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TRAULITO #2 Julho/Agosto de 2010 Uma publicação da Companhia do Latão Cinema na época do fundo perdido Traduções inéditas de Brecht Diálogo sobre a cultura Guarani A formação de uma crítica teatral

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TRAULITO #2

Julho/Agosto de 2010

Uma publicação da Companhia do Latão

Cinema na época do fundo perdido

Traduções inéditas de Brecht

Diálogo sobre a cultura Guarani

A formação de uma crítica teatral

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EXPEDIENTE

Distribuição gratuita

EdiçãoSérgio de Carvalho

Co-ediçãoRoberta Carbone

Projeto gráfico e diagramaçãoPedro Penafiel

ProduçãoJoão Pissarra

Imagem da capaInspirada no cartaz para a peça O inspetor geral de Gogol, parte do acervo do Museu

Mayakovsky em Moscou. Desenhos de Hans Staden.

Colaboração nesta edição

Adriana Mendonça, Ana Petta, Anahí Santos, Carlos Escher, Cássio Brasil, Felipe Moraes, Fernando Vilela, Gabriela Villen, Helena Albergaria, Jerá Giselda, Lincoln

Antonio, Luiz Gustavo Cruz, Manoel Rangel, Mariângela Alves de Lima, Martin Eikmeier,

Maurício Braz, Ney Piacentini, Patricia Zuppi, Renan Rovida, Renata Amaral,

Roberta Carbone, Rogério Bandeira, Sérgio de Carvalho, Tercio Redondo, Walter Garcia.

AgradecimentosPrêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz

2008 e Cooperativa Paulista de Teatro

Impressão Provo Gráfica

Tiragem3000 exemplares

Contatos da publicaçãoCompanhia do Latão

(11) [email protected]

vintém@uol.com.brwww.companhiadolatao.com.brblog.companhiadolatao.com.br

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Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2008

CARTAS À REDAÇÃO

Traulito

Parabéns pela publicação do “Traulito”!

Ganhei um ontem, fui dar uma lida antes de dormir e não parei até

chegar na última página... Adorei (principalmente a entrevista com

Jean-Pierre Sarrazac).

Bel Teixeira

Maquiavel

Muito interessante esse tal de Maquiavel. Que música ele escutava?

Black Berserk

Sobre a matéria “Arte e objeto: uma discussão brasileira”

Depois de ler conversa com Luiz Renato Martins, Arte e objeto: uma

discussão brasileira, publicada no último Traulito, achei por bem ao

menos informar uma “ imprecisão” que os autores cometeram. No texto

introdutório à discussão, é dito que “a conversa a seguir ocorreu em 16

de outubro de 2008, durante uma mesa-redonda, organizada pelo corpo

discente do Departamento de Artes Plásticas da USP, chamada ‘Daquilo

que não se vê: presença greenberguiana na formação em artes’”. Como

então aluno de graduação do Departamento de Artes Plásticas e um dos

organizadores do referido debate, estive presente na ocasião e observei que,

na publicação do Traulito, faltou dizer que os debatedores propriamente

da mesa eram outros dois professores do departamento, Sônia Salzstein e

Marco Giannotti. Gustavo Motta e Deyson Gilbert, aluno e ex-aluno,

estavam, com eu, na audiência, que de fato participou da discussão depois

das apresentações dos três debatedores. Não sou capaz de dizer se a parti-

cipação deles na discussão condiz com o que foi publicado e também não é

esse o ponto. O ponto é que, da maneira como foi colocada, a matéria passa

a falsa impressão de que o debate teria ocorrido apenas entre os três sujeitos

que aparecem dialogando quando, na verdade, o evento abrangia outras

pessoas e foi proposto pelos discentes do departamento no âmbito de uma

atividade mais ampla que buscava pensar a dinâmica interna de ensino e

debate sobre arte ali. Ressalto que não discuto a “ legitimidade da discussão”

entre os três. Só o que não compreendi foi a omissão, no texto introdutório,

de certos aspectos do contexto em que ela teria acontecido. Porque o texto fala

em “mitologia autoral”, “narcisismo” e , portanto, “constituição do autor”,

me permitiu pensar que ele próprio – o texto – é um bom exemplo disso.

Thiago Gil

Reposta da redação

Caro Thiago,

Obrigado por sua observação. Haverá um texto de retomada daquele debate

na próximo número. Incluiremos uma nota com suas sugestões, à exceção, é

claro, do comentário dispensável sobre o narcisismo.

Editores de Traulito

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TRAULITO – Sua aldeia se

chama Tenonde Porã. O que isso

quer dizer ?

JERÁ GISELDA – Tenonde

significa algo que está na frente,

futuro. E porã é algo bom, boni-

to. “O futuro que traz esperança

de ser bom, bonito”. No estado de

São Paulo temos 24 aldeias. Qua-

tro na capital, como a minha.

Todas elas Guarani Mbya. Cada

uma tem suas particularidades e a

mesma questão: a dificuldade em

demarcar a área pela Funai. Das

24 aldeias, a Tenonde é a mais

numerosa. Tem quase mil pes-

soas numa área de 26 hectares,

que é muito pequena. Para se ter

uma idéia: o ideal de um espaço

para viver, plantar, caçar é aque-

le em que para você visitar outro

núcleo familiar deve andar uma

ou duas horas a pé. Na minha

aldeia eu caminho dois minutos

e já chego à outra casa. Quando

eu era criança tinha 20 famílias.

Hoje tem mais de 100 vivendo

apertadas. Mesmo assim a gente

conhece todo mundo, desde o

pequenininho ao velhinho. Mas

agora, faz algumas semanas, es-

tou vendo pessoas estranhas. Eu

vivo muito nos dois mundos – no

meu mundo Guarani e no da cul-

tura de vocês. E sei que onde tem

muita gente, como numa cidade,

é impossível todo mundo conhe-

cer o outro.

TRAULITO - Essa aldeia é muito

antiga?

JERÁ – Tem mais de 60 anos. O meu

falecido avô parecia um pouco com um

japonês. Baixinho, troncudinho, per-

nas grossas, meio branco, olho rasgado,

meio carequinha, acho que não é muita

característica de Guarani, mas ele era

assim. Ele veio do Rio Grande do Sul,

com a minha mãe, que tinha dois anos,

e minha tia. Tinha uma época, nas dé-

cadas de 1920 e 1930, em que muitos

guaranis se concentravam no centro de

São Paulo, vendendo artesanato. Nessa

época, na região onde é a aldeia hoje,

morava uma família de japoneses que vi-

nha para o centro também. Eles conhe-

ceram o meu avô e o convidaram para ir

morar na área, com mais duas famílias

de japoneses. Ele gostou muito do meu

avô porque achou que ele era um paren-

te perdido. (risos) Cultivavam algumas

plantações, se deram super bem e fica-

ram com eles até minha mãe completar

12 anos. Minha mãe é uma “super gua-

ranizona”, baixinha, cabelo comprido,

preto, olho bem rasgadinho. Uma cor

bem Guarani. E aí às vezes ela acorda na

aldeia e começa a falar japonês, o que é

muito hilário. Ela conta umas partes da

história da aldeia que eu não consigo de-

talhar. Diz que um japonês contava que

era o mundo da guerra, que fazia parte

de um mundo em que matava para não

morrer. E que ele estava em um navio

muito grande, e não sei em que águas ele

falou ao irmão dele: eu vou pular, por-

que não quero matar e não quero mor-

rer. Ele era um coronel e o irmão falou

assim: pula você, eu não vou pular. Ele

pulou, e de repente estava lá. Quando

passavam aviões na aldeia, ele tinha fei-

to buracos na terra. Aí cobria com folha

de palmito esses buracos. Quando ouvia

som de avião ele se enfiava no buraco,

ficava três, quatro dias e não saía. Acho

que tem algo a ver com a Segunda Guer-

ra. Ele estava traumatizado. Minha mãe

não sabia direito falar a língua deles ain-

da, mas ia e pegava água para eles.

TRAULITO – E a sua mãe

aprendeu a falar japonês?

JERÁ – Aprendeu. Fala bas-

tante japonês, mas ela nunca quis

nos ensinar. Ela dizia: “o que você

vai fazer com esta língua? Tem

que falar Guarani!”

TRAULITO – E foi na terra dos

japoneses que começou a aldeia?

JERÁ – Eu não sei exatamen-

te o que aconteceu, mas a família

de japoneses resolveu ir embora.

E já existiam outras famílias gua-

ranis por ali. E ele então resolveu

doar a terra para essas famílias. E

deixou o meu avô como cacique.

Mas meu avô ficou meio surta-

do com a idéia e não quis. Falou

para os outros guaranis que esta-

vam lá: “fiquem aqui que eu vou

dar uma passeada e já volto.” Aí

com minha mãe e minha tia foi

para uma aldeia no Rio Branco,

que é próxima também, fica con-

centrada na Mata Atlântica, entre

Mongaguá, Peruíbe e Itanhaém.

Ficaram muitos anos no Rio

Branco, depois foram para o Sul.

Os Guarani têm muito isto de

não ficar parados em uma aldeia

só. Só depois retornaram para a

Tenonde Porã.

TRAULITO – O seu avô nun-

ca foi cacique?

JERÁ – Não, ele não aceitou.

Quando ele voltou para a aldeia,

ENTRE DOIS MUNDOS

Entrev ista com Jerá Giselda, líder Guarani e professora

Luiz

Gust

avo C

ruz

“Para falar de cultura, o ponto primordial é a questão da terra.”

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já tinha outro guarani, o Eduar-do, que era o cacique.

TRAULITO – Como se deci-de quem é o cacique?

JERÁ – Por exemplo, num gru-po como o de vocês aqui do teatro, tem sempre alguém para liderar. Isso acontece com naturalidade na aldeia. Na Constituição de 1988 foi garantido que o indígena tives-se uma educação diferenciada. E um dos pontos para que isso acon-tecesse era ter uma formação para o professor índio ligada a sua et-nia. Tornam-se professores aqueles que sabem falar um pouco melhor o português, os que conseguem ler, escrever documentos, fazer a ponte de fora para dentro. Então, é comum que essas pessoas sejam convidadas a serem lideranças. Só que não dá! Nem todos os profes-sores têm capacidade para dialogar com o mundo de fora, para se co-locarem a frente de projetos, lutar e reivindicar. Então, eu diria que tem pessoas que já nascem com o perfil de liderar, de ser cacique, ou de ser um xeramoi, que é o que vo-cês conhecem como pajé. O Edu-ardo já tinha esse perfil, então ra-pidamente as pessoas reconhecem e falam: “você é o cacique.”

TRAULITO – O xeramoi que você fala é o pajé, com a função mais de liderar o ritual? Como é que se sabe quem é ele?

JERÁ – No xeramoi mais ain-da porque ele sempre se destaca da maioria. Na nossa religião tem um lugar na aldeia aonde a maioria das pessoas vai para rezar, cantar, dan-çar, agradecer mais um dia de vida. A criança, quando tem 8 ou 9 anos e já tem um comportamento dife-rente, vai para a casa de reza com mais frequência. É mais centrada, se interessa por aprender outras coi-sas. E aos poucos se torna o pajé, como vocês falam, que tem o perfil de liderar a comunidade interna-mente. Só que hoje, como a gente vive nos dois mundos, surgiu um pouco de atrito com essa situação, no caso em que ele não sabe escre-ver, não sabe ler, não tem muito acesso ao mundo de fora. Porque a comunidade, sabendo que hoje o cacique tem que viver nos dois

mundos, fala: “ele não deve ser liderança porque não tem essa parte!” Tradicional-mente, quem liderava a aldeia era o xe-ramoi, o líder espiritual. Cacique é uma palavra que não vem da nossa cultura. Uns trinta anos atrás, tinha essa coisa de cacique, vice-cacique e cabo. Mas isso não é da tradição. Então eu falei para os líderes da aldeia: como a gente vive nos dois mundos, então precisamos de dois caciques. Um cacique só para lidar com as coisas internas e outro só para lidar com os lá de fora. Eu ainda não achei ninguém para dividir no meio.

TRAULITO – São sempre homens?JERÁ – A maioria. Aqui no esta-

do de São Paulo nenhuma aldeia tem uma liderança feminina. Líder espiri-tual tem. Mas liderança que envolve um trabalho com os de lá fora não tem, eu sou a única.

TRAULITO – Mas para ter lide-rança espiritual também tem que ter dom de visões e sonhos?

JERÁ – Sim, geralmente começa assim. Tem um perfil de sentar em um

grupo e falar dos sonhos. Outras pesso-as começam a falar dos sonhos e o líder interpreta. Quando eu era criança, tinha um amiguinho guarani com quem eu gostava de brincar porque era muito di-vertido. Depois de algum tempo ele co-meçou a se afastar de mim sempre que estávamos na casa de reza ou em reunião na aldeia. Eu queria sempre brincar mais com ele e ele foi se fechando, queria ficar sentado. Hoje ele é um xeramoi. Quem é xeramoi tem que deixar de fazer algu-mas coisas para se concentrar e assim ver outras coisas que estão acontecendo.

TRAULITO – Quais são as maio-res dificuldades quando vocês pensam na sua cultura no meio de dois mun-dos? É forte a influência da televisão, dos valores do consumo?

JERÁ – Para falar de cultura, o ponto primordial é a questão da terra. Os Gua-rani tradicionalmente precisam de um espaço maior. Quando não têm esse es-paço, muitas ações voltadas à cultura, aos valores do povo, vão deixando de existir. Por exemplo, um pai acorda e não tem a oportunidade de levar seus filhos homens

para a mata. É só ali que pode falar dos princípios do equilíbrio do ser guarani com os seres da mata, com a natureza. A gente tem dois tempos divididos, o Tem-po Novo e o Tempo Velho. No Tempo Velho, não pode matar certos animais. Há limites. Por exemplo: durante um ano um guarani não pode matar mais de um animal de grande porte, como uma anta. Por quê? Nhanderu, quando fez a terra para os Guarani, colocou esses princípios. Sem a terra, muitas aldeias Guarani per-dem essa situação. É quando isso ocorre, com a perda desse Tempo, que a televisão acaba tomando espaço. Os mais velhos ficam tentando falar nos princípios, nos valores. Mas o que o Guarani tinha antes era tudo na prática. Agora é tudo mui-to oral. O povo Guarani tem mesmo o hábito de transmitir os saberes através da oralidade, o que é uma coisa muito for-te também. Mas isso fica muito voltado para a questão espiritual: você vai para casa de reza, escuta o xeramoi falar, faz as danças, os cantos, as rezas. Mas é dife-rente quando você tem uma relação com a natureza. Na prática do plantio tem uma série de coisas com que você tem que aprender a lidar. Em todas as ações como Guarani você tem que respeitar os princípios. Quando você perde isso, os Guarani ficam muito vulneráveis. Aí então você precisa ficar na escola falando o tempo todo: “não precisa se arrumar, não precisa vir de salto alto para escola, a escola é em uma aldeia, gente!” Porque alguns adolescentes já começam a falar: “não vou para a escola porque o senhor não comprou sapato novo para mim.” E isso surge porque aqueles que são filhos de assalariados na aldeia têm calçados novos, uma roupa nova, e quando vão para a escola chamam a atenção de todo o grupo.

