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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA ESTÉTICA Ludi Luswarghi Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis Moreira Ribeirão Preto 2013

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA ESTÉTICA

Ludi Luswarghi

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis Moreira

Ribeirão Preto

2013

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LUDI LUSWARGHI

RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA ESTÉTICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Departamento de Direito Privado e de Processo

Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo para a obtenção do

título de bacharel em Direito.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis

Moreira

Ribeirão Preto

2013

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

Luwarghi, Ludi

Responsabilidade civil do médico na cirurgia estética / Ludi

Luswarghi. -- Ribeirão Preto, 2013.

134 p. ; 30cm

Trabalho de Conclusão de Curso -- Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Orientadora: Marta Rodrigues Maffeis Moreira.

1. Responsabilidade civil. 2. Relação médico-paciente. 3.

Cirurgia estética. 4. Obrigação de meio. 5. Obrigação de

resultado. Presunção de culpa. I. Título

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Nome: LUSWARGHI, Ludi

Título: Responsabilidade civil do médico na cirurgia estética

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito

de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção do

título de Bacharel em Direito.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof.(ª) Dr.(ª)___________________________ Instituição:____________________________

Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________

Prof.(ª) Dr.(ª) __________________________ Instituição:____________________________

Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________

Prof.(ª) Dr.(ª)___________________________ Instituição:____________________________

Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________

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Aos meus pais.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que de alguma forma contribuíram para que este trabalho pudesse ser

realizado, em especial à minha família.

À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis Moreira, cuja dedicação foi

fundamental para o desenvolvimento do tema.

Aos docentes e funcionários da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto.

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RESUMO

O presente estudo analisa a responsabilidade civil do médico cirurgião estético, buscando,

para tanto, assinalar quais são os elementos e objetos essenciais constantes de todo contrato

médico e como carregam consigo especificidades aplicáveis aos contratos cujo escopo está no

embelezamento do paciente. Outrossim, procura apontar qual a natureza jurídica da

responsabilidade civil médica e o enquadramento normativo dado aos profissionais liberais

numa relação de consumo, tal qual lançada no Código de Defesa de Consumidor, se objetiva

ou subjetiva a responsabilização quando empreendem cirurgias estéticas. Por fim, objetiva

identificar qual a obrigação médica assumida na formação do contrato sob a ótica da

diferenciação entre obrigações de meio e de resultado, bem ainda, as possíveis consequências

práticas e jurídicas dessa diferenciação, como inversão do ônus probatório e presunção de

culpa, utilizando-se, assim, de estudos doutrinários sobre o tema, sem perder de vista o

tratamento conferido pela jurisprudência nacional ao tema.

Palavras-chave: Responsabilidade civil. Relação médico-paciente. Cirurgia estética.

Obrigação de meio. Obrigação de resultado. Presunção de culpa.

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ABSTRACT

This thesis aims to analyze the civil responsibility of the aesthetic surgery, seeking to do so,

note what are the essential elements and objects contained in every physician contract and

how carry with specifics applicable to contracts whose scope is the beautification of the

patient. Furthermore, seeks to highlight the legal nature of the medical liability and the

normative framework given to professionals in a consumption relationship, as it fixed in the

Consumer Protection Code, whether objective or subjective accountability when execute

cosmetic surgeries. Finally, aims to identify the obligation assumed in medical contract

formation from the perspective of differentiation between obligations known as “duty of best

efforts” and “duty to achieve a result”, and also the possible practical and legal consequences

of this differentiation, such as inversion of the burden of proof and presumption of fault, using

thus the doctrinal studies on theme, without losing sight of the treatment given to the subject

by national jurisprudence.

Keywords: Civil responsibility. Doctor-patient relationship. Aesthetic surgery. “Duty of best

efforts” obligation. “Duty to achieve a result” obligation. Presumption of fault.

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Sumário

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................17

1. RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONABILIDADE CIVIL MÉDICA ......................................23

1.1 CONCEITO ............................................................................................................................................. 23

1.2 A RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL .............................................................................................. 25

1.3 BREVE RELATO HISTÓRICO ................................................................................................................... 26

1.3.1 Breve histórico da responsabilidade médica ................................................................................... 29

1.3.2 Histórico e modelo brasileiros ........................................................................................................ 31

1.4 ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE CIVIL ................................................................................................ 33

1.4.1 Responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva ................................................. 34

1.4.2 Responsabilidade civil contratual e extracontratual ....................................................................... 37

1.5 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ....................................................................................... 39

1.5.1 Conduta humana.............................................................................................................................. 40

1.5.2 A culpa ............................................................................................................................................. 42

1.4.2.1. Erro médico e culpa médica ....................................................................................................................44

1.5.2.2 A prova da culpa médica e perícias .........................................................................................................48

1.5.2.3 A inversão do ônus da prova do Código de Defesa do Consumidor .......................................................50

1.5.3 O dano ............................................................................................................................................. 51

1.5.3.1 Requisitos do dano reparável ..................................................................................................................52

1.5.3.2 Espécies de dano .....................................................................................................................................54

1.5.3.2.1 Dano material ou patrimonial .............................................................................................................54

1.5.3.2.2 Dano moral .........................................................................................................................................56

1.5.3.2.3 Dano estético ......................................................................................................................................58

1.5.3.3 Os danos material, moral e estético nas cirurgias médicas ......................................................................59

1.5.4 Nexo de causalidade ........................................................................................................................ 61

1.5.4.1 Excludentes do nexo de causalidade .......................................................................................................64

1.5.4.1.1 Culpa exclusiva da vítima...................................................................................................................64

1.5.4.1.2 Culpa concorrente da vítima ...............................................................................................................65

1.5.4.1.3 Culpa comum .....................................................................................................................................65

1.5.4.1.4 Culpa de terceiro ou fato de terceiro ...................................................................................................66

1.5.4.1.5 Caso fortuito e força maior .................................................................................................................66

2. A ATIVIDADE PROFISSIONAL MÉDICA E A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE .......................69

2.1 OBJETO DO CONTRATO E SUAS PARTES ................................................................................................. 69

2.2 NATUREZA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA ................................................................ 70

2.2.1 Tutela jurídica diferenciada do contrato médico ............................................................................ 72

2.3 NATUREZA DO CONTRATO DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE ................................................................. 75

2.4 DEVERES DO PROFISSIONAL NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E CONDUTAS INAPROPRIADAS ................ 76

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2.4.1 Dever de conselho ............................................................................................................................ 77

2.4.2 Dever de cuidado ............................................................................................................................. 78

2.4.3 Obtenção de consentimento ............................................................................................................. 79

2.4.4 Abstenção de abuso ou desvio de poder .......................................................................................... 82

2.4.5 Dever de sigilo ................................................................................................................................. 83

2.4.6 Condutas inapropriadas .................................................................................................................. 85

2.5 DEVERES E DIREITOS DO PACIENTE ....................................................................................................... 86

2.6 OBRIGAÇÃO DE MEIO E RESULTADO ...................................................................................................... 89

2.6.1 INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO ....................................................................................................... 100

2.6.2 INEXECUÇÃO CONTRATUAL ................................................................................................................ 103

2.6.3 Responsabilidade civil subjetiva com culpa presumida e responsabilidade objetiva .................... 105

3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ....................................................................................................... 109

3.1 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (TJSP) ................................................................. 109

3.2 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (TJRJ) .......................................................... 112

3.3 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (TJMG) .......................................................... 114

3.4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (TJRS) ................................................. 117

3.5 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ) .............................................................................................. 120

CONCLUSÕES ........................................................................................................................................... 125

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 129

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INTRODUÇÃO

O homem está em constante busca da plenitude do bem-estar físico e psíquico.

Entretanto, apesar de a preservação da vida e a integridade física serem bens tão caros nessa

empreitada, muitas vezes são acometidos por maus inerentes à própria existência humana,

como as enfermidades. Nesse contexto, surgem as figuras da Ciência Médica e dos seus

aplicadores, dentre eles os médicos, que atuam pela manutenção da saúde, seja

individualmente ou coletivamente considerada, tornando-se, pois, elemento central da própria

sobrevivência da espécie em expectativa.

Nesse contexto, o Brasil abriga uma proliferação exagerada de Faculdades de

Medicina: há aproximadamente vinte anos o país contava com 83 cursos médicos, ao passo

que em dezembro de 2012 já contava com 197. Trata-se de um crescimento elevado em

período de tempo relativamente escasso. Em comparação absoluta, são números maiores que

os dos Estados Unidos da América, país com 131 cursos, e até mesmo que os da China – cujo

contingente populacional supera a casa do bilhão –, que conta com 150. O Brasil só perde

para a Índia, cujas Escolas Médicas somam 272.1

Nada obstante, a criação dos novos cursos não foi feita de maneira equânime pelo

território nacional, respresentando a perda da possibilidade de melhora assistencial em áreas

ainda necessitadas, já que, segundo dados, a região Sudeste concentra 45% das Escolas

Médicas.2 Em números de médicos, as regiões Sul e Sudeste concentram 70% deles.

3

Não bastassem os números apresentados, em alguns casos, o prazo de formação do

curso é tão exíguo que faltam profissionais capacitados para o ensino, bem ainda laboratórios

e materiais necessários para a adequada formação dos profissionais. Somente em 2011, o

1 TREZE mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais. Disponível em:

<http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/12/treze-mil-medicos-sao-diplomados-ao-ano-mas-faltam-

profissionais.html>. Acesso em: 30 jul. 2013. 2 NÚMERO de cursos de Medicina no Brasil cresce 82% em duas décadas. Disponível em:

<http://www.institutosalus.com/noticias/medicina/numero-de-cursos-de-medicina-no-brasil-cresce-82-em-duas-

decadas>. Acesso em: 30 jul. 2013. 3 TREZE mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais, op. cit.

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Ministério da Educação (MEC) suspendeu 514 vagas oferecidas dentre dezesseis cursos de

bacharelado em Medicina, todas instituições privadas.4

No ano de 1991 foi criada a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do

Ensino Médico (CINAEM) – integrada por inúmeras entidades representativas em nível

nacional, como o Conselho Federal de Medicina – no intuito de coordenar e padronizar ações

para a aferição do perfil das escolas médicas brasileiras e a qualidade dos profissionais

formados a cada ano. Os resultados das avaliações, após a realização das três fases do projeto,

concluíram pela ausência de recursos suficientes para educação e pesquisas nas faculdades,

com predomínio de escolas com objetivos notadamente comerciais, além de comumente

contarem com infra-estruturas sucateadas e inadequadas e com a falta de preparação

específica dos docentes. Em relação à estrutura pedagógica, mencionaram a carga horária

insuficiente para ensino, pesquisa e extensão e predileção teórica em oposição às necessidades

práticas dos profissionais da saúde.5

A todo esse cenário de proliferação de Faculdades de Medicina de modo desmedido,

comprovadamente pela precariedade do ensino em inúmeras instituições, somam-se as más

condições de trabalho de que dispõem os profissionais da área da saúde, com hospitais

públicos a cada dia dispondo de menos recursos e materiais adequados, tornando-se, pois,

necessária ao sistema de saúde no país a atuação da iniciativa privada, a qual, como se sabe,

além de difícil acesso, nem sempre corresponde à qualidade esperada.

Ainda, o Poder Público credencia escolas médicas sem critérios técnicos adequados,

não fiscaliza empresas conveniadas e inflaciona o mercado com aproximadamente doze mil

médicos por ano sem preparo adequado e com o recebimento de baixos salários.6

Diante desse contexto, pode-se perceber toda uma situação que favorece o erro

médico, aumentando sensivelmente os danos e as vítimas dos procedimentos realizados por

esses profissionais.

Não se olvide que ultimamente tem-se observado um número cada vez maior de

demandas judiciais que visam apurar a responsabilidade civil do médico. Trata-se de tema

4 NÚMERO de cursos de Medicina no Brasil cresce 82% em duas décadas, op. cit.

5 GOMES, Júlio César Meirelles; DRUMON, José Geraldo De Freitas; FRANÇA, Genival Veloso de. Erro

médico. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p.83-84. 6 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.218.

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debatido por juristas, médicos e membros da sociedade na busca por, de um lado, amparar o

paciente, tutelando seu bem jurídico da saúde e, de outro, o médico, de modo a não

desestimular o exercício da profissão.

A discussão não é nova e já era tratada desde o direito romano, entretanto, o avanço

das ciências tem se acelerado de tal forma que o ordenamento jurídico precisa dar respostas à

situações nunca antes vistas, podendo-se afirmar, assim, existir interdisciplinariedade entre as

Ciências Médicas e as Jurídicas, sempre pautada na busca por respostas adequadas aos

conflitos existentes.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka lembra que o direito necessita trocar

experiências e se contextualizar com os demais saberes para corrigir meios e modos de

alcançar com êxito a própria função que exerce, qual seja construir uma sociedade livre, justa

e solidária, preceitos constantes da Consituição Federal. Trata-se do objetivo inerente à

humanidade em si: vida digna e paz social.7

É preciso lembrar, assim, que há muito o Direito não vê as condutas dos operadores da

Medicina como inquestionáveis, ideia ultrapassada que entendia todo e qualquer ato médico

acima de falhas e de maus resultados, mesmo que efetivamente tivesse desrespeitado preceito

fundamental da profissão.

Atualmente, outrossim, há demanda por médicos para a realização de procedimentos

que não estão ligados intrinsecamente ao aumento da expectativa de vida ou ao combate de

doenças, pelo menos não físicas, mas para que os pacientes obtenham um embelezamento,

melhorando aspecto que considerava desagradável ou indesejável: são as cirurgias estéticas.

A cirurgia estética, surgida como especialidade médica no período da Primeira Guerra

Mundial (1914 a 1918), era procurada pelos feridos da guerra que queriam corrigir e recuperar

funcionalidades do seu corpo e, ao mesmo tempo, representaria melhora na aparência, esta

que fora atingida em decorrência de ferimentos ocasionados pelas batalhas. A partir disso, seu

7 Cirugia plástica e responsabilidade civil do médico: para uma análise jurídica da culpa do cirurgião plástico.

In: Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: divisão jurídica, Bauru, n. 39, jan. a abr. 2004. Quadrimestral,

p.504.

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crescimento foi cada vez maior por aqueles que, saudáveis de corpo, procuravam-na com fins

de embelezamento.8

Para Teresa Ancona Lopez, a aparência externa é uma das dimensões da personalidade

e, na medida em que significa a maneira como cada um vê a si mesmo, principalmente em

relação à sociedade, é um dos elementos que a torna exclusiva, excepcional e distinta, fazendo

com que exista, em alguma medida, para si e para os demais.9

Tendo conhecimento dessa dimensão humana, nunca houve publicidade tão massiva

da mídia sobre os padrões de formato do rosto e do corpo a serem seguidos, acarretando a

constante busca pela beleza pessoal, seja por meio de produtos comercializados, de academias

de ginástica ou até mesmo da submissão a procedimentos cirúrgicos. Assim, as cirurgias

plásticas estéticas tornaram-se tema de grande relevância para as áreas médicas e da saúde,

necessitando, pois, trazer à tona o tratamento jurídico que deve ser dado às situações dessa

natureza.

Frise-se, outrossim, que as cirurgias plásticas vão muito além de mera decisão sobre

intervir no paciente ou não pelo simples melhoramento estético, mas envolve problemas

inerentes à técnica médica, à avaliação da situação física e psicológica do paciente, bem

ainda, a seu diagnóstico e prognóstico, principalmente diante das peculiaridades de

constituição fisiológica, além dos riscos e benefícios da operação.

Dessa maneira, assume peculiar importância a investigação sobre como se dá a

responsabilização civil dos médicos que assumem obrigações de natureza estética, ou seja, de

realizar procedimentos muitas vezes considerados invasivos em corpos rigorosamente

saudáveis pelo único objetivo de atingir o embelezamento e não o fazem ou, ainda, pior,

causam uma lesão estética não antes existente e sequer esperada, danos patrimoniais e até

mesmo morais aos pacientes.

Tendo-se em vista o contexto apresentado, o presente trabalho buscará traçar as

principais discussões referentes ao tema da responsabiliddade civil em cirurgias estéticas,

abordando, como marco inicial, a responsabilidade civil como um todo. De forma gradativa,

8 GOMES, Alexandre Gir. Responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas In: NERY

JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo:

Revista Dos Tribunais, Vol. V, 2010, p.742. 9 O dano estético: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.15.

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será analisado como se dá a responsabilidade civil dos médicos e suas pecualiaridades e,

concomitantemente, a responsabilidade dos profissionais nas cirurgias estéticas

Ao longo de todo o trabalho tentar-se-á reunir os principais doutrinadores que tratam

do assunto, entretanto, para uma melhor abordagem, também serão utilizados alguns julgados

pátrios para analisar como os tribunais têm tratado a questão, prezando-se, assim, por um

enfoque não apenas doutrinário, mas prático e jurisprudencial atual, conforme poderá se

observar em capítulo específico destinado a esse estudo.

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1. RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONABILIDADE

CIVIL MÉDICA

1.1 Conceito

Conceituar a responsabilidade não é tarefa fácil, pois, como lembra José de Aguiar

Dias, “toda manifestação humana traz em si o problema da responsabilidade”. A afirmação

remete à amplitude de aspectos que o termo pode assumir, dependendo da teoria filosófico-

jurídica adotada.10

Originariamente, a palavra “responsabilidade” tem a raiz no vocábulo

latino spondeo, resposta que deveria ser dada, no Direito Romano, para o aperfeiçoamento

dos contratos verbais (stipulatio) por aquele que se responsabilizava pela obrigação.11

Assim, ainda que de maneira incipiente, já é possível ligar a ideia de responsabilidade

ao surgimento de uma obrigação. Conclui José de Aguiar Dias, então: “A responsabilidade é,

portanto, resultado da ação pela qual o homem expressa o seu comportamento, em face desse

dever ou obrigação”.12

Rui Stoco, por seu turno, deixa clara a diferenciação entre obrigação e resultado:

aquela é o dever jurídico originário, ao passo que essa é o dever jurídico sucessivo, que

decorre da violação de uma obrigação, pois não se pode lesar outrem sem que insurja, no

campo civil, o dever de reparar.13

Nesse ponto, é necessário lembrar que o ordenamento jurídico se pauta pela máxima

do neminem laedere e do alterum non laedere, ou seja, de não lesar ninguém e não lesar

outrem, respectivamente, limites impostos à liberdade individual e que dão a noção de

responsabilidade.14

10

Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.3. 11

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil. 4. ed.

Rio de Janeiro: Freitas Bastos, Vol. V, 1995, p.159. 12

Op. cit., p.5. 13

Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,

p.114-115. 14

Ibid., p.114.

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Desse modo, duas possibilidades emergem: agir conforme estipula a obrigação, caso

em que não haverá decorrências no sentido de reparação da obrigação descumprida, já que

houve seu adimplemento; ou não agir conforme estipula a obrigação ou a norma, situação em

que existirão decorrências do descumprimento. Assim, considerando os integrantes da

sociedade em convivência harmônica, o ordenamento jurídico deve repudiar toda e qualquer

violação do neminem laedere pelos indivíduos, razão pela qual, se isso ocorrer, haverá

consequências ao infrator, passando a ser chamado, então, de “responsável”.15

Nesse aspecto, outrossim, frise-se que nem sempre o responsável é o infrator, o que

ocorre basicamente em três situações trazidas pelo Código Civil16

: responsabilidade por fato

de terceiros, pela guarda da coisa inanimada e pela causada pelos animais.17

A responsabilidade por fato de terceiros se origina, segundo Silvio Rodrigues, na ideia

de risco, pois se pais são os responsáveis por darem causa ao nascimento de seus filhos e se o

patrão se vale dos serviços do empregado, devem ser responsabilizados pelas suas condutas

perante terceiros.18

As hipóteses estão previstas no artigo 932, do Código Civil.19

Já a responsabilidade pela guarda da coisa inanimada se refere à responsabilidade

pelos danos causados pela própria coisa, por vício próprio e sem interferência humana ou por

ato irrefletido humano.20

Está normatizada nos artigos 937 e 938, do Código Civil21

.

Por fim, a responsabilidade pelo fato do animal é aquela gerada por um dano causado

pelo animal, sendo que seu dono ou detentor deverá responder, segundo Rui Stoco,

15

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade

civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, Vol. III, 2008, p.2. 16

BRASIL. Lei n. 10.406, 10.01.2002. 2002. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em:

< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 14 de abr. de 2013. 17

MAZEAUD, Henri et al. Traité theórique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et

contractuelle. 6. ed. Paris: Montchrestien, T. III, Vol. 2, 1983., p.23. 18

Direito civil: responsabilidade civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, Vol. 4, p.63. 19

São também responsáveis pela reparação civil:

I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes

competir, ou em razão dele;

IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins

de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia. 20

LOPES, op. cit., p.318. 21

Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier

de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.

Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou

forem lançadas em lugar indevido.

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objetivamente, podendo apenas se eximir se provar caso fortuito, força maior ou culpa

exclusiva da vítima.22

Está disposto no artigo 936, do Código Civil.23

É claro que a noção de responsabilidade não é tema exclusivamente jurídico, ligando-

se também a outros campos que envolvem relações entre o ser humano e ele mesmo ou entre

o ser humano enquanto coletividade. Trata-se do campo da moral, religião, dentre outros, que

trazem na ideia de um indivíduo responsável, por exemplo, aquele zeloso e cuidadoso nas

suas atitudes e no desenvolvimento de suas atividades e que arca com as consequências caso

aja de maneira diversa de um dever imposto.24

Entretanto, referindo-se à responsabilidade civil em seu sentido técnico e jurídico, não

há como dissociá-la do cometimento de uma ação danosa causada por um agente, em

desacordo com norma jurídica pré-existente e que, em virtude disso, deve sujeitar-se ao dever

de reparação insurgente pela sua ação ou omissão. Obrigar o agente causador de um dano a

repará-lo, segundo Sergio Cavalieri Filho, vai de encontro ao sentimento de justiça contido no

âmago de cada um.25

Dessa maneira, trata-se da violação de um direito particular, em que ocorre a quebra

do equilíbrio jurídico e econômico que antes existia entre agente e vítima. Deve, pois, haver

reestabelecimento desse equilíbrio, em que o agente deve, preferencialmente, restituir ao

lesado a situação que se encontrava anteriormente (status quo ante), ou, na impossibilidade,

realizar o pagamento de uma prestação pecuniária proporcional ao dano sofrido.26

1.2 A responsabilidade do profissional

22

Op. cit., p.985. 23

O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força

maior. 24

NADER, Paulo. Curso de responsabilidade civil: responsabilidade civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, Vol.

7, 2010, p.6 25

Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.13. 26

Ibid., p.13.

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26

A medicina, em virtude de sua alta especialiazação, importância e até mesmo risco que

pode representar para a sociedade, depende que o profissional esteja apto ao seu exercício.

Para tanto, necessita cumprir requisitos legalmente estipulados tais como a diplomação em

curso universitário reconhecido pelos órgãos estatais de controle e a inscrição no órgão

profissional, qual seja o Conselho Regional de Medicina.

Entretanto, mesmo existindo tamanho controle sobre o exercício da profissão, não se

afasta do profissional a possibilidade de responder civilmente (ou mesmo penalmente e

administrativamente) por danos que causar a outrem em virtude do não cumprimento de

regras profissionais que deveriam ser observadas.27

Assim, nos últimos anos, latente o aumento do número de demandas propostas no

judiciário a fim de verificar a ocorrência ou não de uma má conduta médica. Isso se dá em

razão de múltiplos fatores, tais como excesso de universidades destinadas à formação

acadêmica médica, situação que compromete a fiscalização governamental sobre tais escolas,

muitas vezes mal preparadas para desempenharem sua função; o acesso à Justiça, direito

entabulado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal28

/29

, cujos avanços têm sido

notórios, marcadamente pela implementação da Defensoria Pública; e, por fim, o maior

conhecimento que os cidadãos têm de seus direitos, mormente em razão da atuação da mídia,

atingidora da grande massa populacional.

Seja em razão de um fator ou de outro, o certo é que a atuação do profissional médico

deve ser questionada sempre que gerar um dano ao seu paciente, perscutrando-se se agiu em

conformidade com técnica recomendada ou não e se cumpriu seus deveres.

1.3 Breve relato histórico

27

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.368. 28

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 05.10.1988. 1988. Constituição Federal. Casa

Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-

12-1830.htm>. Acesso em: 17 de abr. de 2013. 29

A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

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27

A responsabilidade civil, historicamente, pode ser remontada aos povos preromânicos,

que mantinham como concepção de justiça a vingança privada, pois não existiam critérios a

serem observados, de modo que dependia das forças da vítima sofredora de uma lesão ou das

pessoas a ela realacionadas.30

Essa primeira ideia é muito ligada à primeira forma da justiça

privada, qual seja a vingança pessoal.

Entretanto, a partir da Pena de Talião, posteriormente adotada em linhas na Lei das

XII Tábuas, quebrou-se a lógica trazida anteriormente de ausência de parâmetros para

ressarcimento dos danos e, apesar de ainda integrar a sistemática da justiça privada,

estabeleceu-se a igualdade ou o mais próximo que disso se pudesse chegar entre o mal

causado à vítima e os efeitos gerados ao seu causador.31

Ainda não se utilizava o termo dano, mas iniuria, traduzida, em acepção ampla, como

o ato praticado sem que se tenha o direito e, em acepção estrita, como a modalidade particular

de um delito, ocorrido a partir da ofensa à integridade física ou moral de alguém. Nesse

sentido, a Lei das XII Tábuas carregava consigo penas de composição legal, estipulando

penas de pagamento que variavam entre os valores de 24 a 300 asses, dependendo do caso, e a

Pena de Talião, em que a vítima poderia causar ao ofensor a mesma lesão que havia sofrido.32

Não se pode deixar de considerar tais hipóteses como parâmetros reparatórios.

O instituto foi aprimorado e sofreu uma série de mudanças, passando a prever a

possibilidade de composição entre a vítima e o agente do dano a partir de uma maneira mais

racional e humana, pois poderia haver o pagamento em dinheiro para encerrar a disputa.33

Deveria haver, entretanto, concordância da vítima para a composição voluntária.34

A partir desse período, com a composição, o lesado passou a perceber que de nada

adiantaria ter retaliado o direito do lesionador, pois apenas duplicaria o efeito danoso, ou seja,

não bastasse a existência de um prejudicado, com a retaliação seriam dois. Ao longo dos anos,

assim, a vítima percebeu ser mais interessante entrar em composição com o autor do dano,

30

NADER, op. cit., p.47. 31

Ibid., p.47. 32

ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.587. 33

NADER, op. cit., p.48-49. 34

ALVES, op. cit., p.587.

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28

que recomporia o dano por intermédio da prestação da poena, com uma função de resgate da

culpa para o ofensor ganhar o direito de perdão do ofendido.35

Tal forma de composição, dita voluntária – uma vez que o ofensor e a vítima

estipulavam livremente como se daria a reparação – passou para uma fase de composição

tarifada, em que ambas as partes não mais se compunham de acordo com seus próprios

critérios, mas sim pelos estabelecidos em lei, de forma fixa, tarifada para cada tipo de

situação.36

Não há como negar o verdadeiro embrião37

que representou a Pena de Talião e suas

evoluções para a responsabilidade civil, entretanto, o surgimento da Lex Aquilia pode ser

apontado como um dos maiores avanços no tema, na medida em que estabeleceu a

proporcionalidade da pena cominada em relação ao dano causado38

. Tamanha foi sua

importância que, até os dias de hoje, a responsabilide civil extracontratual também pode ser

denominada de aquiliana.

A Lex Aquilia era dividida em três livros, constituindo o mais importante para

verificação da origim da responsabilidade civil o terceiro deles, porque nele continha o

denominado damnum injuria datum, responsabilidade gerada a partir de um dano causado em

coisa alheia a partir de delito autônomo. Segundo José Carlos Moreira Alves, para a

constatação da damnum injuria datum eram necessários três requisitos: a) a injuria (conduta

em desacordo com preceitos legais; b) a culpa (em entendimento amplo), traduzindo-se no

que se pode denominar de culpa em sentido estrito (negligência e imprudência); c) o damnum,

ou seja, o dano gerado pela conduta.39

Após o período romano, outros momentos históricos desde a Escola de Direito

Natural, passando pelo Código de Napoleão e pelo Código Civil Alemão, contribuíram para o

tema da responsabilidade civil. Entretanto, como se pôde ver, a Lex Aquilia é um dos

diplomas de maior relevância para o estudo da responsabilidade civil, pois trouxe os moldes

do instituto na atualidade.

35

DIAS, op. cit., p.26. 36

NADER, op. cit., p.48-49. 37

Ibid., p.49. 38

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.11. 39

Op. cit., p.589-590.

