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GOVERNO DO PARANÁ SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO BÁSICA TEXTOS DE FUNDAMENTAÇÃO BIOLOGIA 1. OLIVEIRA, O. B. Em defesa da leitura de textos históricos na formação de professores de ciências. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 1 (64), p. 71-82, jan./abr. 2011. Disponível em: www.scielo.br/pdf/pp/v22n1/07.pdf. Acesso em: 26 out/2012. 2. GASTAL, M. L. Transformar a evolução. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ciências: ensino fundamental. Brasília: MEC/SEB, 2010. (Coleção Explorando o Ensino). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16903&Itemid=1139. Acesso em: 26 out/2012. 3. BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002. Disponível em: www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_jorge_larrosa_bondia.pdf. Acesso em: 26 out/2012. PARANÁ 2012

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GOVERNO DO PARANÁ SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO BÁSICA

TEXTOS DE FUNDAMENTAÇÃO BIOLOGIA

1. OLIVEIRA, O. B. Em defesa da leitura de textos históricos na formação de professores de ciências. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 1 (64), p. 71-82, jan./abr. 2011. Disponível em: www.scielo.br/pdf/pp/v22n1/07.pdf. Acesso em: 26 out/2012.

2. GASTAL, M. L. Transformar a evolução. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ciências: ensino fundamental. Brasília: MEC/SEB, 2010. (Coleção Explorando o Ensino). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16903&Itemid=1139. Acesso em: 26 out/2012.

3. BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002. Disponível em: www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_jorge_larrosa_bondia.pdf. Acesso em: 26 out/2012.

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Em defesa da leitura de textos históricos na formação deprofessores de ciências

Odisséa Boaventura de Oliveira*

Resumo: Analisa-se neste artigo o trabalho com um texto que relata o histórico da construçãodo conceito “fotossíntese”, lido por alunos do curso de Ciências Biológicas, em que se solicitouo destaque daquilo que julgaram mais interessante no texto. Tomando a leitura como práticadiscursiva e mediante as respostas fornecidas, foi possível observar manifestações em relação aodesenvolvimento da ciência, no que se refere ao tempo para sua construção, à interação entre osconhecimentos, à relação com a tecnologia, à simplicidade do pensamento.

Palavras-chave: fotossíntese; prática discursiva; construção científica

In defence of historical texts reading in science teacher education

Abstract: It is analyzed in this article the work with a text which describes the construction ofthe concept “photosynthesis”, read by students from the Biological Sciences course, who wererequested to highlight what they deemed more interesting in the text. The reading is taken asa discursive practice and through the answers given by the students it was possible to observeevents in relation to the development of science, in what regards to the time needed for itsconstruction, the interaction of different knowledges, the relationship with technology, thesimplicity of thought.

Key words: photosynthesis; discursive practice; scientific construction.

Partindo do princípio descrito por Foucault (2004) de que as práticas soci-ais são produzidas discursivamente e, ao mesmo tempo, são produtoras dediscursos e saberes, e que os discursos formam os objetos de que falam, propo-nho a ciência e a leitura como práticas discursivas. Para este autor, a práticadiscursiva vincula-se a um conjunto de regras anônimas determinadas no tem-po e no espaço, definidas em determinada época para determinada área (social,linguística, econômica, etc.). São regras sociais construídas nas instituições (es-cola, hospital, prisão, família, etc.) que expressam os procedimentos teóricosaos quais o sujeito obedece, quando participa do discurso.

* Professora do Programa de Pós–Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná(UFPR), Brasil. [email protected]

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Levar em conta a ciência como prática discursiva significa considerá-la comoprodutora de conhecimentos, imersa em regras que definem seu discurso.Coracini (2003) complementa essa ideia, apontando que há um discurso pú-blico de que a ciência desloca o conhecimento produzido para fora do sujeito,que a realiza visando garantir objetividade e, consequentemente, confiabilidade.A ausência do sujeito garantiria a presença do objeto, cuja construção se dásobre “modelos racionais universalmente aplicáveis, funcionando segundo umcerto número de esquemas, modelos, valorização e códigos que se acredita in-dependentes de qualquer subjetividade” (idem, p. 320). Esse uso da razão tema expectativa de mostrar que o objeto não sofre interferência de crenças, vonta-des, interesses pessoais ou institucionais.

De outra forma, buscando expor o sujeito que produz ciência é que se deua escolha do texto histórico, objeto deste estudo. Neste são destacados trechosdos diários redigidos pelos próprios cientistas envolvidos com a explicação dafotossíntese.

Na mesma direção, a leitura, como prática social, mobiliza a memóriadiscursiva do sujeito-leitor, isto é, o interdiscurso, conduzindo-o a inscrever-senuma rede de interpretações e fazendo emergir diferentes sentidos. Equivale aconsiderá-la como uma atividade produzida sob determinadas condições —por exemplo, os tipos de discurso que se apresentam no texto, a relevânciaatribuída pelo leitor a certos fatores em detrimento de outros, a história deleitura do leitor, a harmonia ou a incompatibilidade ideológica entre leitor eautor do texto.

Coracini (1991) trata do discurso científico e do uso de textos científicosnos cursos de graduação, destacando a oposição subjetividade versus objetivida-de na ciência. A autora adota a perspectiva de que o texto não pode ser vistocomo objeto autônomo, como se tivesse uma realidade própria, isolada dosujeito leitor; mas, ao contrário, concebe-o como incapaz de reter sentido forado sujeito. Assim, em seu projeto de leitura, defende que o aluno tenha algo afazer ou a dizer relativamente àquilo que lê, para que produza sentido. A abor-dagem do texto científico em sala de aula deve criar condições para que o alunoperceba a subjetividade na ciência, pois ler esse tipo de texto pressupõe cons-truir sentido a partir de um contexto sociopolítico-ideológico.

Assim, o objetivo deste estudo é observar a produção de sentidos a partir daleitura de um texto histórico sobre o fenômeno “fotossíntese” por alunos docurso de ciências biológicas.

Quadro teórico-metodológico

Busco em Canguilhem algumas noções para apoiar-me na interpretação dasrespostas produzidas pelos estudantes-leitores às questões propostas. Para ele,

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“o objeto na história das ciências nada tem de comum com o objeto da ciência.O objeto científico é constituído pelo discurso metódico [...] O objeto dodiscurso histórico é, com efeito, a historicidade do discurso científico”(Canguilhem, 1994, p. 17, tradução minha).

Tendo em vista esta definição do objeto discursivo da ciência e da história daciência, é que optei por abordar um texto que retrata o discurso científico. ParaCanguilhem (1994), a história da ciência deve ser a história conceitual; no en-tanto, ele não restringe a ciência ao conceito, mas sua posição é a de que não sepode compreender a caminhada da ciência, se não se privilegiar a análise daformação do conceito. Este é considerado a expressão da norma da verdade dodiscurso científico, e privilegiá-lo significa valorizar a ciência como processo.

Para este filósofo, toda teoria científica é constituída por um feixe de concei-tos, ou seja, um sistema conceitual, segundo o qual apresenta respostas e suge-re soluções. Por conta disso ela é produto e não processo, assinala as respostasem detrimento dos problemas. Diferentemente, privilegiar o conceito implicadestacar a existência de uma questão, isto é, da própria formulação de umproblema. Machado (1981) destaca que Canguilhem procurou, em seus estu-dos, apontar a influência que a gênese de um conceito científico sofre, a partirde diferentes esferas teóricas. Por exemplo, ele relacionou o conceito de “célula”às várias teorias (biológica, física, social) ou o conceito de “normal” aos camposda fisiologia, da patologia, da sociologia e da clínica, pois um conceito nãoconhece fronteiras epistemológicas.

Canguilhem (1994) vê a história epistemológica como história conceitualque se realiza pela relação de um conceito com outros de uma mesma teoria, damesma ciência ou de ciências diferentes, inclusive com as práticas sociais epolíticas.

Segundo Machado (1981), Canguilhem não se interessa em analisar omomento em que um conceito começa a fazer parte de uma teoria científica,mas preocupa-se em estabelecer as filiações descontínuas que constituem ahistória do conceito, desde a sua produção teórica (fenomenológica) até suaexperimentação (fenomenotécnica), passando pelas etapas mais comuns ou pré-científicas, até chegar às mais científicas.

Outro aspecto destacado por Canguilhem (1994) é o caráter normativoque deve possuir a história das ciências, ou seja, ela tem por principal objetivojulgar o passado da ciência a partir da atualidade científica, distinguindo o erroe a verdade, o inerte e o ativo, o nocivo e o fecundo. No entanto, a históriarecorrente deve analisar o passado enquanto passado, respeitando sua lógicaconceitual e observando o que havia de positivo em suas formulações.

Apresentado esse quadro, informo que o texto indicado para leitura possuias seguintes características: retrata o histórico do conceito de fotossíntese; traz

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citações dos diários dos cientistas; destaca seus experimentos, apresentandoimagens; faz uma síntese das ideias, desde Aristóteles. Evidencia fatos históri-cos em que ocorreram mudanças de pensamento, erros conceituais e experi-mentais, divergências entre cientistas envolvidos nas pesquisas e dificuldadeem achar respostas e conclusões. Retrata a formulação do pensamento em cadamomento histórico, enfatizando ideias reinantes na época, influência entrepesquisadores e a perpetuação de experimentos.

Outro referencial adotado é o da Análise de Discurso (AD), segundo o qualo texto é constituído de enunciados heterogêneos, em relação tanto às posiçõesdo sujeito quanto à natureza das linguagens (científica, literária, descritiva,narrativa, etc.). Contudo, apresenta-se como uma unidade constituída por certadominância discursiva, e a leitura é um momento de constituição do texto,porque é neste que se desencadeia o processo de significação. As condições deprodução dessa leitura envolvem os sujeitos (o autor do texto e o leitor), aideologia (os sentidos que serão produzidos), a história de vida e de leitura doleitor. Interessam os sujeitos envolvidos e os diferentes gêneros de discursos;por exemplo, um livro de literatura, um texto bíblico, um artigo científico,produzirão diferentes modos de interação na leitura.

O estudo empírico

A pesquisa foi desenvolvida com 26 alunos do 3º ano do curso de ciênciasbiológicas da UFPR, matriculados na disciplina Metodologia de Ensino deCiências e Biologia. Foi solicitada a leitura do texto histórico “Fotossíntese: ahistória da construção de um conhecimento”, adaptado de Souza (2000). Asolicitação foi feita logo após a abordagem do conteúdo Epistemologia daCiência.

Após a leitura, os alunos responderam questões sobre o que acharam maisinteressante no texto; aquilo que previamente sabiam dessa temática; o fatomais marcante para a consolidação desse conhecimento; as influências desseconhecimento para a sociedade e, por fim, foi solicitado que organizassem umaproposta pedagógica, com o tema fotossíntese, para o Ensino Médio. Depoisque as respostas escritas foram entregues, foi realizada uma discussão sobre aprodução histórica do conceito “fotossíntese” e sua relação com a continuidadeou a ruptura no desenvolvimento do conhecimento científico.

Na análise a seguir, enfatizo apenas as respostas sobre o que os alunos julga-ram mais interessante no texto, articuladas à proposta pedagógica que desen-volveriam sobre essa temática. Por questão de espaço, apresento apenas umexemplo da proposta.

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A leitura no processo de produção do conhecimento científico

Apresento, por meio de recortes, os sentidos manifestados por, pelo menos,três alunos. Grifei em itálico expressões que justificam a inserção da resposta noreferido recorte.

Recorte 1: Tempo para essa produção – a temporalidade na ciência:

“O mais interessante é saber como aos poucos os conceitos consi-derados ‘básicos’ atualmente foram desenvolvidos.” (André)“O que mais me chamou a atenção foi ver como foi longo ocaminho para a construção do conhecimento sobre fotossínteseque se tem hoje.” (Simone)“O interessante no texto é que mostra a idéia de como tudo oque se sabe hoje e o que temos como verdade é resultado deuma construção que leva muito tempo e que se baseia em erros eacertos.” (Soraia)

As respostas selecionadas indicam que a leitura do texto proporcionou aesses estudantes a compreensão sobre como se dá o processo de construção deum conceito; no caso, a fotossíntese. Todos relacionaram o tempo com a con-cepção aceita atualmente, como se fizessem uma comparação entre o hoje e opassado, fato que os fez mencionar a ciência como “construção”, desfazendouma imagem dela como “descoberta”, concepção ainda fortemente presenteentre alunos dos cursos de ciências naturais. A meu ver, ocorreu, de certa for-ma, a compreensão de que o conhecimento científico se desenvolve em funçãode um problema e que leva tempo para consolidar-se, em função dasinadequações de pensamento.

Como exemplo de proposta pedagógica que esses estudantes desenvolveri-am no Ensino Médio, temos:

“Eu selecionaria dentro do histórico os estudiosos e experimen-tos mais importantes para a visão que se tem hoje, distribuiriatextos relacionados para grupos de alunos e posteriormente fa-ria um debate sobre os erros e acertos do passado de acordo como que se sabe hoje.” (Soraia)

As propostas de ensino estiveram intimamente relacionadas às percepçõescitadas como mais interessantes; eles realizariam os experimentos marcantesem cada período. Vejo nessa perspectiva uma preocupação desses futuros pro-fessores em promover em seus alunos a compreensão do “fazer” ciência.

