Tratamento artroscópico das fraturas osteocondrais do talo · ra osteocondral do talo, por ser...

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Rev Bras Ortop _ Vol. 30, Nº 8 – Agosto, 1995 567 Tratamento artroscópico das fraturas osteocondrais do talo * CAIO AUGUSTO DE SOUZA NERY 1 , MÁRIO CARNEIRO FILHO 2 * Trab. realiz. no Dep. de Ortop. e Traumatol., Univ. Fed. de São Paulo- Esc. Paul. de Med. (Serv. do Prof. Dr. José Laredo Filho). 1. Prof. Adjunto – Livre-Doc. do Dep.; Chefe do Setor de Med. e Cirurg. do Pé. 2. Doutor em Med. pelo curso de Pós-grad. do Dep.; Chefe do Setor de Joelho e Artrosc. RESUMO Os autores apresentam revisão retrospectiva de 18 pa- cientes portadores de fratura osteocondral do talo regis- trados na Universidade Federal de São Paulo. Noventa e quatro por cento dos pacientes tinham história de entor- se grave de tornozelo e 88,9% apresentavam sintomatolo- gia crônica antes de se estabelecer o diagnóstico definiti- vo. As fraturas foram classificadas segundo o critério de Berndt-Harty em três fraturas do tipo I (16,7%), três do tipo II (16,7%), 11 do tipo III (61,1%) e uma do tipo IV (5,5%). O tratamento de escolha para as fraturas do tipo I foi o conservador, com supressão da descarga do peso corporal. Para os demais, foi sugerido tratamento cirúrgi- co, por via artroscópica (ressecção dos fragmentos, cure- tagem e perfuração do leito da fratura), mas apenas 12 pacientes receberam essa forma de tratamento. Em duas oportunidades, foi necessária a realização de artrotomia transmaleolar medial para encontrar e tratar a lesão. Um paciente recusou-se a receber qualquer forma de tratamen- to. Após tempo médio de seguimento de dois anos e dez meses (mínimo de três meses e máximo de oito anos), obtivemos oito resultados excelentes (44,4%), oito bons resultados (44,4%), um regular (5,6%) e um mau (5,6%). O mau resultado refere-se ao paciente que não se subme- teu a nenhum tratamento. Considerando os pacientes sub- metidos ao tratamento artroscópico, obtivemos 50,0% (seis pacientes) de resultados excelentes e 50,0% (seis pacien- tes) de resultados bons. Isso indica que o tratamento ar- troscópico é a melhor escolha para a abordagem da fratu- ra osteocondral do talo, por ser mais rápido, de baixa morbidade, com pequeno número de complicações e for- necer bons resultados. SUMMARY Arthroscopic treatment of osteochondral lesions of the talus A retrospective review of 18 patients seen at the Federal University of São Paulo with osteochondral lesions of the talus was undertook. Ninety-four per cent of the patients had had a history of severe ankle sprain and 88.9% had had chronic symptoms before the definitive diagnosis was made. The lesions were classified by fracture type (Berndt-Harty) and distributed as: 3 patients with type I (16.7%), 3 type II (16.7%), 11 type III (61.1%) and 1 type IV (5.5%). The treat- ment of choice to type I fractures was the conservative one with restriction of weight-bearing. For the others, it was sug- gested arthroscopic treatment (excision of fragments, curet- tage and drilling of the remaining crater) but only 12 were treated by this method. In two instances, it was done the trans- maleolar arthrotomy to find and treat the lesions. One pa- tient refused to be treated. After an average follow-up period of 2 years and 10 months (minimum of 3 months and maxi- mum of 8 years), the authors found 8 excellent results (44.4%), 8 good results (44.4%), 1 fair result (5.6%) and 1 poor result (5.6%). The poor result is the one who refused the treatment. Considering the patients who undertook arthroscopic treat- ment, it was obtained 50.0% (6 patients) of excellent results and 50.0% (6 patients) of good results. This indicates the arthroscopic treatment as the best choice because it is quick- er, less morbid, with few complications and offers very good results. INTRODUÇÃO A primeira referência de corpos livres intra-articulares de- ve-se a Alexander Munro, em 1856. König, em 1888, estu- dando várias articulações com corpos livres, criou a denomi- nação osteocondrite dissecante e sugeriu a necrose asséptica espontânea como sua principal causa. Foi Kappis, em 1922,

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TRATAMENTO ARTROSCÓPICO DAS FRATURAS OSTEOCONDRAIS DO TALO

Tratamento artroscópico dasfraturas osteocondrais do talo*

CAIO AUGUSTO DE SOUZA NERY1, MÁRIO CARNEIRO FILHO2

* Trab. realiz. no Dep. de Ortop. e Traumatol., Univ. Fed. de São Paulo-Esc. Paul. de Med. (Serv. do Prof. Dr. José Laredo Filho).