TRAULITO – Você já falou que

é da tradição Guarani mudar muito, se mover muito. Isso está nas histórias antigas? Tem alguma história mito que tem a ver com isso?

JERÁ – Pelo que eu estudo do meu povo, essa situação de ficar mudando sempre fez parte do mundo Guarani, muito voltado para o equilíbrio do ser guarani com a natureza. Quando era tudo mato, um núcleo se localizava em um espaço e ali plantavam, colhiam, pescavam. Aí, depois, mudavam desse espaço para outro, para o primeiro se recuperar. Depois de um tempo, volta-vam. Todos aqueles lugares em que você

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passa vão ficando como um território

seu. Um lugar em que você já esteve,

onde um parente seu morreu e foi enter-

rado. Um lugar que você conhece.

TRAULITO – Fale mais sobre o

Tempo Novo e o Tempo Velho.

JERÁ – Para o Guarani tem estes

dois tempos, só. Ara pyau, que é o Tem-po Novo e Ara yma que é o Tempo Ve-lho. Ara pyau é o tempo de calor, época em que o Guarani pode plantar, colher, caçar. Antigamente, o Guarani planta-va em grande escala e depois guardava para consumir no tempo do inverno, que é frio. E no Tempo Velho não se caça porque não é bom para entrar na mata. E como a procriação começa no final do Tempo Novo, no Tempo Velho estão crescendo os filhotinhos: então você não pode caçar. O Tempo Novo é também aquele em que acontecem os principais rituais para o Guarani. Pri-meiro, é o mbojape nhemongarai, bati-zado do milho: a gente rala o milho e assa o milho ralado, coberto com umas folhas, embaixo da brasa, e aí faz um mel. E aí leva para a casa de reza onde acontece a consagração por esse alimen-to, que já começa na reza para plantio, colheita e nova colheita. É nessa con-sagração que os xeramoi concedem os nomes Guarani para as crianças com mais de um ano. Aí se faz uma reza e o xeramoi se comunica com os espíritos das crianças. E o espírito fala com qual nome ele tem que ser chamado.

TRAULITO – Depois de um ano de idade ?

JERÁ – Isso. Para os Guarani, até perto de um ano, o espírito ainda está um pouco distante do corpo físico. Se der o nome Guarani à criança antes de um ano, ele pode errar, a comunicação não está tão boa. (risos). Muitas crian-ças que recebem o nome antes de um ano tem que trocar, porque às vezes se tornam crianças tristes. Neste caso é desvendado que a criança está com o nome errado.

TRAULITO – Você falou em nome Guarani. Há um nome não Guarani também?

JERÁ – Isso, nesse mundo em que a gente vive, desde que a criança nasce tem que receber um nome português. Porque para tomar vacina e uma série de coisas tem que ter documento, e para isso tem que ter um nome em português.

TRAULITO – Quais os outros ri-tuais?

JERÁ – Este é um dos principais. Nos últimos anos ele foi substituído pelo nhe-

mongarai, que é um batizado só para dar um nome à criança. A gente tem um xe-

ramoi lá no litoral, Jejoko, que teve muito contato com os de lá – com os católicos. Ele se autoclassifica como Tupi-Guarani ou, como nós dizemos, xiripa. Ele fi-cou muito forte e passou tudo o que ele aprendeu para as aldeias Guarani. Nesse ritual, o nhemongarai, tem uma casa de reza com um altar, amba, que tem uma

cruz. A cruz é como um barquinho, e no batizado você coloca algumas folhas de uma árvore específica, faz o líquido, e aí faz um contorno de pó em volta des-te amba, onde vai grudando as velinhas que são feitas de ceras de abelha e que são acesas. Depois de toda uma reza, o xeramoi pega a água e molha a cabeça de todas as pessoas que estão ali para serem purificadas novamente e para aqueles que vão receber o nome. Só que já tem muitas aldeias percebendo essa história. Neste ano de 2010, uma lá em Angra

voltou ao mbojape nhemongarai, batizado do milho. O xeramoi lá em Angra falou para mim: “eu nunca vi esse negócio de ficar molhando a cabeça das pessoas, não precisa fazer isso para dar nome a elas.” E de fato na aldeia dele não tem esse amba e a cruz. É só a parede com alguns instru-mentos: mbaraka miri, hy’akua, mba’epu. Mas a maioria das aldeias tem o amba, que é uma coisa muito forte.

TRAULITO – E na sua aldeia, existe a cruz?

JERÁ – Em uma viagem em que eu

fui conhecer uma aldeia na Argentina, o cacique da minha aldeia estava junto. E teve um depoimento de uma guarani do lado da Argentina que foi muito forte. Ela tinha muita segurança e clareza das coisas. Disse coisas que eu sempre quis falar para as pessoas mais velhas, mas nunca consegui. Contou toda a história dos jesuítas, das missões, falou das enga-nações, dos assassinatos de líderes e ex-plicou que nós sofremos muita influên-cia da cultura jesuíta. Aí o meu cacique falou assim: “vamos voltar para a aldeia

e jogar o amba para fora!” Mas logo ele disse: “vão pedir para colocar a gente em um hospício.” Eu falei que tudo bem, é uma influência. A gente está cheio de influências dos de lá. Mas a cultura é viva, então ela também vai se transformando, vai mudando, devido a contatos. Mas enfim, o amba já faz parte da situação religiosa do Guarani e não tem como jogar fora. A gente pode contar toda a história, conversar com os guaranis mais jovens, mas não pode ser radical assim.

TRAULITO – Como você aprendeu a falar tão bem o por-tuguês?

JERÁ – Eu tinha 10 anos e não falava nada, não entendia. Aí mi-nha mãe conseguiu me matricular na primeira série com quase 11 anos e minha irmã com 13. Não sei o que ela fez, talvez a diretora fosse japonesa. (gargalhadas!) Foi meu primeiro contato com este mundo de vocês. Eu me lembro que era muito cruel: um monte de crianças como eu, mas que falavam uma língua estranha. Tinha uma pro-fessora que era a Inês Maria Ma-chado. Tinha vezes que eu chorava e não queria ir para a escola. Então ela aparecia, me pegava pela mão, fazia carinho na minha cabeça e me levava de volta para a escola. Mas em agosto eu já estava alfabe-tizada e tentava ensinar as crianças da minha aldeia. Já queria ser igual à Inês Maria Machado. (risos)

TRAULITO – Você teve con-tato com ela recentemente?

JERÁ – Eu tentei várias vezes, mas não consegui. Da última vez soube que ela morava em um apar-tamento em Interlagos, eu fui até lá, mas ninguém sabia, não era ela. Foi ela que me ajudou no contato com este outro mundo. Foi a pri-meira que me tirou da aldeia e me levou para Parelheiros, um bairro mais próximo. Eu ficava parada na rua e via as motos, os carros. E um monte de pessoas passando: pare-ciam meio iguais. Aí quando eu atravessava a rua, nossa, eu suava.

TRAULITO – Você tinha quantos anos?

JERÁ – Tinha 11. E na minha

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família ninguém falava portu-guês. Eu não comia nada de fora. Minha mãe fazia pão de milho, o mbojape, a farinha. Meu pai pescava, caçava, então tudo era ali dentro. Não tinha televisão, não tinha luz, nada. Eu gostava muito de estudar. Fazer frases, então era uma coisa muito es-pecial para mim. Eu gostava de ficar pensando em tudo que eu tinha feito. E só de pensar na professora, fazia gestos como ela. E de vez em quando eu me encontrava com meus amigos e ficava me comportando como ela, ensinando. E eles olhavam estranho pra mim.

TRAULITO – E quando che-gou a luz?

JERÁ – Eu tinha 14 ou 15 anos. Mas foi de uma forma boa. Não tinha mais cheiro de querosene, que fazia as pessoas passarem mal. Quando chegou a luz, tudo se ilu-minava à noite. Eu podia estudar o alfabeto, as vogais. Então a luz era uma coisa muito boa. Mas com o passar do tempo, alguns de lá leva-ram uma televisão e colocaram na casa de reza. Então todo mundo fi-cava junto. Eu me lembro de coisas bem cruéis, de conflito. Passavam filmes de bangue-bangue e me lembro que os indígenas se apro-ximavam do branco para matá-lo com arco e flecha. Mas muitos ín-dios meio que torciam para o bran-co. E os mais velhos falavam: “olha o índio, olha o índio.” Depois veio tudo o que a gente tem hoje para todos: televisão para todo mundo, rádio, vídeo-game, máquina de la-var roupa, fogão.

TRAULITO – Vocês têm al-guma relação com o MST? Parece existir muita afinidade entre a sua reflexão sobre a terra e a deles.

JERÁ – Quando tem alguma manifestação em Brasília ou algu-ma reivindicação de terra e gente se encontra. Mas até onde eu sei o pessoal do Mato Grosso é que tem mais contato. Sempre ouvi falar da questão da linha pedagógica deles para ensinar as crianças. Eu tinha uma amiga que tinha um trabalho com eles. E quando ela falava, o olho dela brilhava. Ela contava

que as crianças de 8, 9 anos são alta-mente politizadas. Eu queria conhecer um pouco mais. Ver aulas, participar de algumas coisas, mas ainda não tive essa oportunidade.

TRAULITO – Imagino que deve haver muita gente da universidade atrás de você, que domina os idiomas e conhece bem o trânsito entre os “dois mundos”. Como é a sua relação com os pesquisadores?

JERÁ – As aldeias Guarani talvez não sejam tão assediadas quanto as aldeias lá do meio da Amazônia. Mas teve uma época da minha vida que eu não estava fazendo mais nada, só dan-do atenção aos estudantes. Eles que-riam fazer tese sobre a língua, comida, religião guarani. E ocorre que às vezes a gente não vai com a cara da pessoa e então enrola até ela desistir. Porque o importante é que haja uma situação de troca, independente do que faz e do que não faz. Se eu faço uma pesquisa e escrevo um livro e vendo, com cer-

teza isso não deve ficar só para mim. O que eu posso compartilhar com as pessoas da aldeia? Posso dar um curso? Ensinar alguma coisa? Eu acho que in-dependentemente de ser guarani tem que ter isso. Como eu recebo muitas ligações, às vezes vejo quem eu gosto, por telefone mesmo. E aí atendo, pro-curo ter uma conversa. Às vezes eu me engano, mas geralmente eu tenho uma capacidade para sentir as pessoas.

TRAULITO – Alguns desses pes-quisadores devem ficar fascinados com o contato com vocês…

JERÁ – Ficam mais do que deviam ficar, porque se identificam, só saem quando são expulsos. (risos) Por outro lado, tenho um amigo que consegue fazer uma comunicação diretamente com a língua indígena. É o George. Ele é muito bom com línguas. Um ameri-cano que fala japonês, espanhol, portu-guês. Em um ano ele aprendeu guara-ni fluente e ensina muito bem. Ele foi muito aceito na aldeia. Fica três vezes

por semana com a gente. Ele é guaxu, como nós chamamos a homossexuali-dade. Em nenhum momento ele quis esconder isso. E foi acolhido mesmo entre os homens. Ele gosta muito de um mito Guarani: guando Nhanderu criou o mundo, fez os homens primei-ro. E aí um dia disso para os filhos: “vai lá na terra ver como o povo está.” E aí o filho de Nhanderu veio e viu que os homens estavam namorando. E tinha um homem grávido. Aí ele volta para o pai e relata o que está acontecendo. E aí o pai diz: “volta lá e cria um parceiro para esses homens, uma mulher lá na terra.” E aí ele veio e gerou a mulher. E o homem grávido falou assim: “e eu? E agora?” “Não. Você não vai ter o seu filho aqui Nhanderu fez uma morada sagrada para você ficar lá.” E aí ele acei-tou. E até hoje ele está lá, em uma mo-rada sagrada. E aí eu digo brincando para o gringo: “está vendo! Gay tam-bém existe no mundo dos Guaranis desde que o mundo é mundo! Tem um até grávido!”

TRAULITO – Esse teu jeito bem-humorado é característica dos Guara-ni ou de muitos índios?

JERÁ – Os Guarani vivem rindo, fazendo piada de quase tudo o que acontece no seu dia-a-dia. Mesmo em encontros com outras etnias, quando chegam os Guarani é um transtorno. Todo mundo brincando. É um dos princípios. Nhanderu diz que, se você vai viver mais um dia de vida, então tem que viver com alegria. Não pode ficar jururu. Se tem algum problema, tem que resolver sem perder a alegria de viver. A vida é uma coisa muito es-sencial. Nhanderu te trouxe lá de outra esfera aqui, para você viver. Você tem que viver bem, é um dos princípios.

TRAULITO – Como você vê a si-tuação dos Guarani no Brasil, de um modo geral?

JERÁ – Falando de um modo ge-ral, eu não vou mentir: quase perco a esperança. Mas não perco. Apesar de nossas terras estarem muito diminuí-

das, tem novos caminhos vindos dos dois mundos. Por exemplo, entre os de lá, temos amigos mui-to queridos. Gente que vem de família muito culta, rica, mas que chega na aldeia, tira o sapato, vai para o matinho, se identifica com o lugar, como as coisas são. Eles reclamam do seu mundo, dizem que as pessoas não parecem pes-soas. E alguns deles nos ajudam a abrir caminhos, sabe? Para reivin-dicações da comunidade indíge-na. Muitos jovens na cidade têm um coração mais aberto, mais consciente. Isso vai determinando outros caminhos. Desde os meus 11 anos de idade eu conheci várias pessoas, com diferentes formas de ver a vida. A grande maioria teve muita importância para este meu desenvolvimento nos dois mun-dos. Aprendi a lidar com pessoas diferentes e aprendi a lidar com as contradições. O número de pessoas ignorantes é grande, mas o número de pessoas conscientes também é grande. Por outro lado, na aldeia as pessoas também estão estudando a sua cultura. Apren-dem as coisas aqui de fora e vão deixando de ser ingênuas. Tenho muitos amigos que me ajudam a entender esse mundo de vocês que é muito complexo para mim. Para mim é sempre muito impor-tante fazer contato com o outro mundo, com idéias diferentes. É sempre enriquecedor para mim como guarani. Não tem como viver só no meu mundo. E aí, então, vamos lutar juntos pela de-marcação de terras, lutar por uma causa mais justa, não só indígena, mas com outras realidades. Con-tribuir para que mais gente tenha uma realidade melhor.