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Recorte 2: Interação entre conhecimentos – interação entre pessoas, pensamentos, teorias eáreas de conhecimento

“Me interessou como a evolução do conhecimento em outrasáreas como Química, Física etc., por exemplo a invenção domicroscópio influenciou no desenvolvimento do conhecimentobiológico.” (Guilherme)“Fica bem claro como as idéias vão se modificando com o passardo tempo e como uma idéia ou um pensamento acaba influenci-ando a maneira com que o conhecimento se desenvolve. A cons-trução da ciência se dá a partir de experimentos, idéias,sobreposição de idéias, erros e acertos que acabam despertandoa curiosidade e o interesse de diferentes estudiosos.” (Claudia)“Saber que todos os métodos e teorias estão fortemente ligados aosconceitos e métodos vigentes na época de cada estudioso.” (Breno)“O modo como a cada conclusão obtida, mesmo que depois demuitos anos levava a questionamentos mais intrigantes, propor-cionando novas pesquisas e conclusões, chegando cada vez maispróximos da realidade.” (Carolina)

É possível observar nessas respostas que os alunos destacaram o processo deconstrução do conhecimento científico, de modo semelhante ao que apontouCanguilhem sobre as influências de diferentes esferas teóricas que sofre a gêne-se de um conceito. Esta compreensão surgiu a partir da percepção de queocorre um processo de continuidade-ruptura, ou seja, há umacomplementaridade entre os estudos, e não uma negação conclusiva, desper-tando para novas pesquisas e novas explicações, já que as últimas formulaçõesabrem espaços para novos problemas.

Como exemplo de proposta pedagógica, esses estudantes sugeriram:

“Cada grupo seria responsável por um vaso de planta e cadaplanta sofreria diferentes tipos de estresse (ambiente total escu-ridão, outra não receberia água, outra teria um solo pobre eoutra ficaria num ambiente com total condições), no final deum tempo as plantas seriam medidas e comparadas e o grupofaria um trabalho e apresentaria para a sala sobre a importânciadessa substância na fotossíntese.” (Guilherme)

As propostas de ensino desses futuros professores expressaram a interaçãoentre pessoas e entre conhecimentos, pois os grupos de alunos deveriam reali-zar experimentos diferenciados para que, ao final, se fizesse uma síntese sobre oque cada equipe estudou sobre os diferentes fatores que interferem na fotossíntese.

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Recorte 3: Relação com a tecnologia – inter-relação entre o desenvolvimento da ciência e osaparelhos e as técnicas disponíveis em cada momento histórico:

“O quanto o desenvolvimento de um conceito que expliqueum processo natural depende da evolução tecnológica.” (Liana)“Como o advento de novas técnicas mais específicas para resolu-ção dos problemas foi crucial.” (Léia)“Cada cientista estudou algo para tentar desvendar como umvegetal se desenvolvia. Isto dependia muito da época em que ocientista vivia e que tecnologias utilizava a fim de concluir comouma planta se desenvolvia.” (Tania)“Enfoca as curiosidades do homem em cada época e relacionacom a evolução da tecnologia na mesma época.” (Andreia)“É interessante ver a transformação do pensamento e a evoluçãoda aparelhagem técnica que claramente permitiu a evolução doconhecimento [...] Por exemplo com a descoberta do microscó-pio foi possível a observação dos estômatos, levantando a hipó-tese de que a atmosfera (o ar) também seria importante [...]posteriormente com a possibilidade da marcação das moléculasde oxigênio foi possível finalmente demonstrar que a água ab-sorvida pelas plantas dariam origem ao oxigênio atmosférico.”(Leila)

Pode-se observar, nesses fragmentos, que os estudantes destacaram a íntimarelação entre a ciência e a tecnologia disponível em cada momento histórico,contribuindo para as mudanças na elaboração conceitual. Esta visão, de certomodo, remete às filiações descontínuas que constituem a história do conceito,como aponta Canguilhem, desde sua produção teórica até a suafenomenotécnica1. Ou seja, o modelo teórico tem sua capacidade aprimoradacom a ajuda de instrumentos, pois os dados apreendidos pela percepção nãooferecem informações seguras; há, assim, a necessidade de utilização de umaaparelhagem que renova o processo de racionalização. Dessa forma, a configu-ração do fenômeno depende da postura do observador, do modelo teórico e doaparelho que forja a experiência.

O ensino desta temática esteve relacionado à possibilidade de debater mu-danças de pensamento nos modelos teóricos propostos, como segue o exemploabaixo:

“1ª. etapa: alunos escreveriam um texto sobre suas idéias, supo-sições e hipóteses sobre o tema; 2ª. etapa: alunos pesquisariam e

1. Relação entre teoria e instrumento, sendo este considerado uma teoria materializada, comodefende Bachelard (1996, p. 297): “o instrumento de medida acaba sempre sendo uma teoria, eé preciso compreender que o microscópio é um prolongamento mais do espírito que do olho”.

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apresentariam um teatro; 3ª. etapa: professor apresentaria asidéias iniciais dos alunos promovendo uma discussão sobre quehá de errado e de correto e como teria sido a evolução do pensa-mento dos alunos.” (Leila)

Leila sugeriu o confronto das ideias de alunos com as dos pesquisadores,numa tentativa de promover uma comparação entre seus processos de mudan-ça de pensamento. Liana, por outro lado, propôs a elaboração de uma série deexperimentos em que se controla uma variável (luz, no primeiro; água, nosegundo; ar, no terceiro), o que, além de complicado, requer explicações porparte dos alunos sobre as consequências estruturais e moleculares. Assim, pare-ce que essas futuras professoras incorporaram, a partir da leitura do texto, aimportância de desenvolver nos alunos do Ensino Médio diferentes elabora-ções teóricas para que percebam possibilidades diversas de explicação científicapara um mesmo fenômeno.

Recorte 4: Simplicidade de pensamento – relação do pensamento dos estudiosos com suaépoca, o que foi interpretado pelos alunos como um movimento do simples ao complexo:

“Como um fenômeno tão complexo foi sendo descoberto porraciocínios simples, de certa forma ingênuos, mas que foramindispensáveis.” (Carol)“Ao vermos as explicações simplistas e intuitivas, nos instigamosem refletir se teríamos criatividade e/ou capacidade de sugeriralgo mais próximo da realidade, dentro das condições e limita-ções nos quais os estudiosos estavam inseridos. Mais interessan-te ainda são os experimentos. É muito inteligente e simples ofeito por van Helmont [...] de ‘uma hora para outra’ com umsimples experimento, foi mudada a concepção tida durante sécu-los, mostrando não que Aristóteles estava errado (como vanHelmont pensara), mas que havia outros fatores envolvidos.”(Júlia)“É admirável a simplicidade da maioria dos experimentos e comocada um teve sua importância, mesmo quando equivocado.”(André)“É interessante ver como no início a ciência era pouco científica,por exemplo, van Helmont com pouco conhecimento teóricoacerca do assunto ele teve um sacada e com um experimentosimples pode provar uma idéia que serviu de ponto de origempara quem veio depois.” (Léia)“O fato de que os experimentos realizados são relativamente sim-ples [...] mas pode-se perceber que a forma de raciocínio não éalgo fora do normal, que seria praticamente impossível de serpensado.” (Ari)

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Observa-se, nesses fragmentos, que os alunos realizaram aquilo queCanguilhem denomina de recorrência histórica, ou seja, julgar o passado daciência a partir da atualidade, distinguindo erro de verdade, analisando e res-peitando a lógica do passado, observando o que havia de positivo nessas formu-lações. Tal fato levou os alunos Julia e Ari a colocarem-se no papel dos cientistasdo passado. Julia questionou se haveria a possibilidade de desenvolver o mesmoraciocínio diante das limitações do passado e Ari julgou que, apesar de bemelaborado, tal raciocínio provavelmente seria desenvolvido por ele e por outroscientistas.

As propostas para o Ensino Médio enfocaram a atualidade em função dopassado, por exemplo:

“Os alunos teriam que provar através da experimentação comoos pesquisadores chegaram no que se conhece sobre fotossíntesehoje. Um grupo faria um experimento e o divulgaria, a partirdisso os outros grupos aceitariam ou, ao fazer críticas, tentariamprovar através de experimentos que sua crítica faz sentido. Elessempre tentariam achar falhas no experimento alheio para indi-car outros caminhos ou outras interpretações. Se não fosse pos-sível chegar ao que hoje se conhece a turma apresentaria suasconclusões a partir dos experimentos. Isso é o que ocorre nacomunidade científica, não existe verdade absoluta, os alunossó estariam um pouco atrasados em relação ao conceito atual,como se fossem pesquisadores de algumas décadas atrás.” (Ari)

Há, implicitamente, nas propostas de ensino, o pensamento de que é afinalidade do presente que esclarece a história científica. Todas elas destacaramo conhecimento atual sobre fotossíntese como condição para uma releitura dopassado, no sentido de que o reconhecimento de uma teoria que se tornouultrapassada auxiliaria no entendimento do progresso do pensamento. Issoporque o conhecimento atual ampliou a compreensão de determinado fenô-meno por um processo de racionalização mais abrangente.

Tratou-se de um trabalho pedagógico que propiciou o fortalecimento dopensamento como decorrência de seus avanços, o que pode levar os alunos aconstruírem uma visão mais consistente sobre a fotossíntese, não correndo orisco de regredirem ou reincidirem nos erros, nos equívocos e nas incompletudesanteriormente cometidas pelos pesquisadores.

A leitura do texto histórico: uma prática discursiva na formação docente

Declarei, no início deste artigo, que a leitura é uma prática discursiva, jáque me interessava apreender os modos de interpretação dos alunos leitores

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enquanto gestos, isto é, atos que propiciam uma intervenção no mundo. Nocaso, como futuros professores, foi possível observar a influência do texto lidono planejamento da proposta pedagógica. Assim, os leitores manifestaram umamovimentação e uma relação de saberes entre o que apontaram como foco deinteresse no texto e o foco da ação didática.

Quando o tempo na construção do conhecimento científico foi o destaque,a proposta de ensino enfatizou os experimentos marcantes de cada momentodessa construção. Quando a ênfase recaiu na interação entre conhecimentos, oensino priorizou grupos diferenciados de experimentos, visando uma integraçãode informações. Se a questão de interesse centrou na relação da ciência com atecnologia, a sugestão para o ensino da fotossíntese foi de obter diferentes ela-borações teóricas por parte dos alunos, para que percebessem as várias possibi-lidades de explicação para o mesmo fenômeno. Já, se o interesse no texto foidespertado pela simplicidade das ideias anteriores à atual conceitualização, aproposta privilegiou o conhecimento atual como condição para a releitura dopassado.

Também destaquei que a leitura possibilitou a emergência de sentidos jáexistentes nos estudantes, no âmbito do interdiscurso (a memória discursiva),em relação à produção do conhecimento na ciência. Assim, ao ler o texto,foram mobilizados pensamentos duais, como processo-produto, continuida-de-ruptura, presente-passado, teoria-técnica. É como se os leitores realizassemo papel que Canguilhem destaca aos epistemólogos: o de percorrer o progressoda ciência, a dinâmica da cultura científica, o que implicou perceber o conhe-cimento científico desenvolvendo-se a caminho de uma maior racionalidade,por meio de uma descontinuidade, por um movimento de reformulação emque ocorre uma reorganização incessante do saber.

Portanto, para que a leitura funcione como um processo de produção desentidos, segundo a AD, ou seja, como um gesto de interpretação do sujeitoque lê, é importante permitir ao leitor inscrever-se em uma disputa de inter-pretações; no caso, as questões propostas tinham esse objetivo. Elas solicitaramque os alunos destacassem o que foi mais interessante no texto; aquilo que jásabiam; o fato mais marcante para a consolidação do conhecimento sobre afotossíntese; as influências desse conhecimento para a sociedade. E que organi-zassem uma proposta pedagógica com o tema fotossíntese para o Ensino Mé-dio, como dito acima. Posteriormente, ocorreu a discussão em sala de aulasobre este conceito em relação à epistemologia da ciência. Acredito, como de-monstrado nos recortes acima, que esse mecanismo didático tenha proporcio-nado a desestabilização de sentidos prévios e que, ao construírem um possíveltrabalho pedagógico com a temática, emergiram saberes inscritos no sujeito-leitor.

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O processo que seguiu o projeto filosófico defendido por Canguilhem, queune a epistemologia à história da ciência, centralizou-se em dois pontos: oconceito científico e a descontinuidade histórica, trabalho que cooperou paracolocar o discurso científico dentro do contexto social, aproximando-o do estu-dante. Segundo Orlandi (2003), ao refletir sobre os fatos científicos e as dife-rentes formulações, passa-se a conhecer a história dos conceitos, ou melhor,que os conceitos têm uma história.