1. Prof. Adjunto – Livre-Doc. do Dep.; Chefe do Setor de Med. e Cirurg.do Pé.

2. Doutor em Med. pelo curso de Pós-grad. do Dep.; Chefe do Setor deJoelho e Artrosc.

RESUMO

Os autores apresentam revisão retrospectiva de 18 pa-cientes portadores de fratura osteocondral do talo regis-trados na Universidade Federal de São Paulo. Noventa equatro por cento dos pacientes tinham história de entor-se grave de tornozelo e 88,9% apresentavam sintomatolo-gia crônica antes de se estabelecer o diagnóstico definiti-vo. As fraturas foram classificadas segundo o critério deBerndt-Harty em três fraturas do tipo I (16,7%), três dotipo II (16,7%), 11 do tipo III (61,1%) e uma do tipo IV(5,5%). O tratamento de escolha para as fraturas do tipo Ifoi o conservador, com supressão da descarga do pesocorporal. Para os demais, foi sugerido tratamento cirúrgi-co, por via artroscópica (ressecção dos fragmentos, cure-tagem e perfuração do leito da fratura), mas apenas 12pacientes receberam essa forma de tratamento. Em duasoportunidades, foi necessária a realização de artrotomiatransmaleolar medial para encontrar e tratar a lesão. Umpaciente recusou-se a receber qualquer forma de tratamen-to. Após tempo médio de seguimento de dois anos e dezmeses (mínimo de três meses e máximo de oito anos),obtivemos oito resultados excelentes (44,4%), oito bonsresultados (44,4%), um regular (5,6%) e um mau (5,6%).O mau resultado refere-se ao paciente que não se subme-teu a nenhum tratamento. Considerando os pacientes sub-metidos ao tratamento artroscópico, obtivemos 50,0% (seispacientes) de resultados excelentes e 50,0% (seis pacien-tes) de resultados bons. Isso indica que o tratamento ar-troscópico é a melhor escolha para a abordagem da fratu-ra osteocondral do talo, por ser mais rápido, de baixa

morbidade, com pequeno número de complicações e for-necer bons resultados.

SUMMARY

Arthroscopic treatment of osteochondral lesions of the talus

A retrospective review of 18 patients seen at the FederalUniversity of São Paulo with osteochondral lesions of thetalus was undertook. Ninety-four per cent of the patients hadhad a history of severe ankle sprain and 88.9% had hadchronic symptoms before the definitive diagnosis was made.The lesions were classified by fracture type (Berndt-Harty)and distributed as: 3 patients with type I (16.7%), 3 type II(16.7%), 11 type III (61.1%) and 1 type IV (5.5%). The treat-ment of choice to type I fractures was the conservative onewith restriction of weight-bearing. For the others, it was sug-gested arthroscopic treatment (excision of fragments, curet-tage and drilling of the remaining crater) but only 12 weretreated by this method. In two instances, it was done the trans-maleolar arthrotomy to find and treat the lesions. One pa-tient refused to be treated. After an average follow-up periodof 2 years and 10 months (minimum of 3 months and maxi-mum of 8 years), the authors found 8 excellent results (44.4%),8 good results (44.4%), 1 fair result (5.6%) and 1 poor result(5.6%). The poor result is the one who refused the treatment.Considering the patients who undertook arthroscopic treat-ment, it was obtained 50.0% (6 patients) of excellent resultsand 50.0% (6 patients) of good results. This indicates thearthroscopic treatment as the best choice because it is quick-er, less morbid, with few complications and offers very goodresults.

INTRODUÇÃO

A primeira referência de corpos livres intra-articulares de-ve-se a Alexander Munro, em 1856. König, em 1888, estu-dando várias articulações com corpos livres, criou a denomi-nação osteocondrite dissecante e sugeriu a necrose assépticaespontânea como sua principal causa. Foi Kappis, em 1922,

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quem se utilizou pela primeira vez do termo osteocondritedissecante para descrever uma lesão no talo(1).

