Um Olho Sem Rosto (Eliene Robert Moraes)
-
Upload
cardes-pimentel -
Category
Documents
-
view
5 -
download
0
description
Transcript of Um Olho Sem Rosto (Eliene Robert Moraes)
Um olho san rosto p o r E liane R o b e r t M oraes
“ E scre v o para apagar m e u n o m e ” — a a firm agáo d e G e o r g e s
B ata ille assum e um sen tid o quase p ro g ra m á tico q u a n d o o livro
e m qu estao é Historia do olho. P u b licad a o rig in a lm e n te em 1928,
sob o p s e u d ó n im o de Lord A u c h , a n o ve la q u e m arca a estréia
d o escrito r n o m u n d o das letras expressa, c o m o n e n h u m o u tro
te x to seu, esse d esejo de apagam ento, já q u e busca dissim ular de
fo rm a obstin ada os tragos q u e p e rm ite m id e n tificar o verd adeiro
n o m e d o autor.
N a o sao poucas, aliás, as referencias autobiográficas presentes
em Historia do olho. A co m egar pelo fato de q u e o livro fo i p ro d u -
zid o a partir de circunstancias p u ram en te existenciais. A té 1926, a
p rod u gao escrita de B ataille se resum ia a alguns artigos assinados
na qualidade de arquivista da B ib lio te ca N a c io n a l e a urna única
p u b licagao literária: as Fatrasies, recriag ao de p oem as m ed ievais
em francés m od ern o , q u e apareceram entáo n o sexto n ú m ero da
revista Revolution surréaliste. U rn a virada significativa nesse quadro
o co rre ria n o d eco rrer d o m esm o ano, q u an d o o aspirante a escri
to r fo i estim ulado p o r seu psicanalista, A d r ie n B o re l, a co lo ca r no
papel suas fantasias sexuais e obsessóes d e infancia.
7
A p rim eira tentativa resu ltou no liv ro W .-C ., cu jo m an u s
c r ito o a u to r acab ou d e stru m d o sob a justificativa de q u e se
tratava d e “ urna literatura u m tan to lo u c a ” . A o ad m itir m ais
tarde q u e esse te x to sin istro “ se o p u n h a v io le n ta m e n te a toda
d ig n id a d e ” , B ata ille o d efin iu c o m o “ u m g r ito d e h o rro r (hor
ror de m in i, n ao de m in h a devassidao, mas da cabeqa de filósofo
e m q u e d esd e en tao ... C o m o é triste!)” . O tratam iento h e te ro
d o x o de B o re l, em b o ra já desse provas de sua eficacia , ainda nao
p erm itia ao e scrito r re co n cilia r o filó so fo e o devasso q u e a b ri-
gava d en tro de si.
B ata ille estava entao prestes a co m p letar trinta anos de idade,
v iv id o s em con stan te estado d e crise. Era u m h o m e m d iv id id o:
de u m lado, a v id a desregrada, dedicada ao jo g o , á b eb id a e aos
bordéis; d e o u tro , as profun das in q u ie t a r e s filosóficas, fo m e n ta
das sob retu do p o r suas leituras dos m ísticos, além d e N ie tzsch e e
Sad e.T al cisáo só fazia realzar a solidao de urna angustia q u e cres-
cia na m esm a m ed id a de suas obsessoes fún ebres, relacionadas á
v io le n c ia eró tica e ao éxtase relig ioso. O scilan d o , c o m o ele m es-
m o d efin iu , “ en tre a depressao e a excitaqao e x tre m a ” , passou a
freqü en tar o co n su lto rio de B o re l a partir de 1926, á procura de
urna saída para seus impasses existenciais.
A in terven cao d o psicanalista fo i decisiva. O p ró p rio B ataille
c o n fid e n c io u em entrevista a M ad e le in e C h ap sa l, realizada em
i 9 ó i ,p o u c o antes de m o r r e r :“ F iz urna psicanálise q u e talvez nao
tenha sido m u ito orto d o xa, p o rq u e só durou u m ano. E u m p o u -
co breve, mas afinal tran sfo rm o u -m e do ser co m p letam en te d o en -
tio q u e era em algu ém relativam ente v iável” . E , ao aludir ao papel
lib ertador do processo analítico, co m p le to u :“ o p rim eiro livro que
escrevi, só p u d e escrevé-lo depois da psicanálise, sim , ao sair déla.
