Trabalho em vigilância sanitária

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros COSTA, EA., org. Vigilância Sanitária: temas para debate [online]. Salvador: EDUFBA, 2009. 237 p. ISBN 978-85-232-0652-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Trabalho em vigilância sanitária conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas Gisélia Santana Souza Ediná Alves Costa

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros COSTA, EA., org. Vigilância Sanitária: temas para debate [online]. Salvador: EDUFBA, 2009. 237 p. ISBN 978-85-232-0652-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

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Trabalho em vigilância sanitária conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas

Gisélia Santana Souza

Ediná Alves Costa

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Trabalho emvigilância sanitária

conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas

Gisélia Santana [email protected]

Ediná Alves [email protected]

Introdução

Como é o trabalho em vigilância sanitária? Quaisas suas características? Em que se assemelha e sediferencia dos demais trabalhos em saúde? Nestetexto a reflexão sobre estas questões se dá a partirde quatro aspectos centrais, por meio dos quaissão abordados conceitos, definições e noçõesnecessárias para a compreensão do trabalho emvigilância sanitária.

O primeiro aspecto trata dos conceitos e caracterís-ticas comuns a qualquer processo de trabalho, sejaele desenvolvido para a produção material de bensou para a prestação de um serviço. O segundoaspecto caracteriza o que se denomina serviço,considerando que o trabalho em vigilância sanitária

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é um serviço e assim, identificam-se elementos comuns aqualquer trabalho em serviço, seja de natureza pública ouprivada, independentemente das atividades que realiza. Oterceiro aspecto se refere ao fato desse ser um tipo específicode serviço de saúde que é diferenciado dos demais processosde trabalho relacionados diretamente à assistência. Desse modo,a abordagem da especificidade do trabalho em vigilância requerque se identifiquem as características comuns aos seus objetose à finalidade dos seus processos de trabalho. O quarto aspectodiz respeito à natureza pública e estatal do trabalho em vigilânciasanitária, isto é, o Estado como locus desses serviços. Essacaracterística leva à reflexão sobre a ação regulatória e nor-matizadora do Estado, os limites colocados à AdministraçãoPública e a distinção funcional do trabalhador da vigilânciasanitária como agente público.

Breves notas sobre a dimensão históricae social do trabalho

A origem etimológica da palavra trabalho vem do substantivolatim médio tripalium. Havia dois significados: “instrumentode tortura composto de três paus” e ferramenta usada pelosagricultores na colheita (para bater o trigo e outros cereais).Tripaliare, derivado do latim vulgar, quer dizer “fazer sofrer notripalium” “torturar”. Da ideia inicial de “sofrer” passou-se àde “esforçar(-se), lutar, pugnar” e, por fim, “trabalhar”. Ostermos trabalho e trabalhaDOR na sua origem estãoassociados a significados e sensações negativas, tais como: “dor”“tortura” “labuta” “sofrimento” “esforço”, entre outros(CUNHA, 1994, ALBORNOZ, 2002).

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A depender da época histórica e de como se dá a divisão dotrabalho no seio da sociedade, o termo trabalho adquiresignificados e valor social diferentes. Na Grécia antiga, com apredominância do sistema escravista, havia uma desvalorizaçãoe desqualificação do trabalho manual. Entretanto, a atividadeintelectual contemplativa era valorizada e existia uma claraseparação entre o trabalho intelectual e o labor - trabalho físicopropriamente dito (ARANHA; MARTINS, 1993).

Na cultura grega havia três palavras que distinguiam o trabalhohumano: o labor, trabalho do corpo do homem na luta pelasobrevivência, significando o esforço desprendido pela atividadedo corpo na produção dos meios para satisfação de suasnecessidades essenciais; a poiesis, que significava o fazer afabricação, a criação pela arte, o ofício, no qual o homem usavainstrumentos de trabalho, representando o domínio da técnicano ato da produção; e a práxis, que significava o âmbito davida política, o exercício da vida do homem livre (ALBORNOZ,2002).

A dimensão histórica do trabalho refere-se às diversas formasem que o trabalho se configurou no curso do desenvolvimentoda humanidade: primeiro, o trabalho livre, presente apenasnos primórdios da humanidade, nas comunidades primitivas;segundo, o trabalho escravo que surge e caracteriza o trabalhono período da Antiguidade Greco-Romana, onde prevalecia adivisão social do trabalho, na qual o trabalho manual erarealizado pelos escravos que não tinham sequer o direito sobresua própria vida; terceiro, o trabalho servil, predominante nosistema feudal, característico da Idade Média, sob o qual osservos, os meios de trabalho, a terra e os frutos do trabalhopertenciam ao senhor feudal. Por fim, o trabalho assalariado,forma que o trabalho assume no capitalismo, caracterizando o

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trabalho na Idade Moderna e ainda hegemônica na atualidade,mesmo considerando as profundas transformações sofridas nomundo do trabalho, e que têm ampliado a produção autônomade produtos e serviços.