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1.3.1 Breve histórico da responsabilidade médica

O histórico da responsabilidade civil médica em muito se confunde com o próprio

surgimento da responsabilidade civil, pois, desde os primórdios, doenças e problemas ligados

à saúde acompanham o ser humano e, inicialmente, apesar de não existir ciência médica,

existiam estudos baseados na prática, que conferiam a certas pessoas a atividade e não delas

afastava possíveis sanções em caso de maus resultados do tratamento, pois não existia ainda a

ideia de responsabilidade, mas de vingança imediata pelo mau causado, sem qualquer

limitação. Foi somente com o desenvolvimento das ciências médicas e diante da importância

crescente da atividade ao longo dos anos que se passou para uma fase de elaboração de

normas capazes de enfrentar questões relativas às condutas profissionais dos médicos.40

O Código de Hamurabi delineou melhor a noção de responsabilidade médica, pois

determinou a compensação dos médicos nas atividades empreendidas, ao passo que, para os

profissionais, estipulou o dever de tomar o máximo cuidado no exercício da atividade para

que não incorressem em penas que, dependendo do caso, eram severas a ponto de determinar

a amputação de seus membros.41

Por seu turno, a Lei das XII Tábuas, com traços nitidamente baseados no Código de

Hamurabi, previa em seus artigos 219 a 226 que se em decorrência da intervenção cirúrgica o

paciente livre sucumbisse ou perdesse a visão, por exemplo, haveria a amputação da mão do

cirurgião; se escravo, deveria o médico pagar seu preço. Segundo o Talmude, livro que reúne

discussões históricas sobre lei e valores do judaísmo, apesar de num primeiro momento seu

povo viver sob a Pena de Talião, inclusive com pena de morte e de prisão perpétua sem

trabalhos forçados para os profissionais que causassem o óbito de seus pacientes, houve a

substituição dessas medidas pelas de multa, prisão e imposição de castigos físicos.42

40

CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro médico e o direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.6. 41

KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001,

p.38. 42

CROCE; CROCE JÚNIOR, op. cit., p.6-7.

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Já em Roma, destaca-se a Lei Cornélia, que passou a prever vários delitos que

poderiam ser praticados na atuação do profissional da medicina e as consequências deles

decorrentes.43

A Lex Aquilia, por seu turno, instituiu a responsabilidade do médico que desse causa à

morte do escravo e substituiu a pena de morte pelo exílio ou deportação ao profissional que

tivesse agido com negligência ou imperícia. Mesmo assim, a tolerância com os resultados das

intervenções médicas eram altas, provavelmente pela própria dificuldade da época na criação

de tipos legais.44

Assim, é possível perceber que já se tratava da possibilidade de imperícia por parte do

médico e sua responsabilidade perante o paciente lesado.

Na Grécia, iniciaram-se estudos mais profundos da medicina, simbolizados pelo

Corpus Hippocraticum, que, além de trazer elementos empíricos, traziam outros de natureza

racional e científica. A partir de então, lançou-se mão do entendimento de que não há

presunção da culpa do médico pelo simples fato de não ter alcançado resultado no tratamento,

mas ela deveria ser analisada e comprovada no caso concreto.45

No século XIII, a partir do surgimento das universidades, os médicos passaram a

receber após sua formação um documento representativo de um reconhecimento público da

preparação do profissional para o exercício da atividade. Com a prevalescência cada vez

maior desse caráter científico da medicina, surgiu a possibilidade de uma análise mais

objetiva da possibilidade de o profissional ter incorrido em erro ou imperícia.46

Na França do início do século XIX afastou-se quase por completo a responsabilidade

civil do profissional médico, salvo casos em excepcionais de falta grave e inescusável.

Entretanto a partir do emblemático caso acontecido em Dromfront – em 1825, relativo ao Dr.

Hélie, que amputou os dois braços de um nascituro, filho da Sra. Foucault, com dificuldades

para o nascimento e que acabou por sobreviver – operou-se uma verdadeira revolução na

jurisprudência francesa liderada pelo Procurador Dupin, culminando com a condenação do

médico pela falta grave cometida no exercício da profissão, mesmo após a Academia

43

KFOURI NETO. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.40. 44

CROCE; CROCE JÚNIOR, op. cit., p.8. 45

KFOURI NETO. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.42. 46

Ibid., p.43.

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31

Nacional de Medicina da França ter se posicionado contrária à condenação. Desde então,

passou-se a admitir a reparação da vítima acometida de imprudência médica.47

1.3.2 Histórico e modelo brasileiros

Num primeiro momento, era aplicável ao tema da responsabilidade civil, por força das

Ordenações do Reino, o próprio direito romano, pois subsidiário do direito pátrio para casos

omissos, conforme previa a Lei da Boa Razão.48

A primeira legislação pátria sobre o tema de responsabilide civil surgiu em 1830, a

partir da edição do Código Criminal49

, em conformidade com os ditames da Constituição, o

qual, a par de trazer matéria criminal, dedicou parte de sua atividade para trazer os moldes da

“satisfação” do dano causado pelo autor do delito.50

O fato da incipiência do tema no Brasil não foi motivo para a ausência de robustês do

diploma, o qual se revelou como uma verdadeira base presente até hoje na responsabilidade

civil.

O Código criminal de 1830 (...) transformou-se em um código civil e criminal

fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade, prevendo a reparação natural

quando possível, ou a indenização; a integridade da reparação, até onde possível; a

previsão de juros reparatórios; a solidariedade, a transmissibilidade do dever de

reparar e do crédito de indenização aos herdeiros etc.51

Alguns artigos merecem destaque, tamanha sua atualidade: “Art. 21. O delinquente

satisfará o damno, que causar com o delicto”

E também:

47

KFOURI NETO. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.45. 48

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p.11. 49

BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830, 16.12.1830. 1830. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos

jurídicos. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 17

de abr. de 2013. 50

PEREIRA, Responsabilidade civil, op. cit., p.11. 51

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva,

Vol. 4, 2008, p.9.

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32

Art. 22. A satisfação será sempre a mais completa, que fôr possivel, sendo no caso

de duvida á favor do offendido.

Para este fim o mal, que resultar á pessoa, e bens do offendido, será avaliado em

todas as suas partes, e consequencias.

Apesar de se tratar de um dos artigos mais relevantes do Código no tocante à

satisfação do dano, todo o capítulo IV revelou-se de suma importância para o tema, pois,

segundo José de Aguiar Dias, estabeleceu a reparação natural – se possível fosse –, garantias

da reparação, favorecimento do ofendido na solução de eventual dúvida, necessidade da

reparação integral – pelo menos até onde fosse possível –, preferência pela reparação em

detrimento do pagamento de multas e até a transmissibilidade aos herdeiros do dever de

reparar, dentre outras inúmeras inovações.52

Interessa ainda notar que essa primeira fase de surgimento do “dever de reparar”,

matéria tratada no âmbito cível, estava ligada ao Direito Penal porque surgia apenas

posteriormente à condenação penal ou, sem sua existência, em situações excepcionais53

, o que

só foi se alterar num momento futuro.

A primeira defesa de que a responsabilidade civil deveria se separar da

responsabilidade criminal só veio com os ideias de, primeiramente, Teixeira de Freitas e, num

segundo momento, Carlos de Carvalho, oportunidades em que, com a edição de nova

legislação, a referida satisfação não mais seria ligada ao aspecto criminal, mas seria tratada

pela legislação civil, surgindo, outrossim, diversos institutos pecualiares à responsabilidade

civil.54

A normatização posterior surgiu apenas em 1916, com a edição do Código Civil55

, que

adotou a teoria subjetiva para aferição da responsabilidade civil, a mesma utilizada até hoje e

que exige além do dano e nexo de causalidade entre este e conduta praticada pelo seu autor, a

52

Op. cit., p.33. 53

Art. 31. A satisfação não terá lugar antes da condemnação do delinquente por sentença em juizo criminal,

passada em julgado. Exceptua-se:

(...)

3º O caso, em que o offendido preferir o usar da acção civil contra o delinquente. 54

PEREIRA, Responsabilidade civil, op. cit., p.11. 55

BRASIL. Lei nº 3.071, 1º.01.1916. 1916. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em:

< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 18 de abr. de 2013.

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33

comprovação de que este agiu com culpa e dolo, elementos que serão melhor vistos

oportunamente.56

Outros marcos normativos foram o projeto de Código das Obrigações, formulado por

Caio Mário da Silva Pereira, que, apesar de não ter sido aprovado, contribuiu para o tema de

responsabilidade civil quando da alteração do Código Civil de 1916, em 1975.57

Não se olvide, entretanto, da edição do Código Penal de 1890, que pouco acrescentou

à redação anterior, e o de 1940, que preservou a relação existente entre a sentença

condenatória para fins de indenização e trouxe substancial avanço no campo processual, na

medida em que a sentença criminal poderia ser diretamente executada na instância cível em

desfavor do agressor.58

Ainda que a teoria subjetiva seja a mais comum e tradicional do direito brasileiro, é

preciso lembrar que surgiram outras, mormente em razão do aumento significativo dos casos

de danos, muitas vezes difíceis de serem caracterizados e, consequentemente, reparados, se

houvesse embasamento apenas nos elementos da teoria subjetiva. Dessa maneira, diante da

busca enveredada pelo ordenamento jurídico em traduzir em normas os anseios da sociedade,

surgiu a teoria da responsabilidade objetiva, que se desprende do elemento culpa para fins de

apuração da responsabilidade.59

1.4 Espécies de responsabilidade civil

Não há dúvida de que a responsabilidade civil, surgida a partir da existência

conflituosa da relação humana em virtude do descumprimento de uma norma por um agente

que deveria observá-la, compreende um todo indivisível. Entretanto, para melhor

56

GONÇALVES, op. cit., p.9. 57

DIAS, op. cit., p.35. 58

Ibid., p.35. 59

GONÇALVES, op. cit., p.9-10.

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34

compreensão dos temas abordados adiante, faz-se necessária a análise de algumas

classificações tradicionalmente criadas pela doutrina.60

1.4.1 Responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva

A responsabilidade subjetiva, regra geral e tradicional do ordenamento jurídico pátrio,

já adotada pelo Código Civil de 1916 e mantida pelo de 2002, é aquela que exige como

requisito fundamental, além da caracterização do nexo causal entre a conduta comissiva ou

omissiva causadora de um dano, a existência do aspecto subjetivo do agente, traduzida em

dolo ou culpa, ambos denominados de culpa em sentido lato. Dolo nada mais é do que a

vontande livre e consciente do agente em agir intencionalmente na produção do dano, ao

passo que a culpa em sentido estrito é a atuação danosa em razão de negligência, imprudência

ou imperícia pelo agente.61

Logo, de acordo com essa teoria clássica, a culpa é o principal pressuposto da

responsabilidade civil, sem a qual não haverá o dever de indenizar por parte do agente

lesionador. Interessante notar que, seja dolo ou culpa, sempre existirá a conduta voluntária,

entretanto, na primeira modalidade a própria conduta em si já é ilícita, pois o agente pratica a

ação intencionalmente para lesar outrem, ao passo que na segunda, a conduta é lícita sem

intenção de causar dano, mas produz resultados ilícitos, por acidente marcado pela falta

cuidados. Assim, ainda que o agente tenha agido sem a intenção de provocar o dano, poderá

responder pelo resultado lesivo a que deu causa, bastando, para tanto, a comprovação da

culpa.62

Por oportuno, importante destacar que não apenas necessariamente a culpa será

atribuída exclusivamente ao denominado lesionador, pois a culpa pelo evento danoso pode ser

atribuída também ao lesionado, ou, ainda, dependendo do caso concreto, tanto ao lesionado

60

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.13. 61

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.16. 62

Ibid., p.31.

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como ao lesionador, caso em que deverá ser verificada a parcela de culpa concorrente de cada

um para aferição do ônus da recomposição.63

Assim, feito o sopesamento do quanto cada um contribuiu para o evento, poderá ser

definido, proporcionalmente, o dever individual de indenizar.

Por outro lado, a teoria da responsabilidade objetiva, ou do risco, apresenta um

contraponto à teoria alhures exposta, na medida em que não leva em consideração aspectos

subjetivos (dolo e culpa) para o surgimento da responsabilidade, mas apenas busca a

comprovação do nexo de causalidade entre o dano e a conduta praticada pelo agente.64

Divide-se em duas: teoria do risco e teoria do dano objetivo. A primeira é

caracterizada pela existência de uma situação de perigo em função da atividade exercida para

a concretização do dever de indenizar gerado pela responsabilidade civil, como no caso em

que um funcionário, diante de situação de risco inerente à sua condição, deve ser indenizado

pelo seu empregador por danos sofridos em decorrência da atividade, independentemente de

culpa.65

É o que dispõe o artigo 927, parágrafo único, in fine, do Código Civil.66

A segunda, por sua vez, não está liga a uma ideia de dever objetivo de reparação em

virtude de situação de perigo, mas simplesmente à verificação do dano e, assim, sua

reparação, tornando-se, pois, desnecessária, a análise da culpa no caso concreto. É a que se

verifica no Código de Defesa do Consumidor67

, por exemplo, pelo qual, se houver frustração

do consumidor por uma expectativa legítima em relação ao produto ou serviço oferecido pelo

fornecedor, este tem o dever de indenizar, independentemente da análise do elemento

subjetivo da culpa.68

(...) A teoria da responsabilidade objetiva filiou-se essencialmente à ideia do risco,

de modo que, seguindo-se a linha de raciocínio proposta, aquele que provoca o dano

fica automaticamente obrigado à recomposição, independentemente da averiguação

concernente à culpa. Basta, por assim dizer, a ocorrência da lesão e a sua vinculação

63

MATIELO, Fabrício Zamprogna. Dano moral, dano material e reparação. 4. ed. Porto Alegre: Sagra

Luzzatto, 1998, p.31. 64

GONÇALVES, op. cit., p.31. 65

Ibid., p.10. 66

Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando

a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de

outrem. 67

BRASIL. Lei n. 8.070, 11.09.1990. 1990. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 03 de mai. de 2013. 68

GONÇALVES, op. cit., p.11.

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ao fato de que se originou, seguindo-se a isso a responsabilização do autor da

conduta lesiva, afastada a imputação subjetiva69

O Direito atua incisivamente naquelas situações em que há desigualdade, promovendo

o reequilíbrio das relações, isso porque busca permanentemente não só a igualdade formal

mas também a material, isômica, com fulcro em uma visão aristotélica de tratar desigualmente

os desiguais na medida da desigualdade, conforme o princípio da igualdade estampado no

artigo 5º, da Constituição Federal. Não é diferente a responsabilidade objetiva, surgida

exatamente com o propósito de proteger um lesado que não conseguiria produzir prova da

conduta culposa do agente ou, ainda, em razão da própria atividade e seus riscos produzidos

para terceiros.

Não se pode esquecer, ainda, que o direito tutela bens jurídicos e, nesse sentido, a

teoria busca resguardar o direito do lesado para não incorrer na possibilidade de garantir a

impunidade do transgressor à regra em contraposição à ausência de reparação do dano sofrido

pela vítima.70

Evidentemente, o instituto mencionado deve ser utilizado com muita cautela e somente

para situações não apenas especiais e que demandam uma maior proteção jurídica, mas

também com previsão legal para tanto, como dispoe o próprio artigo 927 do Código Civil, sob

pena de estar-se incorrendo numa verdadeira inversão à regra geral, exigente do requisito da

culpa ou dolo do agente.

Francisco Amaral elenca alguns casos expressos pela lei em que ser dará a

responsabilidade objetiva: artigos 933 (responsabilidade dos representantes legais pelos

representados, empregadores pelos prepostos, hoteleiros pelos hóspedes), 937 (ruínas de

edifícios) e 938 (queda ou lançamento de coisas – effusis et dejectis), todos do Código Civil,

nos acidentes de trabalho, acidentes de estrada de ferro e transporte coletivo, navegação aérea,

o dano ambiental, o dano nuclear, na prestação de serviços públicos e pelo fato do produto ou

serviço.71

Rubens Limongi França lembra, por fim, as quatro principais orientação pautadas pela

teoria objetiva, formando, assim, subteorias: a da prevenção, pautada na ideia de que o sujeito

69

MATIELO, op. cit., p.33. 70

MATIELO, op. cit., p.33. 71

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.589.

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está adstrito ao dever de indenizar até a existência de prova em sentido contrário; a da

repartição do dano, desvinculada da origem do dano, mas prezando sempre pela reparação,

seja pelo seguro ou pelo próprio Estado; a da equidade, ligada à condição econômica,

mitigadora em certa medida, pois da prevenção e, por fim; a do risco, ainda de muitas

variações, pretendendo ora responsabilizar o iniciador do risco, ora quem cria o risco e ora do

desvio de condições normais.72

1.4.2 Responsabilidade civil contratual e extracontratual

De acordo com essa classificação, os prejuízos causados por uma pessoa podem

derivar de duas situações distintas. A primeira, chamada de responsabilidade civil contratual,

deriva da pré-existência de uma relação contratual entre agente e vítima e, uma vez

descumprida no seu todo ou em parte, gera o dever de indenizar. Vale lembrar que há

situações que independem da formalização de um contrato, sendo que este se forma

tacitamente, como é o caso do passageiro que adentra ao ônibus para ser transportado para

determinado local; há a formação tácita de um contrato em que a prestadora de serviço se

compromete pela qualidade, manutenção e segurança do transporte em contraprestação a um

valor previamente estipulado. Se a viagem do passageiro for frustrada de alguma maneira,

ficará caracterizado o inadimplemento contratual e a empresa deverá ser responsabilizada

pelos prejuízos que causar ao usuário.73

Por outro lado, existe a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, situação

em que a responsabilidade não surge em razão da pré-existência de um contrato entre o agente

causador do dano e a vítima. A infringência, então, não é mais à cláusula ou acordo

estabelecido entre as partes, mas sim à disposição legal, em especial ao cometimento de ato

ilícito, previsto nos artigos 186 e 187, do Código Civil e o consequente dever de reparação,

lançado no artigo 927, caput, do referido codex.74

72

Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1988, p.876-877. 73

GONÇALVES, op. cit., p.31. 74

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.15.

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O Código Civil não trouxe qualquer elemento diferenciador entre as duas modalidades

apresentadas, apesar de existir a possibilidade de individualizá-las nos artigos 186 a 188 e 927

e seguintes para a responsabilidade extracontratual e 389 e seguintes e 395 e seguintes para a

contratual.75

Mesmo assim, importante frisar que a divisão não é estanque, pois os elementos

da responsabilidade civil, que é um todo unitário, sempre serão os mesmos nas duas

hipóteses, buscando-se, assim, nessa e nas demais classificações apenas a melhor

compreensão da matéria. Logo não há dúvida de que artigos como o 927, por exemplo, são

deveres impostos não apenas às relações extracontratuais, mas também às contratuais.

Em bem da verdade, há muitas críticas à essa subdivisão, respresentadas pela corrente

da tese unitária ou monista, extremada no sentido de entender a responsabilidade contratual

absorvida pela extracontratual, na medida em que, ao fim, não há como se negar que

inexecução contratual nada mais significa que um delito; e, também, pela corrente eclética,

que entende pela unidade fundamental entre as modalidades, a qual sustenta existirem apenas

diferenciações de ordem técnica.76

Miguel Maria de Serpa Lopes acredita na total impossibilidade de se admitir uma

divisão entre as duas modalidades, principalmente rebatendo o argumento de que a

responsabilidade contratual fica caracterizada pela pré-existência de uma relação contratual, o

que não ocorreria na extracontratual, pois nas duas há obrigações pré-existentes, sendo, então,

a diferença, meramente técnica, aderindo, então, à corrente eclética.77

Teresa Ancona Lopez se posicionou:

Na verdade, nos países como o nosso, onde a responsabilidade é fundamentada na

culpa, para que haja indenização é preciso que haja dano, mas que esse dano tenha

vindo de uma ação voluntária (dolo) ou de negligência, imprudência ou imperícia

(culpa em sentido estrito) e que seja também provado o nexo de causalidade entre

culpa e o dano. Ora, esses requisitos se aplicam tanto à responsabilidade contratual

como à aquiliana. A principal diferença técnica entre esses dois tipos baseia-se na

questão da presunção de culpa que haveria na responsabilidade contratual,

75

GONÇALVES, op. cit., p.27. 76

LOPES, op. cit., p.181. 77

Ibid., p.183.

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acarretando a reversão do ônus da prova e, portanto, deixando a vítima em posição

mais cômoda para conseguir sua indenização.78

De qualquer modo, três diferenças básicas podem ser tecidas às duas modalidades: a

primeira é quanto à existência de uma relação jurídica prévia entre o agente e a vítima,

conforme já explanado.

A segunda diferenciação diz respeito ao ônus da prova, conforme já lembrado acima.

Tomando-se por base que na responsabilidade civil contratual a violação decorre de um dever

positivo de adimplir e na extracontratual decorre de um dever negativo representado pela

vedação em não lesar outrem, tem-se que, nesta, a culpa ou o dolo do agente deve ser

demonstrado pela vítima, mas, por outro lado, naquela, a vítima deve demonstrar apenas o

descumprimento contratual, invertendo-se, assim, o onus probandi, pois caberá ao agente

provar, para não ser responsabilizado, caso fortuito ou força maior, ou, ainda, culpa exclusiva

da vítima.79

Por último, a terceira distinção remete à capacidade civil do agente lesionador, a qual é

restrita na responsabilidade civil contratual, na medida em que menores, em regra, não podem

se vincular contratualmente e, se o fizer, a convenção é nula e, consequentemente, sem efeitos

indenizatórios. Dessa maneira, a responsabilidade civil extracontratual seria muito mais

ampla, pois o prejuízo causado por um incapaz pode levar a reparação pelo patrimônio

daqueles que são legalmente encarregados da sua guarda.80

1.5 Pressupostos da responsabilidade civil

Segundo Sergio Cavalieri Filho, ato ilícito é um comportamento voluntário que viola

dever jurídico.81

Em sentido estrito, é o conjunto de pressupostos da responsabilidade, ou seja,

da geração do dever de indenizar, necessitando, para sua caracterização, do elemento culpa,

fundamental, outrossim, para a caracterização da responsabilidade subjetiva. Em sentido

78

Responsabilidade civil dos médicos. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Responsabilidade civil: doutrina e

jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1988, p.319. 79

GONÇALVES, op. cit., p.28. 80

Ibid., p.29. 81

Op. cit., p.12.

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amplo, ato ilícito significa apenas a conduta contrária ao ordenamento jurídico, violador do

Direito, fundamento básico para a responsabilidade civil objetiva.82

O Código Civil de 2002 assumiu uma postura dúplice, pois a responsabilidade

subjetiva, com base na culpa e com fulcro no ato ilícito em sentido estrito, está inserida em

seu artigo 927 (que remete aos artigos 186 e 187); ao passo que a responsabilidade objetiva,

desprovida da análise do elemento culpa e com base no ato ilícito em sentido amplo, está

disposta no parágrafo único do mesmo artigo e no artigo 187, que abarca um conceito mais

amplo de ato ilícito, independenetemente da culpa, mas presentes violação à boa-fé, bons

costumes e outros.83

Assim, não resta dúvida, por tudo já exposto, que responsabilidade civil nada mais é

do que a decorrência de um ato danoso violador de um dever de adimplir (contratual) ou de a

ninguém prejudicar (extracontratual), seja causado ou não por culpa do agente à vítima. É,

pois, a resposta jurídica ao ato ilícito. Dessa maneira, o dever de reparar é exigido pelo artigo

927 do Código Civil, que remete ao cometimento de um ato ilícito em sentido estrito, segundo

o artigo 18684

, do mesmo código.

Diante da simples leitura do artigo 186, do Código Civil, é possível verificar que, para

a caracterização do ato ilícito e seu consequente dever de reparação, quatro requisitos são de

suma importância e merecem atenção: a conduta (comissiva ou omissiva), a culpa do agente,

o dano (prejuízo) e o nexo de causalidade.

1.5.1 Conduta humana

Segundo Edmilson de Almeida Barro Júnior, conduta, em termos jurídicos, é todo e

qualquer ato humano que se deixa transparecer no meio social, devendo necessariamente

carregar consigo a voluntariedade e a livre consciência, é desprovida, portanto, de vícios ou

coações. Pode ser comissiva ou omissiva. A primeira se refere à ação em situação que o

82

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.10. 83

Ibid., p.11. 84

Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a

outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

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agente deveria se abster, já a segunda, à omissão para casos que tinha o dever de praticar o

ato.85

Não se olvide, outrossim, que, quanto à conduta omissiva, não constitui elemento apto

a gerar responsabilidade civil para qualquer um, mas apenas para aqueles que tinham o dever

inafastável de agir, como o policial, defensor da sociedade, ou o médico, que, sem risco

pessoal, deve agir para afastar perigo de vida de outrem.86

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona filho enfatizam que o cerne “da noção de

conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente

imputável, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz.”87

Assim, tendo o agente agido sem liberdade e consciência de atuação, ausente estará a

responsabilidade em qualquer de suas modalidades em razão da inexistência do pressuposto

essencial.88

Caio Mário da Silva Pereira deixa claro que a voluntariedade não se confunde com a

vontade livre e consciente de causar o dano, esta que é a definição do dolo. Já a

voluntariedade da culpa se resume na própria ação diante da consciência em realizar

determinado procedimento, lícito, mas que previsivelmente, nas suas consequências, viola

direito alheio.89

Por fim, como já asseverado quando da definição de responsabilidade civil, importante

destacar que o responsável pela reparação do dano, muitas vezes, não se confunde com aquele

que praticou o ato ilícito, mas incumbe a tarceiros nas hipóteses de responsabilidade por fato

de terceiros, pela guarda da coisa inanimada e pela causada pelos animais.90

Estão lançadas

nos artigos 932 – para ato de terceiro –, 936 – pelo fato do animal – e 937 e 938 – pelo fato da

coisa –, todos do Código Civil.

85

Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.57-58. 86

Ibid., p.58. 87

Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.27. 88

BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.58. 89

Responsabilidade civil, op. cit., p.39 e 77. 90

MAZEAUD et al., Traité theórique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle, op.

cit., p. 23.

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1.5.2 A culpa

A culpa, como pressuposto essencial da responsabilidade subjetiva, segundo Edmilson

de Almeida Barros Júnior, “é a conduta voluntária contrária ao dever de cuidado imposto pelo

Direito, com a produção de um evento danoso involuntário, porém previsto ou previsível”.91

Tendo o Código Civil obrigado o agente causador de uma dano mediante ação ou

omissão voluntária, por negligência ou imprudência, a repará-lo, é necessária, para a

caracterização da responsabilidade subjetiva, a verificação do elemento subjetivo,

consubstanciada na culpa em sentido lato.92

Segundo Álvaro Villaça Azevedo, a culpa carrega consigo duas faces: a subjetiva,

representada pela imputabilidade do agente, ou seja, deve ter discernimento para a prática da

conduta; e a face objetiva é puramente a violação do bem jurídico tutelado.93

Culpa, em sentido lato, pode significar dolo ou culpa em sentido estrito. Dolo é a

vontade livre e consciente do agente em produzir o resultado danoso, ele quer o dano e atua

no intuito de criá-lo.94

João de Matos Antunes Varela ainda ressalta que para a caracterização do dolo, além

da vontade do agente em produzir o resultado lesivo, é necessário outro requisito, qual seja a

presença do elemento intelectual, representado pelo necessário conhecimento, pelo agente,

das “circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou da norma tuteladora de

interesses alheios e a consciência da ilicitude do facto”.95

Por seu turno, culpa em sentido estrito ocorre se o agente, ao praticar determinada

conduta, não buscava causar dano, entretanto, a ação foi marcada por imprudência,

negligência ou imperícia.96

91

Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.72. 92

RODRIGUES, op. cit., p.16. 93

Conceito de ato ilícito e o abuso de direito. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;

ROCHA, Maria Vital da (Coord.). Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo

Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p.64. 94

RODRIGUES, op. cit., p.16. 95

Das obrigações em geral. 10. ed. Coimbra: Almedina, Vol. I , 2008, p.572. 96

RODRIGUES, op. cit., p.16.

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Segundo Rui Stoco, “a imprudência é a falta de cautela, o ato impulsivo, o agir

açodado ou precipitado, através de uma conduta comissiva, ou seja, um fazer (facere), como

quando a pessoa dirige seu veículo em excesso de velocidade”. Já a “negligência é o descaso,

a falta de cuidado ou de atenção, a indolência, geralmente o non facere quos debeatur, quer

dizer, a omissão quando do agente se exigia uma ação ou conduta positiva.97

A imperícia é a demonstração de inabilidade por parte do profissional no exercício

de sua atividade de natureza técnica, a demonstração de incapacidade para o mister a

que se propõe, como o médico que, por falta de conhecimento técnico, erra no

diagnóstico ou retira um órgão do paciente desnecessariamente ou confunde veia

com artéria. Pode-se identificar a imperícia através de ação ou de omissão.98

Ainda, em relação à culpa (sentido estrito), uma vez inexistente, inexistente o ato

ilícito e, consequentemente, a responsabilidade. Não se olvide que o ato ilícito tem duplo

efeito: infração a dever previamente existente e que o resultado pode ser imputado à

consciência do agente, como já mencionado; dessa maneira, para que se configure, segundo

Maria Helena Diniz, deve haver violação à norma jurídica protetora de direito alheio ou

direito subjetivo individual.99

Como lembra João de Matos Antunes Varela, a noção de culpa está, outrossim, muito

ligada a ideia de reprovabilidade da conduta do agente, se este poderia ou deveria ter agido de

maneira diferente; se a resposta for afirmativa, reprovável será a conduta e caracterizada a

culpa estará para fins de responsabilização.100

Várias são as classificações que podem ser tecidas em relação à culpa: quanto à

gradação (culpa grave, leve ou levíssima), quanto ao modo de apreciação (in concreto ou in

abstrato), em relação ao conteúdo (in committendo, in faciendo, in eligendo, in vigilando ou

in custodiendo) – Rubens Limongi França ainda fala da in contrahendo, in obligando e in

negligendo –101

e, por último e mais importante para o tema em voga, em decorrência do

dever violado (culpa contratual ou culpa extracontratual).102

97

Op. cit., p.134. 98

Ibid., p.134. 99

Curso de direito civil brasileito: responsabilidade civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, Vol. 7, 2007, p.39-40. 100

Op. cit., p.566. 101

Op. cit., p.876. 102

DINIZ, op. cit., p.42-45.

