, mas tambm de categoriasinteiras de cidados que, por qualquer razo, paream no integrveis ao sistema politico. AGAMBEN, Giorgio.
Estado de exceo. So Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.99Segundo Nilo Batista, trata-se de uma cidadania que se limita ao conhecimento e exerccio dos limites formais interveno coercitiva do Estado. BATISTA, Nilo. Fragmentos de um discurso sedicioso.In:Discursos sediciososRio de Janeiro: Revan, 1996, n. 1,p. 72.100BATISTA, Nilo. Fragmentos de um discurso sedicioso. In:Discursos sediciosos.Rio de Janeiro: Revan, n. 1,1996, p. 71.
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condio de pessoas cujo compromisso com a ordem social dominante totalmente cnico: vive
de valores falsos, mas, ironicamente, consciente de faz-lo.101
A priso continua a ser o foco da ateno governamental da elite poltica contempornea.
Como os governos s podem prometer flexibilidade de mo-de-obra, o combate ao crime (a
construo de novas prises, a redao de novas leis que multiplicam as infraes punveis com
priso e a promessa de severidade das condenaes) possui um apelo simblico e aumenta a
popularidade daqueles que as propem e/ou executam. 102
A ascenso do Estado mnimo no aspecto econmico e social e do Estado mximo no
campo das polticas de segurana, as quais utilizam odarwinismo social como estratgia de
controle e as polticas penais de emergncia com base na eficincia penal, instaura um paradoxo:
pretende remediar com mais violncia institucional a violncia estrutural brutalmente
intensificada pela expulso massiva de trabalhadores do mercado de trabalho oficial.
5 Da poltica penal poltica de defesa dos direitos fundamentais
O discurso doeficientismo penal est na origem da reduo das garantias constitucionais
e processuais, cuja supresso ameaa converter o Estado democrtico de direito em Estado
penal.103
Especialmente neste momento de insegurana difusa, em que os assustados podem ser
mais perigosos que os perigos que os assustam,104e as estratgias preconizadas pelo discurso da
lei e da ordem encontram apoio na maioria da populao, imprescindvel lembrar (e
reafirmar) a lio de Ferrajoli, segundo a qual em uma democracia constitucional existe a esfera
do no decidvel, ou seja, daquilo que se convencionou subtrair da vontade das maiorias para
101SLOTERDIJK, Peter apudEAGLETON, Terry.Ideologia. So Paulo: Boitempo/UNESP, 1997, p. 37.102 Nesse sentido, a legitimao ideolgica do direito penal simblica porque a penalizao das chamadassituaes problemticas no significa soluo social do problema, mas simples soluo penal [...]; no entanto,
possui efeito instrumental, pois legitima o direito penal como programa desigual de controle social, dirigido aossetores vulnerveis (populaes perifricas), sem relevncia na reproduo do capital, significando, segundo Cirinodos Santos, que [...] pelo menos ao nvel simblico o direito penal seria igual para todos. CIRINO DOSSANTOS, Juarez.Teoria da Pena.Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 32-33.103 BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e poltica criminal. In: Discursos sediciosos. Rio deJaneiro: Revan, n. 3, 1997, p. 64-66.104Eduardo Galeano chama a ateno para o fato de que o acossamento criminal sentido no apenas pelos queusufruem a abundncia, mas tambm pelos que sobrevivem na escassez: So os desesperados linchando os queesto mais desesperados ainda [...]. GALEANO, Eduardo.De pernas pro ar. 6. ed. Porto Alegre: L &PM, 1999, p.88-89.
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garantira igualdade dos cidados, seus direitos fundamentais vida e liberdade pessoal sejam
eles desviantes ou no.105
O direito penal mnimo , simultaneamente, o direito penal da Constituio, um
verdadeiro sistema de controle dos processos institucionais e sociais de criminalizao, enfim, de
proteo do indivduo contra o poder punitivo do Estado, mas, como assinala Baratta,
necessrio ir alm e pensar o garantismotambm em sentido positivo, como poltica integral
de proteo aos direitos de cidadania. Assim, a partir da autonomia e da centralidade dada aos
direitos fundamentais em questo na concepo ampla de poltica criminal, possibilitar-se-ia
emancipar a cultura da poltica da cultura do penal.106 Isso exige uma ruptura com a
reproduo ideolgica dos discursos dos sistemas penais, inclusive e especialmente nas
universidades. Entretanto, o que deveria ser locusprivilegiado na formao comprometida com a
democracia e os direitos humanos, encontra-se, sobretudo na Amrica Latina, diante de umaintensa massificao do ensino e degradao tecnocrtica do direito.107
A violncia operativa do sistema penal produz um elevado nmero de mortes na Amrica
Latina.108 E o que mais grave ao analisar os dados sobre essas mortes anunciadas, como
assevera Zaffaroni, o fato de que o permanente atentado ao mais elementar direito humano a
vida recebido pelas pessoas sem causar alarme; ao contrrio, gera consenso em torno da
eficcia do sistema.109
O questionamento desse tipo de consenso remete a uma passagem histrica do
pensamento da Escola de Frankfurt. Durante a emigrao, em Paris, quando Theodor Adorno
eventualmente retornava Alemanha, certa vez seu amigo Walter Benjamin lhe perguntou se na
Alemanha ainda havia algozes em nmero suficiente para executar o que os nazistas ordenavam.
Segundo Adorno, Benjamin percebe algo que torna a questo, por si s, relevante: ao contrrio
105 Segundo Ferrajoli, h uma segunda dimenso complementar democracia poltica, [...] que consiste emcompreender os fundamentos axiolgicos e tambm os limites do direito penal e da pena. Trata-se da dimenso quevem a conotar a democracia como democracia constitucional ou de direito e que aponta no quem est
habilitado a decidir (a maioria, justamente), mas sim o queno lcito decidir por nenhuma maioria, nem mesmopela unanimidade. FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrtica. In:Discursos sediciosos. Rio deJaneiro: Revan, ano 7, n. 12, 2002, p. 32.106 BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e poltica criminal. In: Discursos sediciosos. Rio deJaneiro: Revan, n. 3, 1997, p. 68-69.107ZAFFARONI, Eugenio Ral.Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 132-133.108 A priso dos pases perifricos uma instituio de seqestro menor, dentro de outra, muito maior, umapartheidcriminolgico natural. BATISTA, Vera Malaguti.Difceis ganhos fceis.2. ed. Rio de Janeiro: Revan,2003, p. 55.109ZAFFARONI, Eugenio Ral. Muertes anunciadas. Bogot: Temis, 1993, p. 10-11.
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dos assassinos de gabinete, as pessoas que apenas executam tarefas so assassinas de si mesmas
medida que assassinam os outros.E acrescenta:
Temo que ser difcil evitar o aparecimento de assassinos de gabinete. Mas que
haja pessoas que, em posies de subalternas, [...] faam coisas queperpetuamsua prpria servido, tornando-as indignas, contra isto possvel empreenderalgo mediante a educaoe o esclarecimento.110
Em regimes totalitrios ou democrticos, sempre haver quem conscientemente escolha
ser assassino de gabineteou idelogo de genocdios, entretanto, por meio da educao poltica,
talvez ainda seja possvel evitar que se proliferem carrascos.
110ADORNO, Theodor W. Educao e emancipao.2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 138.
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