Trabalho: atividade produtivasubordinada a um fim

O que é trabalho, afinal? Dar uma definição única para essetermo é tarefa impossível. São encontrados significados os maisdiversos, seja nas ciências exatas e naturais ou nas ciênciaseconômicas e sociais. Neste texto, busca-se entender,inicialmente, o trabalho como uma atividade produtiva em suadimensão ontológica, ou seja, como constituinte do ser humano,para, em seguida, considerá-lo nas relações sociais de produção.Essas são constituintes da dimensão histórica do trabalho,configurada na divisão técnica e social do trabalho. Desse modo,localiza-se e analisa-se o trabalho realizado pelos funcionáriosda vigilância sanitária no locus do serviço público estatal.

O trabalho é sempre uma atividade produtiva, visando a umafinalidade determinada. A produção que resulta do trabalhopode ser um objeto tangível, palpável, como por exemplo, aprodução de um medicamento, um equipamento. Pode-seproduzir também, não um objeto, mas apenas o efeito útil dotrabalho. É o caso, por exemplo, do médico, quando realizauma consulta, uma enfermeira, quando supervisiona um serviçode esterilização de material hospitalar, o farmacêutico, quandodispensa o medicamento, o vigilante sanitário, quando realizauma inspeção, e assim por diante. No caso dessas atividades oproduto do trabalho não é uma mercadoria, mas um serviço.

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Ambos os tipos de trabalho – seja ele produtor de um bem,seja de um serviço – têm uma coisa em comum: buscam aprodução de “algo” que visa satisfazer uma necessidade, umacarência, e produzem o que se denomina valor de uso; querdizer, o que é produzido possui uma utilidade, seja materialou imaterial. A produção de uma obra musical, por exemplo,satisfaz algo ligado a necessidades não materiais. Quando ocapital penetra no setor de serviços, assalariando a mão-de-obra, o trabalho produz valor de troca; desse modo, assim comona produção de mercadoria, o trabalho em serviços tambémproduz mais valia, ou seja, trabalho excedente, não pago, quese tranforma em lucro para o empresário.

A existência de algo que é sentido, ou seja, a carência é amotivação primeira do trabalho, é a sua causalidade. Porém,esse momento primeiro está dialeticamente ligado a um fimdesejado, ao telos, portanto, à finalidade. Pode-se dizer, então,que o trabalho como atividade produtiva, consciente, racional,obedece a uma racionalidade teleológica, instrumental, visandoa um fim que é a satisfação de uma necessidade determinada enão de qualquer outra.

O trabalho é, antes de tudo, uma relação que o homem estabelececom a natureza. É através do trabalho que ele transforma asmatérias naturais, adaptando-as às necessidades humanas. Adimensão ontológica do trabalho está associada com a idéia deconstituição do ser humano em sua relação com a natureza, comoatividade primeira dos homens para produzir, no sentido desatisfazer as suas necessidades. Nesse processo de transformaçãoda natureza, o homem também se transforma, constrói relaçõessociais e produz a sociedade para viver. Desse modo, asnecessidades humanas passam a ser determinadas histórica, sociale culturalmente (MARX, 1988, 2003).

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O momento da realização da atividade de trabalho é o que sechama de trabalho concreto ou trabalho vivo; é ele que produzvalor de uso, ou seja, produz algo útil. É no trabalho concreto,produtor de valor de uso, que se encontra a dimensãoontológica do trabalho. Isso porque é no trabalho vivo que sedá o momento de criação, da produção de uma obra comouma necessidade do indivíduo ser para si, na construção da suaidentidade individual, e de ser para os outros, na construçãodo ser social. Desse modo, a vocação produtiva do trabalho émais do que somente a produção no seu sentido econômico.Ela o é, no seu sentido mais amplo, a produção de sentidospara a vida; daí compreender-se a angústia e o sofrimento dosque, por razões diversas, são excluídos da atividade produtiva(VATIN, 1999, CASTEL, 1998).

