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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo Rio de Janeiro NEA/PPGH/UERJ 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE

Práticas Religiosas No

Mediterrâneo Antigo

Rio de Janeiro NEA/PPGH/UERJ

2011

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Copyright©2011: todos os direitos desta edição estão reservados ao Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. Capa: Junio César Rodrigues Diagramação: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim de Assumpção Imagem da Capa: Museum Collection: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts,USA Catalogue Number: Boston 99.518 Beazley Archive Number: 302569 Ware: Attic Black Figure Shape: Kylix Painter: Name vase of the Painter of the Boston Polyphemos Date: ca 560 - 550 BC Period: Archaic

Editoração eletrônica: Equipe NEA www.nea.uerj.br

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

Ficha eletrônica P912 CANDIDO, Maria Regina; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa (Orgs.). Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2011. 252 p. ISBN: 1. Mediterrâneo, Mar, Região - Religião. 2. Religião. I. Cândido, Maria Regina. II. Campos, Carlos Eduardo da Costa.

CDU 931(262)

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor: Christina Maioli Extensão e cultura: Nádia Pimenta Lima Instituto de Filosofia e Ciências Humanas José Augusto Souza Rodrigues Departamento de História André Luiz Vieira de Campos Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UERJ) Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Conselho Editorial Claudia Beltrão da Rosa Deivid Valério Gaia José Roberto de Paiva Gomes Maria do Carmo Parente Santos Maria Regina Candido Assessoria Executiva Alair Figueiredo Duarte Ana Carolina Caldeira Alonso Carlos Eduardo da Costa Campos Junio César Rodrigues Lima Luis Filipe Bantim de Assumpção Tricia Magalhães Carnevale Pedro Vieira da Silva Peixoto

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Sumário

7 Apresentação

Maria Regina Candido

10 Prefácio

Vicente Dobroruka

13 A Situação Sócio-Política de Josefo: entre a História e a Traição

Alex Degan

31 O cuidado para com os pobres no Cristianismo Primitivo –

Reflexões a partir de João Crisóstomo

Carlos Caldas

48 Elementos da religião doméstica romana na Aulularia de Plauto

Claudia Beltrão da Rosa

58 Homero: magia e encantamento da palavra poética

Flávia Maria Schelee Eyler

69 A cristianização do Império Romano: Algumas considerações de

caráter historiográfico

Gilvan Ventura da Silva

87 Identidade e Memória no Cristianismo Sírio-Palestino: o’amen

nos ditos de Jesus de Nazaré

João Batista Ribeiro dos Santos

101 A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos

João Oliveira Ramos Neto

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117 Bês em Deir el Medina e no Mediterrâneo(1540-400 a.C.) Margaret M. Bakos 135 Mito y sentido en Hesíodo: Las formas de habitar el mundo Maria Cecilia Colombani

147 A Rainha de Sabá e o Cristianismo da Etiópia

Maria da Conceição Silveira

160 Muçulmanos e Cristãos: uma construção da alteridade dos fiéis

das duas crenças

Maria do Carmo Parente Santos

174 Santidade Feminina na Gália Merovíngia: Radegunda de Poitiers

Miriam Lourdes Impellizieri Silva

190 O Culto Imperial como “Transcrito Público”

Norma Musco Mendes

210 “Pondo o Lixo Pra Fora” da relação entre exclusão de grupos

sócio-religiosos e interdição literaria na tradição judaico-cristã – João,

Judas e Lutero

Osvaldo Luiz Ribeiro

222 Considerações Sobre a Religiosidade Grega

Pedro Paulo Abreu Funari

235 Um manuscrito pseudo-Zoroástrico e o papel do Salvador no

Cristianismo Primitivo Oriental

Vicente Carlos Dobroruka

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Apresentação

Maria Regina Candido

Ao apresentar uma publicação com um tema amplo como a

Religião no Mediterrâneo Antigo, estamos trazendo ao debate as várias

faces do sagrado na qual podemos construir uma relação interpretativa

entre a natureza transcendente do ser humano diante da religião e

como ele traduz a sua materialidade. A manifestação do sagrado

contribui para uma nova semântica de relações no qual o homem

religioso imprime ao mundo sensível uma descontinuidade, que

reclassifica qualitativamente os objetos, sacraliza o mundo e atribui um

significado ao espaço sagrado em oposição ao cotidiano do mundo

profano.

Por outro lado, não podemos esquecer da dinâmica do século

XIX para os estudos da religião. Tal período perpassou pela

revitalização dos textos clássicos, assim como vivenciou

acentuadamente as novas descobertas arqueológicos. No meio

acadêmico, o resultado emergiu com a institucionalização da disciplina

da Ciências da Religião que fomentou a criação da cátedra

universitária História das Religiões promovendo a realização de teses,

congressos e publicações.

A identificação da temática da religião como objeto de estudo

torna-se interessante para nós pesquisadores das práticas mágico-

religiosas na Antiguidade ao redor do Mediterrâneo. O fato se deve a

ampliação da complexidade do ambiente religioso no Mundo Antigo

assim como na Modernidade que pode ser lida de modos diferentes,

antagônicos e complementares. Alex Degan investiga o judaísmo

tardio e o cristianismo primitivo e os métodos de governança romana

na Palestina. Carlos Caldas atualiza o tema ao trazer o personagem de

João Crisóstomos e a relação da igreja cristã com os pobres

considerados explorados e oprimidos. A pesquisadora Cláudia Beltrão

analisa o teatro romano como reflexo da centralidade da vida religiosa

dos romanos. A abordagem religiosa nos remete as práticas mágicas

cuja fronteira nem sempre é visível para separar o sagrado do profano

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como aponta Flavia Maria Schlee Eyler. Gilvan Ventura da Silva

analisa a expansão e fortalecimento das comunidades cristãs no

decorrer do século IV no epicentro dos núcleos urbanos do orbis

romanorum.

Junto a os aspectos da vida religiosa no cotidiano, João Batista

Ribeiro Santos analisa a tradição talmudica e João Oliveira Ramos

Neto traz a reflexão sobrea vida dos primeiros cristãos no cotidiano

dos habitantes da Palestina nos dois primeiro séculos da era comum.

Retrocedendo no tempo, Margaret M. Bakos busca indícios da escrita

antiga impressa no bastão mágico usado no culto no Egito Antigo,

enquanto que Maria Cecilia Colombani busca identificar certa

funcionalidade dos deuses e heróis visando tornar inteligível a lógica

da narrativa mítica. O tema sobre a narrativa mítica perpassa também

pela abordagem de Maria da Conceição Silveira ao analisar o mito da

Rainha de sabá e o Cristianismo na região da Etiopia. A religiosidade

do islamismo em embate com o cristianismo, tão ativa no tempo

presente, transita pelo tema da pesquisadora Maria do Carmo Parente.

Enquanto a Antiguidade Tardia e a emergencia de novos modelos de

santidade e mártires revelam as mudanças ocorridas na percepção

religiosa dos cristãos de acordo com a perspectiva de Miriam Lourdes

Impellizieri Silva. O Culto Imperial como Transcrito Publico, segundo

Norma Musco Mendes que analisa a institucionalização do sistema

imperial romano de acordo com a documentação textual, epigrafia e

arqueológica no final do periodo republicano expõe a fragil infra

estrutura demarcada pelos caóticos expedientes administrativo.

A tradição judaico-cristã foi constituída por múltiplas

representações socio-religiosa, segundo Osvaldo Luiz Ribeiro, fossem

todas as harmônicas e homogenias tenderiam a uma fusão pacifica,

porem , não foi o que ocorreu, fato explicado pelo autor em seu texto.

Ainda mantendo o interesse na esfera do religioso, Pedro Paulo de

Abreu Funari analisa as considerações sobre a religiosidade gregas ao

constatar que os gregos nunca foram muito unidos, falavam e viviam

em diferentes regimes politicos e sociais e variadas eram as suas

origens étnicas, mesmo assim continual a inspirar as gerações

posteriores causando espanto e admiração ao qual cabe ao autor

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analisar. O pesquisador Vicente Dobroruka discute a formação do

cristianismo primitiva em relação à refeição sagrada e o culto de Mitra.

Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido

Prof.ª Associada de História Antiga da UERJ

Coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade

& do Lato Sensu de História Antiga e Medieval da UERJ

Coordenadora de Mestrado do PPGH/UERJ

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Prefácio

Vicente Carlos Dobroruka

Prefaciar um livro que trata de ―práticas religiosas no

Mediterrâneo antigo‖ seria algo fácil de fazer-se no Brasil de algumas

décadas atrás? O tema era por si mesmo bizarro, os estudiosos, poucos

e o acesso à informação inexistente. Ou se tinha dinheiro e acesso às

bibliotecas estrangeiras (ou alternativamente, podia-se pagar o infame

―dólar livro‖ e encomendar, por vezes com demora de anos, um livro

numa das grandes livrarias de Rio ou São Paulo), ou o estudioso com

freqüência mudava de área. Ouvi de mais de um colega de graduação

que ele iria estudar ―história do Brasil‖ (um rótulo tão anódino quanto

―História Antiga‖, diga-se de passagem por nada dizer acerca do tema

estudado – pelo fato de que ―há fontes à vontade‖.

Os menos cultos alegavam - falaciosamente - que ―não era

necessário saber outra língua além do português‖.

Diante de tamanho fracasso, o quadro atual é algo de que

devemos nos orgulhar. Em aproximadamente duas décadas saíamos da

virtual inoperância na área de estudos de religião no mundo antigo,

como estamos aos poucos nos aventurando em terrenos pouco

mapeados, mesmo por estudiosos de renome internacional.

Obviamente, parte desse sucesso, espelhado nesta compilação que traz

a marca da excelência dos trabalhos realizados pelo Núcleo de

Estudos da Antigüidade - NEA da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (UERJ), deve-se a fatores externos inimagináveis há duas

décadas: o fim da inflação, a invenção da Internet, a "versão 2.0" da

mesma, que nos coloca em contato com os grandes nomes de qualquer

campo de pesquisa "em tempo real", a moeda brasileira forte, os

programas de incentivo à pesquisa.

Mas todos esses recursos, técnicos por natureza, de nada

serviriam se não existissem pesquisadores dispostos ao esforço

intelectual num campo tão escorregadio, tão cinzento e tão cheio de

oportunidades quanto o do estudo das práticas religiosas no mundo

mediterrânico da Antigüidade. Nesse sentido, o esforço mental de um

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Reitzenstein ou de um Nöldeke é comparável ao nosso - sua

genialidade sobressai-se, em parte, pelas limitações que

acompanhavam os trabalhos de sua época, contrapostos às

supracitadas facilidades de que dispomos.

Muito do avanço no estudo científico no estudo da religiosidade

desse período deve-se à curiosidade despertada pela religiosidade do

mundo helenístico em geral; com a admissão franca do judaísmo de

Jesus (algo relativamente recente), o público leitos viu-se às voltas

com um dado novo e "surpreendente": não apenas Jesus era judeu,

mas em seu tempo teve concorrentes, com propostas e práticas

distintos também.

O que uma coletânea como esta nos lembra é a extrema

variedade e, por vezes, superposição dessas práticas. E nos lembra

também que, embora durante a vida de Jesus como hoje o essencial da

vida espiritual de cada homem consistisse na oração (de petição, de

promessa, de agradecimento ou mesmo de maldição), os textos nos

quais essas tradições espirituais se apoiavam variavam enormemente.

O uso de figuras sagradas parecia mesmo confundir-se entre diversos

grupos, e o mesmo pode ser dito de seus textos: com freqüência nos

deparamos diante de uma profecia, oração ou apocalipse que poderia

igualmente ser judeu, cristão ou pagão.

Ou ainda poderia ser tudo isso simultaneamente - quando

Momigliano lançou a idéia de um "banco de dados" temático

espalhado pelo Mediterrâneo após o séc.V ou VI a.C., referia-se não

apenas a temas que apareciam um pouco por todo o lado como

também a personagens que, se não eram os mesmos, dividiam muitas

características comuns e, portanto, eram facilmente assimiláveis por

seus adeptos. Pensemos em Jesus, Asclépio, Apolônio de Tyana e,

mais tardiamente, Zoroastro, Ostanes e Apolo.

O esforço representado pelos textos que compõem esta

coletânea é tanto mais notável pelo fato de servirem-se com

freqüência de bibliografia e fontes primárias compartilhadas com os

melhores estudiosos de países com mais tradição. Sejamos justos: o

resultado não é ainda comparável ao obtido por instituições com

muitos séculos a mais de tradição acadêmica. Todavia, é de se

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enfatizar aqui o "ainda não" - a prosseguirmos nessa autêntica

sementeira de talentos, orientações e publicações, em breve teremos

avançado não apenas em função de nosso próprio atraso, mas em

poucas gerações estaremos, como comunidade acadêmica e não

apenas como indivíduos isolados, dialogando com estudiosos e

instituições com muito mais tradição.

Levamos uma vantagem inicial, é verdade - e isso fica também

exemplificado nesta coletânea: pela ausência de quadros altamente

especializados, temos de cobrir uma vastidão de campos de interesse e

investigação inconcebíveis para um acadêmico inglês, alemão ou

norte-americano. Damos aulas que, numa manhã, pulam de Flávio

Josefo à magia ateniense, e do mercenarismo grego à confecção da

Teogonia. Vejam bem leitores, estou falando desse tipo de proeza

didática realizada não pelo aluno, mas pelo professor: aqui, tivemos

de fazer da necessidade, virtude.

Um dos aspectos positivos dessa limitação é que os autores dos

textos desta coletânea foram forçados, creio que sem exceções, a

travar contato com uma multiplicidade de tradições menos por

interesse do que por urgência. E dessa urgência surgiu o gosto, e do

gosto, o aprendizado dos modos de estudar e entender essas facetas do

passado.

Este livro parece-me, portanto, um balanço de estado atual das

pesquisas sobre religiosidade no mundo antigo no Brasil; não é o

único, é verdade, mas pela diversidade de temas, ele oferece ao leitor

um diálogo não apenas entre temas distintos, mas também entre

abordagens diferentes. E involuntariamente, presta homenagem ao

grande melting-pot étnico-religioso-político que foi o mundo legado

por Alexandre aos pósteros.

Prof. Dr.Vicente Dobroruka

Professor de História Antiga da UnB

Professor Visitante em Clare Hall, Cambridge

Membro do Ancient India and Iran Trust, Cambridge

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A Situação Sócio-Política de Josefo: entre a História e a

Traição

Alex Degan1

Nascido no primeiro ano do reinado de Calígula2, filho de

aristocratas de Jerusalém (Vita, 1-5) e sacerdote fariseu, Flávio Josefo

situa-se em uma categoria de personagens polêmicos, seja por sua

atribulada vida, seja por seus impressionantes livros3, ou por sua

existência posterior dentro da tradição literária clássica. Ao investigar

suas obras é empreitada difícil deixar de se envolver com suas

controvérsias. Fonte importante para estudos que investigam o

Judaísmo Tardio, o Cristianismo Primitivo e os métodos de

governança romanos na Palestina, este estudo objetiva refletir sobre

seu papel sócio-político dentro da sociedade judaica hierosolimitana,

procurando responder a seguinte pergunta: quais eram suas relações

políticas e sociais na eclosão da revolta, na condução dela e no trato

desastroso com Roma, terminando com a capitulação judaica e a

destruição de Jerusalém?

1 Professor Assistente do Departamento de História da Universidade Federal

do Triângulo Mineiro (UFTM), doutorando em História Social pela

Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de Estudos

Sobre o Império Romano (LEIR). E-mail: [email protected] 2 Entre os anos 37 e 38, (Vita, 5).

3 A obra de Josefo, preservada com cuidado desde o início por intelectuais

cristãos, é composta por quatro livros: Bellum Judaicum (dividido em sete

livros que tratam desde a consolidação da dinastia asmonéia, até a conquista

de Massada, escrito entre os anos 75 e 79), Antiquitates Judaicae (narrativa

da história judaica, desde a criação do mundo até o início da revolta de 66,

composta de vinte livros e redigida entre os anos 94 e 99), Vita (único livro,

provavelmente um anexo incorporado a uma edição de Antiquitates, escrito

entre 94 e 100) e Contra Apionem (tratado apologético organizado em dois

livros que se preocupa em demonstrar a nobreza e antiguidade da história

judaica, polemizando especialmente com escritos gregos, sendo redigido

entre 94 e 100).

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Antes de analisarmos a aristocracia que Josefo pertencia,

devemos dedicar atenção ao seu universo: a Judéia. É preciso ressaltar

que a Palestina romana, região atrelada à província da Síria e lar

nacional dos judeus, não se destacava comosendo uma grande

áreaeconômica no Império (SARTRE, 1994: 383). Em relação aos

judeus, provavelmente eles eram tratados como mais uma das muitas

etnias que compunham o arranjo imperial, sem merecer uma atenção

especial na política romana. Se pudermos atribuir alguma

especificidade a Judéia, isto se justificava por sua posição fronteiriça

entre os partos e pela relação que Jerusalém mantinha com imensa

comunidade judaica da diáspora4. Estavam os judeus espalhados por

grande parte dabacia mediterrânea, principalmente em grandes

cidades como Roma5 e Alexandria

6, como também formavam

comunidades no Império Parta. Apesar das fontes registrarem

problemas localizados e temporários entre judeus e gentios na

diáspora até a eclosão da grande revolta de 66 - 707era evidente que a

relação exclusiva do povo judeu com YHWH, a observância doshabat,

o cumprimento da dieta judaica e a prática da

circuncisãodemonstravam que o particularismo não poderia ser

ignorado(GOODMAN, 1994: 106), não necessariamente estruturando

um problema de convivência.

4 Sobre a diáspora, consultar: GRUEN, 2002.

5 Martin Goodman (1994 A, p. 328) observa a existência de 11 ou mais

sinagogas em Roma durante o século I a.e.c. 6 Ellen Birnbaum (2004: 114) entende que os gregos de Alexandria

condenavam o comportamento passivo dos judeus frente ao comando romano

da cidade, o que produzia muitos conflitos e ressentimentos entre as duas

comunidades. 7 Sobre a relação dos romanos com a religião judaica, concordamos com o

que diz Maurice Sartre (1994: 392): ―Es abusivo hablar con respecto al

judaísmo de una religio licita, noción jurídica desconocida por los romanos,

pero en función de su respeto de los derechos locales de todos los peregrinos

del Imperio, se reconoce la Torah como la ley de los judíos, incluidos sus

aspectos religiosos‖.

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O Império Romano, composto por sociedades distintas8, se

apoiava em algumas estruturas unificantes, como o imperador, a

cidade e os exércitos. Em relação aos assuntos cotidianos, o poder

romano encontrava-se ligado aos aparatos das políticas local e

regional, tendo a cidade como unidade básica de organização. De fato,

as cidades eram os centros primários de poder, e não Roma (PRICE,

2004: 54). Foi nas cidades que a política romana procurou fazer sentir

sua presença, cooptando suas classes dirigentes e buscando encontrar

nesse centro de organização instituições unificadoras para estabelecer

sistemas coletores de impostos, mantenedores da ordem pública9 e de

culto ao imperador10

. Na Palestina judaica a maior e mais honrada

estrutura nacional era o Templo de Jerusalém (HORSLEY, 2000: 17),

local no qual se nutriam as ramificações do poder na antiga Palestina

judaica e de sua aristocracia religiosa sacerdotal que acabava

assumindo também as direções de classe dirigente civil (VIDAL-

NAQUET, 1996: 33). Flávio Josefo, como muito se orgulhava (Vita,

1, 1-6), pertencia a esta elite sacerdotal, descendente da casa real

asmonéia e da tribo sacerdotal de Levi11

. Yosef benMattitiahou ha

8―Como todos os impérios os impérios, o império romano não era uma

„sociedade‟ unitária, mas uma combinação de muitas „sociedades‟ [...].

Historicamente, qualquer grau apreciável de integração foi alcançado

unicamente por meio do exercício de várias espécies de poder‖ (HORSLEY,

2000: 17). 9Garnsey e Saller observam que os objetivos básicos deste método de

governança construído por Roma e elites regionais eram dois: manter a

ordem e arrecadar impostos. GARNSEY; SALLER, 1991: 32. 10

Sobre o culto ao imperador na parte oriental do Império do século I:

PRICE, 2004: 53-76. 11

Sobre o lugar da elite sacerdotal na Palestina romana: ―O sacerdote era

alguém separado para servir exclusivamente à sua vocação, tendo sua

existência inteira comprometida com uma total entrega a Deus‖

(PEDREIRA, 2002: 271); ―Os próprios sacerdotes, ou cohanim, pertencem à

tribo de Levi. Esta não recebeu territórios nos tempos bíblicos, pois cabe-lhe

uma missão mais elevada: a de guardar a Aliança. Dessa tribo provêm, em

especial, Aarão e Moisés, filhos de Amram, mas somente a descendência de

Aarão, o irmão mais velho, é tida por fornecedora dos grandes sacerdotes

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Cohen, antes da adoção pelos Flávios o renomear

comoTitusFlaviusJosephus12

, era um sacerdote fariseu13

e, dando

crédito aos seus textos, figura importante na sociedade de Jerusalém

antes da revolta. Para Per Bilde14

, TessaRajak15

e David M. Rhoads16

é

sob este ponto que devemos ler e interpretar as descrições que Josefo

faz da guerra, do Judaísmo e dos rebeldes: para estes autores, a elite

sacerdotal a que Josefo pertencia estaria não só em desacordo com os

grupos de revoltosos, mas também procuravam se opor a eles em um

projeto nacional (RHOADS, 1976: 05). Bilde afirma que Josefo e seus

pares formariam uma espécie de ―partido moderado‖, tentando

equilibrar as tensões entre judeus e autoridades romanas, atuando

como um grupo político que lutou por esvaziar o descontentamento

„ungidos pelo Senhor‟ e pode usar o título de Cohen‖ (HADAS-LEBEL,

1991: 19). 12

Hadas-Lebel (1991: 11) explica que, ―Josefo é o prenome bíblico que o pai,

Matias, lhe deu ao nascer. Quando, mais tarde, o imperador Vespasiano fez

dele um cidadão romano, esse prenome „bárbaro‟ tornou-se um cognomen

associado ao nome de família do benfeitor que o libertou após tê-lo

aprisionado, o nome da gens Flávia‖. 13

Sobre Josefo com um fariseu na juventude, consultar: RAJAK, 1983: 11-

45. 14

Para Bilde (1988: 179): ―Josephus was of an aristocratic, priestly and

noble family. He had been well educated […]. Moreover, he was wealthy

throughout his life. Thus, Josephus was deeply rooted in the Palestinian-

Jewish and Jerusalem upper-class, and later it appears that in the Diaspora

and in Rome, he seems to have established himself in a similar position‖. 15

Para Tessa Rajak (1983: 79):―The various strands of Josephus‟

interpretation of the revolt fall into place, and make sense, when the simple

point is understood that his opinions are, as is quite natural, the product of

his position within Palestinian society, and that they are those of a partisan

on one of the two sides in a violent civil conflict‖. 16

Para David Rhoads (1976: 5): ―Josephus‟ heritage thus identifies him the

priestly ruling class of Israel, the class which cooperated most directly with

the Romans and which had the most to lose by a war white Rome‖.

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popular de seu conteúdo revolucionário, tentando ganhar tempo17

,

dominando os fanáticos, preservando a amizade com Agripa II e

esperando uma ação romana para abrir novas negociações.

Provavelmente o desaparecimento da ordem romana também

significaria uma séria ameaça a esta classe dirigente.

Ainda centrada na classe dirigente a qual Josefo pertencia,

Martin Goodman oferece uma interpretação interessante. Para

Goodman a elite dirigente mantinha profundas oposições em relação

aos grupos rebeldes (GOODMAN, 1994: 26), na maioria compostos

por judeus camponeses (GOODMAN, 1994: 84), distantes do

cotidiano dos ofícios do Templo e da cidade18

. Josefo não esconde as

diferenças entre o judeu que ele é e os galileus e idumeus, ressaltando

as especificidades destes grupos em suas relações com o Judaísmo19

.

Entretanto, Goodman afirma que esta elite sacerdotal do Templo não

se opôs ao conflito aberto contra Roma porque também o desejava.

Para ele, ―a revolta foi, assim, desde o início conduzida pela classe

dirigente, numa tentativa desesperada de manter sua importância na

sociedade judaica depois que o apoio romano, em que haviam

anteriormente confiado, foi retirado‖ (GOODMAN, 1994: 173). De

fato, como nos mostra Richard A. Horsley, a centralidade do Templo

e de suas estruturas de poder nunca foram totalmente aceitos por todos

os judeus20

, e os romanos, na tentativa de assentar sua influência na

17

―He tried to control the rebellious forces, to subdue the religious fanatics,

to retain the relationship to King Agripa II and thus to the Romans, to

maintain control of the entire province and, by and large, to wait and see,

hoping that a possibility of negotiation might turn up‖ (BILDE, 1988: 179). 18

Sobre a relação entre banditismo social e meio rural na Palestina romana

do século I: HORSLEY; HANSON, 1995: 57-88. 19

Richard Horsley(2000: 19) observa que, ―embora em algumas passagens

Josefo se refira aos hoiioudaioi de modo um tanto indefinido, em geral ele é

bastante preciso com relação aos galileus ou aos idumeus em situações em

que seus intérpretes substituem por judeus‖. 20

―O Templo, porém, foi sempre uma instituição contestada e negociada,

quer no tempo de Salomão (construído com o emprego de trabalho forçado

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aristocracia nativa, aceleraram seu descrédito frente ao frágil corpo

social da Palestina judaica. Com o fracasso do modelo de dinastia

helenística após a morte de Herodes, os romanos incorporaram a

região ao plano administrativo direto da província da Síria21

, assistida

por um procurador ou prefeito22

, buscando ajuda no cargo de Sumo

contra o qual quase todas as tribos finalmente se revoltaram; 1Rs 5:12), na

época de sua reconstrução nas últimas décadas do século VI e sob o

patrocínio do Império Persa (Ageu, Malaquias, Isaías 56-66, Esdras,

Neemias), na crise do fim do século III / início do século II a.C. (1 Henoc 92-

104; Reforma Helenizadora, Rebelião Macabaica, comunidade de Qumrã /

Manuscritos do Mar Morto), na reconstrução imponente do Templo em estilo

romano-helenístico empreendida por Herodes ou na grande revolta de 66-

70. Instituições como a do Templo de Jerusalém eram resultados

contestados, negociados, de compromisso continuado, assumido por um

povo imperialmente dominado‖ (HORSLEY, 2000: 17-18). 21

―Siria, engrandecida con Cilicia Llana, sólo ocupa de hecho el Norte y

Centro de la gran Siria (en sentido antiguo), puesto que en el sur están los

reinos de Judea (Palestina) y Nabatea (Transjordania). Ella misma está

conformada por una constelación de microestados que ocupan su territorio.

El gobernador, que reside en Antioquia, gobierna de hecho sobre la Siria de

las ciudades. Como provincia fronteriza limita con el territorio de los partos,

lo que explica la presencia de tres o cuatro legiones en su territorio. Augusto

conserva el mando de la provincia para sí mismo y nombra a un legado de

rango consular. Siria permanece ininterrumpidamente como uno de los más

importantes gobiernos provinciales‖ (SARTRE, 1994: 21). 22

Sobre a dúvida se a Judéia romana após o ano 6 era administrada por um

procurador ou prefeito: SARTRE, M., 1994: 388. ―Siguiendo a Flavio Josefo

y los escritos intertestamentarios, se creyó durante mucho tiempo que Judea

formó una provincia autónoma confina a un procurador desde ese momento.