Além disso, este estudo permitiu questionar a verdade do conhecimentocientífico e resgatar o lugar da subjetividade de quem faz a ciência. Aspectosque, ao que parece, apontaram uma outra possibilidade ao futuro professor: ade adotar uma postura de não tratar seu aluno como recipiente de verdades, oque foi observado nas atividades por eles propostas para o ensino da fotossíntese.

É preciso reconhecer também a relevância do texto utilizado, em especialsuas características linguísticas, como a citação de trechos dos diários dos cien-tistas que estudaram a fotossíntese e a utilização, por parte da autora (Souza,2000), de expressões como “quando olhamos”, “ficamos tentados”, “a maneiracomo conhecemos”. A meu ver, a primeira característica aproxima o estudantede biologia do “fazer ciência”, pois, ao relatar as palavras dos próprios pesquisa-dores, a autora expõe os leitores à presença do cientista, às suas dúvidas, às suasdecisões, aos seus problemas. Já a segunda marca do texto permite à autoraenvolver o leitor, ao compartilhar com ele a caminhada nessa construção cien-tífica.

Assim, a natureza da linguagem textual foi outro elemento que, associadoàs atividades solicitadas aos alunos quando efetuaram a leitura do texto, contri-buiu para fazer emergir a subjetividade na ciência. Tenho defendido, em ou-tros estudos que desenvolvi, a utilização de diferentes gêneros textuais na for-mação do professor, seja nas atividades de leitura ou de escrita, pois o contatocom uma linguagem menos acadêmica deve levar o estudante a produzir iden-tificações com o “eu professor” ou, neste caso, com o “eu da ciência”.

Para finalizar, reafirmo que a leitura e a ciência são práticas discursivas, jáque, mesmo estando sujeitas às regras sociais que lhes são impostas, “como emtoda relação de poder, vez por outra, pululam pontos de resistência, que apon-tam para a constatação de que essa homogeneidade é inevitavelmente ilusória”(Coracini, 2003, p. 326). Conforme apontei neste artigo, o papel do textohistórico escolhido foi o de trazer à tona a subjetividade da e na ciência, pois,como comenta Coracini (2003, p. 335), “o que um homem vê depende tantodaquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual ensi-nou a ver”. Eis aí a função da leitura na formação do professor de ciências.

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Referências bibliográficas

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ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas:Pontes, 2003.

SOUZA, S. C. Leitura e fotossíntese: proposta de ensino numa abordagem cultural. Tese(Doutorado) — Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas, 2000.

Recebido em 15 de outubro de 2010 e aprovado em 10 de dezembro de 2010.

CO

LEÇ

ÃO

EX

PLO

RAN

DO

O E

NSI

NO

CIÊ

NC

IAS

VO

LUM

E 18

ENSI

NO

FU

ND

AM

ENTA

L

CO

LE

ÇÃ

O E

XP

LO

RA

ND

O O

EN

SIN

O

Vol

. 1 –

Mat

emát

ica

Vol

. 2 –

Mat

emát

ica

Vol

. 3 –

Mat

emát

ica

Vol

. 4 –

Qu

ímic

a

Vol

. 5 –

Qu

ímic

a

Vol

. 6 –

Bio

logi

a

Vol

. 7 –

Fís

ica

Vo

l. 8

– G

eog

rafi

a

Vol

. 9 –

An

tárt

ica

Vol

. 10

– O

Bra

sil e

o M

eio

Am

bie

nte

An

tárt

ico

Vol

. 11

– A

stro

nom

ia

Vol

. 12

– A

stro

náu

tica

Vol

. 13

– M

ud

ança

s C

lim

átic

as

Vo

l. 1

4 –

Fil

oso

fia

Vol

. 15

– S

ocio

logi

a

Vol

. 16

– E

span

hol

Vol

. 17

– M

atem

átic

a

Dad

os I

nte

rnac

ion

ais

de

Cat

alog

ação

na

Pu

bli

caçã

o (C

IP)

Cen

tro

de

Info

rmaç

ão e

Bib

liot

eca

em E

du

caçã

o (C

IBE

C)

Ciê

nci

as :

ensi

no

fun

dam

enta

l / C

oord

enaç

ão A

ntô

nio

Car

los

Pav

ão .-

Bra

síli

a : M

inis

téri

o d

a E

du

caçã

o, S

ecre

tari

a d

e E

du

caçã

o B

ásic

a, 2

010

.

212

p. :

il. (

Col

eção

Exp

lora

nd

o o

En

sin

o ; v

. 18

)

IS

BN

978

-85-

778

3-0

42

-8

1.C

iên

cias

. 2. E

nsi

no

Fu

nd

amen

tal.

I. P

avão

, An

tôn

io C

arlo

s (C

oord

.) I

I. B

rasi

l.

Min

isté

rio

da

Ed

uca

ção.

Sec

reta

ria

de

Ed

uca

ção

Bás

ica.

III

. Sér

ie.

CD

U 3

73.3

:5

101

Ciências – Volume 18

Ev

olu

ir é

me

lho

ra

r?

Uti

liza

mos

o v

erbo

“ev

olu

ir”

mu

itas

vez

es e

em

inú

mer

os c

on-

text

os, e

m n

osso

dia

a d

ia. D

izem

os q

ue

um

alu

no e

volu

iu a

o lo

ngo

do

ano,

qu

and

o su

a ap

ren

diz

agem

cor

resp

ond

eu a

nos

sas

exp

ec-

tati

vas.

Fal

amos

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evo

luçã

o d

a te

cnol

ogia

, ao

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ref

erir

mos

ao

pro

gres

so t

ecno

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co. O

s am

ante

s d

o fu

tebo

l fi

cam

de

olho

na

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luçã

o d

e se

u ti

me

na t

abel

a d

o ca

mpe

onat

o. P

ara

algu

mas

rel

igiõ

es, a

al

ma

evol

uir

ia p

ara

um

nív

el s

up

erio

r em

su

cess

ivas

ree

ncar

naçõ

es.

Em

tod

os e

sses

con

text

os t

ão d

ifer

ente

s, e

volu

ir e

voca

, em

alg

um

a m

edid

a, u

ma

idei

a d

e p

rogr

esso

, m

elh

ora,

ap

erfe

içoa

men

to.

Mas

se

rá q

ue

este

ver

bo c

arre

ga s

emp

re e

sse

sign

ifica

do?

O d

icio

nár

io H

ouai

ss l

ista

as

segu

inte

s ac

epçõ

es p

ara

a p

ala-

vra

evol

uçã

o:

1. a

to,

pro

cess

o ou

efe

ito

de

evol

uir

; 2.

pad

rão

form

ado,

co

nsti

tuíd

o ou

sim

ulad

o po

r um

a sé

rie

de

mov

imen

tos,

esp

. d

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ldad

os, n

avio

s et

c. q

ue

se d

isp

õem

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lin

ha d

e ba

ta-

lha

ou d

esfil

e m

ilita

r (m

ais

us. n

o pl

.); m

anob

ra; 3

. qua

lque

r sé

rie

de

atos

des

envo

lvid

os c

ontí

nu

a e

regu

larm

ente

, ger

. co

mp

leta

ndo

um

cic

lo h

arm

onio

so (

ex.:

da

gina

sta,

de

um

a

Ca

pít

ulo

7

Tr

an

sfo

rm

ar

a e

vo

luç

ão

Ma

ria

Lu

iza

Ga

sta

l*

* D

outo

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colo

gia.

Pro

fess

ora

do

Inst

itu

to d

e C

iênc

ias

Bio

lógi

cas

da

Uni

ver-

sid

ade

de

Bra

síli

a.

Coleção Explorando o Ensino

102

esco

la d

e sa

mba

); 4.

mov

imen

to c

ircu

lar;

gir

o, v

olta

; 5. t

odo

pro

cess

o d

e d

esen

volv

imen

to e

ap

erfe

içoa

men

to d

e u

m s

a-be

r, d

e um

a ci

ênci

a et

c.; 6

. pro

dut

o d

e um

con

heci

men

to, d

e u

ma

técn

ica,

de

um

sab

er q

ue

se d

esen

volv

eu; 7

. pro

cess

o gr

adat

ivo,

pro

gres

sivo

de

tran

sfor

maç

ão,

de

mu

dan

ça d

e es

tad

o ou

con

diç

ão; p

rogr

esso

; 8. m

ovim

ento

per

iód

ico

de

um

ast

ro e

m t

orn

o d

e u

m o

utr

o p

rin

cip

al; r

evol

uçã

o; (

ex:

dos

pla

net

as);

9.

pro

cess

o at

ravé

s d

o qu

al a

s es

péc

ies

se

mod

ifica

m a

o lo

ngo

do

tem

po;

10.

teo

ria

segu

ndo

a qu

al a

s es

péc

ies

se m

odifi

cam

ao

long

o d

o te

mp

o gr

aças

à a

ção

das

m

uta

ções

e d

a se

leçã

o na

tura

l; 11

. pro

cess

o d

e d

esen

volv

i-m

ento

nat

ura

l, bi

ológ

ico

e es

pir

itu

al, d

iscu

tid

o n

o p

ensa

-m

ento

de

Spen

cer

(182

0-19

03)

ou d

e B

ergs

on (

1859

-194

1), e

m

que

tod

a a

natu

reza

, com

seu

s se

res

vivo

s ou

inan

imad

os, s

e ap

erfe

içoa

pro

gres

siva

men

te, r

ealiz

and

o no

vas

cap

acid

ades

, m

anif

esta

ções

e p

oten

cial

idad

es.

Not

e qu

e a

mai

or p

arte

das

ace

pçõ

es t

raz

con

sigo

um

a n

oção

d

e p

rogr

esso

. Mas

, e a

s ac

epçõ

es q

ue

se a

plic

am à

Bio

logi

a, t

ambé

m

traz

em e

ssa

cara

cter

ísti

ca?

A r

esp

osta

é u

m c

ontu

nden

te N

ÃO

. Em

B

iolo

gia,

evo

luçã

o e

pro

gres

so s

ão c

oisa

s co

mp

leta

men

te s

epar

adas

!!!

De

fato

, as

defi

niç

ões

9 e

10 n

ão t

raze

m c

onsi

go e

ste

sign

ifica

do.

E

ntão

, o q

ue

é ev

olu

ção

em B

iolo

gia,

e p

orqu

e u

sam

os u

ma

pal

avra

o in

apro

pri

ada

par

a fa

lar

des

te p

roce

sso?

Na

Bio

logi

a, q

uan

do

fala

mos

em

evo

luçã

o, e

stam

os d

izen

do

que

um

a es

péc

ie p

ode

dar

ori

gem

a o

utr

a es

péc

ie.

Isso

aco

nte

ce,

sobr

etu

do,

em

vir

tud

e d

e u

m p

roce

sso

den

omin

ado

sele

ção

nat

ura

l. V

amos

con

vers

ar u

m p

ouco

sob

re e

volu

ção.

Da

rw

in,

La

ma

rc

k e

a s

ele

çã

o n

atu

ra

l

A id

eia

de

sele

ção

natu

ral f

oi c

once

bid

a no

séc

ulo

XIX

, de

form

a in

dep

end

ente

, por

doi

s in

gles

es q

ue

não

se c

onhe

ciam

pes

soal

men

-te

: Cha

rles

Dar

win

(o

mai

s fa

mos

o) e

Alf

red

Wal

lace

. Tan

to D

arw

in

quan

to W

alla

ce v

iaja

ram

pel

os t

rópi

cos,

e a

mbo

s es

tive

ram

no

Bra

sil.

Am

bos,

tam

bém

, fica

ram

im

pre

ssio

nad

os c

om a

eno

rme

div

ersi

dad

e d

e p

lant

as e

ani

mai

s qu

e vi

viam

nos

am

bien

tes

trop

icai

s. E

os

doi

s se

per

gunt

aram

a m

esm

a co

isa:

“co

mo

pod

em t

er s

urg

ido

tant

as e

s-p

écie

s, e

por

qu

e a

div

ersi

dad

e d

os t

róp

icos

é t

ão s

up

erio

r à

das

103

Ciências – Volume 18

regi

ões

tem

pera

das

?”. H

avia

, no

sécu

lo X

IX, u

m in

tens

o d

ebat

e a

resp

eito

da

orig

em d

os s

eres

vi-

vos,

com

a m

aior

ia d

os c

ient

ista

s d

efen

den

do

que

elas

ter

iam

se

orig

inad

o p

or c

riaç

ão e

spec

ial,

por

Deu

s. V

ário

s ou

tros

, en

tre-

tant

o, d

efen

dia

m q

ue a

s es

péci

es

se o

rigi

nava

m a

par

tir

de

outr

as

espé

cies

, def

end

end

o ex

plic

açõe

s ch

amad

as à

ép

oca

de

tran

smu

ta-

cion

ista

s, m

as o

mec

anis

mo

pel

o qu

al i

sso

ocor

reri

a er

a ob

jeto

de

mu

ita

cont

rové

rsia

.A

ori

gina

lid

ade

de

Dar

win

e

Wal

lace

não

est

á n

a id

eia

de

tran

smu

taçã

o d

e es

péc

ies,

bast

ante

dif

un

did

a à

époc

a. O

p

róp

rio

avô

de

Dar

win

, E

ras-

mu

s, e

ra u

m t

rans

mu

taci

onis

ta, e

via

as

esp

écie

s se

tra

nsm

uta

ndo,

d

evid

o a

um

a fo

rça

inte

rna,

des

de

as m

ais

sim

ple

s at

é as

mai

s co

m-

ple

xas.