Processo de trabalho: Conceitos-chave

Os elementos constituintes de qualquer processo de trabalho são:os meios de trabalho, que são os instrumentos materiais eos saberes necessários para a realização das atividades detransformação ou intervenção sobre o objeto; o objeto em sique é aquilo sobre o qual o trabalho se realizará e as atividadesrealizadas pelo agente ou o sujeito que trabalha (MARX,1988). Não existirá processo de trabalho se não houver, aomesmo tempo, o agente, os meios de trabalho e o objeto.Esses três elementos compõem, portanto, uma totalidadedialética. Quer dizer, a relação entre o agente e o objeto,mediada pelos meios de trabalho, apresenta em seu seiocontradições que produzem e determinam transformaçõesrecíprocas entre os próprios elementos do processo de trabalho.É um processo que, ao mesmo tempo em que é produção, é

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também consumo, pois, para produzir algo qualitativamentenovo, o objeto de trabalho é transformado através do consumodos meios de trabalho e da energia do trabalhador (MARX,1988).

No processo de trabalho, o trabalhador precisa de instrumentosque irão mediar a sua ação sobre o objeto. O projeto do queserá produzido irá definir os meios de trabalho necessários àprodução; assim, meio de trabalho é definido como uma coisaou um complexo de coisas que o trabalhador coloca entre simesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve como condutorde sua atividade sobre esse objeto. Os meios de trabalho sãomediadores do grau de desenvolvimento das forças produtivas,mas, também, indicadores das condições sociais nas quais setrabalha (MARX, 1988).

Considerados do ponto de vista do produto, os meios detrabalho e o objeto de trabalho se constituem meios deprodução. O trabalho também expressa a relação dialética entreprodução e consumo, na qual a produção só existe no consumoporque para produzir “[...] o trabalho gasta seus elementosmateriais, seu objeto e seu meio, os devora e é, portanto,processo de consumo” (MARX, 1988, p. 146). A dinâmica dasrelações sociais de produção faz com que os vários processosde trabalho se relacionem e o que se constitui como valor deuso (produto) em um processo pode se constituir meio detrabalho, ou matéria-prima em outro processo.

O trabalho é um fenômeno social e histórico e como tal épreciso considerá-lo no modelo sociotécnico que caracteriza omodo de produção capitalista. Nesse sentido, é preciso refletirsobre o trabalho a partir de dois aspectos centrais: 1- odesenvolvimento das forças produtivas ou progressotecnológico, que representa a base material da realização do

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trabalho, qual seja, os meios de trabalho - tecnologias quemedeiam os processos de trabalho -, e a força de trabalhohumana (dimensão em que ocorre a divisão técnica do trabalho);2- a divisão social do trabalho, que constitui a totalidadedas relações sociais de produção na sociedade.

A mercadoria é um conceito-chave para a compreensão dasrelações sociais do mundo contemporâneo; é especialmenteimportante para a análise dos objetos da vigilância sanitária. Oconceito de mercadoria é compreendido analisando-sedialeticamente sua dupla dimensão: a) a dimensão qualitativa é aexpressão do valor de uso, que é a qualidade de a mercadoriasatisfazer uma necessidade determinada e não outra qualquer; b)a dimensão quantitativa enquanto valor de troca é o produto paravenda, como meio para obtenção de outra mercadoria, e tem suaexpressão em preço. A mercadoria é a forma mais elementar dariqueza no capitalismo. É a corporificação da relação social entrequem compra e quem vende. A mercadoria materializa o trabalhoobjetivado, o “trabalho morto” (MARX, 1988).

A mercadoria materializa o duplo caráter que o trabalho assumena produção: a) como trabalho concreto ou trabalho útil,produtor de valor de uso, eterna necessidade natural demediação do intercâmbio entre o homem e a natureza,independentemente da específica forma social de produção; éo trabalho vivo, realizado para satisfação das necessidades,ocorre no ato do trabalho; b) Como trabalho abstrato que, porsua vez, é uma forma histórica de socialização dos diversostrabalhos privados, através do processo de troca; o valor ouvalor de troca da mercadoria é composto por trabalho humanoabstrato. Os diversos trabalhos contidos nas diferentesmercadorias são reduzidos a algo comum neles, o trabalhohumano em geral.

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Como anteriormente exposto, os elementos dos processos detrabalho formam uma totalidade dialética, só existem em relaçãoe se transformam reciprocamente. Abstraindo as relaçõessociais de produção para se considerar, apenas, o universo doselementos simples do processo de trabalho, vê-se que, naatividade do trabalho emergem, simultaneamente, quatroaspectos importantes para caracterizá-lo como atividadeprodutiva: a concepção, a técnica, o esforço ou desgastefisiológico, e a obra ou produto do trabalho.