Una inscripción encontrada en Cesarea en 1969 prueba que Poncio Pilato

llevaba el título de praefectus. En realidad Judea estuvo, pues, anexionada a

Siria – cosa probada suficientemente por las múltiples intervenciones de los

gobernadores de Siria en Judea hasta la revuelta del 66 y por lo que Josefo

declara explícitamente, pero un prefecto al mando de las tropas

representaba al gobernador; el mismo hombre estaba también, sin duda,

encargado de las finanzas de la región, al menos de la gestión de los

dominios imperiales, y actuaba entonces como procurador‖ (SARTRE,

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Sacerdote23

. Este antigo cargo, em acentuado desprestígio desde 37

a.e.c., abalado pela ação centralizadora de Herodes, só seduzia ainda

membros da própria classe sacerdotal. O Evangelho de João registrou

este desgaste do sumo sacerdócio frente ao povo judeu em duas

oportunidades24

, sugerindo que o ofício no cargo era anual. Não era,

como demonstra Goodman (1994: 118), mas as rápidas mudanças,

devido aos jogos de poder entre Herodes e, posteriormente, romanos e

famílias sacerdotais, mimaram definitivamente a importância do cargo

aos olhos dos judeus simples (GOODMAN, 1994: 118).

Concordamos com Goodman em sua análisedo quadro de

alienação política da elite dirigente judaica, falida e sem capital moral

para comandar a Judéia25

, mas não temos muita certeza quanto a sua

participação decisiva na eclosão e condução da revolta. Mesmo

quando Goodman argumenta que a razão da excessiva punição

1994: 388);―Cette inscription découverte à Césarée […] porte le nom de

Ponce Pilate et indique son tigre officiel, préfet de Judée. Après le bref

intermède du règne d‟Agrippa, les gouverneurs de Judée prennent le titre de

procurateur ‖ (HADAS-LEBEL, 1997 : 94). 23

Concordamos com a precisa observação de Martin Goodman (1994: 116):

―A Judéia havia sido governada durante quase um século e meio por

monarcas de molde helenístico. Quando as instituições da monarquia

desapareceram naturalmente com a destituição de Arquelau, os romanos

procuraram instituições nativas alternativas para substituí-las. Foram

atraídos a promover o sumo sacerdócio à liderança da nação apenas por

aquela posição ser não só antiga como também venerada pelos judeus‖. 24

―Mas um deles, chamado Caifás, que era o pontífice daquele ano, disse-

lhe: Vos não sabeis nada‖ (Jo – 11:49). ―Primeiramente levaram-no à casa

de Anãs, por ser sogro de Caifás, que era o pontífice daquele ano‖ (Jo –

18:13). 25

―Eles (o povo judeu) não confiavam nas representações dos seus pretensos

líderes. Se toda a classe dirigente de fato conseguiu, com Josefo, iludir-se de

que seus membros eram a elite judaica natural, foram eles então a única

porção da sociedade a ter essa ilusão. Outros judeus não sentiam tal

confiança no direito da classe dirigente de governar‖ (GOODMAN, 1994:

57).

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romana estaria ligada a elevada participaçãoda elite de Jerusalém na

revolta (GOODMAN, 1994: 238-239), acreditamos que a causa disto

estaria no fato de que uma nova dinastia de imperadores, os Flavianos,

necessitava de uma gloriosa conquista, com um triunfo grandioso,

para consolidar e legitimar seu poder. Preferimos a análise de

TessaRajak que relacionou o desgaste e racha entre dirigentes judeus e

romanos como um fruto das vacilações e inabilidades de sucessivos

governantes latinos na administração da região, como também sendo

gerada pelas disputas políticas locais e pela incapacidade da elite

hierosolimitana em lidar com os complexos problemas que a Judéia da

segunda metade do século I se encontrava26

. Há uma clara falta de

identificação entre as classes sociais (RAJAK, 1983: 85) e um surto

de banditismo rural que nos revela a desintegração que a tradicional

sociedade camponesa da Palestina sofreu27

. Rajak (1983: 123-124) e

Goodman (1994: 61-64) apontam períodos de secas e de aguda crise

econômica na década de 60 e.c. Fica evidente a inabilidade da classe

dirigente em administrar a região, com suas instituições

constantemente vistas como injustas e intoleráveis (HORSLEY;

HANSON, 1995: 58), sem indícios de um sincero engajamento em um

levante popular contra o domínio romano. Como os romanos

tradicionalmente viam as elites como as portadoras de riqueza

26

Para Rajak (1983: 78): ―a rift between Jews and Romans had been opened

by bad governors and was widened by various criminal or reckless types

among the Jews themselves, for their own ends, or out of their own madness

[…]. The inactivity of the established leadership made this possible‖. 27

Segundo Horsley e Hanson (1995: 57-58):―o banditismo social surge em

sociedades agrárias tradicionais, em que os camponeses são explorados por

governos e proprietários de terras, particularmente em situações nas quais

os camponeses são economicamente vulneráveis e os governos

administrativamente ineficientes. Esse banditismo pode aumentar em épocas

de crise econômica, incitado pela fome ou elevada tributação, por exemplo,

bem como em períodos de desintegração social, talvez resultante da

imposição de um novo sistema político ou econômico-social [...]. O contexto

econômico-social do antigo banditismo judeu apresentava exatamente essas

condições‖.

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fundiária (GOODMAN, 1994: 131), e tampouco tinham sensibilidade

para entender estruturas sociais distintas da sua28

, esta insistência

romana em apoiar a elite judaica, seja pela descendência sacerdotal

desgastada, ou pela riqueza agrária, só fez piorar a situação. Os

publicanos29

, preferidos pelos romanos como mandatários locais, eram

sumariamente desprezados pelos judeus30

. Mesmo o evergetismo,

traço fundamental da política romana31

, parece que nunca seduziu por

completo os judeus da Palestina: Herodes atraia muito mais a

admiração grega por suas obras do que a judaica32

. Em resumo, esta

elite nacional judaica, que Josefo representava ativamente, padecia de

uma ilusão se sentindo como inquestionável. Roma também,

assentando seu poder nestes clientes judeus33

, ignorava

completamente a situação complexa da Judéia do século I. Yosef

28

―O governo romano era culposamente ignorante a respeito das estruturas

sociais dos povos submetidos no império. Essa ignorância era profunda e

entranhada em todo o arcabouço mental romano através do qual eles

compreendiam outras nações‖ (GOODMAN, 1994: 247). 29

―Em outras províncias do Império Romano os homens ricos que

arrecadavam os impostos estatais estavam entre os membros mais

respeitados da sociedade. Chegando à atenção de governadores romanos

através de tais serviços, eram eles justamente a espécie de homens que se

tornavam procuradores do imperador e cujos descendentes eventuais

ascendiam à classe dirigente romana‖ (GOODMAN, 1994: 137). 30

O assombro, registrado no Evangelho de Lucas, que os fariseus

manifestaram ao saber que Jesus tinha se reunido em refeição com

publicanos, confirma esta visão negativa que os judeus palestinos tinham dos

coletores de impostos; Lucas 5:27-32. 31

Sobre a relação entre o papel sacerdotal do imperador e oevergetismo em

Roma: GORDON, 2004: 134-140. 32

Josefo registra no Bellum Judaicum muitas passagens que refletem a

gratidão grega ao evergetismo praticado por Herodes, em contraposição ao

silêncio judeu sobre a maioria destas obras. Um longo relato das ações

promovidas por Herodes com intuito de alegrar os gregos, incluindo o

―patrocino‖ de um jogo olímpico, segue em Bellum Judaicum, I: 401-418. 33

Sobre a relação do Estado imperial romano com lideranças clientes do

oriente: SARTRE, 1994: 60-66.

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benMattitiahoue a classe sacerdotal a que pertencia eram marginais na

sociedade que deveriam dirigir.

No entanto, apesar desta profunda alienação política, em 66

e.c. estava o ―partido moderado‖ de Josefo coordenando a resistência

e administrando a Palestina judaica rebelada. Apesar da desconfiança

de grupos populares como os sicários e os zelotes, algum prestígio

eles ainda deveriam ter. Antes mesmo da revolta, em 64 e.c., o jovem

fariseu Yosef benMattitiahou integrou uma comissão que viajou até

Roma (Vita, 13-16) a fim de negociar junto a Popeia Sabina a

libertação de alguns sacerdotes detidos34

. Conforme observaram

David Rhoads35

e MireilleHadas-Lebel (1991: 73) a viagem o deve ter

impressionado muito, estando na grande cidade e no centro do poder

do grande império,e talvez esta experiência tenha aprofundado suas

dúvidas sobre as reais chances de sucesso de um levante. A comissão

foi bem sucedida e Josefo deve ter colhido algumas glórias entre os

dirigentes de Jerusalém e os judeus de Roma36

. Hadas-Lebel(1991:

60) deduz que já neste ano Josefo deveria conhecer a língua grega, ao

menos o suficiente para participar da embaixada judaica, observação

reforçada por Momigliano (1992: 186) quando aponta a dupla

formação de Josefo, versado no judaísmo farisaico e na retórica

34

―Em 64, „com 26 anos completos‟, Josefo foi encarregado de uma missão

em Roma. Tratava-se, observa ele, de conseguir a libertação de alguns

sacerdotes amigos seus, „homens distintos‟. Segundo o relato bastante

sucinto contido na Autobiografia, o procurador da Judéia, Félix (52-60),

„não se sabe por que razão‟, tinha mandado prendê-los e levá-los a Roma

para que se explicassem diante do imperador Nero. Josefo gaba-se de ter

tido êxito nessa missão intervindo junto á imperatriz Popéia‖ (HADAS-

LEBEL, 1991: 58). 35

―Josephus was especially impressed by the might of Rome. When he

returned in 66 C. E. to a Jerusalem on the brink of revolt, he tried to

dissuade those bent on revolution by reminding them of the power of Rome‖

(RHOADS, 1976: 06). 36

Sobre a relação de Josefo com os judeus de Roma: HADAS-LEBEL, 1991:

67-72; GOODMAN, 1994 A.

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grega37

, se enquadrado numa constituição helenística geral das elites

de Jerusalém que poderia provocar censura de alguns dos líderes

populares do levante. Seu retorno ao lar dos judeus ocorreu

praticamente ao mesmo tempo em que o rompimento com Roma se

dava, e mais uma vez Josefo esteve presente no centro das decisões

judaicas38

: foi confiado a ele o comando e organização da Galileia

(alta e inferior) e de Gamala, em Golan. Novamente podemos supor

que seu prestígio entre os dirigentes hierosolimitanos era alto, pois a

Galileia não era uma região pacífica.Fazendo fronteira com os partos e

com o reinado de Agripa, ao norte de Jerusalém e sul da província da

Síria, a região era a provável porta de entrada dos romanos na

Palestina judaica independente, situação que se confirmou. Não

obstante, a situação interna parecia caótica, já que a ordem política

herodiana e romana desintegrou-se primeiro lá, mergulhando a região

num surto de banditismo. Historicamente a Galileia sempre foi uma

região complexa e particular, prensada entre impérios e

continuadamente invadida. Horsley (2000: 23) observa que:

Tanto as tradições hebraicas com a literatura judaica

recente apresentam o povo da Galileia como ardentemente

independente. Esse povo precisava ser assim, pois um

soberano estrangeiro após o outro assumia o controle da

região e determinava sua vida e sua geografia [...]. Os

galileus devem ter sido resistentes e persistentes para

37

Josefo afirma que estudou língua grega antes de 64 em Antiquitates

Judaicae, 20, 263. ―Procurei também, através de muito esforço, ter acesso

aos textos e disciplinas elaboradas em grego, depois de ter recebido lições

de gramática, ainda que, na verdade, eu não consegui a pronúncia correta,

já que a maneira peculiar dos judeus ver as coisas me impediu‖. 38

―Ao voltar de sua missão, Josefo certamente não é partidário de um

confronto com Roma. Não acaba ele de beneficiar-se de apoios na corte

imperial, de avaliar o número de seus correligionários na capital do mundo?

E, no entanto, alguns meses mais tarde, ele se encontra não só envolvido na

guerra contra Roma, mas também investido de uma responsabilidade muito

grande: o comando de toda a Galiléia e da região do Golan‖ (HADAS-

LEBEL, 1991: 77).

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manter seu espírito independente ao longo de uma série

aparentemente interminável de dominadores estrangeiros,

desde as primeiras cidadescananéias até o império romano.

Mesmo as relações com Jerusalém e o Templo nunca foram

absolutamente tranquilas (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 28),

registrando os textos bíblicos a Galileia como uma região conquistada

e dominada pela realeza de Davi e Salomão (HORSLEY, 2000: 26-

28). O cisma das 12 tribos, provocado após a morte de Salomão,

reforça a ideia de que as tribos do norte, dentre elas a região da

Galileia, não aceitavam passivamente um comando partindo de

Jerusalém.

Assim, no início da revolta judaica estava Josefo coordenando

os esforços e representando os interesses hierosolimitanos na Galileia.

Só dispomos de informações que ele mesmo nos deu sobre este

período, que não são poucas, mas desencontradas e com lacunas

(HADAS-LEBEL, 1991: 251). Seu constrangimento em narrar suas

ações contra a campanha de Vespasiano é evidente, e talvez por isto

ele não nos forneça informações sobre sua formação militar antes de

66. Sendo Josefo escolhido comandante de uma região importante,

complexa e que seria a primeira a sofrer com a empreitada romana,

deveria conhecer um pouco de disciplina e tática bélicas? Não

sabemos. Josefo diz que procurou fortificar cidades, unificar as

guerrilhas locais e organizar um exército seguindo o modelo romano.

Informou que provocou imediatas desconfianças entre os líderes

galileus populares quanto as suas intenções frente aos romanos e

Agripa II. Para Richard Laqueureste é um indício que ele abusou de

sua autoridade39

, despertando rancores locais, e Cornelli observa que

sua autoridade na Galileia era tão fraca que ele tinha que se valer de

39

―Josephus abused his mission by assuming the role of tyrant of the northern

province. Laqueur builds this part of his reconstruction on Vita, partly the

hypothetical „statement of affairs‟ from 67, and partly the final version which

is supposed to be determined by Josephus‟ polemics against Justus of

Tiberias‖ (BILDE, 1988: 174).

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sua guarda pessoal e de mercenários para se sustentar, mas não do

povo (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 42). O certo é que em sua

missão galileia ele sustentou duas guerras: uma externa, contra

Vespasiano e romanos, e outra interna, contra grupos independentes

de judeus rebelados (IGLESIAS, 1994: 19). E de certa forma foi

engolido pelas duas.

Neste ponto, a posição política de Josefo se coloca na

pergunta: ele foi um traidor40

? Aos olhos dos rebeldes, sua capitulação

em Jotapata foi uma grande traição nacional, mas será que esta era a

visão de sua classe social? As discussões e dúvidas acerca de sua

traição são contemporâneas aos seus escritos. Justo de Tiberíades, um

antigo opositor galileu, contestou o papel de Josefo na guerra em uma

obra que infelizmente não sobreviveu(Vita, 336-367). Imediatamente

Josefo se justificou, publicando uma autobiografia, Vita, no final do

século I e.c., na qual estruturou uma defesa política pessoal temperada

com algumas informações pessoais41

. MireilleHadas-Lebel observa

que a necessidade de Josefo em se autojustificar era tão grande que

nove décimos de Vita são dedicados ao período do comando na

Galileia (HADAS-LEBEL, 1991: 77). Todavia, como observa Per

Bilde (1988: 181), a traição de Josefo, negada com constrangimento,

pode ser relativizada se interpretarmos seu comportamento o

comparando com outros judeus de situação social parecida, como

Herodes, Agripa II, Filo de Alexandria, os saduceus e os judeus de

Roma42

. Tampouco devemos desconsiderar que Josefo atemorizado

pelas desgraças da guerra lutou instintivamente por sobreviver,

40

Sobre o tema da traição e Flávio Josefo: VIDAL-NAQUET, 1980. 41

Uma interessante leitura do Vita, observando as contradições com seus

escritos anteriores e violência que o texto orienta sua polêmica foi feita por

Denis Lamour, 1999. 42

―On a very crude level, of course, Jews in Rome must have seen Josephus

as a highly desirable patron. He wasanimportantperson in Roman society‖.

(GOODMAN, 1994 A: 332).

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26

observação apontada por Elias Canetti43

. Os romanos, antigos

parceiros da aristocracia de Jerusalém, lhe prometeram a vida,

enquanto a causa da independência judaica lhe colocou o dilema da

sobrevivência e do suicídio. Foi neste Josefo sobrevivente – Flavius

Josephus – que os judeus da diáspora poderiam buscar algum modelo

ou orientação frente ao desespero da destruição do Templo e da

desconfiança sofrida pelo Judaísmo dentro do Império. Ele não

renegou sua fé judaica para se tornar cidadão romano (Vita, 422-423),

e trabalhou na redação de uma obra que se dedicou em mostrar que o

Judaísmo poderia ser compatível com a sociedade romana e ordem

imperial44

. Aristocrata, fariseu, sacerdote com prestígio dentro da

classe dirigente de Jerusalém, a posição política de Josefo transitou

entre romanos e judeus, primeiramente tentando preservar a posição

de destaque de sua classe social na Judéia e, depois da catástrofe de

70, negociando a sobrevivência de sua religião em um ambiente hostil

ao povo de YHWH. Este homem intermediário (VIDAL-NAQUET,

1980: 32) permaneceu cindido até o fim, tentando sepultar as suspeitas

que o cercavam e seus fantasmas passados escrevendo histórias do

Judaísmo, com se tivesse a necessidade de se convencer de sua

grandeza. Ator de paixões políticas e religiosas, testemunha parcial de

43

Segundo Canetti (1983: 251), ―o momento de sobreviver é o momento de

poder. O espanto diante da visão da morte se dissolve em satisfação, pois

não se é o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente está de pé. É como

se um combate tivesse antecedido aquele momento, e nós mesmos tivéssemos

derrubado o morto. Na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro,

comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita

importância. Mas é importante que o sobrevivente esteja sozinho diante de

um ou de vários mortos. Ele se Vê só, se sente só, e, quando se fala do poder

que este momento lhe confere, jamais se deve esquecer que ele deriva da sua

unicidade e somente dela‖. 44

―Josephus could have identified himself with Roman society. Much of is

writing was aimed at convincing both Jews and Romans that the practice of

Judaism was not incompatible with living in a roman society, and it would

have been entirely logical for him to present himself as a „Roman of the

Jewish faith‘‖ (GOODMAN, 1994 A: 334).

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deprimidos acontecimentos e fundador de uma historiografia

judaica45

, sua traição ajudou a nos legar uma obra forte e

impressionante, sem paralelos para o historiador moderno dedicado ao

período. Sua triste sorte revelou-se nosso prodígio. Estranhos

caminhos da História.

Documentação Textual

JOSEPHUS. The Life.Against Apion. Translated by H. St. J.

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45

Denis Lamour (2006: 145) observa que Josefo ―foi o primeiro judeu que

procurou levar em consideração, por um lado, o encadeamento lógico das

causas materiais e, por outro, o desígnio impenetrável de Deus de Israel,

tendo evitado, ao mesmo tempo, a perdição‖.

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O Cuidado para com os Pobres no Cristianismo Primitivo –

Reflexões a partir de João Crisóstomo

Carlos Caldas46

Uma das principais características das produções teológicas

surgidas na América Latina desde a segunda metade do século XX –

tanto a Teologia da Libertação (TdL) como a Teologia da Missão

Integral (TMI) é ênfase e a atenção dadas ao fato que as igrejas cristãs

devem dar aos pobres, explorados e oprimidos em sua atuação no

mundo47

. Evidentemente há uma diferença imensa e uma distância

quase abissal entre as duas correntes teológicas latino-americanas no

que diz respeito ao lugar e ao papel do pobre para a reflexão teológica

e ação pastoral ou ação em missão da igreja no mundo. Enquanto a

TMI enfatizou a importância do envolvimento social como parte

integrante e absolutamente essencial para o cumprimento da missão da

igreja no mundo, a TdL enfatizou o pobre como chave hermenêutica

da leitura bíblica e como sujeito da reflexão teológica. Alguns críticos

podem pensar que a TMI é tímida demais, especialmente se

comparada à TdL. Não obstante, é impossível negar que a TMI

representou avanço, se comparada ao pensamento dos que advogam

uma compreensão da missão da igreja em termos puramente

―espirituais‖ (entre muitas aspas...), metafísicos e extramundanos. São

os que no meio evangélico latino-americano e brasileiro entendem a

missão da igreja apenas, única e exclusivamente em termos de

46

Carlos Caldas, Doutor em Ciências da Religião pela Universidade

Metodista de São Paulo, é professor da Escola Superior de Teologia e do

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. [email protected] 47

As igrejas que seguem orientação teológica libertacionista chamarão esta

atuação de ―ação pastoral‖ ou simplesmente ―pastoral‖, e as que se afinam

com a linha teológica da missão integral a chamarão de ―missão‖. Para mais

detalhes consultar Longuini Neto (2002: passim).

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―evangelização‖, com vistas à ―salvação da alma‖. Nesta visão, sem

dúvida estreita, tudo que não tem a ver diretamente com

evangelização é tido como perda inútil de tempo, energia e dinheiro.

O fim último da missão é o crescimento numérico da igreja. Esta

perspectiva teórica, que gera uma prática concreta de missão, foi

desafiada pela TMI. A grande referência da TMI está no documento

conhecido como Pacto de Lausanne, produzido no Congresso

Internacional para Evangelização Mundial (conhecido mais

simplesmente como Congresso de Lausanne), realizado em 1974. O

Pacto de Lausanne (PL) gerou uma série de encontros menores que

por sua vez também geraram documentos, que se tornaram conhecidos

no meio evangelical no Brasil como ―Série Lausanne‖48

. Dentre estes

volumes merecem destaque especial Viva a simplicidade!

Compromisso evangélico com um estilo de vida simples (1985) e

Evangelização e responsabilidade social (1984). Lausanne revigorou

e oxigenou a reflexão teológica e a prática missionária das igrejas

simpatizantes e aderentes da TMI. Nunca é demais destacar que a

atuação dos teólogos evangelicais latino-americanos René Padilla (do

Equador), Samuel Escobar (do Peru) e Orlando Costas (de Porto Rico)

tanto no Congresso de Lausanne como na redação do PL foi

determinante para que a teologia evangélica conservadora

compreendesse que a missão da igreja não se resume a um discurso

teórico e à mera aceitação de conteúdos racionais. A TMI advoga que,

sem embargo do anúncio do evangelho, tão caro às igrejas de tradição

evangélica, deve haver também um envolvimento com questões de

natureza social, econômica e política49

. Nos últimos anos a TMI

desenvolveu articulações interessantes em sua práxis50

, tais como a

48

Os dez volumes da Série Lausanne foram publicados no Brasil pela ABU

Editora e Visão Mundial de 1982 a 1985. 49

Para detalhes quanto à TMI e sua atuação no contexto hispano-americano,

consultar: www.kairos.org.ar 50

A palavra práxis é utilizada não na acepção do senso comum, que a

entende como mero sinônimo de "prática", mas em seu sentido de reflexão

sobre a prática. O conceito de "práxis" é bastante antigo, pois tem raízes

remotas no pensamento de Aristóteles. Todavia, se tornou termo técnico

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Rede Miquéias (Mica Network) 51

e a RENAS – Rede Evangélica

Nacional de Ação Social52

. São movimentos que priorizam de diversas

maneiras a responsabilidade e o cuidado que a igreja em missão no

mundo deve ter para com o pobre, o oprimido e o necessitado. Neste

sentido, a TMI resgatou o aspecto original do evangelicalismo

britânico dos séculos XVIII e XIX, o qual já tinha em sua gênese a

compreensão e a prática do envolvimento em questões de natureza

social, política e econômica53

. O evangelicalismo é movimento

teológico multifacetado por demais. Há pontos em comum entre suas

diversas ramificações, como o aspecto fortemente estaurocêntrico do

movimento, com uma visão substitucionária anselmiana da morte de

Jesus na cruz, além das bandeiras – ―Solas‖ – da Reforma Protestante

do século XVI (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura e Solo Christo,

ou Solus Christus – respectivamente, ―Só a fé‖, ―Só a Graça‖, ―Só as

Escrituras‖ e ―Só Cristo‖). Mas vertente latino-americana do

evangelicalismo é conhecida como ―Evangelicalismo radical‖, pela

compreensão que tem da necessidade de radicalidade na inserção em

problemas de natureza social, política e econômica, levando em conta

central no materialismo histórico de Karl Marx, que, a partir de sua

interlocução com o pensamento de Ludwig Feuerbach, a entende como

atividade humana a um só tempo prática e crítica. Práxis sem dúvida é

conceito multifacetado. Antonio Gramsci deu-lhe novos contornos, e o

mesmo fizeram Georg Lukács e Jurgen Habermas. A teologia prática na

América Latina se apropriou do termo, utilizando-o à farta, no sentido acima

citado, de reflexão crítica sobre a ação pastoral da igreja em missão. 51

Para detalhes quanto aos propósitos e atuação da Rede Miquéias, consultar

o web site do movimento: http://redemiqueias.org/ 52

Para detalhes quanto aos propósitos e atuação da RENAS, consultar o web

site do movimento: http://www.renas.org.br/ 53

Exemplo clássico é William Wilberforce (1759-1833), político inglês, líder

do movimento anti-escravagista no Império Britânico. Sua ação política foi

motivada por sua convicção teológica evangelical. Para detalhes quanto à sua

teologia, consultar Wilbeforce, William. Cristianismo verdadeiro. Brasília:

Editora Palavra, 2008.

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especialmente (mas não apenas) as doutrinas da criação e da

encarnação54

.

Já a TdL foi sem dúvida mais ―avançada‖ que a TMI no que

diz respeito ao envolvimento da igreja em missão no mundo com

questões sociais. Gustavo Gutierrez por exemplo (1981), padre

católico peruano, fala a respeito da ―força dos pobres na história‖. A

hermenêutica bíblica latino-americana de inspiração libertacionista

usou a figura do pobre como chave de leitura dos textos bíblicos.

Exemplo de tal utilização é a Bíblia Sagrada – Edição Pastoral –

publicada no Brasil por Paulus desde 1991. Trata-se de uma edição da

Bíblia com um português simplificado, apropriado para pessoas com

pouca leitura (ao estilo da Nova Tradução na Linguagem de Hoje da

Sociedade Bíblica do Brasil), com comentários em notas de rodapé,

em perspectiva de uma hermenêutica libertacionista clássica55

. A TdL

latino-americana de inspiração católica recebeu impulso quando a

Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín,

Colômbia (1968) assume a ―opção preferencial pelos pobres‖. Anos

mais tarde o Vaticano envidou esforços para esvaziar a ação engajada

das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‘s), punir eclesiásticos

afinados com a TdL, fechar instituições de ensino comprometidas com

a proposta pedagógica da teologia libertacionista. Caso clássico neste

sentido foi o acontecido com o ITER – Instituto Teológico do Recife –

criado pelo legendário Dom Helder Câmara em 1968 e fechado por

54

Para detalhes quanto ao evangelicalismo radical latino-americano

consultar, inter alia: CALDAS, Carlos. Orlando Costas: Sua contribuição

na história da teologia latino-americana. São Paulo: Vida, 2007, pp. 74-83. 55

Desnecessário dizer que um empreendimento desta natureza, ainda que

chamado de ―pastoral‖, não deixa de ser acadêmico (se bem que o pastoral e

o acadêmico não estão em oposição – antes, devem se completar. Os Pais da

Igreja que o digam!). Toda e qualquer chave de leitura para as Escrituras se

transformará, mais cedo ou mais tarde, em um ―leito de Procusto‖, pois, por

incrível que pareça, sempre será algo externo ao texto bíblico, e na prática

pode produzir uma contradição, isto é, uma eisegese e nem tanto uma

exegese.

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determinação expressas do Vaticano em 1989, onde lecionaram

expoentes da TdL, como Joseph (José) Comblin, conhecido

missionário e teólogo belga radicado no Brasil. O ITER foi uma das

principais casas de educação teológica e formação clerical católica no

Brasil, na qual o ensino da TdL estava ligado ao trabalho das CEB‘s e

da inserção em movimentos sociais e populares.