E ju lg o p o d e r d izer que só lib e rto dessa m aneira p u d e co m egar
8
a escrever” .1 C o m efeito , apesar da brevidade d o tratamiento, sua
repercussáo foi tao intensa que, ao lo n g o de toda a vida, o autor
e n v io u sistem áticam en te os p rim eiros exem plares de seus livros
ao psicanalista, c o n fe rm d o a ele u m lugar de p rim azia entre os
seus interlocu tores. N a o lh e faltavam razóes para tal gesto.
A re da cao de Historia do olho — em p reen d id a em m eados de
1927 — rep resen tou para B ata ille urna especie de cura. P rova disso
sao as págin as fin áis d o livro , q u e se o fe re ce m , na qu alid ad e de
e p ílo g o , c o m o u m e q u iv a le n te tex tu a l do fim d o tratam iento:
trata-se de urna a u to b iografía , q u e p ro p ó e urna in te r p r e ta d o da
narrativa, e sta b e lece n d o p o n to s de co n ta to en tre o im a g in á rio
n ro b iliza d o na n o ve la e certas circu n stan cias da v id a d o autor.
O su jeito q u e fala nessas “ R e m in is c e n c ia s ” — intitu ladas “ C o i n
c id en cia s” na p rim eira versao da o b ra — já nao é m ais o n arrad or
e sim urna p rim eira pessoa q u e vasculha a in fan cia , p o vo ad a d e
fantasias obscenas e m arcada pela figura de um pai c e g ó e para
lítico , o q u e co rresp o n d e p erfe ita m en te á b io grafía de B ataille.
“ P erceb en d o todas essas relacóes” , d iz ele e m certo m o m e n to
dessa exeg ese a u to b io g ráfica , “ cre io ter d e sco b e rto um n o vo e lo
q u e liga o essencial da narrativa (considerada n o seu co n ju n to )
ao a co n te c im e n to m ais grave da m in h a in fan cia ” . A o e x p o r tais
relacóes, ñas quais se re c o n h e c e a m ed iacao do trabalho analítico,
0 escrito r tom a co n scie n c ia de q u e suas rem in iscen cias pessoais
“ só p u d e ra m to m a r v id a d efo rm ad as, irr e c o n h e c ív e is ” , o u seja,
tran sform ad as e m ficijáo. A e fic á c ia m a io r d o tra tam en to d e
B o re l fo i, sem d ú vid a , a de d eixar a v id a repercu tir — e transbordar
— n a literatura, d eslo can d o as obsessoes de B ata ille para a escrita,
1 M a d e le in e C h ap sal, “ G e o rg e s B a ta ille ” , in O s escritores e a literatura (Lisboa:
D o m Q u ix o te , 1986), p. 200.
9
d erivan d o suas fantasias para o texto . A cr ia fá o de Historia do olho
m arcou o fim de u m silen cio e o n ascim en to de u m escritor.
A análise p erm itiu , p o rtan to , urna d escoberta essencial para
Bataille: a de que as narrativas, co n fo rm e sugere M ic h e l Surya, “ se
elaboram ñas paragens mais próxim as da existencia. Dessa existen
cia, elas d ize m qual é a determ inaqao profunda, ao m esm o tem po
q u e operam u m sabio trabalho de descentram ento e de m etam o r-
fo se” .2 U rn a ve z vislum brada a possibilidade “ libertadora” de trans
fo rm ar a substancia da vida em m atéria textual, o autor p o d e dar
curso livre aos excessos de sua im ag in afáo , realizando n o p lano
sim b ó lico as estranhas exigen cias que o atorm entavam . Essa desco
berta — q u e está na o rig e m da Historia do olho — abriu para Bataille
os cam in óos de urna escrita sem reservas. A fin al, c o m o ele p ró p rio
diria m uitos anos mais tarde: “ sendo inorgánica, a literatura é irres-
ponsável. N ad a pesa sobre ela. P od e dizer tu d o ” .3
T u d o o q u e d iz a Historia do olho, p o ré m , é assinado p o r Lord
A u c h , e n ao p o r G e o rg e s B ata ille . E tal fo i a im p o rtan cia desse
p se u d ó n im o para o e scrito r q u e ele n u n ca re iv in d ico u a au to ria
d o livro, reiteran d o seu d esejo o rig in a l de an on im ato . A té o fim
da v id a , B a ta ille jam ais co n se n tiu que a n o ve la fosse p u b licad a
sob seu n o m e , o q u e só v e io a a co n te ce r e m e d ifó e s postum as.