1- O primeiro aspecto é o da concepção. É o momentoem que o agente/sujeito cria o projeto de trabalho,concebe como deve ser o produto final e qual a suafinalidade. Neste momento também já são pensadosos meios necessários para a realização do trabalho,visando ao produto ou à obra que se quer produzir.

2- O segundo aspecto é o da técnica, ou da instrumen-talidade técnica. É o momento da utilização dos meiosde trabalho. O trabalho como atividade produtivarepresenta implementação de um tecnicismo, que é osaber-fazer, que envolve a habilidade e a capacidade doagente/sujeito que realiza o trabalho em utilizar os meiosde trabalho. Isso irá singularizar cada trabalho, emparticular, o que quer dizer que cada indivíduo tem oseu modo próprio de utilizar a técnica. A técnica éorientada por uma racionalidade instrumental dire-cionada a um fim e apresenta-se no momento daexecução da atividade (FRIEDMANN; NAVILLE,1973). Por mais prescrito e controlado que seja otrabalho, encontrar o sentido da técnica no trabalho dáa possibilidade de criatividade e autonomia do sujeitoque trabalha (VATIN, 1999).

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3- Outro aspecto é a existência do esforço e desgastefisiológico e psíquico. O trabalho é sempre esforço,não há trabalho sem dispêndio de energia. Com odesenvolvimento da atividade do trabalho, o indivíduomobiliza e coloca em funcionamento o seu corpo. Essemomento é sempre dispêndio de energia, ou seja,qualquer trabalho, por mais prazeroso que seja, exigeesforço e consumo de energia do indivíduo que orealiza, e será maior ou menor, a depender das condiçõesde trabalho e das condições físicas e psíquicas dotrabalhador (VATIN, 1999).

4- Finalmente, apresenta-se o produto ou obra, ou seja, amaterialização ou objetivação do trabalho. Esse é omomento da exteriorização, o momento em que oindivíduo se vê e se reconhece em sua obra. O produtoé, portanto, aquele “algo” que foi idealizado, concebidoe planejado na mente do trabalhador, visando a umafinalidade que é a satisfação de uma carência ounecessidade; o produto é a representação do caráterteleológico do trabalho, para atender a uma motivaçãomaterial ou imaterial.

Porém, no processo de divisão social e técnica do trabalho poderáhaver separação entre o momento de idealização do produto(concepção), do momento de execução do trabalho (técnica),caracterizando processos de trabalho parcelares, fragmentados.

Trabalho na prestação de serviços

O trabalho em saúde se insere no chamado setor de serviços.Uma das características essenciais dos serviços é que produção

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e consumo ocorrem ao mesmo tempo; outra é que o trabalhoem serviço pode adquirir caráter produtivo ou não, depen-dendo do tipo de relação econômica que se estabelece. É umtrabalho em que os agentes têm certo grau de autonomia nomomento de realização das atividades.

Os serviços são considerados fundamentais para a manutençãoestrutural da sociedade. O trabalho realizado nesse setor évisto como um “meta-trabalho”, ou como “trabalho reflexivo”enquanto “proteção e resguardo”; ou seja, trabalho que derivade necessidades geradas pela organização produtiva da sociedade.É um tipo de trabalho que depende do grau de especialização ecomplexidade do modo como a sociedade se organiza, paraatender ao desenvolvimento das forças produtivas. As funçõesde vigilância, sistemas de educação e saúde, independentementese públicos ou privados, são essenciais para a organização dasformas de reprodução social (BERGER; OFFE, 1991).

Outra característica do trabalho em serviço é a incerteza, dianteda imprevisibilidade da demanda. Inevitavelmente, todos osserviços têm que ser dotados de um potencial de atendimentopresumível, mas que pode ou não se concretizar, o que conferesempre uma ociosidade estrutural da oferta e organização. Esseaspecto torna inadequada a remuneração baseada em produtividade;não somente por isso, mas por ser também um trabalho reflexivoe de acautelamento, diante da possibilidade de riscos pela nãoexistência e disponibilidade dos serviços (BERGER; OFFE, 1991).

Os serviços organizados pelo Estado não se baseiam emcritérios de rentabilidade e lucro. Não se pode colocar um valor-limite para prestação do serviço, desde que, nesse tipo de serviçohá uma lógica de escolha baseada em processos políticosdiscricionários; isto é, não podem seguir os métodos de decisãoderivados das premissas do mercado, mas são definidos a partir

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da premissa de que ao Estado cabe assegurar as atividades deregulação e controle e o atendimento às necessidades deserviços essenciais à sua população. Assim, garante legitimidadee o sistema de regulamentação imprescindível para a reproduçãoestrutural da sociedade (OFFE, 1984).