TRAULITO – Obrigado pela entrevista maravilhosa.

JERÁ – Eu gostei de estar aqui com vocês.

Entrevista realizada por Adriana

Mendonça, Ana Petta, Carlos Escher,

Gabriela Villen, Luiz Gustavo Cruz,

Martin Eikmeier, Maurício Braz,

Ney Piacentini, Renan Rovida,

Roberta Carbone, Rogério Bandeira e

Sérgio de Carvalho. Edição de Sérgio

de Carvalho.

“Passavam filmes de bangue-bangue e muitos índios meio que torciam para o branco”.

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MONAN PIRIRIGUÁ(Primeira versão)

Por Sérgio de Carvalho

Piririguá Obyg tinha 130 anos quando o missionário da Companhia de Jesus o procurou no aldeamento de Itanhaém. A pele enrugada do velho tupiniquim sobrava nas costelas e coxas, mas não no rosto descarnado. Portava adornos descoloridos da virtude guerreira antiga. Foi um homem principal, disso sabiam todos, e não só o prestígio, mas o corpo magro e riscado fascinara o jesuíta.

Piririguá Obyg sentiu que lhe tapavam o sol e mal distinguiu o vulto ou dis-cerniu a voz do jovem interessado no resgate de sua alma. Alma índia arcaica, túnica sobre a qual já não se imprime quase nada.

“Quero batizá-lo!”, disse o missionário, “fazê-lo cristão, para que seu ser não se perca após a derrocada da carne”. “Sua vida é sem querelas, contam-me os que lhe conheceram.” “Há muitas décadas é aliado dos nossos.” “E já se gastou a memória dos seus feitos mais remotos.” “Ensino-te a necessária doutrina – já o tratava por tu – e estarás salvo.”

Ao sentir na mão um aperto forte, Piririguá sorriu como fazia sempre com os brancos amistosos. E soprou da boca trêmula palavra de concordância, interpre-tada pelo jesuíta como um indiscutível “sim”.

Então, todas as manhãs, o moço ia a Piririguá. Descia a colina da igreja levado à tapera pela tarefa de soprar no coração do gentio uma sabedoria nova, que o animasse na outra vida. A começar pelo fundamento: “É só um o Deus poderoso, criador de todas as coisas. Ele ressoa para além do Trovão-Tupã, des-locador das águas e dos raios. Em sua unidade, ele é Pai, Filho e Espírito.”

No primeiro dia da conversão, o jesuíta se admirou muito da prontidão do velho em repetir lições e temas que na língua brasílica pouco cabiam. A expres-são Espírito Santo, entretanto, não houve meio de traduzir. A dupla geração da divindade, Piririguá demonstrava aceitar, mas o terceiro nome da Trindade nunca se formou em sua boca.

A cada dia de trabalho, o jesuíta mais se entusiasmava. Havia claros sinais de uma mística fusão entre o receptáculo pagão e o líquido sagrado. Era como se Deus dilatasse no velho, ouvidos, pu-pilas e o próprio decurso da jornada, para que sua verdade se cumprisse.

Em algumas semanas Piririguá era capaz de recitar os mistérios cruciais da Encarnação e Ressurreição. E os virginais: Concepção, Assunção, As-censão, “termos parecidos para coisas diferentes”, demonstrava o jesuíta com gestos, confiante.

E mais ainda lhe pasmou ver Piriri-guá perguntar, não sem labial dificul-dade, sobre detalhes de certas figuras da cristandade. Pedia que repetissem as particularidades, sempre algo abs-tratas, enunciadas nos milagres. E foi nesse instante de indagação, que o ve-lho Piririguá ficou mesmo maior aos olhos do jovem catequista. “Orgulho-me, mais do que nunca, de ti. Teus netos e filhos, todos cristãos convertidos, jamais hesitaram nas partes. Por isso te digo, Piririguá Obyg, és bem alheio dos outros índios com que tratei nessa imensa costa, pois eles não sabem duvidar, e assim ignoram o verdadeiro aprender.”

Piririguá estava pronto.“Será amanhã”, avisou o jesuíta. Em sua rede, naquela noite, véspera do batismo incomum, Piririguá foi visi-

tado em sonho. Era uma representação de Monan, sujeito mítico supremo, sem fim nem começo, o Velho-Monan, origem de todo o tempo. E ele viu Monan-Antigo entre os homens, de enorme cabeleira cinza, andar entre as tribos que outrora lhe davam honras e abrigo e prantos intensos de alegria. E viu Monan-

Eterno ser desprezado e humilhado. Mais do que a recusa, por que o esqueci-mento? E Monan perambulou sua velhice absoluta até erguer-se e pairar no alto, de onde melhor contemplava a vida desordenada e ingrata, e a proximidade sem contato. E no sonho de Piririguá se avistavam pedaços de armas e mantos, cor-das roídas, balas de canhões dos brancos, flautins de ossos quebrados, uma terra esfarelada depois da batalha. Pairando sobre a paisagem, Monan-Celeste subiu ao seu ponto mais alto, e ao atingir o supremo da ira, despejou Tatá-Fogo sobre todo o mundo. E o mais foi correria e labaredas e dor. Piririguá soube que só um homem seria salvo. Talvez o tenha visto no meio da luz. E acordou.

Na manhã do seu batismo, foi conduzido à capela por seus netos. À frente deles caminhavam alguns noviços. Sustentava-se num bordão. Seus pés amortecidos, com firmeza, venciam as pedras ásperas da colina ao colégio. “Veja o velho”, apontava o jesuíta da janela, “a alma sequiosa de Deus anima os membros encarquilhados.”

Piririguá incensado, foi assentado numa cadeira ao transpor a porta. Arfa-va, fixava o nada. Não disfarçavam o riso os curumins-cristãos. Ele inalava a fumaça do rito, ouvia o passo coral dos jesuítas contritos. E soube responder à pergunta acordada: “O que queres, Piririguá?”

“Ser batizado”, recitou rápido o velho. Então, sem que lhe fosse perguntado, acrescentou de modo pouco compreensível: “Pela noite toda vi a ira dele. E vi

como vai viver a outra geração.”O jesuíta responsável, concentra-

do na prática, sem dar pelas palavras murmuradas, fez-lhe os exorcismos devidos. Após o tremor do magro ros-to antigo ao contato da água abençoa-da, felicitou o seu velho-menino.

Piririguá compreendeu o sentido do momento. Pôs-se de pé e começou a chorar, a esfregar os olhos e mais chorar. Diziam-lhe os muitos presen-tes: “Alegra-te, és de novo nascido.” E fizeram com que se sentasse, para que se acalmasse. E como um símbolo se comportasse.

Imóvel, por trás da vista embaçada, Piririguá enxergou seus pais e avós, conchas e barcos, e intuiu a presença

do Fogo-Incêndio-Tatá. Então, no controle pleno de seu esforço, ergueu-se e falou limpidamente: “Ele

venceu a morte e subiu ao céu. Muito irado, há que ter muita ira. Para queimar o mundo todo e destruir todas as coisas.”

Do fundo da igreja respondeu num grito de êxtase o jesuíta: “Deus verda-deiro é Jesus. E você está nele, Piririguá. E havemos de ressuscitar todos.” E comandou, orgulhoso, um cântico final para a cerimônia.

Piririguá Obyg, conhecido por sua vida sem querelas, tupiniquim de feitos guerreiros, em toda a existência amigo dos portugueses, adormeceu naquela noite com nome cristão. Na hora de sua morte, meses depois, a voz-vontade de Monan, o Velho, ainda soava em seu ouvido: “a grande ira.”

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A MEMÓRIA DA CRÍTICA

Entrevista com Mariângela Alves de Lima

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TRAULITO – Como o teatro apa-

receu na sua vida?

MARIÂNGELA ALVES DE LIMA

– Sou da primeira turma da Escola de

Comunicações e Artes, e o teatro era uma coisa muito fantástica em 1967. Era a ati-vidade cultural mais interessante, tinha uma dimensão política muito intensa que agregava os estudantes universitários. En-tão, a qualidade do teatro me fez passar do curso de Jornalismo, que era a minha intenção primeira, para o de Artes Cêni-cas, onde me formei em Crítica. Antes de terminar a ECA, trabalhei em jornal. E vi que era o que eu gostava de fazer.

TRAULITO – O seu interesse, en-tão, não foi inicialmente o da ativida-de prática, mas o da teoria?

MARIÂNGELA – Eu sei que há mil vertentes críticas, algumas ligadas à participação, feitura etc. Mas fun-damentalmente eu sou aquela crítica espectadora, que senta numa cadeira e espera que os outros façam alguma coisa. Eu digo que a crítica é uma ati-vidade preguiçosa, prazerosa. Daquela primeira turma, só eu e a Maria Lúcia Candeias nos formamos. Eu escrevo há 38 anos, quase quatro décadas de crítica teatral.

TRAULITO – No momento de sua entrada na crítica, começava uma cena contracultural, como oposição ao teatro mais crítico e politizado. Você acompanhou isso?

MARIÂNGELA – É, tem muitas coisas simultâneas nessa época. Todas surgiam com força porque eram bem representadas por grandes artistas, por grupos muito bons. Isso que você diz da contracultura, por exemplo, entrava em São Paulo, mas estava também no Teatro Ipanema1, no Rio de Janeiro. Estava ainda nas experiências do Amir Haddad. Era um espírito que se disse-minou pelo mundo inteiro. Por outro lado, o Teatro de Arena de São Paulo já estava acabando como grupo político. Tinha ainda uma atividade teórica mui-to grande, impregnando toda a crítica. E a dramaturgia que o Arena ajudou a impulsionar, praticamente neo-realista (nunca chegou a ser realista, mas ela começa com esse impulso), dava frutos no trabalho de autores como Lauro Cé-sar Muniz e Plínio Marcos. Em todas as frentes surgiam coisas muito interes-santes. O que começou a declinar foi o repertório internacional de qualidade que o TBC fazia: clássicos da drama-turgia internacional com encenações de grandes diretores. Isso eu já não vi. Há um último representante desse tipo de teatro – uma cena que procura or-ganizar tecnicamente a emoção, que é o Ademar Guerra. Já o Antunes Filho, que vem da mesma tendência, parte para uma forma de encenação mais pessoal a partir do Peer Gynt2.

TRAULITO – Os jornais debatiam essas correntes na época?

1 Companhia teatral formada no fim dos anos 1960 pelos artistas Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque, responsável por importantes es-petáculos nas décadas de 1970 e 1980. 2 Peça do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, escrita em 1867 e encenada pela primeira vez no Teatro de Cristiânia, em Oslo, no ano de 1876.

MARIÂNGELA – Havia muito público e muitos jornais cobrindo. Hoje em dia você fala em dois grandes jornais. Antigamente existia uma boa imprensa alternativa que era até eco-nomicamente estruturada, com uma força que acabou se perdendo. Tinha o Bondinho, logo depois o Pasquim, jornais como A Última Hora, além dos verpertinos e matutinos, vários cader-nos especiais. E havia muitos críticos trabalhando.

TRAULITO – Você acompanhou a produção crítica de gente como o Al-berto D’Aversa e João Apolinário, entre tantos que escreviam além de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi?

MARIÂNGELA – O D’Aversa es-tava parando quando eu cheguei a São Paulo, então eu não acompanhei. O Apolinário, de origem portuguesa, é um crítico que desapareceu da memó-ria do teatro paulista porque o jornal A Última Hora desapareceu. Mas as coisas dele eram muito interessantes. Eu adorava. Era polêmico, assumia a posição de um crítico de uma esquer-da de plantão. Tudo era rigorosamente avaliado de acordo com um critério ideológico antes de tudo. Era muito interessante.

TRAULITO – Por que você fala “esquerda de plantão”? Ele cobrava postura ideológica?

MARIÂNGELA – Exatamente. Cobrava dos espetáculos e analisava de acordo com esse critério, quase que exclusivamente. Era bem interessante, uma postura firme.

TRAULITO – O Décio ainda esta-va escrevendo, em 1967?

MARIÂNGELA – Quando eu comecei o Décio já tinha parado. Na Folha tinha o Paulo Mendonça, que eu lia quando morava no interior. Era um crítico bem instrutivo, com quem aprendi muito sobre Tragédia Grega. É isso que a crítica tem que fazer: lembrar que todo dia nasce um leitor. Ou me-lhor, que aquele leitor nasceu hoje e não sabe o que aconteceu semana passada. Isso tudo tornava o teatro interessante, debatido, muito esmiuçado. Tinha a Revista Argumento que era muito boa. A Revista Civilização Brasileira com uma cobertura ampla da cultura e os melhores articulistas das universidades. O Suplemento Literário de Minas Gerais

também tratava de teatro brasilei-ro. O Décio chamava a isso, desde sua atuação no Suplemento Literá-rio do Estadão, dar uma resposta interessada no momento

TRAULITO – Como a pri-meira crítica em São Paulo a ter formação em teatro, você inau-gura uma crítica pós-acadêmica, digamos assim. Você acha que isso marca o tipo de crítica que você passou a escrever? Consegue avaliar hoje, a forma de sua crítica no início?

MARIÂNGELA – Na verda-de eu imitei e segui meus prede-cessores. O Décio era professor de História do Teatro Brasileiro na Escola de Arte Dramática. Sábato era professor de Crítica e, por isso, interferiu diretamente e muito na minha formação. Suas aulas de texto eram pensadas para o jornalismo. Fiquei muito tempo com a mesma estrutura e o mes-mo tipo de pensamento dele.

TRAULITO – E qual era essa estrutura?