Em 1959, Berndt & Harty(5) revisaram a literatura e apre-sentaram sua própria teoria, sugerindo a denominação de “fra-tura transcondral”, que, segundo os autores, seria a que me-lhor define a lesão, tanto do ponto de vista etiológico quantodo ponto de vista fisiopatológico. Estes autores conseguiramreproduzir em peças cadavéricas as fraturas osteocondrais dotalo, através da aplicação de forças inversoras ao pé. As fraturasda porção lateral da cúpula do talo ocorreram quando a forçainversora incidia no pé em dorsiflexão, enquanto as fraturasda porção medial foram produzidas quando a inversão incidiasobre o pé em eqüino.

Baseados em casos da literatura e em seus próprios, essesautores sugeriram uma classificação em quatro estágios paraas fraturas osteocondrais do talo, que continua sendo ampla-mente utilizada.

Embora ainda possam ser encontrados defensores da teoriavascular para a gênese das lesões osteocondrais do talo(7,

8,24,27), existe unanimidade em se creditar ao trauma a imensamaioria destas lesões(1-3,5,6,9,11-14,16-18,23).

A maior controvérsia, no entanto, reside na escolha do tra-tamento das fraturas osteocondrais do talo. Enquanto existemaqueles que acreditam na recuperação espontânea da fraturatratada conservadoramente através da descarga(4,16), há inúmerosautores que defendem o tratamento cirúrgico como a formamais adequada para a abordagem das lesões mais graves.

Com o desenvolvimento da técnica artroscópica nas últi-mas décadas, abriu-se novo caminho para a abordagem dasfraturas osteocondrais do talo. A utilização da artroscopia, alémde permitir a correta abordagem da maioria das lesões, reduzsensivelmente a agressão à articulação do tornozelo, garantindorecuperação mais rápida e fisiológica, com baixa taxa decomplicações(3,6,12,13,15,20-22,25,26).

MATERIAL E MÉTODOS

No período de janeiro de 1987 a janeiro de 1995, foramregistrados 18 casos de fratura osteocondral do talo no setorde Medicina e Cirurgia do Pé do Departamento de Ortopedia eTraumatologia da Universidade Federal de São Paulo – EscolaPaulista de Medicina (Serviço do Prof. Dr. José Laredo Filho).

Todos os pacientes apresentavam história de trauma agudoou antigo do tornozelo e pé, havendo nítido predomínio das“entorses de tornozelo” como causa primária. Apenas umpaciente relatou trauma em acidente automobilístico, comperda de consciência, razão pela qual não pôde precisar omecanismo gerador da fratura do talo.

Clinicamente, os pacientes referiam dor moderada, nãoincapacitante, no tornozelo afetado, principalmente durante aortostase prolongada, caminhadas ou prática de esporte. Outroachado constante foi a presença de edema de intensidadesvariáveis e limitação leve da movimentação do tornozelo,acompanhada ou não de discreta limitação da articulaçãosubtalar.

O sinal descrito por Davidson(10), caracterizado por dolori-mento à palpação da porção da interlinha articular do tornoze-lo correspondente à área da fratura, apareceu em 13 pacientes(72,2%).

Em apenas dois pacientes (11,1%), o diagnóstico foi reali-zado no momento do trauma inicial. Os demais apresentarammédia de retarde diagnóstico de 7,2 meses, variando de três a24 meses.

Todos os pacientes, exceto aqueles diagnosticados no mo-mento inicial do trauma, receberam alguma modalidade detratamento para “entorse de tornozelo”.

Como rotina, utilizamos a adaptação do algoritmo propos-to por Anderson & col.(2), que é apresentada na figura 1.

As imagens tomográficas auxiliam na localização exata eno dimensionamento da lesão e contribuem para a classifica-ção nos diversos estágios, sendo superiores às imagens radio-gráficas da ressonância nuclear magnética neste mister(2,

28) (figura 2-A e B).A cintilografia (Tc99m) exibe um padrão clássico de au-

mento da captação do radiofármaco na zona correspondenteao tornozelo e especificamente no talo, fato especialmente útilnos casos em que não se detectam anormalidades radiológi-cas, mas não consegue fornecer dados sobre a localização outipo de lesão (figura 3-A e B).