P or certo , nao se d eve n e g ligen cia r as razóes profissionais e
sociais q u e o b rig a va m o a u to r a reco rrer a u m p seu d ó n im o . N a
c o n d ifá o de fu n c io n a r io p ú b lic o , trab a lh an d o na B ib lio te c a
2 M ic h e l Surya, Georges Bataille, la mort á Voeuvre (Paris: G allim ard, 1992), p. 126.
3 G eo rg e s B ata ille , La Littérature et le M al, in Oeuvres completes (Paris: G allim ard ,
1 9 7 9 )» to m o IX , p. 182.
IO
N a c io n a l, sua reputaqáo estaria am eacada caso lh e fosse im p u tad a
a p a te rn id a d e de u m livro eró tico , ed itad o e v e n d id o c la n d esti
n am en te . A ssim , ao apagar seu n o m e da n o ve la , ele ten tava se
p recaver co n tra eventuais acusacóes de u ltraje á m oral.
M as, para além dessas razóes, havia outras, n ao m en os im p o r
tantes. U m texto c o m tantas chaves autob iográficas tam b ém e x i-
g ia o an o n im ato , so b retu d o pela qualidade das revelaqóes n e le
contidas. A ssum i-las pu b licam en te p o d eria significar, p o r exem p lo ,
u m rom p im en to c o m o irm áo q u e solicitara o sig ilo de G eo rg es
c o m re la fá o aos constrangedores eventos da infancia descritos ñas
“ R e m in is c e n c ia s ” : a d ifíc il c o n v iv e n cia c o m o pai tab ético q u e
v iv ia em “ estado de im u n d ície fétid a” , a co m etid o p o r freqüen tes
“ acessos de lo u cu ra ” , as tentativas de su icid io da m áe, que “ acabou
p erd en d o ig u a lm en te a razáo ” ... E ve n to s traum áticos, dos quais
B ataille a firm o u “ ter saído d eseq uilibrado para a v id a ” , em carta
ao m esm o irm ao a q u e m con fid en ciaria já na m aturidade: “ o q u e
a co n teceu há quase cin q üen ta anos ainda m e faz trem er e nao m e
su rp reen d e que, u m dia, eu nao ten h a p o d id o en co n tra r o u tro
m e io de sair disso senao m e expressando an ó n im am en te” .4
O p s e u d ó n im o represen tava, p o rta n to , nao só a d issim u la-
fa o da id en tid ad e , mas so b retu d o urna “ saída” para os im passes
existen ciais d o escritor: “ sair d isso” significava superar os traum as
de in fan cia , o q u e su p u n h a u m trabalho c o m p le x o de e la b o ra
d lo v isan d o a aceitar e tam b é m a ultrapassar, de a lgu m a fo rm a , a
h isto ria fam iliar. T ratava-se, pois, de apagar o n o m e tran sm itid o
p e lo pai, se m c o n tu d o d e ix a r de re c o n h e c e r a sua m arca. Para
tan to, era p reciso criar u m o u tro n o m e.
4 C ita d o e m M a r ie -M a g d e le in e Lessana, D e Borel á Blanchot, une joyeuse chance,
Georges Bataille (Paris: P auvert-F ayard , 2001), p. 53.
O n o m e Lord A uch — d iz B ata ille n u m fra g m e n to de 1943,
s ig n ifica tiv a m e n te in titu la d o W .-C . e ap resen tad o c o m o prefá-
c io á Historia do olho — “ fa z re fe re n cia ao h á b ito de u m dos
m e u s am igos: q u a n d o irritad o , e m v e z d e d ize r “ aux chiottes/”
[á latrin a], ele abreviava, d iz e n d o “ aux d i ” . E m in g lés, Lord sig
n ific a D e u s (ñas E scritu ras): Lord A u c h é D e u s se a liv ia n d o ” .