Esta breve introdução apresenta duas perspectivas teológicas

latino-americanas bastante diferentes em termos de método teológico

e pressupostos teóricos, mas com um ponto em comum, a saber, a

compreensão que, biblicamente, a igreja tem responsabilidade para

com o pobre. O que se pretende apresentar neste capítulo é que, na

verdade, a preocupação e o cuidado para com os pobres não é uma

inovação produzida no cristianismo latino-americano a partir da

segunda metade do século XX. Antes, era prática do cristianismo

primitivo. Como exemplo, mostrar-se-á a atuação de São João

Crisóstomo (349-407), um dos Pais da Igreja Oriental. Pretende-se

apresentar o antecedente histórico, seguido de uma tentativa de

diálogo entre o pensamento teológico e pastoral de João Crisóstomo e

a teologia latino-americana contemporânea.

João Crisóstomo – Esboço biográfico56

Ιωάννης ο Χρσσόστομος nasceu em Antioquia, Ásia Menor

(atual Antakya, sul da Turquia) no ano 349. À época do seu

nascimento, Antioquia era a terceira cidade do Império Romano. João

passou à história com o apelido Crisóstomo – literalmente, ―boca de

ouro‖, por conta de seus dotes de oratória e retórica, que lhe deram

fama e o tornaram conhecido como o maior orador da igreja grega. A

alcunha lhe foi dada no século sexto. Filho de família culta e abastada,

João perdeu seu pai muito cedo. O pai de João, por nome Segundo,

sírio de nascimento, era oficial do exército romano, tinha o título de

56

Informações extraídas de Hall, Kelly, Altaner & Stuiber, Hamman e

Meulenberg.

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Magister Milium Orientis. Sua mãe, Antusa, era cristã piedosa, e

contava com apenas 20 anos quando perdeu Segundo. João

praticamente não conheceu o pai. Antusa no entanto esforçou-se para

providenciar para o filho educação da melhor qualidade. O primeiro

mestre de João em Filosofia e Retórica foi o filósofo sofista pagão

Libânio (Λιβάνιορ)57

. É batizado aos 18 anos, e não há relatos que

tenha passado por alguma experiência de conversão em moldes

dramáticos como aconteceria, grosso modo, século e meio mais tarde

com o não menos famoso Agostinho de Hipona (que, a propósito, foi

mais tarde influenciado por João Crisóstomo em sua abordagem ao

texto bíblico). João se fez discípulo de Deodoro de Tarso,

representante da conhecida ―Escola de Antioquia‖ de exegese bíblica,

caracterizada pela ênfase no sentido literal dos textos bíblicos (em

contraposição à Escola de Alexandria, no Egito, famosa pela

interpretação alegórica)58

. Deodoro propõe o que denominou theoria

ou ―contemplação‖, o que incluía análise sintática propriamente do

texto bíblico, além da importância dada ao elemento histórico dos

relatos bíblicos (não tido como tão importante pelos exegetas da

Escola de Alexandria, que davam mais valor ao elemento ―espiritual‖

dos textos bíblicos). A respeito do modelo de interpretação bíblica em

Antioquia, David Dockery declarou:

De maneira geral, é verdade que os alexandrinos viam um

significado literal e alegórico, e os antioquenos

encontravam um sentido histórico e tipológico. Os

alexandrinos voltavam-se para a regra de fé, a interpretação

mística e a autoridade como fontes do dogma. Por sua vez,

os antioquenos voltavam-se para a razão e para o

desenvolvimento histórico da Escritura como foco da

teologia. Os antioquenos tinham mais consciência do fator

57

Curiosamente, Basílio de Cesaréia, outro dos grandes Pais da Igreja

Oriental, também foi aluno de Libânio. 58

Quanto ao modelo de interpretação bíblica de Alexandria consultar, inter

alia: HALL, Christopher. Lendo Lendo as Escrituras com os Pais da

Igreja. Viçosa: Ultimato, 2000, p. 147-165.

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humano da Escritura e buscavam ser justos com a autoria

dual da revelação bíblica59

.

Dado o fato que João se notabilizou por seu trabalho como

pregador, é importante sabe a maneira pela qual ele interpretava as

Escrituras. Retomar-se-á este tema adiante neste capítulo. Além disso,

João e Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428) foram os principais nomes

da assim chamada Escola de Alexandria. Por hora, é interessante

observar que

Para Crisóstomo, teologia e hermenêutica não eram

exercícios teóricos, mas práticos e pastorais. Ele acreditava

que a mensagem bíblica gerava mudanças na vida das

pessoas. Declarou que a mensagem divina das Escrituras

preparava as pessoas para boas obras60

.

A interpretação bíblica praticada por Crisóstomo e por seus

pares da tradição de Antioquia portanto leva em conta aspectos

humanos propriamente do texto bíblico, tais como figuras de

linguagem, de estilo e de pensamento, mas ao mesmo tempo o texto é

visto como revelação de Deus, e, via de consequência, autoritativo. É

um modelo de leitura bíblica que faz lembrar o assim chamado

método histórico-gramatical, desenvolvido séculos mais tarde, e ainda

hoje muito em voga na maioria das escolas teológicas evangélicas de

corte conservador no Brasil e na América Latina. Vale ainda destacar

que Antioquia não tem um conceito fundamentalista e fechado de

revelação, no qual os escritores bíblicos são vistos como autômatos.

Por um tempo João vive entre monges em montanhas, em

ascetismo rigoroso de jejuns e vigílias, o que comprometerá em

definitivo sua saúde. Robert Payne descreve de maneira vívida o

período monástico de João:

59

DOCKERY, David. S. Hermenêutica contemporânea à luz da igreja

primitiva. São Paulo: Vida, 2005, p. 115. 60

DOCKERY, op. Cit., p. 115.

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Ele recolheu-se em uma gruta, onde negava-se a dormir e

lia a Bíblia continuamente, e passou dois anos sem deitar-

se, visivelmente na crença de que um cristão deve estar

pronto para obedecer à determinação: ―sê vigilante‖. O

resultado foi inevitável: seu estômago contraiu-se e seus

rins foram afetados pelo frio. Sua digestão estava sempre

difícil. Incapaz de curar a si mesmo, ele desceu a montanha,

foi para Antioquia e apresentou-se ao arcebispo Melécio,

que o enviou imediatamente a um médico61

.

Na sequência, João foi diácono por Melécio entre 380/381.

Como tal, trabalhou em Antioquia, sua terra natal, provavelmente

entre os anos 386-397. No início da última década do quarto século da

era cristã é ordenado sacerdote. Conta então com quase quarenta anos

de idade.

Uma das tarefas às quais João mais se dedica é a pregação. É

pregador ousado e combativo: condena erros de clérigos, critica

costumes pagãos antigos, como os jogos de gladiadores, espetáculos

teatrais imorais e corridas de cavalos, a instituição da escravidão

(ainda que não com a mesma intensidade com que criticou a falta de

misericórdia dos ricos para com os pobres), as festas em honra aos

antigos deuses, critica o consumismo e a ostentação, defende a causa

dos pobres e dos oprimidos. Este último tema será abordado com mais

detalhes adiante. Suas homilias não raro são comentários bíblicos.

Comenta Gênesis, Salmos, Isaías, o Evangelho de Mateus, o

Evangelho de João, Atos dos Apóstolos, a Epístola aos Romanos, a

Epístola aos Hebreus62

. Sua grande preocupação é aplicar o texto

bíblico à vida diária dos fiéis. Para tanto, usa com êxito ilustrações a

61

PAYNE, Robert. Fathers of the Eastern Church. New York: Dorset

Press, 1989, p. 195, apud. HALL, op. cit., p. 91.. 62

Cf. HALL (op. cit., p. 97) João Crisóstomo escreveu 90 homilias sobre o

Evangelho de Mateus, 55 sobre Atos, 32 sobre Romanos, 44 sobre 1 e 2

Coríntios, um comentário sobre Gálatas, 24 homilias sobre Efésios, 15 sobre

Filipenses, 12 sobre Colossenses, 18 sobre 1 Timóteo e 34 sobre Hebreus.

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um só tempo vívidas e comunicativas, extraídas muitas vezes de

atividades comuns do dia a dia.

Dedica-se também à obra literária. É escritor prolífico. São de

sua lavra catequeses batismais (textos preparatórios para os candidatos

ao batismo), e tratados: Sobre o Sacerdócio, Sobre a Vida Monástica,

Sobre a Virgindade (De virginitate), Sobre a providência de Deus.

Sobre o Sacerdócio (Perì hierosúnes – traduzido para o latim como

De sacerdotio) é até os nossos dias um clássico no assunto. Conforme

Hamman,

João Crisóstomo é um orador nato. Conhece o tom

pitoresco, a mania de sarcasmo, os jogos de palavras (que

mais tarde lhe custarão caro), a apóstrofe direta, franca,

apaixonada63

.

Não é de se admirar que sua fama de bom pregador crescesse e

se espalhasse. A respeito de João é dito que multidões se reuniam para

ouvir seus sermões, claros e corajosos. Não é de se admirar também

que por esta causa tenha granjeado admiradores e adversários.

Mais tarde, João foi indicado bispo de Constantinopla, capital

do Império Romano do Oriente sem dúvida um privilégio, visto ser

aquela cidade uma das grandes sés da igreja64

. Mas por diferentes

questões pessoais, políticas e religiosas, João foi expulso de

Constantinopla no ano 404, por ordem direta do próprio imperador

Arcádio (Flavius Arcadius), da citada porção oriental do império. Isto

porque em alguns dos seus sermões João criticara Eudóxia, esposa de

Arcádio. Esta tinha grande influência sobre o marido, e conseguiu que

ele exilasse o bispo. Na verdade, o exílio de João se deu por conta de

63

HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 195. 64

As outras eram Jerusalém (berço do Cristianismo), Antioquia (mãe do

movimento missionário mundial), Alexandria (cidade importante no Egito) e

Roma (a capital do império).

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críticas contundentes feitas em seus sermões contra a falta de

escrúpulos de políticos, a avareza e a ambição que viu na corte. Em

seus sermões denunciou também colegas do clero. Os últimos três

anos da vida de João foram passados em uma cidade pequenina

chamada Cucusus, nas montanhas da Armênia, em condições bastante

severas.

João é considerado um dos quatro Doutores da Igreja Oriental

(os outros três são Atanásio, Gregório de Nazianzo e Basílio o

Grande). A tradição cristã oriental consagrou-lhe o dia 13 de

novembro. Já a tradição cristã ocidental não protestante consagrou-lhe

o dia 13 de setembro, o dia anterior à sua morte no ano 407. Suas

últimas palavras foram: ―Glória seja dada a Deus em tudo‖. Neste

dia, nestas igrejas é feita a seguinte oração: ―Vinde Espírito Santo,

dai-nos a têmpera dos mártires, dai-nos anunciar, mas também como

São João Crisóstomo fez, denunciar aquilo que é injustiça, que é

mentira, que prejudica principalmente os mais pobres. Vinde Espírito

Santo, dai-nos a ousadia dos homens e mulheres de Deus‖ 65

.

O cuidado para com os pobres nas homilias de João Crisóstomo

João ficou conhecido como homem de grande sensibilidade,

piedade, oração e compaixão. A seguir, citar-se-ão partes de sermões

de João, exatamente a respeito da compaixão que os cristãos devem

ter para com os pobres e necessitados:

À medida que passava pelo mercado e pelas ruas estreitas

[...] vi no meio das ruas muitos excluídos, alguns com as

mãos feridas, outros com olhos vazados, outros cheios de

úlceras purulentas e feridas incuráveis, fazendo exposição

daquelas partes do corpo que, por conta de sua podridão

65

Extraído de

http://www.cancaonova.com/portal/canais/liturgia/santo/index.php?dia=13&

mes=9 [Acesso: 12 out 2010]

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concentrada, deveriam estar ocultas. Pensei que a pior falta

de humanidade seria não apelar ao vosso amor para com

eles, especialmente agora que a estação66

nos força a voltar

a este assunto67

.

Neste mesmo sermão, bastante longo por sinal, o Crisóstomo

faz um ―passeio‖ pelas Escrituras, trabalhando com vários textos para

basear sua argumentação a favor de um envolvimento concreto com

os pobres da sociedade. Neste esforço para fortalecer sua linha de

raciocínio, cita textos como Gálatas 2:9-10, 1 Coríntios 16:1-2, 2

Tessalonicenses 2:7, Romanos 15:25, Atos 11:29, e outros mais. Ele

recomenda aos fiéis que dêem ―abundantemente‖ aos que precisam68

.

Sua argumentação não deixa de apelar para o Antigo Testamento: cita

o profeta Oséias (6:7) que fala que Deus quer ―misericórdia, não

sacrifícios‖. Por isso, os cristãos não podem ser negligentes na ajuda e

no cuidado aos pobres (cf. Mateus 9:3), pois ao ajudá-los, quem

verdadeiramente receberá ajuda é quem a dá, e não quem a recebe69

.

De outra feita, João criticou de maneira severa os cristãos

ricos que não se incomodavam enquanto pobres excluídos passavam a

noite não em leitos de prata, mas em catres úmidos de palha junto à

entrada dos banhos públicos, congelados de rio e morrendo de fome,

enquanto cidadãos bem vestidos e bem aquecidos saem dos banhos e

vão para suas casas onde os esperam jantares bem preparados, os

pobres morrem de fome sem ter o que comer. Critica também a falta

de misericórdia para com os presos nos cárceres, com feridas

sangrentas provocadas pelos grilhões que os prendem e pelos açoites

que recebem. João condena o egoísmo dos ricos que se vestem com

roupas caras enquanto pobres criados à imagem e semelhança de Deus

66

Crisóstomo se refere ao inverno rigoroso da Ásia Menor, durante o qual os

pobres e desvalidos se encontravam em situação ainda pior que a enfrentada

com o clima ameno das outras estações. 67

St. John Chrysostom. On Repentance and Almsgiving, p. 131. 68

St. John Chrysostom, op cit., p. 149. 69

St. John Chrysostom, op cit., p. 146.

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morrem de frio nas ruas. Em uma de suas homilias sobre 1 Timóteo,

João apela para a criação do mundo, lembrando aos seus ouvintes e

leitores que Deus não criou um homem rico e outro pobre. Logo,

conclui que a diferença entre o rico e o pobre só pode ter sido criada

pela injustiça humana, porque o forte explora o fraco assim como um

peixe grande engole um peixe pequeno. A linha de argumentação de

João talvez possa soar como ingênua para mentes modernas: em um

de seus sermões ele argumenta que Deus concedeu indistintamente a

todos os humanos bênçãos como o sol, o ar, a terra e a água, sem

qualquer tipo de discriminação. Logo, é errado se alguns se apropriam

de riquezas enquanto outros não o podem fazer. Para João, as palavras

―meu‖ e ―seu‖ são palavras ―frias‖ (to psuchron touto rema – no

sentido de manifestarem indiferença e egoísmo). Para João, o cristão

que tem recursos deve sempre repartir com quem não tem, e jamais

ser caracterizado pela frieza da indiferença em relação aos que estão

em situação pior que a sua70

. À luz de tanta contundência, não é de se

admirar que João tenha enfrentado tanta oposição71

. Muito mais

poderia ser dito. Todavia, os exemplos apresentados são suficientes

para demonstrar como, especialmente, mas não somente a partir de

João Crisóstomo, era importante no cristianismo primitivo o cuidado

para com os pobres.

João Crisóstomo em diálogo com a teologia latino-americana

O ―ponto‖ deste capítulo é mostrar como a teologia latino-

americana contemporânea, tanto de corte libertacionista como a de

corte evangelical, podem aprender a partir de um diálogo com a

teologia de João, expressa em suas homilias. Particularmente, a

questão da importância do cuidado para com os pobres e desvalidos da

sociedade. A este respeito, Marcelo Barros no Prefácio do livro João

Crisóstomo. As mãos calejadas, afirma:

70

Estes trechos de homilias de João são citados por Kelly, op cit., p, 97-99. 71

Cf. Kelly, op cit., p. 136.

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O modo de ler a Bíblia de nossas comunidades

parte da realidade do amor e da solidariedade

efetiva para com os milhões de pessoas excluídas

dos mínimos meios de sobrevivência neste

sistema social em que vivemos. Vamos descobrir

a mesma sintonia na palavra engajada de João

Crisóstomo que se ofereceu como ―delegado dos

pobres‖ e procurador da justiça de Deus para

os pequenos deste mundo72

.

Por um lado, há uma distância quase abissal entre a teologia

expressa nas homilias do Crisóstomo e as formulações da TdL de um

lado, e da TMI do outro. E nem haveria como ser diferente. As

diferenças de método são gritantes. A TdL em sua formulação clássica

trabalhou a partir do referencial teórico do conceito marxista de luta

de classes. Daí é possível afirmar que os objetivos da TdL são

diferentes dos de João. Analisados a partir da ótica da TdL, as

homilias de João podem revelar uma visão apenas assistencialista e

paternalista, o que é deplorável para um teólogo libertacionista. A

partir daí talvez seja possível afirmar que a teologia veiculada nos

sermões de João se aproxime mais da visão clássica da TMI que da

TdL. Pelo menos, em tese. Ao mesmo tempo, há que se reconhecer

que os teólogos evangelicais latino-americanos que se afinam com a

TMI na maioria das vezes sequer se aproximam da coragem e da

contundência do Crisóstomo, no que diz respeito a estas questões.

Conforme afirmado acima, João apela para a doutrina da criação em

sua crítica à falta de misericórdia dos ricos e o pedido que faz a estes

para que ajudem os pobres. A partir daí, é possível afirmar que, ao

menos in nuce, há nas homilias do Crisóstomo os princípios para uma

teologia da pobreza e da riqueza. Este aspecto tem sido em geral

esquecido pela TMI. Neste sentido, os teólogos latino-americanos que

se identificam com a missão integral da igreja enriquecerão sua

perspectiva teológica a partir de um exame sério desta fonte patrística

importante.

72

Marcelo Barros. Prefácio de: João Crisóstomo. As mãos calejadas, II.

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44

Olhada a partir deste prisma, tanto a TMI como a TdL podem

ser renovadas e revitalizadas a partir de uma dinâmica de

(re)descoberta da fonte patrística que é a teologia expressa nas

homilias de João Crisóstomo. A TMI pode aprender com a ousadia de

João na denúncia do mal que o acúmulo de riquezas. A TdL por sua

vez pode aprender a enriquecer e a aprofundar o aspecto pastoral

propriamente da ação de João ao ser advogado e porta-voz dos pobres,

especialmente os mais pobres dentre estes. Principalmente nestes

últimos anos em que a TdL latino-americana se encontra em uma crise

de revisão de modelos e paradigmas. Uma revisão epistemológica de

seus paradigmas teóricos e de seus objetivos é certamente benéfica e

salutar. Ainda que questões como o meio-ambiente sejam

importantes73

, a TdL na América Latina se beneficiará de uma ―volta

às origens‖ que lhe pode ser proporcionada pelo estudo da teologia de

João. Além disso, conforme já afirmado, um teólogo libertacionista

clássico decerto rejeitará a teologia expressa nos sermões do

Crisóstomo por considerá-la assistencialista e paternalista. A TdL

latino-americana em sua formulação clássica, mormente a de corte

católico, é caracterizada por ser mais ―ambiciosa‖ e talvez

―megalomaníaca‖, por almejar nada menos que a transformação das

estruturas da sociedade, de baixo para cima. Mas um erro comum no

qual consciente ou inconscientemente teólogos da libertação podem

cair é o de ficarem apenas na teoria, sem um engajamento com o

discurso. Não se pretende aqui de modo algum cometer a leviandade

de julgar e generalizar, jogando todos os teólogos da libertação na

vala comum de uma incoerência entre discurso e prática. Mas este é

um erro que pode acontecer. As denúncias e exortações contundentes

e corajosas do Crisóstomo podem servir de corretivo a tal situação.

73

Neste sentido é interessante observar a mudança do Leonardo Boff

―jovem‖ autor de ―Jesus Cristo Libertador‖ (1972) e de ―Teologia do

Cativeiro e da Libertação‖ (1980) com o Leonardo Boff ―velho‖ autor de

―Ecologia: grito da terra, grito dos pobres‖ (1995) e de ―Ecologia,

mundialização e espiritualidade‖ (2008) – o sujeito da teologia deixa de ser o

pobre para ser o meio-ambiente.

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45

O cuidado para com os pobres era uma das marcas do

cristianismo primitivo. João Crisóstomo se destacou por suas homilias

sobre este tema, mas ele de modo algum foi o único a ter tal

preocupação. Pais da Igreja Ocidental, como Jerônimo, Ambrósio e

Agostinho trataram desta questão. Mestres da Escola de Alexandria,

como Clemente e Orígenes, de igual maneira o fizeram74

. A questão

da pobreza no mundo ainda traz desafios pastorais e missiológicos

sérios para a igreja. Certamente está fora de questão uma visão da

missão que se limita a um discurso teórico, que visa a transmissão de

conteúdos meramente ―espirituais‖ que objetivam apenas a ―salvação

da alma‖. Ainda que ainda haja na América Latina quem tenha uma

visão assim estreita da missão, que tem mais a ver com o pensamento

platônico que como pensamento bíblico, é cada vez mais generalizada

a compreensão que a missão da igreja é mais ampla em seu aspecto

que normalmente se pensa. Diante de situação tão delicada e sensível,

teólogos, missiólogos e pastoralistas latino-americanos só têm a

ganhar se fizerem um movimento ad fontes para ver como os

primeiros cristãos levaram a sério o cuidado para com os pobres.

Dentre aqueles primeiros cristãos, o ―Boca de Ouro‖ com certeza se

destaca, e tem muito a dizer aos cristãos de hoje.

Documentação Textual

ST. JOHN CHRYSOSTOM. On Repentance and Almsgiving. The

Fathers of the Church. A New Translation. Volume 96. Translated

by Gus George Christo. Washington, D. C.: The Catholic University

of America Press, 1998.

Referências Bibliográficas

ALTAMER, B. & STUIBER, A. Patrologia. São Paulo: Paulinas,

1972.

74

Cf. HALL, op cit., p. 159-160.

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46

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47

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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ

48

Elementos da religião doméstica romana na Aulularia de

Plauto

Claudia Beltrão da Rosa75

Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar.

ego Lar sum familiaris ex hac familia

unde exeuntem me aspexistis. hanc domum

iam multos annos est cum possideo et colo

patri auoque iam huius qui nunc hic habet

(Plauto. Aul. 1-5).

A religião inseria-se em todos os aspectos da vida individual e

coletiva na urbs, sendo expressa em discursos e rituais cujos vestígios

nos permitem uma via de acesso à sua compreensão (BEARD,

NORTH & PRICE, v.1., 1998; BELTRÃO, 2006). Trata-se de um

tecido de relações complexas, e acredito que era um dos principais

elementos que fundamentava a ordem moral da urbs, sendo um

elemento de coesão social, a partir da afirmação de uma ordem

sagrada. Minha principal preocupação é com as áreas da vida religiosa

sobre a qual temos uma quantidade maior de informação, de um tipo

ou de outro – rituais, festivais, instituições, edifícios religiosos,

santuários etc. e, dentre os possíveis documentos para a pesquisa

sobre a religião romana, está o texto dramático. O teatro romano

reflete a centralidade da religião e a importância do ritual. De certo

modo, o próprio drama é um ritual, e representações dramáticas

faziam parte de festivais cívicos em Roma desde 240 a.C. Desse

modo, acredito que a análise da dramaturgia romana pode não apenas

75

Professora Associada de História Antiga do Departamento de História e do

Programa e Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO). Projeto de Pesquisa atual: Religio romana: uma

analise de instituições religiosas em discursos tardo-republicanos. e-mail:

[email protected]

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49

ampliar o corpus documental das pesquisas sobre a religião romana

em geral, mas, e especialmente, aprofundar nossa compreensão das

crenças e práticas religiosas romanas.

Elementos da vida cotidiana são presenças constantes nas

comédias de Plauto, por isso, buscando passagens e indícios que

possam nos auxiliar na difícil tarefa de observar alguns aspectos da

religião doméstica, optamos por apresentar uma brevíssima análise da

comédia Aulularia, peça da qual não sabemos a data da primeira

encenação (provavelmente, em fins da década de 190 d. C). Esta

comédia, cujo motivo central é a avareza de Euclião, figura ridícula,

transtornada pela descoberta de um tesouro, tange o tema da fortuna

da família, defendida pelo Lar familiaris, e o texto dramático – posto

que a encenação propriamente dita é praticamente inalcançável para

nós – pode ser um guia para a análise de práticas religiosas

domésticas. Nosso objetivo é, então, tentar entrever práticas e crenças

relacionadas à religião doméstica romana. Há, porém, vantagens e

desvantagens no uso da documentação dramática numa investigação

sobre discursos, ritos e práticas religiosas.

Uma de nossas premissas é considerar as comédias de Plauto

não como simples ―adaptações‖ de comédias gregas, mas como

representações cênicas complexas, encenadas e fazendo apelo a

audiências concretas em Roma e, posteriormente, outras cidades da

Itália. As peças devem, então, ser analisadas em seu contexto, e não

isoladamente. Por exemplo, o Sticchus foi encenado nos ludi Plebeii

(200 a. C); o Pseudolus, na inauguração do templo da Magna Mater

(191 a.C.); o Phormio, de Terêncio, nos ludi Romani (161 a.C.) e seu

Adelphoe, nos funerais de L. Emílio Paulo (160 a.C.). E. Gruen, por

exemplo, trouxe uma discussão interessante sobre vários ludi, as

diversas instâncias de realização, entre 216 e 179 a.C., e outras

ocasiões nas quais ludi scaenici ocorreram neste período (GRUEN,

1992). Percebemos, então, que as peças eram encenadas,

principalmente, em ocasiões e festividades de grande importância

religiosa e política na Roma republicana. Um risco, contudo, é

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superestimar o efeito dessas peças sobre suas audiências, apesar de

sabermos que houve um incremento crescente de performances

teatrais, por exemplo, nos ludi Romani (nos quais, um drama de Lívio

Andrônico foi encenado em Roma, pela primeira vez, em 240 a.C.),

acrescentando-se os ludi Apollinari (a partir de 212 a.C.), os ludi

Plebeii (desde pelo menos 200 a.C.), as Cerealia (antes de 201 a.C.),

as Megalensia (desde 194 a.C.) e as Floralia (desde ca. 210, tornados

anuais em 173 a.C.).

No final da II Guerra Púnica, Salus, Victoria, Fides, Spes,

Fortuna, Libertas, Honos et Virtus, Mens e Concordia tinham pelo

menos um templo em Roma. As comédias de Plauto são interessantes

para os estudos de religião romana por terem sido escritas e encenadas

nos anos em que um grande número de divindades (relacionadas, em

geral, com personificações de virtudes) ―ganhou uma casa‖ em Roma,

permitindo que vislumbremos algo de sua recepção e das respostas a

tais divindades na urbs.

Os espaços físicos nas cidades, nos quais as peças eram

encenadas (espaços teatrais) e a participação cênica, mesmo indireta,

de divindades que recebiam culto público ou privado em Roma,

constitui um elemento importante das performances, criando as

interdependências entre o espaço ficcional e o espaço cívico, entre

personagens e espectadores, especialmente porque as peças eram

encenadas, ao que tudo indica, em espaços religiosos (cf. RAWSON,

1991).