Na ressonância nuclear magnética, observa-se decréscimoda intensidade dos sinais, tanto nas imagens T1 quanto nas T2,indicando haver edema do osso esponjoso que margeia a fratura,nos casos agudos, e a deposição de tecido fibroso efibrocartilagíneo, nos casos de longa evolução ou operados.Com essas características, o exame é útil para avaliar o grau ea extensão do comprometimento dos tecidos vizinhos à fratu-ra e serve como importante recurso no acompanhamento daevolução da reparação(2) (figura 4-A e B).

Nossa casuística é formada por 12 mulheres (66,7%) e seishomens (33,3%), com idades variando de 21 a 53 anos, commédia de 30 anos. Quanto ao lado, observamos a participaçãode 13 talos direitos (72,2%) e cinco esquerdos (27,8%).Quanto à localização no talo, tivemos 13 lesões póstero-me-diais (72,2%) e cinco lesões ântero-laterais (27,8%) (figura5A). O padrão das lesões seguiu o clássico já descrito na

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literatura, sendo que as lesões mediais apresentaram aspectocupuliforme e as laterais, em fatias (wafer-like)(9) (figura 5-Be C). Segundo a classificação de Berndt & Harty, observamostrês lesões do tipo I (16,7%), três lesões do tipo II (16,7%), 11lesões do tipo III (61,1%) e apenas uma lesão do tipo IV (5,5%).

A tabela 1 relaciona os pacientes registrados por ordemcronológica, trazendo dados de identificação, idade, sexo, ladoafetado, localização da lesão na cúpula do talo, classificaçãodas lesões, tratamento efetuado e tempo de acompanhamento.

Adotamos em nosso serviço o tratamento conservador (su-pressão da carga) para os pacientes portadores de lesão grau I.Para os demais, indicamos o tratamento cirúrgico, que consis-te na ressecção dos fragmentos osteocondrais desvitalizadosque recobrem a lesão, curetagem do leito da fratura e realização

de perfurações no fundo da lesão, a ponto de atingir o ossosubcondral (drilling). A combinação da curetagem eperfurações tem sido apontada como a alternativa que melho-res resultados oferece para essas lesões(19). Para o tratamentocirúrgico, optamos pela via artroscópica, por ser a que oferecea menor morbidade(13).

As artroscopias foram realizadas sob bloqueio epidural egarroteamento do membro na raiz da coxa. Utilizamos roti-neiramente a distração articular através do uso de aparelhoexterno que se apóia em pregos de Steinmann passados na tíbiadistal e no calcâneo, para permitir a melhor visibilização dasuperfície articular e facilitar a mobilização do artroscópio de4,5mm de diâmetro com lente de angulação de 30 graus.

Fig. 1 – Algoritmo para o diagnóstico de fraturas osteocondrais do taloem pacientes portadores de dor e incapacidade aguda ou crônica dotornozelo

Fig. 2 – A) Radiografia simples na qual se diagnostica lesão tipo III deBerndt-Harty. B) Tomografia axial computadorizada do mesmo paciente,em que se demonstra a presença de uma “ponte” osteocondral ligando ofragmento ao corpo do talo – tipo II. A tomografia é superior a qualqueroutro método na determinação da localização, dimensões e tipo de fraturaosteocondral do talo.

Fig. 3 – A) Radiografia simples indicando suspeita de lesão osteocondral do talo (seta). B) Cintilografia do mesmo paciente demonstrando concen-tração anômala do radiotraçador na região do talo, sugestiva de fratura. C) Ressonância nuclear magnética demonstrando alterações no ossosubcondral ao redor da lesão (setas).

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Foram utilizados rotineiramente os portais ântero-medial eântero-lateral e excepcionalmente o portal central. Não utili-zamos em nenhuma oportunidade as vias de acesso posterio-res.

Após o inventário da cavidade articular e ressecção da mem-brana sinovial exuberante, realizamos a “palpação” dacartilagem contígua à lesão, no sentido de avaliar sua integri-dade. Foram ressecados todos os fragmentos cartilagíneos

TABELA 1Pacientes portadores de fratura osteocondral do talo, segundo número de ordem, iniciais, sexo,

idade, lado, localização da lesão, classificação segundo Berndt & Harty, tratamentoefetuado e acompanhamento em anos + meses

Nº Ident. Sexo Idade Lado Local. Class. Tratam. Acomp.