A e x p lic a g á o n a o p o d e ria ser m ais clara: o p s e u d ó n im o , a lu -
d in d o á figura su p rem a d o Pai, dram atiza o pai real q u e “ urinava
e m sua p o ltro n a ” e “ ch egava a cagar ñas calcas” , se gu n d o a des-
cr ig a o d o autor. E , e x a ta m e n te p o r ser capaz d e a firm a r e ao
m e sm o te m p o n e ga r a heran ga p atern a, tal estratégia d eterm in a
a p ersp ectiva d o livro.
O q u e o c o r r e nessa su b stitu igáo — d o pai real á im ag em
correlata de D e u s — é a passagem d o caso pessoal de B ataille para
u m o u tro plan o, im pessoal, q u e e x c e d e o p articu lar para abarcar
urna circu n sta n cia c o m u m á esp ecie h u m an a. A ssim , m ais do
q u e a lu d ir a urna c o n tin g e n c ia in d ivid u al, a figura im ag in ária de
Lord A u c h v e m am p liar a e x p e r ie n c ia v iv id a p e lo escritor, co n -
fe r in d o -lh e urna gravidade universal. E precisam en te p o r realizar
tal am p liagáo q u e o p s e u d ó n im o da Historia do olho p o d e ser
co n sid e ra d o urna m áscara, so b re tu d o se levarm o s em co n ta o
sig n ificad o q u e o a u to r atribu i a esse artificio.
Para B ata ille , as m áscaras represen tam “ urna o b scu ra en car
n a d o d o ca o s” : sao fo rm as “ in o rg á n ica s” q u e se im p ó e m aos
rostos, n ao para o cu ltá -lo s , m as para acrescentar-lhes u m sentido
p ro fu n d o . N a q u alid ad e de artific io s q u e se so b re p ó e m á face
h u m an a, c o m o o b je tiv o de to rn á -la in um an a, essas representa
r e s “ fa ze m de cada fo rm a n o tu rn a u m espelho am eagad o r do
e n ig m a in so lú v e l q u e o ser m o rta l v is lu m b ra d ian te de si m es
m o ” . P o r essa razáo, c o n c lu í o escritor, “ a m áscara c o m u n ica a
12
in ce rte z a e a am eaga de m udan gas súbitas, im p rev isíve is e tao
im possíveis de su p ortar q u a n to a m o r te ” .5
N a o é d if íc il p e rc e b e r, a p a rtir dessas c o n sid e ra g ó e s , as
razóes m ais p rofu n d as q u e p o d e m ter m o tiv a d o o v e rd a d eiro
au to r a se va ler d o n o m e Lord A u c h para assinar o livro . T u d o
su gere q u e n ao teria sido p ossível, para ele, expressar o h o rro r
dos even tos infan tis a partir de urna p ersp ectiva, d igam os, realista:
era p reciso lan gar m ao de u m artific io q u e acentuasse o caráter
fa n ta sm á tico desse h o rro r, de fo rm a a revelar — B a ta ille diria:
“ en carn ar” — seus aspectos m ais am eagadores.
S e n d o “ in o rg á n ic a ” , assim c o m o a literatu ra, a m áscara d o
p s e u d ó n im o v e io a fo r n e c e r u m “ e s p e lh o ” cap az de p ro je ta r e
m u ltip lica r as terríve is e x p e rie n c ia s do autor, a p o n to d e to rn á -
las co m u n s a to d a a h u m a n id a d e, e v id e n c ia n d o o e n ig m a q u e
fun da a co n d ig á o m ortal de cada h o m e m . S o b a m áscara trágica
de Lord A u c h , a Historia do olho se o fe re ce c o m o urna a u to b io
grafía sem rosto.
E scrita em p r im e ira pessoa, a n o ve la d e B a ta ille apresen ta as
con fissóes de u m jo v e m n arrad or q u e insiste e m se m an ter, ao
lo n g o de to d o o tex to , n o p lan o da m a io r o b je tiv id a d e . T u d o é
d ito de fo rm a d ireta , c o m urna clareza q u e raram en te c e d e a
e n u n cia d o s esqu ivos. N a d a há, n o d e se n v o lv im e n to da h isto ria ,
q u e d esvie a le itu ra dos p rop ósito s centráis da narrativa: trata-se
de u m rela to se co e d esp o jad o , q u e e v ita ro d eio s exp ressivo s,
su b terfú g io s p s ic o ló g ic o s o u evasivas de q u a lq u e r o u tra o rd em .