MARIÂNGELA – A ques-tão histórica era predominante. Como fator de observação, Sába-to tinha chegado a uma espécie de fenomenologia do espetáculo. Nós víamos o espetáculo, sentá-vamos todos juntos, debatíamos. E ele conduzia o debate para a ilu-minação, a atuação, a adequação entre a personagem e a atuação, a cenografia. Ele analisava assim, dissecando as partes. A crítica do João Apolinário era muito dife-rente. Ele conferia a adequação da obra à necessidade histórica. O Sábato treinou a gente para ob-servar os dados de realização, de estrutura: como a coisa se mani-festava. E você via a obra um pou-co isoladamente. Como crítico de jornal, você não estabelecia uma continuidade entre as coisas, não refletia muito. Você via um a um, cada elemento. Acho que faço isso até hoje. Quando eu quero pensar um pouco, eu saio do jornal, vou fazer um ensaio, outra coisa. O Sábato havia tido uma experiên-cia mais sociológica, com o tex-to prevalecendo. Mas em 1967, 1968, ele fala: “bom, agora, va-

Luiz

Gust

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mos ter que ver o espetáculo.” O Idart, que foi feito sob orientação do Sábato, também teve esse viés. É uma coisa da época.

TRAULITO – Vendo a sua crítica em uma fase posterior, eu tenho a impressão de que você faz uma espécie de diminuição da sub-jetividade aparente do texto. O que eu quero dizer é o seguinte, pare-ce que a geração do Sábato ainda tinha algo do crítico cronista: a marca pessoal do observador estava presente no texto. E me parece que o seu texto procura uma objetivida-de do espetáculo e da obra sem a necessidade de se expor, como ob-servador, como figura. Você acha que isso acontece de fato?

MARIÂNGELA – Você tem razão. Naturalmente há uma es-pécie de pudor, que é uma coisa pessoal. Se você gosta de ficar na obscuridade da platéia tem uma coisa de não querer usar a primei-ra pessoa. Mas, na verdade, essa subjetividade já faz parte, ela é iniludível. As relações todas que você estabelece, com uma obra, com um espetáculo, com qual-quer coisa, já estão permeadas por essa experiência: o seu lugar na história, o seu lugar no tempo, o seu lugar na sociedade, o seu lugar geográfico, a sua situação pessoal. Essas relações entre você e a obra fazem o texto. Não pre-cisa mais. De qualquer maneira essa crônica que você fala eu não faria. Eu não tenho esse interesse substancial e pessoal pelas coisas.

TRAULITO – Uma crítica como a Bárbara Heliodora, que produz do início nos anos 1960 e continua ativa hoje, é muito marcadamente personalista. Ela é uma personagem de cada texto dela. Por que esse modelo sobre-vive sendo tão antigo? Tem um lado de mercadoria nisso?

MARIÂNGELA – Ele faz muito sucesso na cultura de mas-sa, na cultura mercadológica. É um estilo que está na crônica so-cial, nas crônicas que os jornais têm: essa coisa do “eu”, “eu sou mais eu”. Você vende a personali-dade, a máscara. Isso é uma coisa de produto. Eu não acho que ela

é antiga: acho que ela é moderníssima, contemporânea.

TRAULITO – A crítica na sua forma-mercadoria, no estilo do Sar-cey, comentador do teatro francês do século XIX, continua atual.

MARIÂNGELA – Tem uma coisa meio escandalosa nisso. A Bárbara faz rir, ela é muito engraçada pessoalmen-

te. Lendo eu não acho muita graça porque resvala para uma coisa cruel. Os leitores riem com ela, até perdem de vista o objeto. Não sei se levam muito a sério o que ela fala. Mas ela, em si, é uma cronista.

TRAULITO – Você acha que essa marca objetivista e fenomenológica sua, ligada ao espetáculo, tem a ver com uma influência do Anatol Rosen-feld, que já no começo dos anos 1960 encampou esse debate teórico?

MARIÂNGELA – A história do Anatol é muito peculiar, mas acho ele definitivo para o que você está falando. Ele trabalhou com as pessoas que esta-vam se formando para olhar o teatro com olhos novos. Ele dava aulas, na casa do Jacó, para um grupo que o Sábato freqüentou. Ele formou muita gente. O doutor Alfredo tinha arrastado algumas pessoas pelo colarinho, porque eram amigos, para dar aulas em sua escola de teatro, a EAD. Mas vários deles, como o Jacó, quando começaram não tinham idéia do que fosse teatro. Décio estava, também por acaso, enveredando para o meio. Quem deu uma base, um método de estudo e que estimulou foi o Anatol. Então, eu acho que com o Anatol tudo mudou muito. E ia mudar de qualquer jeito. Mas ele deu um instrumental e su-geriu um caminho.

TRAULITO – Você chegou a con-viver com ele?

MARIÂNGELA – Ele deu aulas pra nós durante dois anos como profes-sor convidado. Eram aulas fantásticas. As do Jacó e do Sábato também eram muito boas. Era uma escola muito boa. Tinha uma professora de História do Teatro, formada pela EAD, uma se-nhora que tinha saído da Letras, a Elza Cunha de Vicenzo. Ela era ótima.

TRAULITO – A Elza era realmen-te uma professora fora do comum, pessoa maravilhosa.

MARIÂNGELA – Bem assim, com o caderninho na mão, pondo tudo em ordem.

TRAULITO – Você acha que a tendência de valorizar a cena contra o chamado “textocentrismo” não acabou

gerando o contrário: um “cenocentris-mo” que subestima a importância da reflexão dramatúrgica?

MARIÂNGELA – Essa perda de importância do texto é uma coisa que todo o teatro brasileiro fez, não só os críticos. O teatro estava nesse rumo. Era extraordinariamente criativo o espetáculo e não havia uma drama-turgia, naquela ocasião, igualmente inventiva. De fato, o texto ficou um pouco negligenciado.

TRAULITO – Por que você acha que a dramaturgia não acompanhou esse movimento? Era um limite do modelo dramático fechado em que muitos dramaturgos insistem?

MARIÂNGELA – Pode ser. Acon-teceu aqui e ali. Mas muitos drama-turgos procuraram coisas novas. Eu acho que o Hamilton Vaz Pereira é um deles. Começou com uma coisa coletiva, uma coisa de grupo, e acabou produzindo textos que pensam na sua feitura, alguns fortíssimos. Há outros exemplos. Muita gente via que não pre-cisa haver mais aquela salinha de estar, aquele drama de classe média, aquela briga entre pai e filho, entre marido e mulher. Pode ser outra coisa.

TRAULITO – Você acha que o fato de alguns desses dramaturgos terem ido trabalhar na televisão tam-bém tem a ver com a sobrevivência do modelo convencional e com o afasta-mento da cena mais experimental?

MARIÂNGELA – Não, eles foram trabalhar na TV porque no mercado de teatro não dava mais para sobrevi-ver. Uma pessoa como Maria Adelaide Amaral continua produzindo o tipo de dramaturgia que ela gosta e sempre fez. O fato de ela ter ido para a televi-são não quer dizer nada.

TRAULITO – E chegou a haver o contrário, melhorar os modelos da televisão?

MARIÂNGELA – A televisão ga-nhou muito durante um certo tempo. Vocês se lembram de uns programas juvenis, que eram feitos pelo Hamilton Vaz Pereira? Tinha o Armação Ilimita-da do Guel Arraes e do Daneil Filho. Narrativas interessantes surgiram.

TRAULITO – Como você avalia uma certa acusação que o Asdrúbal Trouxe o Trombone3 sofreu na época, a de difundir um espírito pop e alien-ado de classe consumista? Você achava esse tipo de crítica reacionária?

MARIÂNGELA – É difícil dizer, porque tudo tem uma coisa de gosto e preferência. Mas eu adorei essas coisas que vieram dos anos 1970 e duraram nos anos 1980. Faziam uma criação coletiva mais solta. Havia também, naqueles co-mentários, a idéia de que para se fazer um teatro interessado politicamente, você precisa ser sempre realista.

TRAULITO – Mas é um fato que a criação coletiva nos outros países da América Latina, entre o fim dos anos 1960 e 1980 foi, de modo geral, muito politizada. Aqui, ela entrou, nos casos mais famosos, associada mais a um es-pírito antiburguês.

MARIÂNGELA – Nós tivemos aqui também uma ala mística e com-portamental, aliás, muito interessante, que saía da PUC de São Paulo, com o pessoal dos Lobos, do Marinho Pia-centini. Eles tinham uma ênfase muito grande no trabalho corporal. Foram os primeiros que eu me lembro a fazerem a chamada expressão corporal. Ou seja, atores mudos, falando com o corpo.

TRAULITO – A precária histo-riografia do teatro nacional costuma eleger marcos simbólicos. Um deles é o Macunaíma do Antunes Filho. A mon-tagem anuncia a encenação autoral plástica que estava surgindo, no mod-elo Bob Wilson, mas extraía o principal de suas forças inventivas do trabalho de criação coletiva e do repertório do nacional-popular modernista, que en-trava em cena numa espécie de canto

3 Grupo carioca formado em 1974, liderado por Hamilton Vaz Pereira, que revelou di-versos comediantes brasileiros como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães e Evandro Mesquita, entre outros.

“É isso que a crítica tem que fazer: lembrar que todo dia nasce um leitor.”

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de cisne: o último momento em que o Brasil estava em pauta no teatro. Por que os temas ligados ao país saíram de pauta a partir dos anos 1980?

MARIÂNGELA – Eu acho que o que aconteceu em 1978, ano do Ma-cunaíma, foi uma atualização de uma espécie de desejo reprimido de um mod-ernismo no teatro. Isso de um ponto de vista pessoal, o do Antunes. Ele quis isso, ele fez isso. Ele pegou o Mário de Andrade, não pegou só o Macunaíma. Ele pegou as idéias todas do Mário de Andrade. Porque ele achou que todo o programa modernista ainda não tinha se cumprido no teatro. Ele fez isso in-tencionalmente, juntou todas as coisas. Agora, na verdade, muitos dos temas do modernismo são temas que contin-uam até hoje. Tira a palavra Brasil para você ver o que ele discute. Ele discute o multiculturalismo, esta coisa chamada hibridismo que também é uma moda universitária. Ele discute todos os te-mas que confluem na formação de uma cultura. Antropologia da cultura está aí. Todos são temas discutidos o tempo inteiro. Até o Gerald Thomas faz isso quando traz coisas lá de Nova York e usa uma terminologia de antropofagia, são os mesmos temas. É só tirar a coisa na-cional. Por que o grande tema do mod-ernismo era isso: como é que você liga o particular com o universal. Então eu acho que foi o nacionalismo que saiu. E não vejo por que deveria continuar.

TRAULITO – Há um tempo o Gerald Thomas escreveu um texto no jornal um pouco magoado com uma perda de reconhecimento crítico. Ele acha que novos diretores da moda estão, supostamente, diluindo seus métodos. É comum essa cobrança aos críticos?

MARIÂNGELA – Todo mundo se queixa. Um ator maravilhoso, pelo qual uma geração suspira, escreve car-tas de amor e se suicida, é esquecido em cinco anos. Todos vocês sofrerão com isso. As pessoas de teatro são mais facil-mente esquecidas que um objeto, que dura mais tempo. Com ele aconteceu a mesma coisa. Chora-se uma semana pelo Paulo Autran. Logo se dirá: quem era Paulo Autran? Só vão se lembrar as pessoas que o viram, que tiveram aque-la experiência. E de qualquer modo, a importância do Gerald Thomas é relativa. Para a história da encenação é pequena, porque ele lida com coisas que a gente já conhece muito. Eu, que

sou muito velhinha, vi o Victor Garcia. Aquilo era uma novidade grande para a minha geração. Depois daqueles festi-vais internacionais em que vimos Bob Wilson e outros, o Gerard Thomas não era uma grande novidade. Mas acho que ninguém é. Há sempre todo um arranjo diferente de elementos. Eu não sei como vai ser o teatro daqui para frente, mas o século XX foi extrema-mente iconoclasta.

TRAULITO – Na medida em que o teatro é efêmero, a crítica acaba sendo muito usada em pesquisas históricas, como documento de época. Ela não deveria assumir de vez essa responsabil-idade? Não recai sobre você esse peso de ser também uma historiadora?

MARIÂNGELA – Cobram muito isso. Por exemplo, no Idart fazíamos obras de referência, catálogos de fontes de informação. Sempre aparecia um artista chorando porque não aparecia no catálogo, como se tivesse sido ex-cluído da história. Mas na verdade, ele não vai ficar na história. Porque a coisa que ele faz se dilui, porque o te-atro é uma experiência física, ligada ao

presente. E história depende muito de quem narra. É um índice da experiên-cia humana. Não é a experiência hu-mana. É simbólica.

TRAULITO – Você agora há pouco assumiu, como dado de formação, ser uma crítica voltada para a análise esté-tica de cada obra. Daria para dizer que essa suspensão do comentário histórico conduz a uma crítica menos militante do que, por exemplo, a do Décio, um de seus modelos? Ele fez uma crítica programáti-ca pela modernização no etilo TBC. De modo certo ou errado, ele tomou partido. É verdadeiro dizer que você é uma crítica que não encampou um projeto?

MARIÂNGELA - Verdadeiro. Eu também vejo isso nos meus compa-nheiros de geração, no Yan Michalski, no Alberto Guzik, todos críticos que trabalharam ao mesmo tempo em que eu já não tinham essa necessidade. Em primeiro lugar porque o teatro brasilei-ro tinha atingido um patamar desejado

pela geração do Décio. Eles queriam o que? Um teatro tão bom quanto o me-lhor de Nova Iorque ou Paris. Já era tão bom quanto. Chega desse complexo de provincianismo. Então, do patamar de onde nós partimos você não precisava ser programático. E graças ao trabalho deles. O Décio fez a mesma coisa no teatro que fizeram os intelectuais do sé-culo XIX com a Literatura Brasileira. Aquela coisa de trabalhar com mode-los, de divulgar, de corrigir, de estimu-lar, de pegar um autor novo e colocar lá em cima. Ele fez isso no teatro. E o Sá-bato também, pelo menos no começo. Uma coisa de qualificação e de progra-ma. Não tínhamos mais essa pretensão, e nem olhavamos mais de cima. Nós estávamos sendo formados, agora, por aquele teatro brasileiro que nos chega-va. Não tínhamos que ir à Europa para conhecer avanços. Em tese, por que de-pois chegou o AI-5 e acabou com isso. Daí você precisava sim ir para algum lugar, até para poder ver um filme.