1 SRNJ F 24 E M III Artroscopia 82 DMP F 30 D M III Artrotomia 6+23 CVS F 25 D L III Artroscopia 4+94 MA M 29 D M IV Artroscopia 4+65 ZFF M 21 E M III Artroscopia 4+16 DAF F 27 D M III Artrotomia 3+107 ACQ F 22 D L III Artroscopia 3+28 WP M 40 D M I Conservador 3+19 MM F 22 D L III Artroscopia 2+3

10 JAGI M 42 D M III Recusou 1+1111 VES M 35 E M I Conservador 1+1112 MATC F 53 D M II Artroscopia 1+1113 SRMP F 27 D L I Conservador 1+814 CRS F 23 D M III Artroscopia 1+515 CPM F 20 E M III Artroscopia 1+316 MCMB F 48 D M III Artroscopia 0+517 JWS M 28 E M II Artroscopia 0+518 LB F 26 D L III Artroscopia 0+3

Fig. 5 – A) Freqüências de fratura osteocondral do talo, no presenteestudo, quanto à localização. B) Lesões típicas: borda medial do talo –cupuliforme e borda lateral do talo – wafer-like. C) Freqüências defratura osteocondral do talo, no presente estudo, quanto ao tipo (Berndt-Harty).

Fig. 4A) Imagem em

T1 de lesãoosteocondraldo talo tipo I.

B) Imagem em T2da mesma lesão

apresentada em A.

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livres e procedeu-se à curetagem da fratura, tomando-se ocuidado de retirar toda a cartilagem fragmentada sem ampliardesnecessariamente as margens da lesão. As perfurações do leitoda fratura foram realizadas com o auxílio de uma agulharaquiana, levemente arqueada, dentro da qual foi introduzidoum fio de Kirschner fino e maleável. A agulha direciona emantém firme o fio, que, acionado por perfuradora elétrica,penetra no osso subcondral. Alternando-se as vias medial elateral durante a fase de perfuração do leito da fratura, podemosatingir toda a superfície da lesão (figura 6). Dessa forma, nãofoi necessária a realização de orifícios ósseos acessórios(maleolares ou tibiais) para a realização deste importante tempocirúrgico.

Uma vez completados estes procedimentos, realizou-seexaustiva lavagem articular e as cicatrizes cirúrgicas foramsuturadas de maneira usual. Foram aplicados curativos com-pressivos que permaneceram até o terceiro dia pós-operatório.

Nossos pacientes foram mantidos sem carga, imobilizadoscom talas suropodálicas (de gesso ou plásticas), por prazomédio de 6,9 semanas (mínimo seis e máximo 12 semanas),sendo estimulados a realizar programa de reabilitação que

incluía a recuperação do arco de movimento e a força muscularjá na primeira semana pós-operatória.

Desta amostra, dois pacientes foram submetidos a artroto-mia (pela via transmaleolar medial), em virtude de problemastécnicos durante a realização da artroscopia. Na paciente 2,não fomos capazes de encontrar a lesão pela artroscopia eatribuímos o fato à inexperiência com o método e à localiza-ção mais posterior da lesão no talo. No caso 6, uma paneelétrica na fonte de luz impediu-nos de prosseguir com oprocedimento artroscópico. O paciente 10 não quis se subme-ter a qualquer tipo de tratamento, mas continua em acompa-nhamento ambulatorial, tendo desenvolvido marcha claudicantee dolorosa, incapacidade para a realização de esportes e sinaisde artrose da articulação tibiotársica. No talo, a fraturaosteocondral vem sendo progressivamente agravada pelapresença de um cisto subcondral.

O tempo médio de acompanhamento dos pacientes, nesteestudo, foi de dois anos e dez meses, variando de três meses aoito anos. Para a avaliação dos resultados, utilizamos o métodoproposto por Berndt & Harty, que, por ser o mais utilizado,permite a comparação com os de outros autores. Foram

Fig. 6 – Imagensartroscópicas:A) Ganchoelevando ofragmentoosteocondral querecobre o leito dafratura (tipo II);B) O fragmentoosteocondralsendo apreendidopor pinçaartroscópica pararessecção;C) Depois decompletada acuretagem do leitoda fratura,realizam-seorifícios com fiode Kirchnerpassado atravésde agulharaquianalevementearqueada;D) Aspecto dalesão apóscompletado o“drilling”.Abreviaturas:Fr – fragmentoosteocondral;Ti – margemanterior da tíbia;Ta – superfíciearticular do talo.

