Tumulto Na Produção Mundial de Cereais
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18/8/2014 :: Le Monde Diplomatique Brasil ::
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AGRICULTURA 1
Tumulto na produção mundial de cereais
Com o milho americano desviado para a fabricação do etanol, os preços do produto disparam no mercado internacional.
Enquanto isso, mudanças climáticas na Austrália, Argentina e Rússia afetam as safras do trigo. Como se não bastasse, o
aumento do consumo de carne subtrai importantes reservas cerealistas
por Dominique Baillard
Revoltas populares questionam o alto custo de vida em Burquina Faso e na República dos Camarões. Manifestações
contra o valor do pão ganharam as ruas do Senegal e do Egito. Observadores internacionais como Jean Ziegler, há
até pouco tempo relator especial das Nações Unidas pelo direito à alimentação, evocam o temor da falta de
alimentos no Oeste do continente negro1. A ONU, por sua vez, classifica o aumento mundial dos preços dos cereais
como um “tsunami silencioso”, que pode deixar cem milhões de pessoas famintas.
Até nos países industrializados a segurança alimentar voltou a ser motivo de preocupação. No Reino Unido, por
exemplo, onde a agricultura foi sacrificada no altar da revolução industrial2, o departamento encarregado dos
negócios rurais, alimentação e meio ambiente está alarmado com as ameaças em vista3.
A alta de preços já era evidente em agosto do ano passado, quando os agricultores do hemisfério Norte realizaram
sua colheita e as cotações de grãos simplesmente duplicaram. Na Câmara de Comércio de Chicago, referência para
o mercado mundial de cereais, a tonelada do trigo passou de 200 dólares para 400 dólares. O mesmo cenário pôde
ser visto em Paris, onde o preço do trigo moído atingiu seu ápice no começo do mês de setembro e chegou a 300
euros por tonelada. No decorrer de março deste ano, quando os Estados Unidos haviam quase esgotado sua
capacidade de exportação, os preços continuaram a subir. Em doze meses, o valor do trigo aumentou 130% no
mercado de futuros americano! Surpreendidas, as indústrias de moagem e os fabricantes de massa e de alimentos
destinados ao gado protestaram com veemência nos países desenvolvidos.
O boom dos biocombustíveis
De fato, houve um rompimento do equilíbrio precário entre oferta e procura. O fenômeno ocorreu em função de dois
acontecimentos. O primeiro deles foi o aumento da demanda gerado pelo boom dos biocombustíveis4. Sua
fabricação passou a absorver 10% da produção mundial de milho, e de acordo com o Instituto de Pesquisa sobre
Políticas Alimentares (IFPRI), sediado em Washington, a situação tende a se agravar: a indústria de etanol poderá
fazer o preço do milho subir até 2020 entre 25% e 72%, na previsão mais alarmista. A variação dependerá
fundamentalmente dos Estados Unidos, principal fabricante de biocombustíveis do mundo5.
A segunda ocorrência está relacionada às mudanças climáticas, tais como a seca na Austrália, a geada na
Argentina e a falta de sol e o excesso de água na Europa, que interferiram negativamente na colheita. Tanto o etanol
quanto as alterações do clima carregam em seu paroxismo as tensões causadas pela demanda crescente de
populações inteiras, como a chinesa.
Outro fator que devemos levar em conta é que somos cada vez mais carnívoros. O crescimento econômico dos
países emergentes, associado à urbanização, modificou profundamente o comportamento alimentar da humanidade.
Os chineses, por exemplo, consumiram cinco vezes mais carne em 2005 que em 1980. Como são necessários três
quilos de grãos para produzir um quilo de carne de ave, e mais que o dobro para se obter a mesma quantidade de
carne bovina, para dar conta da demanda é preciso aumentar a produção dos cereais forrageiros e oleaginosos,
integrantes da dieta básica dos animais.
Com isso, as exportações mundiais de trigo triplicaram nos últimos cinqüenta anos6. O Egito, celeiro da Roma
antiga, tornou-se o principal consumidor das colheitas estrangeiras. Na região do Mediterrâneo, assim como na
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África subsaariana, o crescimento das importações a preços baixos durante décadas de abundância praticamente
asfixiou a agricultura local e a “conta alimentar” desses países tornou-se exorbitante. Em um relatório publicado pela
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em junho de 2007, o economista Adam
Prakash estimava que as importações alimentares vão custar 90% a mais que em 2000 para as nações menos
avançadas7. Apenas entre 2006 e 2007, a “conta alimentar” cresceu um terço na África e até 50% nos países mais
dependentes.
Os grandes produtores são os mais favorecidos com essa situação. O maior deles, os Estados Unidos, registrou
uma receita agrícola recorde: 85 bilhões de dólares no ano passado. De acordo com as estimativas do Ministério da
Agricultura americano, o crescimento em 2008 parece ainda mais promissor. Nos países emergentes
tradicionalmente exportadores, tais como a Argentina8 e a Rússia, a crise não passou incólume e gerou inflação. A
solução encontrada foi erigir barreiras para manter os preços locais em níveis razoáveis, o que gerou mais
expectativa no comércio global.