TRAULITO – Mas isso não põe o crítico a reboque da produção que está ali, do imediato do ambiente?

MARIÂNGELA – Exatamente. Faz com que você vá à deriva. Eu conto uma coisa que aconteceu. Não estou dizendo se é bom ou não. Eu sou inteiramente formada pelo que vejo. Não tenho mui-to desejo também. Eu não estou acima de nada. Estou satisfeita, seguindo.

TRAULITO – Nesses anos de tra-balho, mudou muito o estilo de jorna-lismo cultural?

MARIÂNGELA – Muito. Diminuiu o espaço do debate. A saída do Décio da crítica e dos suplementos, em 1968, já foi uma cisão entre a universidade e o jornal. Enfim, entre os intelectuais que pensam o mundo de uma maneira mais geral, profunda, e o jornalismo. Acho que começou lá. E acho que começou no mundo inteiro, não foi só aqui não. Os jornais franceses também se queixam disso. Ao mesmo tempo começou uma coisa que não existia antes. Uma produ-ção universitária com revistas, ensaios, teses. No jornalismo, ficou um vazio. O

jornal diário perdeu importância e ambição. Aquele jornalismo parti-cipante, ambicioso intelectualmen-te, não tem mais. Hoje predomina a divulgação e o entretenimento. E isso nos afeta muito. No espaço e na pauta. Eu não posso dizer que tenha uma pauta que me impeça de criticar alguma coisa, mas ela me conduz a comentar coisas que eu não teria privilegiado. A orientação da empresa é essa agora. É uma coi-sa de entretenimento. Por isso, tal-vez, que muitos grupos produzam seus próprios debates hoje. Eles internalizaram a atividade crítica. Muitas vezes com publicações pa-ralelas. Porque não tem outro meio de reflexão e divulgação favorável.

TRAULITO – Que critérios

marcam um teatro muito ruim?MARIÂNGELA – Como eu

disse, não tenho uma expectativa sobre o que o teatro deveria ser. Mas eu tenho em relação a al-guns grupos que eu já conheço. E tem essa outra coisa do crítico ser novidadeiro. Eu gosto de ir a um lugar aonde nunca fui. Ver um grupo que nunca vi, gente de quem nunca ouvi falar.

TRAULITO – Você consegue assistir e não estar escrevendo a crítica enquanto assiste?

MARIÂNGELA – Tem gente que escreve, toma nota durante o espetáculo. Eu não posso imaginar alguém escrevendo mentalmente. Não quero nem saber que eu vou escrever uma crítica. Eu não ouço nem barulho de platéia. Também não gosto de conversar quando saio. Acho que gasta. A não ser que seja um espetáculo muito idiota, desses que você anda um metro e meio e esquece, você vai saindo e anda muito com ele. É uma experiência que dura, ela entra na memória e vai se misturando com outras. É uma coisa pessoal e delicada. Não é para ir gastando assim o teatro. E quando eu vou escrever, é o que sobrou dessa memória.

Entrevista realizada por Felipe Moraes, Gabriela Villen, Luiz

Gustavo Cruz e Sérgio de

Carvalho. Edição de Roberta Carbone e Sérgio de Carvalho.

“Aquele jornalismo participante, ambicioso

intelectualmente, não tem mais.”

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BRECHT: POEMAS DO EXÍLIOApresentação e tradução de Tercio Redondo

Em 1933, logo após a ascensão de Hitler ao poder, Brecht deixou a Alemanha para onde voltaria apenas quinze anos depois. No país natal seus livros foram retirados das bibliotecas e queimados em praça pública; no es-trangeiro inexistiam as condições mí-nimas para a encenação de suas peças

de teatro, destinadas em princípio ao público alemão. Nesse contexto de confisco das possibilidades da expres-são dramática, a lírica se tornou um meio privilegiado para dizer aquilo que, naquelas circunstâncias, ainda podia ser dito. Os oito poemas aqui traduzidos foram escritos durante esse período, passado em sua maior parte na Dinamarca (1933-1939) e nos Esta-

dos Unidos (1941-1947).

Na fase inicial do exílio dinamar-

quês surgiram diversos poemas de-

nunciando a tirania e os preparativos

para o assalto às nações vizinhas.

Nessa época o “milagre econômico”

alemão, ancorado no esforço de pre-

paração para a guerra, era alardeado

pela máquina de propaganda nazis-

ta na forma de um inusitado acesso

ao consumo de bens duráveis, do

automóvel inclusive. A Alemanha nazista, que havia engendrado seu próprio fordismo, produzia então o Volkswagen, o carro do povo. Brecht logo apontou o engodo embutido no brinde anunciado: “popular” na verdade era o blindado que levaria o trabalhador alemão à frente de bata-lha, como advertia o poema “Homem com o casaco puído”. A matança que se avizinhava era tematizada também

nas estrofes da “Canção dos bandos de estorninhos”.

No plano das con-dições de uso da língua as agruras do escritor banido não se resumiam à censura e à impos-sibilidade de aceder diretamente a seu

público leitor e espectador. As difi-culdades de elaborar uma linguagem lírica ou épico-dramática autêntica tinham ainda uma outra face, que Paul Celan sintetizaria anos depois ao expor cruamente sua situação de escritor germanófono: “Minha língua materna é a língua dos assassinos de minha mãe”. A afirmação de Celan não apenas aludia ao assassínio de sua família nos campos de extermí-nio nazistas, ela sugeria a ideia de um logocídio.

O nazismo se apropriara da língua e a instrumentalizara esvaziando-a a ponto de torná-la virtualmente es-téril. Era preciso ter muito cuidado para escrever as coisas com clareza. Brecht não aceitava, por exemplo, ser chamado de emigrante, denomi-nação usual para os exilados alemães que se espalhavam por toda a Euro-pa. A precisão vocabular constituía ingrediente importante na luta pelo desmascaramento das mentiras do fascismo; tornava-se parceira da lu-cidez política. Em “Acerca do termo emigrantes” Brecht diz o que signi-ficava de fato viver em terra estranha fugindo aos algozes de Hitler.

Não obstante a urgência da hora, a vida do trabalhador não deixou de ser abordada na poesia de Brecht. O autor dos Poemas de Svendborg sabia que, vencido o inimigo mais imediato, começaria novamente a dura luta pela emancipação do proletariado. O poe-ma “Discurso do camponês a seu boi” trata da patética luta de um lavrador exaurido na tarefa de manter o animal que deveria sustentá-lo. No limite, en-contram-se ambos, homem e animal, num mesmo patamar de indignidade e impedimento à satisfação das neces-sidades mais elementares da existência. Igualmente paradoxal é a situação que se apresenta em “Fala de um trabalha-dor a um médico”: a doença que conso-me o paciente é diagnosticada por ele mesmo. O clínico não pode diagnosti-car e tratar com eficácia aquilo que, an-tes de se revelar à lente do microscópio, está patente no mísero salário pago aos empregados de uma fábrica ou de uma mina de carvão.

Em 1941 Brecht conseguiu um vis-to de entrada nos Estados Unidos e foi para Los Angeles, onde pretendia escrever para o cinema. A decepção com Hollywood não tardou, e depois da guerra ele ainda teve de enfrentar as vozes da direita americana, que o con-sideravam um enemy alien, um “alia-do” indigno de confiança. As “Elegias de Hollywood”, aqui apresentadas, constituem um momento alto da lí-rica brechtiana; expõem em elevadís-simo grau de concentração o funcio-namento da “máquina de sonhos” que o poeta deparou nos estúdios cinema-tográficos e nas mansões de Beverly Hills. As elegias apresentam o quadro da iniquidade social reinante, o sexo mercantilizado e fetichizado, a boça-lidade dos “escrevinhadores” de rotei-ros, gente bem paga pela indústria do cinema para produzir obscenidades culturais que Brecht e outros “emigra-dos” repudiaram.

“O retorno”, o último desta pe-quena seleção de poemas do exílio, mostra o quão traumática foi para Brecht a experiência dessa década e meia de vida forasteira. A própria perspectiva do reencontro com a Ale-manha prestes a se render, evento que deveria suscitar a mais intensa felici-dade, transforma-se aqui em imagem funesta. O nazismo, afinal, não seria derrotado sem antes garantir a com-pleta destruição do país.

Ilustrações de Fernando Vilela para O Círculo

de Giz Caucasiano da Companhia do Latão.

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ANSPRACHE DES BAUERN AN

SEINEN OCHSEN

(Nach einem ägyptischen Bauernlied,

1400 v. d. Zt.)

O großer Ochse, göttlicher Pflugzieher

Geruhe, gerade zu pflügen! Bring die

Furchen

Freundlichst nicht durcheinander! Du

Gehst voraus, Führender, hüh!

Wir haben gebückt gestanden, dein

Futter zu schneiden

Geruhe jetzt, es zu verspeisen, teurer

Ernährer! Sorg dich nicht

Beim Fressen um die Furche, friß!

Für deinen Stall, du Beschützer der

Familie

Haben wir ächzend die Balken

hergeschleppt. Wir

Liegen im Nassen, du im Trockenen.

Gestern

Hast du gehustet, geliebter

Schrittmacher.

Wir waren außer uns. Willst du etwa

Vor der Aussaat verrecken, du Hund?

DISCURSO DO CAMPONÊS A SEU BOI(Segundo uma canção de camponeses do Egito, 1400 AC)

Ó, grande boi, divino puxador da charrua,Tenha a bondade de arar em linha reta! Seja bonzinhoE não confunda os sulcos! Você vai à frente, condutor, oa! Nós nos curvamos para lhe cortar o feno;Tenha a bondade de comê-lo, dispendioso provedor de nosso pão! Enquanto come, não se preocupe com os sulcos, apenas coma!Arrastamos pesadas vigas para edificar seu estábulo, Grande protetor da família! Deitamo-nosNo molhado, você no seco. OntemVocê tossiu, amado pioneiro.Quase enlouquecemos. Vai entãoMorrer à frente da sementeira, cachorro?

DIE DAS FLEISCH WEGNEHMEN

VOM TISCH

Lehren Zufriedenheit.

Die, für die die Gabe bestimmt ist

Verlangen Opfermut.

Die Sattgefressenen sprechen zu den

Hungernden

Von den großen Zeiten, die kommen

werden.

Die das Reich in den Abgrund führen

Nennen das Regieren zu schwer

Für den einfachen Mann

MANN MIT DER

ZERSCHLISSENEN JACKE:

In den Textilfabriken

Weben sie für dich einen Tuchrock

Den nicht du zerreißen wirst.

Der du zur Arbeit läufst stundenlang

In zerfetzten Schuhen: der Wagen

Der für dich gebaut wird, hat

Eine Eisenwand nötig.

Um einen Topf Milch für deine Kinder

Gießt du eine große Flasche, Gießer

Die nicht für Milch bestimmt ist. Wer

Wird aus ihr trinken?

LIED DER STARENSCHWÄRME

1

Wir sind aufgebrochen im Monat

Oktober

In der Provinz Suiyuan

Wir sind rasch geflogen in südlicher

Richtung, ohne abzuweichen

Durch vier Provinzen fünf Tage lang.

Fliegt rascher, die Ebenen warten

Die Kälte nimmt zu und

Dort ist Wärme.

2

Wir sind aufgebrochen und waren

achttausend

Aus der Provinz Suiyuan

Wir sind mehr geworden täglich um

Tausende, je weiter wir kamen

Durch vier Provinzen fünf Tage lang.

Fliegt rascher, die Ebenen warten

Die Kälte nimmt zu und

Dort ist Wärme

3

Wir überfliegen jetzt die Ebene

In der Provinz Hunan

Wir sehen unter uns große Netze und

wissen

Wohin wir geflogen sind fünf Tage lang:

Die Ebenen haben gewartet

Die Wärme nimmt zu und

DerTod ist uns sicher.

AQUELES QUE TIRAM A CARNE DA MESADão lições de contentamento.Aqueles que recebem as dádivas Cobram espírito de sacrifício.Aqueles que se empanturram falam aos famintosSobre os grandes dias vindouros.Aqueles que conduzem o Reich ao abismoDizem que governar é sumamente difícilPara o homem comum.

HOMEM COM O CASACO PUÍDO:Nas confecçõesPreparam-lhe um jaquetão de pano,E não será você que o rasgará.

Saiba você, que caminha horas até o trabalho, Metido em surrados sapatos: o carro Que se monta para seu uso temUma blindagem de ferro.

Para dar uma tigela de leite a seus filhosVocê, fundidor, funde uma grande garrafa.Uma que não é feita para o leite. QuemVai beber dessa garrafa?

CANÇÃO DOS BANDOS DE ESTORNINHOS

1Partimos no mês de outubro,Vindos da província de Suiyuan.Durante cinco dias, sem qualquer desvioE atravessando quatro províncias, voamos céleres para o sul.Voem rápido, as planícies estão à espera,O frio aumenta eLá faz calor.

2Partimos num grupo de oito mil,Vindos da província de Suiyuan.Nosso número cresceu diariamente aos milhares à medida que avançamosDurante cinco dias, atravessando quatro províncias.Voem rápido, as planícies estão à espera,O frio aumenta eLá faz calor.

3Sobrevoamos agora a planícieDa província de Hunan.Abaixo de nós observamos redes enormes e vemosPara onde voamos durante cinco dias:As planícies esperaram,O calor aumenta eA morte é certa.

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REDE EINES ARBEITERS AN

EINEN ARZT

Wir wissen, was uns krank macht!

Wenn wir krank sind, hören wirDaß du es bist, der uns heilen wird.

Zehn Jahre lang, heißt esHast du in schönen Schulen

Die auf Kosten des Volkes errichtet wurden

Gelernt, zu heilen, und für deine Wissenschaft

Ein Vermögen ausgegeben.Du mußt also heilen können.

Kannst du heilen?

Wenn wir zu dir kommenWerden uns unsere Lumpen abgerissen

Und du horchst herum an unsern nackten Körper.

Über die Ursache unserer KrankheitWürde dir ein Blick auf unsere Lumpen

Mehr sagen. Dieselbe Ursache zerschleißtUnsere Körper und unsere Kleider.

Das Reißen in unserer SchulterKommt, sagst du, von der Feuchtigkeit,

von derAuch der Fleck in unserer Wohnung

kommt.Sage uns also:

Woher kommt die Feuchtigkeit?