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Segundo Washington de Barros Monteiro, culpa extracontratual ou aquiliana é “a

resultante da violação de dever fundado num princípio geral de direito, como o desrespeito à

pessoa e aos bens alheios”, ao passo que culpa contratual “é a violação de determinado dever,

inerente a um contrato”.103

O doutrinador ainda lembra que o artigo 186, do Código Civil, é fonte da

responsabilidade civil tanto na sua modalidade contratual quanto extracontratual e, partindo-

se dela, chega-se aos artigos 389104

e 927, ambos do referido codex.105

A discussão referente à impossibilidade de divisão das culpas (contratual e

extracontratual) também se mostra presente nesse tópico, bem como ficou assentando quando

se diferenciou responsabilidade civil contratual e extracontratual. A análise da polêmica,

entretanto, tem pouca utilidade prática e, a rigor, parece existir apenas no terreno técnico,

devendo apenas ser trazido o principal efeito dela: se extracontratual, vítima deverá provar a

culpa do agente, se contratual, haverá, se entabular obrigação de resultado, culpa presumida

do agente.106

Por fim, vale lembrar que, em se tratando de responsabilidade objetiva, prescide-se da

verificação do elemento culpa, na medida em que a reparação do dano será necessária

independentemente de sua constatação. Tais hipóteses deverão estar previstas em lei ou

decorrer do risco da atidade desenvolvida, conforme artigo 927, parágrago único, do Código

Civil, pois se trata da exceção; a regra é a responsabilidade subjetiva.107

1.4.2.1. Erro médico e culpa médica

Segundo Genival Veloso de França, o erro médico, quase sempre cometido por culpa,

é uma conduta profissional inadequada, supondo-se, desde então, inobservância de regra

técnica capaz, assim, de gerar dano à vida ou saúde do paciente. É diferente do acidente

103

Curso de direito civil: 2ª parte. 35.ª ed. São Paulo: Saraiva, Vol. 5, 2007, p.504. 104

Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária

segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. 105

MONTEIRO, op. cit., p.504. 106

LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.180-187. 107

AMARAL, op. cit., p.588.

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imprevisível e do resultado incontrolável. O primeiro se caracteriza pela existência de um

resultado lesivo seja ao físico ou ao psicológico do paciente durante o ato médico ou sua

decorrência e que supõe-se ser proveniente de caso fortuito ou força maior, por isso incapaz

de ser evitado, não só pelo médico responsável, mas por qualquer outro que estivesse em seu

lugar. Já o resultado incontrolável decorre de situação grave que não pode ser impedida pelas

atuais condições da ciência para as quais a capacidade profissional ainda não ofereça

solução.108

Justamente dessa ideia apresentada pelo resultado incontrolável é que advém a

natureza obrigacional da atividade médica como de meio, pois se empenha ao máximo em

utilizar a melhor técnica possível, mas não se compromete com o sucesso. Assim, não se pode

afirmar que todo resultado adverso oriundo de tratamentos médicos seja um caso de erro

médico; aliás nem todo erro médico é causado por uma conduta pessoal do profissional, mas

pode ter sido provocado por problemas de ordem estrutural, os quais têm sido também

apontados como atuais responsáveis em grande parcela pela insuficiência ou ineficácia de

respostas satisfatórias de tratamentos.109

Em relação à culpa, elemento da responsabilidade civil, consubstanciada no erro

médico também pode decorrer de negligência, imprudência ou imperícia, de acordo com o

que dispõe o artigo 186, do Código Civil, conforme já mencionado.

Mais especificamente quanto à culpa inserida na responsabilidade civil do médico, a

negligência decorre de uma omissão em relação a algum procedimento no tratamento, o que

pode comprometer a vida ou a saúde do paciente. A título de exemplo, a negligência pode ser

ligada ao abandono, situação em que o profissional deixa de acompanhar o paciente, ou lhe

trata com descaso e desinteresse. Ligada, outrossim, a tipos grosseiros de culpa pela falta de

atenção na intervenção cirúrgica, como quando o profissional esquece material dentro do

corpo do paciente ou extrai determinado órgão quando na verdade era para extrair outro. Fora

do ato cirúrgico, a negligência se dá quando há dispensa de exame clínico necessário para

uma melhor verificação do diagnóstico ou, ainda, quando o tratamento é prescrito de maneira

errada, causando danos à vida ou saúde do paciente.110

108

Op. cit., p.217. 109

Ibid., p.217-218. 110

NADER, op. cit., p.408-409.

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Para Miguel Kfouri Neto, os casos de negligência são fartos na jurisprudência em

razão de a distração fazer parte da própria natureza humana, podendo ir desde o erro médico,

que desatentamente receita um remédio pelo outro, até o esquecimento de objetos cirúrgicos

no corpo do paciente.111

Teresa Ancona Lopez lembra que a negligência pode ser consequência de conduta

passiva do médico, omisso em precauções ou medidas necessárias que deveria tomar,

inclusive quando faz exames superficiais necessários para se chegar ao correto prognóstico do

paciente.112

Delton Croce e Delton Croce Júnior lembram que a negligência deve ser analisada sob

a figura do homem médio, ou seja, como medianamente o profissional capacitado para o

exercício do ato agiria, para então caracterizar a negligência.113

A imprudência, por outro lado, é associada à tomada de decisões sem a devida cautela,

de maneira precipitada. É o agir quando, na verdade, deveria ter que se abster.114

Miguel Kfouri Neto vê como imprudente a conduta do profissional que tem atitudes

não justificadas e às vezes até mesmo precipitadas, sem o uso devido da cautela. A título de

exemplo, se vale do cirurgião que aplica por ele mesmo a anestesia, sem esperar pelo

anestesista, e o paciente morre de parada cardíaca, ou, ainda, o caso do médico que realiza

cirurgia com duração normal de uma hora em apenas trinta minutos, causando danos sérios ao

paciente.115

Para o doutrinador, a imprudência deriva da imperícia, de modo que o médico, ainda

que consciente da sua insuficiente preparação ou capacidade profissional necessária, não se

abstém de agir.116

Teresa Ancona Lopez lembra que a imprudência, basicamente, se refere a uma

conduta comissiva, é o agir sem cuidados, é o receitar medicamentos injustificadamente ou

precipadamente.117

111

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.86. 112

Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.321. 113

Op. cit., p.23. 114

NADER, op. cit., p.409. 115

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.87. 116

KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.88.

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Já se o profissional deixa de aplicar conhecimentos técnicos e científicos

recomendados para determinada situação, o que muito ocorre quando assume uma obrigação

de resultado, como nas cirurgias estéticas, fica caracterizada a imperícia.118

Para Delton Croce e Delton Croce Júnior, trata-se de flagrante ausência de

conhecimento que o profissional deveria ter para exercer a profissão ou arte.119

Para aferir a imperícia, segundo Miguel Kfouri Neto, basta verificar, dentre aqueles

que tenham diploma, a ausência de habilidade normalmente requerida para o exercício da

profissão, que pode provir da carência de conhecimentos necessários, da inexperiência ou da

inabilidade. Nesse sentido, a imperícia deve ser analisada objetivamente, não importando a

postura psíquica do agente quanto a sua própria capacidade. Assim, para sua caracterização,

bastará a confrontação entre a perícia média – normalmente esperada da situação – e o

comportamento tomado pelo agente.120

O autor observa, ainda, que não há necessidade, para fins de reparação civil, da

caracterização de uma culpa grave, mas apenas da aferição quanto à certeza de sua existência,

pois o grau de culpa apenas terá a possibilidade de influenciar na quantificação da

indenização.121

De qualquer forma, segundo o doutrinador, o fato é que os julgadores brasileiros –

situação que será melhor analisada quando da análise jurisprudencial – tendem a ser muito

rigorosos na verificação da busca pela existência ou não da culpa, o que, realmente não é

tarefa fácil; mas devem, de todo modo, olhar o conjunto probatório sempre de maneira muito

cautelosa, como quando existentes os laudos periciais, por exemplo, os quais, muitas vezes,

podem estar acompanhados de um certo “espírito de corpo”.122

Por fim, insta lembrar da existência do erro profissional ou escusável, que não ocorre

em razão da não observância de preceitos científicos, mas da própria medicina como ciência

imperfeita e incompleta, não atinente às ciências exatas e precária diante dos conhecimentos

humanos. O erro escusável, assim, fica caracterizado sempre que o profissional, embora

117

Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.321. 118

NADER, op. cit., p.409. 119

Op. cit., p.25. 120

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.94. 121

Ibid., p.75-76. 122

KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.76-77.

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aplique toda a técnica corretamente e de acordo com as ciências médicas, cause dano ao seu

paciente.123

1.5.2.2 A prova da culpa médica e perícias

Em se tratando de responsabilidade civil médica, a busca pela culpa do profissional

também se mostra de suma importância, situação que não é de fácil verificação judicial,

principalmente em razão da exigência de provas contundentes e da tecnicidade presente em

tais demandas. Como será visto no item referente à tutela jurídica diferenciada do contrato

médico, a responsabilização do médico sempre será analisada mediante a verificação da

culpa, afirmação que também será levada em consideração quando da análise jurisprudencial.

Para René Savatier, na busca pela culpa basicamente devem ser seguidos dois grandes

postulados: primeiramente, para os casos em que não exista dúvida de ordem técnica, a prova

testemunhal deve ser admitida, ao passo que, por outro lado, se existir questão de ordem

técnica a ser apurada, a prova testemunhal não deve ser admitida, pois não teria condições

para afirmar se o médico procedeu ou não da maneira dequada. Para os últimos casos, a

perícia deve ser realizada, mas o julgador deve sopesá-la com cautela, principalmente se a

conclusão estiver a favor do médico, pois não se pode descartar a possibilidade de uma

opinião tendenciosa pelo fato de pertencerem a uma mesma classe profissional.124

Em segundo lugar, deve existir, rigorosamente, relação de causa entre a conduta

praticada pelo médico e o efeito (dano), ainda que tal correlação não se dê de maneira

imediata.125

Apesar do entendimento compilado de Savatier, Sergio Cavalieri Filho ressalta, ainda,

que de fato o juiz não estaria adstrito à perícia, mas se deixar de considerá-la, dificilmente

encontrará nos autos outros elementos suficientes para a condenação do médico. Diante disso,

entente que não caberia ao Judiciário avaliar questões de ordem eminentemente científica ou,

123

CROCE; CROCE JÚNIOR, op. cit., p.32. 124

Traité de la responsabilité civile em droit français: conséquences de la responsabilité. Responsabilités

professionnelles et sportives. Paris: Librarie Generále de Droit et Jurisprudence. T. 2, 1939, nº 778, p.395. 125

SAVATIER, op. cit., p.395.

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ainda, dizer qual seria o melhor procedimento na busca da cura do doente no caso concreto,

mas deve se limitar ao exame da existência ou não de falha humana, verificando se o

profissional se ateve aos padrões determinados pela ciência, sempre à luz do conjunto

probatório coligido aos autos.126

Outro elemento a ser analisado na perícia e que influirá diretamente na formação da

responsabilidade civil é a existência das concausas. Diferentemente da causa, considerada

como a provável condição motivadora do resultado, a concausa é uma condição pré-existente,

concomitante ou superveniente à ação e com ela concorre na formação do dano. Uma vez

existente, o dano será considerado resultado desse feixe de fatores, alterando-se, destarte, a

análise a ser feita do nexo de causalidade. Existem situações raras, por exemplo, em que

determinados traumas não apresentam relação com o mal, pois este estava em estágio tão

avançado que não poderia ser agravado.127

Na perícia, outrossim, devem estar constantes os aspectos circunstanciais do ato

médico. Faz-se necessário, dessa maneira, determinar se o dano verificado decorreu de

conduta inadequada do profissional, segundo os ditames da ciência médica, ou não,

lembrando-se que não raro o resultado danoso pode ter sido oriundo de precárias condições de

trabalho128

, situação que alterará o foco da discussão, pois ainda assim poderá haver a

responsabilidade do médico, mas não por sua má conduta, e sim por sua eventual

responsabilidade sobre as condições cirúrgicas a ser verificada na situação concreta.

Por fim, o estado anterior do paciente constitui outra importante investigação a ser

realizada pela perícia, devendo-se determinar, segundo Genival Veloso de França, três

hipóteses: a) a possibilidade de o trauma não ter agravado estado em que o paciente já se

encontrava, tampouco ter tido influências negativas sobre ele; b) se o estado anterior em que

se encontrava o paciente foi um fator agravante nas consequências do trauma e, ainda; c) se o

trauma foi fator de agravamento do estado anterior do paciente ou apenas exteriorizou uma

patologia latente.129

126

Op. cit., p.371. 127

FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.254. 128

Ibid., p.255. 129

Op. cit., p.255.

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50

1.5.2.3 A inversão do ônus da prova do Código de Defesa do Consumidor

Diverge a doutrina sobre a possibilidade de aplicação do direito do consumidor em

relação à inversão do ônus da prova, tal qual lançado no artigo 6º, inciso VIII, do Código de

Defesa do Consumidor, para aproveitar autores cujas alegações estejam baseadas em danos

causados por profissional liberal. Quanto a isso, o referido codex nada se pronunciou,

limitando-se a estabelecer a responsabilidade subjetiva aos profissionais libeirais.

Existem posicionamentos doutrinários, como de Sergio Cavalieri Filho, no sentido de

aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no tocante à inversão do ônus probatório

para fins de averiguação de responsabilidade civil do médico perante seu paciente. Sendo

assim, diante da existência de complexidade não somente de ordem técnica, mas também

econômica, na produção da prova da culpa do profissional, pode o juiz determinar a inversão

do ônus probatório em desfavor do profissional, pois caracterizada estaria a hipossuficiência

do paciente.130

Paulo Nader entende o mesmo:

A inversão do ônus probatório (...) pode ser adotada nas relações de consumo, a

critério do juiz, quando este verificar que a alegação for verossímil ou

hipossuficiente o consumidor. Tal hipossuficiência pode ser tanto econômica quanto

técnica.131

Miguel Kfouri Neto, por outro lado, entende que não se pode cair no erro de confundir

os institutos necessários à compreensão do tema, como responsabilidade objetiva,

responsabilidade subjetiva, inversão do ônus da prova e culpa presumida. A partir do

entendimento de cada um, chega-se a conclusão de que o sistema de responsabilidade

objetiva, trazido pelo Código de Defesa do Consumidor, não é compatível com o da

responsabilidade subjetiva, o qual é aplicável aos profissionais liberais; por isso se deve

entender que o Código de Defesa do Consumidor excluiu taxativamente, em razão do artigo

14, §4º, os profissionais liberais da sua área de abrangência. Dessa maneira, aplicando-se a

responsabilidade subjetiva aos profissionais liberais, o ônus da prova, a princípio, incumbe à

130

Op. cit., p.376. 131

Op. cit., p.408.

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vítima, não havendo que se falar, então, em inversão do ônus da prova, como ocorre nas

relações consumeristas, não aplicáveis à espécie.132

Não há dúvida de que a referida hipossuficiência “consumidor-paciente” pode ser

tanto de ordem técnica quanto econômica mas, seja de uma forma ou de outra, o fato é que a

inversão do ônus probatório em muito lhe beneficiaria no caso concreto na busca pela culpa

do profissional, o que pode não se mostrar alinhado à própria exceção feita pelo Código de

Defesa do Consumidor no sentido de aplicar a responsabilidade subjetiva aos profissionais

liberais.

De todo modo, tal discussão apenas se mostra viável para os casos em que o médico

assume obrigações de meio, pois, em se tratando de obrigações de resultado, doutrina e

jurisprudência admitem a inversão do ônus da prova, esta que recai sobre o profissional liberal

por ter contra si presunção de culpa em razão de não ter atingido o resultado esperado,

cabendo, destarte, ao profissional, em tais casos, provas da culpa exclusiva da vítima, de

terceiro, caso fortuito ou força maior.133

Quanto às obrigações de meio e resultado, serão

tratadas em tópicos específicos nesse trabalho, quando da distinção entre ambas e quando da

análise jurisprudencial.

1.5.3 O dano

Indissociável, para fins de caracterização da responsabilidade civil, o dano, ou

prejuízo, seja ele material, moral ou estético. O dano, nas palavras de Rubens Limongi França

é a “diminuição ou subtração causada por outrem, de um bem jurídico” e, segundo o autor,

ainda, “pode ser patrimonial ou moral, conforme seja ou não, por natureza, redutível a uma

soma pecuniária”134

132

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.156. 133

Ibid., p.151. 134

Op. cit., p.875.

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Miguel Maria de Serpa Lopes lembra do caráter dúplice assumido pelo elemento dano,

uma vez que, para sua caracterização, deve atender aos seguintes requisitos: o elemento de

fato, isto é, o prejuízo em si, e o elemento jurídico, qual seja a violação de direito.135

Dessa maneira, a existência de um dano não é capaz, por si só, de caracterizar um ato

ilícito, pois, para que isso ocorra, é necessário algo além. Há, assim, que ficar demonstrado

um dano injusto, lesionador da norma jurídica posta. Se uma conduta é permitida pelo

ordenamento jurídico, ainda que cause dano a outrem, não haverá o dever de reparação. O

artigo 188, do Código Civil, é claro ao afastar da ilicitude os atos praticados, dentre outros,

em exercício regular de direito.136

Em suma, nem toda conduta violadora gera

responsabilidade civil, uma vez que, segundo o artigo 186, do Código Civil, deve existir o

dano.

Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, ainda mesmo que dolosa a conduta do

agente em produzir certo resultado prejudicial à vítima praticando, com esse fim, ato violador

legal ou contratual, se não houver efetivamente o dano, não haverá responsabilidade civil.137

1.5.3.1 Requisitos do dano reparável

Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, são três os requisitos que

atribuem a qualidade de reparabilidade de uma dano: a violação de um interesse jurídico

patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou jurídica, a certeza do dano e a

subsistência do dano.138

Destarte, levando-se em consideração que a necessidade de reparação de um dano

ocorrido em virtude da conduta de um agente decorre de uma resposta do ordenamento

jurídico no intuito de promover o retorno da situação anterior – status quo ante – ou, pelo

menos, diante da impossibilidade da hipótese anterior, de uma indenização, com intuito de

135

Op. cit, p.222. 136

Ibid., p.222. 137

ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980,

p.181. 138

Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.38-40.

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compensação pelos eventuais prejuízos (de natureza patrimonial ou não) sofridos pela vítima,

mister se faz atender aos três fatores supracitados para que exista a reparabilidade do evento

danoso.

A violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de pessoa física

ou jurídica representa a suma de tudo o que até aqui foi exposto: não existirá dano sem

conduta ofensora a bem jurídico tutelado pelo ordenamento, traduzida ou no desrespeito à

norma existente ou à obrigação entabulada pelas partes.139

Quanto à certeza do dano, só poderá haver reparação de um dano que efetivamente

existiu, ou seja, tem-se que o ordenamento pátrio prezou pela comprovação da existência do

dano e impediu reparação de um dano incerto ou eventual. Segundo Caio Mário da Silva

Pereira, a ideia de certeza está ligada à de contemporaneidade, afastando-se, pois, indenização

de danos hipotéticos ou eventuais, considerados como aqueles que não necessariamente

ocorrerão.140

Evidentemente, em se tratando de regra geral, há exceções, as quais, principalmente

ligadas ao dano moral, em virtude de sua difícil verificação em alguns casos concretos ou

talvez, ao contrário, pela sua patente verificação de acordo com a sitação, têm sido trazidas e

cada vez mais utilizadas pela jurisprudência brasileira, corroboradas por boa parte da doutrina

concernente ao tema.141

Como terceiro requisito está a subsistência do dano, ou seja, para fins de

ressarcimento, é necessária a ausência de reparação.142

Caio Mário da Silva Pereira concorda

com esse requisito desde que comprovadamente tenha exisitido a conduta reparadora integral

do dano.143

Por fim, Caio Mário da Silva Pereira lembra que não é requisito de reparabilidade o

aspecto quantitativo, pois caracterizado o dano, seja de proporções pequenas ou grandes, 139

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.38-39. 140

Responsabilidade civil, op. cit., p.46. 141

Um exemplo é a inserção indevida do nome em cadastros de inadimplentes, em que, basta a comprovação de

tê-lo efetivamente ocorrido – primeiro dos três requisitos da repareabilidade de danos apresentado –, que a

configuração dos danos morais é certa (in re ipsa, ou seja, decorre das próprias circunstâncias) e,

consequentemente, também o é a necessidade de reparação.

Não se olvide que, ainda assim, há a possibilidade de não se caracterizar os danos, morais, como a pré-existência

de negativação devida, entretanto, de acordo com a ideia que se quer colocar aqui, trata-se da atenuação desse

segundo requisito para algums hipóteses. 142

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.40. 143

Responsabilidade civil, op. cit., p.46.

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haverá o dever de reparar. Se assim não fosse, estaria o julgador adstrito a aspectos muito

subjetivos, pois um dano poderia ser elevado para uns e de pequena monta para outros,

aspecto, então, ineficiente para fins de preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil,

de modo que a orientação da justiça em termos de ressarcimento deve ser pautar pela lesão ao

interesse da vítima.144

1.5.3.2 Espécies de dano

Atualmente, os danos se dividem em três espécies, a saber: a) dano material ou

patrimonial, b) dano moral e c) dano estético. Tal diferenciação se mostra importante porque

cada um atua de forma interdependente em relação aos outros, ou seja, um determinado ato

ilícito pode dar origem aos três tipos de reparação. Para alguns autores, como ficará mais

claro adiante, o dano estético está inserido no dano moral, entretanto, de uma maneira ou de

outra, em que pese a indubitável íntima relação entre ambas, o certo é que há possibilidade de

serem cumulados distintamente. É o que preconiza a recente jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça por meio da edição da súmula n.º 387, in verbis: “É lícita a cumulação das

indenizações de dano estético e dano moral.”

1.5.3.2.1 Dano material ou patrimonial

Nas palavras de Paulo Nader, o dano patrimonial se caracteriza:

(...) quando provoca a diminuição do acervo de bens materiais da vítima ou, então,

impede o seu aumento. Materializa-se por danos emergentes, com a diminuição do

patrimônio, ou por lucros cessantes, quando a vítima se vê impedida da atividade

que lhe traria proveito econômico.145

144

Responsabilidade civil, op. cit., p.44. 145

Op. cit., p.84.

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Dessa maneira, é possível perceber que se refere a uma lesão a bens que podem ser

valorados economicamente, notando-se, ainda, que se divide em duas modalidades, como já

apresentado: dano emergente e lucros cessantes.

A primeira modalidade – dano emergente – se refere ao dano imediato ao patrimônio

da vítima, ou seja, a sua diminuição de valor ocorrida diretamente em razão do evento danoso.

Assim, existe lógica entre o que a vítima desembolsou ou vai desembolsar para repor seus

bens à situação anterior ao evento danoso e o montante indenizatório, cuja apreciação será

matematicamente precisa.146

Mas não é a única, pois um mesmo ato ilícito pode causar também dano patrimonial na

modalidade lucros cessantes, aqueles em que o agente razoavelmente ganharia não fosse a

eclosão do dano.147

Aliás, quanto à expressão razoavelmente trazida pelo artigo mencionado, importante

destacar, segundo a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sua função

interpretativa no sentido de se considerar com bom senso aquilo que o credor lucraria não

fosse o dano, como se tudo ocorresse no seu “curso normal”.148

No mesmo sentido está o artigo 403149

, do referido Código, que delineia a

interpretação do aplicador do direito em, segundo Paulo Nader, “evitar uma elasticidade na

apuração dos lucros cessantes, considerando-se contingências improváveis.”150

Dessa forma, vê-se que a apuração dos lucros cessantes deve se ater a uma visão

ligada à realidade, aferindo-se, para tanto, o que realmente deixou-se de lucrar em razão única

e direta ao evento danoso e, ainda, de uma maneira razoável.

De qualquer modo, ambos tratam das perdas e danos, tais quais lançadas no artigo

402151

, do Código Civil e, ainda que referente ao plano negocial, sua aplicabilidade se dá a

todo ato ilícito cometido.152

146

BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.59. 147

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.72-73. 148

REsp 320417/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 20.05.2012. 149

Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os

lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. 150

Op. cit., p.85.

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Por fim, outra modalidade de danos patrimoniais é denominada “pela perda de uma

chance”, teoria ligada aos lucros cessantes por também carregar consigo a ideia de perda para

a vítima de se encontrar em situação futura melhor em razão do evento danoso, entretanto

trata-se da perda da oportunidade e não da própria vantagem. Também a possibilidade não

pode ser hipotética, mas deve ser certa. Assim é a frustração de uma possibilidade certa a que

teria direito o agente, logo, deve ser indenizado de acordo com o cálculo proporcional à

possibilidade.153

Segundo Teresa Ancona Lopez, a teoria da perte d’une chance surgiu em 1965, na

França, após reiteradas decisões jurisprudenciais com o intuito de conferir maior proteção às

vítimas de procedimentos médicos, facilitando, assim, a formação da culpa do profissional.

Num primeiro momento, especificamente ligada à área médica, pode ser traduzida na admição

da culpa do médico que diminiu as chances de vida do paciente, não importando a verificação

indubitável da culpa no proceder no caso concreto, mas a mera possibilidade já era suficiente,

pois a culpa nada mais era do que a redução das chances do paciente.154

Hoje, entretanto, sua aplicação não se restringe apenas às especialidades médicas, mas

a toda e qualquer situação que atinja a vítima da maneira descrita. O cuidado que se deve ter é

apenas que a perte d’une chance não representa dano futuro, mas atual, na medida em que o

resultado não mais será alcançado pela perda oportunidade presente no momento do dano, e

esta é indenizável155

1.5.3.2.2 Dano moral

Dano moral é aquele que atinge a esfera patrimonial do indivíduo composta por bens

imateriais, que não admitem aferição pecuniária, diferentemente dos danos patrimoniais, que

atingem bens materiais, portanto, passíveis de avaliação. Outrossim, não se restringem apenas

151

Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do

que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar. 152

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.72-73. 153

Ibid., p.74-75. 154

Responsabilidade civil dos médicos, op. cit.,p.317 155

VASSILIEFF, Sílvia. Responsabilidade civil do advogado. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.69.

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à dor e tristeza, mas sua tutela se estende a todos os bens personalíssimos, como nome, honra,

intimidade, privacidade e liberdade.156

Yussef Said Cahali lembra que, em se tratando de resposta jurídica à ofensa ao direito

de personalidade da vítima, tal qual aceito pelos tribunais como dano moral indenizável, não é

possível estabelecer rol taxativo dos eventos passíveis de originá-los, até mesmo pela própria

dificuldade de classificação dessa espécie de dano.157

Noutro giro, os danos morais não podem representar simplesmente a ideia de

pagamento da dor ou do sofrimento com dinheiro. Em termos pecuniários, o dano moral

atende a funções diversas das preconizadas pelos danos patrimoniais, cuja caracterização se

dá pela equivalência entre dano e ressarcimento. O dano moral carrega consigo a

compensação pessoal diante do dano para fins de minorar os maus sofridos, não

representando, assim, propriamente sanção, mas compensação legal.158

Quanto à sua quantificação, cabe à doutrina e à jurisprudência estabelecer parâmetros

para sua apuração, pois, diferentemente do dano patrimonial, inviável sua apuração por meio

de aspectos objetivos ou quantificáveis. O certo é que, diante da sua difícil mensuração, o

dano moral se utiliza de critérios subjetivos tais como razoabilidade, proporcionalidade, nível

da gravidade da ofensa, condições econômicas159

e até mesmo sociais e psicológicas das

partes.

Frise-se quanto a isso que os danos morais, na sua fixação, são os únicos que carregam

consigo uma carga repreensiva com o intuito de elevar sua quantificação como uma forma de

retaliação ao agente praticador da conduta, objetivando, assim, não somente a simples

reparação, mas um verdadeiro desestímulo de novas condutas geradoras de dano moral.

Em contraposição, tais verbas nunca poderão significar um enriquecimento sem causa

da vítima. Resta, assim, ao julgador, a tarefa de sopesar tal vedação legal, amenizadora do

quantum indenizatório, e a repreensividade da prática do dano moral, majorador do quantum.

Nesse sentido, é muito importante analisar as condições sociais e econômicas das vítimas,

156

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.80-81. 157

Dano moral, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.59. 158

BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.63-64. 159

NADER, op. cit., p.91.

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pois o que pode significar enriquecimento sem causa em um determinado caso, em outro não

necessariamente significará.160

De uma forma ou de outra, o dano moral, derivado de conduta ilícita, é repudiado pelo

ordenamento jurídico e, como tal, não pode significar uma “loteria” para a vítima, mas um

compensação aos prejuízos sofridos. Mesmo assim, diante da sua natureza desestimulante,

trata-se de uma importante ferramenta que, se usada da maneira correta e com ponderação,

pode ajudar muito no combate às constantes práticas de ato ilícito geradores de dano moral,

principalmente representadas por grandes fornecedores de produtos e serviços.