O trabalho em geral dos funcionários públicos e dos empregadosestatais não gera mercadoria e não produz mercadoria e se insereem um contexto social que não passa pelo processo de produçãode valor de troca. Essa força de trabalho é utilizada em funçãodo seu valor de uso e por causa do valor de uso dos serviçosprestados (OFFE, 1984). O produto do trabalho, portanto, é oefeito útil do que é produzido e não uma mercadoria.

A vigilância sanitária é função do Estado, apresenta-se como umconjunto de práticas desenvolvidas pelo aparato estatal para aorganização econômica da sociedade e proteção dos interesses dasaúde. Essas práticas articulam-se com outros setores (COSTA,2004), em torno de funções voltadas para as condições epressupostos institucionais e sociais específicos para as atividadesde produção e reprodução material da sociedade (OFFE, 1991).

Esses aportes teóricos possibilitam compreender o trabalhode vigilância sanitária como parte de uma racionalidade doEstado moderno, na forma de serviço público estatal, paracumprimento das suas funções sociais e administrativas. Essetrabalho se insere no conjunto dos serviços públicos de saúde;faz-se necessário, portanto, que se identifiquem característicastécnicas e sociais do trabalho que permitam apontarespecificidades ao interior dos serviços de saúde que distinguemaqueles que lidam diretamente com a assistência aos enfermose o trabalho realizado na dimensão coletiva, especialmente, nasações de proteção à saúde e prevenção de doenças e agravos.

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Trabalho em saúde: aspectos técnicos e sociais

O trabalho em saúde é um trabalho reflexivo. Por ser umtrabalho em serviço não produz um objeto tangível, palpável,e sim o próprio efeito útil do trabalho. O corpo é o objeto detrabalho do profissional que atua nos serviços de assistência àsaúde e a doença é, ao mesmo tempo, objeto e instrumentodesse trabalho. O que se pretende como produto final dotrabalho é a cura da doença e o restabelecimento da normalidadedo corpo. Esse produto é algo perceptível, mas não material.Na verdade, o que se produz é o efeito útil do trabalho. Vê-seque no trabalho da assistência à saúde o produto da atividadedo trabalho é, imediata e simultaneamente, consumido nomomento de sua produção.

Esse trabalho é hegemonicamente produzido dentro de ummodelo denominado biomédico, que teve sua origem no séculoXVIII. A partir do momento em que o hospital foi concebidocomo um instrumento terapêutico, o médico passou a ser oprincipal responsável pela direcionalidade do conjunto dosprocessos de trabalho em saúde. Isso também decorreu deuma nova compreensão da doença como fenômeno natural,explicável por constantes biológicas observáveis. A abordagemda doença, até então considerada no âmbito da magia e dareligião, começou a ser identificada pelo olhar da ciência, pormeio do saber médico, único reconhecido e legitimado peloEstado (FOUCAULT, 2002).

O modelo biomédico é caracterizado como biologicista ecurativista, centrado na Clínica. Neste modelo trata-se o corpocomo objeto-coisa, com constantes morfológicas e funcionais,desconectado das determinações sociais e culturais. A doença,apreendida pelo saber médico, é o objeto sobre o qual ocorre

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a intervenção e realização do trabalho. Nele, o processo detrabalho apreende o corpo na sua dimensão biológica, comoúnica expressão das necessidades de saúde (GONÇALVES,1994).

A identificação das bases epistemológicas do trabalho em saúde,centrado no modelo biomédico, feita por Gonçalves (1994),indica um predomínio da Clínica sobre a Epidemiologia. Issoimplica a adoção de conceitos objetivos, não de saúde, mas dedoença, influenciando as práticas de Saúde Pública. O modelobiomédico esmaece a importância sociosanitária das ações devigilância sanitária e das demais ações de saúde na dimensãocoletiva.

A prática médica, informada pela Clínica, submetida à crescenteimportância das especializações, produz o predomínio doindividual sobre o coletivo. No âmbito do hospital e dasespecializações, o médico ganha cada vez mais espaço hierárquicofrente aos demais profissionais de saúde e pacientes, e se tornao agente responsável pela direcionalidade técnica do conjuntodos processos de trabalho, demandando atividades terapêuticase diagnósticas complementares (SCHRAIBER, 1993).