Na outra ponta da cadeia estão os países em desenvolvimento. Essencialmente importadores, eles enfrentam
inúmeros levantes populares, como os que irromperam no México9, no Senegal, no Marrocos e na Mauritânia. Afinal,
se o aumento da cesta básica é suportável nas economias desenvolvidas, em que a alimentação não representa
mais que 14% dos gastos, ele se torna inadministrável na África subsaariana, onde os custos com alimentos
consomem 60% da renda. Expostas, essas nações recorrem às subvenções quando suas finanças permitem. Em
setembro de 2007, por exemplo, o aumento do preço do pão imposto pelo sindicato dos padeiros provocou violentas
manifestações no Marrocos. Temendo que a revolta popular degenerasse em convulsão social, o governo chegou a
pedir aos padeiros que reduzissem o peso do produto, para evitar a alta. Por fim, o Estado preferiu suspender as
diversas taxas sobre a importação para aliviar o custo das empresas de moagem.
Mais um problema enfrentado pela África é o corte de ajuda alimentar vinda do exterior. “Se o preço do trigo aumenta,
o auxílio diminui. A generosidade dos países do Norte se expressa apenas quando eles dispõem de excedentes para
doação, que na verdade contribuem para baixar os estoques e manter os preços”, observa Marc Dufumier,
especialista em agricultura comparada. Os números publicados pelo Conselho Internacional de Cereais10 confirmam:
no decorrer de 2005-2006, 8,3 milhões de toneladas de grãos foram enviadas como ajuda alimentar. Já em 2006-
2007, foram 7,4 milhões e este ano o auxílio deverá cair para 6 milhões de toneladas.
As revoltas relacionadas à fome, portanto, não estão perto de se extinguir: uma vez que a oferta não irá satisfazer a
demanda, os preços continuarão sua escalada. Para reverter a tendência, os governos poderiam recorrer ao
“imperativo do consumo cidadão”, como sugerido por um colunista tunisiano11, e pedir à população que ingerisse
menos cuscuz, menos pão e, principalmente, menos carne. Mas o apelo tem poucas chances de obter apoio nos
países onde a dieta básica começa a melhorar. É o caso da China, onde o Ministério da Saúde está estimulando as
mulheres a consumirem laticínios para absorver mais cálcio. Ora, quando falamos de leite, falamos não só de gado,
mas também de oleaginosas e cereais para sua nutrição.
É preciso contar igualmente com o fenômeno especulativo. “Seja um agente da volatilidade dos mercados agrícolas,
não um mero espectador”, aconselhava, no final de 2007, a Financeagri, empresa francesa de informações
especializada em matérias-primas agrícolas. Esta oferta comercial ilustra a revolução em curso nos mercados de
futuros agrícolas. Inicialmente criados para cobrir o risco da variação de preços, eles se tornaram terrenos de caça
apreciados pelos especuladores.
Os índices agrícolas, que refletem a evolução das cotações, fazem sucesso. No momento em que os mercados de
cereais dispararam, quintuplicou o volume de capitais gerados pelos fundos de investimentos cotados sobre os
produtos agrícolas europeus, passando de 156 milhões de dólares para 911 milhões de dólares, segundo a Barca,
filial do banco britânico Barclays12. De acordo com a mesma fonte, os empréstimos contraídos dos fundos investidos
nos mercados agrícolas americanos deram um salto ainda maior, multiplicando-se por sete entre o primeiro e o
último trimestres de 2007.
Volatilidade das cotações
Um outro fator seduziu os investidores: a convergência entre os preços dos produtos energéticos e dos cereais
destinados à indústria de biocombustíveis. Nessa atmosfera eufórica, os agricultores também procuram maximizar
seus lucros. Na França, muitos contratos não foram honrados, especialmente para a entrega do trigo moído e da
cevada, já que os produtores venderam a colheita diretamente aos industriais. Uma atitude bem compreensível,
reconhece Philippe Mangin, presidente da Coop de France13: “os camponeses nunca depararam com tamanha
volatilidade e as cotações triplicaram em quinze meses! É de perder a cabeça, principalmente após três anos de
vacas magras”. Por isso mesmo, segundo as estimativas do Conselho Internacional de Cereais, a superfície de trigo
plantada na França deverá aumentar em 4% em 2008.