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considerados como excelentes os pacientes sem queixas,capazes de realizar esporte sem restrições e que reassumiramirrestritamente suas atividades pregressas. Consideramos comobom resultado os pacientes capazes de caminhar livremente(qualquer distância), apresentando dor ou desconforto levesapenas nas atividades esportivas, não necessitando demedicação. Regulares foram aqueles portadores de dor e edemaresidual para marcha normal e incapacidade para a realizaçãode esportes, mas que não necessitaram de medicação ou órteses.Maus resultados foram considerados aqueles portadores de doraos pequenos esforços e que necessitaram do uso de medicaçãoou alguma modalidade de auxílio para a marcha.

RESULTADOS

A tabela 2 reúne os dados referentes aos resultados obtidosno tratamento de nossos pacientes.

Obtivemos oito pacientes (44,4%) com resultados excelen-tes; outros oito indivíduos (44,4%) foram considerados comobons resultados. Apenas um (5,6%) foi classificado comoregular e o único mau resultado foi observado no paciente quenão se submeteu a qualquer forma de tratamento. Estadistribuição ainda pode ser melhorada, pois contamos com trêspacientes (15, 16 e 17) classificados como bons resultadosque ainda não atingiram 18 meses de pós-operatorio, época naqual se considera como estabilizada a evolução da recuperação,não sendo esperados novos progressos(1).

Na tabela 3, apresentamos a relação dos resultados com otipo de fratura.

Quando consideramos isoladamente os pacientes tratadospor via artroscópica, obtivemos seis pacientes (50,0%) comresultados excelentes e seis pacientes (50,0%) com resultadosbons.

Como complicações do método, apontamos a ocorrência deepisódio de infecção cutânea superficial no orifício da pernautilizado para a instalação do distrator articular e os casos nosquais não fomos capazes de concluir o tratamento por viaartroscópica.

DISCUSSÃO

Na totalidade de nossos casos, pudemos detectar a partici-pação do trauma na gênese da fratura osteocondral do talo.Embora não se negue a existência da osteocondrite dissecante,acreditamos tratar-se de eventualidade rara que deva sersuspeitada quando não se detecte a ação de agente traumático

e principalmente nas ocorrências bilaterais.Pela reconhecida participação dos entorses de tornozelo na

produção das fraturas osteocondrais do talo, associamo-nosaos autores que preconizam a pesquisa exaustiva destas lesõesem todos os casos de incapacidade residual do tornozelo ouevolução turbulenta após entorses. Anderson & col.(2)

encontraram fraturas osteocondrais do talo em 57% dos paci-entes portadores deste tipo de queixa.

A faixa etária, a distribuição entre os lados esquerdo e direitoe a maior incidência de lesões póstero-mediais em nossaamostra coincidem com as observações de outros autores. Noentanto, a predominância do sexo feminino, observada nestacasuística, discorda dos registros da literatura. Não dispomosde justificativas plausíveis para este achado.

TABELA 2Apresentação dos resultados obtidos, correlacionando-os

com lado, local e tipo da fratura e tratamento efetuado.São apresentados ainda o tempo de imobilização

e o tempo de acompanhamento

Nº Lado Local Class. Tratam. Imob. Acomp. Result.

1 E M III Artroscopia 9 8 E2 D M III Artrotomia 6 6+2 R3 D L III Artroscopia 8 4+9 B4 D M IV Artroscopia 12 4+6 B5 E M III Artroscopia 9 4+1 E6 D M III Artrotomia 9 3+10 B7 D L III Artroscopia 8 3+2 E8 D M I Conservador 6 3+1 B9 D L III Artroscopia 8 2+3 E

10 D M III Recusou 0 1+11 M11 E M I Conservador 6 1+11 E12 D M II Artroscopia 6 1+11 B13 D L I Conservador 6 1+8 E14 D M III Artroscopia 8 1+5 E15 E M III Artroscopia 6 1+3 B16 D M III Artroscopia 6 0+5 B17 E M II Artroscopia 6 0+5 B18 D L III Artroscopia 6 0+3 E