Zu viel Arbeit und zu wenig EssenMacht uns schwach und mager.

Dein Rezept lautet:Ihr müßt zunehmen.

Du kannst auch dem Schilf sagenEs soll nicht naß werden.

Wieviel Zeit wirst du haben für uns?Wir sehen: ein Teppich in deiner

WohnungKostet so viel, wie dir

Fünftausend Untersuchungen einbringen.

Du sagst wahrscheinlich, daß duUnschuldig bist. Der feuchte Fleck

An der Wand unserer Wohnung Sagt nichts anderes.

ÜBER DIE BEZEICHNUNG

EMIGRANTEN

Immer fand ich den Namen falsch, den man uns gab: Emigranten.

Das heißt doch Auswanderer. Aber wirWanderten doch nicht aus, nach freiem

EntschlußWählend ein anderes Land. Wanderten

wir doch auch nichtEin in ein Land, dort zu bleiben,

womöglich für immer.Sondern wir flohen. Vertriebene sind

wir, Verbannte.Und kein Heim, ein Exil soll das Land

sein, das uns aufnahm.Unruhig sitzen wir so, möglichst nahe

den GrenzenWartend des Tages der Rückkehr, jede

kleinste VeränderungJenseits der Grenze beobachtend, jeden

AnkömmlingEifrig befragend, nichts vergessend und

nichts aufgebendUnd auch verzeihend nichts, was

geschah, nichts verzeihend.Ach, die Stille der Stunde täuscht uns

nicht! Wir hören die SchreieAus ihren Lagern bis hierher. Sind wir

doch selberFast wie Gerüchte von Untaten, die da

entkamenÜber die Grenzen. Jeder von uns

Der mit zerrissenen Schuhn durch die Menge geht

Zeugt von der Schande, die jetzt user Land befleckt.

Aber keiner von uns Wird hier bleiben. Das letzte Wort

Ist noch nicht gesprochen.

FALA DE UM TRABALHADOR A UM MÉDICO

Sabemos o que nos deixa doentes!Quando adoecemos, dizemQue é você quem cura.

Sabemos que vocêDurante dez longos anosAprendeu a curarEm belas escolas mantidasCom o dinheiro do povo, e para esse conhecimentoDespendeu-se todo um patrimônio.Você é decerto capaz de curar.

Você é capaz de curar?

Quando o consultamos,Nossos trapos são rasgadosE você nos examina o corpo nu.Uma espiada em nossos traposDiria maisSobre a causa da doença. Uma mesma causaCorrói nosso corpo e nossa roupa.

O reumatismo de nossos ombros,Diz você, é causado pela umidade, Causadora também de uma mancha em nossas casas.Diga-nos portanto:De onde vem a umidade?

Trabalho de mais e comida de menosFazem-nos débeis e magros.Diz a sua receita:Vocês precisam engordar.Do mesmo modo você poderia dizer ao juncoQue não devia se molhar.Quanto tempo terá para se ocupar de nós?Logo vemos: um tapete em sua casaCusta tanto quanto o que recebePor cinco mil consultas.

Você provavelmente dirá que Não tem culpa. A mancha úmidaNa parede de nossas casasNão diz outra coisa.

ACERCA DO TERMO

EMIGRANTES

Sempre achei falsa a alcunha que nos deram: emigrantes.Ela diz respeito à gente que escolheu mudar de país. Nós, porém, Não nos mudamos por livre e espontânea vontadeOptando por uma nova pátria. Nem nos mudamosPara ficar, se possível para sempre.Pelo contrário, fugimos. Somos gente expulsa, banida.E o país que nos acolheu não é um novo lar, é um exílio.Permanecemos inquietos, tão próximos da fronteira quanto possível,Aguardando o dia do retorno, atentosÀ menor mudança do lado de lá, inquirindoCom impaciência o recém-chegado, nada esquecendo e nada consentindo E não perdoando nada do que passou, absolutamente nada.Ah, a momentânea tranquilidade não nos ilude! Ouvimos os gritosQue nos chegam dos campos de concentração. Nós mesmosNos tornamos quase rumores das iniquidades que vazamPela fronteira. Ao caminhar em meio à multidão,Trazendo os sapatos estropiados, cada um de nósÉ o testemunho vivo da desgraça que macula nosso país.Mas nenhum de nós ficará aqui. Não se proferiu aindaA última palavra.

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Tercio Redondo é mestre e doutor em língua e literatura alemã, tradutor e professor da Universidade de São Paulo.

HOLLYWOOD-ELEGIEN

IDas Dorf Hollywood ist entworfen nach

den VorstellungenDie man hierorts vom Himmel hat.

HierortsHat man ausgerechnet, daß Gott

Himmel und Hölle benötigend, nicht zwei

Etablissements zu entwerfen brauchte, sondern

Nur ein einziges, nämlich den Himmel. Dieser

Dient für die Unbemilttelten, ErfolglosenAls Hölle.

IIAm Meer stehen die Öltürme. In den

SchluchtenBleichen die Gebeine der Goldwäscher.

Ihre SöhneHaben die Traumfabriken von

Hollywood gebaut.Die vier Städte

Sind erfüllt von dem ÖlgeruchDer Filme.

IIIDie Stadt ist nach den Engeln genanntUnd man begegnet allenthalb Engeln.

Sie riechen nach Öl und tragen goldene Pressare

Und mit blauen Ringen um die AugenFüttern sie allmorgentlich die Schreiber

in ihren Schwimmpfühlen.

IVUnter den grünen Pfefferbäumen

Gehen die Musiker auf dem Strich, zwei und zwei

Mit den Schreibern. BachHat ein Strichquartett im Täschchen.

Dante schwenktDen dürren Hintern.

VDie Engel von Los Angeles

Sind müde vom Lächeln. Am AbendKaufen sie hinter den Obstmärkten

Verzweifelt kleine FläschchenMit Geschlechtsgeruch.

VIÜber den vier Städten kreisen die

JagdfliegerDer Verteidigung in großer Höhe

Damit der Gestank der Gier und des Elends

Nicht bis zu ihnen heraufdringt.

ELEGIAS DE HOLLYWOOD

IO vilarejo de Hollywood foi arquitetado de acordo com as representaçõesQue aqui se fazem do céu. Imaginou-se então que Deus,Precisando de céu e inferno, em vez deProjetar dois estabelecimentos, Projetou um único – o céu. Este serve,Para os despossuídos e malogrados,De inferno.

IIDo mar se erguem torres de petróleo. Nos desfiladeirosJazem os brancos esqueletos dos garimpeiros de ouro. Seus filhosEdificaram as fábricas de sonho de Hollywood.As quatro cidades Estão impregnadas do cheiro de óleoDos filmes.

IIIA cidade foi batizada em memória dos anjos,Que são encontrados por toda a parte.Recendem a óleo e usam pessários de ouroE, com círculos azuis em torno dos olhos,Durante toda a manhã alimentam os escrevinhadores em suas piscinas.

IVSob a copa das pimenteirasOs músicos fazem seu trottoir andando de par em parCom os escrevinhadores. BachTem um quarteto de cordas no bolso; Dante remexeO traseiro descarnado.

VOs anjos de Los AngelesEstão cansados de sorrir. À noite,Desesperados, compram atrás dos mercados de frutas Pequenos frascosCom cheiro de sexo.

VIOs caças da defesa aérea sobrevoam As quatro cidades mantendo-se em elevada altitude A fim de que o fedor da cobiça e da misériaNão os empesteie lá em cima.

DIE RÜCKKEHR

Die Vaterstadt, wie finde ich sie doch?Folgend den Bomberschwärmen

Komm ich nach Haus. Wo denn liegt sie? Wo die ungeheueren

Gebirge von Rauch stehen.Das in den Feuern dort

Ist sie.

Die Vaterstadt, wie empfängt sie mich wohl?

Vor mir kommen die Bomber. Tödliche Schwärme

Melden euch meine Rückkehr. Feuersbrünste

Gehen dem Sohn voraus.

O RETORNO

A cidade natal – como encontrá-la?Vou para casaSeguindo os esquadrões de bombardeiros.Onde está a cidade? Está Onde as gigantescas montanhas de fumaça se avolumam.Ela é aquilo Que jaz no meio do fogo.

A cidade natal – como haverá de me receber?Antes de mim chegam os bombardeiros. Esquadrões da morteAnunciam-te meu retorno. Labaredas de fogoPrecedem teu filho.

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A BRUTALIDADE DO FATO

Desenhos de Cássio Brasil

“Abr iram-se-lhe em torno as vestes, amplamente, mantendo-a à tona qual sereia, por instantes:”

“E ela cantava trechos de canções ant igas, como que

sem noção do transe que se achava.”

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HAMLET, Ato IV, Cena VII – descrição da morte de Ofélia pela Rainha

(Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos)

“Mas, em breve, as suas vestes, já embebidas e

pesadas.”

“Levaram a infeliz, do canto melodioso, para a lodosa mor te.”

Cássio Brasil é cenógrafo,

figurinista e diretor teatral

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Para: Lincoln.Assunto: Entrevista com TotonhoData: 19/06/2010

Você falou do Santo Antonio, lembrei da festa do jongo em Guaratinguetá – Santo Antonio, São João, São Pedro. Ainda não passei pra você a entre-

vista que fiz com o Totonho. Fui procurar as fitas, são do tipo “microcassette”, pra gravador de jornalista. Será que ainda usam esse gravador? Nas fitas

marquei a data, 4/6/2000. Achei junto a transcrição de algumas passagens:“Não são iguais as festas. A gente faz novos pontos, o que dá uma empolgação, uma afirmação, uma preservação do folclore. O jongo, ele vem de

muitos anos. Os nossos avós vêm preservando. Nasceu na época dos escravos. Só que nessa época era um ritual um pouco mais diferente. As cantorias

eram em nagô. Eles cantavam para os Orixás, para socorrer do sofrimento. A cantoria, que eles cantavam, era pra atingir o senhor de senzala, o capataz

por meio de magia.”“Jongo nada mais é que um combate, a arma que o escravo tinha pra se defender. Ao mesmo tempo, era uma louvação, um ritual, um sofrimento, um

desabafo e uma magia. Esse folclore vem até agora e a gente procura preservar.”“Jongo vem do bairro do Machadinho, na serra. Depois, na Tamandaré, na Torneirinha. Depois, em frente à casa de uma jongueira muito antiga. Este

bairro aqui [Tamandaré] foi um fazendão, uma fazenda de escravos. Tinha muita cana e aqui era um engenho.”

“Nós usamos os nossos versos e usamos também o lado espiritual do povo pra combater na roda de jongo. Pessoa vai ficando tonta, tonta, tonta e cai

mesmo! O peso da magia. O jongo é assim, através de demandas.”“(cantando) Compadre cambará / Vai lá em casa passeá / Meu compadre cambará / Vai lá em casa passeá / Lá tem feijão-cavalo / Feijão-cavalo do duro de

cozinhá. Convidando jongueiro pra demanda.”“(cantando) Vovó, pra que tu qué o didá?/ Olha que suncê, oi, já não sabe costurá! Pra que cutucar os outros, se ela mesma não sabe costurar, não sabe se

defender? (cantando) Eu já trouxe lá de casa / Agulha, linha e carreté. Eu já vim de casa preparado pra demanda. (cantando) Foi encomendado de Angola /

Veio na folhinha de Guiné. Caboclo.”“Eu gostaria que o jongo não chegasse a findar. Que essa geração agora preservasse e cultivasse uma coisa saudável, não usasse o jongo mais como uma

arma. Nós que estamos dentro do jongo, sabemos o perigo que é. A maioria dos versos são cheios de segredos.”

“(cantando) São João batizou Cristo / Cristo batizou João. Saudação a Xangô.”“(cantando) Santo Antonio é santo de mesa / São Benedito é santo maior. Santo Antonio tanto trabalha pro bem quanto pro mal. Santo casamenteiro.”

“(cantando) A balança de São Miguel / Pra pesar um pecado meu. Ninguém pode julgar ninguém. (cantando) Nesse mundo quem não peca? / Diz primeiro

quem sou eu! Como é que o jongueiro vai descobrir quem sou eu? Só Deus sabe quem sou eu, só Ele sabe o meu pecado.”

Eu sei, Lincoln, “fica faltando a melodia”, ficam faltando a voz do Totonho e o batuque que ele fazia, na mesa ou na cadeira, com a ponta dos dedos.

E, no total, foram duas horas de entrevista. Quando eu digitalizar as fitinhas, lhe mandarei. Se é que o mofo não inutilizou tudo.

CONVERSA SOBRE MÚSICA E TRADIÇÃO POPULAR Por Lincoln Antonio e Walter Garcia

Dois compositores que já

colaboraram com a Companhia

do Latão desenvolvem

importantes pesquisas sobre

música popular brasileira.

Lincoln Antonio é pianista,

compositor e produtor cultural,

integrante do grupo A Barca.

Walter Garcia é músico,

pesquisador e professor da

Universidade de São Paulo. A

parceria nas canções se estende

também à reflexão teórica: a

troca de correspondência que se

segue decorre de uma viagem de

pesquisa de Lincoln ao nordeste

do Brasil e tem como tema o

trabalho dos mestres populares.

Para: Walter

Assunto: Santo Antonio no Cariri

Data: 16/06/2010

Santo Antonio foi calmo, passamos o domingo em casa, ouvimos a ladainha pro Santo que havia gravado numa festa

em casa e assim foi. De certa maneira já tínhamos comemorado em Barbalha, 15 dias antes. Lá eles fazem uma festa

que começa no último fim de semana de maio e vai até o dia 13. Começa com a festa do Pau da Bandeira. Os caras

pegam um tronco, uma tora de 23 metros, e carregam por várias ruas, a mulherada sobe em cima, um misto de sacana-

gem e devoção ao Santo. Bem, devoção nem tanto... Mas quando chegamos ainda na alvorada, o dia amanhecendo, a

cidade vazia, as casinhas antigas enfeitadas com a imagem do Santo com flores, tudo lembrou muito o clima de Lisboa

que vimos no ano passado. Santo Antonio nasceu em Lisboa, é padroeiro da cidade, e quando chegamos já depois da

festa ainda havia um clima no ar. Achei muito parecido em Barbalha esse fundo devocional que ainda permanece ali e

que é sincero, delicado, mobiliza toda uma cidade. Infelizmente isso tudo é soterrado pelo som altíssimo, o patrocínio

de certa marca de cerveja e o churrasquinho de calabresa (em Lisboa, nessa questão da comida, havia ao menos as

deliciosas sardinhas). Não tinha ninguém na alvorada, só as bandas de pífano que chegam e tocam em frente à igreja

ainda fechada, nós e alguns fotógrafos. Nós também, fotógrafos... Mais tarde vão chegando outros grupos, o público,

vem gente de toda a região e a festa cresce. Cresce até o insuportável. Mas não esperamos pra ver. Acompanhamos

um pouco o pau e quando ele ia adentrando no centro caímos fora. Já eram 3 da tarde e a gente estava desde às 5 da

manhã. Taí, o Santo Antonio do ano.