1.5.3.2.3 Dano estético

Dano estético, segundo Paulo Nader, ocorre quando “o agente provoca lesões

corporais indeléveis, seja deixando cicatrizes, aleijões ou quaisquer marcas incomuns, que

prejudiquem a aparência da pesoa e abalam a sua autoestima”.161

Normalmente, o “estético” diz respeito ao campo da ciência que estuda o belo nas

artes e na natureza. A definição do que é belo sempre foi motivo para inúmeras discussões

filosóficas mas, por se tratar de acordo com a essência de cada corrente filosófica, pode ser

associada à harmonia e equilíbrio das formas. Por isso, quando se diz “dano estético”, está-se

fazendo referência a um dano das formas físicas, o qual, apesar da sua difícil conceituação,

ficará caracterizado após uma mudança significativa corpórea da vítima, analisando-se o antes

e o depois da lesão.162

Há autores, como Paulo Nader, que entendem não se confundir com o dano moral,

pois o dano estético não se caracteriza por uma vergonha da vítima frente a sua exposição a

terceiros, que poderia se traduzir numa angústia de ordem moral, mas simplesmente em razão

da sequela física perputada pelo dano. Ora, ainda que oculto e não aparente a terceiros, o dano

estético é indenizável, pois se traduz numa deformidade física para a vítima que decorreu de

ato. Mesmo assim, ressalva que apesar de existir a possibilidade de um mesmo ato ilícito

160

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.93. 161

Op. cit., p.92-93. 162

LOPEZ, O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.37.

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gerar dano moral e dano estético, para que subsistam concomitantemente, o dano moral não

pode valer-se de fundamento da lesão estética, pois, caso contrário, existirá apenas o dano

estético.163

Trata-se da vedação jurisprudencial e doutrinária à dupla indenização por uma só

causa. Por isso, a Súmula 387, do Superior Tribunal de Justiça, já mencionada quando se

tratou das espécies de dano, deve ser lida com a devida cautela.

Para parte da doutrina, como Sergio Cavalieri Filho, ainda que a jurisprudência pátria,

representada pela própria edição da súmula alhures exposta, aparentemente esteja caminhando

no sentido de traçar uma linha divisória entre os danos morais e os estéticos, não há diferença

entre ambos, sendo estes incluídos naqueles, lembrando que, nada obstante o tal

posicionamento, deve o dano moral ser majorado pelo sofrimento moral a que deu causa a

deformidade física, já que a intensidade aflitiva perdura no tempo.164

Teresa Ancona Lopez, por seu turno, expõe de maneira contundente que “dano

estético é dano moral.”165

Seja de uma maneira ou de outra, pode-se concluir que, apesar de o Código Civil nada

dispor a respeito dos danos estéticos, sua possibilidade de caracterização, segundo Sergio

Cavalieri Filho, talvez derive do artigo 949 e, estando incluído ou não nos danos morais, deve

ser ressarcido; se não estiver inserido, dano moral e estético serão liquidados separadamente,

se estiverem, o dano moral deverá ser majorado.166

1.5.3.3 Os danos material, moral e estético nas cirurgias médicas

Conforme apresentadas de maneira geral acima as espécies de danos que podem

originar a responabilidade civil, é importante verificar como esses danos podem decorrer da

163

Op. cit., p.93. 164

Op. cit., p.102. 165

O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.19. 166

Op. cit., p.101-102.

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atuação médica, principalmente no tocante às cirurgias, que podem representar a

superveniência de inúmeras intercorrências ao paciente.

Nesse sentido a realização da perícia médica também assume importância evidente,

pois ela poderá demonstrar de maneira satisfatória outras responsabilidades do médico ou de

sua equipe, buscando, para tanto, caracterizar do dano, estabelecer o nexo de causalidade,

considerar a possibilidade de existirem concausas, analisar as circunstâncias do ato médico,

fazer uma avaliação do estado em que se encontrava a vítima antes do procedimento e, por

fim, estabelecer o padrão médico-legal.167

Em relação ao dano, faz-se importante ressaltar que não necessariamente significa

apenas alterações anatômicas ou de estrutura funcional no paciente, mas pode se caracterizar

igualmente como desordens da normalidade individual, estas que estão intrinsecamente

ligadas aos padrões médico-legais, que procuram estimar o dano sofrido como bem

patrimonial, intentando-se, destarte, à reparação da vítima por meio de um montante traduzido

em pecúnia como indenização diante de perdas físicas, funcionais ou psíquicas sofridas pelo

paciente. Genival Veloso de França elenca alguns tipos de dano que podem decorrer de

cirurgias e gerar o dever de indenizar passíveis, inclusive, de aferição pela perícia:168

Se do dano sobreveio incapacidade temporária, que é um tempo limitado de inaptidão,

indo desde a produção do dano até a recuperação ou estabilização clínica; se do dano

sobreveio quantum doloris, ou seja, existência de dor física advindas de lesões e suas

consequências, bem ainda o sofrimento moral pela angústia, ansiedade e abatimento diante da

possibilidade de morte, da expectativa de resultados e dos danos psicológicos, tudo a ser

verificado de maneira subjetiva; se do dano sobreveio incapacidade permanente, considerado

como um prejuízo de ordem anatomofuncional ou psicossensorial totais (a vítima deve ser

assitida de forma permanente por alguém) ou parciais (apesar da definitividade, não torna a

vítima incapaz totalmente para suas ocupações); se do dano sobreveio prejuízo estético,

olhando-o sob um ângulo dos aspectos pessoais da vítima, tais como idade, sexo, estado civil,

profissão, etc., de modo a ser avaliado em grau mínimo, moderado ou grave e classificado em

prejuízo estético, deformidade ou aleijão ou, ainda, numa escala que varia de 1 a 7; se do dano

sobreveio prejuízo de afirmação pessoal, ou seja, teve suas realizações pessoais frustradas,

sendo tanto mais grave quanto mais jovem é a pessoa e quanto mais intensas forem as

167

FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.253. 168

Ibid., p.255-256.

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realizações de atividades de lazer, de dotes artísticos e de capacidade intelectual, quantificável

numa escala de 1 a 5; se do dano sobreveio prejuízo do futuro, desde que certo, não

meramente no campo das possibilidades; se do dano sobreveio a perda de uma chance, não

mais o dano tido como certo, mas no campo da eventualidade e da suposição.169

Teresa Ancona Lopez lembra que, diante da existência de erro profissional, se

sobrevier morte do paciente, a indenização deverá incluir todas as despesas de tratamento,

funeral, luto da família e alimentos a quem o de cujus devia; em caso de ferimento, sem

diminuição da capacidade laborativa, o paciente deve ser ser ressarcido nas despesas de

tratamento e lucros cessantes até a possibilidade de voltar às funções normais; ocorrido aleijão

ou deformidade, além das já citadas em caso de ferimento, prejuízos de ordem moral são

verificáveis, não somente o prejuízo estético, aumentando-se, pois, o quantum referente aos

danos morais; por fim, se a integridade física tiver sido violada a tal ponto que resulte

inabilitação para o trabalho ou diminuição da capacidade laborativa, a diferença entre o que o

paciente conseguirá auferir e o que já auferia, ou seja, a depreciação laborativa deve ser

incluída no montante indenizatório.170

Assim, é possível perceber que o erro médico em uma cirurgias podem ocasionar

prejuízos que necessitam ser apurados para a correta verificação da responsabilidade médica

no caso concreto.

1.5.4 Nexo de causalidade

Deve necessariamente existir uma ligação, uma relação de causa e consequência, entre

a conduta humana praticada e o dano. Essa ligação é o nexo de causalidade.171

Nem sempre é fácil identificar se o dano foi efetivamente consequência da causa

conduta humana, por isso três teorias tentam explicar como se dá essa verificação.

169

FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.257. 170

Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.331. 171

BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.70-71.

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62

A teoria da equivalência de condições ou da conditio sine qua non (elaborada pelo

jurista alemão Von Buri para o Direito Penal172

) leva em consideração todas as causas que

tenham concorrido para a produção do resultado e a elas atribui igualdade de condições, ou

seja, qualquer uma delas teria de maneira independente levado ao dano.173

Críticas a ela são severas no sentido de que “tende ao infinito”. Tomando o exemplo

de Paulo Nader, no caso de um acidente aéreo, “Santos Dumont teria uma parcela de

responsabilidade, pois, se não houvesse inventado o mais pesado que os ares, os danos

ocasionados por aeronaves não se materializariam ao longo do tempo.”174

Noutro giro, a teoria da causalidade adequada, segundo Agostinho Alvim, é atribuída a

Von Bar (por Espínola e Ripert) e a Von Kries (por Cardoso Gouveia) e, diferentemente da

anterior, não considera todos os antecedentes como causa do dano, mas apenas aquele capaz

de gerar o resultado lesivo.175

Caio Mário da Silva Pereira ressalta que em se tratando de demanda indenizatória,

sempre o juiz considera para o desfecho danoso os fatos mais relevantes, aptos a produzi-lo,

utilizando, para tanto, o critério de eliminação, ou seja, desconsiderando os eventos que ainda

presentes não concorreram de qualquer modo para a superveniência do dano.176

Se de um lado a primeira teoria vai além do evento diretamente relacionado ao evento

e investiga todas as suas causas, esta apresenta o problema da elevada discricionariedade

atinente ao julgador em verificar no caso concreto se determinada causa efetivamente

concorreu ou não para o evento danoso.177

Sergio Cavalieri Filho comentou a problemática:

Como estabelecer, entre várias condições, qual foi a mais adequada? Não há uma

regra teórica, nenhuma fórmula hipotética para resolver o problema, de sorte que a

solução terá que ser encontrada em cada caso, atentando-se para a realidade fática,

com bom-senso e ponderação.178

Por fim, a teoria da causalidade imediata estabelece como causa do dano, segundo

Orlando Gomes, aquela que mais próxima dele estiver, ou seja, o último ato ligado ao evento

172

PEREIRA, Responsabilidade civil, op. cit., p.86. 173

ALVIM, op. cit., p.345. 174

Op. cit., p.116. 175

Op. cit., p.345. 176

Responsabilidade civil, op. cit., p.87. 177

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.90. 178

Op. cit., p.48.

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danoso; assim, com a requerida imediatidade (origem do nome), afasta-se quaisquer outros

eventos indiretos e remotos e o nexo de causalidade passa a estabelecer, então, a causa

necessária entre dano e fato.179

É tradicional o exemplo de um atropelamento que apenas causou lesões leves na

vítima, mas, esta, quando está a caminho do hospital numa ambulância acionada, morre em

virtude do capotamento do veículo de socorro. Perante a terceira teoria apresentada, o

proprietário ou condutor do veículo causador do acidente não responde civilmente, já que

quebrado o nexo de causalidade entre o evento acidentário e o evento morte; noutro giro,

responde civilmente o motorista da ambulância se não demonstrar excludentes.180

No Direito Civil brasileiro há divergência doutrinária sobre a aderência à teoria da

causalidade adequada ou à teoria da causalidade imediata. A título de exemplo, Sergio

Cavalieri Filho é adepto da primeira, ao passo que Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona

Filho, além de Carlos Roberto Gonçalves e Agostinho Alvim são adeptos da segunda.

Quanto a estes, suas teses são baseadas principalmente na própria redação do artigo

403, do Código Civil, que assim dipõe: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor,

as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto

e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”

Segundo seus defensores, a expressão “por efeito dela direto e imediato” se refere ao

último evento diretamente realacionado ao dano, por isso a adoção da teoria do dano direto e

imediato pelo Código Civil. Agostinho Alvim deixa isso claro ao se refrir ao artigo 1060, com

redação praticamente idêntica à do Código Civil em vigor.181

Assim, em que pese a doutrina divergir sobre qual a teoria adotada pelo Código Civil

e, por conseguinte, a jurisprudência, o caso concreto é que deverá dizer a melhor teoria a ser

escolhida especificamente para a solução do impasse, pois nem uma nem outra, ao que parece,

seria capaz de normatizar da maneira mais adequada o universo de situações concretas que

podem ocorrer.182

179

Obrigações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.275. 180

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.90-91. 181

Op. cit., p.371. 182

GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.94.

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Caio Mário da Silva Pereira entende o mesmo, lembrando que o que realmente

importa é estabelecer a violação do direito, o dano e que existe um nexo de causalidade,

cabendo ao juiz decidir aveguar com ponderação os elemtnos no caso concreto, afinal se trata

de questão fática.183

1.5.4.1 Excludentes do nexo de causalidade

São cinco os motivos que ensejam rompimento do nexo de causalidade: a culpa

exclusiva da vítima, a culpa concorrente da vítima, a culpa comum, a culpa de terceiro e a

força maior e caso fortuito.184

1.5.4.1.1 Culpa exclusiva da vítima

Ocorre a culpa exclusiva da vítima quando os prejuízos por ela suportados não podem

ser atribuídos ao autor material do fato, mas à própria vítima. Assim, considerando a

totalidade da culpa da vítima na causa do evento danoso, ela arcará por si só com os prejuízos

experimentados,185

pois aquele que era tido como o agente causador do dano foi na verdade

um mero instrumento para culminar no evento, motivo que dá ensejo ao rompimento do nexo

de causalidade.186

Silvio Rodrigues também deixa clara a função de instrumento encarnada no agente

causador do dano:

183

Responsabilidade civil, op. cit., p.90. 184

DINIZ, op. cit., p.110-116. 185

LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.206. 186

DINIZ, op. cit., p.110.

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Com efeito, no caso de culpa exclusiva da vítima, o agente que causa diretamente o

dano é apenas um instrumento do acidente, não se podendo, realmente, falar em

liame de causalidade entre seu ato e o prejuízo por aquela experimentado.187

1.5.4.1.2 Culpa concorrente da vítima

Em oposição à primeira hipótese apresentada, se o autor material do fato contribuiu

com determinada parcela para o resultado do evento danoso, em conjunto com a vítima,

caracterizada estará a culpa concorrente, situação em que cada um deles responderá pelo

prejuízo na medida da sua participação.188

Segundo Maria Helena Diniz, existem inúmeras formas de aplicação do instituto,

como a compensação total de culpas, a divisão proporcional dos prejuízos ou a auferição da

gravidade da conduta de cada um, de modo a não representar enriquecimento sem causa para

a vítima que também contribuiu para o dano. Veja-se que, nesse caso, não desaparece o nexo

de causalidade, pelo contrário, ele existe, mas servirá como atenuação da responsabilidade do

agente.189

Para Silvio Rodrigues, se não houver provas contundentes sobre a maior ou menor

participação de uma das partes na eclosão do evento, aa tese de repartição igual de

responsabilidade entre agente e vítima é muito sustentável.190

1.5.4.1.3 Culpa comum

Culpa comum pode ser caracterizada quando dois ou mais agentes cometem o dano de

maneira conjunta,191

situação em que deve ser aplicada a compensação de reparações, ou seja,

187

Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.206. 188

RODRIGUES, op. cit., p.165. 189

Op. cit., p.110-111. 190

Op. cit., p.168. 191

LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.208.

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há neutralização da responsabilidade de ambas, logo não existirá indenização se estiverem em

igual posição. Caso contrário, caracterizada a situação de desigualdade, a condenação por

perdas e danos será proporcional, tomando-se por base a contribuição culposa no evento

danoso.192

1.5.4.1.4 Culpa de terceiro ou fato de terceiro

Trata-se da situação em que, num primeiro momento, considera-se o agente material

como o causador do dano, e este, na verdade, aponta um terceiro como responsável pela

eclosão do evento prejudicial, logo, são três as figuras envolvidas: a vítima relacionada por

aquele que considera o agente lesionador e o terceiro a quem se imputa a responsabilidade.193

Maria Helena Diniz reputa como necessárias quatro verificações para imputar ao

terceiro a responsabilidade: a presença do nexo de causalidade entre o fato do terceiro e o

dano, a imprescindibilidade de que o ato do terceiro não tenha se dado por provocação do

ofensor, ser o ato do terceiro caracterizado como ilícito e, por fim, a imprevisibilidade ou

inevitabilidade do acontecimento, ainda que desnecessária a absoluta irrestibilidade e

imprrevisibilidade.194

Evidentemente, se o terceiro é alguém por quem o agente, por força da lei, deve

responder, não poderá se eximir de responsabilidade. Trata-se da hipótese de responsabilidade

por fato de terceiro.195

1.5.4.1.5 Caso fortuito e força maior

192

DINIZ, op. cit., p.111. 193

LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.211. 194

Op. cit, p.112. 195

RODRIGUES, op. cit., p.169.

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Agostinho Alvim acredita numa distinção pela doutrina, considerando, então, o caso

fortuito como impedimento ligado ao devedor, ao passo que a força maior seria relativa a

acontecimentos externos. Isso permitiria, assim, dar tratamento jurídico diverso para ambas,

pois, se a responsabilidade se basear na culpa, caso fortuito e força maior serão aptas a

exonerar o devedor, por outro lado, se fundada no risco, caso fortuito não será suficiente para

escusar o devedor, mas apenas se existir força maior ou o também chamado caso fortuito

externo, que inclui, dentre outros, culpa da vítima, fenômenos naturais e forças invencíveis,

como guerra.196

Para Maria Helena Diniz, a força maior é ligada a evento da natureza, conhecendo-se,

então, sua causa; já no caso fortuito, o que dá causa ao dano pode advir de suas situações

diferentes, ou de causa desconhecida, como o rompimento de cabos inesperadamente ou de

fato de terceiro, como greve, motins, etc.197

A doutrinadora ainda lembra da necessidade de existência do elemento subjetivo para

a caracterização do caso fortuito e da força maior, qual seja a ausência de culpa, e que,

quando somados, elemento objetivo – inevitabilidade – e elemento subjetivo – ausência de

culpa –, há a exclusão da responsabilidade do sujeito, salvo se convencionado que ainda assim

deveria existir o pagamento ou no casos em que a própria lei afasta essa excludente, como a

responsabilidade objetiva.198

Por seu turno, Orlando Gomes expõe, antes mesmo da diferenciação entre caso

fortuito e força maior, a discussão sobre a conceituação de caso fortuito: para a corrente

objetiva ou positiva, o termo é ligado à ideia de imprevisibilidade (evento que não pode ser

previsto) ou irresistibilidade (evento que não se pode resistir) ou da junção de ambas,

dependendo do autor (três posicionamentos); já para a corrente subjetiva ou negativa, é ligado

à da ausência de culpa. A evolução, então, da discussão, deu origem à diferenciação entre o

caso fortuito e a força maior: aquele estaria marcado pela imprevisibilidade, ao passo que esta

pela irresistibilidade.199

De todo modo, Orlando Gomes lembra que as tantas discriminações criadas ao longo

do tempo pela doutrina resultaram em tamanha confusão que, atualmente, é preferível

196

Op. cit., p.330-331. 197

Op. cit., p.113. 198

Ibid., p.112-113. 199

Obrigações, op. cit., p.148-149.

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contornar a discussão ou até mesmo ignorá-la, já que as consequências atribuídas pela

legislação são as mesmas em ambos os casos.200

Para Caio Mário da Silva Pereira, no mesmo sentido de Orlando Gomes, não existe na

lei e na doutrina moderna ou clássica diferenciação nítida entre as duas figuras. De qualquer

modo, segundo o artigo 393, parágrafo único, do Código Civil201

, ambas são o fato necessário

a cujos efeitos eram inevitáveis ou impossíveis de se impedir, impossibilitando, destarte, o

cumprimento da obrigação, sem que tenha existido culpa do devedor.202

200

Obrigações, op. cit., p.149. 201

O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou

impedir. 202

Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, Vol. 2, 2008, p.384-

385.

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2. A ATIVIDADE PROFISSIONAL MÉDICA E A

RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

2.1 Objeto do contrato e suas partes

O médico é o principal elemento no combate das moléstias que acompanham o

ser humano desde sua existência. Nesse sentido, a ciência médica atua na constante busca pela

preservação da vida, bem-estar e da saúde do homem, verdadeiros objetivos de todo e

qualquer contrato médico.

Em 1946, para a Organização Mundial da Saúde, a saúde foi reconhecida como

um direito fundamental, sendo conceituada como “um estado de completo bem-estar físico,

mental e social e não somente ausência de doenças ou outros agravos”, afirmação que leva ao

entendimento de que saúde não pode ser considerada apenas no âmbito individual, mas

coletivo, enfatizando ainda mais sua importância.203

A Constituição Federal trouxe, no artigo 196, que “ a saúde é direito de todos e

dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para

sua promoção, proteção e recuperação”.

Dessa maneira, idissociável do contrato médico a busca do profissional pela

preservação da vida, bem-estar e saúde do paciente, informação que também fornece as partes

do contrato: paciente, na busca de completo bem-estar físico ou psíquico, ou da eliminação de

enfermidades que tenha conhecimento portá-la previamente ou não; e o médico, capaz de

analisar com cuidado o estado de quem avalia e indicar os melhores caminhos a serem

traçados.

203

ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e

coletivos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.16.

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O Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009, do

Conselho Federal de Medicina204

) dispõe, quando trata dos princípios fundamentais: “o alvo

de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o

máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.

Para as relações médico-pacientes, regem-se, a princípio, as normas constantes

do Código Civil e, conjuntamente, os dispositivos constantes do Código de Defesa do

Consumidor. Como contrato de locação de serviço, dispõe o Código Civil nos artigos 594 a

609. Entretanto, não se olvide da hipótese, segundo alguns doutrinadores, de aplicação do

Código de Defesa do Consumidor às relações entre médicos e pacientes, na medida em que, a

uma, o paciente poderia ser considerado como consumidor, nos moldes do artigo 2º e, a duas,

o médico como fornecedor, segundo o artigo 3º, e a três o artigo 14, §4º, que fez uma ressalva

quanto à aplicabilidade da responsabilização subjetiva para os profissionais liberais, todos os

artigos do referido Código.205

Entretanto, isso será melhor visto no tópico referente à tutela

jurídica diferenciada do contrato médico.

2.2 Natureza jurídica da responsabilidade civil médica

Muitas discussões já foram travadas na perquirição da natureza jurídica contratual ou

extracontratual da responsabilidade civil decorrente da atuação médica.

Hodiernamente, segundo Sergio Cavalieri Filho, a responsabilidade de médicos e

hospitais dividem-se em dois ângulos a serem analisados distintamente: o primeiro quanto à

responsabilidade direta e pessoal do médico na atuação profissional liberal, já a segunda

quanto a responsabilidade médica pela prestação de um serviço médico revestido de forma

empresarial, tais como clínicas, hospitais, casas de saúde.206

204

Disponível: <http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=category&id=9&Itemid=122>.

Acessado em: 22 jul. 2013. 205

FARAH, Elias. Contrato profissional médico-paciente: reflexões sobre obrigações básicas. In: NERY

JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo:

Revista Dos Tribunais, 2010, Vol. V, p.367 e 371. 206

Op. cit., p.370.

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Mesmo assim, em relação ao tema em voga, as discussões referentes à natureza

jurídica da responsabilidade civil se fazem de suma importância. Quanto à natureza contratual

ou extracontratual, não há como negar que se há o exercício da atividade profissional

realizada pelo médico, dificilmente existirá outra relação que não contratual.207

Nas palavras de Miguel Kfouri Neto:

A jurisprudência tem sufragado o o entendimento de que, quando o médico atende a

um cliente, estabelece-se entre ambos um verdadeiro contrato. A responsabilidade

médica é de natureza contratual.208

Ora, a atuação do profissional liberal só se dará se houver a realização de um negócio

jurídico entre ele e o paciente para o desempenho da atividade esperada.

Maria Helena Diniz também se posicionou no sentido de a responsabilidade do médico

ser contratual, ainda que o Código Civil tenha trazido a matéria no capítulo destinado aos atos

ilícitos, pois o exercício médico só poderia resultar de natureza delitual a partir de ilícito penal

ou da violação de normas atinentes à prófissão.209

Para Teresa Ancona Lopez, a discussão quanto à natureza contratual ou

exatrcontratual do médico já está superada, pois, nitidamente, é contratual, mesmo que tal

responsabilidade seja tratada pelo Código Civil [de 1916] no capítulo dos atos ilícitos.210

Miguel Maria de Serpa Lopes, ao se referir ao artigo 1545, do Código Civil de 1916,

entende também que mesmo inserido no capítulo referente aos atos ilícitos não significa se

tratar apenas de responsabilidade extracontrual, de modo que o Código Civil (de 1916) apenas

quis resguardar o ressarcimento de prejuízos se ocorrer ato ilícito.211

É importante frisar que, atualmente, o artigo correspondente ao citado 1545 do Código

Civil de 1916 (provavelmente artigo em comento também da Maria Helena Diniz, e não 948,

do Código Civil) não mais se encontra no capítulo dos atos ilícitos, mas sim no capítulo

referente às indenizações (artigo 951, do Código Civil). De qualquer modo, isso apenas

reforça a tese de que a responsabilidade civil médica tem natureza contratual, pois, se o artigo

207

GONÇALVES, op. cit., p.238. 208

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.65. 209

Op. cit., p.299. 210

Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.318-319. 211

Op. cit., p.229-230.

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no Código Civil de 1916 estava inserido no capítulo dos atos ilícitos e ainda assim os

doutrinadores entendiam pela não exclusiva responsabilidade extracontratual, ainda com

maior razão hoje, retirado do capítulo dos atos ilícitos.

Para a atuação médica revestida de forma empresarial, a situação não é diferente,

mesmo diante da possibilidade de existir a figura de um intermediador entre os polos da

relação, pois em nada alterará a situação de relação como contratual, apesar de essa relação

estar pautada num contrato firmado entre paciente e instituição, e não entre paciente e médico.

Mas, de fato, diretamente, entre médico e paciente, não há contrato.

Pontes de Miranda lembra, outrossim, que:

Se o serviço médico provém de direito público, ou de prestação caridosa ou

beneficente ao público, sem qualquer remuneração pela pessoa que recebe o serviço

ou a obra, ou qualquer contribuição à entidade, tem-se de afastar a contratualidade

da responsabilidade.212

Pode surgir, ainda, a responsabilidade médica que não tenha origem em um contrato

em situações específicas, como um caso em que o médico atenda uma pessoa desmaiada ou

que não esteja bem em qualquer ambiente do quotidiano. Mesmo assim, havendo o dano, seja

por intermédio de contrato ou não, existirá o dever de indenizar.213

Nesse sentido, Maria Helena Diniz lembra que apenas em situações específicas o

médico responderá de maneira extracontratual, utilizando-se dos seguintes exemplos: se o

médico fornece atestado falso, consente com o exercício da medicina por pessoa não

habilitada ou se vale de técnica de tratamento cientificamente repudiada, dentre outros.214

2.2.1 Tutela jurídica diferenciada do contrato médico

Tendo sido observada a natureza contratual da relação entre médico e paciente, tal

conclusão deve ser vista com cautela quando analisada em conjunto com disposições legais

212

Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, T. 53, 2008, p.533. 213

KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.64. 214

Op. cit., p.299.

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especiais quando do tratamento específico conferido à responsabilidade médica. É importante

dizer que, como será visto abaixo, a partir desse regramento específico é possível entender o

porquê de a responsabilidade médica ser, ainda que contratual, subjetiva e com necessidade de

prova da culpa. A responsabilidade do profissional não decorrerá, assim, da simples

demonstração da ausência de resultados no diagnóstico ou tratamento, perfazidos de maneira

clínica ou cirúrgica, mas dependerá da prova a ser feita pelo paciente de culpa do profissional

médico, seja por negligência, imprudência ou imperícia.215

Miguel Kfouri Neto se posicionou:

A responsabilidade médica é de natureza contratual. Contudo, o fato de considerar

como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia

parecer, o resultado de presumir a culpa. O médico não se compromete a curar, mas

a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão.216

Dessa maneira, ainda que diante de um contrato, que normalmente bastaria ao credor

demonstrar o inadimplemento para presumir culpa do devedor, não é o que deve ser

considerado nos contratos médicos, já que, nessas hipóteses, o médico não se obriga a

alcançar a cura, mas apenas a empregar diligentemente os conhecimentos técnicos,

necessitando, pois, para responsabilização do profissional, a prova de que agiu com culpa, o

que deverá ser produzida pelo autor. Trata-se, pois, via de regra, da assunção de obrigação de

meio, e não de resultado, esta que poderá existir, excepcionalmente, como será apresentado

em tópico específico.

Entretanto, tal entendimento quanto à necessidade de prova da culpa do médico,

mesmo em se tratando de relação contratual, decorre da própria postura adotada pelo Código

de Defesa do Consumidor, no artigo 14, §4º, o qual se posicionou quanto à atuação de

determinados profissionais liberais que, a despeito de prestarem atividade de risco, caso do

próprio exercício da medicina, não estariam sujeitos à responsabilização objetiva trazida pelo

caput do artigo, entendimento que se mostra consonante com a disciplina do Código Civil, em

seu artigo 951.

Assim dispõe o artigo 14, caput, do Código de Defesa do Consumidor:

215

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.370. 216

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.65.

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O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela

reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação

dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua

fruição e riscos.

E seu parágrafo 4º:

A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a

verificação de culpa.

O artigo 951 do Código Civil assim tratou da matéria:

O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida

por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência

ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou

inabilitá-lo para o trabalho.

Assim, embora seja o médico um prestador de serviços, segundo alguns

posicionamentos, não deixará de responder, a princípio, mediante a verificação da culpa.