Ess

a id

eia

anti

ga d

e co

ntin

uid

ade

entr

e es

péc

ies

levo

u, p

or

exem

plo

, à c

once

pçã

o d

e u

m s

er m

eio

anim

al, m

eio

pla

nta;

Era

smu

s D

arw

in d

edic

ou u

m p

oem

a p

ara

o bo

rom

etz.

A

rad

ical

ori

gina

lidad

e re

sid

e, s

im, n

o m

ecan

ism

o qu

e pr

opu

se-

ram

: a s

eleç

ão n

atu

ral.

É u

m m

ecan

ism

o m

ecan

icis

ta, q

ue

não

invo

ca

qual

quer

for

ma

de

forç

a es

peci

al (

com

o as

exp

licaç

ões

de

Cha

mbe

rs,

Lam

arck

e E

rasm

us

Dar

win

, p

or e

xem

plo

), e

qu

e si

gnifi

cou

um

a ru

ptu

ra r

adic

al n

a fo

rma

de

visu

aliz

ar a

vid

a e

a es

péc

ie h

um

ana.

Tal

mec

anis

mo

se b

asei

a n

o fa

to d

e qu

e as

esp

écie

s te

nd

em a

p

rod

uzi

r m

uit

o m

ais

pro

le d

o qu

e o

ambi

ente

é c

apaz

de

sup

orta

r.

Sign

ific

a qu

e os

peq

uis

pro

du

zem

mai

s se

men

tes

do

que

as q

ue

se t

ran

sfor

mar

ão e

m p

equ

izei

ros

adu

ltos

, gam

bás

pro

du

zem

mai

s fi

lhot

es d

o q

ue

os q

ue

cheg

arão

à i

dad

e ad

ult

a, m

osca

s p

rod

u-

zem

mai

s ov

os d

o qu

e os

qu

e se

tra

nsf

orm

arão

em

fu

tura

s m

os-

cas.

Ess

a é

a re

gra

da

nat

ure

za. O

qu

e ac

onte

ce c

om o

exc

eden

te?

Mor

re. A

lgu

ns

dos

qu

e ch

egam

à i

dad

e ad

ult

a ta

mbé

m m

orre

m

ou n

ão c

onse

guem

pro

du

zir

pro

le. D

arw

in e

Wal

lace

pro

pu

sera

m

que

aqu

eles

org

anis

mos

qu

e m

orre

m o

u n

ão c

onse

guem

pro

du

zir

Fig

ura

16:

O l

end

ário

Bor

omet

z, m

eio

anim

al, m

eio

pla

nta

Coleção Explorando o Ensino

104

pro

le t

end

em a

ser

os

qu

e es

tão

men

os a

dap

tad

os a

o am

bie

nte

on

de

vive

m.

A i

dei

a d

e cr

esci

men

to d

ifer

enci

ado

de

pop

ula

ções

e r

ecu

rsos

ha

via

sid

o co

nceb

ida,

com

ou

tra

fina

lid

ade,

pel

o ge

ógra

fo T

hom

as

Mal

thu

s, e

m 1

803.

Pre

ocu

pad

o co

m o

cre

scim

ento

pop

ula

cion

al d

as

cid

ades

ing

lesa

s, e

m p

lena

Rev

olu

ção

Ind

ust

rial

, com

o a

um

ento

do

núm

ero

de

pob

res,

ele

def

end

ia u

m p

rogr

ama

de

cont

role

de

nata

li-d

ade

base

ado

em a

bsti

nênc

ia s

exu

al, a

rgu

men

tand

o qu

e, s

e d

eixa

das

à

pró

pri

a so

rte,

as

pop

ula

ções

hu

man

as (

mai

s es

pec

ifica

men

te o

s p

obre

s...)

ten

der

iam

a s

e re

pro

du

zir

e a

aum

enta

r em

mer

o d

e fo

rma

mu

ito

sup

erio

r ao

au

men

to d

os r

ecu

rsos

. Infl

uen

ciad

os p

ela

leit

ura

de

Mal

thu

s, D

arw

in e

Wal

lace

ap

lica

ram

a i

dei

a d

e cr

esci

-m

ento

dif

eren

cial

de

pop

ula

ções

e r

ecu

rsos

a t

odos

os

sere

s vi

vos,

cr

ian

do

um

a ex

pli

caçã

o m

ecan

icis

ta p

ara

a gr

and

e d

iver

sid

ade

de

vid

a d

o p

lan

eta.

Alé

m d

isso

, en

fati

zara

m o

asp

ecto

da

adap

taçã

o,

que

não

havi

a si

do

pens

ado

por

Mal

thus

– u

m c

once

ito

fund

amen

tal

na t

eori

a qu

e es

tava

m p

rop

ond

o.

Vej

a qu

e a

sele

ção

nat

ura

l n

ão é

um

pro

cess

o al

eató

rio,

e q

ue

o m

esm

o in

div

ídu

o p

ode

ser

mu

ito

bem

ad

apta

do

a u

m a

mbi

ente

, m

as e

star

em

des

vant

agem

em

ou

tro.

Pen

se n

um

urs

o p

olar

: ele

est

á ad

apta

do

às c

ond

içõe

s ge

lad

as d

o Á

rtic

o, m

as t

em p

ouca

s ch

ance

s d

e so

brev

iver

em

am

bien

tes

mai

s qu

ente

s. D

aí h

aver

se

tran

sfor

mad

o no

sím

bolo

da

amea

ça d

o aq

uec

imen

to g

loba

l. C

om o

aqu

ecim

ento

d

as r

egiõ

es á

rtic

as, a

esp

écie

pas

sou

a s

ofre

r ri

sco

de

exti

nção

. O

mec

anis

mo

prop

osto

por

Dar

win

e W

alla

ce p

ode

ser

resu

mid

o d

a se

guin

te f

orm

a:A

s es

péc

ies

apre

sen

tam

um

a gr

and

e va

riab

ilid

ade.

Os

or-

1.

gani

smos

de

um

a m

esm

a es

péc

ie d

ifer

em e

ntre

si

em v

ário

s as

pec

tos,

com

res

pei

to a

su

a fo

rma

(mor

folo

gia)

, fu

ncio

na-

men

to (

fisi

olog

ia)

ou c

ompo

rtam

ento

. Mui

tas

des

sas

cara

cte-

ríst

icas

são

her

dad

as (

pas

sad

as d

e u

ma

gera

ção

a ou

tra)

.A

s es

péci

es p

rod

uzem

mai

s d

esce

nden

tes

do

que

o am

bien

te

2.

pod

e su

por

tar.

Não

alim

ento

s ne

m a

brig

o p

ara

tod

os o

s or

gani

smos

pro

du

zid

os n

os p

roce

ssos

de

rep

rod

uçã

o se

xua-

da

e as

sexu

ada.

Com

o re

sult

ado

dos

doi

s fa

tos

acim

a en

um

erad

os,

obse

rva-

mos

qu

e: a)

sobr

eviv

em m

enos

org

anis

mos

do

que

aqu

eles

qu

e sã

o p

rod

uzi

dos

;

105

Ciências – Volume 18

b)

os o

rgan

ism

os c

apaz

es d

e se

rep

rod

uzi

r sã

o aq

uel

es m

e-lh

or a

dap

tad

os p

ara

o am

bien

te o

nde

se e

ncon

tram

;c)

os

org

anis

mos

que

sob

revi

vem

pos

suem

mai

or p

roba

bili-

dade

de

deix

ar d

esce

nden

tes

que,

por

sua

vez

, pos

suem

as

cara

cter

ísti

cas

mai

s ad

apta

das

ao

ambi

ente

ond

e vi

vem

.

Port

anto

, a s

eleç

ão n

atu

ral

favo

rece

a s

obre

vivê

ncia

e a

rep

ro-

du

ção

dos

org

anis

mos

qu

e p

ossu

em d

eter

min

adas

car

acte

ríst

icas

. E

ess

as c

arac

terí

stic

as,

com

o re

sult

ado

da

rep

rod

uçã

o, t

end

em a

se

dis

sem

inar

naq

uel

a es

péc

ie (

cad

a ve

z m

ais

orga

nism

os d

aqu

ela

esp

écie

as

pos

suem

), p

or e

star

em p

rese

nte

s n

os o

rgan

ism

os q

ue

sobr

eviv

em e

se

rep

rod

uze

m.

Sim

ple

s, n

ão?

Dar

win

e W

alla

ce, e

ntre

tant

o, t

inha

m u

m p

robl

e-m

a: e

les

não

sabi

am c

omo

ocor

ria

a tr

ansm

issã

o d

essa

s ca

ract

erís

tica

s d

e u

ma

gera

ção

para

a o

utr

a. A

exp

licaç

ão m

ais

freq

uen

te, n

o sé

culo

X

IX, e

ra a

de

que

essa

tra

nsm

issã

o oc

orri

a p

or t

ran

smis

são

dir

eta

da

cara

cter

ísti

ca,

mes

mo

que

ela

tive

sse

sid

o ad

quir

ida

du

ran

te a

vi

da

do

ind

ivíd

uo.

Voc

ê já

ou

viu

fal

ar d

isso

, ao

estu

dar

a o

bra

de

Lam

arck

, nat

ura

list

a qu

e vi

veu

na

Fran

ça c

erca

de

um

séc

ulo

ant

es

de

Dar

win

e q

ue

apre

sent

ou u

ma

teor

ia q

ue

busc

ava

exp

lica

r co

mo

as e

spéc

ies

se t

rans

form

am. C

ostu

mam

os c

ham

ar e

sse

pro

cess

o d

e “h

eran

ça d

e ca

ract

eres

ad

quir

idos

”, e

tan

to L

amar

ck q

uan

to D

arw

in

acre

dit

avam

qu

e el

a ti

nha

um

pap

el im

por

tant

e. E

ntre

tant

o, D

arw

in

acre

dit

ava

que

a se

leçã

o na

tura

l fo

sse

o p

roce

sso

mai

s im

por

tant

e.

Ao

des

conh

ecer

o m

ecan

ism

o d

a he

ranç

a, D

arw

in n

ão p

odia

sab

er

com

o su

rgia

m a

s va

riaç

ões.

H

oje

sabe

mos

qu

e a

hera

nça

se d

á p

or m

eio

de

mat

eria

l ge

né-

tico

(D

NA

) tr

ansm

itid

o n

as c

élu

las

sexu

ais

(os

gam

etas

), e

qu

e a

hera

nça

de

cara

cter

es a

dqu

irid

os n

ão o

corr

e, p

elo

men

os n

os m

old

es

imag

inad

os n

o sé

culo

XIX

. São

as

alte

raçõ

es f

ortu

itas

na

estr

utu

ra

dos

DN

As,

as

mu

taçõ

es q

ue

orig

inam

as

vari

açõe

s so

bre

as q

uai

s at

uar

á a

sele

ção

natu

ral.

As

difi

cu

lda

de

s d

e s

e e

ns

ina

r e

vo

luç

ão

: a

ca

so

, p

ro

gr

es

so

e r

eli

giã

o

O a

caso

na

ev

olu

ção

Perc

eba,

ent

ão, q

ue

a ev

olu

ção

acon

tece

por

mei

o d

e u

m p

roce

s-so

qu

e d

epen

de

do

acas

o (a

s m

uta

ções

), m

as n

ão s

ó d

ele.

Um

a d

as

Coleção Explorando o Ensino

106

dific

uld

ades

que

os

prof

esso

res

cost

umam

enc

ontr

ar, q

uand

o en

sina

m

sobr

e a

evol

uçã

o d

arw

inis

ta, d

iz r

esp

eito

just

amen

te a

o ac

aso.

Se

ria

pos

síve

l qu

e ór

gãos

e e

stru

tura

s tã

o co

mp

lexa

s e

mar

a-vi

lhos

as, c

omo

o ol

ho h

um

ano

ou o

sis

tem

a ne

rvos

o su

rgis

sem

por

m

era

obra

do

acas

o? É

cla

ro q

ue

não

! E

não

foi

iss

o o

que

pro

pôs

D

arw

in.

O a

caso

pro

du

z as

mu

taçõ

es,

mas

ela

s só

per

man

ecer

ão

exis

tind

o se

for

em f

avor

ávei

s ao

s or

gani

smos

. Ass

im, o

olh

o hu

ma-

no, c

omo

o co

nhec

emos

hoj

e, é

res

ult

ado

de

inco

ntáv

eis

peq

uen

as

mu

taçõ

es q

ue

fora

m s

elec

iona

das

por

que

dav

am a

seu

s p

orta

dor

es a

p

ossi

bilid

ade

de

per

cebe

r m

elho

r se

u m

eio

ambi

ente

. Mas

aco

ntec

e-ra

m a

ind

a m

ais

mu

taçõ

es d

esfa

vorá

veis

, qu

e se

per

der

am a

o lo

ngo

da

hist

ória

, por

que

não

ofer

ecer

am v

anta

gens

a s

eus

por

tad

ores

. C

omo

assi

nala

o p

aleo

ntól

ogo

Step

hen

Jay

Gou

ld (

1990

a, p

. 84)

, “o

dar

win

ism

o [.