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Para: Walter

Assunto: Tradição e invenção

Data: 21/06/2010

Quase consigo ouvir a voz de Totonho, quase ouço a melodia. De alguns pontos dá pra adivinhar. E Totonho é mesmo uma grande figura. Não sei se

há outro jongueiro atualmente que tenha tantos pontos como ele. E esse é um problema da tradição popular. Mesmo sendo tradição, versos e melodias se

conservando ao longo do tempo, é preciso uma mão criadora, renovadora, é preciso inventar também. Totonho desempenha esse papel largamente. Por

outro lado, aqui no Maranhão cada temporada de São João é uma nova leva de toadas. Cada boi, cada cantador prepara novas músicas “por inspiração de

São João”: Eu tava dormindo/ eu sonhei com São João / Pedindo minhas toadas / E dando muita benção. Cantam num boi de Cururupu. Já no carnaval de

Pernambuco, com todo frevo, maracatu e caboclinho existe pouca novidade no repertório, a não ser nos maracatus de baque solto, os maracatus rurais,

onde o verso é sempre improvisado, não existe letra fixa.

A cultura popular, de base tradicional, tem essa dupla característica: por um lado, há a permanência de melodias, versos, que se movem de uma brin-

cadeira pra outra, mas permanecem com alguma variação. De outro lado, há a variação constante até o ponto do improviso, ou seja, os bons cantadores

sempre variam a melodia, transformam os versos ou improvisam a partir de formas complexas como as modalidades da cantoria de viola. Em resumo,

na música popular tradicional existe a permanência e continuidade de formas, mas elas se apresentam sempre com certo grau de variação, quando não

com alto grau de variação. Acho esta uma característica fundamental do popular, daí a dificuldade e ineficiência em colocar na partitura esta música. A

notação musical teria que dar conta de todas as variações pra ser exata, e as variações são intermináveis.

Esse traço dinâmico da cultura popular, essa dificuldade em sistematizar ou padronizar é que é a coisa, sobretudo face ao extremo formalismo do mer-

cado cultural onde se encontra todo o tipo de produto pronto, acabado, fechado. Não é à toa que dura pouco, logo se consome, se esgota. Essa conversa

me fez lembrar um texto do Mário de Andrade que gosto demais, é um trecho d’ O Banquete:

“Você se esquece, por exemplo, do valor dinâmico do inacabado? Existem técnicas do acabado, como existem técnicas do inacabado. As técnicas

do acabado são eminentemente dogmáticas, afirmativas sem discussão, e é por isso que a escultura, que é por psicologia do material a mais acabada de

todas as artes, foi a mais ensinadora das artes ditatoriais e religiosas de antes da Idade Moderna. Pelo contrário: o desenho, o teatro, que são as artes

mais inacabadas por natureza, as mais abertas e permitem a mancha, o esboço, a alusão, a discussão, o conselho, o convite, (...) são artes do inacabado,

mais próprias para o intencionismo do combate. E assim como existem artes mais propícias para o combate, há técnicas que pela própria insatisfação do

inacabado, maltratam, excitam o espectador e o põem de pé. (...) Toda obra de circunstância, principalmente a de combate, não só permite mas exige

as técnicas mais violentas e dinâmicas do inacabado. O acabado é dogmático e impositivo. O inacabado é convidativo e insinuante. É dinâmico, enfim.

Arma o nosso braço.”1

1 ANDRADE, Mário de. O banquete. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1989, pp.61-2.

Anahí Santo

s

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Para: Lincoln.Assunto: A roda, a volta do mundoData: 26/06/2010

Não faz muito tempo, na biblioteca da universidade, reparei num livro que desconhecia: Elementos de folclore musical brasileiro2, de Flausino Rodrigues

Vale. Veja a quadra, anotada de forma incompleta, que o autor publica: A roda do mundo é grande / Nosso samba ind’ é maió / (...) paranga / Tem pena de

mim, tem dó. Como se trata da 3ª edição, não sei se os versos já estavam na 1ª edição, publicada em 1936, ou se entraram quando da revisão e da amplia-

ção feitas, em 1947, para a 2ª edição. Seja como for, a quadra é cantada desde pelo menos a primeira metade do século XX, a “duas léguas de uma grande

cidade mineira”. E, nesse tempo e nesse lugar, cantava-se com o fim de “invocar o espírito de Pai Mateus”.Você certamente reparou de imediato, a quadra, ou o que há dela, é bem semelhante àquela segunda parte de “Volta do mundo”, cantada pela Tenda

São José, de Pirapemas (MA), em 2004, e incluída na caixa Trilha, Toada e Trupé d’A Barca3: Eu vim salvar terreiro / Tem pena de mim, tem dó / A volta do

mundo é grande / Os poder de Deus é maior. E a Juçara Marçal não cantou, naquele show que vocês dois fizeram, São Benedito, tenha pena de mim, tenha

dó / A volta do mundo é grande / Os poder de Deus é maior, que ela ouviu em Minas, não foi? Agora, a melodia anotada por Flausino R.Vale é diversa da

que a Tenda São José canta. E, salvo engano da minha memória, as duas melodias também são diversas daquela que a Juçara canta. Manteve-se, de certo

modo, a forma dos versos, e variaram as entidades, variaram as melodias.Por outro lado, há uma passagem em que o Luis da Câmara Cascudo (Literatura oral do Brasil), apoiando-se em estudos de M. J. (não tenho culpa

do cacófato) Herskovits e de João Nogueira (não confundir com o sambista), afirma que “uma canção de marcha francesa faz parte do culto vodun” no

Haiti e que trechos “de óperas ou canções ouvidas nos teatros” fazem parte de congos no Nordeste do Brasil.4 De maneira enviezada, isso me lembra

um outro ponto do Totonho: Tiraram coco do meu terreiro / Sacudiram meu bambual / Tiraram coco do meu terreiro / Deixaram um galho no meu quintal.

Totonho me explicou o significado. Nem “coco” é “coco”, nem “galho” é “galho”. Quando compôs, ele se apoiou no que via concretamente pra criar uma

mensagem cifrada, pra cantar um segredo como tantas vezes se dá no jongo.O grande problema talvez seja aquele mesmo, qual o limite entre a experiência do sujeito e o som ensurdecedor, entre a vida comunitária e o deus-nos-

acuda da cerveja. Aí no Maranhão, assisti a um Tambor-de-Crioula muito bom, ainda que feito pra turista, no Centro Histórico de São Luís. Não guardei

o que se cantava, mas era a reclamação de que não havia pau pra amarrar o cavalo. Depois de um tempo, um dos homens do grupo parou de cantar e

falou rindo pra quem estava próximo: “Como não tem pau? Amarra o cavalo nessa árvore!”.2 VALE, Flausino Rodrigues. Elementos de folclore musical brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Ed. Nacional/ Brasília: INL, 1978.

3 A Barca nasce em 1998 da reunião de amigos em torno de idéias como viagem, música popular, Brasil e Mário de Andrade. A lição do modernista levou o grupo

à pesquisa, pelo norte, nordeste e sudeste do país, das tradições populares da música brasileira e ao registro dessa investigação nos CDs Turista aprendiz, Baião de

Princesas e Trilha, toada e trupé.4 CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral do Brasil. 3a ed. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Edusp, 1984, p. 46.

Para: Walter

Assunto: São João no Maranhão

Data: 30/06/2010

Eu queria te falar de outras ocorrências da “volta do mundo”, todas elas diferentes entre si, embora com o mesmo tema. Mas hoje é véspera de São

João e estamos saindo pra um batizado de boi em Maracanã.

Depois eu queria falar também de São João, que está no centro das festas juninas, e pra quem se acendem milhares de fogueiras por todo o Nordeste.

Aqui no Maranhão, São João tem um boizinho, um boi predileto, que o santo empresta pros bumba-bois brincarem. Mas o santo é generoso e empresta

também pros outros santos fazerem sua festa, e assim a brincadeira chega até São Marçal, 30 de junho.

Daí, eu te contaria do padre que foi chamado pra batizar o boi de Maracanã. Estava com batina, mas sobre ela o peitoral e o chapéu de vaqueiro

bordados como nos bumba-bois. Começou dizendo que não é só São João que está na glória, todos nós também estamos porque temos a divindade

dentro de nós. Benzeu o boi, porque só às pessoas cabe o batismo, e poderia dizer que abençoou a cerveja porque, recomendando a moderação na bebida,

lembrou que a cerveja era invenção deles, dos beneditinos, com função medicinal, um remédio.

Depois, eu queria te dizer da festa popular como experiência de outro tempo e lugar. Como o povo organiza o mundo pelo canto e pela dança. Como

o sagrado é a base de muitas brincadeiras e, portanto, se pode alcançar outra dimensão, outra realidade. Mas hoje já é véspera de São Pedro, encontro

de bois na capela.

Por fim, eu diria que não há nada como a intensidade de uma festa popular. Ainda mais aqui no Maranhão, em contraste com sua pobreza e sua

política. Os maranhenses poderiam fazer uma pacífica revolução instituindo o mundo bumba-boi como base da vida e da sociedade. Todo mundo já

tem sua matraca. Eu tenho a minha e preciso encerrar a conversa por hora, porque a boiada ainda está na rua!

Ren

ata

Am

aral

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Manoel Rangel é diretor presi-dente da Ancine, Agência Nacional do Cinema. É pesquisador de cine-ma dos mais ativos e politizados. Foi um dos idealizadores do projeto da Ancinav, aquele que tentou fa-zer avançar as relações produtivas no cinema nacional e foi derruba-do numa batalha midiática, pelo lobby de produtores e artistas pre-ocupados com seu livre acesso aos fundos públicos. Nessa entrevista, realizada gentilmente no Estúdio do Latão, ele debateu as contradi-ções de se fazer cinema no Brasil.

TRAULITO – Nós tomamos conhecimento do seu trabalho muitos anos atrás, ao ler a Sinopse, uma publicação alternativa sobre

cinema das mais inventivas. Você pode comentar a experiência?

MANOEL RANGEL – De fato, a Sinopse foi muito importan-te para mim e para um grupo de pessoas que tiveram a oportunida-de de iniciar a aproximação com

o campo cinematográfico por vol-

ta de 1995. Fazendo a Faculdade

de Cinema da USP, começamos

a tomar contato com as idéais do

Paulo Emílio Salles Gomes, com

o trabalho do Ismail Xavier na

crítica e na teoria, também com a

atuação do Carlos Augusto Calil.

Nesse momento, nós estávamos vivendo o período da chamada re-

tomada do cinema brasileiro: é um

momento de exaltação e de euforia

da retomada, dentro de um mode-

lo de produção diferente do que

existia durante as décadas de 1970

e 1980. Começam a se multiplicar

as iniciativas dos festivais de cine-

ma e, de algum modo, até por esse

contentamento, havia uma espécie

de interdição de um debate crítico

e estético. Nós nos juntamos a par-

tir de um evento de homenagem à

produção crítica do Paulo Emílio,

logo depois produzimos um único

número de uma revista chamada

Balalaica, dedicada a ensaios so-

bre cinema. E finalmente vamos

21

editar a Sinopse, dedicada a uma defesa

radical do cinema moderno e uma in-

terlocução mais ampla com as questões

da produção, também com o cinema

de massas, no sentido de um confronto

com o material da indústria cinemato-

gráfica, com as grandes produções de

Hollywood, entendendo que esses fil-

mes também se prestavam a uma lei-

tura da sociedade e do tempo em que

vivemos quando bem analisados.

TRAULITO – Em que sentido era

essa defesa do cinema brasileiro mo-

derno?

RANGEL – Criticávamos o processo

de restauração do naturalismo e do aca-

demicismo, sem os traços estéticos que

o cinema moderno legou em sua grande

maioria. Ao mesmo tempo procuráva-

mos uma reflexão sobre as questões do

desenvolvimento da atividade cinema-

tográfica no Brasil. Começamos a fazer

o debate das questões de distribuição,

da produção, do problema das leis de

incentivo, do regramento que estava es-

tabelecido para a produção, a partir do

pressuposto de que o ambiente de pro-

dução também condiciona a estética.

No campo cinematográfico isso é ainda

mais forte do que no teatro. Há uma

limitação objetiva, que são os recursos,

as condições, os meios para poder reali-

zar, sempre de alta monta, funcionando

como um limitador efetivo.

TRAULITO – Do ponto de vista

produtivo, qual a diferença entre o cine-

ma brasileiro da retomada e o anterior?

RANGEL – Há uma diferença bas-

tante profunda no modelo de como o

Estado organiza a relação produtiva. O

ambiente do mercado se alterou radical-

mente na esteira da criação da Lei Roua-

net. Surge o fato de que o cinema precisa

sair em busca de empresas para viabili-

zar sua produção. Isso condiciona o

discurso, o tema, a forma de abor-

dagem e o tipo de produto que vai

de encontro àquilo que os diretores

de marketing das empresas estão

esperando encontrar. Esse é um

condicionamento importante. Evi-

dentemente, isso não significa dizer

que é tudo igual, não significa dizer

que só houve um estilo de produ-

ção. Mas significa estabelecer uma

tendência dominante. Um segun-

do aspecto é que havia então uma

sensação no ar de que, durante os

anos 1960 e 1970, um determina-

do padrão estético de um discurso

dominante ligado ao Cinema Novo

impediu o florescimento de outras

formas de realização cinematográ-

fica. Quando você vai ver mesmo

o que aconteceu nos anos 1960 e

1970, isso não é verdade. Mas na-

quele momento, de 1995, 1996, o

grande lema daqueles que debatiam

o cinema no Brasil era uma espécie

de banimento do debate estético.

Não se queria falar sobre os acertos,

os erros, as repetições e as reitera-

ções desta produção da retomada.

