Uma psicanálise brasileira - Fábio Herrmann

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Uma psicanálise brasileira - Fabio Herrmann O criador da teoria dos campos explorou o método da psicanálise como ruptura de campo e desenvolveu a noção de absurdo como regra que estrutura a psique. novembro de 2005 Leda Herrmann Fabio Herrmann construiu ao longo dos últimos 35 anos um pensamento psicanalítico original. Sua obra escrita compreende um sistema crítico-heurístico que se serviu do questionamento à repetição dos modelos psicanalíticos vigentes como forma de ampliar o próprio alcance da psicanálise. A criação de uma psicanálise brasileira foi sua bandeira política durante os anos de militância na burocracia institucional do movimento psicanalítico - nas décadas de 80 e 90, passou pela presidência da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Federação Psicanalítica da América Latina e por diversos postos na hierarquia científica da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). A teoria dos campos, como ficou conhecido seu pensamento, difundiu-se nos meios intelectuais do país e vem agregando produção escrita de colegas, principalmente na forma de teses e dissertações acadêmicas. Não é fácil resumir seu pensamento, expresso em dez livros e uma centena de artigos, porque ele desenvolve uma idéia simples - "simples" no sentido da química - que percorre toda a obra sem, no entanto, evidenciar-se como elo que a estrutura. A teoria dos campos foi desenvolvida em São Paulo como crítica a uma afluente psicanálise clínica, cuja produção, entretanto, pouco ou nada avança para além da repetição, em forma detalhista, dos mesmos temas consagrados pelas escolas psicanalíticas dominantes - a freudiana e a klein- bioniana. Sem constituir nova escola psicanalítica, essa teoria teve e tem como proposta o resgate do valor heurístico do fazer clínico para a formulação de conhecimentos, recuperando o que o autor chamou de idéia psicanalítica - o trabalho freudiano de incorporação para a ciência de seu tempo da exploração do sentido humano. Implicou essa tarefa outro resgate, o do método da psicanálise. O pensamento psicanalítico de Fabio Herrmann, quando vem a público no trabalho que apresentou para ingressar como membro da SBPSP, em 1976, já mostrava como são interdependentes suas duas idéias formadoras: a de método interpretativo como ruptura de campo e a de absurdo como as regras que estruturam o sentido humano, a psique, considerada seja do ponto de vista do indivíduo, seja do ponto de vista social. É essa a idéia simples que sua obra desenvolve - e que em minha tese de doutorado chamei de idéia de dupla face método/absurdo. A parte central de sua obra está representada pelos livros que compõem a série Andaimes do real, em que ele trabalha exaustivamente aquela idéia simples. São três livros que, desde 1979, conheceram várias versões. O primeiro traz o título de Andaimes do real: o método da psicanálise (Casa do Psicólogo, 2001, 3a edição). Parte da idéia de que o método da psicanálise escondeu-se na clínica enquanto seu desenvolvimento como conhecimento seguiu pelas teorias sobre o psiquismo e sobre a cultura, bem como pelos conjuntos de teorias e de técnicas para o tratamento de neuroses. É um ensaio de epistemologia interna da psicanálise que desentranha do fazer clínico seu procedimento metodológico de ruptura de campo - a liberação de sentidos possíveis e potencialmente alcançáveis, na forma de vórtice rodopiante das possibilidades constitutivas do sujeito. Dessa perspectiva o livro reordena noções centrais da psicanálise como inconsciente, interpretação, fantasia, transferência, e constrói conceitos metodológicos ordenadores desse fazer interpretativo - campo, relação, ruptura de campo, expectativa de trânsito, vórtice, luto primordial. O segundo livro é dedicado à psicanálise do cotidiano. Tem como propósito mergulhar no dia-a-dia dos homens para identificar sua construção. Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (Casa do Psicólogo, 2001, 3a edição) esmiúça o tecido de que é feito o cotidiano ou o "absurdo" (a que trata por "real"), penetrando as regras constitutivas de seus vários campos. Considera, então, o próprio resultado da construção desse cotidiano por meio da exploração da rotina, que cumpre função opacificadora das regras absurdas e permite aos homens compartilhar os sentidos daquele cotidiano definido como realidade. Mostra que tecido e resultado da construção do cotidiano impõem-se, no mundo em que vivemos, como uma psique do real, tomando do sujeito individual a maior parte de sua função de pensar e passando a pensar por ele. Para o sujeito, resulta pensamento em ato; é o ato que impõe um sentido ao pensar, invertendo a lógica que leva do pensamento ao ato. Retirado de nosso cotidiano o sentido interior do pensar emocional, é o ato que substitui o pensamento na sua função de representar homem e mundo. Andaimes do real: psicanálise da crença (Casa do Psicólogo, 2005, 2a edição) trata da