..] é

um

pro

cess

o em

du

as f

ases

, sen

do

dif

eren

tes

as f

orça

s re

spon

sáve

is p

ela

vari

ação

e d

ireç

ão”.

A

var

iaçã

o se

ao a

caso

, por

mu

taçã

o. M

as a

dir

eção

é d

eter

-m

inad

a p

elo

ambi

ente

, p

or m

eio

da

sele

ção

nat

ura

l, qu

e p

rese

rva

as f

orm

as m

ais

vant

ajos

as n

aqu

ele

ambi

ente

.D

arw

in s

emp

re t

eve

em m

ente

qu

e o

pro

cess

o d

e m

ud

ança

dos

se

res

vivo

s d

epen

dia

de

que

tive

sse

tran

scor

rid

o u

m t

emp

o m

uit

o lo

ngo,

qu

e p

erm

itis

se o

corr

er jo

go d

e er

ros

e ac

erto

s, e

qu

e nã

o se

d

evia

exc

lusi

vam

ente

ao

acas

o. D

e fa

to, a

ges

taçã

o d

a id

eia

de

sele

-çã

o na

tura

l oc

orre

u n

o co

ntex

to d

e u

m i

nten

so d

ebat

e qu

e oc

up

ou

os g

eólo

gos

do

sécu

lo X

IX,

a re

spei

to d

a id

ade

da

Terr

a. D

arw

in,

que

teve

nas

lei

tura

s d

o ge

ólog

o C

har

les

Lye

ll u

ma

de

suas

mai

s im

por

tant

es r

efer

ênci

as, d

efen

dia

qu

e no

sso

pla

neta

era

mu

ito

mai

s an

tigo

do

que

diz

iam

as

Esc

ritu

ras.

O t

emp

o ge

ológ

ico

da

evol

uçã

o é

med

ido

em m

ilha

res,

mil

hões

e b

ilhõ

es d

e an

os.

En

tret

anto

, p

or v

ezes

, os

tex

tos

did

átic

os c

oloc

am ê

nfa

se e

x-ce

ssiv

a no

aca

so, o

qu

e fa

z os

alu

nos

du

vid

arem

(e

com

raz

ão!)

de

que

um

pro

cess

o n

atu

ral

pos

sa t

er o

rigi

nad

o se

res

tão

com

ple

xos.

É

ao

pro

fess

or, n

o d

iálo

go c

om o

s es

tud

ante

s, p

orta

nto

, qu

e ca

be-

rá a

tar

efa

de

apon

tar

a d

isti

nçã

o en

tre

as d

uas

fas

es d

o p

roce

sso

evol

uti

vo e

su

as d

ifer

ente

s fu

nçõe

s no

jogo

da

evol

uçã

o, b

em c

omo

o p

apel

fu

ndam

enta

l d

o te

mp

o.

Mu

da

a,

pr

og

re

ss

o e

ex

tin

çã

o

Ou

tra

dif

icu

ldad

e, é

cla

ro, d

iz r

esp

eito

à p

róp

ria

pal

avra

ev

o-lu

ção,

com

o já

ass

inal

amos

no

iníc

io d

este

tex

to.

Ess

a p

alav

ra é

107

Ciências – Volume 18

ard

ilos

a, e

o p

róp

rio

Dar

win

a e

vit

ou.

Foi

Spen

cer,

um

con

tem

-p

orân

eo d

e D

arw

in, q

ue

intr

odu

ziu

est

e te

rmo.

Dar

win

pre

feri

a a

exp

ress

ão d

esce

nd

ênci

a co

m m

odif

icaç

ão, e

nqu

anto

Sp

ence

r ac

red

itav

a n

um

a id

eia

de

pro

gre

sso

na

nat

ure

za.

Est

ava

erra

do.

Na

teor

ia

dar

win

ista

, n

ão c

abe

a id

eia

de

pro

gres

so.

Nen

hu

m s

er é

mel

hor

d

o qu

e ou

tro.

Cad

a es

péc

ie é

ad

apta

da

de

form

a d

ifer

ente

a s

uas

co

ndiç

ões

de

vid

a. E

se

as c

ond

içõe

s d

e vi

da

mu

dam

, tod

as p

odem

se

r le

vad

as à

ext

inçã

o. É

Gou

ld (

1999

, p. 3

1), n

ovam

ente

, qu

e n

os

traz

um

a be

la i

mag

em d

e co

mo

o p

roce

sso

de

evol

uçã

o bi

ológ

ica

ocor

re:

“A v

ida

não

é u

ma

esca

da

em q

ue

o p

rogr

esso

se

faz

de

form

a p

revi

síve

l e

sim

um

arb

ust

o p

rofu

sam

ente

ram

ific

ado

e co

n-ti

nu

amen

te d

esba

stad

o p

ela

imp

ied

osa

teso

ura

da

exti

nçã

o”.

Figu

ra 1

7: Á

rvor

e d

a vi

da,

com

o D

arw

in a

con

cebe

u

Coleção Explorando o Ensino

108

Alé

m d

isso

, o t

erm

o ev

olu

ção

poss

uía,

nos

culo

s X

VII

I e

XIX

, um

sig

nifi

cad

o bi

ológ

ico

adic

iona

l, in

com

pat

ível

com

as

idei

as d

e D

a-rw

in. O

ter

mo

foi c

unha

do p

or v

on H

alle

r, em

17

44, p

ara

desc

reve

r a

teor

ia s

egun

do a

qua

l os

embr

iões

cre

scia

m d

e ho

mún

culo

s pr

é-fo

rma-

dos.

Tam

bém

nes

te u

so, p

orta

nto,

traz

ia c

onsi

go

a id

eia

de

um

des

envo

lvim

ento

pré

-defi

nid

o,

com

um

res

ulta

do p

revi

síve

l, o

que

é o

caso

do

des

envo

lvim

ento

em

brio

nári

o.M

as o

ass

unt

o m

ais

cont

rove

rso,

qu

and

o en

sina

mos

evo

luçã

o em

nos

sas

aula

s, é

o d

o co

nflit

o en

tre

os p

onto

s d

e vi

sta

da

Ciê

ncia

e

os d

a R

elig

ião

sobr

e o

surg

imen

to d

os s

eres

vi

vos,

esp

ecia

lmen

te d

e no

ssa

esp

écie

hu

ma-

na –

tão

esp

ecia

l...

Est

e as

sunt

o es

cap

a d

os li

mit

es d

a B

iolo

-gi

a, e

env

ered

a p

elos

cam

inho

s d

a Fi

loso

fia.

Se

rá q

ue

o co

nhec

imen

to c

ient

ífico

e a

são

excl

uden

tes?

Gos

tari

a de

pro

por

que

não,

e q

ue

um

não

é p

ior

ou m

elho

r d

o qu

e o

outr

o. S

ão

dif

eren

tes,

e i

sso

é tu

do.

Par

a al

gum

as p

esso

-as

, ess

as v

isõe

s sã

o in

conc

iliáv

eis.

Par

a ou

tras

, in

clus

ive

algu

ns c

ient

ista

s, e

las

pod

em c

oexi

s-ti

r. M

as s

e qu

iser

mos

com

pre

end

er a

dif

eren

-ça

ent

re e

ssas

du

as f

orm

as d

e co

nhec

imen

to,

dev

emos

com

eçar

ten

tand

o co

mp

reen

der

alg

o so

bre

a na

ture

za d

o co

nhec

imen

to c

ient

ífico

.V

ocê

já p

arou

par

a pe

nsar

a r

espe

ito

de

com

o é

cons

truí

do

o co

-nh

ecim

ento

cie

ntífi

co?

Essa

per

gunt

a te

m s

ido

deba

tida

por

mui

tos

fi-ló

sofo

s e

cien

tist

as, h

á m

uit

o te

mp

o, e

não

tem

um

a re

spos

ta ú

nica

.E

m m

arço

de

1981

, a C

âmar

a L

egis

lati

va d

o E

stad

o d

e A

rkan

-sa

s, n

os E

UA

, p

rom

ulg

ou u

m a

to q

ue

det

erm

inav

a o

trat

amen

to

bala

nce

ado

do

tem

a d

a or

igem

das

esp

écie

s: s

e u

m p

rofe

ssor

vie

sse

a en

sina

r a

teor

ia d

a ev

olu

ção

em s

ala

de

aula

, ele

dev

eria

tam

bém

ab

rir

esp

aço

par

a o

ensi

no d

a ci

ênci

a cr

iaci

onis

ta.

E

m d

ezem

bro

daq

uel

e m

esm

o an

o, a

AC

LU

– o

rgan

izaç

ão

que

tem

por

obj

etiv

o d

efen

der

dir

eito

s co

nsti

tuci

onai

s d

os c

idad

ãos

amer

ican

os –

pro

pôs

um

a aç

ão ju

dic

ial c

ontr

a o

Est

ado

de

Ark

ansa

s.

Figu

ra 1

8: O

hom

ún

culo

q

ue

exis

tiri

a n

o in

teri

or

do

esp

erm

ato

zóid

e, s

e-gu

ndo

Lee

uwen

hoek

, von

H

alle

r e

outr

os c

ient

ista

s d

o sé

culo

XV

III

109

Ciências – Volume 18

Tend

o em

vis

ta q

ue

a P

rim

eira

Em

end

a d

a C

onst

itu

ição

am

eric

ana

esti

pu

la a

sep

araç

ão e

ntr

e a

Igre

ja e

o E

stad

o e

que,

por

tan

to,

a re

ligi

ão n

ão p

ode

ser

ensi

nad

a en

quan

to t

al n

as e

scol

as p

úbl

icas

, a

AC

LU

con

sid

erou

qu

e a

Câm

ara

Leg

isla

tiva

do

Ark

ansa

s fe

ria

os

dir

eito

s co

nsti

tuci

onai

s d

os c

idad

ãos

do

Est

ado.

A a

cusa

ção

pre

ssu

-p

unh

a, p

orta

nto,

qu

e ci

ênci

a cr

iaci

onis

ta e

ra d

iscu

rso

relig

ioso

qu

e se

fa

zia

pas

sar

por

cie

ntífi

co. A

est

raté

gia

da

acu

saçã

o fo

i a

de

esta

be-

lece

r u

ma

dis

tinç

ão e

ntre

Rel

igiã

o e

Ciê

nci

a, q

ue

torn

asse

ile

gíti

mo

o us

o d

o te

rmo

Ciê

nci

a pa

ra d

esig

nar

o co

njun

to d

as t

eses

cri

acio

nist

as.

O ju

iz d

o p

roce

sso

ouvi

u u

m fi

lóso

fo d

a C

iên

cia,

Mic

hae

l R

use

, e

com

bas

e n

os c

rité

rios

qu

e es

te a

pre

sen

tou

par

a d

efin

ir C

iên

cia,

d

eu g

anho

de

cau

sa à

AC

LU

. Usa

ndo

os c

rité

rios

ap

rese

ntad

os p

or

Ru

se, o

juiz

lis

tou

as

cara

cter

ísti

cas

fund

amen

tais

da

Ciê

ncia

:

[...]

(a)

ela

é g

uia

da

pel

a le

i na

tura

l;(b

) el

a te

m q

ue

ser

exp

licat

iva

por

ref

erên

cia

à le

i na

tura

l;(c

) el

a é

test

ável

em

con

fron

to c

om o

mu

ndo

emp

íric

o;(d

) su

as c

oncl

usõ

es s

ão t

enta

tiva

s;(e

) el

a é

fals

eáve

l. (

RU

SE a

pu

d A

BR

AN

TE

S; A

LM

EID

A,

2006

, p

. 7)

.

O q

ue

isso

qu

er d

izer

, e p

or q

ue

excl

ui

das

au

las

de

Ciê

ncia

s a

pos

ição

rel

igio

sa?

Ao

afirm

ar q

ue

a C

iênc

ia é

gu

iad

a p

ela

lei n

atu

ral

e d

eve

ser

exp

lica

tiva

por

ref

erên

cia

a el

a, R

use

qu

er d

izer

qu

e nã

o ca

bem

, em

Ciê

ncia

, exp

licaç

ões

sobr

enat

urai

s. I

sso

sign

ifica

que

, par

a a

Ciê

ncia

, qu

alqu

er e

xplic

ação

qu

e en

volv

a a

inte

rven

ção

de

um

a en

-ti

dad

e d

ivin

a, s

eja

ela

qual

for

, não

pod

e se

r ac

eita

. Lig

ado

a is

so e

stá

o it

em “

c”, q

ue

diz

qu

e d

evem

os s

er c

apaz

es d

e te

star

as

exp

licaç

ões

cien

tífica

s no

mun

do e

mpí

rico

, ist

o é,

no

mun

do q

ue e

xper

imen

tam

os

e ao

qu

al t

emos

ace

sso,

das

nos

sas

sens

açõe

s e

sent

idos

.Fi

nalm

ente

, ou

tra

cara

cter

ísti

ca f

und

amen

tal d

a C

iênc

ia é

o f

ato

de

que

suas

ver

dad

es s

ão t

enta

tiva

s, i

sto

é, p

odem

ser

su

bsti

tuíd

as

por

ou

tras

de

mai

or v

alor

exp

licat

ivo.