Na Aulularia, 582-6 e 606-18, temos uma passagem

interessante para nossos propósitos. Trata-se do apelo de Euclião, o

avarento, à Fides, em cujo templo tenciona esconder seu pote de ouro,

e do apelo de Estróbilo, o escravo, à mesma deusa, a fim de roubar o

ouro, o que só consegue depois que Euclião resolve transferir o pote

para o túmulo de Silvano, fora da cidade. Aqui, vemos um indício do

caráter fisicamente localizado das divindades romanas e de seu poder,

nesta Atenas-Roma da comédia. Ambas as personagens sentiam-se

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aptas a usar um espaço fisicamente delineado em ―Roma‖ pelo culto

da Fides, tanto para conseguir atingir seus objetivos, quanto para

reivindicá-los.

Se podemos assumir que houve uma peça de Menandro que

serviu como modelo para Aulularia, a escolha de Fides na cena é

certamente de Plauto, pois a Pistis grega, que seria a divindade mais

semelhante da Fides romana, não parece ter tido um altar na Grécia

até a época de Adriano. Euclião reivindica um acordo prévio com a

deusa (Fides, você me conhece e eu te conheço), e dá a entender que,

para ele, o significado da divindade é sinônimo de ―confiança‖, ―boa-

fé‖. Já Estróbilo pede que Fides prefira a ele, e não a Euclião, e que

lhe seja ―fiel‖ (fidelis). Vemos que há uma leitura discrepante aqui.

Fides, cujo templo no Capitólio foi construído pouco antes do

nascimento de Plauto, não operava apenas na esfera dos tratados, mas

também num domínio ao qual, as comédias antigas faziam apelo e

ostensivamente se situavam: o domínio da vida quotidiana,

corriqueira, das pessoas ―comuns‖. Assim, a discrepância entre os

apelos das personagens à Fides pode ser ilustrativo: o escravo não

parece se referir à Fides do mesmo modo que Euclião, um

paterfamilias, mesmo que vicioso. Euclião declara ter excelentes

relações de confiança com a deusa; Estróbilo parece se remeter a um

sentido de ―obter um crédito‖ da Fides, para que a deusa permita o

roubo, o que, no palco cômico, surge como perfídia. Assim,

perguntamos: poderíamos interpretar esta discrepância de sentido

como um exemplo das negociações quotidianas com os deuses,

diferentes conforme a posição que cada um ocupava na sociedade

romana e, consequentemente, em diferentes percepções da ordem

social e divina? A distinção entre confiança e perfídia, expressa nos

apelos das personagens à Fides, teria uma relação com a cosmovisão

romana? O escravo revela um certo júbilo em relação ao possível

sucesso de seu plano. Poderia esta fala estar vinculada a uma visão

aristocrática, detectada em textos posteriores à Plauto, sobre a perfídia

de escravos? È possível, pois a comicidade de uma peça só e somente

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só faz sentido se estiver de acordo com, não apenas, o universo

cognitivo de seu público, mas principalmente com suas crenças

morais, ou o riso não ocorre.

Na Aulularia, o riso assoma quando Euclião, o paterfamilias

avarento e desconfiado, por isso ―não-confiável‖, reivindica o apoio

da Fides, enquanto Estróbilo, o escravo, exterior à fides romana,

―pérfido‖ portanto, endereça a Fides um apelo para que lhe dê um

crédito, por ser um ―bom escravo‖ (seruus frugi), ou seja, por visar à

felicidade de seu senhor, para quem entregaria o ouro esperando, em

troca, sua manumissão (um tema recorrente em Plauto).

É importante, porém, lembrar que Estróbilo não consegue

realizar o roubo no templo da Fides, e só obtém o sucesso quando

Euclião, sempre desconfiado, transfere o pote de ouro para fora do

pomerium, para fora do solo consagrado de Roma, entregando-o a

Silvanus, um deus anterior à urbs, que vive nas matas (silvae) do

Lácio, que não atende aos ditames das regras sociais, e isso permite

entrever algumas características da religio romana.

Como apresentamos em publicação recente,

O termo fores, que chegou até nós nas palavras fora, foro,

forâneo, forasteiro, era um dos termos-chave na definição

do limite entre o espaço doméstico e aquilo que era deixado

de fora, o mundo exterior, estranho e adverso, domínio das

feras e das divindades não aplacadas, culminando no

Forum romanum, centro da res publica, o espaço que

concentrava os cidadãos, local que criava o espaço público

comum a todos e estabelecia os limites entre o romano e o

não-romano, influenciando a paisagem social, fomentando

relações de convivência, estabelecendo leis e costumes, e

depois, segundo Cícero, a organização do direito e a

disciplina da vida, de modo a proteger a vida (De Off. II,

15). Daí a sacralidade de tais lugares e a identificação da

urbs com os templos de seus deuses, com os sepulcros de

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seus antepassados e com os marcos limiares. O valor desses

marcos é expresso no rito de fundação de uma cidade, que

evocava o rito etrusco, criando um baluarte sobrenatural

com sua dimensão sagrada (sacer). A idéia é expressa por

Cícero, assinalando a força da comunidade de sangue na

formação da res publica, exaltando os monumentos dos

maiores, o uso dos mesmos lugares sagrados e dos

sepulcros comuns (De Off. I, 55). (BELTRÃO, 2008).

Acreditamos que a força da religio romana estava contida em

cada domus, estendendo-se ao forum romanum e procedia tanto de sua

íntima relação com as divindades como com os antepassados, e isso é

visível na comédia. A casa é um santuário, com seus Lares e Penates,

no qual oficiava como sacerdote o paterfamilias. A Aulularia nos

interessa especialmente pela presença de uma divindade no prólogo. A

comédia nos traz um Lar familiaris, o deus doméstico par excellence,

que apresenta a trama para o público. Após se apresentar como o

protetor divino da familia, conta como o avô de Euclião lhe confiou

um tesouro, destacando a avareza dos patresfamilias, avô/filho/neto e

o descuido de Euclião em relação ao culto doméstico, motivo pelo

qual manteve em segredo o ouro que guardava:

LAR. Is quoniam moritur, – ita auido ingenio fuit

– Numquam indicare id filio uoluit suo,

Inopemque optauit potius eum relinquere

Quam eum thesaurum commonstraret filio.

Agri reliquit ei non magnum modum,

Quo cum labore magno et misere uiueret.

Vbi is obiit mortem qui mihi id aurum credidit,

Coepi obseruare, ecqui maiorem filius

Mihi honorem haberet quam eius habuisset pater.

Atque ille uero minus minusque inpendio

Curare minusque me impertire honoribus.

Item a me contra factum est: nam item obiit die <m>.

Is ex se hunc reliquit qui hic nunc habitat filium

Pariter moratum, ut pater auusque huius fuit (v. 9-22).

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54

Tradução da autora :

Como estava para morrer – e era por natureza avarento –

jamais quis revelar isso ao seu filho, e preferiu deixá-lo

pobre a mostrar-lhe o referido tesouro. Deixou-lhe uma

pequena extensão de terra, para que vivesse

miseravelmente e com grande sacrifício. Quando aquele

[avô de Euclião] que me confiou o tal ouro morreu,

comecei a observar se porventura o filho [pai de Euclião]

me prestava maior honra do que seu pai fizera. Mas, na

verdade, importava-se cada vez menos (comigo) e menos

me reverenciava com oferendas. Em resposta, tratei-o de

maneira semelhante, pois morreu na mesma penúria. (Ele)

deixou de si este filho [Euclião] que agora mora aqui, de

costumes iguais, como foi o pai e o avô dele.

E o Lar apresenta o motivo pelo qual fez com que Euclião

descobrisse o tesouro no lararium: a piedade de Fedra, filha de

Euclião, cujo casamento estava sendo preparado:

LAR. Huic filia una est; ea mihi cottidie

Aut ture aut uino aut aliqui semper supplicat;

Dat mihi coronas. Eius honoris gratia

Feci thesaurum ut hic reperiret Euclio,

Quo illam facilius nuptum, si uellet, daret (v. 23-

27).

Tradução da autora:

Este tem uma filha que me presta culto sempre, todos os

dias, ou com incenso ou com vinho ou com alguma outra

coisa. Dá-me coroas de flores. Por causa desta

consideração, fiz com que Euclião encontrasse aqui (no

lararium) o tesouro, para que, se quisesse, a concedesse

mais facilmente em casamento.

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Os Lares familiares eram divindades domesticas que cuidavam

da casa da familia romana e de seus moradores. Cultuados no

lararium nas Kalendas, nas Nonae e nos Idos do mês, além de em

ocasiões especiais, principalmente os casamentos. Eram benfazejos

para a familia, desde que tratados com atenção e respeito, mas

sabemos muito pouco a seu respeito.

De fato, o principal obstáculo para o estudo da religião

doméstica é sua inconsistência e ubiqüidade. Uma imensa quantidade

de referencias imagéticas e escultóricas a divindades romanas em

contextos domésticos chegaram até nós, mas a linha que demarca

esses vestígios, permitindo distinguir com clareza o que era um objeto

de culto, e o que era um objeto decorativo é obscura. Rigorosamente

falando, pinturas e objetos que apresentam representações de

divindades são indícios inseguros para um estudo da religião

domestica propriamente dita, e por religio domestica entendo as

práticas rituais realizadas pela familia romana.

Os Lares familiares, os Penates76

e o Genius77

doméstico –

sejam pintados ou representados de modo tridimensional – são as

únicas figuras que podemos assumir como objetos religiosos stricto

sensu nas casas da elite romana. O material iconográfico restante é por

demais equívoco, como demonstram as pesquisas de Kaufmann-

Heinimann (2007). Paul Zanker (1999), do mesmo modo, tratando de

pinturas com representações divinas em contextos domésticos destaca

três pontos: a) as imagens são polissêmicas, e sua interpretação pode

variar, b) as imagens propiciavam uma ocasião para que os

espectadores as interpretassem, demonstrando um alto nível cultural;

76

Deuses das despensas (penus) que tinham seu lugar no atrium das casas

romanas, considerados protetores da casa, junto com os Lares. 77

O espírito (numen) do paterfamilias, que lhe garantia o poder gerador,

simbolizado por uma serpente. Seu local era o lectus genialis (a cama do

casal principal da casa). O culto do genius, ao que consta, ocorria no dia do

aniversário do paterfamilias.

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c) a despeito da variação de temas, as pinturas costumam não estar

vinculadas, rigorosamente falando, à ação mítica correspondente, mas

harmonizam-se em ações que misturam cenas tradicionais, geralmente

com dois protagonistas, e os deuses chegam a ter rostos de

contemporâneos, penteados da moda etc. Ilustravam, assim, a cultura

e a riqueza de seu proprietário, exaltando uma vida idílica e

harmoniosa. Assim, definir a relação entre as pinturas murais e as

práticas religiosas é tarefa difícil, à exceção das pinturas dos lararia.

Euclião, o avarento, é uma personagem ridícula por não

corresponder ao ideal do paterfamilias, sacerdote de sua familia,

desagradando ao deus de sua casa. Este deus residia no recinto

doméstico e, em seu altar (ara) de pedra, de forma quadrangular,

próximo à lareira, deveriam ser oferecidos os sacrifícios propiciatórios

que estabeleciam as relações com os seres divinos e com os numina

dos antepassados, cujos restos repousavam em um sítio que na urbs

encontrou seu lugar fora das casas, o que o dominus Euclião não fazia.

Na Aulularia, além de outros aspectos das crenças e atitudes romanas

em relação à vida religiosa, conseguimos entrever elementos sobre os

Lares que apenas pelo material iconográfico não conseguiríamos, daí

sua importância, além de menções a elementos da religio domestica

serem raros em outras fontes textuais.

O centro da religio domestica era o lararium, o coração da

domus, onde era alimentado o fogo (sagrado) e residiam as divindades

domésticas, assim como, no forum, ardia o fogo de Vesta, na lareira

circular que centralizava a religio romana. Uma enorme quantidade

de estatuetas de bronze e de outros materiais foi encontrada em quase

todo o território imperial, além de pinturas em lararia. Se não

podemos obter conclusões mais seguras sobre o culto doméstico pela

própria natureza da documentação, podemos, contudo, entrever a

importância da religio domestica em Roma e outras cidades imperiais.

Além disso, por um documento tardio, podemos perceber a

permanência do culto doméstico: o edito de Teodósio, de 392 d.C.,

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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ

57

que proíbe o culto dos Lares, do Genius e dos Penates (Cth.

16.10.12).

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Homero: magia e encantamento da palavra poética

Flávia Maria Schlee Eyler*

Estabelecer e percorrer um caminho entre as fronteiras, nem

sempre firmes e visíveis, que separam o sagrado e o profano e que

aproximam e distinguem religião, mito, rito e magia nas discussões da

antropologia ou na história comparada das religiões, não é uma tarefa

fácil. Por outro lado, os debates sobre o estatuto do mito como um

saber pré-lógico, relativo a uma mentalidade primitiva irredutível à

racionalidade dos povos civilizados, também estão muito

comprometidos com os projetos civilizatórios do mundo ocidental.

Afinal, a recusa racionalista do mito em suas diferentes formas é parte

constitutiva de nossa tradição. Assim, gostaríamos de propor uma

reflexão que tenta, na medida do possível, devolver o problema das

relações ente mythos e logos, ao próprio mundo que o produziu, ou

seja, ao mundo grego antigo. Neste caso, nos deparamos com uma

variabilidade importante de sentidos delimitada historicamente, tanto

no que diz respeito à definição de mythos, quanto na de logos e nas

relações entre ambos. O que está em jogo, aqui, não é somente uma

questão do estatuto do mythos ou do logos, mas, sobretudo a

concepção de verdade com a qual nos propomos medi-los.

Nosso ponto de partida é uma indagação sobre quando, porque

e como as palavras (mythói) que compõem a epopéia homérica

deixaram o território da ―palavra eficaz‖, que dizia a verdade

(alethéia) e instaurava o próprio real e foram, quando dissociadas do

aedo que as pronunciava, habitar o território da magia e do

encantamento, não sem antes percorrerem um complexo julgamento,

que pretendemos abordar, no enfrentamento com o logos filosófico.78

* Doutora em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro. Professora da Graduação e Pós- Graduação do Departamento de

História da PUC-Rio. Atualmente coordena o projeto ―Literatura e Produção

de Saberes‖ – CNpq. E-mail: [email protected].

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A designação de Homero como poeta, poietés é tributária do contexto

do século V a.C.. Até então, ele era designado como cantador, aedo,

isto é, como aquele que cantava inspirado pelas musas, os altos feitos

dos homens heróicos e dos deuses; aquilo que valia a pena ser

lembrado ou que devia ser censurado e esquecido. Sua palavra,

fundada sobre um dom de vidência identificava-se com a verdade; era

mágico-religiosa porque escapava à temporalidade dos homens e

estava em conformidade com a ordem cósmica.

No mundo grego arcaico, somente a palavra de um cantor

permitia escapar do silêncio e da morte, condição dos homens.

―Alethéia opõe-se à Léthe e a Mômos. Ela está do lado da Luz:

Alétheia dá brilho e esplendor [...]. O poeta é capaz de ver a

Alethéia, ele é um „mestre da Verdade‟‖ (DETIENNE, 1988: 21).

Uma verdade que não é pura memória, mas que também precisa

esquecer. Para Brandão, se as Musas fossem só memória, sem

esquecimento e pausa, não deixariam de ser o mesmo que as Serias:

deusas fatais por um encanto sem fim. Por serem filhas mescladas de

Zeus e Métis, elas proferiam tanto o conveniente, quanto o

inconveniente.

Podemos pensar também, como aponta Brandão, em um

Homero que nada mais era que o narrador dos poemas homéricos uma

vez que ele não conhecia nem o nome do agente (poiétes), o nome da

78

A palavra de Homero suscitou uma série de controvérsias que delimitaram

seu estatuto diante do logos filosófico, do político e do poético. Afinal, a

questão que se colocava não era uma simples oposição entre a verdade da

filosofia e a mentira da poesia, entre alethéia e pseudos, e sim seu conteúdo

que muitas vezes representava os deuses e heróis de modo errôneo. Quando

não eram belas, a imaginação como pseudos, induzia a uma falsa idéia do

divino e do que deveria ser justo ou injusto. Os deuses em Homero e nos

trágicos eram contraditórios, incertos e impiedosos. Afinal, nenhum homem

deveria ser venerado acima da verdade e esta, certamente, estava longe da

imitação dos poetas. Ver PLATÃO. A República. Livros VII e X, Rio de

Janeiro: Edições de Ouro, s/d.

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ação (poiesis) e nem mesmo o nome do resultado da sua ação

(poiema). ―Quando Homero invoca a Musa, é uma primeira pessoa

não nomeada que se dirige a uma segunda pessoa bem definida pelo

vocativo, a deusa, para ordenar-lhe que cante a cólera de Aquiles‖

(BRANDÃO, 2005: 36). Segundo o autor, há, mais do que inspiração,

uma cooperação entre poeta e musa. O que está em jogo são a

diferença entre o que se vê e o que se ouve: ―as deusas presenciam e

têm tudo visto; já os homens, nós, temos nada visto porque só

ouvimos. Ouvimos o quê? Apenas a duração do ouvir que foge com o

presente ou dura só o que dura a presença‖ (BRANDÃO, 2005: 86).

Foi contra esse tipo de pensamento e de saber ―por ouvir

dizer‖ dos poetas que o logos filosófico se configurou historicamente

junto com a formação da polis. Afinal, diante do mythos, entendido

também como um ―contar histórias‖, como enredo e intriga, o logos

filosófico ofereceu, pela dialética, uma visão mais alta e liberada dos

enganos das aparências. Tal questão torna evidentes as possíveis

relações e limitações entre o plano dos homens e o plano divino, ―se é

verdade que o poeta discorre sobre os acontecimentos memoráveis

(os kléa andron), há várias formas de fazê-lo, pois cada poema

depende de um complexo de cooperação entre o poeta, os deuses e o

público, que não necessariamente é harmônico‖ (BRANDÃO, 2005: 91). Não havia, então, uma garantia inabalável com relação à

fidelidade do canto aos feitos o que era agravado pelo fato de que,

com Hesíodo, as musas também nem sempre diziam a verdade.

―Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas

mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir

revelações‖ (HESIODO, Teogonia , vs 22-28).

Como as Musas, por sua própria genealogia, também sabiam e

podiam enganar, era preciso reavaliar a palavra poética perante as

novas necessidades da polis. A palavra diálogo da política e o logos da

filosofia eram os limites que, a partir do século V a.C., estabeleceram

uma nova partilha e um novo estatuto para a poesia. No entanto,

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apesar da evidência de uma luta entre mythos e logos na história dos

gregos antigos, nenhum dos dois adversários foi destruído. Antes de

supervalorizar a potência do logos diante do mythos é preciso

compreender o enfrentamento de dois tipos de palavra que tinham as

mesmas pretensões, ou seja, a produção de sentido e verdade no

mundo dos homens. Para nosso ponto, basta por ora perceber a

aproximação entre alethéia e pseudos no mythos, mas não como uma

simples oposição entre verdadeiro e falso.

Em suma, como alguns filósofos, pensamos neste trabalho em

Platão, que condenavam o mythos escreviam seus enunciados em

forma de poemas, temos que refletir onde estava, de fato, o problema.

O ponto do debate não estava, portanto, apenas na forma (lexis) de

apresentação do pensamento, mas no caráter mimético da poesia e,

sobretudo, na sua utilidade para uma boa educação dos cidadãos.

Afinal, até então, Homero havia sido o grande educador dos gregos. 79

79

Diante da ambiguidade da palavra poética, o logos filosófico instala a

dicotomia entre essência e aparência, imanência e transcendência e,

sobretudo entre o dizer e o ser. Abre caminho para a metafísica ocidental

onde não mais há lugar para a ―palavra eficaz‖ que, ao ser pronunciada,

instituía o próprio real. Mas sem a palavra mântica e eficaz, os gregos

tiveram que enfrentar o abandono dos deuses e uma possível co-operação

entre eles como aponta Brandão. É aos olhos do filósofo que essa revelação

do divino exige ser ultrapassada. Para tal, o modelo que se vislumbra e cujo

sentido está não na experiência, mas justamente no logos, permite que sua

simples formulação lógica se constitua como um acontecimento virtual que

não se opõe ao real e sim ao factual e ao histórico. Para um maior

aprofundamento da questão, ver BRANDÃO, Jacynto José Lins. Antiga

Musa: arqueologia da ficção. Belo Horizonte: UFMG, 2005 e AGAMBEN,

Giorgio. Infância e História - destruição da experiência e origem da

história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

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Para desenvolver esse problema, vamos tomar, aqui, mythos e

logos como dois tipos de discurso80

, o poético e o filosófico-científico.

O mito não seria apenas uma maneira pré-científica de procurar as

causas que, naquele momento, a filosofia também procurava. Se assim

o fosse, a própria função de efabulação teria um valor premonitório e

exploratório em relação a certa dimensão da verdade que não se

identifica com a verdade do logos científico. Mas seria a verdade

científica toda a verdade? Haveria alguma coisa dita pelo mito que

não poderia ser dita de outra forma? ―Eis a antinomia: de um certo

ponto de vista, mythos e logos opõem-se; de um outro ponto de vista,

mythos e logos unem-se, conforme a velha etimologia que identifica

mythos com palavras‖ (RICOEUR,1988: 10).

A partir daí talvez possamos olhar de outra maneira para um

problema que ainda nos acompanha e que, de modo resumido se

instala nas relações entre representação e conceito e, sobretudo, nas

relações entre linguagem e mundo. De acordo com Paul Ricoeur, as

palavras, como signos, tanto se apresentam como virtualidade num

sistema semiótico da linguagem, quanto como elementos que

atualizam essa linguagem em um discurso atravessado pela semântica

e que assim se relaciona com o mundo. A diferença entre semiótico e

semântico, entre língua e discurso indica a própria aporia da

linguagem humana e ao mesmo tempo, é essa impossibilidade de

passagem que pode produzir um saber e uma história. Pois, para um

ser que já fosse sempre falante e estivesse sempre em uma língua

indivisa, ―ele seria desde sempre unido à sua natureza linguística e

não encontraria em nenhuma parte uma descontinuidade e uma

80

Paul Ricoeur trata a linguagem no quadro de uma teoria da interpretação e,

neste caso, o discurso é o seu ponto de partida. Ricoeur ultrapassa o debate

entre semiótica e semântica e propõe-se trabalhar a linguagem como abertura

cuja função constitutiva é transcender a si própria e se apresentar como sinal

e transporte para uma realidade que advém e para uma experiência singular

que exige visibilidade e partilha. A linguagem é mediação e meio no qual e

pelo qual o sujeito se põe e o mundo se mostra. Ver RICOEUR, Paul. Teoria

da Interpretação. Lisboa: Ed.70, 1976.

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diferença nas quais algo como um saber e uma história poderiam

produzir-se‖ (AGAMBEN,2005: 14).

A distinção e a aporia entre semiótica e semântica permitem

que a linguagem seja compreendida como limitação e fratura, por

evidenciar que o discurso humano se inicia sempre ―im media res‖ e

jamais pode atingir um saber absoluto. Por outro lado, é exatamente

tal limitação que permite a articulação das experiências humanas no

tempo. Nesse sentido, a linguagem é sempre sinal e transporte e,

enquanto tal aponta para a realidade de experiências singulares que

exigem visibilidade e partilha. É também mediação e meio no qual e

pelo qual o ―sujeito‖ se coloca e o mundo se mostra. Paul Ricoeur não

fica preso na dicotomia entre consciência e mundo na medida em que

faz passar a interpretação (produção de significados) pela mediação

dos signos. Assim, existe uma função simbolizadora como origem da

vida social e não apenas como sua consequência, o que é fundamental

para a compreensão da ―palavra eficaz‖ dos aedos com a qual estamos

lidando.

Tomar o mythos e o logos como a atualização da linguagem

em discurso, segundo Ricoeur, exige a consideração da dialética entre

sentido e referência, ou seja, contemplar quem diz, aquilo que se diz e

aquilo sobre o que se diz. O ―quê‖ do discurso é o seu sentido, o

―acerca de quê‖ é a sua referência. Enquanto o sentido é imanente ao

discurso, a referência exprime o movimento em que a linguagem se

transcende a si mesma, ou seja, em que ela se abre ao mundo, e pode

como veremos, ser compreendida de outras formas, como acontece a

Homero ao longo da história. No entanto, tal abertura diz respeito às

dificuldades da produção de sentido e à sua variabilidade em

diferentes contextos. Uma vez que há mais de um significado das

palavras, elas recebem do contexto e uso a delimitação do seu valor. A

linguagem como expressão é um dizer de algo que pede para ser dito e

é a temporalização do ser que emerge no tempo presente enquanto

acontecimento do discurso. Mas, por outro lado, esse dito do dizer é

uma instância discursiva, um ato de alguém que quer articular uma

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experiência e compartilhá-la. Desse modo, toda instância discursiva é

rememoração, é um querer dizer algo que, enquanto experiência

vivida é inesgotável e aponta sempre para um futuro possível do dizer.

Quando tanto a palavra mágico-religiosa quanto a palavra racional são

pronunciadas, a solidão da vida é, por um instante, iluminada pela luz

comum do discurso. A linguagem, assim compreendida, permite uma

abertura que diferencia a voz humana no mundo da physis pela

entrada no plano da constituição de um sentido do ser e do viver e da

configuração de mundos onde o habitar humano passa ser possível.

Como o discurso enquanto evento só existe numa instância

temporal, ele se desvanece enquanto voz, mas paradoxalmente, só ele

pode ser fixado em algum suporte. Aqui não vamos entrar no debate

entre oralidade e escritura no mundo grego porque, consideramos que

tanto a escrita, aquilo que ia das mãos aos olhos, quanto a memória do

poeta, que ia da boca aos ouvidos, eram suportes relativamente

confiáveis do dizer. Como ambas as inscrições não são propriamente

os eventos, mas a sua significação temos que admitir que cheguem até

nós como algo que podemos interpretar. Há uma matéria que se molda

de acordo com determinadas exigências e, neste caso, ―os gêneros

literários obedecem a uma espécie de artesanato, que nos permite

falar de produção e de obras de arte e, por extensão, de obras de

discurso‖ (RICOEUR, 1976: 44).

Para Ricoeur, é aqui que a escrita interfere na medida em que

ela faz da linguagem a matéria de um artesanato específico. De modo

geral, quando a escrita toma o lugar da fala, seu destino é confiado à

letra e não mais à voz. ―A situação dialógica foi destruída. A relação

escrita-leitura já não é um caso particular da relação entre fala e

audição‖ (RICOEUR, 1976: 41). Como salienta o autor, a

hermenêutica começa onde o diálogo acaba. Assim, faz parte da

significação de um texto estar aberto a um número indefinido de

leitores e, por conseguinte, de interpretações. Graças à escrita, o

homem e só o homem tem um mundo e não apenas situações. Para

nós, o mundo é o conjunto de referências abertas pelos textos. ―É

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nesse sentido que podemos falar do „mundo grego‟; já não é

imaginar o que eram as situações para os que lá viviam, mas

designar as referências não situacionais exibidas pelos relatos‖

(RICOEUR, 1976: 47). Desse modo, devemos desconfiar de que a

epopéia homérica, por ter sido um dia fixada pela escrita mantém-se

imune ao devir da variação ou que permite um acesso privilegiado

àquilo que um dia foi sua oralidade primeira.

Longe do encontro de uma oralidade primeira, ou do sonho

metafísico que abriga ali, a ilusão de uma presença plena na estrutura

dupla do signo composta de significante/significado, só nos resta a

escritura que, como rastro faz do significado não mais que um

significante. O encerramento da metafísica, e da semiologia que com

ela sempre foi solidária, implica a consciência de que não existe

nenhum acesso a uma origem que não seja a do significante e do

rastro daquilo que um dia foi sentido e destino no tempo. ―A origem é

um arqui-rastro, que fundamenta a própria possibilidade do aparecer

e do significar na ausência de origem‖ (AGAMBEN, 2007: 247).