S o b esse aspecto, o livro é rig o ro sa m en te realista.
5 G e o rg e s B ata ille , “ L e m a sq u e” , in Oeuvres completes (Paris: G allim ard , 1970),
to m o 11, pp. 403-406.
13
O realism o da n a rra f áo contrasta, p o ré m , c o m a irrealidade
das cen as narradas. A co m eq a r p e lo s p erso n agen s, q u e v iv e m
n u m u n ive rso á parte, o n d e tu d o — o u quase tu d o — a c o n te ce
se gu n d o os im p erativos do desejo. R e c é m -s a íd o s da in fan cia, o
narrad or e sua com parsa S im o n e p arecem ainda habitar o m u n d o
p e rv e rso e p o lim o rfo das crian zas, para q u e m nada é p ro ib id o .
Suas brincad eiras sexuais assem elham -se a travessuras infantis, as
quais se en treg am c o m urna fú ria q u e n ao c o n h e c e obstáculos.
M a rce la e os outros adolescen tes q u e se ju n ta m a eles p arecem
ig u a lm e n te en tregues aos cap rich o s e extravagancias que g o v e r-
n a m as p e r ip é c ia s da d u p la , guiadas apenas pelas e x ig e n cia s
in tern as da fantasia. E m sum a, c o m o o b serv o u Vargas L losa, os
jo v e n s q u e p ro ta g o n izam essas cenas “ nao p are cem seres desper-
tos, m as son ám b u los im ersos e m urna prisáo o n írica que lhes dá
a ilusao da lib erd a d e” .6
D esse m u n d o soberan o, os adultos nao particip am . M e sm o
q u a n d o ap arecem , estao sem pre á m arg em dos a co n te c im e n to s ,
c u jo se n tid o fre q ü e n te m e n te lhes escapa. A ssim o c o rre , p o r
e x e m p lo , c o m a m áe de S im o n e , qu e, ao su rp reen d er a filha
q u e b ra n d o ovos c o m o cu , ao lad o de seu inseparável c o m p a -
n h eiro , se lim ita “ a assistir á b rin cad eira sem d izer palavra” . M ais
tarde, essa m esm a m u lh e r “ de o lh o s tristes” , “ e x tre m a m e n te
d o c e ” e de “ v id a e x em p lar” testem u n h a outras travessuras lú b r i
cas dos p erso n agen s e m a b so lu to silen cio , d esv ian d o o o lh ar e
va g an d o p ela casa c o m o se fosse u m fantasm a.
C o m efe ito , a p rese n ta dos adultos é m uitas ve zes m arcada
p o r urna certa fan tasm agoría , so b retu d o p o rq u e eles raram ente
6 M a r io Vargas Llosa, “ E l p la cer g la cia l” , in G eo rg e s B ataille , Historia del Ojo
(B arcelo n a:T u sq uets, 1986), p. 30.
14
té m d ire ito á palavra. É o q u e a c o n te c e ain da c o m o pai d o
n arrador, d e scrito c o m o “ o tip o p erfe ito d o g en era l c a q u é tic o e
c a t ó l ic o ” , cu ja a u to r id a d e , na ve rd a d e b e m p o u c o e fic a z , se
e x e rc e tá o -s o m e n te á d istan cia , sem ja m a is to m a r o p r im e ir o
p la n o da n arrativa . M e s m o Sir E d m o n d , o lo rd e in g lé s q u e
d e se m p e n h a o p a p e l de c ú m p lic e e p a tro c in a d o r das ú ltim as
aventuras dos dois jo v e n s , co stu m a assistir a tu d o de lo n g e , c o m o
u m voyeur q u e p o u c o p a rtic ip a dos a c o n te c im e n to s . O m u n d o
in fan til da Historia do olho é d e c id id a m e n te egoísta e, c o m o tal,
fe c h a d o e m si m esm o.
Vale le m b ra r q u e esse m u n d o n ao é m u ito d iferen te d a q u e -
les d escrito s n os c o n to s d e fadas, q u e c o lo c a m em c e n a p e rs o
n ag en s o n ír ic o s , v iv e n d o e m u n ive rso s ig u a lm e n te fe c h a d o s ,
o n d e tu d o a c o n te c e p o r en can tam en to . A a p ro x im a fá o to rn a -se
ainda m ais p e rtin e n te q u a n d o reco rd am o s q u e g ran d e p arte da
n o ve la se d esen ro la em ce n ário s tam b ém caros aos g én ero s fe é
r ico s — e m esp ecial aq u eles co n to s de fadas as avessas q u e sao as
n ovelas g óticas.