Importante destacar que essa escolha do legislador se mostra condizente com o próprio

exercício da profissão médica, que exige, muitas vezes, tomadas rápidas de decisão sem ao

menos a possibilidade de consulta ao paciente ou aos familiares, principalmente diante de

urgências que o caso concreto pode apresentar e, outrossim, trabalha com as incertezas da

própria ciência médica. Ora, aplicar a responsabilidade objetiva seria um verdadeiro

desestímulo à atuação do profissional, seja perante portadores de doenças graves ou não.

Por isso, necessários à apuração do dano os critérios subjetivos, que não podem, em

hipótese alguma, afastar o julgador da análise de todas as circunstâncias que envolvem o

atendimento, como a necessidade de tomadas de decisão rápidas pelo médico em caso de

urgência, das condições em que se encontrava o paciente, quais eram os recursos materiais

disponíveis no momento do atendimento, a própria presteza do profissional e, por fim, e

talvez a mais importante, os métodos utilizados pelo médico, se de acordo ou não com o que

recomenda a ciência.217

217

NADER, op. cit., p.406.

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Maria Helena Diniz, utilizando-se dos artigos acima mencionados – 948, do Código

Civil, e 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor – também acredita que a

responsabilidade dos médicos deve ser apurada subjetivamente, salvo exceções.218

Por outro lado, existem autores que se posicionam pela não aplicação do Código de

Defesa do Consumidor às relações travadas entre médicos e seus pacientes na defesa de que

não se trata de uma relação de consumo. Entretanto, a maior parte da doutrina entende pela

aplicabilidade do diploma, até mesmo em razão da precisão do que dispõe em seu já citado

§4º do artigo 14. Se traz uma exceção explícita apenas quanto à responsabilização dos

profissionais liberais é porque os considera inseridos no seu âmbito de aplicação.

De qualquer forma, vale dizer que, independentemente de aplicação ou não do Código

de Defesa do Consumidor, o Código Civil também trouxe a necessidade de verificação da

culpa do profissional para que exista o dever de indenizar.

2.3 Natureza do contrato da relação médico-paciente

Há divergência doutrinária quanto à natureza do contrato que permeia a relação entre

médico e paciente. Basicamente, são duas as principais correntes: para alguns, como José de

Aguiar Dias219

e Gualter Adolpho Lutz220

, trata-se de verdadeiro contrato sui generis, na

medida em que o médico não se mostra apenas como um consultor técnico ou como destinado

apenas a executar o ato previamente estipulado, mas também representa a figura de um

conselheiro e guardião do paciente e de toda sua família; para outros, trata-se de contrato de

prestação de serviços.221

José de Aguiar Dias lembra que entender a relação como simples locação de serviço é

desconsiderar, de maneira desatenta, “a feição especial da assistência médica”, pois o contrato

218

Op. cit., p.299. 219

Op. cit., p.330. 220

Erros e acidentes em odontologia. Rio de Janeiro, 1938, p.44. 221

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.370.

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exige “consciência profissional”, que não poderia ser alcançada pela definição da locação dos

serviços.222

Paulo Nader, por outro lado, explicita dois motivos para adoção do contrato como

prestação de serviços: o primeiro é o de que o contexto dos laços de amizade e orientação que

antes uniam médicos e seus pacientes não se mostra mais amparada pela realidade atual que

permeia a profissão, uma vez que os atendimentos médicos se mostram cada vez mais

massificados pelos atendimentos ligados aos convênios de planos de saúde, que pouco

valorizam a atuação do profissional, inclusive remunerando-o de maneira insuficiente. O

segundo é o de que muitas vezes as orientações possam estar baseadas em interesses e

conveniências, tais quais ocorrem numa relação entre fornecedor e consumidor.223

Assim, ainda que exista posicionamento em sentido contrário, o mais acertado

aparentemente é que se trata de uma contrato de prestação de serviço, a uma porque relações

de amizade, conselho, proteção e guarda tão antes presentes em ralações entre médico e

pacientes de mais a mais se mostram raras na atualidade e, a duas, pela aplicação à espécie,

como discutido alhures, o Código de Defesa do Consumidor, motivo pelo qual, supostamente,

perdeu a discussão razão de ser.224

2.4 Deveres do profissional na relação médico-paciente e condutas

inapropriadas

Analisados o objeto do contrato médico-paciente e sua natureza jurídica, e vista a

natureza jurídica da responsabilidade civil médica, cabe agora estudar os deveres de ambas as

partes desse contrato: médico e paciente.

Não há dúvida de que numa relação entre médico e paciente vários são os cuidados

que devem ser tomados por ambas as partes para a melhora sensível da possibilidade de se

alcançar o resultado esperado e pretendido.

222

Op. cit., p.330. 223

Op. cit., p.407. 224

CAVALIERI FILHO, op. cit., p.371.

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Em relação ao médico, conforme já exposto, ficou evidenciado uma dos maiores

empenhos que deve ter em relação ao paciente, qual seja o agir com cuidado e diligência no

desenvolver de suas atividades, seguindo-se, assim, os ditames consagrados pela ciência

médica.

Mas não é só. José de Aguiar Dias expõe outras obrigações que estariam implícitas do

contrato médico: conselhos, cuidados, obtenção do consentimento, abstenção de uso ou

desvio de poder e dever de sigilo.225

2.4.1 Dever de conselho

O dever de conselho se refere à necessidade de o médico instruir a pessoa sob seus

cuidados sobre as precauções indispensáveis que devem ser tidas diante do estado em que se

encontra. Há infringência a esse dever quando o médico não recomenda uma internação

necessária, por exemplo, ou quando não alerta seu paciente sobre algum procedimento que

deve ou não pode ser realizado em seu domicílio.226

Ainda incorre nessa infração o médico que não adverte seu paciente dos riscos de

intervenções e tratamentos, traduzindo-se, assim, num verdadeiro dever de informação, que

não pode ser negligenciado, tomando maior importância de acordo com o perigo da

intervenção.227

Em que pese existir uma grande discussão a respeito dos limites ao dever de

informação, principalmente ligados a aspectos do estado emocional e da psique do paciente,

bem ainda da dificuldade técnica, muitas vezes, em compreender os detalhes procedimentais,

o mais correto, quanto a isso, aparentemente está nos ensinamentos de René Savatier: não

deve haver tratamento perante o paciente que não esteja dotado da razão e da liberdade, e a

dificuldade de explanação técnica não pode se mostrar como um entrave para o mínimo

aconselhamento dos eventuais riscos do tratamento. Por fim, ainda que a moral impeça o

profissional de informar ao paciente sobre as conduções de seu tratamento, situação que de

225

Op. cit., p.337. 226

Ibid., p.337. 227

Ibid., p.337.

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acordo com o que a ciência médica recomenda deve ser vista como muita cautela, os

membros da família com autoridade sobre o doente devem ter informações completas.228

Inclusive o artigo 34, do Código de Ética Médica dispõe que é vedado ao médico:

Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos

do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa provocar-lhe dano,

devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Por outro lado, aparentemente claro está que o discutido acima não se aplica aos casos

de cirurgia estética, situação que exige a maior exaustividade possível de informações

prestadas pelo médico, não só em relação aos riscos da cirurgia, mas também em relação aos

medicamentos e procedimentos necessários.229

2.4.2 Dever de cuidado

Quanto ao dever de cuidado, trata-se da impossibilidade da prática de abandono do

paciente pelo médico, infração que pode ocorrer, por exemplo, se o profissional não atende ao

chamado do enfermo. Por outro lado, para se caracterizar a infração, deve existir no acordo

entre as partes entendimento no sentido ou haver necessidade de atendimento no caso

concreto, de acordo com a moléstia sofrida pelo paciente.230

Outro caso de violação ao dever contratual implícito de cuidado ocorre quando o

médico negligencia o doente que, em virtude de seu estado, morbidez, impossibilidade de se

autodeterminar ou inconsciência pela anestesia, por exemplo, pode causar danos a si mesmo,

os quais, se verificados no caso concreto, geram o dever de reparar do profissional. Lembre-

se, outrossim, que diante da infringência ao dever imposto, o médico pode responder não só

pelos danos que o paciente vier a sofrer, mas também pelos que vier a causar a terceiros.231

228

Op. cit., nº 782, p.398. 229

AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE,

Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista Dos Tribunais, Vol. V,

2010, p.512. 230

DIAS, op. cit., p.338. 231

Ibid., p.339.

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2.4.3 Obtenção de consentimento

A terceira obrigação implícita do contrato médico, segundo José de Aguiar Dias, se

refere à necessidade da obtenção do consentimento do paciente pelo médico para qualquer

intervenção ou tratamento de risco, lembrando que, via de regra, toda operação envolve risco.

Assim, o dever abarca não apenas uma resposta positiva do paciente, mas uma vontande livre

e consciente de se submeter ao procedimento depois de receber todas as explanações sobre

seus riscos e possíveis consequências.232

A regra, evidentemente, é excepcionada para os

casos de urgência e, diante dela, pelos prejuízos que podem ser causados ao paciente, o

médico está autorizado a agir sem seu consentimento.

José de Aguiar Dias expõe esta e outras hipóteses em que seria incompatível com a

realidade exigir o consentimento do paciente:

(...) a) quando se trata de alienado ou de menor: o consentimento não pode,

evidentemente, ser obtido deles, mas sim das pessoas sob cuja guarda estejam; b)

quando a operação ou tratamento se imponha como decisão de emergência, em face

do estado de necessidade ou de situação de perigo; se é possível obter o

consentimento dos parentes da pessoa em iminente perigo de vida, é claro que o

médico não agirá sem o haver obtido; c) quando em face do propósito suicida do

paciente: o médico não poderia, decerto, ater-se à consideração da vontade de quem

manifesta claramente não a possuir, intentando um gesto que se considera como

revelador de perturbação mental.233

Saliente-se, desde já, que a aquiescência não pode ser dada minutos ou até mesmo

horas antes da intervenção, na medida que a vontade do paciente deve ser construída ao longo

de um período de internalização e sopesação de todo o conjunto de informações, podendo

buscar outras fontes e motivos para a sua tomada de decisão. Um parco espaço de tempo ou,

ainda, a pressão do procedimento, não seria capaz de lhe oferecer tal gama de liberalidade ou,

pior, viciar-lhe-ia o consentimento.

232

Op. cit., p.340. 233

Ibid., p.341-342.

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José de Aguiar Dias, ainda, lembra quais são os procedimentos que necessitam do

consentimento prévio: operações cirúrgicas, anestesias, inoculação de vírus ou sérum,

tratamentos à base de eletricidade ou radiologia e, por fim, em tudo o mais que possa oferecer

perigo real.234

Para os demais casos, em que o médico dispense a obtenção do consentimento por

achá-lo desnecessário diante da ausência de contra-indicações, não há falta de advertência da

sua parte, dada a dispensabilidade do tratamento que não apresenta inconvenientes. Se,

entretanto, sobrevierem resultados inesperados e indesejados, a responsabilidade do

profissional se dará pela análise da culpa, vista sob o ângulo de fatos que poderiam ocasionar

o resultado danoso, em virtude de uma consequência normalmente não observada, e não pela

simples ausência de consentimento.235

Quanto a isso, Pontes de Miranda lembra: “o consentimento não afasta a

responsabilidade do médico por seus erros, ou descuidos, inclusive quanto ao diagnóstico”236

Como assevera José de Aguiar Júnior, se a intervenção, que era imprescindível,

causou dano, pouco importa a falta de informações ao paciente e, consequentemente, do

consentimento, a não ser para o pleito de danos morais, que ainda assim poderiam se

configurar; se o procedimento, diferentemente, era dispensável, o total esclarecimento do

paciente é de suma importância, já que de acordo com elas decide correr ou não o risco.237

Por outro lado, existem determinados casos em que, mesmo tendo sido o paciente

informado dos riscos da operação e ainda assim tenha decidido correr o risco, não pode o

médico, de maneira alguma, eximir-se de responsabilidade sob argumentação de ter cumprido

o dever de informação: são aqueles em que existe excessiva desproporção entre as vantagens

e desvantagens ou riscos de se submeter ao procedimento, como no caso da cirurgia estética.

Nesse casos, deve o médico se recusar a realizar a cirurgia.238

Miguel Kfouri Neto, no mesmo sentido, entende que se o médico decide prosseguir

com a cirurgia mesmo sabendo que os riscos que o paciente corre são desproporcionais em

relação aos benefícios vindouros pelo procedimento, nem a comprovação de causa adversa

234

Op. cit., p.341. 235

Ibid., p.340. 236

Op. cit., p.534 237

Op. cit., p.512. 238

DIAS, op. cit., p.342.

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estaria apta a elidir sua responsabilidade. Assim, ainda que tenha informado o paciente sobre

tais riscos e mesmo tendo obtido seu consentimento expresso, será o médico responsável

pelos danos.239

Para José de Aguiar Dias, o médico deve recusar-se, ainda que reconhecida a

necessidade da cirurgia, a realizar o procedimento se este é desproporcional em relação aos

perigos e benefícios que trará ao paciente. Completa, ainda, ser impossível não atribuir ao

profissional responsabilidade pelo eventual dano ocorrido em cirurgia estética contrária ao

preceituado acima, de modo que sempre estaria ele obrigado a produzir prova de que a

operação, uma vez realizada normalmente, não ofereceria riscos desproporcionais aos fins

pretendidos.240

Henri Mazeaud, Léon Mazeaud e Jean Mazeaud partilham da mesma ideia ao

lembrarem que, em se tratando de ato cirúrgico perigoso com fins meramente estéticos, ainda

que exista não apenas informação ao paciente, mas também seu consentimento expresso,

aceitando os riscos e suplicando ao médico a intervenção, não há a possibilidade de se afastar

a ilicitude do ato cometido pelo cirurgião.241

De qualquer modo, tamanha a importância da obtenção do consentimento, obrigação a

ser observada pelo médico, que, hoje, fala-se em consentimento esclarecido. Genival Veloso

de França assim define o termo:

(...) o obtido de um indivíduo capaz civilmente e apto para entender e considerar

razoavelmente uma proposta ou uma conduta médica, isenta de coação, influência

ou indução.242

Complementa, ainda, lembrando que deve ser desconsiderado o consentimento obtido

pelo singelo ato de assinatura do formulário escrito com textos minúsculos e lido de maneira

apressada momentos antes do procedimento médico, pois existe a real necessidade de uma

linguagem acessível ao nível de conhecimento e compreensão do paciente, imperativo do

princípio da informação adequada.243

239

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.172. 240

Op. cit., p.379. 241

Traité theórique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. 6. ed. Paris:

Montchrestien, T. II, 1970, p.603. 242

Op. cit., p.210. 243

Ibid., p.210.

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Assim, o consentimento esclarecido vai além do simples informar ao paciente, ou

tomar o médico sua anuência por meio de formulário técniccos e muitas vezes difícieis de

serem entendidos; é o ter certeza de que o paciente tem a exata noção do que lhe pode

acontecer, com segurança e confiança, utilizando, o médico, para tanto, de liguagens menos

técnicas e conferindo tempo suficiente para o discernimento.

Para Edmilson de Almeida Barros Júnior, a ausência da obtenção do consentimento é

afronta à autonomia da vontade do paciente e aos seus direitos de personalidade, sendo que o

verdadeiro consentimento se baseia em escolhas tomadas a partir de informações claras e

precisas, para uma avaliação consciente de todas as opções e riscos. Considerando que o

paciente tem pouco ou nenhum conhecimento da técnica médica, é dever de seu médico guiá-

lo na tomada de uma decisão esclarecida.244

2.4.4 Abstenção de abuso ou desvio de poder

Por seu turno, o dever de abstenção de abuso ou de desvio de poder se refere à

vedação de o médico praticar experiências médicas sobre o corpo humano, a não ser no

ímpeto de frear mal que acomete o paciente de riscos à sua vida ou integridade. Ainda que aja

desinteressadamente, a responsabilidade do médico por violação a esse dever persiste.245

René

Savatier lembra que a vedação persiste até mesmo com o consentimento do paciente, pois

ainda assim a intervenção experimental não se justificaria diante da ausência de benefícios à

saúde do paciente246

, mas, pelo contrário, poderia colocá-lo em risco.

Nesse mesmo sentido, está o médico proibido de extrapolar os limites contratuais

estabelecidos; logo responderia por eventuais danos decorrentes da recusa em chamar médico

especialista a pedido do doente ou de sua família ou, ainda, se o médico assistente se recusar a

cumprir determinação do médico especialista, salvo expressa autorização contratual em poder

fazê-lo.247

244

Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.36. 245

DIAS, op. cit., p.343. 246

Op. cit., nº 787, p.404. 247

DIAS, op. cit., p.344.

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Não só o contrato, mas também não pode violar a lei, podendo ser

administrativamente ou penalmente responsabilizado e, ainda, obrigado a reparar os danos

decorrentes. Tal violação pode ocorrer, por exemplo, se se valer de auxiliares não habilitados,

praticar aborto em casos não permitidos pela legislação e receitar substâncias tóxicas que

satisfaçam o vício do paciente. Segundo José de Aguiar Dias, estaria caracterizada presunção

de culpa do médico pelas lesões causadas ao seu paciente em se tratanto de exercício ilegal da

medicina.248

2.4.5 Dever de sigilo

Já o dever de sigilo se mostra como outra importante obrigação constante do contrato

médico. Por ela, restringe-se a atuação do profissional no sentido de não divulgar informações

relativas aos seus pacientes a outrem, admitindo-se, quando muito, informações genéricas em

situações especiais, como quando envolver pessoas públicas, por exemplo.249

O Código de Ética Médica tem, em seu capítulo I, como princípio fundamental, o

sigilo: “XI – o médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha

conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei.”

Mas vai além e dedica um capítulo inteiro ao tema, tamanha sua importância. Trata-se

do capítulo IX, que contempla os artigos 73 a 79.

Em suma, o sigilo médico é o verdadeiro guardião da confiança que permeia a relação

entre o médico e paciente, na medida em que, não há como se negar, aquele se torna um

confidente deste, obrigando-se, então, a manter sigilo das informações obtidas pela sua

atuação profissional. Desnecessário mencionar, assim, que, se houver desrespeito a essa

confiança, caracterizado estará o dano moral e talvez até mesmo danos patrimoniais de difícil

cálculo.250

248

Op. cit., p.344. 249

Ibid., p.346. 250

BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Código de ética médica comentado e interpretado (resolução

CFM 1.931/2009). São Paulo: Atlas, 2011, p.66-67.

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Pontes de Miranda comenta que, na verdade, o dever do médico é de discrição, ainda

mais amplo que o dever de sigilo, na medida em que o profissional não pode divulgar até

mesmo os fatos que teve conhecimento pelo paciente não necessariamente ligados ao

exercício da profissão.251

Para Genival Veloso de França, a quebra do sigilo profissional é grave ofensa à

liberdade do indivíduo, agressão a sua privacidade ou mesmo atentado ao exercício da sua

vontade, podendo ainda ser considerado como cospiração à ordem pública e aos interesses

coletivos.252

Ora, intimidade e privacidade do paciente, como regra, não podem ser violadas. Trata-

se de verdadeiro pilar constitucional trazido pelo artigo 5º, inciso X:

São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,

assegurado o direito à indenização pelos danos material ou moral decorrente de sua

violação.

Evidentemente, assim como os demais princípios constitucionais, o sigilo não é

absoluto, podendo ser mitigado se sopesado em ralação a outros deveres do profissional. São

três, taxativamente, as situações em que o sigilo pode ser quebrado: dever legal, justa causa e

autorização expressa, prévia e por escrito do paciente ou representante legal. O dever legal é a

necessidade de revelação do segredo em virtude de determinação expressa legal; são os casos

de de doenças com notificação compulsória, mormente ligados a saúde pública ou deveres

sociais, como suspeitas de maus-tratos a crianças e idosos. Já a justa causa caracteriza-se se a

revelação do segredo for o único meio apto a afastar perigo injusto e atual ou iminente que

recaia sobre o profissional ou terceiros.253

Genival Veloso de França lembra que hodiernamente o sigilo médico não se reveste

mais da sacralidade e inviolabilidade da confissão, mas constitui instrumento social em favor

do bem comum e da ordem pública. Logo sua revelação em situações justificáveis não podem

251

Op. cit., p.536. 252

Op. cit., p.131. 253

BARROS JÚNIOR, Código de ética médica 2010 comentado e interpretado (resolução CFM

1.931/2009), op. cit., p.67-68.

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configurar infrações éticas ou legais, principalmente em situações que envolvam a proteção de

um interesse contário superior.254

Não se deve esquecer, entretanto, que, com exceção das hipótes mencionadas, a

quebra do sigilo será vista como falta de ética profissional, podendo gerar responsabilizações

administrativas, cíveis e até mesmo penais do profissional médico e de todos os outros

funcionários administrativos ou que manuseiem as informações de alguma forma em razão do

ofício ou profissão.255

É o que se pode inferir do entabulado no artigo 154, do Código Penal,

tipificando como conduta criminosa a violação de segredo profissional:

Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função,

ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem.

Além desses verdadeiros deveres do profissional enumerados por José de Aguiar Dias,

Genival Veloso de França frisa a importância de outro: é o dever de atualização.256

Segundo o doutrinador, a simples habilitação legal não é requisito único para o regular

exercício da profissão. Manter-se atualizado e num aprimoramento continuado, como adquirir

constantemente o conhecimento de técnicas de exame e meios de tratamento mais recentes é

condição essencial ao bom exercício médico. Lembre-se que avaliações em juízo do

profissional podem ser feitas, buscando-se se agiu com a falta de conhecimentos ou

habilidades.257

2.4.6 Condutas inapropriadas

Genival Veloso de França ainda enumera de maneira sistemática quais são algumas

condutas inapropriadas que pode o médico cometer e que representam fatores de risco

contribuidores de maneira significativa para um possível e futuro mau resultado da

intervenção: relação médico-paciente desgastada; a falta de condições adequadas de trabalho;

254

Op. cit., p.131. 255

BARROS JÚNIOR, Código de ética médica 2010 comentado e interpretado (resolução CFM

1.931/2009), op. cit., p.69. 256

Op. cit., p.212. 257

Ibid., p.212.

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o abuso de poder, ou seja, precipitação, inoportunismo ou insensatez da conduta; a falsa

garantia de resultado; a falta de consentimento esclarecido; o preenchimento inadequado de

prontuários; a precária documentação dos procedimentos realizados, dentre outros. Tais

fatores mostram desde já sua íntima relação com os deveres dos médicos que, quando

cumpridos, podem significar sobremaneira a redução de maus resultados em intervenções

médicas.258

Em relação aos prontuários, por oportuno lembrar Edmilson de Almeida Barros Júnior

no sentido de que tudo o que envolva o paciente deve estar documentado de forma exaustiva

no prontuário, pois se trata de elemento primordial da demonstração da verdade, fator buscado

pelas cognições judicias. Destarte, não se pode considerar o prontuário como mera burocracia,

devendo ser formulado sempre com vistas a possíveis implicações de ordem técnica, ética ou

até mesmo legal, situações em que o documento carregará consigo valor probatório

fundamental.259

2.5 Deveres e direitos do paciente

A análise da responsabilidade civil do médico, muitas vezes, pode levar o estudioso a

incorrer no erro não incomun de acreditar que apenas o médico, como agente ativo em relação

ao tratamento, tem deveres.

Tal equívoco é facilmente percebido quando se nota que o paciente é sujeito

diretamente envolvido no seu próprio tratamento.

Dessa maneira, antes de mais nada, o paciente tem o dever de remunerar o médico, de

acordo com o estipulado no contrato de prestação de serviço, seja ele realizado por escrito ou

verbalmente. Importante lembrar que tal remuneração pode se dar de maneira direta, com

258

Op. cit., p.243-244. 259

Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.111.

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recursos próprios do paciente oferecidos ao médico, ou indireta, para os casos em que o

paciente se vale de sua condição de usuário do Sistema Único de Saúde, por exemplo.260

Outrossim, a segunda obrigação do paciente em relação médico, mais importante que a

primeira para o presente estudo, já que reflete diretamente sobre o tema de responsabilidade

civil do profissional, é o dever de seguir todas as recomendações terapêuticas e conselhos dos

profissionais, tais como prescritos, pois isso refletirá diretamente no resultado do

tratamento.261

Não se pode esquecer que a constatação de o paciente ter seguido ou não as

recomendações do médico é premissa básica para apuração de responsabilidade deste. Se o

paciente não se mostrou comprometido em seguir o que lhe foi prescrito, torna-se

praticamente impossível aferir se, em caso de não se obter o resultado esperado pela

intervenção médica, a culpa foi efetivamente do médico ou do paciente. Inclusive, o

descumprimento de qualquer um dos deveres impostos ao paciente significa resilição do

contrato, podendo o médico abster-se de continuar o tratamento.262

Vale lembrar que o não cumprimento pelo paciente das recomendações médicas pode

significar rompimento do nexo de causalidade entre conduta e dano, seja por culpa exclusiva

da vítima ou por culpa concorrente, esta difícil de ser caracterizada na prática médica. De

qualquer modo, Maria Leonor de Souza Kühn lembra que, em se tratando de causa

concorrente, pode haver a diminuição da responsabilidade do agente.263

Nesse mesmo sentido, não pode também o paciente omitir aspectos da sua vida e de

seus parentes, devendo prestar informações que entender necessárias e as solicitadas pelo

médico com toda a fidelidade, pois somente assim poderá o médico receitar o tratamento

adequado à circunstância.264

Noutro giro, como é cediço, ao paciente são assegurados alguns direitos essenciais à

sua condição, tais quais já tratados alhures quando das obrigações implícitas ao contrato

médico.

260

MÉMETEAU, Gérard; MÉLENNEC, Louis. Traité de droit médical. Paris, Maloine, 1982, T. 2, p.14-15,

apud KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p. 28. 261

Ibid., p. 28. 262

Ibid., p. 28. 263

Responsabilidade civil: a natureza jurídica da relação médico paciente. Barueri: Manole, 2002, p.30. 264

ALCÂNTARA, Hermes Rodrigues de. Responsabilidade médica. Rio de Janeiro: José Konfino, 1971, p. 79.

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O primeiro direito, base da relação entre o médico e o paciente, é o relacionado à

confiança que este deve ter sobre aquele, pois, segundo Hermes Rodrigues de Alcântara, ante

a ausência de confiança, dificilmente haverá êxito no procedimento. Assim, o paciente tem

não só o direito de confiar no médico escolhido, mas também de dele desconfiar se julgar que

é caso.265

O direito à informação merece outras considerações. Lembre-se que o tema é

amplamente discutido pela doutrina atual, procurando definir quais são os limites do dever de

informação na relação médico-paciente. É certo que tal discussão não será aprofundada para

os fins dedicados por esse estudo, entretanto, tal aspecto se revela como um verdadeiro direito

do paciente, na medida em que, para tomar todas suas decisões de maneira livre e consciente,

deve ter pleno conhecimento sobre tudo aquilo que envolve o seu caso.

Ernst Christian Gauderer aponta que é direito do paciente obter todas as informações

que envolvam o seu caso de alguma forma, de maneira legível e, inclusive, cópias de sua

documentação, como prontuários, exames – desde raios X a anotações de enfermagem –,

laudos diversos e avaliações realizadas.266

Nesse sentido, quanto à importância do paciente ter conhecimento sobre tudo aquilo

que envolve os aspectos do seu tratamento, ela pode ser também explicitada por meio do

mecanismo criado pelo ordenamento jurídico para possibilitar o seu alcance aos documentos

necessários para tanto: trata-se do habeas data. Ernst Christian Gauderer lembra que o

cabimento do habeas data só é possível em razão de as informações sobre a saúde

pertencerem ao próprio paciente, não ao médico ou ao hospital:

O paciente ou o seu responsável têm o direito de saber todos os dados a respeito do

seu corpo, de sua saúde ou de sua doença, uma vez que esse corpo, essa saúde e

inclusive a doença lhe pertencem, e não ao médico. O paciente permite ao médico

ou ao profissional de saúde lidar com ele, mas não lhe outorga necessariamente o

direito de, unilateralmente, na maioria das vezes, decidir por ele.267

Hermes Rodrigues de Alcântara volta à ideia já colocada quanto ao dever de

informação posto ao médico em relação ao seu paciente quando se refere ao consentimento. A

integridade corporal é intangível e constitui princípio não só jurídico, mas também filosófico

265

Op. cit., p. 78. 266

Os direitos do paciente. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.47 e seguintes. 267

Ibid., p.47.

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essencial. Nesse sentido, não basta a simples liberdade conferida ao paciente para tomar suas

decisões, mas precisa ser capaz de entender e avaliar a situação como um todo, inclusive

quanto às possíveis consequências que podem decorrer da atitute tomada.268

Mas não é só: Ernst Christian Gauderer aponta como direito do paciente a ampla

gravação de atos cirúrgicos e demais procedimentos médicos para posterior análise e melhor

aferição do que lhe foi dito, até mesmo para evitar interpretações equivocadas de tudo o que é

feito ou discutido durante a relação médico-paciente; isso serve para melhorar inclusive o

amadurecimento emocional a respeito de se sujeitar ou não a determinado procedimento

médico, já que a situação fora do consultório pode favorecer a compreensão269

.

Em bem da verdade, o ponto-chave da questão não é descobrir se, cada dia mais, há

maior ingerência por parte do paciente em relação ao médico, mas o fato é que o paciente está

se valendo de todos os artifícios que lhe estão disponíveis para coibir com todas as forças

erros cometidos pelos profissionais da saúde.