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7/27/2019 Uma psicanálise brasileira - Fábio Herrmann

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Uma psicanálise brasileira - Fabio HerrmannO criador da teoria dos campos explorou o método da psicanálise como ruptura de campo edesenvolveu a noção de absurdo como regra que estrutura a psique.

novembro de 2005 

Leda HerrmannFabio Herrmann construiu ao longo dos últimos 35 anos um pensamento psicanalítico original. Suaobra escrita compreende um sistema crítico-heurístico que se serviu do questionamento àrepetição dos modelos psicanalíticos vigentes como forma de ampliar o próprio alcance dapsicanálise. A criação de uma psicanálise brasileira foi sua bandeira política durante os anos demilitância na burocracia institucional do movimento psicanalítico - nas décadas de 80 e 90, passoupela presidência da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da FederaçãoPsicanalítica da América Latina e por diversos postos na hierarquia científica da AssociaçãoPsicanalítica Internacional (IPA). A teoria dos campos, como ficou conhecido seu pensamento,difundiu-se nos meios intelectuais do país e vem agregando produção escrita de colegas,principalmente na forma de teses e dissertações acadêmicas.

Não é fácil resumir seu pensamento, expresso em dez livros e uma centena de artigos, porque eledesenvolve uma idéia simples - "simples" no sentido da química - que percorre toda a obra sem,

no entanto, evidenciar-se como elo que a estrutura.

A teoria dos campos foi desenvolvida em São Paulo como crítica a uma afluente psicanálise clínica,cuja produção, entretanto, pouco ou nada avança para além da repetição, em forma detalhista, dosmesmos temas consagrados pelas escolas psicanalíticas dominantes - a freudiana e a klein-bioniana. Sem constituir nova escola psicanalítica, essa teoria teve e tem como proposta o resgatedo valor heurístico do fazer clínico para a formulação de conhecimentos, recuperando o que o autorchamou de idéia psicanalítica - o trabalho freudiano de incorporação para a ciência de seu tempoda exploração do sentido humano. Implicou essa tarefa outro resgate, o do método da psicanálise.

O pensamento psicanalítico de Fabio Herrmann, quando vem a público no trabalho que apresentoupara ingressar como membro da SBPSP, em 1976, já mostrava como são interdependentes suasduas idéias formadoras: a de método interpretativo como ruptura de campo e a de absurdo como

as regras que estruturam o sentido humano, a psique, considerada seja do ponto de vista doindivíduo, seja do ponto de vista social. É essa a idéia simples que sua obra desenvolve - e que emminha tese de doutorado chamei de idéia de dupla face método/absurdo.A parte central de sua obra está representada pelos livros que compõem a série Andaimes do real,em que ele trabalha exaustivamente aquela idéia simples. São três livros que, desde 1979,conheceram várias versões. O primeiro traz o título de Andaimes do real: o método da psicanálise(Casa do Psicólogo, 2001, 3a edição). Parte da idéia de que o método da psicanálise escondeu-sena clínica enquanto seu desenvolvimento como conhecimento seguiu pelas teorias sobre opsiquismo e sobre a cultura, bem como pelos conjuntos de teorias e de técnicas para o tratamentode neuroses. É um ensaio de epistemologia interna da psicanálise que desentranha do fazer clínicoseu procedimento metodológico de ruptura de campo - a liberação de sentidos possíveis epotencialmente alcançáveis, na forma de vórtice rodopiante das possibilidades constitutivas dosujeito.