Praias desertas, castelos m urados, parques solitarios, m an sóes
rodeadas d e jard in s agrestes, florestas agitadas p o r gran d es te m -
porais: as paisagens q u e ab rig a m os p rotagonistas da n o ve la g u a r-
dam p rofu n d a afin idade c o m a atm osfera lú g u b re dos co n to s de
terror. Sao lugares secretp s e quase sem p re desabitad os q u e o
n arrad or e S im o n e v isitam na p en u m b ra da n o ite , e m m e io aos
re lám p ago s e as ven tan ías de furiosas tem p estades. A e x e m p lo
dos cen ário s e x tern o s, os in teriores se revelam ig u a lm e n te sin is-
tros, c o m o os co rred o res frios e escuros d o asilo o n d e M a rce la é
in tern ada, a b rin d o -se para urna in fin idade de quartos, o u ainda a
austera sacristía da an tiga igreja de S e vilh a , q u e ev o ca urna se n -
su alid ad e fú n e b re . Tais e sp a to s so m b río s c o n tr ib u e m para a
15
irrealidade das cenas, reiteran d o a d im en sáo fan tasm agórica des
sa narrativa glacial.
Sao essas ev id en cias q u e levam V argas L losa a ju s ta a firm a-
cao de q u e “ na Historia do olho a d iferenpa entre fu n d o e fo rm a
é flagran te e d ete rm in a a sob eran ía d o te x to ” .7 A o b je tiv id a d e
da narrativa realm en te contrasta c o m o caráter in só lito e e x c e s -
sivo das fantasias q u e va o sendo, urna a urna, relatadas, p ro d u zin -
d o urna cu riosa d ialética en tre co n tin e n te e c o n te ú d o . A palavra,
prosaica e rac io n a l, se ju s ta p ó e urna substancia fantástica, cuja
v io le n c ia p o é tic a co lo ca em risco q u alq u er ten tativa de lu c id e z .
R e s id e ai, sem d ú vid a , a o rig in a lid ad e d o te x to de B ataille, que
co n se g u e ser, ao m esm o te m p o , u m fr ió d o c u m e n to de obses
soes sexuais e u m fabu loso c o n to de fadas noir.
P o r certo , esse trapo fu n d am en ta l da n o ve la trad uz o traba
lh o de u m im a g in á rio que, d an d o v o z as d em an das do desejo ,
recusa a ló g ic a da co n trad ip ao para dar lu g a r as fo rm u lap ó es
am b ivalen tes q u e sao próp rias das fantasias eróticas. A ssim c o m o
a narrativa reú n e p rin c ip io s a n tag ó n ico s, esse im a g in á rio tam
b é m o p era a fim de fu n d ir e le m e n to s distintos, p ro p o n d o in es
peradas associapóes entre as apóes dos p erson agens e os fe n ó m e
n os da n atu reza , para criar urna m etáfora soberana. N o cen tro
dessa m etáfora está a m orte.
A fusao c o m o co sm o s é urna tó p ica re co rre n te e m Historia do
olho, e as passagens em q u e é tem atizad a co rre sp o n d e m as m ais
h erm ética s da n o ve la , b e ira n d o a ausen cia de sentido. E m c o n
traste c o m a clareza da narrativa, nesses m o m e n to s as palavras se
7 Ibid., p. 26.
16
soltam , n av egan d o á d eriva para, n u m a inesperada sin ton ía entre
fu n d o e fo rm a , expressar a situacao viv id a p elos p ersonagen s.
Q u a n d o a d u p la de am ig os d e ix a a casa de rep o u so o n d e
M arce la está in tern ada, v ia jan d o de b ic ic le ta em p len a m ad ru g a
da, ñus, exau stos e “ n o d esespero de te rm in a r aq u ela escalada
p e lo im p o ssíve l” , o n arrad or associa sua alucin apao ao “ p esad elo
g lo b a l da so cied a d e h u m an a, p o r ex em p lo , c o m a terra, a atm os
fera e o c é u ” . N e ss e estado de “ ausen cia de lim ite s ” , a m o rte
aparece c o m o a ú n ica saída para seu erotism o trá g ico : “ urna v e z
m o rto s S im o n e e eu , o u n ive rso da nossa v isao p essoal seria
su b stitu ido p o r estrelas puras, realizand o a fr ió o q u e m e parecía
ser o fim da m in h a devassidao, u n ía in can d escen cia g e o m é tr ic a
(co in c id e n cia , en tre outras, da v id a e da m o rte , d o ser e d o nada)
e p erfe ita m en te fu lg u ra n te ” .