A medicina hospitalar se amplia no século XX, na medida emque também se amplia a medicina empresarial. O resgatehistórico sobre o surgimento do hospital e sua crescentecomplexificação, determinando novas bases técnicas para oprocesso de trabalho em saúde, nos moldes que conhecemoshoje, possibilita realizar uma analogia com a grande empresacapitalista moderna (FURTADO, 1994). Nesse sentido,multiplicaram-se as especialidades e se reproduz, nos processosde trabalho do hospital, o fenômeno da parcelização das tarefas,típico da fábrica. A divisão técnica do trabalho ocorre segundo

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recortes verticais, centrada nas atribuições delimitadas noâmbito das profissões.

Para suporte ao cuidado do doente, criam-se organizaçõescomplexas, desenvolvem-se atividades-meio, tais comoadministração, vigilância, limpeza etc. que simbolizam, de modosingular, o processo de “medicalização” como um fenômenosocial. O trabalho em saúde assume, assim, uma base técnicaprópria, consentânea com o modo de produção capitalista, adespeito de suas especificidades.

O processo de trabalho no serviço de saúde aponta a existênciado trabalhador coletivo da saúde, representado por um conjuntodos trabalhadores parcelares que se relacionam em um mesmoprocesso de produção. Esses trabalhos parcelares resultam dadivisão técnica, expressa pelas competências no âmbitoprofissional (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistasetc.). Para recompor a integralidade do projeto tecno-assistencialnos serviços de saúde coloca-se a necessidade de formação deequipes multiprofissionais, com saberes interdisciplinares paraagirem sobre o corpo como objeto de trabalho em saúde e, aomesmo tempo, portador de necessidades historicamentedeterminadas.

A direcionalidade técnica do trabalho em saúde é determinadapelo conhecimento científico. Seus processos de trabalho sãofortemente atingidos pela crescente incorporação tecnológica,conferindo-lhes características de grande complexidade efragmentação. As ações sobre os riscos atuais e potenciais, tendocomo finalidade a proteção da saúde, definem o trabalho emvigilância sanitária como trabalho em saúde fundamental àconsecução da integralidade.

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Especificidades do trabalhoem vigilância sanitária

A reflexão sobre o trabalho em vigilância sanitária conduz àproblematização dos seus instrumentos de intervenção e àcompreensão do papel que lhe é reservado na divisão social etécnica do trabalho em saúde. Fundamentalmente, aespecificidade do trabalho da vigilância sanitária está na naturezados objetos de intervenção e no caráter estatal regulatório edisciplinador de suas ações.

Os objetos de intervenção são “meios de vida”, que sãomercadorias ou se encontram no mundo das mercadorias eprecisam ser protegidos como bens de relevância social. É umtrabalho que representa o Estado em seu dever-poder naproteção e defesa da saúde coletiva, na mediação dos conflitosexistentes entre os interesses da saúde e os interesses de setoreseconômicos geradores de riscos à saúde, sendo, portanto, umaatribuição pública estatal indelegável (COSTA, 2004).

Os objetos da vigilância sanitária – medicamentos, alimentos,tecnologias médicas, serviços de interesse da saúde etc. – sãoconsiderados produções sociais que resultam do grau dedesenvolvimento das forças produtivas – ciência, tecnologia eforça de trabalho –, em determinado momento histórico.Significa que tanto os objetos quantos os meios de controlesanitário se modificam ao longo do tempo e em cada sociedadeem particular. Isso confere a tais processos de trabalho umcaráter provisório e histórico, permeado por contradiçõesgeradas por interesses, quase sempre antagônicos, entre a saúdepública e o mercado (SOUZA, 2007).

Com base na teoria do processo de trabalho, os elementosque compõem o processo de trabalho em vigilância sanitária

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podem ser assim sistematizados. Objeto de trabalho:produtos, serviços, processos e ambientes de interesse dasaúde. Meios de trabalho: instrumentos materiais outecnologias de intervenção, normas técnicas e jurídicas e saberesmobilizados para a realização do trabalho de controle sanitário.Agentes do trabalho: funcionários do Estado que atuam noaparato institucional da vigilância sanitária. Produto dotrabalho: controle dos riscos à saúde sobre objetos socialmentedefinidos sob vigilância sanitária. Finalidade do trabalho:proteção e defesa da saúde coletiva (SOUZA; COSTA, 2003,SOUZA, 2007).