2.6 Obrigação de meio e resultado

Vistas todas as obrigações que incumbem a cada uma das partes no contrato médico,

cumpre estudar, para fins de apuração da responsabilidade do profissional, qual o tipo de

obrigação assumida por ele, ou seja, se ela tem caráter de meio ou de resultado.

A distinção entre obrigação de meio e de resultado é atribuída ao jurista francês René

Demogue.270

Na obrigação de meio, o profissional assume a obrigação de empreender todos

os seus esforços com intutito de alcançar o resultado esperado, sem, no entanto, garanti-lo.

Obriga-se, assim, a utilizar a melhor técnica e todo o cuidado e diligência na realização de sua

268

Op. cit., p. 77. 269

Op. cit., p.22 270

DEMOGUE, René. Traité des obligations em general. Paris: Librairie Arthur Rousseau, T. 5, 1925, nº 1.237,

p.537 e seguintes, apud LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, p.186.

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atividade na tentativa de alcançar determinado resultado, o qual não se sabe se será desfrutado

ou não.271

Por outro lado, a obrigação de resultado impõe ao profissional o dever de atingir

determinado resultado ajustado com o paciente, sem o qual não terá adimplido a obrigação

assumida.272

Na grande maioria das obrigações assumidas pelos médicos, vê-se que são obrigações

de meio, na medida em que, mesmo utilizando a melhor técnica e o melhor empenho, não

garantem o resultado. A partir disso, tem-se por essencial a busca incessante do profissional

pelo diagnóstico do paciente, ou seja, análise clínica que concluirá pelo estado sadio ou

doentio e, assim, apontar a necessidade do tratamento específico ou não.273

As maneiras para apuração do estado clínico do paciente são muitas e vão desde a

própria experiência do médico até a necessidade de exames laboratoriais. Assim, o médico, ao

prescrever o tratamento, deve se ater à melhor solução para o caso concreto, situação em que

não poderá ser responsabilizado, ainda que sobrevenha insucesso do procedimento realizado.

Se o médico, entretanto, optou pelo tratamento não mais adequado ao caso, deve ser

responsabilizado, uma vez que agiu com culpa baseada na imperícia.274

Entender o contrário seria cair no absurdo de responsabilizar médicos que não curam

seus pacientes em situações de doenças incuráveis ou ligadas ao próprio organismo humano,

que é imprevisível, o que não condiz com a própria atuação do profissional dessa área. É

preciso lembrar que o médico age na tentativa de livrar o seu paciente de agruras e doenças,

bem ainda, em determinados casos, postergar-lhe a vida, mas não garante a cura, tampouco a

vida eterna. Logo, não há falar-se em inadimplemento contratual pelo não alcance da cura ou

do resultado esperado com o tratamento.

Entretanto, existem outros tipos de obrigações assumidas pelos médicos que ganham

maior destaque pela doutrina e jurisprudência em razão da diculdade em classificá-las como

de meio ou de resultado. Trata-se da cirurgia estética, que, segundo Miguel Kfouri Neto, tem

271

LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, p.187. 272

Ibid., p.187. 273

LOPEZ, O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.53. 274

NADER, op. cit., p.410.

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como gênero a cirurgia estética propriamente dita, e como espécies desta a cirurgia de

caráter estritamente estético e a cirurgia estética “lato sensu”.275

Para o autor, a cirurgia de caráter estritamente estético é aquela realizada com

intenção única e exclusiva do paciente de promover alteração física, com fim puramente

embelezador, no próprio corpo, este que não apresenta qualquer imperfeição; o que se busca,

desse modo, é tornar uma parte do corpo que não destoa das demais ainda mais bela. De se

notar que tal cirurgia apresenta um grande risco para o paciente, pois o médico pode lesionar

aquilo que já se encontra em perfeitas condições, motivo pelo qual o profissional se obriga ao

resultado, submetendo-se à presunção de culpa pelo eventual dano causado e ao ônus de prova

para eximir-se de responsabilidade.276

Por outro lado, a cirurgia estética “lato sensu” não apresenta grandes riscos ao

paciente, na medida em que busca a correção de pequena deformidade física congênita

causadora de incômodo de ordem psíquica à pessoa. Seria o caso do paciente de rosto belo

mas que apresenta um nariz irregular e destoante do conjunto. Realizado o procedimento, não

estaria o médico obrigado a atingir resultado específico, mas apenas a empregar todo o

cuidado e diligência próprios da profissão. De todo modo, ainda que possa se tratar de uma

valoração subjetiva do paciente quanto aos resultados277

, nada impede que ingresse com um

pedido para o julgador analisar a situação.278

Diferenciam-se, de plano, da cirurgia plástica reparadora, que ocorre na busca pelo

profissional em reverter enfermidade física de origem congênita ou traumatológica; assim, a

obrigação assumida é a de meio, pois não poderia o cirurgião ser responsabilizado em não ter

conseguido alcançar o resultado, mesmo que tenha utilizado toda a técnica recomendada pela

medicina.279

O certo é que a doutrina e jurisprudência pátria não subdividem a cirurgia estética

propriamente dita e acabam por considerá-la como uma só, sendo que, em se tratando de

275

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.175. 276

Ibid., p.175. 277

VERÓN, Michel. Traté de droit médical. Paris: Maloine, T. 3, 1984, p.27-28 apud KFOURI NETO,

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.175. 278

KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.175. 279

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: obrigações. 8. ed.

São Paulo: Saraiva, Vol.II, 2007, p.97.

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cirurgia plástica com fins exclusiva ou preponderantemente embelezadores, são consideradas

não como obrigações de meio, mas de resultado.

Genival Veloso de França divide as cirurgias plásticas em reparadora ou restauradora e

estética. Em relação às primeiras, defende a ideia de se tratarem de obrigações de meio, na

medida em que o cirurgião da especialidade enfrente momentos de complicação e delicadeza

pecualiar, principalmente diante de situações de urgência e emergência, quando são

enfrentadas condições excepcionais e precárias, tal como a dramática eminência de morte.280

No mais, considerando tudo o que foi explanado sobre as obrigações de meio, em que

há apenas o comprometimento do profissional em empregar todos os esforços ao alcance da

ciência médica e de recursos existentes para o alcance de um resultado, sem, no entanto,

garanti-lo, não teria como afastar tal modalidade de obrigação do cirurgião plástico no ato

reparador ou reconstrutor, pois o objeto do contrato é a assitência ao paciente, mas nunca a

garantia do resultado. Segundo o doutrinador, entender o contrário seria não considerar a

própria função da cirurgia reparadora, qual seja não a simples atribuição ao paciente de uma

aparência de normalidade, mas salvar, recuperar ou reconstruir órgãos. E mais: não em uma

situação quotidiana, mas levando em consideração todas as condições fisiológicas e

patológicas do paciente, bem ainda as limitações impostas pela ciência médica.281

Isso não significa, entretanto, que o cirurgião reparador não cometa erros ou incorra

em condutas prejudiciais culposas ao paciente, como em qualquer outro procedimento

médico, seja no diagnóstico, terapias ou técnicas, mas, conforme visto, não pode ser

considerada como obrigação de resultado.282

Situação diferente é encontrada na cirurgia plástica estética, em que, para Genival

Veloso de França, existe uma tendência de se aceitar tal obrigação como de resultado sob o

argumento de que ninguém, gozando de boa saúde, procuraria um médico unicamente pelo

intuito de melhor aspecto seu se não lhe fosse garantido certo resultado.283

280

Op. cit., p.270. 281

Ibid., p.270-271. 282

Ibid., p.271. 283

Ibid., p.272.

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Evidentemente, existe corrente minoritária no sentido de que a cirurgia estética se

insere nos mesmos moldes de quaisquer outras atividades médicas, devendo o cirurgião

estético receber tratamento semelhante a qualquer profissional da área.284

Genival Veloso de França lembra que a jurisprudência francesa, por exemplo, quando

se pronunciou sobre os primeiros casos dessa natureza, era pouco favorável aos médicos, e

considerava culpável todo e qualquer dano proveniente da modalidade de cirurgia estética,

considerando, inclusive, dispensável a análise de imprudência, imperícia ou negligência do

profissional, salvaguardando a vida e a saúde do paciente praticamente sob o véu de uma

responsabilidade objetiva.285

De qualquer forma, os tribunais pátrios, conforme será observado quando da análise

jurisprudencial, parecem dividir de maneira estanque as cirurgias plásticas entre reparadoras

(ou reconstrutoras) e em estéticas, considerando, de forma geral, as primeiras como obrigação

de meio e a segunda como obrigação de resultado286

. Genival Veloso de França, por seu

turno, deixa clara a tese de que independentemente da forma de obrigação assumida, seja de

meio ou de resultado, o que deve ser apurado após o surgimento do dano é a responsabilidade,

que levará em conta grau de culpa, nexo de causalidade e dimensão do dano. Obrigação de

meio e de resultado definem apenas o ônus probatório.287

Neri Tadeu Câmara de Souza também já se pronunciou quanto ao tema:

E, não resta dúvida, sendo uma obrigação de meios (é a unanimidade na doutrina e

jurisprudência brasileiras) aquela através da qual o médico contratou com o

paciente, cabe ao médico agir com diligência e prudência, dentro da "lex artis", para

que tenha adimplido com aquilo pelo qual se obrigou. Ou seja, deve atuar dentro da

melhor técnica compatível ("estado da arte") com o local e tempo do atendimento

médico que realizar. A cura não pode ser o objetivo maior devido à característica de

imprevisibilidade do organismo humano – mormente em estado de doença, o que se

reflete em limitações no exercício da medicina. Já não se pode dizer o mesmo

quando estivermos frente a um atendimento médico por ocasião de uma cirurgia

plástica estética (para os casos de cirurgia plástica reparadora cabe a afirmação de

caracterizar-se como uma obrigação de meios). A doutrina e a jurisprudência

284

KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.159. 285

Op. cit., p.272. 286

Vale lembrar que no caso de cirurgias plásticas que têm como finalidade sanar deformidade oriunda de outra

cirurgia plástica a obrigação assumida é de meio e não de resultado. 287

Op. cit., p.272.

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brasileira são unânimes, pelo menos até o presente momento, em considerar os casos

de cirurgia plástica estética como um contrato cujo objeto é uma obrigação de

resultado.288

Para Flávio Murilo Tartuce Silva, a questão vai além da presunção de culpa do

médico, pois não mais se está no campo da verificação subjetiva da responsabilidade do

cirurgião, mas, sim, de acordo com outros posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais,

trata-se de responsabilidade objetiva do cirurgião estético.289

Para Nehemias Domingos de Melo, predomina na doutrina e jurisprudência nacionais

o entendimento amplamente majoritário, referindo-se até mesmo numa unanimidade, de que

cirurgias plásticas estéticas são obrigações de resultado, baseando-se, para tanto, numa lógica

de tratamento diferenciado pelo fato de um paciente saudável sujeitar-se ao procedimento

para melhor sua aparência. Existe, pois, um fim determinado e definido de maneira clara,

aceito pelo médico, que está adstrito ao resultado e, se não alcançá-lo, apenas se exonerará de

responsabilidade, se provar, a seu encargo – independenetemente da possibilidade de inversão

do ônus probatório admitido pela lei consumerista – caso fortuito, força maior, culpa

exclusiva da vítima ou de terceiro. Diferencia, por fim, o tratamento que deve ser dada à

cirurgia reparadora, a qual se insere dentre as obrigações de meio em razão da busca por

correções de lesões congênitas ou adquiridas, e não pela simples melhora na aparência.290

Para Caio Mário da Silva Pereira, outrossim, a cirurgia estética encerra obrigação de

resultado, não de meio, pois para o autor não há enfermidade, mas apenas a busca para a

correção de uma imperfeição, devendo o profissional, dessa maneira, se recusar a relaizar o

procedimento se não tem condições de alcançar o resultado.291

Rui Stocco, por seu turno, seguindo a mesma linha se Silvio Rodrigues, José de

Aguiar Dias e Caio Mário da Silva Pereira, vê a cirurgia estética como obrigação de resultado

e acredita ser difícil sustentar a tese de que na verdade encerra obrigação de meio, em

primeiro lugar porque o resultado é peculiar ao tipo de intervenção cirúrgica e, em segundo

lugar, porque a propaganda é tão massiva em cima do embelezamento pessoal e dos

288

Responsabilidade civil do médico. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2582/responsabilidade-

civil-do-medico>. Acesso em: 07 mai. 2013. Acessado em 7 mai. 2013. 289

Informação fornecida por Flávio Murilo Tartuce Silva em aula ministrada on-line no curso LFG. Acesso em

16 jul. 2013. 290

Responsabilidade civil por erro médico: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2008, p.71. 291

Responsabilidade civil, op. cit, p.169.

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excelentes resultados que tais operações causam, que deixam evidente a expectativa de

resultado.292

Orlando Gomes também vê a cirurgia estética como obrigação de resultado, já que,

tendo o médico prometido determinado resultado ao paciente, o adimplemento do contrato

apenas se dará quando do alcance do resultado. Não alcançado o resultado, indubitável o

dever de indenizar, a não ser que prove ter o malogro ocorrido por fatores alheios ao seu bom

procedimento.293

Lembre-se que, basicamente, como já dito, o principal argumento para aqueles que

defendem a cirurgia plástica como obrigação de resultado é o de que ninguém se submeteria,

plenamente são e saudável, a procedimento que poderia vir a piorar-lhe a situação; por isso a

necessidade de certeza do resultado, tal quel acordado com o médico.

Para Miguel Kfouri Neto, então, este é o grande mote de inúmeros julgados que vão de

encontro ao explicitado, que ainda se impressionam com o fato de pessoas que têm leves

incorreções, com as quais poderiam perfeitamente conviver durante toda a vida, acabam, no

caso de insucesso da cirurgia, com aleijões irrecuperáveis.294

Por outro lado, observando-se doutrinas estrangeiras, julgados e posicionamentos

pátrios, a “unanimidade” apresentada por Neri Tadeu Câmara de Souza e Nehemias

Domingos de Melo parece não ser tão contundente. É o caso de Luís Andorno, jurista

argentino que vê, principalmente em razão do comportamento da pele humana, a

imprevisibilidade em toda e qualquer intervenção cirúrgica; logo, não estaria o cirurgião

plástico adstrito a um resultado, mas tão-somente em empregar as técnicas e meios adequados

para obtenção do melhor resultado possível.295

Destarte, aponta, cada vez mais tem ganhado força a tese de que cirurgias plásticas

estéticas não são meras futilididades modernas, mas têm finalidades terpêuticas e curativas;

não apenas do corpo, é certo, mas nas interferências que este causa no equilíbrio da psique

humana, ainda mais se considerada a interdependência entre ambos os fatores verificados no

292

Op. cit., p.571. 293

Questões de direito civil: pareceres, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.451. 294

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 295

ANDORNO, Luis O. La responsabilidad civil médica. Porto Alegre: Ajuris, 1993, n. 59, p.235, apud

KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.177.

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atual estágio de desenvolvimento cultural. Assim, não se poderia ignorar que o melhoramento

estético reflete na saúde do paciente e lhe gera bem-estar físico e mental, o que altera

significativamente a visão tradicional da cirurgia estética como obrigação de resultado, já que

não se estaria buscando uma cura, mas os cuidados que são tão caros à medicina.296

Dessa maneira, continua Miguel Kfouri Neto, a busca da cura ou dos cuidados da

medicina estará ligada ao grau de previsibilidade adquirido pelas inúmeras especialidades

médicas, ou seja, apenas atos médicos de extrema simplicidade se amoldariam às obrigações

de resultado. Não é o caso da cirurgia estética, que, como qualquer outra especialidade

médica, se submete ao imprevisível de cada organismo humano.297

Edmilson de Almeida Barros Júnior admite, outrossim, que ainda prevalece

majoritariamente o posicionamento da cirurgia estética como obrigação de resultado, mas que

tal entendimento é equivocado. Para ele, o magistrado deve ter consciência de que a pessoa

que se submete à cirurgia é doente, pois é portadora de uma patologia tão grave quanto uma

enfermidade meramente física. Para muitos, a aparência representa um bem superior, logo, o

tratamento estético se mostra como um solucionador de uma aflição moral causadora de

grande sofrimento, inclusive retração social e pessoal, lembrando que atualmente o conceito

de saúde ultrapassou a mera ausência de enfermidade e atingiu a psique ao entender saúde

também como bem-estar.298

Não se olvide ainda que para o autor o campo de trabalho da cirurgia estética está na

imprevisibilidade do corpo humano. E complementa com a inaceitação de atribuir ao médico

obrigação de resultado:299

Exigir do médico a obrigação de resultado é o mesmo que exigir do profissional a

onipotência, a onisciência e a infalibilidade divina, sendo ele senhor absoluto da

vida, da saúde e da morte e, por que não dizer, da beleza e da resposta controlada

dos fenômenos fisiopatológicos do corpo de seu paciente.300

296

KFOURI NETO, Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias

dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria

responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.263. 297

Ibid., p.267. 298

Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.141. 299

Ibid., p.142-143. 300

Ibid., p.143.

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Gualter Adolpho Lutz já se pronunciou a esse respeito e lembrou que ainda em

tratamentos legítimos, acidentes podem ocorrer mesmo que todas as precauções estejam

sendo tomadas. É o caso de medicamentos ativos que, por si só, são nocivos; logo até mesmo

o sal de cozinha é capaz de matar. Assim, procedimentos adequados, que não necessariamento

importem em erro profissional, podem gerar resultados não esperados.301

Segundo Miguel Kfouri Neto, muitas vezes os julgadores parecem não sofrer

influência diante da correta realização da cirurgia, pois, uma vez não alcançado o resultado

pretendido (melhoramento estético), a procedência do pedido indenizatório seria certa. Assim,

o autor critica o posicionamento desses julgadores, pois eles desconsideram, em cirurgias

estéticas, influências de condições peculiares dos paciente, afirmando que elas poderiam ser

conhecidas previamente à cirurgia.302

Interessante, nesse sentido, o caso citado pelo doutrinador e exposto pelo cirurgião

plástico Walter Soares Pinto: tendo, em 1981, o cirurgião e professor Ivo Pitanguy realizado

um procedimento de blefaroplastia (para rugas e bolsas palpebrais) no então presidente João

Figueiredo, sobreveio hematoma na pálpebra inferior esquerda, que perdurou visivelmente no

rosto do estadista por vários meses. Inquestionável que o rosto do governante em exercício é

sua figura maior de destaque. Por outro lado, seria inapropriado considerar a intervenção de

um dos maiores cirurgiões brasileiros como imperita. Assim, errôneo seria considerar na

situação um caso de erro médico.303

Nesse sentido é que o cirurgião Walter Soares Pinto, elenca, no mesmo informativo,

algumas peculiaridades de cada paciente:

a) qualidade da pele (fina, grossa, gordurosa, tendência a manchas e quelóides); b)

ausência de reações alérgicas: medicamentos, esparadrapos, fio de sutura, luvas de

borracha, etc.304

301

Op. cit., p.21. 302

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 303

PINTO, Walter Soares. Informativo Incijur: Instituto de Ciências Jurídicas, Joinville, ano 2, nº 13/9, ago.

2000 apud KFOURI NETO, Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas

probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em

pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.260-261. 304

Ibid., p. 260-261.

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E também entende pela possibilidade de superveniência de problemas na cirurgia

plástica estética como em qualquer outra cirurgia: “Deiscência (abertura dos pontos de

sutura); Infecção (seja de origem hospitalar ou não)”.305

Assim, com isso, conclui pela possibilidade do surgimento de intercorrências

(“problemas surgidos após a cirurgia que devidamente orientados não prejudicam o resultado

final”) e complicações (“problemas que, mesmo devidamente orientados, afetam o resultado

final”). Por isso, importante seria, na aferição da imperícia, segundo o especialista, levar em

consideração apenas o ato sob exame, pois mesmo o melhor cirurgião, em situações

específicas, poderá revelar imperícia. Assim, a constatação da culpa é indissociável apenas ao

caso posto em questão.306

Hildegard Taggesell Giostri, por seu turno, é adepta da corrente de que nenhuma área

médica pode trazer consigo uma obrigação de resultado, já que esta obrigação é marcada pela

característica de apenas o credor poder interferir no resultado final.307

No mais, se vale do

exemplo da França, onde questionamentos de algumas áreas da Medicina como obrigações de

resultado datam de aproximadamente trinta anos atrás e, após inúmeras discussões

doutrinárias e jurisprudenciais, chegou-se a conclusão de que no campo médico sempre a

natureza da obrigação será de meio.308

Ruy Rosado de Aguiar Júnior, outrossim, pode ser apontado como um dos maiores

defensores nacionais sobre a aplicabilidade das obrigações de meios aos contratos médicos

que entabulem a cirurgia estética. O autor, se valendo de doutrinadores estrangeiros, como

Luís Andorno e a maior aceitação dessa teoria na França, seja pela doutrina ou jurisprudência,

explica que toda intervenção no corpo humano carrega consigo uma álea inafastável diante da

imprevisibilidade da reação de cada organismo. Assim, ainda que o cirurgião assuma o dever

de resultado, não há alteração na natureza obrigacional assumida, sendo esta sempre de meio

em se tratando da prestação de serviços médicos.309

305

PINTO, Walter Soares. Informativo Incijur: Instituto de Ciências Jurídicas, Joinville, ano 2, nº 13/9, ago.

2000 apud KFOURI NETO, Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas

probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em

pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit, p.260-261. 306

Ibid., p.260-261. 307

GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico à luz da jurisprudência. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004, p.83. 308

Ibid., p 139. 309

Op. cit., 518-519.

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Teresa Ancona Lopez tenta colocar um ponto final na discussão ao entender que ainda

que se considere a cirurgia estética como o empenho de uma obrigação de meio, como muitos

autores recentes pretendem demonstrar, o médico, não tendo cumprido o que estava

estipulado no contrato, deve ser responsabilizado, pois ninguém se sujeita à operação, com

todos os seus riscos e inconvenientes apenas para esperar o melhor desempenho do

profissional, sem esperar melhora no resultado.310

Assim, equaciona a problemática em três subdivisões: todo e qualquer ato cirúrgico

carrega consigo a álea, portanto, quanto a isso, a obrigação será de meio; quanto à alteração

estética prometida, trata-se de obrigação de resultado, na medida em que, feito o esboço, é

álea do médico o alcance do resultado, pois responderá se não alcançá-lo ou se não informar

corretamente o paciente sobre as mudanças posteriores à cirurgia, ainda que melhores do que

a própria promessa; por fim, podem sobrevir outros danos em virtude da cirurgia, de natureza

extracontratuais, podendo ser cumulada com a responsabilidade contratual até a efetiva

reparação da vítima, seja por danos materiais, morais ou estéticos.311

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka resume o cerne da problemática em poucas

linhas, lembrando que a obrigação de ressultado em cirurgias estéticas dependerá sempre do

que foi prometido pelo médico ao paciente; afirma que, para o direito, se o médico prometer

alcançar determinado resultado, deverá fazê-lo, pouco importando para o julgador ter o

profissional se valido de todos os saberes científicos, destreza e saber, tampouco se a

inexecução pode ser atribuída à álea de reações inesperadas do organismo do paciente; o que

importa é o resultado, nada mais, salvo excepcionalíssimas hipóteses que escapam ao

controle.312

A autora expõe que o problema sempre está na frustração, pois a defesa largamente

utilizada pelos médicos de que apenas se obrigam pelo emprego da melhor técnica muitas

vezes é desmentida por eles próprios, que não deixam de apresentar montagens do tipo “antes

e depois” para mostrar ao paciente como ele ficará após a cirurgia. Não alcançado o resultado,

caracterizada estará a frustração.313

310

O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.93. 311

Ibid., p.93. 312

Op. cit., p.506. 313

Ibid., p.507.

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Para que isso não ocorra, ou seja, obrigar-se o médico pelo meio e não pelo resultado,

são necessárias algumas cautelas: devem ser realizados todos os tipos de exames para saber se

o paciente é suscetível de problemas que podem influenciar no resultado, como problemas de

cicatrização, formação de quelóides, etc.; deixar claro ao paciente que não pode garantir o

resultado, mas existem apenas possibilidades, inclusive informando sobre as possibilidades de

reações adversas do organismo e sobre todos os riscos que envolvem a operação, inclusive

não o fazendo por meio de formulários impressos, pois eles podem dar a impressão de

contrato de adesão, em que o paciente não tem exata noção dos riscos. Além disso, deve o

médico aplicar a técnica corretamente no operatório e, após, fazer todos os tipos de alerta ao

paciente sobre os cuidados que deverão ser observados.314

Percebe-se, pois, com todo o explanado, não existir um consenso doutrinário a respeito

do tema, cujas discussões são permeadas por argumentos contudentes de ambos os lados.

Mesmo assim, o posiocionamento de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka parece ser

aquele que melhor relaciona Medicina e Direito, pois, para este basta o comprometimento do

médico com o resultado para caracterizar obrigação de resultado. Assim, se ele tomar todas as

precauções em deixar evidente que não está se comprometendo com o resultado, não pode a

ele ser imputada uma obrigação de fim.

De todo modo, o Superior Tribunal de Justiça é praticamanete unânime em entender a

cirurgia plástica estética como obrigação de resultado. Entretanto, há Ministros com posições

opostas às tradicionalmente adotadas, como demonstra o principal expoente Carlos Alberto

Menezes Direito, situação que oportunamente será melhor analisada na tentativa de se

estabeler parâmetros mais seguros sobre o comportamento atual dos Tribunais.

2.6.1 Inversão do ônus probatório

Diverge, outrossim, a doutrina, referente à possibilidade de inversão do ônus da prova

para os casos de inadimplemento contratual do médico que empenhou obrigação de resultado.

314

HIRONAKA, op. cit., p.508-509.

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101

Voltando a citar Neri Tadeu Câmara de Souza, o qual entendeu pela cirurgia estética como

obrigação de resultado, se pronuncia quanto ao descumprimento contratual:

Assim, há presunção de culpa, se o médico cirurgião plástico não adimplir

integralmente a sua obrigação (o adimplemento parcial é considerado uma não

execução da obrigação pela qual se comprometeu com o paciente contratante). Cabe,

pois, devido à presunção de culpa, ao médico, nos casos de cirurgia plástica estética,

fazer prova de que agiu na execução da tarefa com prudência, zelo e perícia

(opostos, que são, da imprudência, negligência e imperícia).315

Para Flávio Murilo Tartuce Silva, adepto do entendimento de que a cirurgia estética

constitui obrigação de resultado, conforme já mencionado, o cerne da questão não está na

presunção de culpa do médico, pois não mais se está no campo da verificação subjetiva da

responsabilidade do cirurgião, entretanto, de acordo com posicionamentos doutrinários e

jurisprudenciais, trata-se de responsabilidade objetiva do cirurgião estético.316

Para Miguel Kfouri Neto, nas obrigações de meio o credor (o paciente) é que deve

provar que o devedor (o médico) não teve o grau de diligência que dele se esperava; contudo,

o autor admite que a tendência atual é de que, nas obrigações de resultado, o médico é que

deve provar ter agido com toda a diligência, já que sobre ele recai presunção de culpa, culpa

esta que poderá ser afastada apenas na hipótese de comprovação de causa adversa317

:

Há, indiscutivelmente, na cirurgia estética, tendência generalizada a se presumir a

culpa pela não obtenção do resultado. Isso diferencia a cirurgia estética da cirurgia

geral.318

Tal tendência pode ser demonstrada pelo posicionamento de Sergio Cavalieri Filho:

Se o contratante assumiu a obrigação de alcançar um determinado resultado (...) e

não conseguiu, haverá culpa presumida, ou, em alguns casos, até responsabilidade

objetiva; se a obrigação assumida no contrato foi de meio, a responsabilidade,

embora, contratual, será fundada na culpa provada.319

Por outro lado, Miguel Kfouri Neto acredita que não deve militar em desfavor do

cirurgião estético presunções de culpa nem da responsabilidade sem culpa, o que está de

315

Op. cit., acessado em 07 jul. 2013. 316

Aula ministrada on-line no curso LFG, acessada em 16 jul. 2013. 317

Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.169. 318

Ibid., p.174. 319

Op. cit., p.276-277.

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102

acordo com as novas tendências de ditribuição dinâmica do encargo probatório. Assim, não se

justicaria de maneira alguma tratamento diferenciado – e mais gravoso – aos cirurgiões

plásticos, os quais devem se submeter à verificação da culpa como as demais especialidades.

Para ele, o que se justifica sim, e com muita propriedade, é um dever de informação

excepcionalmente agravado, na medida em que o que estaria dando causa às demandas

judiciais seria o distanciamento entre aquilo que é prometido pelo cirurgião e o esperado pelo

paciente.320

Caio Mário da Silva Pereira também entende que o dever de informação e de

vigilância são especialmente agravados na obrigação cirúrgica estética, apesar de discordar de

Miguel Kfouri Neto quanto à natureza da obrigação, pois considera-na como de resultado.321

Miguel Kfouri Neto ainda complementa sua ideia e expõe a necessidade de o médico

delimitar de maneira muito clara e expressa, inclusive por escrito, aquilo que poderá ser

alcançado na cirurgia, verificando com exatidão o que o paciente dela espera, deixando-o

informado, inclusive, sobre o imprevisível que acomete toda e qualquer intervenção cirúrgica.