M ais tarde, d e ita d o na gram a ao lad o de sua co m p an h eira ,
c o m os o lh o s ab erto s so b re a V ia L áctea , “ estran h o ro m b o de
esp erm a astral e d e u rin a celeste cavad o na abobad a craniana das
co n ste la p ó e s” , o n a rra d o r v e a si m esm o re fle tid o n o in fin ito ,
assim c o m o “ as im agen s sim étricas de u m ovo, de u m o lh o fu ra-
d o o u d o m e u crán io d eslu m b rad o, ad erid o á p e d ra ” . A o se dar
co n ta dessas co rresp o n d en cias cósm icas, ele in tu i “ a esséncia e le
vada e p e rfe ita m e n te p u ra ” de urna “ devassidao q u e n ao suja
apenas o m e u c o rp o e os*m eus p en sam en to s, m as tu d o o q u e
im a g in o em sua presenpa e, sob retu do, o u n iverso estrelado...”
R e v e la -s e ai u m d esejo de in tim id a d e c o m o u n iverso q u e
lanpa o excesso a seu p o n to de fu ga. T u d o a co n te c e c o m o se, n o
lim ite , as apóes dos jo v e n s devassos respondessem a urna e x ig e n
cia su p e rio r, a n ó n im a, in scrita ñas im u táveis leis da n atu reza .
A ssim sen d o, a in saciab ilid ad e da devassidao teria c o m o c o n s e -
q ü én cia ló g ic a a desin tegrapao dos o b je to s eró tico s, in c lu in d o os
17
p ró p rio s p erson agen s: “ c o m o rosto co n to rc id o sob o e fe ito do
sol, da sede e da e x a s p e r a d o dos sentidos, p artilh ávam os en tre
nós aqu ela d e liq ü escén cia m oro sa na qual os e lem en to s se desa-
g re g a m ” , c o n fid e n c ia u m deles na arena de S evilh a . D e liq ü e s
cé n cia q u e su p ó e a p assagem do estado só lid o para o líq u id o ,
p ro d u zin d o a dissolugáo dos e lem en to s em jo g o — nesse caso, os
co rp o s d o n arrad or e de S im o n e.
A e x e m p lo d o q u e o c o r r e c o m o a rtific io d o p seu d ó n im o ,
essas cenas tam b é m d eslocam os protagonistas da n ovela para u m
p lan o im p essoa l, o p e ra n d o a passagem de suas c o n tin g e n c ia s
p articu lares para urna o rd em universal. N essa passagem , os in d i
v id u o s sao d esp o jad o s de q u a lq u e r id e n tid a d e , seja so cia l ou
p s ic o ló g ica , e m fu n gáo de urna ex p e rie n c ia p u ram en te orgán ica ,
anim al, q u e su p ó e urna relaca o ín tim a e im ediata c o m o m u n d o.
T al é a “ a u sen cia de lim ite s ” a q u e se en treg a o n a rra d o r da
n ovela , e v o ca n d o u m estado de im an én cia n o cosm os, qu e, par-
tilh ad o p o r to d o s os seres v iv o s , só p o d e se revelar ao h o m e m
q u an d o ele esco n d e seu rosto.
P o r isso, se a afirm agao de B ataille — “ escrevo para apagar
m e u n o m e ” — assum e u m sentido p rog ram ático quan do o livro
em questáo é Historia do olho, isso nao o co rre apenas p o r con ta
dos disfam es do autor. O v io le n to processo d e despersonalizagáo
que é levad o a te rm o ao lo n g o da narrativa en volve todos os pla
nos da novela, d eterm in an d o desde a construgáo dos personagens
até o fo c o narrativo para a tin gir a p róp ria eco n o m ía do texto .