Se o mito, de modo geral, é um discurso, isto é, uma

sequência de enunciados ou frases com sentido e referência, temos

que admitir que o mito diz alguma coisa sobre alguma coisa. E tal

discurso só é identificado como mítico porque historicamente ele se

diferencia de outros discursos. Nesse sentido, podemos pensar a

epopéia homérica na função instauradora de uma diferença entre dois

tempos, o dos heróis e o seu próprio tempo. Diferentemente da

verdade da história, só há mito quando o acontecimento base não

acontece na história, mas num tempo anterior a ela; in illo tempore, o

mito é essencialmente a relação do nosso tempo com esse outro tempo

que o constitui. O mito diz sempre como alguma coisa nasceu; em

Homero temos a cólera de Aquiles e a volta de Odisseus. A função de

instauração pode ser assumida por seres sobrenaturais de natureza

muito diversa: deuses, mensageiros, heróis, etc. Mas essas figuras são,

para Paul Ricoeur, apenas variáveis de uma função instauradora. Por

outro lado, é na medida em que o mito institui a ligação do tempo

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histórico com o tempo primordial que a narração das origens ganha

valor de paradigma para o tempo presente. Se o mito pode ser revivido

ritualmente, pode ser considerado como a instrução que permite a

celebração do rito e, em conseqüência, repetir o ato criador. Essa

relação entre os tempos também permite uma reativação emocional,

ou seja, o ―viver segundo‖ um mito seria deixar de existir apenas na

vida quotidiana. Tal questão nos remete à função da própria

imaginação que, a partir do confronto entre mythos e logos nos leva à

aporia das relações entre linguagem e mundo.

Podemos relacionar a epopéia homérica a uma dimensão

sapiencial do mito, porque ―ela é uma província da memória grega,

cujo império se estende desde as genealogias lineares até os apólogos

verborrágicos através dos provérbios, dos elogios aos vivos, das

lendas, das homenagens aos mortos e das teogonias ou dos contos

maravilhosos‖ (DETIENNE, 1992: 50). Compreender como as coisas

começaram é saber o que agora elas significam e que futuro

continuam a oferecer ao homem. Mesmo em sua autonomia, confiada

a narradores especializados, treinados de acordo com processos

mnemotécnicos num meio profissional, na narração épica há zonas

obscuras da experiência humana. Essas são a face da noite com a qual

os homens têm que viver e que só podem se reconciliar no mistério e

enigma da palavra poética que é sempre refeita quando se acredita tê-

la decifrado.

A reflexão sobre as relações entre linguagem e mundo nos

permite a aproximação da palavra poética de Homero em outros

contextos e usos como magia e encantamento. ―A primeira descrição

literária segura do uso mágico de um verso homérico é atestada por

Luciano de Samósata (nascido em cerca de 120 d.C.) no diálogo

Caronte (7.12-13) e nele o objetivo do uso do verso é especificamente

a cura‖ (COLLINS, 2009: 162). Neste caso, seguindo o princípio da

analogia, o deus Hermes diz que pode facilmente curar a visão curta

de Caronte ao tomar um encanto da Ilíada. Os versos recitados são as

palavras que a deusa Atena dirige a Diomedes no momento em que

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ele precisa mostrar sua aristeia contra os troianos. ―Vou desfazer a

caligem que os olhos brilhantes te cobre, que distinguir, facilmente,

consigas os deuses e os homens‖ (HOMERO. Ilíada, livro 5, vs127-

128).

O contexto narrativo e a própria autoridade de uma palavra

que guarda um tempo primordial no qual a palavra do poeta era

inspirada pelas musas, sinalizam o significado dos próprios versos

escolhidos. Quando o Hermes de Luciano diz os mesmos versos

proferidos por Homero, eles permitem que Caronte veja mais

claramente. Pensamos também, como Agamben, que essa

possibilidade de encantamento e magia se dá exatamente na fratura de

uma presença que abre um mundo e sobre o qual se sustenta a

linguagem. Assim, a metafísica da escritura e do significante

desenvolvida a partir do logos filosófico grego ―não é mais do que a

outra face da metafísica do significado e da voz, o vir à luz do seu

fundamento negativo e não, certamente, a sua superação‖

(AGAMBEN, 2007: 248). A possibilidade dessa experiência mágica e

encantada do dizer redireciona nossa concepção tradicional da língua

como um patrimônio de nomes e de regras que se transmite pela

cultura. Devemos pensar que há uma abertura entre linguagem e

mundo, entre a voz e o logos. Neste caso, a expressão justa para a

existência da linguagem, seria a própria vida humana enquanto ethos,

enquanto vida ética. ―Buscar uma polis e uma oikia que estejam à

altura desta comunidade vazia e impresumível, esta é a tarefa infantil

da humanidade que vem‖ (AGAMBEN, 2008: 17).

Documentação Textual

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A Cristianização do Império Romano:

Algumas Considerações de Caráter Historiográfico

Gilvan Ventura da Silva 81

A expansão e fortalecimento das comunidades cristãs no

decorrer do século IV, fenômeno cujo epicentro foram os núcleos

urbanos disseminados a leste e a oeste do orbis romanorum, deu

margem pouco a pouco àquilo que a historiografia costuma tratar nos

termos da cristianização do Império Romano, um processo histórico

balizado pela atuação emblemática de dois imperadores cujas

biografias dominam o conjunto das narrativas sobre o fim do Mundo

Antigo: por um lado, Constantino, tido, por assim dizer, como o

―fundador‖ civil da Igreja, uma instituição destinada, segundo alguns,

a cumprir um papel capital nos destinos da Civilização Européia nos

séculos posteriores e, por outro lado, Teodósio, o responsável por

conferir ao credo cristão uma notável chancela jurídica por intermédio

do edito Cunctos Populos, mais conhecido como Edito de

Tessalônica. 82

Promulgado em fevereiro de 380, o dispositivo legal,

claramente inspirado nas decisões de Nicéia, reconhecia o

cristianismo catholicus (isto é, universal) como religião oficial do

Império Romano, determinando que doravante toda a população

81 Professor de História Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo.

Doutor em História pela Universidade de São Paulo. No momento, executa o

projeto de pesquisa intitulado ―Cidade, cotidiano e fronteiras religiosas no

Império Romano: João Crisóstomo e a cristianização de Antioquia (séc. IV

d. C.)‖ com apoio do CNPq mediante a concessão de bolsa produtividade. 82

Para uma ―releitura‖ recente do papel desempenhado por Constantino no

processo de cristianização, consultar Veyne (2007). Fazendo coro com

autores como Bury e Fontán, Veyne atribui ao imperador uma atuação

verdadeiramente revolucionária ao rejeitar o paganismo e abraçar o

cristianismo, opção que marcará a história pelos séculos seguintes. Aqui,

uma vez mais, vemos reproduzida certa tendência historiográfica em

superestimar a atuação pró-cristã de Constantino.

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deveria professar a religião que ―o divino Apóstolo Pedro transmitiu

aos romanos‖, ao mesmo tempo em que lançava na clandestinidade os

opositores à doutrina professada por Dâmaso, bispo de Roma e Pedro,

bispo de Alexandria (C. Th. XVI, 1,2). Desse modo, tendo iniciado a

sua trajetória ascendente nos estertores da Grande Perseguição de

Diocleciano e Galério, uma conjuntura turbulenta na qual era difícil

antecipar os desdobramentos futuros, a Igreja teria paulatinamente

consolidado a sua posição, passando a gozar, com Teodósio, de um

estatuto privilegiado, razão pela qual as décadas transcorridas entre

312 e 380 foram durante muito tempo consideradas testemunhas de

um processo histórico inexorável que alcançaria o seu apogeu com o

―triunfo‖ definitivo da Igreja, supondo-se, por intermédio dessa

expressão que, diante de um refluxo ostensivo do paganismo e do

judaísmo, sistemas religiosos minados por um esgotamento visível e,

por isso mesmo, incapazes de se conservar/reproduzir no tempo e no

espaço, o cristianismo já seria, em fins do século IV, a religião

predominante no Império.

Um modelo de interpretação acerca da cristianização do

Império calcado na noção de um ―triunfo‖ retumbante da Igreja

proporcionado por uma intervenção decisiva de Teodósio já se

encontra descrito, por exemplo, em The history of the decline and fall

of the Roman Empire, obra monumental de Edward Gibbon cujo

primeiro volume veio a público em 1776. Apesar de sugerir que

diversas práticas e concepções pagãs tenham se perpetuado sob um

invólucro cristão, configurando assim uma espécie de ―revanche‖

póstuma do paganismo contra os seus algozes, o autor, com base no

edito Cunctos Populos, ao qual aludimos, situa sob o governo de

Teodósio a destruição ―final‖ e ―efetiva‖ do paganismo. Ao menos

nesse aspecto, a interpretação de Gibbon se encontra condicionada por

uma tradição literária cristã que desde a fase final do Império se

dedicou a celebrar temas conectados à ―vitória da cruz‖, dentre os

quais um dos mais visitados foi, sem dúvida, a inesperada derrocada

de Juliano (CARVALHO, 2006). De fato, como salienta Peter Brown

(2003: 74), foi um setor ativo da intelligentsia cristã que se

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encarregou, não apenas de revestir os atos governamentais de

Constantino, Teodósio e demais sucessores contra o paganismo de um

sentido claramente teleológico, como se a ascensão do cristianismo

fosse o resultado da atuação da Providência na história, mas também

de difundir a idéia de que o paganismo e o judaísmo eram crenças sem

fundamento, obsoletas ou, conforme um jargão bastante empregado à

época, superstitiones. Seja como for, uma explicação como essa, ao

encontrar abrigo nas páginas de um historiador tão influente como

Gibbon, terminou por constituir um poderoso lugar de memória que,

durante muito tempo, orientou as investigações das relações entre o

cristianismo e os demais sistemas religiosos vigentes no final da

Antigüidade.

Assim é, por exemplo, que T. M. Lindsay, em um capítulo

cujo título, não por mero acaso, é ―The triumph of Christianity‖,

capítulo este inserido no primeiro volume da The Cambridge

Medieval History, de 1911, sustenta o argumento de que, após a morte

de Juliano, o paganismo experimentou um sensível declínio, com o

abandono e destruição dos templos e a extinção dos colégios

sacerdotais, de maneira que, na passagem do IV para o V século, as

antigas tradições religiosas greco-romanas não exerceriam mais

qualquer influência sobre a vida pública, convertendo-se os bispos nos

líderes ―naturais‖ de uma população que, em sua maioria, já havia

sido cristianizada. Iniciado no Oriente, o ―triunfo‖ do cristianismo

teria sido, por algum tempo, retardado no Ocidente mediante a

atuação aguerrida da aristocracia senatorial de Roma, último baluarte

de um credo moribundo e malévolo que travava, à época, um combate

vão. Uma reflexão semelhante à de Lindsay se encontra presente em

Christianity and Classical Culture, obra de Charles Cochrane surgida

em 1939. Nela, o autor declara que, sob Teodósio e seus sucessores,

operou-se uma ―liquidação formal do paganismo‖ mediante um

esforço sistemático de ―extirpação cabal de qualquer tipo de

superstição‖, de erradicação das ―sobrevivências‖ pagãs, até o ponto

em que ―os deuses do classicismo foram merecidamente enterrados

entre as ruínas da civilização que não haviam conseguido salvar‖!

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Na opinião de Cochrane, a ―missão‖ do cristianismo teria sido ―curar‖

as feridas que os homens da época clássica haviam infligido a si

mesmos e regenerar a vitalidade espiritual do Mundo Antigo no limiar

da Idade Média, forjando-se assim, por um imperativo de natureza

teleológica, uma autêntica simbiose entre o cristianismo e o Império

Romano, a mesma que vemos reproduzida em L‟Empire Chrétien, de

André Piganiol. Publicada em 1947, a obra continua sendo uma

leitura de referência para os pesquisadores da área, não obstante a sua

inclinação francamente pró-cristã, que transparece já no título e se

perpetua ao longo dos seus dezoito capítulos, distribuídos em duas

partes. O plano de redação adotado pelo autor trai assim o pressuposto

de que, à época do Concílio de Nicéia, em 325, o Império já teria

assumido um inequívoco matiz cristão, razão pela qual, excetuando

algumas breves referências à reforma dos cultos pagãos empreendida

por Juliano, Piganiol praticamente ignora a polêmica religiosa

envolvendo o cristianismo, o paganismo e o judaísmo. A intenção do

autor em produzir uma narrativa na qual a Igreja é alçada à condição

de protagonista absoluta dos acontecimentos que constituem a história

do Império na sua fase final é celebrada por André Chastagnol, no

prefácio à reedição de 1972, nos seguintes termos: ―[...] seu título (isto

é, o da obra) enfatiza com felicidade o fato decisivo desta época

marcante: o triunfo progressivo do cristianismo a partir do reinado

do primeiro imperador cristão, Constantino, triunfo assegurado no

fim do século IV, no momento em que termina o governo de

Teodósio‖.

Não obstante toda a renovação historiográfica produzida no

Pós-Guerra, quando então os pesquisadores filiados ao materialismo

histórico ou à Escola dos Annales se dedicaram com um interesse

cada vez maior à investigação de temas conectados com o modus

vivendi das categorias inferiores ou subalternas da sociedade, com a

trajetória dos desviantes, dos marginais e dos vencidos e com o

inventário de práticas políticas, econômicas e culturais que, sob

muitos aspectos, já esgarçavam os modelos explicativos de grande

fôlego, o tema da cristianização do Império Romano continuava a ser

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interpretado tendo como referência a bitola das fontes eclesiásticas,

que não cessavam de reiterar a ascensão vertiginosa do cristianismo

em detrimento dos seus rivais. De fato, no final da década de 1950,

Santo Mazzarino, um importante especialista em Antigüidade Tardia,

na obra La fine del Mondo Antico (1959), reiterava argumentos

semelhantes àqueles enunciados por Lindsay, Cochrane e Piganiol ao

sugerir uma clivagem, no Império Romano, entre um estilo de vida

obsoleto, no caso o clássico, e outro, impelido pelo ardor

―revolucionário‖ da crença em Jesus. Para o autor, os cristãos

constituíam, na Idade Apostólica, uma ―grande minoria criativa‖

destinada a assumir, na época tardia, as rédeas do processo histórico e

a inventar um novo mundo em substituição ao antigo, tornado inerte e

estéril. Mais uma vez, a missão ―regeneradora‖ do cristianismo é

aqui evocada como justificativa para o seu sucesso, opinião

compartilhada por Daniélou & Marrou que, no volume inaugural da

coleção Nouvelle Histoire de l‟Église, publicado em 1963, enfatizam a

―naturalidade‖ com a qual a população romana aderiu ao cristianismo

diante da conversão de um imperador ―todo-poderoso‖ como era

Constantino, ao passo que, em termos institucionais, observa-se um

afastamento progressivo entre o paganismo e o Estado imperial, que

se associa ―intimamente‖ à Igreja. Sob Graciano e Teodósio,

instauram-se então os Tempora Christiana, os novos tempos cristãos,

expressão que reitera a capacidade inovadora do cristianismo, o seu

papel como uma crença forte o bastante para reorientar o próprio devir

histórico e instaurar uma nova era, tida como antítese do passado

pagão. Ainda que Daniélou & Marrou manifestem – de modo

bastante tímido, diga-se de passagem – a preocupação em refletir

sobre os limites da cristianização, sobre o grau efetivo do impacto e

difusão do cristianismo entre as populações dispersas pelo território

imperial, suas conclusões não deixam dúvidas quanto à historicidade

dos Tempora Christiana. Uma preocupação semelhante (e igualmente

incipiente) em assinalar os limites da cristianização é manifesta por J.

N. Hillgarth em The Conversion of Western Europe, uma coletânea de

excertos de fontes lançada em 1969 na qual o autor sugere que a

penetração do cristianismo em meios rurais foi mais lenta se

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comparada aos meios urbanos, uma importante distinção geográfica

que começava então a despertar a atenção dos pesquisadores. No

entanto, no que diz respeito ao ambiente urbano, Hillgarth é

categórico em afirmar que, por volta de 400, constata-se um ―triunfo

verdadeiramente completo da Igreja‖ mediante a atuação filantrópica

dos bispos, responsáveis pela manutenção de toda uma rede de

assistência aos pobres e aos doentes sediada nas cidades. Numa linha

de raciocínio próxima da de Daniélou, Marrou e Hillgarth, situa-se

Jean-Rémy Palanque, que, ao abordar, em Le Bas-Empire (1971), a

polêmica religiosa instaurada no fim do Mundo Antigo, não hesita em

declarar que a escalada do cristianismo a partir de Constantino foi

bastante rápida, permanecendo o paganismo circunscrito, por um lado,

à elite senatorial de Roma e, por outro, às populações rurais.

Desse modo, durante décadas as relações entre o paganismo e

o cristianismo foram interpretadas com base na noção de ―triunfo‖ da

Igreja e de advento dos Tempora Christiana, supondo-se que entre

Constantino e Teodósio ocorre enfim a afirmação irresistível de um

credo novo, original e criativo em detrimento das experiências

religiosas conectadas com o passado greco-romano, experiências essas

fadadas à obsolescência e ao desaparecimento, como comprovam o

fechamento dos templos e o abandono das festividades tradicionais.

Um modelo similar a esse foi igualmente manejado, desde pelo menos

o século XIX, para interpretar as relações entre o cristianismo e o

judaísmo. No final do século XIX e início do XX, os eruditos

protestantes que se debruçaram sobre o estudo das relações entre

judeus e cristãos no Império Romano foram responsáveis pela fixação

de um modelo teórico que propugnava a existência de uma cisão

indelével, uma ―repartição de caminhos‖, entre o judaísmo e o

cristianismo em algum momento entre a Guerra da Judéia (66-73) e a

revolta de Bar Kochba (135). Dentre esses autores, talvez o mais

influente tenha sido Adolf von Harnack, responsável por difundir uma

interpretação sobre o culto judaico no Império Romano que

convencionou-se designar com o nome de spätjudentum, isto é, de

―judaísmo tardio‖ (REED & BECKER, 2007: 07). De acordo com

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Harnack, a história do judaísmo a partir do advento do cristianismo

teria sido marcada por um esgotamento progressivo, o que tendeu a

isolar cada vez mais os judeus em guetos à medida que avançava o

processo de cristianização. Desse ponto de vista, o cordeiro cristão

passaria a encerrar a ―vitalidade‖ espiritual do Império em detrimento

do leão de Judá, agora ferido de morte, se adotarmos uma metáfora

sugestiva proposta por Jacobs (2007: 98). Como conseqüência, o

judaísmo, religião obsoleta e anacrônica, teria muito pouco a oferecer

a um mundo marcado para sempre pelo fermento da renovação

contido na experiência cristã. O que se fixa com os trabalhos de

Harnack e seus seguidores é uma escola de interpretação que advoga

uma ruptura quase total entre o judaísmo e o cristianismo, duas

entidades cada vez mais distintas e opostas que, ao fim e ao cabo, não

manterão entre si qualquer diálogo. Para a consolidação de um

modelo como esse, destinado a influenciar por décadas a pesquisa e o

debate acadêmico sobre as relações entre judeus e cristãos na

Antigüidade, foi igualmente importante o trabalho de James Parkes,

um clérigo britânico cuja obra é tida como a pedra angular dos estudos

judaicos modernos. Vivendo, no final da década de 1920, uma

situação na qual o anti-semitismo ascendia com vigor e rapidez entre

os estudantes nacionalistas europeus, Parkes logo teve o seu interesse

despertado para a história das conexões entre o judaísmo e o

cristianismo, o que o levou a publicar, em 1930, O judeu e seu

vizinho, o primeiro título de uma carreira intelectual absolutamente

profícua. Para Parkes, assim como para outros autores que o

antecederam ou que foram seus contemporâneos, a separação

definitiva entre o judaísmo e o cristianismo teria ocorrido em finais do

século I.

Muito embora autores como Jean Juster e Lukyn Williams se

opusessem de maneira mais ou menos frontal à tese do spätjudentum,

somente com a obra Verus Israel, de autoria de Marcel Simon e

publicada originalmente em francês, em 1948, a idéia de que o

judaísmo sob o Império Romano fosse uma religião desprovida de

vitalidade e/ou criatividade começa a ser revista. A obra de Simon,

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considerada hoje um monumento historiográfico para os estudos do

judaísmo antigo, subverte a leitura dos textos cristãos proposta por

Harnack ao investir na seguinte hipótese de trabalho: se os autores

eclesiásticos foram tão pródigos e contundentes nos seus ataques ao

judaísmo, isso deve exprimir uma situação na qual os judeus de algum

modo ameaçavam o domínio da Igreja, o que invalida a suposição de

um judaísmo em colapso permanente (JACOBS, 2007: 101). Não

obstante a pertinência das conclusões de Simon no sentido de

reabilitar o papel da crença judaica praticada sob o Império Romano,

nem ele nem seus sucessores imediatos duvidaram do fato de que

―judaísmo‖ e ―cristianismo‖ talvez não fossem, no início, mais do que

um rótulo criado artificialmente para ordenar uma realidade ainda

bastante confusa e plural, ou seja, que talvez a distinção entre ambas

as religiões tenha sido o resultado de um processo muito mais

intrincado do que poderíamos supor. Isso é o que nos sugerem as

informações relativas aos judaizantes e às comunidades judaico-cristãs

dos ebionitas, nazoreus, osseanos e outras, que apontam para a

permanência, ainda na fase tardia, de uma intensa proximidade entre o

judaísmo e o cristianismo.

Muito embora, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, a

historiografia sobre a cristianização do Império Romano já

demonstrasse certo cuidado em resguardar os alcances e as

contradições desse processo, só muito lentamente verificamos uma

mudança de perspectiva historiográfica. Na verdade, o que parece ter

demorado a se tornar consenso entre os historiadores foi o argumento,

hoje aceito sem reservas, de que as noções de ―triunfo‖ da Igreja e dos

Tempora Christiana são muito mais representações forjadas pelos

autores eclesiásticos do que realidades históricas propriamente ditas.

À parte o fato de que as práticas pagãs do Império tardio são amiúde

descritas com parcimônia pela documentação, temos conhecimento da

sua permanência em muitas regiões do Império até pelo menos o final

do século VI. Essa situação costuma ser interpretada por alguns como

uma mera ―sobrevivência‖ do paganismo, mas talvez devamos ser

mais cuidadosos com afirmações dessa natureza, que superestimam a

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capacidade de atração do cristianismo, replicando assim a ideologia

contida nas fontes eclesiásticas.83

Conclusão análoga pode ser

aplicada ao judaísmo, que exibe, entre os séculos IV e V, um

desenvolvimento extraordinário materializado num boom de

construção de sinagogas cujo ponto de origem se localiza na Síria-

Palestina e Ásia Menor, mas que se irradia por todo o Império

(SCHWARTZ, 2001; GONZÁLEZ SALINERO, 2000). Evidências

como essas, extraídas tanto da releitura das fontes escritas com base

em novas hipóteses de trabalho quanto da multiplicação dos dados

obtidos com as escavações arqueológicas, foram, ao lado da

renovação conceitual pela qual passou a História ao longo da década

de 1970, quando então assistimos à emergência do que virá a ser, mais

tarde, a Nova História Cultural, responsáveis por uma sensível

alteração na maneira pela qual os pesquisadores concebiam a

cristianização do Império Romano.

No que diz respeito à adoção de um novo modelo explicativo

para o teor das relações mantidas entre o cristianismo e o paganismo

no final do Mundo Antigo, uma das contribuições mais significativas

é, sem dúvida, Christianizing the Roman Empire, de Ramsay

Macmullen, obra vinda a público em 1984, na qual o autor

redimensiona o debate acerca do assunto ao confrontar os topoi

clássicos que dominavam a literatura, a saber: as concepções de

―triunfo‖ da Igreja e de ―destino manifesto‖ do cristianismo, buscando

assinalar os impasses, recuos e contradições do processo de

cristianização, processo esse que reconstruímos de maneira bastante

fragmentada, parcial, em virtude do desequilíbrio de informações.

Inspirado, sem dúvida, por uma historiografia comprometida em

romper com os modelos cêntricos e estáticos de interpretação das

83

Quanto a isso, a história de Paralos, ocorrida em finais do século V, é

emblemática. Oriundo de uma família pagã de Afrodísia, na Cária, Paralos

possuía outros três irmãos, um dos quais, Atanásio, se tornou monge em

Alexandria. Quando da necessidade de completar seus estudos, Paralos foi

enviado a Alexandria, mas sob a condição de não contactar o seu irmão, que

havia abraçado o cristianismo (BROWN, 2003).

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estruturas imperiais que se afirma ao longo da década de 1970,

Macmullen antecipa, para o caso dos conflitos religiosos no final da

Antigüidade, uma opção teórica que se tornará cada vez mais presente

nos estudos a respeito do Império Romano, qual seja, a de se manter

um controle permanente na aplicação de conceitos que pretendam

instituir, do exterior, um denominador comum para experiências

muitas vezes díspares entre si, a exemplo do que ocorre com o

conceito de Romanização, hoje bastante criticado em virtude tanto da

sua lógica unipolar, alicerçada na atuação de um centro (Roma) que se

―espraia‖ sobre a periferia (o território provincial ao redor), quanto da

sua tendência a conferir às localidades do Império uma

homogeneidade, no fundo, artificial, ao colocar os provinciais numa

posição de injustificada passividade, fazendo deles espectadores de

um movimento que simplesmente os engolfa (MENDES, 2008: 39).

Ao investigar o processo de cristianização com o propósito de alçar a

primeiro plano os indícios que contrariam o modelo de interpretação

tradicional, não os descartando como dados insípidos postos à

margem de um mainstream, Macmullen nos oferece um quadro das

relações religiosas no final do Império Romano muito mais complexo

do que à primeira vista se afigurava, uma vez que os dados

provenientes da documentação literária e arqueológica não suportam,

de modo algum, a hipótese de que, na passagem do IV para o V

século, o cristianismo já fosse a religião dominante no Império, uma

vez que, em muitas localidades, observamos a construção ou o

restauro de santuários pagãos, como na Britânia, ao passo que em

diversas cidades, a exemplo de Antioquia e Cartago, o estilo de vida

greco-romano se encontra ainda em plena atividade, o que leva o autor

a concluir que, por volta de 400, o Império Romano era ainda, em sua

maioria, não-cristão (MACMULLEN, 1984: 83).

A partir da segunda metade da década de 1980, a

historiografia sobre o fim do Mundo Antigo começa assim a investir

na formulação de objetos e na exploração de fontes sob uma outra

ótica, procurando não tanto iluminar os contornos gerais de um

movimento que até então se julgava dotado de uma inteligibilidade já

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dada, qual seja, a consolidação da Igreja sobre todo o orbis

romanorum, mas antes captar os particularismos locais, as variações

regionais e, mais que isso, demonstrar o quanto a cristianização

dependeu da adoção de estratégias eficazes a fim de sobrepujar os

sistemas religiosos concorrentes, estratégias essas que envolveram

toda sorte de trocas, sincretismos, hibridismos e negociações, é certo,

mas também o implemento de práticas de confronto com judeus e

pagãos, os quais não se encontravam, em absoluto, no limiar de um

colapso. Um dos exemplos mais notáveis dessa mudança de

perspectiva historiográfica em torno do processo de cristianização nos

é fornecido por Pierre Chuvin, em seu livro Chronique des derniers

paiens, publicado em 1990. Pretendendo construir uma narrativa

renovada acerca do embate entre o cristianismo e o paganismo no fim

do Mundo Antigo, o autor rejeita a ótica ―cristocêntrica‖, até então

dominante, em prol da compreensão do processo histórico do ponto de

vista dos pagãos. Buscando neutralizar o crivo da censura eclesiástica

por meio da mudança de atitude do pesquisador no manuseio das

fontes, Chuvin urge, por um lado, que abandonemos o lugar comum

segundo o qual o paganismo, nos séculos IV e V, experimentava uma

fase de decadência iminente e, por outro, que interpretemos as

manifestações pagãs por elas mesmas. Com isso, é possível

descortinar, nas brechas de uma cristianização que avança, os loci de

permanência do paganismo ao longo dos séculos, o que dá margem à

formação de arranjos híbridos duradouros e por vezes surpreendentes.