A problematização do trabalho da vigilância remete àsespecificidades de seus objetos de controle que são construçõessócio-históricas e devem ser abordados na dimensão sanitária,a partir dos atributos que são requeridos, para que essesobjetos se efetivem como bens sociais. Esses atributos sãohistoricamente construídos, isto é, o significado dessesatributos, expressos em normas e regulamentos varia, deacordo com o desenvolvimento científico e tecnológico evalores, que se constroem na sociedade acerca de cada objeto(COSTA, 2004).

A divisão social e técnica do trabalho é um conceito que seadequa à compreensão dos aspectos envolvidos na intercomple-mentaridade dos processos de trabalho em vigilância sanitária.O projeto de integralidade da ação de proteção da saúderelacionada aos objetos sob controle sanitário requer que seconsidere a divisão do trabalho sob duas dimensões: umatécnico-científica, relacionada à intercomplementaridade dastecnologias de intervenção, necessárias para o controle dosriscos em todas as etapas do ciclo produção-consumo dos bens;e a dimensão da organização político-administrativa do trabalho,

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que se refere aos modos de organização e aos espaços ope-rativos, onde estão distribuídas e organizadas as tecnologiaspara a produção dos serviços da vigilância sanitária. Essasdimensões se relacionam, em uma perspectiva sistêmica, nosníveis político-administrativos do Estado, que correspondemaos níveis federal, estadual e municipal do Sistema Nacionalde Vigilância Sanitária (SNVS) (SOUZA, 2007).

Na busca da integralidade da proteção contra os riscos da cadeiaprodutiva de bens e serviços pressupõe-se que as ações devamocorrer articuladas e integradas em uma perspectiva sistêmica ecom o uso articulado de tecnologias que se intercomplementam.Significa que a vigilância sanitária deve estar organizada e atuarnos diversos momentos da cadeia produtiva dos bens sobvigilância: produção, circulação, comercialização, consumo, e daprestação de serviços de interesse da saúde e dasexternalidades a eles relacionadas, com o uso concomitante dasdiversas tecnologias de intervenção. Essas tecnologias, a exemplodo registro de produtos, análises laboratoriais, inspeção sanitária,vigilância de eventos adversos etc., são objetivações de saberes epráticas, com graus variados de complexidade, que exigemconhecimentos e saberes especializados e interdisciplinares.

De acordo com Lucchese (2008), a organização do trabalho davigilância sanitária ocorre dentro de um modelo de vigilânciaque visaria à coletivização da administração dos efeitos externos,ou externalidades, decorrentes da produção e circulação de bense pessoas e da prestação de serviços de interesse da saúde.Dessa forma, esta organização tem uma natureza sistêmica, deinterdependência entre os órgãos das administrações federal,estaduais e municipais. E deve dar conta, por exemplo, demedicamentos e alimentos, instrumentos diagnósticos eterapêuticos, que são produzidos em um território local. Não

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há, entretanto, limite territorial para a circulação e o consumo,o que obriga o aparato estatal a absorver as necessidades decontrole e configurar modelos de organização de serviços querepresentem as repartições de competências entre distintosâmbitos institucionais e espaços técnicos e político-administrativos dos entes federados. Além disso, o controlesanitário é área de competência concorrente entre o setor saúdee outros setores da administração pública, a exemplo daAgricultura, Meio Ambiente.

A necessidade de uma organização do trabalho da vigilânciasanitária mais ou menos complexa está diretamente relacionadaao grau de desenvolvimento tecnológico dos segmentosprodutivos de bens e serviços presentes no território.

A interdependência dos processos de controle sanitárioultrapassa a linha geográfica e político-administrativa doterritório, dado que a circulação dos produtos ganhou naatualidade dimensão transterritorial. Esse fenômeno sofre adeterminação das relações sociais produção-consumo, noprocesso de socialização dos produtos no mercado consumidor,que, na sociedade contemporânea, é cada vez mais globalizado.Significa dizer que a organização sistêmica (interdependente eintercomplementar) do trabalho da vigilância sanitária é umaresposta à divisão social e técnica do trabalho, presente naestrutura produtiva de bens e serviços (SOUZA, 2007).

Em um movimento de determinação recíproca, a divisão sociale técnica do trabalho em vigilância sanitária implica a adoção da(inter)complementaridade e interdependência como princípiosnorteadores da organização das práticas para o controle dosriscos sanitários, ao se pensar sob uma perspectiva deintegralidade na abordagem dos objetos sob controle. A(inter)complementaridade e interdependência são um

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imperativo para a recomposição dos processos de trabalho,fragmentados pela divisão técnica do trabalho (que os decompõee parceliza, em diversas tecnologias de intervenção, paradistintos objetos de controle).