Ela

s sã

o, p

orta

nto,

fal

seáv

eis.

V

eja

que

isso

não

é u

m p

robl

ema

da

Ciê

nci

a. A

liás

, se

r fa

lseá

vel

é m

esm

o u

ma

de

suas

vir

tud

es,

que

per

mit

e qu

e o

con

hec

imen

to

cien

tífi

co s

ofra

mod

ifica

ções

qu

e n

os p

erm

item

com

pre

end

er u

ma

quan

tid

ade

cres

cent

e d

e as

pec

tos

do

mu

ndo

natu

ral.

Tal

tip

o d

e co

nhec

imen

to, p

orta

nto,

é b

asta

nte

dif

eren

te (

nem

m

elho

r, n

em p

ior)

do

conh

ecim

ento

bas

ead

o na

reli

gios

a. N

este

Coleção Explorando o Ensino

110

segu

ndo

caso

, as

exp

lica

ções

env

olve

m, n

eces

sari

amen

te, e

ntid

ades

so

bren

atu

rais

(ai

nda

que

a co

ncep

ção

par

ticu

lar

de

Deu

s p

ossa

ser

d

ifer

ente

de

pes

soa

par

a p

esso

a).

Não

bu

scam

os e

xpli

caçõ

es e

m

nos

so m

un

do

imed

iato

, mas

nu

m m

un

do

ao q

ual

tem

os a

cess

o em

pen

sam

ento

. Alé

m d

isso

, não

est

amos

nem

um

pou

co i

nte

res-

sad

os e

m t

esta

r n

ossa

em c

onfr

onto

com

o m

un

do

emp

íric

o ou

p

reoc

up

ados

em

fal

sifi

car

o co

nh

ecim

ento

rel

igio

so. A

o co

ntr

ário

, a

fé,

com

o d

efin

e o

dic

ion

ário

Hou

aiss

, é

“cre

nça

rel

igio

sa s

em

fun

dam

ento

em

arg

um

ento

s ra

cion

ais,

em

bora

eve

ntu

alm

ente

al-

can

çan

do

verd

ades

com

pat

ívei

s co

m a

quel

as o

btid

as p

or m

eio

da

razã

o”. A

cred

itam

os p

orqu

e ac

red

itam

os.

E é

o s

ufi

cien

te.

Por

que

são

conh

ecim

ento

s d

e ti

pos

dif

eren

tes,

Rel

igiã

o e

Ciê

n-ci

a sã

o in

com

pat

ívei

s? N

ão n

eces

sari

amen

te. U

m d

os m

aior

es p

en-

sad

ores

do

dar

win

ism

o e

um

de

seu

s m

aior

es d

efen

sore

s, o

bió

logo

T

heo

dos

ius

Dob

szh

ansk

i, er

a d

evot

o cr

istã

o or

tod

oxo.

Iss

o n

ão o

im

ped

iu d

e afi

rmar

qu

e “e

m b

iolo

gia,

nad

a fa

z se

ntid

o ex

ceto

à l

uz

da

teor

ia e

volu

tiva

” (D

OB

ZH

AN

SKI,

1973

, p. 1

24).

As

form

as d

e ac

o-

mod

ação

des

ses

doi

s ti

pos

de

conh

ecim

ento

, qu

and

o ta

l ac

omod

ação

oc

orre

, sã

o id

ioss

incr

átic

as e

pes

soai

s. N

ão é

pos

síve

l, e

m n

ossa

s au

las,

mes

clar

tip

os d

e co

nh

ecim

ento

s qu

e sã

o, e

m s

ua

nat

ure

za,

dis

tint

os. S

ão e

scol

has

pess

oais

. Mui

tos

cien

tist

as p

rofe

ssam

div

ersa

s re

ligi

ões,

ain

da

que

outr

os n

ão o

faç

am.

Un

s e

outr

os,

entr

etan

to,

com

par

tilh

am a

con

vicç

ão d

e qu

e a

teor

ia e

volu

tiva

é h

oje

a ex

plic

a-çã

o m

ais

apro

pri

ada

par

a a

gran

de

div

ersi

dad

e d

e or

gani

smos

qu

e no

sso

pla

neta

abr

iga.

Tal

vez,

no

futu

ro, o

utr

a ex

pli

caçã

o to

me

seu

luga

r, c

omo

ocor

reu

com

a t

eori

a gr

avit

acio

nal

de

New

ton

, su

bs-

titu

ída

pel

o m

odel

o m

ais

amp

lo p

rop

osto

por

Ein

stei

n. M

as, h

oje,

a

teor

ia e

volu

tiva

é a

mel

hor

exp

lica

ção

par

a u

ma

vast

a ga

ma

de

ques

tões

bio

lógi

cas.

Os

alu

nos

, é

clar

o, l

evan

tam

, fr

equ

ente

men

te,

a qu

estã

o d

as

dif

eren

ças

entr

e as

exp

licaç

ões

da

Ciê

ncia

e d

a R

elig

ião

a re

spei

to d

a or

igem

das

esp

écie

s. A

o p

rofe

ssor

cab

e ac

olhe

r as

qu

estõ

es t

razi

das

p

elo

alu

no, m

as t

ambé

m é

su

a fu

nção

exp

licar

as

dif

eren

ças

entr

e os

d

ois

tip

os d

e ex

pli

caçõ

es, r

esp

eita

nd

o, i

ncl

usi

ve, a

div

ersi

dad

e d

e cr

edos

qu

e u

ma

mes

ma

turm

a po

de

abri

gar.

Afi

nal,

dif

eren

tes

relig

i-õe

s p

ossu

em d

ifer

ente

s re

lato

s so

bre

a or

igem

dos

ser

es, e

tam

bém

es

sas

dif

eren

ças

dev

em s

er r

esp

eita

das

. Com

o p

oder

íam

os p

rivi

le-

giar

, nu

ma

aula

de

Ciê

ncia

s, a

lgu

ma

des

sas

exp

lica

ções

? N

as a

ula

s

111

Ciências – Volume 18

de

Ciê

ncia

s, v

alem

as

exp

lica

ções

cie

ntífi

cas,

tan

to q

uan

to n

ão f

aria

se

ntid

o in

voca

r ex

pli

caçõ

es c

ient

ífica

s em

au

las

de

cate

cism

o.E

nte

nd

ida

com

o te

oria

cie

ntí

fica

e c

omo

fun

dam

ento

da

Bio

-lo

gia

mod

ern

a, a

evo

luçã

o p

ode

ser

um

in

stru

men

to v

alio

so p

ara

o p

rofe

ssor

de

séri

es i

nic

iais

ap

rese

nta

r os

tóp

icos

de

sere

s vi

vos,

ec

olog

ia e

mes

mo

tem

as r

elac

ion

ados

ao

corp

o h

um

ano.

Por

mei

o d

ela,

a c

rian

ça p

ode

con

stru

ir u

m s

enti

do

par

a m

uit

os c

onte

úd

os

que

são,

atu

alm

ente

, en

sin

ados

com

o si

mp

les

mem

oriz

ação

, com

o é

o ca

so d

a cl

assi

fica

ção

dos

ser

es v

ivos

. Se

com

pre

end

erm

os e

ssa

clas

sifi

caçã

o co

mo

refl

exo

de

um

par

ente

sco

entr

e os

ser

es v

ivos

, el

a ad

quir

e m

uit

o m

aior

sen

tid

o.

Alé

m d

isso

, a t

eori

a ev

olu

tiva

se

cons

titu

i na

bas

e d

e u

ma

nar-

rati

va q

ue

pod

e se

r be

lam

ente

ap

rese

nta

da,

e q

ue

pod

e to

rnar

o

ensi

no d

e B

iolo

gia

mu

ito

mai

s in

stig

ante

. Nas

pal

avra

s d

o es

crit

or

e bi

ólog

o m

oçam

bica

no M

ia C

outo

:

Afi

nal,

a ci

ênci

a e

a ar

te s

ão c

omo

mar

gens

de

um

mes

mo

rio.

A B

iolo

gia

não

é d

iurn

a ne

m n

otu

rna

se n

ão s

e as

sum

ir

com

o au

tora

de

um

a es

pan

tosa

nar

raçã

o qu

e é

o re

lato

da

Evo

luçã

o d

a V

ida.

Pod

em t

er c

erte

za q

ue

essa

é h

istó

ria

tão

extr

aord

inár

ia q

ue

só p

ode

ser

escr

ita

junt

and

o o

rigo

r d

a ci

ênci

a ao

fu

lgor

da

arte

.

Ret

iran

do

da

Bio

logi

a a

arid

ez d

a m

emor

izaç

ão,

a ev

olu

ção

pod

e le

var

noss

os a

luno

s a

um

pas

seio

por

est

e ri

o re

ple

to d

e se

n-ti

dos

e d

e co

nhec

imen

tos.

Um

pas

seio

pel

a V

ida.

Ati

vid

ades

par

a su

a au

laC

laro

qu

e é

mu

ito

dif

ícil

rea

liza

r, e

m s

ala

de

aula

, exp

eri-

men

tos

que

envo

lvam

sel

eção

nat

ura

l d

e or

gani

smos

. Mas

p

odem

os s

imu

lar

um

pro

cess

o d

e se

leçã

o na

tura

l com

um

a at

ivid

ade

em q

ue

os a

luno

s fa

zem

o p

apel

de

pre

dad

ores

e

peq

uen

os m

old

es d

e m

assi

nha

de

mod

elar

, o d

as l

agar

tas

que

serã

o p

red

adas

. A i

dei

a é

mos

trar

aos

alu

nos

com

o u

ma

mes

ma

cara

cter

ísti

ca (

a co

r) p

ode

ser

mai

s ou

men

os

vant

ajos

a, d

epen

den

do

do

ambi

ente

em

qu

e se

enc

ontr

e o

orga

nism

o. N

este

cas

o, o

am

bien

te s

erá

a ca

rtol

ina

colo

rid

a on

de

serã

o d

isp

osta

s as

“la

gart

as”.

Coleção Explorando o Ensino

112

Mat

eria

l: m

assa

de

mod

elar

ver

mel

ha

e ve

rde,

car

toli

na

verd

e, r

elóg

io c

om c

ronô

met

ro.

Pro

ced

imen

to:

pre

par

ar,

com

a m

assa

de

mod

elar

, d

ez

“lag

arta

s” v

erm

elh

as e

dez

ver

des

, co

m e

spes

sura

ap

ro-

xim

ada

de

doi

s m

ilím

etro

s e

com

cin

co c

entí

met

ros

de

com

pri

men

to.

O e

xper

imen

to: c

ada

grup

o d

e al

uno

s (m

ínim

o d

e tr

ês)

terá

em

mão

s u

m c

onju

nto

com

dez

(10

) la

gart

as v

erd

es,

dez

(1

0) l

agar

tas

verm

elha

s, u

m a

ntep

aro

(tap

ete

ou c

arto

lina

) ve

rde

e u

m r

elóg

io c

om c

ronô

met

ro. `

As

laga

rtas

são

joga

das

sob

re o

ant

epar

o p

or u

m d

os a

lu-

nos

, en

quan

to o

utr

o (a

ave

) d

ever

á p

red

á-la

s (p

egá-

las)

nu

m p

equ

eno

esp

aço

de

tem

po

(3 s

egu

ndos

), m

arca

do

por

u

m t

erce

iro

alu

no.

Dep

ois,

mar

ca-s

e n

o qu

adro

(p

róxi

ma

pág

ina)

qu

anta

s la

gart

as d

e ca

da

cor

fora

m p

red

adas

. Ist

o d

eve

ser

rep

etid

o d

iver

sas

veze

s, s

emp

re jo

gand

o as

vin

te

laga

rtas

. Ao

fin

al,

som

a-se

o n

úm

ero

de

cad

a cl

asse

de

core

s e

resp

ond

a as

seg

uin

tes

ques

tões

:Q

ue

laga

rtas

for

am m

ais

pre

dad

as?

As

verd

es o

u a

s ve

r-m

elha

s? R

elac

ione

iss

o ao

con

ceit

o d

e se

leçã

o na

tura

l.A

in

trod

uçã

o d

e u

m n

ovo

pre

dad

or,

cego

par

a as

cor

es,

pod

eria

int

erfe

rir

no q

ue

está

aco

ntec

end

o ne

ste

ambi

ente

? D

e qu

e fo

rma?

O e

xper

imen

to p

ode

ser

real

izad

o em

seq

uên

cia,

ou

sej

a,

após

a p

rim

eira

pre

daç

ão,

a se

gun

da

é ef

etu

ada

sobr

e a

pop

ula

ção

rest

ante

(20

lag

arta

s m

enos

as

já p

red

adas

na

etap

a an

teri

or).