Dessa perspectiva o livro reordena noções centrais da psicanálise como inconsciente, interpretação,fantasia, transferência, e constrói conceitos metodológicos ordenadores desse fazer interpretativo -campo, relação, ruptura de campo, expectativa de trânsito, vórtice, luto primordial.O segundo livro é dedicado à psicanálise do cotidiano. Tem como propósito mergulhar no dia-a-diados homens para identificar sua construção. Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (Casa doPsicólogo, 2001, 3a edição) esmiúça o tecido de que é feito o cotidiano ou o "absurdo" (a que tratapor "real"), penetrando as regras constitutivas de seus vários campos. Considera, então, o próprioresultado da construção desse cotidiano por meio da exploração da rotina, que cumpre funçãoopacificadora das regras absurdas e permite aos homens compartilhar os sentidos daquelecotidiano definido como realidade. Mostra que tecido e resultado da construção do cotidianoimpõem-se, no mundo em que vivemos, como uma psique do real, tomando do sujeito individual amaior parte de sua função de pensar e passando a pensar por ele. Para o sujeito, resultapensamento em ato; é o ato que impõe um sentido ao pensar, invertendo a lógica que leva dopensamento ao ato. Retirado de nosso cotidiano o sentido interior do pensar emocional, é o atoque substitui o pensamento na sua função de representar homem e mundo.

Andaimes do real: psicanálise da crença (Casa do Psicólogo, 2005, 2a edição) trata da

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compreensão da lógica do absurdo, estruturante das regras conformadoras do real humano. Osachados da ação do método na clínica apontam para o oferecimento ao paciente de novas auto-representações como o efeito terapêutico das sucessivas rupturas de campo. Esse livro explora aconstrução de uma noção daí decorrente, a representação como função defensiva face ao absurdo.Elabora o conceito de crença considerando as falhas a que ela pode estar submetida no

cumprimento de seu papel de sustentação das representações. Sem falhas, a crença modal, comouma dama discreta, não se manifesta - por exemplo, a crença no ar que se respira. Abalada pelasuspeita na representação que sustenta, manifesta-se no que chama de forma suspeita da crença,encontrada nas neuroses; ou, mais fortemente, como crença absurda, na forma débil que toma nodelírio. A crença é pensada clinicamente, na exploração que faz do processo interpretativo deruptura de campo como um fator de desestabilização da função da crença, por possibilitar osurgimento de outras auto-representações.

Os outros livros e a maioria dos artigos publicados continuam o desenvolvimento dessa idéia dedupla face constitutiva de seu pensamento. Clínica psicanalítica: a arte da interpretação (Casa doPsicólogo, 2003, 2a edição), aprofunda e sistematiza o pensamento clínico da teoria dos campos. Odivã a passeio: à procura da psicanálise onde não parece estar (Casa do Psicólogo, 2001, 2aedição) é uma coletânea de artigos cuja construção teó-rica filia-se aos desenvolvimentos doslivros da série dos Andaimes. Introdução à teoria dos campos (Casa do Psicólogo, 2005, 2a edição)

apresenta os temas tratados pela teoria dos campos. Por fim, A infância de Adão e outras ficçõesfreudianas (Casa do Psicólogo, 2002), A psique e o eu, e O que é psicanálise: para iniciantes ounão. (HePsyché, 1999) podem ser considerados explorações da idéia de dupla face,método/absurdo. De todos esses livros, é A infância de Adão, um volume de contos ensaísticos,que leva a sério o que Fabio Herrmann tratara no capítulo introdutório de A psique e o eu, quantoao caráter ficcional do conhecimento produzido em psicanálise. O pensamento organizador desselivro de contos é o de haver na idéia psicanalítica um lugar próprio onde se encontram, de mãosdadas, ficção e ciência.Finalmente é preciso citar um texto inédito, que vem sendo escrito desde 2002 para aulas da PUC-SP e do Instituto de Psicanálise da SBPSP: "Da clínica extensa à alta teoria: meditações clínicas".Tem como foco o desenvolvimento da concepção de alta teoria para as formulações a respeito dométodo psicanalítico. Fabio Herrmann denuncia a clínica padrão - a que toma as regras de settingcomo responsáveis pela eficácia terapêutica do processo psicanalítico - e conceitua a clínica

extensa, desenvolvida tanto no consultório particular, como em instituições, ou na própria análiseda cultura, pautada no fazer metodológico da psicanálise.

A idéia que o autor persegue aqui é a de que a clínica qualificada como padrão é um caso especialda clínica extensa, se dispensar o fetichismo da técnica e superar a superstição do setting.

Sem se desviar do método psicanalítico, Fabio Herrmann vaticina para a psicanálise o cumprimentode sua vocação freudiana original de se transformar numa ciência da psique, dando-lhe, noentanto, a tarefa de alterar o padrão epistemológico da ciência contemporânea para que nela possacaber.