Um programa de pesquisa afinado com o de Chuvin é executado por

Robert Markus em The end of ancient Christianity, obra lançada

igualmente em 1990. Esvaziando o discurso cristão do seu tom

excessivamente triunfalista, o autor critica acidamente a tendência

historiográfica de se interpretar o conflito religioso na Antigüidade

Tardia nos termos de uma oposição clara entre um cristianismo

avassalador e as ―sobrevivências‖ pagãs, uma vez que, na sua

concepção, as fronteiras entre ambos os sistemas religiosos se

encontravam em constante mutação. Desse ponto de vista, qualificar

os indícios de existência de práticas pagãs nos séculos IV e V como

meras ―sobrevivências‖ é uma operação conceitual extremamente

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arriscada, pois esses indícios com freqüência nos revelam arranjos

identitários locais que se estabelecem justamente na contracorrente da

cristianização. Daí o interesse crescente dos historiadores, dentre os

quais conta-se Markus, pelas práticas, costumes e rituais que

resistiram ao controle das elites eclesiásticas, pelo cotidiano que se

desenrola para além dos muros das igrejas e dos mosteiros e que

apresenta um ritmo próprio e muitas vezes contrário à orientação

episcopal, como pretendemos iluminar com o estudo de Antioquia no

tempo de João Crisóstomo.

O cuidado da historiografia com as brechas do processo de

cristianização, o interesse que os pesquisadores vêm demonstrando em

pôr à prova modelos de interpretação por demais genéricos e

comprometidos com uma concepção teológica da história, em

problematizar categorias antes consideradas transparentes, como

―pagãos‖ e ―cristãos‖, em elucidar as tramas do cotidiano que

aproximam, física e culturalmente, adeptos de credos religiosos

distintos, tem se tornado recorrente nos últimos anos, como nos

permite concluir Mary Beard em Religions of Rome (1998).

Retomando as considerações de Markus sobre a dificuldade em se

traçar uma linha clara entre cristianismo e paganismo no fim do

Mundo Antigo devido ao ambiente cultural comum no qual ambos os

sistemas religiosos se moviam, a autora propõe que a atuação

missionária da elite episcopal, embora indubitavelmente agressiva,

não significou, em absoluto, a erradicação das tradições culturais

greco-romanas, nem em Roma, nem em qualquer outro lugar do

Império. Segundo a autora, isso não se deve pura e simplesmente à

adoção, pelos pagãos, de uma tática bem sucedida de ―resistência‖

diante do cristianismo, mas a uma familiaridade entre cristãos e

pagãos, no cotidiano, que subverte, em muitos aspectos, o discurso

autoritário dos bispos. Em termos da historiografia nacional, a

proposta de estudo enunciada por autores como Chuvin, Markus e

Beard encontra uma clara ressonância na obra de Renan Frighetto,

Cultura e poder na Antigüidade Tardia, publicada em 2000.

Consoante os novos padrões historiográficos de interpretação das

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relações entre cristianismo e paganismo, o autor, ao tratar das

estruturas culturais na fase final do Império Romano, já inclui, de

antemão, o tema da permanência do paganismo no Ocidente, numa

flagrante ruptura com a tese tradicional dos Tempora Christiana.

Já no que concerne às interações entre cristianismo e

judaísmo, observamos, recentemente, uma mudança de perspectiva

que acompanha a consolidação da tese da fluidez de fronteiras entre

cristãos e pagãos. De fato, aos poucos tem se tornado consenso entre

os especialistas a compreensão de que, em muitas regiões do Império

e durante muito tempo, foram produzidas múltiplas experiências

religiosas que não podemos classificar à partida como judaicas ou

cristãs, o que configura uma realidade sincrética e multifacetada na

qual termos como ―judaísmo‖ e ―cristianismo‖ significam muito

pouco pelo fato de não traduzirem adequadamente o teor da religião

então praticada. Para autores como Daniel Boyarin (2007: 74) e Reed

& Becker (2007: 02), por exemplo, a história do judaísmo e do

cristianismo é marcada tanto pela convergência quanto pela

divergência, ao contrário do que afirmavam os defensores do

spätjudentum, para quem somente a divergência seria possível. Na

realidade, o que esses autores advogam é uma situação de relativa

permeabilidade entre judeus e cristãos no decorrer de toda a fase

imperial, de modo que as diversas comunidades de crentes em Jesus,

quer de extração judaica ou gentia, comporiam um subgrupo dentro de

um conjunto variado de comunidades religiosas mais ou menos

filiadas ao judaísmo. Por outro lado, a manutenção de contatos

regulares entre judeus e cristãos pode ser comprovada pela existência

dos judaizantes, indivíduos que, mesmo sendo adeptos do

cristianismo, se sentiam atraídos, no todo ou em parte, pelas tradições

judaicas, freqüentando regularmente a sinagoga e tomando parte nas

cerimônias e festivais judaicos. Embora constatemos a existência de

judaizantes no decorrer de todo o período imperial, o problema se

torna mais agudo na segunda metade do século IV, particularmente

nas províncias orientais, coincidindo assim com o fenômeno de

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revitalização do judaísmo nos territórios da Síria-Palestina e da Ásia

Menor (SILVA, 2009).

A renovação historiográfica em torno das relações entre os

diversos sistemas religiosos vigentes no fim do Mundo Antigo tem

levado os autores a pelo menos três conclusões importantes. Em

primeiro lugar, ao reconhecimento de que as fronteiras entre o

paganismo, o judaísmo e o cristianismo se mantiveram por muito

tempo instáveis, oscilantes e porosas, dando margem assim à

proliferação de contatos, cruzamentos e sincretismos num grau muito

superior àquele que até então se imaginava. Em segundo lugar, à

diluição do conteúdo teleológico que se atribuía à cristianização,

buscando-se investigar esse processo, não nos termos de uma vitória

ampla e irrestrita de um credo vigoroso e criativo contra os seus

frágeis concorrentes, mas nos termos de um jogo que se desenrola, em

nível local, de acordo com regras particulares, circunscritas à

configuração das relações de poder entre os grupos sociais.

Apreendida sob essa perspectiva, a cristianização surge para nós como

um intrincado jogo de avanços, retrocessos, negociações e embates

frontais, poderíamos mesmo dizer uma ―guerra de guerrilha‖. Daí

decorre a terceira conclusão, extremamente útil para aquilo que

tratamos neste capítulo: a de que não apenas o espaço rural é palco de

uma disputa acirrada por posições entre os adeptos de credos

religiosos distintos à medida que adentramos o século V, como a

historiografia desde a década de 1970 já tendia a reconhecer, mas

igualmente o é o espaço citadino, cívico, espaço esse no qual,

supunha-se, a cristianização já fosse, em finais do século IV, um fato

consumado. Muito pelo contrário, o que parece se delinear nas

cidades do Império Romano é uma situação na qual o judaísmo e o

paganismo, longe de se mostrarem debilitados, são ainda capazes de

ditar, em muitos casos, o ritmo da vida urbana, o que se traduz na

manutenção de relações intensas de sociabilidade entre cristãos,

judeus e pagãos. Diante de uma constatação como essa, torna-se sem

dúvida mais fácil compreender as razões pelas quais a elite

eclesiástica se desdobrou em iniciativas visando a disciplinar as

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relações sociais dentro do espaço urbano, o que, em muitos casos,

implicou a formulação de uma reforma do território cívico mediante a

instauração de fronteiras religiosas que adquirem uma visibilidade

física, geográfica, por intermédio da formulação de isotopias e

heterotopias responsáveis por esquadrinhar o recinto urbano e

delimitar os espaços sagrados em oposição a espaços saturados de

contágio e poluição.

Documentação Textual

PHARR, C. & DAVIDSON, T. S. (Trad.) Codex Theodosianus and

novels and Sirmondian Constitutions. Princeton: Princeton

University Press, 1952.

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87

Identidade e Memória no Cristianismo Sírio-Palestino: o ’

Amen nos Ditos de Jesus de Nazaré

João Batista Ribeiro Santos84

Ainda que a Bíblia hebraica seja uma obra fundante, as

suas historiografias não são completamente nem História nem

narrações puramente míticas; por isso, suas brilhantes sínteses

teológicas não devem ser reduzidas a uma obra de legitimação,

mesmo considerando, segundo enunciado de Abadie (2009, p.

33), ―l‟intentionnalité historienne des auteurs sacrés‖. Tomamos

isso como critério metodológico sem esquecer a lição de Marc

Bloch (2009, p. 125), qual seja: atentar ao relato e não ficar

aquém nem ir além de observar e explicar as causas. Eis:

observar os logia e explicar historicamente a continueté textuelle

como produto de uma representação identitária coletiva.

As fórmulas características de introdução do dito com que

um mensageiro transmite a mensagem do remetente divino ao

destinatário humano continuam sendo pouco estudadas. São

inúmeras e, ao que sugerem as narrações, são expressões

compreensíveis aos primeiros ouvintes. Os textos canônicos

conjugam vários elementos e formulários da tradição do mundo

bíblico das diferentes experiências do povo. Uma importante

asserção da Bíblia hebraica é a ―fórmula da aliança‖, referente à

declaração ―Serei o vosso Deus, vós sereis o meu povo‖. Esta

84

Mestre em Ciências da Religião, com linha de pesquisa em história e

literatura do mundo bíblico, pela Faculdade de Filosofia e Ciências da

Religião da Universidade Metodista de São Paulo (FAFIR/UMESP) e

coordenador do Instituto Logos de Estudos e Pesquisa Religiosa da

Faculdade de Teologia e Ciências Humanas e Sociais Logos

(INLEPER/FAETEL).

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88

fórmula, com suas declarações teológicas, foi retroprojetada

pela historiografia sacerdotal (cf. Neemias 9.7: bahar,

―escolher‖), na construção da identidade judaica, às memórias

abraâmicas, mas não integrou os formulários catequéticos

neotestamentários do ambiente judeu-cristão. Sem embargo,

podemos acrescentar as formulações literárias e as

interpretações teológicas a respeito do significado dos nomes de

Deus (METTINGER, 2008; RENDTORFF, 1985;

RENDTORFF, 2004).

Por ser a ―fórmula do mensageiro‖ koh ‟amar Yhwh

(―assim diz Yhwh‖) originalmente uma introdução do dito do

mensageiro (kerygma), é possível aproximá-la do ‟amen

introdutório dos ditos de Jesus de Nazaré. Na verdade, a fórmula

veterotestamentária está presente no imaginário profético como

essência da autocompreensão do mensageiro, o que não é

estranho ao ambiente siro-palestino do cristianismo formativo

do século I. ―Répétition et interprétation sont des procédés

fonctionnellement équivalentes dans la production de continuité

culturelle‖ (ASSMANN, 2010, p. 81). Para o contexto judaico-

cristão da Síria-Palestina, corrobora ainda a particularidade com

que o ‟amen é empregado no Evangelho de Marcos e no

Evangelho de Mateus: entendemos que neles estão presentes a

repetição (oralidade; ritual) e a interpretação (escritura).

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89

I. MEMÓRIA DO JUDAÍSMO ANTIGO

O hebraísmo da tradição talmúdica tem a sua origem na

Babilônia, mas fixa-se em confronto com o helenismo no

ambiente judaico. O texto clássico, massorético tiberiense, da

Bíblia hebraica realçou a importância do hebraísmo babilônico

(PRATO, 2010, p. 141), cuja influência redefine a linguagem

religiosa, configurado pela idealização bíblica.

No período pós-exílico (538 ss. a.C.), termos da cultura

babilônica, pejorativos aos judaítas exilados, recebem nova

conformação semântica para a compreensão da corrente

ortodoxa do judaísmo. Um dos fatores que contribuíram para

determinar e difundir o hebraísmo foi a idealização de uma terra

como projeto nacional, cujo valor é expresso ―con le categorie

geografiche dela fuga, dell‘esilio o del retorno, non solo nasce,

ma cresce e si conserva rimanendone distante e controllandone

da lontano gli sviluppi religiosi‖ (PRATO, 2010, p. 149). Tanto

as imagens quanto as expressões do hebraísmo bíblico remetem

negativamente à Babilônia em confronto com Jerusalém como

centro do judaísmo, sem nenhuma função de cultura civilizatória

dada a urgência da integração religiosa no ―novo‖ ambiente

palestino.

O confronto com o helenismo se dá pelo fato de sua

definição ocorrer em fins do século IV a.C., com a ampla

organização dos textos bíblicos, época em que a Grécia inicia o

seu predomínio continental. Surpreendentemente, o registro

historiográfico grego mais antigo sobre os hebreus, que provém

de Teofrasto (De Pietate, séc. IV-III a.C.), ―afferma appunto

categoricamente che gli ebrei sono filosofi‖ (PRATO, 2010, p.

268).

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90

Dos costumes organicamente forjados à guisa de

identidade judaica, as práticas distintivas acabaram por

evidenciar um movimento religioso intrajudaico aglutinador. O

cristianismo é o motor dos desesperançados galilaicos, tem

linguagem própria, não obstante fazer hermenêutica das

legendas coetâneas de orientação cronológica. Como os escritos

evangélicos neotestamentários não são anteriores à queda de

Jerusalém no ano 70, o ambiente vital é o da segunda geração de

cristãos, ainda com judeu-cristãos na liderança organizacional e

catequética.

A situação política favorecia em certa medida aos judeus,

que podiam gozar do direito de cidadania em algumas grandes

cidades da Cirenaica e da Ásia (REICKE, 1996, p. 313); mesmo

os peregrini que se tornavam cristãos mantinham a mesma

condição nessa época, inclusive quanto à liberdade de não

adorarem a imagem do imperador, algo reivindicado tanto no

aspecto litúrgico quanto no aspecto prático do judaísmo e do

cristianismo. Há informação, através de Hegesipo (REICKE,

1996, pp. 324-325), de que cristãos da Palestina foram presos

acusados de insubordinação. Sem embargo, o ambiente político

de perseguição, após a Guerra dos Zelotas (66-72), reaparece

após o ano 90 com Domiciano; antes, porém, sob Vespasiano,

os cristãos mantinham-se em liberdade, não obstante a

perseguição aos judeus.

Para sermos mais precisos na análise, no que se refere ao

judaísmo siro-palestino do período de atuação de Jesus de

Nazaré, convém assegurar que ―Jesus atuou em Israel e para

Israel; é indiscutível, pois, que tem seu lugar numa história da

religião judaica‖ (MAIER, 2005, p. 301), apesar do

personalismo dos seus kerygmata. O cristianismo formativo, até

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a segunda geração, faz parte do judaísmo, mas se distancia deste

pela interpretação da história. Nesse sentido, não há influência

helênica, mas reminiscências da escola historiográfica

deuteronomista preservadas pelo movimento hassideu.

Realmente, Jesus de Nazaré esteve mais próximo do povo

do que de partidos templares e políticos, com as suas esperanças

escatológicas, interpretadas por alguns círculos cristãos de

letrados em linguagem apocalíptica. O risco, do ponto de vista

da intelectualidade farisaica, era a perda de eventuais membros,

resultando em menor controle das tensões de caráter protestante

no templo jerosolimita e das instituições.

A demonstração de um evento ou a interpretação de um

diálogo não se localiza fora da tradição, de forma que seria

bastante conveniente atribuir a confirmação de uma alocução do

judaísmo antigo, historicamente fundamental, ao Jesus de

Nazaré no início do século I. Com efeito, os cristãos falam de

Jesus mediante a Bíblia hebraica em versão grega (Septuaginta),

em cujas comunidades a recepção e a transmissão preservavam

a oralidade traditiva. Nos Evangelhos, conformado à maneira de

anais e manual catequético, o registro obedece às tradições das

comunidades formativas. É bem verdade que não se deve

ignorar a possibilidade de criação de conteúdos ―orais‖ nos

processos literários. Segundo Seters (2008, p. 66), a transmissão

de uma tradição pode ocorrer em um ambiente vital nunca

vivido pelo personagem central. Essa observação é válida para a

escrituração, que ―subentende um controle, daí as várias etapas

de canonização ou revisão de textos‖ (TAYLOR, 2010, pp. 30-

31). A favor da linguagem semítica, processada pelos cristãos

em ambiente siro-palestino, preservou-se uma memória no

Evangelho de Mateus 26.73: metà mikròn dè proselthóntes oi

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hestôtes eipon tô Pétro alethôs kaì sù ex aùtôn ei kaì gàr hê

laliá sou dêlón se poieî (―depois de pouco, tendo-se

aproximado, os presentes disseram a Pedro: verdadeiramente

também tu dentre eles és, pois também o modo de falar

manifesto te faz‖),85

redação modificada nos outros três

Evangelhos; depõe a favor ainda a justificativa de que ―os

escritos cristãos do período pós-70, quando falavam do

judaísmo, referiam-se sempre a esse judaísmo rabínico

emergente‖ (BROWN, 2004, p. 150). Dito por outras palavras,

os cristãos estavam conscientes da influência dos mestres que se

fixaram na costa da Palestina. Nas controvérsias entre si

certamente não se ignoravam, de ambos os lados, as respostas

proverbiais.

II. A SIMBIOSE DE UMA IDENTIDADE

CULTURAL

No processo de construção identitária do cristianismo

formativo, os primeiros cristãos valem-se dos elementos da

linguagem religiosa, cerimoniais antes que textuais (por ex., a

comensalidade, as memórias sapienciais, as preleções de envio,

os provérbios etc.), em que estão situados; para interpretar sua

própria veridicidade, reportam-se às listas genealógicas e aos

mitos de fundação (listas: Mateus 1.1-17; Lucas 3.23-38;

etiologia: Marcos 9.2-8; par. Mateus 17.1-8; Lucas 9.28-36).

85

As traduções e transliterações foram realizadas pelo autor diretamente do

texto grego a partir das obras: NESTLE, Erwin; ALAND, Kurt (eds.). Novum

Testamentum Graece. 27. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2001;

RUSCONI, Carlo. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo:

Paulus, 2003.

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Nos embates de características forenses, em que é necessário

afirmar o chamamento messiânico como meio de superar uma

pública expulsão das instituições religiosas judaicas, diga-se,

templo e sinagogas, a memória cultural tem a função, a um só

tempo, de libertar para uma nova cultura e de mecanismo de

resistência.

A memória cultural e suas motivações não são para ocupar

o lugar do cotidiano (ASSMANN, 2010, p. 77). No cristianismo

formativo, com o dom da palavra, a memória cultural serve à

mediação de causa libertadora; por isso, o protagonismo cristão

é antes superação da condição humana galilaica com alteridade

e, simbolicamente, base de elaboração das ordens e regras das

comunidades de fé em construção. ―La formation culturelle est

le médium par lequel une identité collective s‘élabore et se

maintient de génération en génération‖ (ASSMANN, 2010, p.

125).

Assim, as relações de Jesus de Nazaré são vistas pelos

evangelistas, a cada nova escritura e a cada nova hermenêutica,

sob uma ótica espacial que desconhece paralelos. A relação

entre Jesus e João Batista pode ser descrita como ―uma relação

discipular‖, em que Jesus demonstra admiração e

reconhecimento pelo mestre João Batista, no Evangelho de ditos

Q (Q 7.24-28); mas pode, em interpretação teológica posterior,

apresentar João Batista subordinado a um Jesus cuja missão

independe da presença do precursor, no Evangelho de Marcos

(Mc 1.14-15). Também a vocação dos discípulos: em Q 9–10

são os galilaicos, cheios de admiração, que se apresentam ao

seguimento; nos Evangelhos é Jesus de Nazaré quem os convida

e vocaciona. É por isso que Guijarro Oporto (2006, p. 86), com

razão, afirma que a continuidade entre Jesus e os primeiros

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cristãos, baseado em Q, ao contrário dos Evangelhos canônicos

com as gerações seguintes, não acontece através do kerygma de

sua morte e ressurreição, mas na proclamação da iminência do

reinado de Deus. A isso podemos associar os vigorosos embates.

Nos embates com os intelectuais e as autoridades judaicas,

Jesus de Nazaré assumia uma posição de destaque ao acentuar a

importância da sua resposta, não raro, uma reprimenda. A

fórmula introdutória enfática começava com o ‟amen. Essa

palavra é empregada em predições, vaticínios e argumentações;

portanto, em suas descrições de acontecimentos e instruções,

membros das comunidades formativas deixavam claro que Jesus

de Nazaré não fazia nenhum pronunciamento litúrgico, como

certamente faria um religioso judeu. ―Quem fala ou escreve sabe

do nexo entre os atos e seus efeitos e, portanto, conhece

particularmente as consequências futuras do agir humano‖

(BERGER, 1998, p. 227). O ‟amen autoriza a fundamentação

argumentativa.

Tomamos um vocábulo de resistência do Jesus de Nazaré,

devidamente semantizado pelos evangelistas, o ‟amen. É uma

palavra de ―afirmação‖, e a sua forma verbal, ‟aman, significa

―criar, educar, amarrar, juntar‖ (SZPICZKOWSKI, 1998, p. 24);

sua escrita adverbial ‟amnam significa ―realmente, deveras,

certamente‖ (BEREZIN, 1995, p. 22). De fato, o ‟amen

caracteriza a ipsissima vox Iesu e constitui ―uma nova forma de

expressar-se, completamente singular‖ (JEREMIAS, 2006, p.

143). Não é atestado o uso do ‟amen introdutório à maneira

cristã na literatura judaica (―nem em textos aramaicos, nem em

textos hebraicos ou gregos‖) para anunciar uma afirmação

(JEREMIAS, 2006, p. 147). Seu uso na literatura judaica não era

para reforçar as próprias palavras, procedimento de Jesus de

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Nazaré, ou fazer próprias as palavras de outro; no ambiente

litúrgico sequer era usado para responder a uma prece.

Tradicionalmente, o ‟amen integra uma fórmula

testemunhal, e é evidente a sua origem historiográfica, nos

Evangelhos, de fonte escrita, situando a comunidade e seu líder

no âmbito das comunidades religiosas do judaísmo antigo. Essa

aproximação não é casual no contexto da ―expectativa

messiânica‖.

Mas como ocorre a sua recepção no cristianismo siro-

palestino?

O universalismo da mensagem evangélica, com aparente

contradição, prioriza os seguimentos marginais. Ouk apestálen

ei me eis tà próbata tà apololóta oíkou Israél (―Não fui enviado

senão para as ovelhas perdidas de casa de Israel‖ [Mateus

15.24b; cf. 10.5-6]). Jesus de Nazaré, ―operando dentro dos

parâmetros da questão da identidade judaica‖ (FREYNE, 2008,

p. 73), visita a alta Galileia, onde residiam muitos judeus, de

Cesareia de Filipe à Síria nos limites da ―terra de Israel‖. Com o

seu projeto de distanciamento das elites dirigentes em curso, a

Galileia e as aldeias limítrofes são-lhe estratégicas. Como a Síria

era vista como território contíguo a Israel, sendo-lhe cobrado

impostos sobre a produção comercializada dentro da ―terra de

Israel‖, respectivamente Jerusalém, e a Galileia era a região

onde se encontrava o maior contingente de famílias espoliadas

pelos herdeiros de Herodes, o Grande, especificamente por

Herodes Antipas, as incursões de Jesus nos territórios de Tiro,

Gadara, Decápole e nas aldeias de Cesareia de Filipe, e as suas

travessias missionárias pela Samaria visavam a encontrar

aquelas ―ovelhas perdidas de Israel‖. É inconteste que os

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habitantes daqueles territórios eram excluídos pelos citadinos

quanto à identidade judaica.

Do ponto de vista de Jesus, essa gente vivia

no interior das fronteiras de Israel tal como estas

eram entendidas idealmente, e eles também

deviam ser certificados de que estavam convidados

a participar da nova ―família‖ que ele ora reunia

para o banquete de Abraão, Isaac e Jacó

(FREYNE, 2008, p. 76).

Assim, explicitamos uma demanda dos discípulos,

segundo o redator do Evangelho de Mateus, sob a legítima

missão de Jesus de Nazaré por ele mesmo, embora o projeto

salvífico não tenha sido exclusivamente destinado às ovelhas

marginais dos limites ao norte da Palestina, ―mais plutôt en

terme de priorité à la fois théologique‖ (HAUDEBERT, 2003, p.

182) do evangelista. Mas ainda não respondemos à pergunta

acima formulada. Nosso pressuposto é que a construção da

identidade e da autêntica memória da Igreja formativa – que não

acontece no âmbito político-imperial nem na resolução das

querelas templares – fundamenta-se na linguagem semítica

fundadora; a convivência seletivamente afetiva e celebrativa

propiciou a sua sacralidade (cf. Atos dos Apóstolos 2.42-47;

4.32-35).

A propagação dos primeiros escritos evangélicos (com

novo significado, cf. Marcos 1.1) surge na Síria-Palestina com a

proclamação dos carismáticos itinerantes judeu-cristãos

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demonstrando o poder divino de Jesus de Nazaré. A primeira

coleção de histórias ordenadas de Jesus é assumida pelo autor do

Evangelho de Marcos entre os anos 70 e 80. ―A convergência de

várias tradições de Jesus sugere uma grande metrópole do

Oriente, Antioquia, por exemplo, como lugar de composição de

Marcos‖ (KÖESTER, 2005, p. 182). Como a fonte mais

importante desse Evangelho é uma narração da Paixão do Jesus

de Nazaré (Marcos 11.1–16.8), convém enumerar os logia onde

aparece o ‟amen, a fórmula amén légo hymin (―‘amen, digo a

vós‖): Marcos 11.23; 12.43; 13.30; 14.9. Os demais trechos

arcaicos em que aparece o ‟amen são: Marcos 3.28; 8.12;

9.1,41; 10.15,29.

O outro Evangelho seguramente siro-palestino, da Síria

ocidental, é o de Mateus, escrito não depois dos anos 80. Das

cerca de 30 frases com ‟amen, 18 estão em perícopes com

trechos arcaicos, os logia: Mateus 5.18; 5.26; 6.2,5,16; 8.10;

10.15,21; 11.11; 13.17; 18.13,18; 21.31; 23.36; 24.47;

25.12,40,45.

À maneira de uma conclusão. Sem olvidar o cuidado que

os judeus tinham de não tomar o nome de Deus (Yhwh) em vão,

substituindo-o por palavras como ―o Nome‖, ―o Bendito‖, ―o

Céu‖, ―o Eterno‖ etc., importa trazer ao centro do debate sobre o

Jesus histórico a asserção amén légo hymin (―‘amen, digo a

vós‖), uma fórmula introdutória, que na boca de Jesus de Nazaré

corresponde ao dito profético veterotestamentário koh ‟amar

Yhwh (―assim diz Yhwh‖) e o situa no âmbito da linguagem e da

resistência socioétnica do antigo Israel, mas, coetaneamente, no

judaísmo marginal siro-palestino.

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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ

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A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos

João Oliveira Ramos Neto86

Este capítulo objetiva apresentar alguns aspectos da vida

cotidiana dos primeiros cristãos. Alguns autores, teólogos por

formação, já trabalharam tema semelhante, como John E. Stambaugh

e David L. Balch, que escreveram ―O Novo Testamento em seu

ambiente social‖. Outros autores, como Merrill C. Tenney, autor de

―O Novo Testamento: Sua origem e análise‖ e Joachim Jeremias,

autor de ―Jerusalém nos tempos de Jesus‖, também teólogos, deram

suas importantes contribuições, ainda que o cotidiano dos habitantes

da Palestina dos dois primeiros séculos da era comum não tenha sido

exatamente eleito por eles como objeto específico de estudo.