Em favor do grande lema da diver-

sidade e da pluralidade do cinema

brasileiro, não se deveria travar o

corpo a corpo com os filmes que

eram feitos. Eu só menciono essas

coisas para dizer que esse era o cal-

do de cultura que estava em torno

da Sinopse.

TRAULITO – Talvez por essa

percepção sobre como o cinema se

liga a suas condições de produção

é que você tenha sido chamado a

trabalhar no governo.

RANGEL – Isso é inevitável.

O sujeito não pode simplesmente

decidir: eu quero ser um profis-

sional de cinema. Ele decide isso

e no dia seguinte ele é confron-

tado com como criar condições

para fazer cinema no Brasil. Eu

produzi meu primeiro curta-me-

tragem e logo fui convidado para

ser da Associação Brasileira de

Documentaristas de São Paulo.

O QUE FAZER COM O CINEMA NACIONAL?

Entrev ista com Manoel Rangel

Deus e o diabo na ter ra do sol

Div

ulg

ação

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22

Neste movimento, acabei acom-

panhando, em 2002, o processo

preparatório de discussão do pla-no de governo do Lula. Quando Gilberto Gil foi convidado a ser ministro, Orlando Senna foi con-vidado a ser Secretário do Audio-visual e Leopoldo Nunes para ser Chefe de Gabinete da Secretaria do Audiovisual. Foi aí que me convidaram a ir para a Secretaria do Audiovisual, para atuar com eles no desenho da política de au-diovisual no país. Este foi o meu salto para o governo.

TRAULITO – Como vocês dialogaram com a Embrafilme, ela já estava extinta?

RANGEL – Já estava extinta a cinco, seis anos. Mas da Embrafil-me que foi criada em 1969 à Em-brafilme que o Collor extinguiu, nós tivemos várias Embrafilmes de perfis diferentes. Uma primeira convivia com o Instituto Nacional de Cinema e foi construída simples-mente para lidar com a exportação de filmes. Houve depois um gran-de momento, em 1975, quando se decidiu juntar a Embrafilme com o Instituto Nacional de Cinema. Era um grupo ligado ao Cinema Novo que assume o comando da gestão da política cinematográfi-ca: eles tomam a decisão de criar uma distribuidora e logo depois o Concine, que cumpre funções de regulação do mercado. Ali se criou uma sinergia profunda, foi o pe-ríodo da Embrafilme mítica, que conseguiu elevar a participação de mercado para a ordem de 30, 35%, que conseguia demarcar território. Você tinha cota de tela de quase 150 dias de obrigatoriedade de fil-me brasileiro nas salas de cinema. Esse período vai até 1981.

TRAULITO – A Embrafilme produzia diretamente com dinhei-ro de orçamento?

RANGEL – Não. A Embra-filme botava dinheiro no projeto como co-produtora. Ela financiava o produtor. O dinheiro da Em-brafilme ia na forma de participa-ção nos resultados, de compra de um pedaço do filme. E uma outra parte ia a título de avanço sobre a distribuição. Era um dinheiro que

depois devia ser ressarcido em primeira mão, quando o filme fosse lançado no mercado. A Embrafilme nunca dava o dinheiro a fundo perdido. Era um in-vestimento com perspectiva de retorno, dando a possibilidade de reaplicação.

TRAULITO – Quero fazer uma per-

gunta um pouco ingênua, de quem não é da área. Quem estuda a história do cine-ma descobre que um filme como o Deus e o diabo na terra do sol foi feito por uma equipe de sete pessoas, em condições do que hoje se chama, depreciativamente, cinema de guerrilha. E que muitas obras centrais dos anos 1960 foram feitas em condições precárias de produção, tendo altíssima invenção estética. A questão ingênua é: um cinema de um país como o nosso não devia custar menos? Por que sempre se fala na tal necessidade de uma indústria nacional cinematográfica quando o melhor que fizemos foi artesa-nal? Não há uma idealização desse mo-delo industrial, que no fundo interessa aos negociantes da área?

RANGEL – O cinema sempre traz esse debate porque ou ele consegue ter ferramentas para ocupar uma fatia im-portante do mercado ou, sim, ele pode produzir obras de alta relevância estética e não conseguir ter um diálogo amplo com toda a sociedade. E assim não vai conseguir criar as condições de susten-tação de um conjunto de obras. Em geral, essas obras que foram feitas nos anos 1960, de alta invenção estética, com equipes reduzidas, sempre foram feitas em condições muito penosas. Al-gumas em condições de alienação de patrimônio pessoal, de hipotecar a casa em que o sujeito mora, de tomar dinhei-ro no banco e ficar pendurado. Certos desenvolvimentos da arte cinematográ-fica foram conseqüência do esforço dos realizadores. Mas é preciso diminuir as incertezas nesse território. E para con-tinuar rodando a manivela você precisa que parte da produção nacional tenha bilheteria, constitua um gênero, encon-tre um jeito de se comunicar com um grande público, de tal maneira que eu dou ao espectador a expectativa de que ele vai encontrar algo que ele já conhece. Portanto, eu tenho um potencial a mais de levá-lo à sala de cinema. Esse é o pa-drão lá de fora.

TRAULITO – Até o limite da dilui-ção completa, do estereótipo e da mer-cantilização total da forma...

RANGEL – E da incapacidade in-clusive de cumprir o seu objetivo pri-meiro, de conseguir continuar girando a manivela. Mas eu acho que a questão que está no cerne disso que você coloca é o problema da escala de recursos que eu preciso para viabilizar uma obra ci-nematográfica. No cinema, muitos dos avanços estéticos são respostas objetivas à condição de fazer. Aquela maravilho-sa luz do Cinema Novo, a luz dura do sertão, a luz brasileira, é também uma impossibilidade de meter filtro, ou de ter um galpão cheio de luz para reproduzir condições artificiais. Esse diálogo, entre as condições de produzir e o resultado estético dessa produção é o diálogo fun-

damental permanente da indústria cine-matográfica. O Glauber, no Revisão crí-tica do cinema brasileiro1, lá pelas tantas, fala em uma indústria de autor. Ele está reivindicando, portanto, uma combina-ção de instrumentos que permitissem uma colocação maciça de obras cinema-tográficas no mercado, que tivessem diá-logo com o público e que conseguissem, portanto, gerar as receitas necessárias para continuar realizando, reconhecen-do a necessidade de instrumentos indus-triais, ou seja, de uma distribuidora que agrupe todo mundo e lance no mercado.

1 ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cine-ma brasileiro. Org. Ismail Xavier. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

A produção em série, o financiamento dessa produção, o esforço de comuni-cabilidade. Mas, ao mesmo tempo, ele reivindica que isso deve ser orbitado por um conjunto de produtoras que pre-servem a autonomia intelectual, a au-tonomia estética dos realizadores. E se você for ver bem, aquilo que o Glauber propugnou de uma indústria de autor, foi, de um jeito ou de outro, aquilo que aconteceu nos anos 1970 e 1980: a Em-brafilme cumprindo em tese o papel de ser o elemento industrial.

TRAULITO – O que eu vejo nor-malmente no debate é que em vez de se tentar desenvolver um modelo adequa-

do à nossa condição periférica, o que se faz é postular um mercado imaginário, com uma escala industrial inalcançável, mas com a rede de segurança do Estado. Você entende?

RANGEL – Você está me dizendo: alguém sempre coloca a necessidade da indústria para poder sair da encrenca do cinema. Eu entendo. E sei que estou con-tornando a questão. Mas se eu não con-sigo te dar uma resposta mais precisa é porque no fundo o desafio é o seguinte: como é que você faz filmes que se comu-niquem de maneira maciça? O problema é se comunicar de maneira maciça. É o desafio de falar com milhões. Porque se eu não tenho filmes que estejam buscan-

Glauber Rocha

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do falar com milhões, eu não consigo en-trar no mercado, eu não consigo entrar na sala de cinema. Eu não consigo ser dis-tribuído. Porque o território está ocupado pelo produto estrangeiro. É um processo tenso, mas se você olhar no passado, em obras como Xica da Silva, também há um esforço de comunicação e de invenção. Bye bye Brasil, também é um esforço do Cacá Diegues nessa direção. O Eles não usam black-tie do Leon Hirszman tam-bém é um esforço nessas duas chaves.

TRAULITO – É que o critério da comunicabilidade em abstrato pode dar no elogio do consumível, do pa-latável, do já visto – tudo o que define

a forma mercadoria. Não é preciso ser nenhum xiita do cinema autoral para perceber que esse critério da comuni-cabilidade quase sempre resvala em facilitação mercantil.

RANGEL – Ele é perigoso, como é perigoso viver. Mas aí você deve olhar pelo outro lado, pelo lado dos artistas mais radicais, que imaginaram a sua arte como um instrumento de inter-venção na realidade, e que tiveram um propósito político de intervir no mundo. Para eles, de que adianta falar com 10 mil, com 15 mil pessoas?

TRAULITO – Mas o cinema não fala só no imediato. Ele fala no longo

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prazo, ele atua no tempo. Uma obra de 15 mil ecoa em outras obras, em outros cineastas. Um bom teatro, como foi o Arena de pouco mais de 100 lugares, se irradia por gerações.

RANGEL – Eu vou me aventurar no território que vocês dominam pro-fundamente. Mas o esforço da comédia no Brecht não é o esforço de se comu-nicar em larga escala, maciçamente?

TRAULITO – É, mas sempre com sofisticada elaboração poética, forma experimental, atitude dialética radical, complexidade política…

RANGEL – Ou seja, ele é um ar-tista que conseguiu dominar a tensão,

centrou a sua obra em uma determina-da forma de se comunicar, para atingir um objetivo complexo, mas ao mesmo tempo conseguir dar larga penetração.

TRAULITO – Na verdade, a maior parte da obra dele foi feita para o futuro, escrita no exílio, longe dos palcos.

RANGEL – Ok. Mas a própria tur-ma do Cinema Novo fez a reflexão ob-jetiva de que seus filmes foram vistos por muito pouca gente. Eles sabiam do valor das obras, mas reconheciam esse limite. O problema geral a que temos que dar resposta é outro: como ter uma atividade cinematográfica em território nacional? Eu diria que esse é

o esforço que o estado brasileiro tem hoje em relação à atividade cinemato-gráfica: nós queremos que exista, no ambiente da cinematografia brasileira, filmes de grande capacidade de co-municação com o público e filmes de alta relevância estética. O que nós não queremos são os filmes que não sejam nem uma coisa nem outra. Só que tem um outro problema, que é o seguin-te: eu estou disputando um mercado com uma produção estrangeira que vem largamente ancorada por ter o mercado mundial como combustível. Então, estamos disputando com o ca-pital norte-americano, com essa força de diluição de custos, sabendo que ela

tem estruturas muito fortes de coloca-ção dos seus produtos no país.

TRAULITO – Como são essas es-truturas?

RANGEL – São corporações de mí-dia que operam no mundo inteiro: a Sony, a Paramount, a Universal, a Fox, a Disney e a Warner. E todas elas têm estrutura de financiamento no sistema bancário americano. Por outro lado, você tem um mercado brasileiro que é muito pequeno, com apenas 2.100 sa-las de cinema. Só para se ter uma idéia, o México ainda hoje tem 4.500 salas.

TRAULITO – Então, só para deixar

clara a idéia, você acha que, diante da ameaça do capitalismo externo, é preciso que o Estado ampare o nos-so mercado de cinema. É isso?

RANGEL – No estágio em que nós estamos, sim. É preciso que o Estado alavanque essas produções. No caso do cinema eu não tenho dúvida alguma sobre isso. Eu não estenderia isso automaticamente a todas as artes. Porque o problema é o seguinte: o meu adversário direto é um gigante que controla o merca-do em 150 países. E que não precisa que o filme dele se pague inteira-mente no mercado em que ele se originou, o norte-americano. Mas a questão é estimular uma continui-dade. Foi por isso que construímos o Fundo Setorial do Audiovisual: ele põe o recurso no filme, mas não é a fundo perdido. Quando o filme ganha, ele alimenta o fundo. Eu vou te dar um exemplo: o Chico Xavier, do Daniel Filho, que já ba-teu 3 milhões de espectadores essa semana. O Fundo Setorial investiu nesse filme e tende a recuperar todo o dinheiro investido. Então essa é a operação que eu entendo que é de-sejável para o cinema brasileiro. Um filme ajuda a pagar o próximo.

TRAULITO – Acho que você entende nossa insistência. Há mui-tos anos admiramos seu trabalho como crítico entusiasmado pela herança do Cinema Novo e nossa conversa agora acontece com o ges-tor do governo Lula. Aprendemos vendo você lidar com essa contra-dição. Só estamos querendo ouvi-lo argumentar sobre isso.

RANGEL (rindo) – Deixem-me abrir um parêntese. Esta conversa para mim é muito prazerosa...

Optamos em desligar o gravador.

Mais tranquilamente, falamos ain-da, um bom tempo, sobre a Ancinav, a batalha perdida. Sobre correlação

de forças. E sobre militância política

em tempos adversos.

Entrevista realizada por Adriana

Mendonça, Ana Petta, Helena

Albergaria, Luiz Gustavo Cruz,

Maurício Braz, Renan Rovida

e Sérgio de Carvalho. Edição

de Felipe Moraes e Sérgio de

Carvalho.

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S I M Ã O , O S A PA T E I R O

( U m f r a g m e n t o )

Na ágora de Atenas, ele produzia sandálias, consertava

cadarços, conforme os jeitos dos pés e o desgaste das

pedras. No tempo da Democracia dizia cobrar um preço

justo. Era famoso não por essa impalpável medida, mas

pela habilidade de modif icar a matéria-prima conforme

sua qualidade, conforme as necessidades que lhe fossem

trazidas. Simão, o sapateiro, quando justiça se discutia,

tinha para si saudades da Tirania, devido a a lgumas

convicções íntimas que os homens acreditam serem

políticas. Mas Simão, comerciante do próprio trabalho,

notava no dorso dos dias, que os homens gastam mais

suas solas no vai e vem escarpado da ágora democrática,

nos desembarques dos portos, nas praças em gritaria.

Simão conheceu Sócrates. Dele ouviu a palavra f ilosof ia

enquanto esticava o couro por meio de duas presilhas.

Fragmento de Giácomo Soderini, poeta italiano do século 18.

Integra o caderno Epístolas a Helena, Pádua, Oficina Dalforno, 1996.

Tradução livre de Sérgio de Carvalho