A seguir, descreve-se as principais especificidades do trabalhoem vigilância sanitária, especialmente vinculadas ao caráterpúblico e estatal de suas funções:

(1) os agentes do trabalho são servidores públicos investidosdo dever-poder do Estado, na defesa do interesse públicoda saúde, ou seja, são agentes investidos do poder depolícia administrativa, quando em atividade de trabalho;o trabalhador de vigilância sanitária não pode mantervínculo empregatício com os setores sob os quaisincidem suas ações fiscalizatórias. Isso significa, na prática,a exigência do exercício exclusivo de suas funções, excetoo exercício concomitante da docência e da pesquisa;

(2) por ser um trabalho realizado pelo Estado esse trabalhoé regido pelos princípios da Administração Pública, ouseja: os princípios da legalidade, da supremacia dointeresse público sobre o particular e da indisponibilidadedo interesse público, e os demais princípios dessesderivados.

(3) a proteção da saúde é a razão teleológica do trabalhoem vigilância sanitária. É essa finalidade que orienta oconjunto de práticas – regulamentação sanitária,fiscalização, inspeção, registro de produtos, entre outras,realizadas para o controle de riscos associados aosobjetos socialmente definidos sob vigilância sanitária.O controle dos fatores de risco é a razão primeira daproteção da saúde, porém, o espectro da ação de

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vigilância sanitária abrange a promoção da saúde econstrução da cidadania, mediante ações voltadas àformação da consciência sanitária e garantia dos direitosdos cidadãos a produtos e serviços de qualidade.

(4) por sua ação regulatória, há nas práticas de vigilânciasanitária uma racionalidade voltada para a organizaçãoeconômica da sociedade; essa função regulatória decontrole sanitário exige permanente e ágil atualizaçãode conhecimentos, para acompanhar o desenvolvimentotecnológico dos segmentos produtivos e os riscossubjacentes (COSTA, 2004). A regulação sanitária dasinovações tecnológicas, no entanto, é exercida sobelevado grau de incerteza no que respeita ao processode avaliação dos riscos, seja pela insuficiência doconhecimento científico, seja pela incapacidade doaparato da vigilância sanitária em avaliar, mensurar orisco e traduzir em regulamentos (LUCCHESE, 2008).

(5) Ademais, o trabalho em vigilância tem uma dimensãoética que ultrapassa o âmbito individual e ganha umadimensão coletiva, compatível com o significado deresponsabilidade social do trabalho nessa área. Aresponsabilização ética dos trabalhadores da vigilânciasanitária é no sentido de que o interesse público sesobreponha às pressões políticas e econômicas advindasdos setores contrariados em seus interesses. Exige-se,tanto dos agentes, quanto dos gestores, práticastransparentes e permeáveis ao controle social(GARRAFA, 2008, FORTES, 2001), sob observância dosprincípios éticos da moralidade e probidade nas funçõesadministrativas que envolvem o bem público.

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(6) o trabalho técnico da vigilância ocorre em ambiente detensão, gerada pela possibilidade de pressões einterferências externas sobre o resultado do trabalho,já que decisões e pareceres emitidos pelos técnicospodem contrariar interesses políticos e/ou econômicos.Esse aspecto remete à reflexão sobre a autonomia técnicano processo de trabalho em vigilância sanitária. Essaautonomia é legitimada pelo saber técnico-científico dodomínio das profissões; porém, o seu exercíciodefronta-se com condicionalidades advindas dasprescrições expressas nas normas jurídicas e técnicas eda realidade social, na qual o objeto sob controle estáinserido (SOUZA, 2007).

À luz dessas dimensões técnicas, política, social e ética é quedevem ser compreendidos o trabalho da vigilância sanitária eos instrumentos necessários à sua realização. Dado que osobjetos da vigilância sanitária são objetos complexos e exigema integração de saberes de diversos campos disciplinares e otratamento das dimensões éticas, políticas e institucionais parasua intervenção, a organização do trabalho deve se basear nosprincípios da (inter)complementaridade e interdependência dosprocessos e dos meios de trabalho e assentar-se no trabalhoem equipe e na multiprofissionalidade.

O trabalho coletivo da vigilância sanitária resulta, portanto, dediversas ações, com distintas tecnologias de intervenção enumerosos agentes com seus saberes especializados e atitudesético-políticas, que vão conformando, na prática dos serviçosde vigilância sanitária, um modelo de organização coletiva detrabalho, visando efetivar a proteção da saúde, direito social edever do Estado.

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