Uma vez não alcançado o resultado esperado e formada a demanda judicial, caberá ao juiz, no

caso concreto, verificar em que medida se deu a frustração e definir se houve ou não culpa do

cirurgião.322

Giselda Maria Fernandes Novaes Horonaka, como já mencionado, entende de forma

semelhante a de Miguel Kfouri Neto, acreditando que isso dependerá de como tudo foi

acordado. Se observados determinados preceitos (constantes do tópico anterior), caracterizada

estará a obrigação de meio e, ocorrido o dano, caberá ao paciente a prova de que o médico

agiu com culpa. Por outro lado, entendendo-se se tratar de obrigação de resultado porque o

médico prometeu alcançar o esperado, haverá presunção de culpa em desfavor do

profissional, que poderá se eximir de responsabilidade se provar que não agiu com culpa e

que, na verdade, o paciente deu causa ao dano ou, ainda, que a ausência de resultado pode ser

320

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, p.266. 321

Responsabilidade civil, op. cit, p.169. 322

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, op. cit., p.266.

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atribuída a outra causa que não à cirurgia, rompendo-se, pois o nexo de causalidade entre o

dano e conduta médica.323

De todo modo, aponta a autora, a jurisprudência não pode considerar as obrigações

assumidas pelo cirurgião estético como de resultado em qualquer hipótese, e,

consequentemente, aplicar a responsabilidade independentemente da culpa, pois não se pode

ter um parâmetro previamente estabelecido, marcado por generalizações, devendo o caso ser

analisado concretamente e, se todas as recomendações anteriormente suscitadas forem

vericadas, trata-se, evidentemente, da assunção de obrigações de meio pelo médico, que só

poderá ser responsabilizado se o paciente comprovar sua culpa.324

2.6.2 Inexecução contratual

Diante da discussão apresentada sobre a natureza das obrigações médicas estéticas,

duas alternativas se mostram viáveis em relação ao inadimplemento contratual cometido pelo

médico.

A primeira, se considerada a obrigação médica estética como de meio, tal qual alguns

autores defenderam, o adimplemento do contrato independe da cura, que no caso seria a

melhora do aspecto físico do paciente e, consequentemente, do seu estado psíquico. Isso se dá

porque para ter o médico cumprido sua parte no acordo, basta ter empregado todo o cuidado,

esforço, empenho e, o mais importante, toda a técnica e conhecimento da ciência médica

disponíveis, ainda que tudo isso, quando somados, não tenham sido suficientes para o

atingimento do resultado satisfatório, evidentemente, olhando-se sob o prisma do credor (o

paciente), pois a ele caberá intentar ação sobre o descumprimento da obrigação.

Nehemias Domingos de Melo expôs:

(...) Assim, o adimplemento do contrato não é a cura, mas a dedicação, zelo e

esforço do profissional. Provando que assim agiu, isto é, que aplicou toda sua

técnica e conhecimento para que o paciente atingisse a cura, o médico terá cumprido

323

Op. cit., p.510-511. 324

Ibid., p.512.

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sua parte no contrato e não se poderá falar em inadimplemento se o paciente não se

curou, pois a obrigação terá sido de meio e não de resultado.325

Vale dizer que, em se tratando de uma obrigação de meio, não será suficiente

demonstrar que não foi atingido o que esperava da situação, mas deverá o paciente deixar

evidente também que houve culpa médica no não atingimento do resultado esperado, ou seja,

que o profissional tenha agido com imprudência, negligência, ou imperícia, desconhecendo ou

utilizando de maneira errônea técnica indicada pela ciência. Nesses casos, não haverá

presunção da culpa médica, que deverá ser provada, normalmente pelas provas periciais.

Não se olvide que a culpa é o aspecto mais importante quando se fala em ato ilícito

pela inexecução contratual, uma vez que não há dúvida de que nele reside todo o fundamento

jurídico da responsabilidade civil do médico.326

Mais uma vez, remete-se ao artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, que

exige a verificação da culpa dos profissionais liberais para fins de reparação de danos

causados em consonância com a regra do artigo 927 cumulado com o 951, ambos do Código

Civil.

Nesse mesmo sentido, portanto, deverá o paciente demonstrar que sofreu o dano, o

que, de certa forma, deverá ser apurado de maneira subjetiva pelo julgador na análise de uma

possível piora no aspecto físico do paciente se comparado ao estado anterior à cirurgia ou se,

ao fim, houve uma pequena melhora (mas ainda insuficiente na visão do operado) ou até

mesmo uma alteração não significativa, nem para melhor, nem para pior, casos estes em que

será ainda mais difícil de comprovar o requisito e, consequentemente, a responsabilidade.

De qualquer maneira, frise-se, predomina na doutrina e jurisprudência que, no caso de

atividade do cirurgião plástico, a inexecução parcial da obrigação, representada pela

frustração do resultado, equivale à inexecução total.327

Não se olvide, ainda, que deverá ser comprovado o nexo de causalidade entre a

conduta culposa do médico e o resultado danoso pois, eventualmente, o resultado não

esperado poderá ser consequência de fatores adversos à conduta médica, como culpa

exclusiva da vítima, de terceiro, caso fortuito ou força maior.

325

Op. cit., p.66. 326

FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.215. 327

GOMES, Orlando. Questões de direito civil: pareceres, op. cit., p.451.

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Por outro lado, se encarada a cirurgia como obrigação de resultado, grande parte do

caminho já foi trilhado e se inserirá, nesse âmbito, segundo tem admitido maior parte da

doutrina e jurisprudência, conforme já explicitado, presunção de culpa do médico pelo não

alcance do que foi prometido, o que caracteriza a inadimplência contratual e faz com que que

o devedor assuma todos os ônus da inexecução, normalmente estampados no dever de arcar

com uma nova cirurgia e na reparação de dano moral, podendo elidir-se de responsabilidade

apenas se comprovar que a inexecução se deu por fatores adversos a sua vontade, como culpa

exclusiva da vítima ou caso fortuito.

A exceção fica evidenciada por Miguel Kfouri Neto, que vê a ausência de um dever de

informação específico como principal motivo do crescente número de demandas judiciais

relativas à inexecução de um contrato para a realização de cirurgias plásticas. Para ele, existe

um desnivelamento entra o que verdadeiramente o paciente espera da cirurgia e o que o

médico pode realizar.328

Nesse sentido, é necessário voltar a citar Caio Mário da Silva Pereira, que não deixa

dúvidas de que, primeiramente, as cirurgias estéticas estão pautadas nos mesmos direitos e

deveres do médico e paciente relatadas quando se tratou da relação médico-paciente e, em

segundo lugar, que, em se tratando de cirurgias estéticas, o dever de informação é muito mais

agravado, pela intervenção não feita especificamente para tratamento, mas para melhora no

aspecto físico. Por esse motivo, o paciente não pode correr riscos, devendo o médico,

inclusive, se recusar a realizar o procedimento, se os riscos forem maiores que os benefícios,

como já mencionado, inclusive, por José de Aguiar Dias quando se tratou das obrigações de

meio e resultado.329

2.6.3 Responsabilidade civil subjetiva com culpa presumida e

responsabilidade objetiva

328

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 329

Responsabilidade civil, op. cit., p.168-169.

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106

Quando da discussão entre obrigações de meio e de resultado do cirurgião estético, foi

possível observar que os autores que entendem pelas obrigações de resultado divergem quanto

às consequências desse posicionamento: alguns acreditam se tratar de responsabilidade civil

subjetiva com culpa presumida e outros de responsabilidade objetiva. Em ambos os casos,

entretanto, os autores se referem unicamente a possibilidade de o cirurgião estético eximir-se

de responsabilidade se comprovado o caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima,

bem como os julgadores o fizeram, como será possível observar com a análise dos julgados.

Em que pese existir tal diferenciação, José de Aguiar Dias lembra que ela existe

apenas no plano teórico, razão pela qual pode-se dizer em responsabilidade objetiva apenas

para os casos flagrantemente vinculados ao sistema, trazidos expressamente pela legislação.330

Nas palavras do autor:

Não confundimos, pelo menos propositadamente, os casos de responsabilidade

objetiva com os de presunção de culpa. Na realidade, como já tivemos ocasião de

dizer, o expediente da presunção de culpa é, embora o não confessem os

subjetivistas, mero reconhecimento da necessidade de admitir o critério objetivo.

Teoricamente, porém, observa-se a distinção, motivo por que só incluímos como

casos de responsabilidade objetiva os que são confessadamente filiados a esse

sistema.331

Assim, não se pode cair na confusão de acreditar que o médico que assumiu obrigação

de resultado está inserido numa questão meramente processual de inversão do ônus

probatório. Trata-se de um passo além, pois se se tratasse de inversão do ônus da prova,

bastaria ao médico demonstrar não ter agido com culpa, o que, como se viu pela doutrina e

como será observado na jurisprudência, não é o suficiente para eximir o profissional de

responsabilidade, mas apenas conseguirá fazê-lo se ficar evidente caso fortuito, força maior

ou culpa exclusiva da vítima.

Alexandre Gir Gomes não é diferente, dizendo que alguns doutrinadores, a despeito de

adotarem a responsabilidade na cirurgia estética como inserida na presunção da culpa, apenas

330

Op. cit., p.99. 331

Ibid, p.99.

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omitem a expressão “responsabilidade objetiva”, mas a diferenciação não passa de

terminologias, ou em suas palavras, “uma forma tímida de se aplicar a teoria do risco”.332

Para Miguel Kfouri Neto, mesmo em se tratando de culpa presumida do profissional,

ainda presente estaria a responsabilidade subjetiva, que necessita da verificação da culpa333

,

mas não é de fato o que se pode observar no entendimento jurisprudencial sobre o tema e de

grande parte dos doutrinadores nacionais.

Para os Tribunais, frise-se novamente, apesar de recorrente a menção da possibilidade

de o cirurgião estético eximir-se de responsabilidade pela demonstração de que não agiu com

culpa334

, a tendência atual é de responsabilização pelo simples não alcance do resultado.

332

Op. cit., p.751. 333

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, op. cit., p.166. 334

TJRS, Apelação nº 597183383, 3ª Câmara Cível, rel. Tael João Selistre, data de julgamento de 05.03.1998.

Responsabilidade civil. Médico. Responsabilidade contratual. Cirurgia plástica. Erro médico. Obrigação de

resultado. Indenização por danos material e moral. Cobrança do saldo dos honorários. Prescrição. Procedência,

em parte, da ação e improcedência da reconvenção. A responsabilidade civil do médico, como sabido, é

contratual, sendo a obrigacao, em princípio, de meio e não de resultado. Todavia, em se tratando de cirurgia

plástica, a obrigacao é de resultado, assumindo o cirurgião a obrigação de indenizar pelo não cumprimento da

mesma obrigação. Demonstrado o inadimplemento, inverte-se o ônus da prova, cabendo ao médico a obrigação

de demonstrar que não houve culpa ou que ocorreu caso fortuito ou força maior. Indenização pelos danos de

ordem material e moral. Procedência, em parte, da ação, por ter sido excluído o pedido de dote. Prescreve em um

ano a ação para a cobrança de honorários médicos, contado o prazo a partir da data do último serviço prestado.

Tendo isso ocorrido em maio de 1993 e a reconvenção protocolada em outubro de 1994, caracterizada está a

prescrição. Sentença mantida. Apelação não provida.

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3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Feita uma abordagem principalmente baseada em aspectos doutrinários, faz-se

necessário uma breve análise do comportamento jurisprudencial dado ao tema de

responsabilidade civil em cirurgia estética. Para tanto, foram selecionados julgados recentes

pertinentes ao tema e que responderam ao parâmetro de pesquisa “responsabilidade civil

cirurgia estética” dos Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio

Grande do Sul, que, aparentemente, representam o posicionamento majoritário.

Por fim foram reunidos alguns outros julgados do Superior Tribunal de Justiça, que

apontam na mesma direção dos tribunais anteriormente verificados, à exçeção de um voto

vencido proferido pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito quando da votação do

Recurso Especial 81.101, oriundo do Paraná. Apesar de o voto já contar com mais de dez

anos, pode significar a quebra de paradigmas atuais e, assim, empreender visões diferentes

num futuro próximo, ainda mais considerando o aprofundamento dado ao tema pelo ministro.

3.1 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP)

Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foram selecionados dois julgados que

reuniram importantes questões abordadas anteriormente. O primeiro é a apelação cível nº

0005819-76.2004.8.26.0001335

, oriunda da Comarca de São Paulo, segundo o qual o apelante,

335

TJSP, 10ª Câmara de Direito Privado, rel. Marcia Regina Dalla Déa Barone, data de julgamento de

18.06.2013. Ação de indenização por danos morais e materiais. Pedido de manutenção dos benefícios da Justiça

Gratuita inserido nas contrarrazões recursais, juntadas no processo principal. Inadequação da via eleita. Decisão

que deveria ser impugnada nos autos em apenso, em petição recursal própria. Publicação válida em nome dos

atuais advogados da autora. Impossibilidade de se alegar falta de ciência da decisão. Pedido não conhecido. Ação

de indenização por danos morais e materiais. Quadro infeccioso decorrente de intervenção estética para

emagrecimento. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Responsabilidade subjetiva do profissional

liberal. Obrigação de resultado. Culpa presumida do médico, que não comprovou ter tomado as medidas

adequadas para o caso, antes, durante e após a realização do procedimento estético. Presentes os requisitos

capazes de atestar a obrigação de reparar os danos sofridos. Possibilidade de cumular os danos morais e

estéticos. Ausência de impugnação específica em relação ao quantum fixado a título de danos morais e estéticos.

Danos materiais demonstrados pela autora. Afastamento da indenização por lucros cessantes. Não comprovação.

Sentença de parcial procedência. Recurso não provido. Não se conhece do pedido de reforma da decisão que

revogou os benefícios da gratuidade. Nega-se provimento ao recurso de apelo.

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condenado em primeira instância, teria sido procurado pela apelada para a realização de

procedimento estético com fins de emagrecimento no qual sobreveio quadro infeccioso.

Foram pleiteados danos morais e danos estéticos. Para o deslinde do impasse, a relatora

levanta algumas questões que merecem destaque.

A primeira é a de que, conforme visto, trata-se de um evidente caso de aplicação do

Código de Defesa do Consumidor naquilo que prescreve quanto aos profissionais liberais em

seu artigo 14, §4º, ou seja, cumpre a análise dos requisitos subjetivos capazes de gerarem o

dever de indenizar, quais sejam a culpa, mediante negligência, imprudência ou imperícia,

dano, ato ilícito e o nexo de causalidade.

Outra verificação importante feita pela desembargadora é a de que primordialmente as

obrigações médicas são consideradas como de meio, entretanto, em se tratando de cirurgia

estética, é pacífico o entendimento de que o médico assume o compromisso de proporcionar

ao paciente determinado resultado, caracterizando, pois, sua obrigação, como de resultado, e

não de meio. Para reafirmar seu posicionamento, cita outros três precedentes da mesma

câmara julgadora em tela.

A consequência da diferenciação feita, segundo a magistrada, que utiliza as lições de

Sergio Cavalieri Filho, é a da presunção de culpa do médico que assumiu obrigação de

resultado, podendo elidir-se de responsabilidade apenas se comprovar a ocorrência de “fatos

alheios aos seus poderes”.

Assim, no caso concreto, não tendo o médico afastado a presunção em seu desfavor,

todos os demais elementos indicaram a verificação da negligência, tais como a existência de

laudo pericial apontando que o procedimento realizado não era adequado às especificidades

do caso, a ausência de realização dos procedimentos em centros cirúrgicos adequados, mas na

própria clínica do apelante, na ausência de anestesista, bem ainda, a falta de cuidados

prestados pelo profissional após a cirurgia. Dessa maneira, ficou verificado nexo de

causalidade das condutas médicas negligentes aos resultados danosos verificados, como a

infeccção e a formação de cicatrizes permanentes.

Algumas conclusões podem ser tiradas do caso apresentado: a primeira é a

necessidade de verificação da culpa do profissional. A segunda é a filiação da

desembargadora à posição majoritária da doutrina no sentido de considerar a obrigação

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médica estética como de resultado e, desse modo, pesar sobre o profissional presunção de

culpa. Uma questão, entretanto, que não ficou clara e que poderia ter sido abordada, ainda que

despicienda no caso concreto diante da ampla constatação de negligência médica, é quanto à

possibilidade de afastamento da responsabilidade do médico se esse tivesse feito prova de que

não agiu com culpa. Parece que, conforme citado por Miguel Kfouri Neto336

, existe uma

tendência em não se importar com o correto procedimento médico, pois o próprio não alcance

do resultado esperado nas obrigações de resultado já seria motivo para responsabilização do

médico.

A desembargadora apenas frisou ser possível o afastamento da responsabilização do

médico se comprovadas ocorrências que fugiram do seu alcance, dentre elas, possível de se

inferir as peculiaridade da paciente que poderiam ter influência no resultado da intervenção.

Por seu turno, a apelação nº 0003414-47.2010.8.26.0360337

, oriunda da Comarca de

Mococa, elenca uma situação em que a apelante procurou o apelado para realização de

cirurgias de correção de desvio de septo (septoplastia e turbinectomia) juntamente com outra

para alteração no formato do nariz, ambos os resultado que não teriam sido alcançados.

Em relação às cirurgias para desvio de septo, para o desembargador, a necessidade de

verificação do elemento subjetivo da culpa para apuração da responsabilidade do médico é

evidente, já que se trata de profissional liberal, de acordo com o disposto no artigo 14, §4º, do

Código de Defesa do Consumidor e, segundo Ruy Rosado de Aguiar Júnior, toda intervenção

no corpo humano é carregada de certa álea, marcada pela imprevisibilidade de reações de

cada organismo às agressõs trazidas pelo ato cirúrgico.

Dessa maneira, em outras palavras, referindo-se ao autor Antonio Cabanillas Sanchez,

encerrando uma obrigação de meio, o insucesso do tratamento ou evolução do quadro

indesejado, não há automática verificação do inadimplemento contratual médico, uma vez que

ao médico cabe apenas agir com conduta diligente. Não tendo sido verificada imperícia do

336

Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do

ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em

gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 337

TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, rel. Francisco Loureiro, data de julgamento de 13.06.2013.

Responsabilidade civil. Erro médico. Cirurgia de correção de desvio de septo nasal concomitante a cirurgia

estética do nariz. Responsabilidade subjetiva do médico não afastada diante da caracterização da cirurgia plástica

como obrigação de resultado, que gera apenas a presunção de culpa deste. Prova pericial que não constatou

ausência de danos funcional e estético. Inexistência de prova nos autos que confirmem as acusações de imperícia

feitas na inicial. Ação improcedente. Recurso de apelação desprovido.

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cirurgião no caso concreto, bem ainda existindo laudo pericial que concluiu pela permanência

do desvio de septo mesmo após a cirurgia, mas sem prejuízos funcionais (ausência de dano),

não há que se falar no dever de reparar.

No tocante ao procedimento estético, o relator reconhece que, embora exista discussão

sobre a natureza obrigacional que empenha, se de meio ou de resultado, segue a corrente

prevalente no Superior Tribunal de Justiça, adotante da segunda hipótese.

Mesmo assim, lembra, adotar a obrigação como de resultado, não significa que a

responsabilidade do médico seja objetiva, continua a ser subjetiva, mas altera o ônus, a ele

cabendo provar que o insucesso da cirurgia se deu por fatores externos. Ausentes provas do

próprio insucesso da cirurgia, da falta do médico ao dever de informação, e de conclusões

periciais no sentido quanto à existência de dano estético, ausente responsabilidade civil do

médico nesse ponto.

Diante do exposto, mais uma vez pode ser vista a adoção pelo julgador à natureza da

obrigação do cirurgião estético como de resultado, ao passo que do cirurgião reparador como

de meio. Nestes casos, a comprovação da culpa incumbe ao paciente, naqueles, adota-se a

presunção de culpa em desfavor do médico, o que não significa, de qualquer maneira,

responsabilidade objetiva, diferentemente, por exemplo, de posicionamentos como o de

Flávio Tartuce, baseado, segundo ele, na doutrina e jurisprudência.338

3.2 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ)

Do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foi selecionado um único julgado

pertintente ao tema e que respondeu ao parâmetro de pesquisa anteriormente mencionado.

Trata-se, da apelação de nº 0008252-91.2008.8.19.0006339

, em que a autora do pedido

338

Aula ministrada on-line no curso LFG, acessada em 16 jul. 2013. 339

TJRJ, 18ª Câmara Cível, rel. Celia Meliga Pessoa, data de julgamento de 23.01.2013. Apelação cível.

Responsabilidade civil de médica. Procedimento estético. Obrigação de resultado. Responsabilidade subjetiva

com presunção de culpa. Nexo de causalidade demonstrado. Dano moral configurado. Quantum indenizatório. A

responsabilidade civil de médica cirurgiã, apesar de ser profissional liberal, assume obrigação de resultado em

razão da natureza do serviço oferecido. Cirurgia plástica estética. E, não obstante permanecer com

responsabilidade subjetiva, entende o Superior Tribunal de Justiça que há presunção de culpa em seu atuar,

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indenizatório de danos morais, pela piora do estado anterior ao ato cirúrgico e danos

materiais, para cobrir os custos da realização de uma nova cirurgia, tinha contratado uma das

rés para procedimento cirúrgico estético de melhoria nos constonos de seu nariz.

De plano, a desembargadora assume a orientação do Superior Tribunal de Justiça no

sentido de considerar a natureza da obrigação assumida pela médica como de resultado, o que,

apesar de não ter o condão de de sair do campo da responsabilidade subjetiva, gera sobre sua

conduta presunção de culpa, invertendo-se, assim, o ônus probatório em seu desfavor.

Tomando-se por base, então, de acordo com a desembargadora, fotografias da autora

antes e depois da cirurgia, bem ainda laudo pericial acostado, ficou evidente que o resultado

pretendido pela autora não foi alcançado. Mas não é só: formaram-se granulomas decorrentes

da cirurgia plástica, o que, para a julgadora, ensejou a responsabilidade da médica pelos danos

morais causados à paciente em decorrência do agravamento da situação.

Entretanto, no tocante aos danos materiais para o pagamento de uma nova cirurgia

estética (já que não alcançado o resultado), tal pleito foi afastado pela conclusão da perícia de

que não seria necessária nova cirurgia em razão de o nariz guardar as mesmas caracteríticas

que apresentava antes do procedimento. Não há como se afastar certo estranhamento da

decisão, pois, considerando a obrigação de resultado, o pedido de uma nova cirurgia não

necessariamente precisaria estar pautado na correção de alterações ocasionadas pela cirurgia,

mas no mero inadimplemento contratual; não produzido o resultado, deve o valor ser

ressarcido, sob possibilidade de enriquecimento sem causa.

De qualquer maneira, não se tendo acesso aos moldes do pleito formulado, não é

possível elucidar melhor a questão, mesmo sendo preciso frisar que, se adotado o

entendimento de cirurgia estética empreenderem obrigações de resultado, tal como o

direcionamento tomado pela jurisprudência pátria, ideia já vista em parte pelos julgados

selecionados e que ainda será reforçada, é devido pelo médico, a título de danos materiais,

gastos necessários à realização de um novo procedimento ou, alternativamente, os valores

pagos ao médico pela cirurgia.

invertendo-se, em consequência, o ônus da prova em seu desfavor. Sob esse prisma, não tendo sido demonstrada

a ocorrência de qualquer causa excludente de nexo causal e restando comprovado que o resultado pretendido

pela paciente não foi alcançado, há dano que deve ser reparado. Verba indenizatória, fixada de forma

proporcional e razoável. Sentença que se mantém. Recursos manifestamente improcedentes, que estão em

confronto com o ordenamento processual e com a jurisprudência dominante deste Tribunal. Art. 557, caput, do

CPC. Recursos a que se nega seguimento.

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114

Contudo, no caso concreto, ficou consignado a não caracterização de danos materiais

para a realização de nova cirurgia em razão da conclusão pericial no sentido da

desnecessidade de intervenção cirúrgica para “reparar as consequências da fracassada

bioplastia”.

3.3 Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG)

Do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais foram reunidos dois julgados, que

trouxeram aspectos interessantes para serem analisados. O primeiro é a apelação nº

1.0518.04.071229-2/002340

, que traz em seu cerne a responsabilidade civil do apelado pela

relização de cirurgia estética na apelante, esta que sofreu por um longo período de tempo com

se abdome sem cicatrização, o que lhe rendeu um quadro infeccioso e posteriores cicatrizes

diversas.

Inicialmente, o relator apresenta a necessidade, assim, como constante dos julgados

anteriores, de aplicação da verificação subjetiva da responsabilidade do médico em virtude do

artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, em consonância com o disposto no

artigo 951, do Código Civil.

Outrossim, se vale da tese de que no caso de cirurgias estéticas, o médico assume uma

obrigação de resultado, presumindo-se sua culpa se houver frustrações da promessa. Isso se dá

em razão do trtamento jurídico diferenciado a que se submetem os cirurgiões plásticos, pois o

340

TJMG, 11ª Câmara Cível, rel. Marcos Lincoln, data de julgamento de 25.01.2013. Apelação cível. Ação de

indenização. Cirurgia estética. Abdominoplastia. Obrigação de resultado. Deformidade. Culpa presumida.

Responsabilidade civil. Danos morais e estéticos. Cumulação. Possibilidade. Danos materiais. Ocorrência.

Lucros cessantes. Não comprovação. Recurso provido em parte.

- Responde o cirurgião plástico pelo insucesso da cirurgia, com apresentação de necroses e deformidades

estéticas, uma vez que, pela natureza do contrato, assumiu uma obrigação de resultado, sendo presumível a sua

culpa.

- É perfeitamente possível a cumulação dos danos morais e estéticos, quando a paciente tenha sido

profundamente atingida em sua esfera psicológica e física.

- A quantificação do dano extrapatrimonial obedece ao critério do arbitramento judicial, que, norteado pelos

princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, fixará o valor, levando-se em conta o caráter compensatório

para a vítima e o punitivo para o ofensor.

- Para o ressarcimento dos danos materiais e lucros cessantes é necessária a efetiva comprovação. Tendo havido

a comprovação apenas dos danos materiais consubstanciados no desembolso com a cirurgia, devem ser

indenizados.

- Deve o réu ser condenado ao ressarcimento em razão de cirurgia reparadora a ser realizada na autora.

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paciente os procuram para melhorar algo que em tese se encontra em perfeito estado de saúde;

logo inadmissível que o paciente, após a cirurgia, se encontre em situação pior a que estava

anteriormente. Dessa maneira, cabe ao profissional analisar todos os riscos antes de assumir

sua obrigação, pois lhe caberá o dever de indenizar o resultado danoso ainda que inexistentes

imprudência, imperícia ou negligência.

No caso em tela, demonstrado de maneira satisfatória que o resultado não foi

alcançado e ainda sobrevieram extensas marcas cicatriciais, presente o dever de reparar, seja

pelos danos estéticos suportados, indubitavelmente visíveis, seja pelos danos morais,

decorrentes de angústia e desgosto suportados, seja, ainda, pelos danos patrimoniais,

representados pelo custeamento de cirurgia reparadora e devolução das quantias pagas pela

cirurgia.

Dessa maneira, não há dúvida do tratamento rigoroso dado pelos julgadores ao tema.

Em determinado ponto, o desembargador chega até mesmo em falar no dever de indenizar do

cirurgião pelo resultado danoso ainda que não estejam presentes negligência, imprudência ou

imperícia, levando a entender, num primeiro momento, estar se referindo a uma

responsabilidade objetiva; entretanto, na leitura do conjunto do julgado, é possível perceber

sua inclinação à verificação da responsabilidade mediante verificação da culpa.

De qualquer modo, como pode se observar, pouco tratamento é dado ao

questionamento da possibilidade de os resultados danosos terem ocorrido por fatores diversos

ao alcance do médico. A título de exemplo, interessante rememorar o ponto suscitado pelo

cirurgião quanto ao tabagismo que acomete a autora, levantando a hipótese de culpa exclusiva

da vítima ou, ao menos, concorrente, no deslinde da ausência de cicatrização e,

consequentemente, dos demais danos.

Quanto a isso, em que pese haver evidências científicas da maior dificuldade de

cicatrização em razão do tabagismo, sendo até mesmo recomendação médica que não se fume

por longos períodos antes e depois da cirurgia, o desembargador entendeu pela não aplicação

da excludente de nexo de causalidade levantada em virtude da ausência de provas suficientes

da influência concreta, no caso em tela, do tabagismo, sobre a cicatrização.

Mesmo assim não há como negar a decisão como alinhada às demais considerações

anteriores, na medida em que se há presunção de culpa em desfavor do médico, caberia a ele

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produzir prova de que o resultado danoso se deu exclusivamente, ou em grande medida, pela

conduta do pós-operatório tomada pela paciente, o que não se verificou.

Por seu turno, a apelação cível nº 1.0112.06.061226-7/001341

traz situação diferente

que permitiu ao julgador tomar decisão a favor do médico por duas razões bem evidenciadas:

a ausência de culpa e a existência de fatores externos à suas condutas. Tratou-se de uma

cirurgia para reparação de cicatrizes oriundas de outros dois procedimentos (vesícula e

cesariana), tida como de resultado em razão do claro propósito de melhoramento estético, sem

entretanto, dissociar-se de caráter reparador que resultou em nova cicatriz, além de ainda

manter as outras duas já existentes.