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“A terra é um investimento promissor”, assegura o investidor britânico Jim Slater. Após ter feito fortuna no mercado de
metais, ele redirecionou seu foco para a agricultura, privilegiando os investimentos nos programas de irrigação. As
vastas estepes da Sibéria Oriental, na Rússia, e as terras negras da Ucrânia estão bem cotadas por sua vocação
para desenvolver cultivos em larga escala, embora um pouco prejudicadas pelo clima continental, principalmente
pelas geadas. Em contrapartida, na América do Sul, a Argentina e o Brasil podem transformar o pampa e as florestas
em terras cultiváveis. “Ainda há ganhos de produtividade dos quais as pessoas nem se dão conta”, estima Marc
Dufumier. Sem dúvida, as duas nações guardam o futuro da agricultura de exportação, onde os custos de produção
são mais baixos que na Europa e nos Estados Unidos e os rendimentos ainda estão incipientes. Mas, como sempre,
o desenvolvimento pode trazer conseqüências perversas, como a generalização dos organismos geneticamente
modificados (OGM), onipresentes na Argentina, e o aumento do desflorestamento no Brasil.
Para as nações mais afetadas pelo choque dos cereais, a opção é mais radical ainda: passa por um verdadeiro
renascimento de sua agricultura. O Mali já está a salvo, graças aos investimentos na produção de arroz no delta do
rio Níger e ao bom senso dos cultivadores de algodão. Decepcionados com a deterioração do preço oferecido pelas
empresas algodoeiras, eles utilizaram os insumos alocados a essa cultura para suas sementes de sorgo ou de
milho. No vizinho Burquina Faso, os campos de soja também substituíram vantajosamente o produto.
Assim, o aquecimento dos cereais colocou novamente em pauta a questão do papel da agricultura no
desenvolvimento. Ironia da história, o Banco Mundial, que contribuiu para enfraquecer os cultivos nos países ao impor
a liberalização da economia, incluiu esse setor no centro dos esforços da luta contra a pobreza em seu relatório de
2008.
Dominique Baillard é jornalista da Radio France Internationale.
1 Ler Jean Ziegler, disponível em: http://www.monde-diplomatique.fr/2008/03/ZIEGLER/15658
2 Entre 1770 e l870, esse setor reduziu sua participação na renda nacional de 45 % para 14 %.
3 O estudo, publicado em dezembro de 2006, está disponível em http://statistics.defra.gov.uk/reports/foodsecurity/default.asp. Com o
aquecimento das matérias-primas agrícolas, a segurança alimentar tornou-se um tema recorrente nas intervenções das autoridades políticas
britânicas. Ler Jenny Wiggins e Javier Blas, Financial Times, Londres, 24 de outubro de 2007.
4 Eric Holtz-Giménez, “Les cinq mythes de la transition vers les agrocarburants”, Le Monde Diplomatique, junho de 2007.
5 Se for aplicada a lei sobre energia, votada pelo Congresso americano no final de 2007, será necessário injetar de 100 a 110 milhões de
toneladas de milho nas destilarias em 2008, contra os 81 milhões de toneladas no ano anterior. Sabendo que os Estados Unidos produzem 40
% do milho mundial e cerca da metade do volume exportado, qualquer variação de sua colheita abala o mercado internacional de cereais. O
Brasil é o segundo maior fabricante, mas baseia sua produção na cana-de-açúcar.
6 O trigo é consumido em quase todas as partes. Suas propriedades físicas fazem dele o único cereal panificável: ele é insubstituível na
fabricação do pão, das massas e do cuscuz. É o cereal mais comercializado e seus maiores exportadores são os Estados Unidos, a União
Européia, a Austrália, o Canadá e a Argentina.
7 “Perspectivas da alimentação 2007”, Roma, 7 de junho de 2007, disponível em: http://www.fao.org
8 No decorrer de março, o governo de Cristina Kirchner anunciou o aumento em quase 9% do imposto sobre as exportações de soja, girassol,
milho e trigo. Considerando que o aumento dos preços da soja (70% em 2007) justifica essa alta, o governo pretende util izá-lo para redistribuir
as riquezas para os setores mais pobres. A medida provocou duas semanas de greves e protesto de grandes proprietários e agricultores,
acarretando uma carestia organizada de alimentos nas cidades.
9 Ler Anne Vigna, “Sem torti l las nem empregos”, Le Monde Diplomatique Brasil, edição 9.
10 O Conselho Internacional de Cereais agrupa todos os signatários da Convenção sobre o comércio de cereais. Ele realiza duas sessões
ordinárias a cada ano, geralmente em junho e em dezembro. Tem o papel de fiscalizar o cumprimento da convenção, de debater a evolução e
a orientação dos mercados cerealistas mundiais e de assegurar o acompanhamento das modificações feitas nas políticas cerealistas nacionais e
suas eventuais implicações. Ver o site http://www.igc.org.uk/fr/aboutus/default.aspx
11 Larbi Chennaoui, La presse de Tunisie, Tunis, novembro de 2007.
12 Estudo trimestral The Commodity Refiner consagrado aos mercados de matérias primas. Disponível em
http://www.barx.com/commodities/research/index.shtml
13 Acessar http://www.cooperation-agricole.coop/sites/cfca
Palavras chave: agricultura, comércio exterior, plantações