TABELA 3Relação dos resultados finais com os tipos

de fratura segundo Berndt & Harty

Tipo I Tipo II Tipo III Tipo IV

Excelente 2 (25,0%) 6 (75,0%)Bom 1 (12,5%) 2 (25,0%) 4 (50,0%) 1 (12,5%)Regular 1 (100,0%)Mau 1 (100,0%)

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TRATAMENTO ARTROSCÓPICO DAS FRATURAS OSTEOCONDRAIS DO TALO

Seria razoável imaginar uma freqüência decrescente dos tiposde fratura – maior incidência de fraturas tipo I e, sucessiva-mente, menor incidência dos tipos II, III e IV – já que seassociam a traumas mais intensos, de maior gravidade. Noentanto, percebemos nítida predominância das lesões do tipoIII de Berndt & Harty (61,1%). Como justificativas para estaobservação, lembramos que as lesões do tipo I são de difícildiagnóstico radiológico e freqüentemente se associam a sinto-matologia leve e inespecífica; para o diagnóstico de lesões dotipo II, é necessária a identificação de um segmento osteo-cartilagíneo íntegro ligando o fragmento fraturário ao corpodo talo, o que não é fácil de ser demonstrado; é igualmenterara a demonstração de rotação do fragmento destacado ou apresença de corpos livres intra-articulares, o que certamentesubestima a freqüência das lesões do tipo IV.

O tratamento conservador para as lesões tipo I já havia sidocomprovado; fornece bons resultados e restituição integral daarticulação. Este fato foi também por nós observado.

Nossa opção pelo tratamento cirúrgico das lesões osteocon-drais classificadas como estádios II, III e IV deveu-se à di-ficuldade de se estabelecer com segurança o diagnóstico dotipo de fratura e, principalmente, da vitalidade do fragmentoque recobre as lesões sem sua visibilização direta(20). Emboradispondo dos mais modernos recursos da imagenologia, nãopudemos estabelecer critérios capazes de prognosticar aevolução de cada caso individualmente. Além disso, já ficoudemonstrada a possibilidade de progressão das fraturas quepassariam dos estádios mais brandos para os mais graves.Considera-se como ponto pacífico a indicação de tratamentocirúrgico para as fraturas tipo IV, bem como para os casos dequalquer estágio que apresentem evolução clínica insatisfatóriaou prolongada e que não respondem à terapêutica conservadora,tendo-se como limite desejável para a mudança de tática detratamento período inferior a 12 meses, a partir do qual iniciam-se alterações degenerativas irreversíveis(19).

Combinando-se estas informações à relativa facilidade ebaixa morbidade do procedimento artroscópico, adotamos estaabordagem para o tratamento das fraturas osteocondrais do talocom classificação superior ao estádio I.

Não há meio seguro de se estabelecer o tempo necessáriosem carga para o completo restabelecimento da fratura osteo-condral. As informações obtidas através do estudo radiológi-co simples são questionáveis, já que a reparação integral dodefeito ósseo é muito lenta e muitas vezes não ocorre.

No intuito de reduzir o tempo de incapacitação sem carga,tentamos monitorizar o preenchimento do defeito osteoarti-

cular por tecido fibrocartilagíneo de reparação, através darealização de ressonâncias magnéticas seriadas. O preenchi-mento completo do leito de fratura pôde ser detectado nosexames realizados quatro semanas após a cirurgia, mas nãodispomos de meios de avaliar a resistência deste tecido às forçasque seriam aplicadas a ele pela livre utilização do tornozelo.Mantivemos portanto, arbitrariamente, nossos pacientes semcarga por período médio de 6,9 semanas, apesar da sugestãode Guhl(13) de que três semanas seriam suficientes.

A obtenção de 88,8% de resultados excelentes e bons com osistema de tratamento adotado equipara-se aos obtidos poroutros autores e indica que o procedimento artroscópico é ométodo de eleição para a abordagem desta patologia.

É chegado o momento, à semelhança do que ocorreu com apatologia meniscal do joelho, em que o procedimento artros-cópico substituirá com vantagens a artrotomia clássica naabordagem das fraturas osteocondrais do talo.

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