Daremos destaque, no entanto, à obra do historiador francês

Henri Daniel-Rops, que escreveu ―A vida diária nos tempos de Jesus‖,

não por ele ser historiador, mas porque sua obra é, atualmente, a

análise mais exaustiva sobre o tema em questão. Além disso, entre os

principais autores que já trabalharam o Cristianismo Primitivo, sobre

o cotidiano dos primeiros cristãos, não encontramos discordâncias

relevantes que justifique um profundo debate historiográfico. Por isso,

para a escrita deste capítulo, inicialmente demos prioridade para as

pesquisas de Daniel-Rops em diálogo com as outras obras que citamos

ao final, na bibliografia, com ênfase nas concordâncias.

O Contexto Político

Antes de abordamos aspectos como a casa, a família e o

trabalho, é importante recordamos o contexto político em que viviam

os primeiros cristãos nos dois primeiros séculos da nossa era. A

86

Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Goiás,

bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro e mestre em

História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Palestina, território que atualmente é o Estado de Israel, encontrava-se

dividida basicamente em três territórios: Ao sul, a Judéia (de onde

origina-se a palavra ―judeu‖), cuja liderança político-econômica era

exercida pela cidade de Jerusalém. Ao norte, a Galiléia, importante

reduto de pescadores. Entre elas, uma região conhecida como

Samaria. Importante destacar também que o nome ―Palestina‖ não era

usado pelos autóctones, mas fora pejorativamente dado àquela região

de forma arbitrária pelos romanos.

Antes da dominação política pelos romanos, a região que daria

origem às duas grandes religiões monoteístas (judeus e cristãos) foi

palco de diversos conflitos e disputas. Conforme narrado pelo Antigo

Testamento, foi para lá que Moisés, após a fuga do Egito, levou os

descendentes de Jacó, posteriormente chamado Israel. Uma vez ali

fixados, dividiram-se em doze tribos, as quais receberam o nome dos

filhos do supracitado patriarca - sendo que a tribo dos levitas,

exclusivamente, não recebeu território.

Após o reinado de Salomão, conflitos no reinado de seu filho

Roboão levaram à divisão do reino: As nove tribos do norte

rebelaram-se contra o domínio de Jerusalém e estabeleceram o reino

de Israel, em oposição às duas tribos do sul, Judá e Benjamin, mais os

levitas. Leais à Jerusalém, essas tribos do sul estabeleceram-se

simplesmente como Judá. Posteriormente, o reino do norte foi

conquistado pela Assíria e o reino do sul pelos babilônicos. É sob o

domínio da Pérsia, tendo Ciro como imperador, que eles retornarão

para a Palestina. Por fim, liderados pelos Macabeus, expulsam os

gregos, mas em breve são ocupados pelos romanos.

Com isso, ressaltamos que o aspecto cotidiano que

destacaremos deve levar em consideração dois importantes pontos: O

primeiro é que os habitantes da Palestina, nos dois primeiros séculos

da nossa era, doravante neste capítulo denominados apenas de

hebreus, viviam sob a ocupação política dos romanos. O segundo é

que eles tinham, como tradição e identidade, consciência desse

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passado, resultado de uma tradição oral responsável por uma grande

auto-estima de quem tinha convicção de ser o povo escolhido de

Deus. Sendo assim, era extremamente ultrajante ser dominado

politicamente por aqueles que eles consideravam pagãos, ainda que tal

dominação trouxesse alguns benefícios. Vamos explicar melhor.

Quando os romanos dominaram o território dos hebreus,

encontraram um momento propício para tal investida, levando em

consideração que o período dos Macabeus foi marcado por intensas

lutas internas. Isto é, apesar de aspectos negativos, a dominação

romana foi vista positivamente pelos hebreus por ter sido responsável

pelo fim das disputas internas. Tal mérito deve ser dado

principalmente a Herodes, o grande, que governou a região até o ano

6. Além disso, sua preocupação em agradar os hebreus levou-o a

construir grandes obras, como a reconstrução do templo de Salomão.

Depois da sua morte, a região foi dividida. Seu filho, Herodes

Antipas, governou a região da Galiléia. Já a Judéia passou a ser

governada diretamente pelos procuradores romanos nomeados pelo

imperador.

Uma importante característica da dominação romana na

Palestina era a liberdade que os hebreus tinham para seguirem a lei

dada por Moisés e realizarem seus cultos e festas religiosas, e também

estavam desobrigados do culto ao imperador. Além disso, Herodes, o

grande, atribuiu poder de fato ao Sinédrio. Composto por setenta

homens, mais o líder – o sumo sacerdote – e sediado em Jerusalém, o

Sinédrio servia como um conselho político-religioso (duas esferas que

não podem ser vistas separadamente nesse contexto) dos hebreus.

Essas regiões, Judéia, Samaria e Galiléia, tinham significados

religiosos profundos. Os habitantes da Judéia, região que sediava o

Sinédrio e o templo de Salomão reconstruído por Herodes, o grande,

se consideravam legítimos praticantes da lei mosaica, posto que

acreditavam manter uma certa pureza superior, por supostamente não

terem se envolvido com os povos que ocuparam a região enquanto

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estiveram no cativeiro babilônico. Já a Samaria e a Galiléia eram

regiões daqueles que eram considerados filhos ilegítimos de Abraão,

posto que inferiores, já que não observavam integralmente a lei

mosaica e se misturavam com outros povos. É desse contexto que

surge a grande popularidade da parábola do Bom Samaritano.

Segundo o relato bíblico (Lc 10,29-37), Jesus, em Jerusalém,

teria contado uma história em que um homem fora assaltado e

agredido em uma viagem e, uma vez caído e abandonado na estrada,

fora desprezado por aqueles que se consideravam judeus puros e

superiores - os habitantes da Judéia, mas socorrido justamente por

aquele que era religiosamente considerado inferior – o bom habitante

da região da Samaria. É nesse contexto também que podemos

compreender o relato que os evangelhos bíblicos dão ao julgamento e

morte de Jesus: Estando em Jerusalém e acusado pelo Sinédrio, cujo

sumo-sacerdote na época era Caifás, Jesus fora levado para Pôncio

Pilatos, procurador da Judéia. Este, não querendo se comprometer,

alegou que Jesus, sendo galileu, deveria ser julgado por Herodes

Antipas. Jesus foi enviado a Herodes e, por este, devolvido a Pilatos,

que ficou famoso pelo relato de que teria ―lavado as mãos‖ (Mt

27,24).

Ao nos debruçarmos sobre a vida cotidiana no Cristianismo

Primitivo, é importante termos tudo isso em mente porque a fé cristã

surgiu como uma seita dentro do judaísmo e é isso que iremos estudar.

Importante também esclarecermos que seita, aqui, não tem o sentido

teológico, muitas vezes pejorativo, mas o sentido sociológico

weberiano, que trata de um conceito que explica que as novas

religiões costumam nascer dentro de antigas tradições, como grupos

agregados em torno de um líder que geralmente tem o desejo de

efetivar uma determinada purificação. Ainda que não seja propósito

do líder romper e começar uma nova religião, suas propostas de

reforma costumam se frustrar dentro da primeira instituição e

sobrevivem quando os seguidores rompem e fundam uma nova

estrutura.

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Este capítulo não objetiva a análise das doutrinas que foram

pregadas por Jesus e seus discípulos e seguidores, mas analisar e

demonstrar como era o cotidiano na região da Palestina quando do

surgimento do Cristianismo no primeiro século da nossa era.

Compreender como era esse cotidiano ajuda a esclarecer como foi a

recepção das novas propostas cristãs, o que influenciaria todo o

Ocidente até os dias de hoje. Isso posto, passemos à análise do

cotidiano.

A Vida Afetiva

A família judaica que habitava a Palestina no contexto dos

primeiros cristãos era uma instituição extremamente importante. Sua

motivação não era somente afetiva, mas também e, principalmente,

uma comunidade religiosa, onde os encontros tinham caráter de culto,

cujo pai era o celebrante. Daí vermos no Novo Testamento as famílias

reunidas para celebrarem festas como a Páscoa, que inicialmente

celebrava a fuga dos hebreus da escravidão no Egito. Importante não

incorrermos no erro do anacronismo e pensarmos que a migração

religiosa era, naquele contexto, algo de foro íntimo e individual, como

passou a ser no processo da modernidade. Ao contrário, a

religiosidade estava ligada à família e uma vez que o pai judeu

aderisse à nova fé cristã, toda família era também conjuntamente

batizada.

Os primeiros cristãos, no contexto da cultura judaica, tinham

uma grande preocupação em perpetuar a família, o que fazia com que

o celibato fosse visto de forma bastante pejorativa. Ele só seria

efetivado para os sacerdotes e bem posteriormente, com Constantino,

no terceiro século. Por outro lado, ao contrário do que muitas vezes é

difundido pelo senso comum, a poligamia não era tão comum entre

eles. Ela fora praticada pelos patriarcas e grandes reis conforme relata

o Antigo Testamento, mas, no Cristianismo Primitivo, a monogamia

era um ideal elevado. Até porque, os primeiros cristãos eram

majoritariamente da Galiléia, região pobre que, justamente por isso,

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não permitia ao homem sustentar mais de uma esposa ao mesmo

tempo.

Os casamentos aconteciam cedo, até porque, a expectativa de

vida naquele contexto não era muito grande. Os homens, em geral,

casavam-se em torno dos 18 anos, e as mulheres entre os 12 aos 14.

Geralmente o cônjuge era escolhido pelos pais, que apresentavam seus

filhos e concediam o período de um ano para se conhecerem. Por isso

que a tradição cristã afirma que Maria encontrou-se inexplicavelmente

grávida quando ainda estava ―noiva‖ de José. Eles supostamente

estariam nesse período de conhecimento mútuo.

Uma vez definido que os jovens se casariam, passava-se à

cerimônia de casamento, que era uma festa grandiosa. Convidava-se a

cidade inteira para uma festa que durava uma semana. Por isso que

encontramos na Bíblia a narrativa da ida de Jesus a um casamento de

pessoas que ele não conhecia, conhecida como ―Bodas de Caná‖,

conforme João 2, 1-11. O homem buscava a futura esposa em sua casa

e uma procissão festiva com as amigas dela seguia até o local da festa,

que geralmente era na casa da família dele. Ao chegarem lá, os

homens e as mulheres se separavam e festejavam até o dia seguinte,

quando se reuniam para um grande banquete e os convidados

ofereciam os presentes ao novo casal. Depois, o casal se retirava,

enquanto os convidados permaneciam festejando, retornando no dia

seguinte e novamente se juntando à multidão.

Durante o casamento, exigia-se fidelidade da mulher, ao passo

que esta não podia exigir o mesmo do marido, desde que os atos do

marido não atrapalhassem a sua casa. Daí que o homem não podia se

deitar com a mulher de outro homem, o que acarretaria o castigo para

si também, mas podia deitar-se com prostitutas. Pela lei, a mulher

casada flagrada com outro homem era salva se tivesse sido obrigada a

isso, sem nenhuma oportunidade para se defender.

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O divórcio existia e era praticado, mas não com muita

frequência, já que um homem rejeitar uma mulher despertava a ira dos

pais e irmãos dela sobre ele. Somente o homem podia pedir o divórcio

e quando o fazia, geralmente era por motivo de esterilidade – que,

acreditava-se, era sempre da mulher. Um homem e uma mulher não

podiam conversar ou se cumprimentarem em público. Talvez seja por

ter sido tão extraordinário que os autores bíblicos relataram várias

vezes Jesus conversando com mulheres, como em João 4.

Após o casamento, nasciam os filhos. Ou, pelo menos,

deveriam nascer, já que a esterilidade era apavorante, vista como

castigo divino, quase sempre associado à mulher e a esterilidade

voluntária, tida como um pecado grave. Uma vez nascidos e

sobrevividos às grandes taxas de mortalidade infantil, o que era

celebrado como o mais feliz dos acontecimentos, tornavam-se, até a

maioridade, propriedade do pai, que podia dispor deles como

quisessem. A mulher era considerada impura depois do parto e, depois

de um período de 40 a 80 dias, tinha que oferecer um cordeiro ou duas

rolinhas como propiciação. Os autores neotestamentários tiveram a

preocupação de relatar que Maria, depois do nascimento de Jesus,

atentou para essa determinação.

O nome da criança era geralmente escolhido pelo pai e, em

geral, acreditava-se que a escolha do nome estava ligada ao caráter e

destino de quem o recebia. Também não tinham sobrenome e eram

conhecidos com alguma informação a mais, como o local de origem, a

cidade onde morava ou a ascendência genealógica. Daí Jesus ter sido

conhecido como ―Jesus de Nazaré‖ ou seu discípulo apresentado

como ―Tiago, filho de Zebedeu‖.

Os filhos iam às sinagogas aprenderem, ou melhor, decorarem a

Lei com os rabinos, sendo que, dos 12 aos 13 anos, iam ao Templo

para o ―exame final‖. Uma vez aprovados, alcançavam a maioridade.

As mulheres, que não tinham função religiosa no templo, não

frequentavam as sinagogas, mas geralmente os pais ensinavam a lei

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para elas em casa. Também aprendiam o ofício dos pais. As meninas

aprendiam as tarefas com as mães e os filhos acompanhavam o pai na

sua profissão.

A Alimentação e a Casa

Como todas as esferas da vida no contexto dos primeiros

cristãos era de alguma forma ligada à religião, tudo que faziam era por

eles considerado sagrado, inclusive os objetos e a comida. Em geral,

faziam duas refeições por dia, uma cedo, antes de irem para o

trabalho, e outra à tarde, no retorno, sendo esta segunda a mais

importante, pois era a ocasião de alimentar-se com convidados e

amigos. Daí tantas narrativas de Jesus entrando nas casas e comendo

com as pessoas (Lc 19,2-10).

Para as refeições, os homens reuniam-se em um cômodo

próprio, que geralmente era o principal cômodo da casa. Não tinham

mesa e sentavam-se no chão, ao redor da comida. Daí a importância

de se lavar inclusive os pés, como os evangelhos tantas vezes relatam.

As mulheres acompanhavam de outro cômodo, à disposição para o

servirem quando necessário. O pão era o principal alimento,

considerado tão sagrado que não podia ser cortado, somente partido

(Is 58,7). Claro que as condições financeiras variavam o tipo de

refeição, quando pobres comiam pão de cevada e os ricos comiam pão

de trigo.

O leite, de cabra ou ovelha, era apreciado, mas não seria

correto imaginá-lo escorrendo abundantemente sobre copos, uma vez

que o excesso de calor tornava-o endurecido. Era comum que virasse

queijo ou manteiga. O mel, por sua vez, funcionava como açúcar. A

carne era excepcional, sendo consumida só pelos mais ricos e

especialmente em momentos festivos, como narrado na parábola do

filho pródigo, em que Jesus conta que ao voltar para casa, o pai do

filho rebelde matou um novilho para comemorar. Os pobres quase

nunca matavam um animal para comer, pois era sua fonte de sustento

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em vários aspectos – lã, leite, etc. (mas não apreciavam os ovos) –

mas, quando assim o faziam, era geralmente cabrito ou cordeiro. A

carne de porco, de lebre e de camelo não podia ser consumida. O mais

comum, no entanto, era mesmo o peixe.

A estrutura das casas era bem simples. Em geral, eram

formadas por um cômodo principal onde eram realizadas as refeições

com os convidados. Acima do telhado, havia um espaço bastante

utilizado também. Quando aberto, podia ser usado para secar roupas e

onde as pessoas se sentavam nas noites de verão para conversar.

Quando fechado, também era chamado de cenáculo. Usado como

quarto de hóspedes, tinha uma escada externa para que o viajante

pudesse entrar e sair quando quisesse, livremente, sem incomodar os

moradores.

As casas mais pobres eram feitas de tijolos de barro e a dos

mais ricos eram feitas de pedras. Eram sempre construídas próximas a

alguma fonte de água, sendo o mais comum, o poço. A comida era

feita no chão, porque não tinha cozinha. Os telhados eram feitos de

taipa. Havia poucos móveis no interior, pois, ao contrário dos

romanos, a preocupação dos móveis nas casas comuns era

exclusivamente funcional e não estética. Geralmente havia um lugar

para dormir, um lugar para as refeições e uma arca.

As Profissões

Ao contrário dos gregos e romanos, que desprezam o trabalho

e relegavam-no a quem consideravam inferiores, ter e desempenhar

uma função, para os hebreus e os primeiros cristãos da Palestina, era

algo extremamente importante. Como dissemos, em geral, seguia-se a

profissão do pai, isto é, hereditariamente, e o ócio era condenado

como pecado.

A profissão mais popular e valorizada era a agrícola. Havia

um apreço especial pelo cultivo da terra e isso pode ser visto pelas

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diversas narrativas neotestamentárias que fazem referência a

sementes, semeador, arado, parreira e oliveira. Jesus, segundo João

15, comparou-se a uma videira. O produto da terra sempre foi o

principal fundamento da economia palestinense. Os principais

produtos cultivados era a cevada e o trigo para a venda. Para o próprio

consumo, as famílias costumavam ter uma pequena horta, inclusive

com algumas ovelhas que ofereciam lã e leite.

Já os pastores não eram portadores de muita credibilidade. Em

geral, eram injustamente vistos pela população com desdém, por

supostamente terem uma atividade aparentemente fácil, o que não era

verdade. Os pastores eram contratados para proteger enormes pastos

de ovelhas constantemente ameaçadas por hienas, chacais e lobos, e

ainda sofrer no calor do dia e a geada da noite. Segundo o relato

bíblico, por ocasião do nascimento de Jesus, os pastores se

encontravam nos campos, característica do verão, o que tornaria o

evento, no hemisfério norte, impossível de ter ocorrido em dezembro.

No inverno, os pastores e as ovelhas não ficavam nos campos, mas

protegidos do frio em lugares cobertos.

Por outro lado, os pescadores eram muito bem visto pela

população, desfrutando de uma posição relativamente honrosa, talvez

porque supriam um dos alimentos mais importantes. Além disso, os

habitantes da Palestina tinham medo do mar e admiravam os

pescadores como corajosos. Mesmo com toda essa admiração, não

eram abastados. Viviam em torno do lago conhecido como Mar da

Galiléia, que era, por si só, como vimos, uma região desfavorecida

economicamente. A madeira era escassa e os pescadores em geral

usavam barcos de papiro e se concentravam em cidades próprias,

como Betsaida.

Além dos agricultores, pastores e pescadores, recebe destaque

também os artesãos, dos quais José, e provavelmente Jesus, teria sido

um, posto que carpinteiros. Na nossa sociedade atual, faz-se distinção

entre lenhador, carpinteiro e marceneiro, mas entre os primeiros

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cristãos, só havia uma designação para todos os ofícios que lidava

com a madeira. Quem, como José, tivesse exercido essa profissão,

fazia o trabalho desde derrubar as árvores até a confecção de

utensílios e partes da casa. Em geral, a madeira do sicômoro era a

mais apreciada. O cedro era caro, para poucos, pois importava-se do

Líbano. O uso mais comum era da madeira da oliveira, da videira e do

cipreste.

Todos os artesãos, como os tintureiros, alfaiates, escribas,

tendeiros, oleiros, ourives e ferreiros tinham sua importância e, com

excessão do sábado, podiam ser facilmente reconhecidos na rua, já

que tinham que usar algo que os identificasse – o carpinteiro

provavelmente andava com uma lasca de madeira atrás da orelha. Os

escravos, por sua vez, usavam um furo na orelha. Os profissionais

agrupavam-se próximos um dos outros por diversas questões. Se José

e Jesus eram carpinteiros e eram de Nazaré, é bem provável que lá

fosse um bom lugar para se encomendar a construção de algum

artefato de madeira.

Outra profissão presente entre os primeiros cristãos eram os

comerciantes, com bem menos prestígio que os demais. Afinal, muitas

vezes, lidavam com aquilo que não era bem visto pela população,

como os curtidores, que lidavam com a carne de porco, e os

vendedores de perfume, cuja clientela era predominantemente de

prostitutas. Muitas vezes, estrangeiros eram quem exercia essas

funções. O comércio era predominantemente exercido por terra –

como afirmamos acima, os palestinos e primeiros cristãos em geral

desprezavam o mar – cujos mais ricos usavam camelos ou burros para

a locomoção e eram alvo de outra atividade, os ladrões, talvez menos

desprezados que os cobradores de impostos.

O Vestuário

Encontramos na narrativa bíblica a informação de que Jesus

teria dito que se para alguém fosse pedida a túnica, esta deveria deixar

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também a capa (Lc 6,29). Isso é difícil de ser compreendido quando a

referência que se faz à vestimenta dos primeiros cristãos em filmes e

teatros do senso comum quase sempre reporta-se às roupas usadas

pelos árabes e não pelos palestinos.

A roupa básica que eles usavam era chamada de túnica e cobria

quase todo o corpo. Em geral eram feitas de linho. Os mais pobres

usavam de linho grosso e os mais ricos usavam de linho fino. Ao

contrário dos árabes, por exemplo, não usavam nem seda e nem

algodão. A túnica era amarrada por um cinto que também servia de

bolsa. As cores eram variadas e a púrpura, retirada do murex, era

demonstração de poder.

Diferente da túnica, a capa era uma roupa especial, um grande

tecido, com um furo para a cabeça, que era colocada por cima da

túnica. A capa servia tanto como roupa especial para cerimônias

importantes, como roupa de frio para esquentar no inverno. Foram

essas capas que, segundo o relato bíblico, os habitantes de Jerusalém

teriam jogado no caminho de Jesus para recepcioná-lo (Lc 19,35-38).

Ambos, homens e mulheres, usavam túnicas, que eram diferenciadas

pelos detalhes. As das mulheres eram mais delicadas.

Os primeiros cristãos, herdeiros das tradições dos hebreus,

também usavam bastante jóias, principalmente anéis, ainda que não

usassem brincos. Por fim, como calçados, usavam as sandálias,

geralmente feitas de couro de camelo com um solado de madeira, que

deveria ser retirada sempre que entrassem nas casas, sinagogas ou no

templo.

Outros Detalhes

Os primeiros cristãos, herdeiros das tradições judaicas,

apreciavam muito a música, mas não produziam arte que retratasse o

rosto ou as formas humanas, como as esculturas, temerosos com o

primeiro mandamento do decálogo (Ex 20). Davam bastante ênfase à

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higiene, até como mandamento religioso. Tomavam banhos, se

lavavam antes das refeições, mas ao contrário dos romanos, não

tinham costume de se barbear. As doenças também era objeto da

religião, que as via quase sempre como castigo divino. As principais

eram as oftalmológicas e as doenças de pele, que eram todas por eles

caracterizadas como lepra.

Este breve capítulo, portanto, não teve como objetivo esgotar o

tema, o que seria impossível em poucas páginas, senão em apresentá-

lo introdutoriamente, inclusive para despertar o interesse de novos

pesquisadores. É fato que os cristãos logo se expandiram para além

das fronteiras da Palestina e onde a fé cristã chegou, influenciou e

também foi influenciada pelos hábitos da população local. Cada

cenário, portanto, deve ser investigado com um recorte espaço-

temporal próprio. Neste capítulo, no entanto, enfatizamos apenas o

contexto do surgimento dos primeiros cristãos entre os judeus que

habitavam a Palestina no início da nossa era.

Abaixo, compartilhamos a bibliografia que foi utilizada como

pesquisa para este capítulo e que também será a nossa sugestão para

quem desejar aprofundar no tema. No entanto, apesar de vasta

bibliografia, o tema do cotidiano dos primeiros cristãos permanece

pouco explorado e pouco divulgado na academia brasileira.

Considerando o recente prestígio que a História Cultural, a Micro-

História e as biografias, principalmente de pessoas anônimas, estão

recebendo na academia ultimamente, esperamos ter, com essa

introdução, contribuído para fomentar a ampliação do debate.

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Bês em Deir el Medina e no Mediterrâneo (1540-400 a.C)

Margaret M. Bakos87

Apresentando o deus Bês

A primeira menção ao nome do deus Bês aparece nos textos

das pirâmides (cerca de 2686 - 2181 a.C). E uma de suas

representações mais antigas está inscrita em um bastão mágico, usado

em cultos pré-dinásticos no Egito antigo. Bês é normalmente

representado como um anão barbudo, com uma grande cabeça, língua

protrusa, nariz achatado, sobrancelhas e cabelos densos, orelhas

grandes, braços grossos e longos, pernas arqueadas e cauda.

Considerado como um deus puramente doméstico, seu epíteto era

Senhor de Punt e/ou Senhor da Núbia, centros de onde,

possivelmente, era originário.

Na presente comunicação, pretende-se demonstrar que Bês, a

partir do continente africano, passou a fazer parte do imaginário

religioso de povos de diferentes etnias e rituais. Cultuado, no

princípio, por pessoas humildes, com o tempo, tornou-se também o

protetor das elites: era adorado em numerosos sítios antigos, ao longo

do Mar Mediterrâneo e no entorno continental do Egito. É de se

questionar sobre as estratégias empregadas na difusão de sua

popularidade, bem como sobre o papel por ele desempenhado na vida

dos operários faraônicos, especialmente daqueles que vivam na vila de

Deir el Medina.

Mais alguns dados

O nome Bês é usado para designar um número significativo

tanto de divindades, como de monstros, inclusive uma criatura, como

87

Professora adjunta da PUC-RS. Bolsa de Produtividade CNPq.

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ensina Cerny, conhecida como Aha, o lutador. As investigações de

ponta vêm levantando a hipótese de que na origem se tratava de um

único deus, ao qual foram sendo dedicados cultos com diferentes

funções. Segundo Brieva88

: Tomemos pois o nome de Bês como uma

unidade dentro da aparente multiplicidade, até que sejamos capazes

de resolver o problema que ela apresenta.

Entretanto, é com a imagem de Bês que o deus comparece em

cidades antigas como Kahun, nas tumbas do Ramesseum e nas

Mammisi, denominação empregada para indicar as casas de

nascimento do antigo Egito (SHAW & NICHOLSON, 1995: 54). Bês

foi, aos poucos, tornando-se um deus egípcio bastante popular, talvez

o mais conhecido fora do Egito: foi amado também pelos gregos e

romanos que dominaram o país, aparecendo, inclusive, fardado como

um legionário conquistador itálico. Os greco-romanos, é mister

informar, copiaram também as práticas culturais de outro forte ramo

dos indoeuropeus: os persas. Os iranianos, criadores do império

aqueménida parecem ter feito uma hibridação dos atributos de Bês

com os de seu deus maior, Mithra, tendo em vista seus poderes

protetores, a partir da conquista do Egito, por Cambises (525 a.C). A

dominação persa possibilitou um estreito contato entre a cultura

egípcia e as culturas da Ásia Ocidental. Bês veio, possivelmente, junto

com artesãos devotos, inscrito nos amuletos. Segundo a historiografia,

a partir de Dario I (490 a.C), a imagem de Bês ganhou extraordinária

popularidade, sendo incorporada ao repertório de motivos acessíveis a

trabalhadores das mais altas categorias da Pérsia.

A despeito de sua aparência, às vezes feroz, Bês era um deus

da música, das festas; um defensor dos defuntos; um protetor da

família e defensor dos nascimentos, estando principalmente associado

88

Há uma tese contendo um estudo aprofundado sobre este deus e os

diferentes cultos a que deu origem: ROMANO, J.F. The Bes-Image in

Pharaonic Egypt (doctoral dissertation). New York: New York University,

1989.

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à sexualidade. Ao lado de Tawret (BAKOS, 2010), Bês era popular

em Deir el Medina desde a fundação da vila, aparecendo representado,

principalmente, em amuletos.Entretanto, a nobreza o levou para os

palácios. Tiy, esposa de Amenófis III (1386-1349 a.C), possuía uma

imagem de Bês na cabeceira do leito que compartilhava com o faraó.