O desembargador reconhece que apesar da discussão existente entre obrigações de

meio ou de resultado em cirurgias estéticas, a maior parte da doutrina e jurisprudência pátrias

reconhecem a natureza dessas obrigações como de resultado. Independentemente disso, não se

pode deixar de levar em consideração se houve conduta culposa por parte do médico e se

existiram fatores externos que influenciaram no resultado da cirurgia.

Para tanto, vale-se do laudo pericial, que atesta a ausência de qualquer conduta

negligente, imprudente ou imperita do cirurgião, ainda que tenha resultado numa nova cicatriz

e, mesmo assim, o próprio laudo ainda concluiu por uma pequena melhora, uma vez que as

cicatrizes não apresentaram mais quelóides, mas apenas um alargamento e hipertrofia.

Outrossim, segundo o laudo pericial, à paciente sobreveio gravidez, que enfraquece as

paredes abdominais e contribui para o aparecimento de estrias e flacidez da pele, levando à

perda de resultados da cirurgia estética realizada anteriormente. Quanto aos resultados da

cirurgia, contribuiu também significativamente para que não ocorressem de forma esperado o

ganho de peso da paciente, outro fator que contribui significativamente para a cicatrização

abdominal deficiente.

341

TJMG, 14ª Câmara Cível, rel. Antônio de Pádua, data de julgamento de 25.08.2011. Civil e processual civil.

Apelação. Ação de indenização. Danos morais e materiais. Requisitos da responsabilidade civil médica.

Presença. Cirurgia estética. Obrigação de resultado. Dano estético. Erro médico não demonstrado. Sentença

reformada. O profissional ciente de seu ofício, de suas responsabilidades e de suas limitações, não pode se

esquecer desse seu dever de informação ao paciente, pois não lhe é permitido criar perspectivas que, de antemão,

ele sabe serem inatingíveis ou incertas. Comprovado que não houve imperícia do cirurgião, aliado a fatores

outros que interferiram no resultado da cirurgia, não se acha presente o dever de indenizar.

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Dessa maneira, ausência de culpa do paciente somados a fatores que fugiram do seu

controle, como a gravidez e o ganho de peso da paciente, de rigor foi a improcedência da

demanda indenizatória.

Com o resultado do processo, é possível perceber a atenção dispensada às causas do

não alcance do resultado na cirurgia estética, essenciais para afastar a responsabilidade do

médico.

Por fim, não se olvide mais uma vez o elevado grau de importância que os laudos

periciais assumem em processos dessa natureza, ajudando significativamente os magistrados

na tomada da decisão. Decisivo foi nesse caso para atestar as condutas da paciente que

contribuíram, ou até mesmo determinaram, o mau resultado. De qualquer maneira, a

tendência dos julgados é aceitar as quebras de nexo de causalidade entre conduta e dano muito

severamente, considerando-os apenas se inequivocamente demonstrados, conclusão a que se

pode chegar na confrontação entre este julgado ora analisado e o anterior.

3.4 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS)

Do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram reunidos dois julgados, os quais,

como será demonstrado alinham-se às decisões anteriormente apresentadas, delineando,

assim, o atual entendimento jurisprudencial pátrio conferido o tema.

A apelação cível nº 70049146731342

traz outro caso em que, em cirurgia estética, não

foi alcançado o resultado esperado pela paciente, além de sobrevierem cicatrizes, segundo o

relator, “grosseiras”.

342

TJRS, 9ª Câmara Cível, rel. Leonel Pires Ohlweiler, data de julgamento de 27.03.2013. Apelação cível.

Responsabilidade civil. Conhecimento da apelação. Nulidade da sentença. Inocorrência. Obrigação de resultado.

Inversão do ônus da prova. Possibilidade. Cirurgia plástica. Dever de indenizar. Danos morais e estéticos. Danos

materiais. Quantum. Sucumbência. Apelação - Recurso Conhecido - Preliminar contrarrecursal rejeitada, uma

vez que a apelação interposta preenche o pressuposto básico exigido nos inc. I, II e III do art. 514 do CPC.

Nulidade da Sentença. Afastamento. A responsabilidade do médico, tratando-se de cirurgia eminentemente

estética, gera obrigação do resultado para o qual o profissional foi especificamente contratado pela paciente. É

admissível a inversão do ônus da prova, sobretudo quando caracterizada a verossimilhança das alegações e a

hipossuficiência técnica da parte consumidora. E a inversão no caso em tela deu-se em momento adequado, pois

pode ser realizada pelo julgador mesmo quando proferida a sentença, pois se trata de regra de julgamento.

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No voto, faz-se uma extensa análise das diferenciações que permeiam as obrigações de

meio de resultado e conclui pela aplicação das regras atinentes à esta última, tal como o faz os

precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Sendo assim, lembra o relator, para caracterizar a

responsabilidade do médico, basta a demonstração de que o resultado não foi atingido,

evidenciando, pois, o inadimplemento contratual. Não se olvide que o simples não alcance do

resultado, nesses casos, gera a presunção de culpa do médico, ou seja, presume-se ter ele

cometido erro médico, eximindo-se de responsabilidade apenas se elidir o nexo causal.

Outrossim, aplicável à espécie o Código de Defesa do Consumidor, segundo o

desembargador, na sua inteireza nas relações entre médicos e pacientes, na medida em que

são relações de consumo com a única especificidade de não se enquadrarem na

responsabilização objetiva. Assim, cabível, inclusive, inversão do ônus probatório diante da

vulnerabilidade e hipossuficiência presumidas do consumidor.

Não se esqueça que tal aplicação, conforme já tratado, foi amplamente discutida, de

modo que, para alguns, a regra da inversão do ônus da prova preceituada pelas normas

consumeristas não se aplicariam aos profissionais liberais. De qualquer modo, o certo é que,

na prática, a depender do caso, como o em tela, o juiz, verificando a necessidade da inversão

do ônus da prova, poderá aplicá-la, a despeito de alguns doutrinadores acreditarem que o

Julgamento Extra Petita. Inocorrência. A causa deve ser decidida de acordo com os limites definidos no pedido

inicial e na contestação. Pela análise da contestação, percebe-se que o demandado rebateu a pretensão inicial sob

o argumento de que a autora teria sido informada dos riscos da cirurgia e da presença de cicatrizes mesmo depois

da cirurgia estética realizada, sendo do demandado o ônus da prova a esse respeito; tal tema não implica

julgamento extra petita, mormente porque a decisão proferida não se afastou da tese jurídica explanada pelo

demandado, de modo que ela encontra respaldo na própria contestação ofertada nos autos. Havendo os limites

balizadores da lide, foram considerados pela sentença, a qual julgou a lide conforme as questões controvertidas

na espécie. Responsabilidade civil do médico. Na hipótese de responsabilidade civil por erro médico oriunda de

cirurgia estética, a qual se notabiliza pela obrigação de resultado a ser atingido pelo profissional, são aplicáveis

as regras da responsabilidade subjetiva com culpa presumida. Situação concreta dos autos. Na espécie, a melhora

estética pretendida (remodelagem do abdômen), embora adequada a escolha da técnica cirúrgica, à evidência,

não foi alcançada pelo resultado insatisfatório do procedimento a que se submeteu a autora; dele resultou a

presença de uma cicatriz grosseira e posicionada de uma forma muita alta, causando deformidade física.

Configurado o ato ilícito, pelo qual tem responsabilidade o demandado, e o dever de indenizar os danos estéticos

e morais, bem como os materiais, sofridos pela autora. Quantum indenizatório por danos estéticos. Súmula 387

do STJ. Caso em que se evidenciam os danos estéticos na autora, justificados em razão da permanente

deformidade física no abdômen pela presença de grosseira cicatriz, capaz de causar complexo de inferioridade.

Quantia majorada para adequar aos valores institucionalizados pela jurisprudência do Tribunal. Quantum

indenizatório por danos morais. O valor a ser arbitrado a título de indenização por danos morais deve refletir

sobre o patrimônio do ofensor, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da ordem jurídica ao resultado lesivo

produzido, sem, contudo, conferir enriquecimento ilícito ao ofendido. Quantum mantido. Sucumbência

recíproca. Afastamento. Verba honorária sucumbencial mantida. Como é meramente estimativo o quantum

relativo ao pedido indenizatório por danos morais e estéticos, não há falar em sucumbência recíproca, mesmo

porque a autora obteve igualmente o acolhimento dos danos materiais. O demandado deve responder

integralmente pelas custas processuais e os honorários advocatícios em 15% sobre o valor atualizado da

condenação. Preliminares afastadas. Apelação desprovida. Recurso adesivo parcialmente provido. Unânime.

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Código de Dfesa do Consumidor, ao fazer a ressalva do artigo 14, §4º, tenha expressamente

excepcionado do seu âmbito de aplicação os profissionais liberais.

No caso em voga, o desembargador, olhando subjetivamente para as fotos anteriores e

posteriores ao procedimento, percebeu não só pela ausência de alcance do resultado, como

pela superveniência de visíveis cicatrizes e, considerando a culpa presumida do médico, que

não logrou demonstrar que o resultado deixou de ser alcançado por motivos exteriores a sua

conduta, é responsável, devendo reparar os danos estéticos sofridos, os morais, bem como os

materiais, develvendo, neste caso, os valores despendidos pela paciente para a realização da

cirurgia.

A apelação cível nº 70051647840343

, por sua vez, mantém o mesmo tratamento

jurídico dispensado às obrigações de resultado assumidas pelo médico cirurgião estético e sua

culpa presumida como os demais julgados já vistos, de forma que o profissional pode elidir

sua responsabilidade apenas se provar não ter agido com culpa ou se afastar o nexo de

causalidade.

343

TJRS, 10ª Câmara Cível, rel. Paulo Roberto Lessa Franz, data de julgamento de 29.11.2012. Apelações

cíveis. Responsabilidade civil. Cirurgia estética. Colocação de próteses mamárias. Obrigação de resultado.

Responsabilidade subjetiva. Culpa presumida. Nulidade da sentença. Cerceamento de defesa. Inocorrência.

Ausente mínimo indício probatório de que o réu tenha protocolado documentos juntamente com a contestação,

os quais não teriam sido juntados aos autos, por erro cartorário, não há falar em cerceamento de defesa. Hipótese

em que, ademais, a juntada tardia dos documentos não trouxe prejuízo à parte, não havendo razão para decretar a

nulidade. Preliminar rejeitada. Resultado insatisfatório. Dever de indenizar. A obrigação assumida pelo cirurgião

plástico na cirurgia estética embelezadora é de resultado, e sua responsabilidade é subjetiva, com culpa

presumida, sendo do profissional o ônus de comprovar que não agiu com culpa em qualquer das modalidades:

negligência, imprudência ou imperícia. Aplicação do art. 14, § 4º do CDC. Hipótese em que restou demonstrado

nos autos a conduta culposa do réu, presumida pela não obtenção do resultado estético legitimamente esperado

pela paciente ao submeter-se à cirurgia plástica de aumento de mamas, ensejando o dever de indenizar do

médico. Dano material. O dano material a que faz jus à autora deve corresponder às despesas decorrentes da

realização de novo procedimento cirúrgico para correção do resultado, cujo montante deve ser apurado em

liquidação de sentença. Reforma da sentença, no ponto. Dano moral. Configuração. São evidentes os infortúnios

decorrentes da submissão à cirurgia plástica embelezadora com resultado manifestamente insatisfatório, diante

do presumível sofrimento, frustração de expectativas e impotência, capazes de retirar a pessoa de seu equilíbrio

psíquico, colorindo-se, assim, a figura do dano moral in re ipsa. Condenação mantida. Quantum indenizatório.

Majoração. Na fixação da reparação por dano extrapatrimonial, incluindo, in casu, o dano estético, incumbe ao

julgador, atentando, sobretudo, para as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado, e aos

princípios da proporcionalidade e razoabilidade, arbitrar quantum que se preste à suficiente recomposição dos

prejuízos, sem importar, contudo, enriquecimento sem causa da vítima. A análise de tais critérios, aliada às

demais particularidades do caso concreto, conduz à majoração do montante indenizatório em R$ 20.000,00

(vinte mil reais), corrigidos monetariamente, conforme determinado no ato sentencial. Juros de mora. Termo

inicial. Em se tratando de responsabilidade civil contratual, os juros de mora incidem a contar da citação, nos

termos do art. 405 do Código Civil, sendo inaplicável a Súmula 54 do STJ. Manutenção da sentença, no tópico.

Apelação da autora parcialmente provida. Apelação do réu desprovida.

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3.5 Superior Tribunal de Justiça (STJ)

A análise dos julgados do Superior Tribunal de Justiça tem dois grandes sentidos: o

primeiro é reforçar todo o posicionamento adotado pelos Tribunais Estaduais, o que não podia

ser diferente, já que a Corte assume a posição de responsável pela uniformização

jurisprudencial pátria. O segundo sentido é o surgimento de um voto divergente quanto à

natureza obrigacional assumida pelo médico no procedimento estético, o que pode demonstrar

a alteração gradativa do tratamento jurisprudencial dado ao tema.

Quanto ao alinhamento aos posicionamentos já explicitados, temos o Recurso Especial

nº 236.708/MG344

, o de nº 985.888/SP345

, que, mais uma vez, reafirmam o posicionamento

344

STJ, Quarta Turma, rel. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal convocado Do TRF 1ª Região), data

de julgamento de 10.02.2009. Civil. Processual civil. Recurso especial. Responsabilidade civil. Nulidade dos

acórdãos proferidos em sede de embargos de declaração não configurada. Cirurgia plástica estética. Obrigação

de resultado. Dano comprovado. Presunção de culpa do médico não afastada. Precedentes.

1. Não há falar em nulidade de acórdão exarado em sede de embargos de declaração que, nos estreitos limites em

que proposta a controvérsia, assevera inexistente omissão do aresto embargado, acerca da especificação da

modalidade culposa imputada ao demandado, porquanto assentado na tese de que presumida a culpa do cirurgião

plástico em decorrência do insucesso de cirurgia plástica meramente estética.

2. A obrigação assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que objeto do contrato

estabelecido com o paciente não é a cura assegurada, mas sim o compromisso do profissional no sentido de um

prestação de cuidados precisos e em consonância com a ciência médica na busca pela cura.

3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a

situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com o paciente a alcançar um determinado

resultado, o que ocorre no caso da cirurgia plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo o entendimento

nesta Corte Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios.

4. No caso das obrigações de meio, à vítima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que este decorreu

de culpa por parte do médico. Já nas obrigações de resultado, como a que serviu de origem à controvérsia, basta

que a vítima demonstre, como fez, o dano (que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado) para

que a culpa se presuma, havendo, destarte, a inversão do ônus da prova.

5. Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento

danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da

"vítima" (paciente).

Recurso especial a que se nega provimento. 345

STJ, Quarta Turma, rel. Rel. Ministro. Luis Felipe Salomão, data de julgamento de 16.02.2012. Cirurgia

estética. Danos morais. Nos procedimentos cirúrgicos estéticos, a responsabilidade do médico é subjetiva com

presunção de culpa. Esse é o entendimento da Turma que, ao não conhecer do apelo especial, manteve a

condenação do recorrente – médico – pelos danos morais causados ao paciente. Inicialmente, destacou-se a vasta

jurisprudência desta Corte no sentido de que é de resultado a obrigação nas cirurgias estéticas, comprometendo-

se o profissional com o efeito embelezador prometido. Em seguida, sustentou-se que, conquanto a obrigação seja

de resultado, a responsabilidade do médico permanece subjetiva, com inversão do ônus da prova, cabendo-lhe

comprovar que os danos suportados pelo paciente advieram de fatores externos e alheios a sua atuação

profissional. Vale dizer, a presunção de culpa do cirurgião por insucesso na cirurgia plástica pode ser afastada

mediante prova contundente de ocorrência de fator imponderável, apto a eximi-lo do dever de indenizar.

Considerou-se, ainda, que, apesar de não estarem expressamente previstos no CDC o caso fortuito e a força

maior, eles podem ser invocados como causas excludentes de responsabilidade dos fornecedores de serviços. No

caso, o tribunal a quo, amparado nos elementos fático-probatórios contidos nos autos, concluiu que o paciente

não foi advertido dos riscos da cirurgia e também o médico não logrou êxito em provar a ocorrência do fortuito.

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adotado pela Corte no sentido de que, em se tratanto de cirurgias plásticas estéticas, a

obrigação assumida pelo cirurgião é de resultado, ainda que a doutrina seja divergente.

Mesmo assim, a grande discussão que permeia demanda indenizatórias pelo insucesso

da cirurgia estética, que ocasionou danos ao paciente pela obtenção de resultados inversos aos

esperados, é quanto à existência da presunção da culpa em desfavor do cirurgião. Nesse

sentido, ambos os relatores são enfáticos ao concordarem com a referida presunção de culpa,

que não significa, de maneira alguma, responsabilidade objetiva, a teor do disposto no artigo

14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor.

Assim, em casos tais, basta que a vítima do dano comprove o dano, ou seja, que o

médico não alcançou o resultado prometido tal qual contratado, para a presunção da culpa,

invertendo-se, pois, o ônus da prova. Não desvencilhando-se da culpa que lhe foi

presumidamente imputada, por meio de comprovação de caso fortuito, força maior ou culpa

exclusiva da vítima, o médico deverá indenizar.

Não se olvide outrossim que eventuais fatores e reações estranhas à cirurgia, ainda que

não altere a natureza obrigacional assumida pelo médico como de resultado, são causas

suficientes e autônomas que podem romper o nexo de causalidade entre o dano e a conduta do

profissional. Assim, a presunção de culpa do médico pode ser afastada pela comprovação de

fator imponderável.

Dessa maneira, apesar de não haver análise fática na Corte, de acordo com a Súmula

nº 7346

, do Superior Tribunal de Justiça, os relatores frisaram de maneira clara a necessidade

de verificação da culpa do médico nas cirurgias estéticas, já que sua responsabilidade não é

objetiva, mas que há a inversão do ônus probatório, recaindo ao profissional o dever de provar

caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.

Outro ponto que merece ser levantado é a aceitação do “fator imponderável” como

fator de rompimento do nexo de causalidade, quebrando a ideia já levantada de que a análise

da responsabilidade pelo insucesso em cirurgia plástica estética está adstrita pura e

simplesmente à inexecução contratual. Na verdade, como ficou demonstrado, fatores que

fogem à diligência do cirurgião são levados em consideração, podendo-se concluir, assim,

Assim, rever os fundamentos do acórdão recorrido importaria necessariamente no reexame de provas, o que é

defeso nesta fase recursal ante a incidência da Súm. n. 7/STJ. 346

A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

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que, não existindo culpa, pode o cirurgião afastar-se de responsabilidade, mas deverá provar a

existência de circunstâncias que não poderia prever, ante sua presunção de culpa.

Já no Recurso Especial nº 81.101/PR347

, anterior aos demais julgados do Superior

Tribunal de Justiça apresentados, a solução da controvérsia também não é diferente e são

tecidos pelo relator, Ministro Zveiter, grande parte dos comentários já expostos sobre a

obrigação de resultado da cirurgia estética e a presunção de culpa do cirurgião.

Entretanto, a novidade fica por conta do voto do Ministro Carlos Alberto Menezes

Direito, um dos maiores expoentes da tese de que a cirurgia estética não seria regida pela

obrigação de resultado, mas pela de meio, como a grande maioria das obrigações que

permeiam médicos e pacientes.

Para o Ministro, que teve seu voto vencido mesmo após contundente argumentação, as

várias modalidades de especialidades cirúrgicas não guardam entre si diferenças essenciais ou

constitutivas, concluindo que toda cirurgia representa uma forma de tratamento. Quanto às de

natureza estética, não há dúvida da possibilidade de extremo sofrimento psíquico daqueles

que buscam esse tipo de cirurgia para o embelezamento de determinada parte do corpo; não

significa, portanto, que a cirurgia estética não busca curar uma patologia.

Nada obstante, a realização de cirurgias necessita de profissional habilitado, que age

com prudência, perícia e diligência. Mesmo assim, Direito lembra que, apesar da relação

médico-paciente estar permeada pela expectativa de bons resultados, ela também guarda a

possibilidade da superveniência de maus resultados, mesmo diante da ausência de

imprudência, imperícia e negligência, já que depende de fatores alheios, como o próprio

comportamento do corpo humano.

Dessa maneira, para o Ministro, nenhuma cirurgia guarda certeza absoluta quanto ao

seu êxito, pois toda e qualquer cirurgia pode apresentar resultados que não são esperados

mesmo na ausência de erro médico. A literatura médica, mormente no tocante à cirurgia

347

STJ, Quarta Turma, rel. Rel. Ministro Waldemar Zveiter, data de julgamento de 13.04.1999. Civil e

processual. Cirurgia estética ou plástica. Obrigação de resultado (responsabilidade contratual ou objetiva).

Indenização. Inversão do ônus da prova.

I - Contratada a realização da cirurgia estética embelezadora, o cirurgião assume obrigação de resultado

(Responsabilidade contratual ou objetiva), devendo indenizar pelo não cumprimento da mesma, decorrente de

eventual deformidade ou de alguma irregularidade.

II - Cabível a inversão do ônus da prova.

III - Recurso conhecido e provido.

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estética, é vasta nesse sentido, tanto que em outros países, como a maior parte do Canadá,

adotante do sistema da Common Law, destaca a responsabilidade dos médicos como limitada

a uma obrigação de meios, pois não estão vinculados aos resultados, mas apenas a fornecer

competentes informações e tratamentos aos seus pacientes, posição partilhada pelo Ministro.

Dessa maneira, em demandas indenizatórias, a simples afirmação do paciente de que o

médico não teria alcançado o resultado prometido não é suficiente para gerar a presunção de

culpa do cirurgião e consequente inversão do ônus probatório, de acordo com o voto do

Ministro, pois o paciente deve provar a culpa ou pelo menos não ter recebido as informações

competentes sobre a cirurgia.

Segundo Direito, ainda, não bastasse todos os argumentos já elencados para

caracterizar a obrigação médica como de meios, sempre, também não poderia ser aplicado o

artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, que trata da possibilidade de

inversão do ônus da prova, porque o próprio codex afastou essa possibilidade quando da

redação do artigo 14, §4º, que não faz qualquer diferenciação ou ressalva quanto à cirurgia

estética.

De acordo com o exposto, é possível notar o alinhamento do Ministro Menezes Direito

ao posicionamento doutrinário já destacado que considera a cirurgia estética como de meio e

não como de resultado em razão das inúmeras incertezas presentes no ramo médico e na

natureza de tratamento que a ela também deve ser conferida, já que também procura curar

patologias.

Assim, nota-se o surgimento de divergência jurisprudencial que, apesar de ainda

representar muito pouco diante de todos os outros julgados analisados, pode ser considerado

como uma parâmetro para decisões futuras.

A última consideração a ser tecida de maneira geral em relação aos julgados é quanto

à tamanha importância assumida pelos laudos periciais colacionados aos autos. Os juízes,

normalmente leigos no assunto, baseiam suas decisões principalmente nas informações

fornecidas pelos experts, necessárias muitas vezes no sopesamento das demais provas

produzidas.

Outrossim, na análise dos casos, não foi possível perceber uma certa predisposição dos

peritos em afastar a conduta culposa ou errônea do médico por espírito de corpo profissional,

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tese levantada alhures por alguns doutrinadores defendedores da não supervalorização do

laudo pericial.

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CONCLUSÕES

É certo que algumas conclusões foram delineadas no transcorrer do desenvolvimento

do tema, entretanto faz-se necessário organizá-las sinteticamente.

O exercício da medicina, vista sob os olhares atuais da sociedade e do Direito, não

pode ser encarado como intocável ou inquestionável e, se não observados os parâmetros

estabelecidos pela ciência, ainda que se trate de um campo permeado pelo contínuo avanço e,

também, muitas vezes, pela inexatidão, poderá ensejar a responsabilização civil do médico.

Nesse sentido, a grande maioria dos procedimentos médicos é tida pela doutrina e

jurisprudência como a assunção de obrigação de meio, ou seja, o profissional se obriga única

e exclusivamente a empregar todo o cuidado e diligência, segundo os ditames da ciência, para

alcançar o resultado que dele se espera, sem, entretanto, garanti-lo, ante as incertezas do

comportamento físico e até mesmo psicológico do corpo humano. Assim, ainda que não

alcançado o resultado do procedimento, teria o médico adimplido com sua obrigação.

Dessa maneira, para alguns autores, não poderia de maneira alguma o médico se

comprometer ao alcance de determinados resultados, pois não há hipóteses em que se pode

prever com exatidão a resposta do organismo humano ao procedimento. O resultado não

depende, assim, exclusivamente da atuação do profissional, mas está sujeito a fotores que não

podem ser controlados, concluindo-se, pois, que as obrigações assumidas pelos médicos

sempre serão de meios, nunca de resultados, pois apenas deverão atuar com o zelo e destreza

no exercício do ofício.

Para outros autores, entretanto, apesar de considerarem como regra a obrigação

assumida pelos médicos como de meio, existem situações excepcionais em que empreendem

obrigações de resultado, tais como quando o procedimento depender apenas de caráter

puramente técnico, caso dos exames laboratoriais de baixa complexidade ou, ainda, se o

profissional prometeu e garantiu o sucesso da intervenção, devendo, nestes casos, responder

civilmente pela ausência dos resultados esperados.

Em se tratando da cirurgia estética, tema posto em voga, apesar de inúmeros outros

países entenderem-na como uma obrigação de meio, no Brasil prevalece a aceitação tanto por

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parte da doutrina como da jurisprudência de que se trata de uma obrigação de resultado,

baseando-se, para tanto, na argumentação de que ninguém, plenamente saudável, se

submeteria à procedimento cirúrgico se não tivesse certeza da melhora do seu estado.

Evidentemente, não há unanimidade.

O principal efeito desse entendimento é o de que, para procedimentos considerados

como obrigações de meio, ao paciente caberá provar que o médico agiu com culpa; por outro

lado, para os procedimentos em encerrarem obrigação de resultado, basta o paciente

demonstrar o dano, traduzido na inexecução contratual, que, em desfavor do médico, pesará

presunção de culpa, cabendo a ele elidi-la por meio de provas que demonstrem que os

resultados sobrevierem por fatores externos a sua conduta.

Noutro giro, considerando as disposições legais sobre o tema, o Código de Defesa do

Consumidor traz expressamente a necessidade de verificação de culpa dos profissionais

liberais. Dessa maneira, aparentemente, ainda que a cirurgia estética seja considerada com

obrigação de resultado e gere presunção de culpa do profissional, pelos disposto no referido

codex, se houver prova de que não incorreu em imperícia, negligência ou imprudência,

também estaria afastado o dever de indenizar, como se se tratasse unicamente de inversão

processual do ônus da prova. Entretanto, a abordagem é diferente por parte da doutrina e

praticamente não observado na jurisprudência atual, uma vez que, presente a inexecução

contratual, presente também estará o dever de indenizar, como se responsabilidade objetiva

fosse, mas com absoluta impropriedade o uso do termo, pois, na verdade, como já

mencionado, trata-se de hipóteses de responsabilidade subjetiva com culpa presumida.

Assim, o mais correto, a princípio, seria o entendimento apresentado por Giselda

Maria Fernandes Novaes Hironaka, no sentido de que a verificação do tipo da obrigação

assumida pelo cirurgião dependerá do caso concreto: se prometeu alcançar determinado

resultado, apresentando fotografias “antes e depois” e levando o paciente a concluir que ficará

de determinada maneira, caracterizada estará obrigação de fim; deixando claro que se não

garante o resultado, será obrigação de meio. Entretanto, na prática, se assim fosse, difícil

imaginar uma situação em que alguém se submeteria a esse tipo de cirurgia, principalmente

sem ter a exata noção de como ficará depois; por isso a obrigação de resultado parece mais

alinhada às expectativas dos pacientes que se submetem a esse tipo de cirurgia.

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O grande cuidado que deve ser tomado é para que os Tribunais não considerem a

questão de maneira tão estanque, ou seja, não alcançado o resultado, presente o dever de

indenizar, mas se existir inexecução que fuja do seu alcance, como caso fortuito, força maior

e culpa exclusiva da vítima, não deve ser o médico responsabilizado; e nesse tocante se insere

a álea do corpo, pois se impossível de ser aferido motivo físico próprio do paciente que

impeça a execução, caracterizado estaria o rompimento do nexo de causalidade.

Quanto à inversão do ônus da prova, presente no Código de Defesa do Consumidor, há

discussão sobre sua aplicabilidade ou não para as obrigações médicas. De todo o modo, em se

tratando de obrigação de resultado, tal discussão se torna irrelevante, pois pela sua própria

natureza, existirá inversão do ônus da prova, já que existe presunção de culpa em desvafor do

profissional, conforme o entendimento que prevalece atualmente na jurisprudência nacional.

O tema, enfim, carrega consigo tamanha complexidade que necessita, pois, de estudos

e discussões contínuos. O presente trabalho apenas buscou delinear o tratamento jurídico

conferido pela doutrina e jurisprudência atual ao tema, na busca de facilitar o entendimento

quanto à interação que sempre existirá entre as ciências médicas e as jurídicas, mormente no

tocante à responsabilidade civil decorrente das cirurgias estéticas, assunto cada vez mais em

voga diante da utilização cada vez mais comum dos referidos procedimentos. Em se tratando

de um tema ligado aos constantes avanços das ciências médicas, não poderia ser tratado, de

modo algum, com exaustão ou com soluções estanques.

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