O o

bjet

ivo,

nes

te c

aso,

é a

dic

ion

ar u

ma

dim

ensã

o te

mp

oral

, e p

odem

os c

onsi

der

ar c

ada

um

a d

as

etap

as c

omo

corr

esp

ond

end

o a

um

a ge

raçã

o d

as l

agar

tas.

A

qui,

o al

uno

tam

bém

pod

erá

veri

fica

r co

mo

as p

opul

açõe

s d

e ca

da

um

dos

tip

os d

e la

gart

a se

rão

mu

ito

dif

eren

tes,

ao

cabo

de

algu

mas

ger

açõe

s, d

a m

esm

a fo

rma

que

ocor

re n

a na

ture

za.

113

Ciências – Volume 18

Eta

pas

Lag

arta

s ve

rmel

has

L

agar

tas

verd

es

Pre

daç

ão 1

Pre

daç

ão 2

Pre

daç

ão 3

Pre

daç

ão 4

Pre

daç

ão 5

Pre

daç

ão 6

Pre

daç

ão 7

Pre

daç

ão 8

Pre

daç

ão 9

Pred

ação

10

Som

a

Voc

ê ta

mbé

m p

ode

dei

xar

que

os p

ássa

ros

das

árv

ores

do

pát

io d

e su

a es

cola

par

tici

pem

des

sa a

tivi

dad

e.

Pre

par

e d

ez “

laga

rtas

” d

e m

assa

de

mod

elar

ver

mel

has,

vi

nte

amar

elas

e v

inte

mar

rons

. Dep

ois,

esp

alhe

-as

em d

i-fe

ren

tes

galh

os d

e ár

vore

s d

o p

átio

da

esco

la o

u d

e se

u en

torn

o, l

embr

and

o d

e re

gist

rar

o lo

cal

ond

e ca

da

um

a fo

i d

isp

osta

. Dep

ois

de

três

dia

s, r

ecol

ha-a

s. V

ocê

vai

veri

fica

r qu

e as

“la

gart

as”

de

core

s m

ais

cham

ativ

as (

por

tant

o, q

ue

ficam

men

os “

cam

uflad

as”

cont

erão

mai

s m

arca

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20 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19

Notas sobre a experiência e o saber deexperiência*

Jorge Larrosa BondíaUniversidade de Barcelona, Espanha

Tradução de João Wanderley GeraldiUniversidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística

No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.

Franz Kafka

Costuma-se pensar a educação do ponto de vista

da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do

ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o

par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva

e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a

uma perspectiva política e crítica. De fato, somente

nesta última perspectiva tem sentido a palavra “refle-

xão” e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão

sobre prática ou não prática”, “reflexão emancipado-

ra” etc. Se na primeira alternativa as pessoas que tra-

balham em educação são concebidas como sujeitos

técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as

diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos

cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na se-

gunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem

como sujeitos críticos que, armados de distintas estra-

tégias reflexivas, se comprometem, com maior ou

menor êxito, com práticas educativas concebidas na

maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo

isso é suficientemente conhecido, posto que nas últi-

mas décadas o campo pedagógico tem estado separa-

do entre os chamados técnicos e os chamados críti-

cos, entre os partidários da educação como ciência

aplicada e os partidários da educação como práxis

política, e não vou retomar a discussão.

O que vou lhes propor aqui é que exploremos

juntos outra possibilidade, digamos que mais existen-

cial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser

esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par

experiência/sentido. O que vou fazer em seguida é

sugerir certo significado para estas duas palavras em

distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto

lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar

algumas palavras e tratar de compartilhá-las.

E isto a partir da convicção de que as palavras

* Conferência proferida no I Seminário Internacional de

Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001,

por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das

unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC.

A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon-

sável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Re-

vista Brasileira de Educação.

Notas sobre a experiência e o saber de experiência

Revista Brasileira de Educação 21

produzem sentido, criam realidades e, às vezes, fun-

cionam como potentes mecanismos de subjetivação.

Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,

creio que fazemos coisas com as palavras e, também,

que as palavras fazem coisas conosco. As palavras

determinam nosso pensamento porque não pensamos

com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a

partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas

a partir de nossas palavras. E pensar não é somente

“raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos

tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar

sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o

sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as

palavras. E, portanto, também tem a ver com as pala-

vras o modo como nos colocamos diante de nós mes-

mos, diante dos outros e diante do mundo em que vi-

vemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso.

Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem

como zôon lógon échon. A tradução desta expressão,

porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do

que “animal dotado de razão” ou “animal racional”.

Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido

da palavra, é justamente essa de traduzir logos por

ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal.

O homem é um vivente com palavra. E isto não signi-

fica que o homem tenha a palavra ou a linguagem como

uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas

que o homem é palavra, que o homem é enquanto pa-

lavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá

em palavra, está tecido de palavras, que o modo de

viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na

palavra e como palavra. Por isso, atividades como con-

siderar as palavras, criticar as palavras, eleger as pala-

vras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com

as palavras, impor palavras, proibir palavras, transfor-

mar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias,

não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com

as palavras, do que se trata é de como damos sentido

ao que somos e ao que nos acontece, de como

correlacionamos as palavras e as coisas, de como no-

meamos o que vemos ou o que sentimos e de como

vemos ou sentimos o que nomeamos.

Nomear o que fazemos, em educação ou em qual-

quer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis

reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não

é somente uma questão terminológica. As palavras

com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o

que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos

são mais do que simplesmente palavras. E, por isso,

as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo contro-

le das palavras, pela imposição de certas palavras e

pelo silenciamento ou desativação de outras palavras

são lutas em que se joga algo mais do que simples-

mente palavras, algo mais que somente palavras.

1. Começarei com a palavra experiência. Pode-

ríamos dizer, de início, que a experiência é, em espa-

nhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a

experiência é “o que nos acontece”; em francês a ex-

periência seria “ce que nous arrive”; em italiano,

“quello che nos succede” ou “quello che nos accade”;

em inglês, “that what is happening to us”; em alemão,

“was mir passiert”.

A experiência é o que nos passa, o que nos acon-

tece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que

acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas

coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acon-

tece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado

para que nada nos aconteça.1 Walter Benjamin, em um

texto célebre, já observava a pobreza de experiências

que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram

tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

Em primeiro lugar pelo excesso de informação.

A informação não é experiência. E mais, a informação

não deixa lugar para a experiência, ela é quase o con-

trário da experiência, quase uma antiexperiência. Por

isso a ênfase contemporânea na informação, em estar

informados, e toda a retórica destinada a constituir-

nos como sujeitos informantes e informados; a infor-

mação não faz outra coisa que cancelar nossas possi-

1 Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível

no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado para

que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução como

“Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada se

nos passe” (Nota do tradutor).

Jorge Larrosa Bondía

22 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19

bilidades de experiência. O sujeito da informação sabe

muitas coisas, passa seu tempo buscando informação,

o que mais o preocupa é não ter bastante informação;

cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,

porém, com essa obsessão pela informação e pelo sa-

ber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no

sentido de “estar informado”), o que consegue é que

nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de

dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la

da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber

de experiência é que é necessário separá-lo de saber

coisas, tal como se sabe quando se tem informação

sobre as coisas, quando se está informado. É a língua

mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assis-

tir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido

um livro ou uma informação, depois de ter feito uma

viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer

que sabemos coisas que antes não sabíamos, que te-

mos mais informação sobre alguma coisa; mas, ao

mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos

aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que

aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.

Além disso, seguramente todos já ouvimos que

vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos

demos conta de que esta estranha expressão funciona

às vezes como sinônima de “sociedade do conhecimen-

to” ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”.

Não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade

entre os termos “informação”, “conhecimento” e

“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob

a forma de informação, e como se aprender não fosse

outra coisa que não adquirir e processar informação.

E não deixa de ser interessante também que as velhas

metáforas organicistas do social, que tantos jogos per-

mitiram aos totalitarismos do século passado, estejam

sendo substituídas por metáforas cognitivistas, segu-

ramente também totalitárias, ainda que revestidas agora

de um look liberal democrático. Independentemente de

que seja urgente problematizar esse discurso que se

está instalando sem crítica, a cada dia mais profunda-

mente, e que pensa a sociedade como um mecanismo

de processamento de informação, o que eu quero apon-

tar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo

da informação é uma sociedade na qual a experiência

é impossível.

Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais

rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um

sujeito informado que, além disso, opina. É alguém

que tem uma opinião supostamente pessoal e supos-

tamente própria e, às vezes, supostamente crítica so-

bre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem

informação. Para nós, a opinião, como a informação,

converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogân-

cia, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa

sobre que nos sentimos informados. E se alguém não

tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o

que se passa, se não tem um julgamento preparado

sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em

falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que

tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a

opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também

anula nossas possibilidades de experiência, também

faz com que nada nos aconteça.

Benjamin dizia que o periodismo é o grande dis-

positivo moderno para a destruição generalizada da

experiência.2 O periodismo destrói a experiência, so-

bre isso não há dúvida, e o periodismo não é outra

coisa que a aliança perversa entre informação e opi-

nião. O periodismo é a fabricação da informação e a

fabricação da opinião. E quando a informação e a opi-

nião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do

acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa

que o suporte informado da opinião individual, e o

sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história se-

gundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o

suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um

sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da in-

formação e da opinião, um sujeito incapaz de expe-

riência. E o fato de o periodismo destruir a experiên-

cia é algo mais profundo e mais geral do que aquilo

que derivaria do efeito dos meios de comunicação de

massas sobre a conformação de nossas consciências.

O par informação/opinião é muito geral e permeia

2 Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas

obras; ver, por exemplo, Benjamim, 1991, p. 111 e ss.

Notas sobre a experiência e o saber de experiência

Revista Brasileira de Educação 23

também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem,

inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos cha-

mam de “aprendizagem significativa”. Desde peque-

nos até a universidade, ao largo de toda nossa traves-

sia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos

a um dispositivo que funciona da seguinte maneira:

primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opi-

nar, há que dar uma opinião obviamente própria, críti-

ca e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria

como a dimensão “significativa” da assim chamada

“aprendizagem significativa”. A informação seria o

objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa

reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como rea-

ção subjetiva, é uma reação que se tornou para nós

automática, quase reflexa: informados sobre qualquer

coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maio-

ria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso,

nos convertemos em sujeitos competentes para res-

ponder como Deus manda as perguntas dos professo-

res que, cada vez mais, se assemelham a comprova-

ções de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me

o que você sabe, diga-me com que informação conta

e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dis-

positivo periodístico do saber e da aprendizagem, o

dispositivo que torna impossível a experiência.

Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais

rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa

demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E

com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, ime-

diatamente substituído por outro estímulo ou por ou-

tra excitação igualmente fugaz e efêmera. O aconteci-

mento nos é dado na forma de choque, do estímulo,

da sensação pura, na forma da vivência instantânea,

pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são

dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade,

pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impe-

dem a conexão significativa entre acontecimentos.

Impedem também a memória, já que cada aconteci-

mento é imediatamente substituído por outro que igual-

mente nos excita por um momento, mas sem deixar

qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está in-

formado e opina, mas também é um consumidor vo-

raz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso

impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar per-

manentemente excitado e já se tornou incapaz de si-

lêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual,

tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o

choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade

e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória,

são também inimigas mortais da experiência.

Nessa lógica de destruição generalizada da expe-

riência, estou cada vez mais convencido de que os apa-

ratos educacionais também funcionam cada vez mais

no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos

aconteça. Não somente, como já disse, pelo funciona-

mento perverso e generalizado do par informação/

opinão, mas também pela velocidade. Cada vez esta-

mos mais tempo na escola (e a universidade e os cur-

sos de formação do professorado são parte da escola),

mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da for-

mação permanente e acelerada, da constante atualiza-

ção, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o

tempo como um valor ou como uma mercadoria, um

sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de

aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer

coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa,

que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa

obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este

sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se

organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada

vez mais curtos. Com isso, também em educação esta-

mos sempre acelerados e nada nos acontece.

Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais

rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece

importante porque às vezes se confunde experiência

com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos li-

vros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o sa-

ber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se

adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da

prática, como se diz atualmente. Quando se redige o

currículo, distingue-se formação acadêmica e expe-

riência de trabalho. Tenho ouvido falar de certa ten-

dência aparentemente progressista no campo educa-

cional que, depois de criticar o modo como nossa

sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pre-

tende implantar e homologar formas de contagem de

Jorge Larrosa Bondía

24 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19

créditos para a experiência e para o saber de experiên-

cia adquirido no trabalho. Por isso estou muito inte-

ressado em distinguir entre experiência e trabalho e,

além disso, em criticar qualquer contagem de créditos

para a experiência, qualquer conversão da experiência

em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha

tese não é somente porque a experiência não tem nada

a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que

o trabalho, essa modalidade de relação com as pes-

soas, com as palavras e com as coisas que chamamos

trabalho, é também inimiga mortal da experiência.