A d im en sao desse p rop ósito p o d e ser dada pela com paragáo
entre o te x to o rig in a l da novela, de 1928, e a versao c o rr ig id a p o r
B ataille — editada c o m a data de 1940 mas p u blicad a m esm o em
1945. Todas as nuangas e os artificios de lin g u a g e m da p rim eira
versao seráo sistem áticam en te subtraídos na segunda, num a ascese
18
q u e p ro d u z u m relato m ais o b jetivo , fr ió e sob retu do in d e te rm i
nado. A e c o n o m ía de adjetivos e p ro n o m e s tam b é m c o n c o rre
para essa d ep u ragáo q u e nivela a narrativa, co n ta m in an d o igu a l
m en te a figura do narrador.
D o c o n fro n to en tre os dois te x to s , p e rc e b e -s e urna clara
in te n g á o d o a u to r n o se n tid o de e v ita r a p rim e ira p essoa d o
n arrad or, m uitas v e ze s su b stitu in d o seus en u n cia d o s p o r urna
v o z in d efin id a , sustentada e m terceira pessoa. D isso resulta u m
c e rto a u to m atism o das agóes d o p e rso n a g e m q u e, p ro g re d in d o
n o d e c o rre r da narrativa, ten d e a d e sc re v é -lo quase c o m o u m
m e ca n ism o im p essoal. A lh e io s ao esp irito , seus atos já n ao lh e
p e r te n c e m . C o n f o r m e p e rd e e m in te r io r id a d e p s ic o ló g ic a ,
p o ré m , e le gan h a e m in te r io r id a d e o rgán ica : seu “ fu n c io n a -
m e n to ” é cada v e z m e n o s co m a n d a d o p e la c o n s c ie n c ia e m ais
p e lo c o r p o que, l ib e rto de todas as restrigóes, se ab an d on a ao
re g im e in ten sivo da m atéria.
U rn a v e z apagados os tragos q u e d istin gu em o rosto, restam
apenas os órgáos, en tregues á con vulsáo in tern a da carne, o p eran
do n u m c o rp o que p rescin de da m ed iagao d o espirito. E o q u e se
v e rifica tam b ém c o m o g lo b o ocu lar: se ñas prim eiras b rin ca d e i-
ras sexuais entre o n arra d o r e S im o n e o o lh o ain da cu m p re a
fu n gao eró tica da visao , p ro jeta n d o -se em diferentes o b je to s, já
na te rrív e l o rg ia fin a l da n o v e la e le se apresenta tá o -so m e n te
c o m o resto m aterial de urna m utilagao a servigo d o sinistro ero
tism o da dupla. N a q u alid ad e de m ero o b je to , o sten ta n d o sua
co n d igáo fin ita, o ó rg á o passa pela derradeira m etam orfose, an u n
cian d o a p róp ria d esin tegragáo em m e io á atm osfera funesta das
últim as cenas do livro.
P or tal razáo, Historia do olho n ao p o d e ser a a u to b iografía de
B ataille, n e m m esm o do narrador — é urna au to b iografía d o olho.
19
N e la , ev id en cia-se urna co n cep p ao im p ied osa do sexo, q u e insis
te e m afirm ar a p recaried ad e da m atéria para c o n c lu ir q u e toda
e x p e r ie n c ia erótica está fun dada em u m p rin cip io de dissolupáo.
“ O se n tid o d o ero tism o é a fusáo, a supressáo dos lim ite s” ,
c o n firm a o a u to r n u m d e seus ú ltim o s escrito s, re itera n d o a
co n ce p ^ á o grave e so m b ria q u e trad uz a angustiada devassidao
dos p erso n ag en s da n o ve la . A u n ia o dos co rp o s c o rre sp o n d e a
v io la ca o das iden tidades: nesse processo, as form as in d ivid uáis se
fú n d e m e se co n fú n d e m até o p o n to de se torn arem indistintas
urnas das outras, d isso lven d o -se na ca ó tica im en sid ao do cosm os.
O u , c o m o co m p le ta B ata ille e m O erotismo, n u m a passagem que
p o d e ria p e rfe ita m e n te resu m ir seu p r im e iro livro: “ O sen tid o
ú ltim o d o erotism o é a m o r te ” .R
8 G e o r g e s B ata ille , L ’Érotism e, in Oeuvres completes (Paris: G allim ard , 1987),
to m o x , pp. 129 e 143.
H istoria do olho