O sujeito moderno, além de ser um sujeito infor-

mado que opina, além de estar permanentemente agi-

tado e em movimento, é um ser que trabalha, quer di-

zer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo

“natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto

a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, se-

gundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho

é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito

moderno é animado por portentosa mescla de otimis-

mo, de progressismo e de agressividade: crê que pode

fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum

dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o

que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O

sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do

ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua ativi-

dade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode

fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,

regular algo. Independentemente de este desejo estar

motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o

sujeito moderno está atravessado por um afã de mu-

dar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os

políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos,

os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os peda-

gogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua

existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, trans-

bordantes de opiniões e superestimulados, mas tam-

bém sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por

isso, porque sempre estamos querendo o que não é,

porque estamos sempre em atividade, porque estamos

sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não

podermos parar, nada nos acontece.

A experiência, a possibilidade de que algo nos

aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrup-

ção, um gesto que é quase impossível nos tempos que

correm: requer parar para pensar, parar para olhar,

parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais

devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sen-

tir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender

a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,

suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção

e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre

o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos

outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter

paciência e dar-se tempo e espaço.

2. Até aqui, a experiência e a destruição da expe-

riência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse

sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião,

do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do

fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol,

nessa língua em que a experiência é “o que nos pas-

sa”, o sujeito da experiência seria algo como um terri-

tório de passagem, algo como uma superfície sensível

que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz

alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns

vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em

que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito da

experiência é um ponto de chegada, um lugar a que

chegam as coisas, como um lugar que recebe o que

chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português,

em italiano e em inglês, em que a experiência soa como

“aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to

us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço

onde têm lugar os acontecimentos.

Em qualquer caso, seja como território de passa-

gem, seja como lugar de chegada ou como espaço do

acontecer, o sujeito da experiência se define não por

sua atividade, mas por sua passividade, por sua recep-

tividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.

Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposi-

ção entre ativo e passivo, de uma passividade feita de

paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,

como uma receptividade primeira, como uma disponi-

bilidade fundamental, como uma abertura essencial.

O sujeito da experiência é um sujeito “ex-pos-

Notas sobre a experiência e o saber de experiência

Revista Brasileira de Educação 25

to”. Do ponto de vista da experiência, o importante

não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem

a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im-

posição” (nossa maneira de impormos), nem a “pro-

posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex-

posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o

que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é

incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe,

ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É

incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa,

a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a

quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem

nada o ameaça, a quem nada ocorre.

3. Vamos agora ao que nos ensina a própria pala-

vra experiência. A palavra experiência vem do latim

experiri, provar (experimentar). A experiência é em

primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo

que se experimenta, que se prova. O radical é periri,

que se encontra também em periculum, perigo. A raiz

indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de

tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de

prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz

que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:

peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar atra-

vés, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas

línguas há uma bela palavra que tem esse per grego

de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da

experiência tem algo desse ser fascinante que se ex-

põe atravessando um espaço indeterminado e perigo-

so, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportu-

nidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex

de exterior, de estrangeiro,3 de exílio, de estranho

4 e

também o ex de existência. A experiência é a passa-

gem da existência, a passagem de um ser que não tem

essência ou razão ou fundamento, mas que simples-

mente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita,

imanente, contingente. Em alemão, experiência é

Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo

alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e

gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germâni-

cas como nas latinas, a palavra experiência contém

inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.

4. Em Heidegger (1987) encontramos uma defi-

nição de experiência em que soam muito bem essa

exposição, essa receptividade, essa abertura, assim

como essas duas dimensões de travessia e perigo que

acabamos de destacar:

[...] fazer uma experiência com algo significa que algo

nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos

tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma

experiência, isso não significa precisamente que nós a fa-

çamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, to-

mar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida

que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer

dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo

que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Pode-

mos ser assim transformados por tais experiências, de um

dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)

O sujeito da experiência, se repassarmos pelos

verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um su-

jeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito

que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro

de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que

se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não

um sujeito definido por seus sucessos ou por seus po-

deres, mas um sujeito que perde seus poderes precisa-

mente porque aquilo de que faz experiência dele se

apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é

também um sujeito sofredor, padecente, receptivo,

aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o su-

jeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme,

forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apá-

tico, autodeterminado, definido por seu saber, por seu

poder e por sua vontade.

Nas duas últimas linhas do parágrafo, “Podemos

ser assim transformados por tais experiências, de um

dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode ler-

se outro componente fundamental da experiência: sua

capacidade de formação ou de transformação. É ex-

3 Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)

4 Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)

Jorge Larrosa Bondía

26 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19

periência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou

que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos

transforma. Somente o sujeito da experiência está,

portanto, aberto à sua própria transformação.

5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o

sujeito da experiência é um território de passagem,

então a experiência é uma paixão. Não se pode captar

a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir

de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto

sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de

possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da

paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo en-

quanto sujeito passional. E a palavra paixão pode re-

ferir-se a várias coisas.

Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento.

No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é sim-

plesmente passivo. O sujeito passional não é agente,

mas paciente, mas há na paixão um assumir os pade-

cimentos, como um viver, ou experimentar, ou supor-

tar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada

que ver com a mera passividade, como se o sujeito

passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às ve-

zes, inclusive, algo público, ou político, ou social,

como um testemunho público de algo, ou uma prova

pública de algo, ou um martírio público em nome de

algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita

solidão, no mais completo anonimato.

“Paixão” pode referir-se também a certa hetero-

nomia, ou a certa responsabilidade em relação com o

outro que, no entanto, não é incompatível com a liber-

dade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmen-

te, de outra liberdade e de outra autonomia diferente

daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A

paixão funda sobretudo uma liberdade dependente,

determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não

nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que

está fora de mim, de algo que não sou eu e que por

isso, justamente, é capaz de me apaixonar.

E “paixão” pode referir-se, por fim, a uma expe-

riência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão,

cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de

um desejo que permanece desejo e que quer permane-

cer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação

para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o su-

jeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é

possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não

está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodo-

mínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cati-

vado pelo alheio, alienado, alucinado.

Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e es-

cravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é,

precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro,

sua dependência daquele por quem está apaixonado.

Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre

felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apai-

xonado encontra sua felicidade ou ao menos o

cumprimento de seu destino no padecimento que sua

paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é preci-

samente sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito

apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coi-

sa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão

extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma

relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no

horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e

desejada como verdadeira vida, como a única coisa

que vale a pena viver, e às vezes como condição de

possibilidade de todo renascimento.

6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o

que poderia ser a experiência e o sujeito da experiên-

cia. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia

e do perigo, da abertura e da exposição, da receptivi-

dade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao

saber da experiência. Definir o sujeito da experiência

como sujeito passional não significa pensá-lo como

incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação.

A experiência funda também uma ordem epistemoló-

gica e uma ordem ética. O sujeito passional tem tam-

bém sua própria força, e essa força se expressa produ-

tivamente em forma de saber e em forma de práxis. O

que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber

científico e do saber da informação, e de uma práxis

distinta daquela da técnica e do trabalho.

O saber de experiência se dá na relação entre o

conhecimento e a vida humana. De fato, a experiên-

Notas sobre a experiência e o saber de experiência

Revista Brasileira de Educação 27

cia é uma espécie de mediação entre ambos. É impor-

tante, porém, ter presente que, do ponto de vista da

experiência, nem “conhecimento” nem “vida” signi-

ficam o que significam habitualmente.

Atualmente, o conhecimento é essencialmente a

ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito,

que somente pode crescer; algo universal e objetivo,

de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de

nós, como algo de que podemos nos apropriar e que

podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamen-

talmente com o útil no seu sentido mais estreitamente

pragmático, num sentido estritamente instrumental. O

conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamen-

te, dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à

rentabilidade e à circulação acelerada como o dinhei-

ro. Recordem-se as teorias do capital humano ou es-

sas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do

conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a so-

ciedade da informação.

Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua dimen-

são biológica, à satisfação das necessidades (geral-

mente induzidas, sempre incrementadas pela lógica

do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da so-

ciedade. Pense-se no que significa para nós “qualida-

de de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse

de uma série de cacarecos para uso e desfrute.

Nestas condições, é claro que a mediação entre o

conhecimento e a vida não é outra coisa que a apro-

priação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como

“conhecimento” para as necessidades que se nos dão

como “vida” e que são completamente indistintas das

necessidades do Capital e do Estado.

Para entender o que seja a experiência, é necessá-

rio remontar aos tempos anteriores à ciência moderna

(com sua específica definição do conhecimento obje-

tivo) e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a

definição moderna de vida como vida burguesa). Du-

rante séculos, o saber humano havia sido entendido

como um páthei máthos, como uma aprendizagem no

e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este

é o saber da experiência: o que se adquire no modo

como alguém vai respondendo ao que vai lhe aconte-

cendo ao longo da vida e no modo como vamos dando

sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da

experiência não se trata da verdade do que são as coi-

sas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acon-

tece. E esse saber da experiência tem algumas

características essenciais que o opõem, ponto por pon-

to, ao que entendemos como conhecimento.

Se a experiência é o que nos acontece e se o saber

da experiência tem a ver com a elaboração do sentido

ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um

saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de

uma comunidade humana particular; ou, de um modo

ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela

ao homem concreto e singular, entendido individual

ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua

própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o

saber da experiência é um saber particular, subjetivo,

relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o

que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,

ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fa-

zem a mesma experiência. O acontecimento é comum,

mas a experiência é para cada qual sua, singular e de

alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da

experiência é um saber que não pode separar-se do in-

divíduo concreto em quem encarna. Não está, como o

conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem

sentido no modo como configura uma personalidade,

um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma

forma humana singular de estar no mundo, que é por

sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma

estética (um estilo). Por isso, também o saber da expe-

riência não pode beneficiar-se de qualquer alforria,

quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de

outro, a menos que essa experiência seja de algum

modo revivida e tornada própria.

A primeira nota sobre o saber da experiência su-

blinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua

relação com a existência, com a vida singular e con-

creta de um existente singular e concreto. A experiên-

cia e o saber que dela deriva são o que nos permite

apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida pró-

pria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los

Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, qua-

se tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos

Jorge Larrosa Bondía

28 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19

existência a esta vida própria, contingente e finita, a

essa vida que não está determinada por nenhuma es-

sência nem por nenhum destino, a essa vida que não

tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora

dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construin-

do e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que

tudo o que faz impossível a experiência faz também

impossível a existência.

7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e

alcança sua formulação mais elaborada em Descartes,

desconfia da experiência. E trata de convertê-la em

um elemento do método, isto é, do caminho seguro da

ciência. A experiência já não é o meio desse saber que

forma e transforma a vida dos homens em sua singu-

laridade, mas o método da ciência objetiva, da ciência

que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do

mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experi-

mental. Mas aí a experiência converteu-se em experi-

mento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e pre-

visível da ciência. A experiência já não é o que nos

acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um

sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua

cara legível, a série de regularidades a partir das quais

podemos conhecer a verdade do que são as coisas e

dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um

páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela

prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um

mathema, uma acumulação progressiva de verdades

objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao

homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da

experiência e uma vez separado o conhecimento da

existência humana, temos uma situação paradoxal.

Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos,

uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma

enorme pobreza dessas formas de conhecimento que

atuavam na vida humana, nela inserindo-se e trans-

formando-a. A vida humana se fez pobre e necessita-

da, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo

que alimentava, iluminava e guiava a existência dos

homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado

dessa vida em que já não pode encarnar-se.

A segunda nota sobre o saber da experiência pre-

tende evitar a confusão de experiência com experi-

mento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência

de suas contaminações empíricas e experimentais, de

suas conotações metodológicas e metodologizantes.

Se o experimento é genérico, a experiência é singular.

Se a lógica do experimento produz acordo, consenso

ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da expe-

riência produz diferença, heterogeneidade e plurali-

dade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se

mais de uma heterologia do que de uma homologia,

ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funcio-

na heterologicamente do que uma dialogia que fun-

ciona homologicamente. Se o experimento é repetível,

a experiência é irrepetível, sempre há algo como a

primeira vez. Se o experimento é preditível e previsí-

vel, a experiência tem sempre uma dimensão de in-

certeza que não pode ser reduzida. Além disso, posto

que não se pode antecipar o resultado, a experiência

não é o caminho até um objetivo previsto, até uma

meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura

para o desconhecido, para o que não se pode anteci-

par nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.

JORGE LARROSA BONDÍA é doutor em pedagogia pela

Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente é profes-

sor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em

periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o portu-

guês: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Au-

têntica, 1999).

Referências Bibliográficas

HEIDEGGER, Martin, (1987). La esencia del habla. In: .

De camino al habla. Barcelona: Edicionaes del Serbal.

BENJAMIN, Walter, (1991). El narrador. In: . Para uma cri-

tica de la violencia y otros ensaios. Madrid: Taurus, p. 111 e ss.

(Ou, na edição brasileira: , (1994). Magia e técnica, arte e

política; ensaios sobre literatura e história da cultura. In: .

Obras escolhidas. 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, vol. I).

Recebido em novembro de 2001Aprovado em janeiro de 2002