Na sequência, apresenta-se o nome do deus, em hieróglifos,

escrita em que aparece composto por três símbolos: o primeiro, com o

significado fonético de ‗b‘; o

segundo, com o ‗s‘; e uma

figura com a imagem do deus,

em uma de suas formas

originais, com o sentido,

conferido pela gramática

egípcia, de um determinativo,

capaz de dotar de significação

o conjunto de símbolos,

impronunciável por natureza:

Fig.1 O nome de Bês

No desenho do bastão mágico que segue, às vezes

denominado de faca mágica, aparece a figura de Bês, a quarta, da

esquerda à direita, nos dois lados do bastão, com as pernas abertas,

cauda e juba de leão.

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Fig.2 Desenho de um bastão

mágico (BUDGE, 1988: 88).

Objeto encontra-se no

Metropolitan Museum of Art,

Nova Iorque.

Esses objetos, chamados bastões mágicos, em formato de

bumerang australiano, eram feitos desde a pré-história egípcia e

continham representações do deus Bês junto com uma meia dúzia de

outros deuses protetores das famílias, como, por exemplo, Tawret e

Hathor. É consenso na historiografia que esses objetos eram usados

em rituais mágicos, para fazer círculos de proteção em torno das

parturientes, o que, juntamente com os esconjuros, facilitaria o

nascimento de bebês saudáveis.

A partir de seus atributos, esse anão barbudo foi

fundamentalmente associado a um espírito do bem, protetor das

parturientes, dos seus bebês e de lares amorosos, tornando-se, como

explica Dominique Valbelle (1985: 316), muito amado, mais como

um gênio do que como uma divindade. Ele aparece sobretudo em

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amuletos, vasos, pernas de móveis e altares de nascimento, fabricados,

principalmente, pelos trabalhadores de Deir el Medina.

Deir el Medina

Deir el Medina era uma vila situada no Alto Egito, em um

pequeno e estreito vale, à margem esquerda do Nilo, em frente à

cidade de Tebas, essa desenvolvida à margem direita do rio. Ocupava

a área compreendida entre dois santuários, Karnak, ao norte, e Luxor,

ao sul, distantes um do outro aproximadamente 4 km, havendo

permanecido com essa configuração por cerca de 450 anos, o que

abarca o período da XIX e da XX dinastia. A vila viveu sua fase de

maior prosperidade no decorrer da XIX dinastia.

O nome da vila significa, em árabe, O mosteiro da vila; foi o

local em que viveram os trabalhadores encarregados da decoração dos

templos e tumbas dos faraós, de seus familiares e da nobreza egípcia

em geral, a partir da XVIII dinastia (1550-1307) e, ao longo das XIX e

XX dinastias, até o inicio do chamado 3° período intermediário. A

morte de Ramsés III determinou o final da XX dinastia, fase

conhecida como Renascença. Nesse período, a área tebana tornou-se o

palco de disputas de poder entre os vizinhos do Egito, os líbios e os

núbios, que, posteriormente, iriam fundar respectivamente as XXII e a

XXVI dinastias. A tensão dos embates levou os egípcios ao abandono

de Tebas e ao retorno da corte para o Baixo Egito, com a criação da

XXI dinastia. Nesse período, a vila de Deir el Medina foi desocupada

pelos trabalhadores, que se refugiaram, até o final da XX dinastia, no

monumental templo funerário de Ramsés III, Medinet Habu.

(BAKOS, 2009).

A história da vila explica-se pela importância conferida aos

enterramentos na cosmovisão dos antigos egípcios. Eles acreditavam

em uma vida após a morte, obtida pela construção de tumbas e a

execução pelos vivos dos rituais funerários. Daí por que, durante o

antigo e o médio império, era costume enterrarem-se os faraós e

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pessoas representativas no Baixo Egito em pirâmides, como as de

Gizah, Queops, Quefrem e Miquerinos, hoje, ícones do antigo Egito.

Com a invasão do Egito pelos hicsos, por volta de 1640 a.C.,

os egípcios perceberam que a região do Delta era vulnerável aos

ataques estrangeiros. Os hicsos da XV e XVI dinastias reinaram em

paralelo com dinastias egípcias. A XIII dinastia egípcia foi vencida

pelos hicsos; daí por que a mais importante foi a XVII, pois, durante o

período por ela subsumido, Kamoses venceu os hicsos e destruiu a

cidade de Avaris, a capital dos chamados reis pastores. Na sequência,

os príncipes vitoriosos de Tebas fundaram a XVIII dinastia, que se

mudou para a área tebana, para enterrar os seus mortos no sopé das

montanhas, adotando o lugar exatamente pela forma natural piramidal

das mesmas existente na área, onde se desenvolveu o vale dos reis e se

encontram até hoje tumbas de reis, rainhas e nobres.

Ahmose I (1560-1520), filho de Khamose, o faraó vencedor

dos hicsos, foi sucedido pelo Amenófis I, um dos artífices da nova

fase imperial, razão pela qual é considerado patrono da vila de Deir el

Medina, juntamente com sua mãe, Amósis Nofretari.

Entretanto, tudo indica ter sido Tutmés I, o 3° rei da XVIII

dinastia, em 1540 a.C. - na ocasião, comandante vitorioso do exército,

mesmo sem pertencer à família real -, o responsável pela fundação de

Deir el Medina. Há consenso na historiografia sobre o fato de a

decisão do local escolhido para a construção da tumba desse faraó ter

sido determinante para a definição do lugar de habitação dos operários

que iriam construí-la. O filho do faraó, Tutmés II, casou com sua

meia-irmã , Hatsepsut, que usurpou, por vinte anos, o direito ao trono

de Tutmés III, seu filho com uma concubina. Hatsepsut, auto-

intitulada faraona por direito divino, além de construir o fabuloso

templo de Deir el-Bahari, estabeleceu conexões econômicas, jamais

articuladas até então, entre o Egito e seu entorno geopolítico,

iniciando a fase imperialista do Egito, posteriormente levada ao

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extremo por seu enteado, Tutmés III, cognominado o Napoleão do

Egito.

Vale ainda destacar a relevância do papel desempenhado por

Horemheb, sucessor de Tutankhamon, na história da vila de Deir el

Medina: foi ele quem refez o sítio, após um período de abandono,

quando a corte de Akhenaton se exilou em Amarna, capital por ele

construída (1553-1335). Os egiptólogos Bruyère e Wooley, segundo

informa Keller, constataram que, durante o período de Amarna, os

melhores trabalhadores de Deir el Medina foram levados para lá, o

que pode ser comprovado pelo reduzido número de tumbas

construídas, à época, em el Medina e pela pouca opulência desses

monumentos; da mesma forma, eles dizem do lento retorno dos

trabalhadores de Amarna para Medina.

Datam das primeiras dinastias as construções de pequenos

santuários, como o que se pode apreciar a seguir, na entrada das casas

dos trabalhadores, onde era colocada uma estátua de Bês. O caráter

apotropaico da imagem é de indubitável comprovação, segundo os

estudiosos. A pretensão da imagem de Bês, pelo seu aspecto bizarro,

parece ser a de fazer sorrir aquele que entrasse na casa, para, com isso,

liberar-se de maus pensamentos e trazer paz e alegria aos moradores.

Fig. 3 Aspecto do sítio

arqueológico de Deir El Medina em que se destaca o detalhe de uma

moradia: um pequeno santuário,

freqüente em todas as entradas das

casas, no qual era colocada a

estátua do deus para proteção dos

moradores (foto feita pela autora).

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No início do reinado de Ramsés III (1194-1163 a.C), há fortes

indícios da decadência do local. Nesse período, o Egito sofreu

invasões externas, como as dos líbios, assírios e persas, que se

encarregaram de levar os conhecimentos sobre Bês através do contato

dos invasores com os trabalhadores que por ventura ainda estivessem

habitando o local. Por outro lado, com a falta de trabalho, muitos

habitantes da vila procuravam outros sítios e, em alguns casos, até

mesmo iam para o exterior, levando seus objetos e afetos, como já se

referiu, no caso dos persas. Entre eles, estavam certamente sempre

presentes as imagens do deus Bês.

No período da dominação macedônica no Egito, foi

construído por Ptolomeu V (205-180 a.C), na área da vila, um templo

em honra a deusa Hathor. Essa edificação, no decorrer da fase romana

cristã (IV-VII d.C), foi transformada em um mosteiro e, com a

conquista dos árabes muçulmanos, encoberta pelas areias do deserto.

O sítio foi trazido à luz ao ser incluído em um mapa sobre o Egito

antigo, confeccionado pelo Padre Claude Sicard (1677-1726). O

primeiro objeto, surgido, em 1777, no mercado de antiguidades, com

procedência identificada de Deir el Medina, foi adquirido por um

monge italiano.

Graças ao papel desempenhado pelas areias na conservação da

vila, poucos sítios arqueológicos do Egito faraônico permitem uma

evocação visual tão clara do seu passado na atualidade como Deir el

Medina. Nas paredes dos templos ptolomaicos, foi encontrada uma

grande quantidade de imagens de Bês, que também aparecem em

construções e objetos romanos.

Historiografia e o transito de Bês para além de Deir El Medina

Francisca Velázques Brieva, em sua pesquisa de

doutoramento, publicada pelo Museu Arqueológico de Eivissa,

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explica que Bês, por sua própria natureza, foi pouco considerado e

ficou à parte do grupo dos grandes deuses cosmogônicos egípcios. A

sua grande popularidade foi sendo notada, apenas, pelos que se

dedicavam ao estudo da vila de Deir el Medina. Atualmente, o deus

sofreu um processo de redescobrimento, decorrente das descobertas

arqueológicas, em sítios mediterrânicos, no século XIX; sua

importância vem sendo pontuada historicamente do Egipto a Ibiza,

como indica o título de sua tese.

Em exaustiva pesquisa, a referida autora aponta aspectos

fundamentais para um melhor conhecimento do deus Bês. Ela discute,

por exemplo, sua origem, que considera ser sudanesa ou núbia em

contraposição à tese de uma origem egípcia autóctone. Os atributos

conferidos a Bês sugerem, segundo a autora, uma origem advinda do

sul. Desde o Reino Novo, ele usa uma coroa de plumas de avestruz,

material exótico importado do sul, muito parecido com o que porta a

deusa Anukis, também associada à Elefantina e à Núbia. Igualmente,

o deus porta uma manta de pele de pantera, que, em algumas tribos

africanas, é a insígnea real. Os autores que consideram que Bês surgiu

no próprio Egito, aludem à imaginação egípcia para criá-lo.

Brieva informa que o primeiro trabalho importante sobre Bês

é a tese de doutorado de F.Ballod (1913); a ela se segue um vazio de

pesquisas sobre o tema até 1939, quando B. Bruyère sublinhou o

caráter leonino de Bês como o seu traço dominante.

A tese de doutorado de J. Romano (1989) veio a comprovar a

ampla diversidade das características físicas, vestimentas e atitudes

que a iconografia de Bês desenvolveu durante a época faraônica,

apontando as inúmeras mudanças sofridas por sua imagem ao longo

do tempo, por motivos pouco explicados.

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O principal aspecto dessa mudança reside na

antropomorfização89

do deus, a partir de uma origem leonina. Essa

característica prossegue em outras épocas, como na XVIII dinastia,

quando, segundo Brieva, ele apresenta orelhas felinas, melena

trapezoidal com canal vertical no centro, secreções lacrimais, torso

delgado, costelas marcadas e pernas flexionadas. Ao longo do Reino

Novo, também aparecem outras inovações, que parecem romper com

a iconografia leonina do deus, tais como a aparição de uma coroa

formada por plumas, provavelmente de avestruz. Ainda no começo do

períodoque se segue, Bês é representado nu: no reinado de Amenófis

II, ele aparece vestindo uma falda, o que vai se tornar comum no

reinado de Amenófis III (BRIEVA, 2007: 26). Igualmente neste

reinado, o deus, em algumas ocasiões, é representado cm grandes asas

de pássaro caídas até o solo e que, em raras exceções, se espraiam na

horizontal.

Fig.4 Da cabeceira da cama de

Amenófis III em seu palácio em Malkata

Pelo seu poder de proteção, Bês

é muito presente nos chamados

cippus, colunas sem capitel que

tinham a função de dar proteção a

quem as possuía e curar de ataques de

víboras e escorpiões por meio da água

que por elas escorria, acompanhada de

esconjuros. Por outro lado, pelo

princípio mágico da escrita egípcia, as

víboras que representavam

89

É extraordinário o processo de antropomorfização dos reis e deuses

realizado pelos antigos egípcios. Um belo exemplo dessa criação está na

Paleta de Narmer que, em 3000 a.C., vizualiza a passagem de um faraó com

forma de animal) (falcão, touro para a humana). Ver em: BAKOS, MM. EU

faraó. e você? In: FUNARI, P.P. & OLIVEIRA SILVA, M.A e BAKOS,

MM. Fatos e mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUC, 2010.

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particularmente uma fonte de perigo, podiam ser cativadas pela sua

adoração. O risco apresentado pela cobra era enfrentado pela sua

identificação como uma manifestação da divindade que podia ser

cultuada e tornar-se, assim, benevolente e generosa. Dessa forma, a

presença de Bês era uma das estratégias para amenizar o poder

maléfico das serpentes. Da mesma maneira, parecia possível

direcionar o caráter letal do animal contra os inimigos da vida, como,

por exemplo, os uraeus.

Em Tebas, os trabalhadores de Deir el Medina cultuavam a

serpente como a deusa Meresger, que ama o silêncio, protetora das

necrópolis do deserto.

Fig. 5 Cippus, pequenas colunas sem

capitel de Horus criança Museu

Nacional de Nápolis

Popularidade construída de Bês

Bês testemunha a

extraordinária influência, desde

priscas eras, exercida pelos antigos

egípcios nas expressões culturais

ainda presentes no mundo

contemporâneo mediterrânico, via

apropriação com transformação, na

maior parte das vezes, dos seus

símbolos e deuses.

A adoção de traços da

cultura egípcia é responsável pelo fenômeno cultural de mais longa

duração na história: a egiptomania90

. O caminho para a formação e

90

Sobre Egiptomania, ver: BAKOS, M.M.(org.) Egiptomania: o Egito

antigo no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

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expansão dessas maravilhosas trocas é evidenciado por Braudel

(1902-1985). Para esse autor, a compreensão do Mediterrâneo como

um espaço-movimento permite destacar a presença de elementos

egípcios no universo cultural mediterrâneo.

Em consonância com Gordon Childe (1892-1957), Braudel

inicia seu livro O espaço e a história no Mediterrâneo propondo a

consideração desse mar na categoria de uma encruzilhada muito

antiga e, assim, de um caminho para se:

... encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha,

as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o Islã turco

na Iugoslávia. É mergulhar nas profundezas dos séculos, até as

construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do Egito

(BRAUDEL, 1985: 02).

A partir dessas premissas braudelianas, buscaram-se

conhecimentos sobre o grau de precocidade dos interesses que

levaram os primeiros homens a enfrentar os desafios da navegação no

Mediterrâneo, antes mesmo das cantorias dos aedos, fundadores da

mitologia helênica, cujos primeiros indícios estão registrados nas

estórias fabulosas de criação do poder divino do Faraó. A mais antiga

narrativa de navegação no Mar Mediterrâneo aparece descrita no mito

de Heliópolis. De cunho etiológico, cosmológico e político, esse relato

conta a viagem, nos inícios do IV milênio a. C., do esquife com o

corpo do deus do bem, Osíris, morto pelo irmão malvado, Seth,

subindo o rio Nilo e navegando até chegar ao porto de Biblos.

Bês nunca foi objeto de um culto estatal como foi o caso da

Enneade, de Heliópolis, mas os escribas que contaram essa lenda,

criaram as imagens dos deuses e de seus símbolos monumentais -

pirâmides, esfinges e obeliscos -, então, amalgamados à fama que

circulava em torno deles, construída pelo boca a boca, entre os que

viajavam ao Egito e o contexto da época. As crenças egípcias

passavam a ser crença de outros povos. Por exemplo, imagens de

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olhos de Horus podem ser encontradas desde a alvorada dos tempos,

na expressão de Braudel, em Chipre, Creta, Sicília, Córsega, Malta,

expressas em diferentes formatos e materiais. Juntamente com o olho,

viajaram a figura do ankh, a chave da vida, e de um deus simpático,

dançarino, protetor das mulheres e das crianças: o Bês!

Para o Norte, as relações entre Egito, Creta e Egeu, de

natureza cultural e comercial, tornaram-se particularmente intensas

durante o Novo Reino (1570-1070 a.C.). Elas aparecem ilustradas em

duas antologias, uma de John Pendlebury (1904-1941), um

pesquisador inglês especializado em antiguidades cretenses, e outra de

um egiptólogo, Jean Vercoutter, publicada respectivamente em 1930 e

1956 (CURTO, 1990: 221).

Ciro ilustra o trânsito dos operários egípcios em seu texto com

a apresentação de diversas correspondências encontradas nos arquivos

de Tell el Amarna. Cita, em seu trabalho, duas vindas do rei de Chipre

que servem de comprovação das trocas entre o Egito e esse reino:

Esses homens são meus mercadores. Meu irmão, deixá-los

ir em segurança e prontamente. Ninguém deve, exigindo

algo em teu nome, aproximar-se de meus mercadores ou de

meu barco (CARDOSO, 2000: 07).

Ciro Cardoso alerta ainda para a pertinência da tese

desenvolvida por Mario Liverani sobre a existência de uma

complementaridade entre diferentes áreas do Oriente Próximo no que

concerne às trocas, devido à concentração regional exclusiva ou muito

majoritária de certas produções mais importantes.

Segundo essa observação de Cardoso, deduzimos que Bês

viajou pelas três rotas básicas de circulação no mar Mediterrâneo, que

Braudel aponta: a primeira era colada aos litorais do norte, seguindo

da Grécia à península itálica; a segunda era meridional, indo pelas

costas da África à Ásia Menor; e, finalmente, a terceira, era pelo meio

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do mar, parando de ilha em ilha, do norte da África ao sul do

continente europeu. Guiados pelas estrelas, mas de preferência,

viajando de dia, os navegadores deixaram raros pontos da costa

mediterrânica livres de abordagens pacíficas e de achaques de barcos

em missão de comércio e/ou de pirataria, muitas vezes se utilizando

de ambas as práticas.

É assim que começam as viagens entre o Egito e as cidades da

costa sírio-libanesa, quase nos primórdios da história egípcia,

provavelmente, via expedições lançadas pelos faraós em busca da

maneira inexistente na terra do Nilo. Não obstante, já em meados do

terceiro milênio, uma verdadeira frota mercante liga Biblos aos portos

do delta. Os barcos são do tipo egípcio, sem dúvida, financiados pelo

Egito; talvez já sejam construídos e, sobretudo montados, pelos

cananeus, nome dado aos sírios-libaneses (BRAUDEL, 1978: 60).

Esses ancestrais dos fenícios já eram um povo de marinheiros.

Os egípcios, ao contrário, sempre tenderam a ficar em casa; sua

riqueza, aliás, permitia-lhes, como se disse mais tarde, um comércio

passivo, na direção do Mediterrâneo. Em todo caso, mil anos depois,

não há mais dúvidas: uma pintura de Tebas do séc. XV a.C. mostra

barcos montados por cananeus que, em seus trajes típicos,

descarregam, no Egito, mercadorias de seu país. É bem possível que

esses traficantes tomassem contato com o mundo e o imaginário dos

operários de Deir el Medina pela presença, na vila, de artesões

altamente qualificados que possuíam poder de câmbio para adquirir os

produtos por eles trazidos para comerciar. Havia ainda uma circulação

interna no Egito através dos escribas que, pelo menos três a quatro

vezes, por ano, fiscalizavam as atividades dos nomos, as pequenas

unidades administrativas do Egito antigo, para registro e controle da

produção agrícola. Esses trabalhadores, eventualmente, conviviam

com artesões de outros lugares e também eram levados por

dominadores. Daí por que a divulgação dos cultos e rituais egípcios,

levados por eles a outros lugares de além mar, é uma possibilidade a

ser considerada.

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131

Á guisa de conclusão

Ilustrou-se essa apresentação com inúmeras imagens do Bês

em exposição em museus do continente europeu, impossíveis de

serem mostradas na íntegra neste texto pelos limites de espaço. Além

disso, significativo número dessas imagens carece de dados que

identifiquem sua devida localização de procedência e período de

fabricação. O que uniu a coleção apresentada foi a idéia de atestar a

presença em museus da área mediterrânica, em ilhas e/ou cidades

costeiras, de imagens que testemunham, sem dúvida, pois que trazidos

pela moderna arqueologia, a presença desse deus ao longo dos sítios

mediterrânicos. Ele foi encontrado na Sardenha, Península Itálica,

Grécia, Malta, Costa da Anatólia, Cartago, Síria Palestina e Chipre.

Entre outras, destacam-se a imagem do exótico Bês com rabo de

serpente, encontrado em Sulcis; a estatueta rizível de Bês, sentado,

com os órgãos sexuais à mostra e em destaque, encontrada em

Agrigento, datada dos séculos IV-III a.C.; o medalhão com a cara do

deus, encontrado em Chipre, datado do século VI a.C.; e uma a

simpática imagem do deusinho em Ibisa.

Para finalizar, lembra-se uma discussão realizada durante o

Congresso91

sobre a presença da imagem de Bês na Estela de

Metternich, mandada fazer por Nectanebo (360-342 a.C.) e que agora

se encontra no Museu Nacional de Napólis, bem como a linda Cippo,

onde Horus aparece como Harpócrates, cuja imagem antecede essa

conclusão.

É importante admirar nesses últimos dois exemplos o papel de

destaque conferido a esse deus popular egípcio, que pertencem

também ao entorno egípcio continental no mundo mediterrânico, onde

ele foi alçado, através da participação em práticas médicas, da

91

II Congresso Internacional de Religião, Mito e Magia no mundo antigo.

IX Fórum de Debates em História Antiga da UERJ. 08 a 12 de novembro de

2010.

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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ

132

categoria de deus popular a de deus cultuado no circuito elitizado dos

sacerdotes curadores, dos governantes e dos homens de negócio, como

forma de proteção em suas lutas pessoais e cotidianas contra os

perigos e doenças, em busca de saúde e de vida. Bês perfaz, assim,

uma trajetória vertical e de circularidade na sociedade, como poucos

deuses da antiguidade realizaram!

Antes de finalizar, apresentam-se agradecimentos ao Dr.

Phillip Gomes Jardim, querido sobrinho, que, de sua viagem a Ibisa,

trouxe formidáveis subsídios para o futuro desenvolvimento desta

pesquisa.

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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ

135

Mito y sentido en Hesíodo: las formas de habitar el mundo

María Cecilia Colombani92

A.Introducción

La sabiduría poética es el momento en que los hombres

crearon un suelo antropológico; en los mitos queda plasmado el modo

en que la conciencia mítica inaugura una primera trabazón entre las

palabras y las cosas, una primera organización de lo que los hombres

ven y de cómo nombran lo que ven. ―Las palabras y las cosas‖ como

primer momento de saber-poder. Momento mágico-religioso, en

terminología griega, donde los dioses son los que imponen las reglas a

los hombres para aglutinar un topos común.

La clave de la conciencia mítica es construir un plexo de

figuras bajo las cuales se puede subsumir lo particular. Tal es la

función de los dioses y los héroes si es que podemos pensar una cierta

funcionalidad de esas representaciones que resultan imprescindibles a

la hora de hacer inteligible la lógica del mito.

Son estas figuras las que condensan el sentido de esa

conciencia mítica. Basta pensar el poder aglutinante de lo que

constituye el linaje hesiódico para comprender la función del mito

como dación de sentido. Hesíodo plantea dos linajes estructurales, uno

luminoso, de cara diurna, encabezado por la figura regia por

excelencia, Zeus y otro nocturno o negativo, encabezado por las

figuras emparentadas con lo tenebroso. Las familias divinas, así como

los héroes, con ellas familiarizados, operan como el modelo-patrón

donde el hombre griego proyecta sus relaciones sociales, políticas,

antropológicas.

92

Prof.ª Dr.ª da área de Estudos Clássicos da Universidade de Morón e da

Universidade de Mar Del Plata – Buenos Aires, Argentina.

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136

Es el relato teogónico, con la doble articulación del mito de

aparición y del mito de soberanía, el universo de sentido que subsume

una forma de mirar el mundo, de ―inteligir‖ pre racionalmente las

relaciones entre los hombres, de los hombres con los dioses y de los

hombres con la naturaleza.

Ese universo es una proyección humana y es esa misma

proyección la que garantiza y conserva una primera construcción

institucional.

El mito resulta entonces una fuerza, no sólo aglutinante de

sentido, sino una fuerza instituyente de la relación hombre-mundo.

Los mitos constituyen una cierta forma de respuesta que, a

nuestro entender, ubica al mito en el marco de un ―logos explicativo‖,

de una especie de ―filosofía popular‖, tal como llama Gernet a la

poesía sapiencial de la Grecia arcaica; sabiduría popular que opera

como un magma de significaciones múltiples.

No hay experiencia humana sin este suelo posibilitante de

experiencia; el mito constituye así la condición de posibilidad de una

primera instalación-percepción de lo real. Los mitos poseen cierta

densidad ontológica porque son productores de un efecto de verdad

sin el cual la experiencia es imposible; por eso son, además, topoi de

poder Retorna así el sentido fundacional del mito como dación de

sentido. Tal como sostiene Louis Gernet, de los dioses se obtienen dos

cosas que los hombres no pueden darse a partir de su precariedad

ontológica: la idea de Kósmos y la idea de justicia, doblete de la

primera. Esta dación abre el topos de la ―religión‖ como esfera otra

de lo humano. Sólo desde esa instancia religiosa el mundo se articula

en un plexo de relaciones conforme a legalidad, se convierte en una

unidad de sentido, lo cual constituye una necesidad de esos hombres;

necesidad de ―instalarse‖ en un mundo, de darse un ―domicilio

existencial‖, que el lenguaje articula.

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137

Allí están Homero y Hesíodo para sostener esa vigorosa

fantasía. Allí está Zeus para devolver una primera configuración

pagana de la idea de ―padre de todos los hombres y los dioses‖,

epíteto que Hesíodo devuelve a cada instante. Allí está el poeta para

devolver la viva imagen de un maestro de aletheia y allí está el poder

de la conciencia mítica como primera organización de sentido.

Nuestro recorrido está marcado por el horizonte mítico como

punto de anclaje de la articulación antropológica que da cuenta de la

díada pensamiento-instalación; los mitos griegos constituyen una

primera forma de dar sentido al mundo; el hombre necesita darle un

sentido a todo lo que hace y el mito ocupa ese nicho de significación,

que articula experiencia. La experiencia se presenta atravesada por el

sentido que la mitología le impregna. El mito constituye entonces una

bisagra instituyente, tal como acontece en el mundo griego. Sin mito

no hay Grecia; la ha constituido como condición de posibilidad

histórica. Pero, es hora de ir por más; sin mito no hay pueblo ni

identidad organizada en torno al relato ancestral.

Los caracteres poéticos constituyen el primer lenguaje, así

como la palabra mágico religiosa constituye el primer logos, la

primera trabazón entre lo que se ve y lo que se nombra, la primera

trabazón entre lo visible y lo decible, el primer encastre entre las

palabras y las cosas.

Ese lenguaje poético recoge la primera experiencia de la

arkhe. El fundamento último de lo real descansa en los dioses; todo

está pensado en términos de divinidad; los dioses son ―por necesidad‖

el fundamento de lo real, por ello todos los fenómenos naturales

encarnan una voluntad anímica. Se trata de un mundo animado, donde

el pensamiento mágico religioso da cuenta, desde la peculiaridad de su

lógica, la legalidad interna de su orden. Para el hombre, la naturaleza

es un ―tú‖ que interpela desde su vastedad. He allí el mito como una

primera respuesta al impacto que la naturaleza imprime al asombro

del hombre; la respuesta se articula en lenguaje poético.

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138

Por eso, quizás, nacimos poetas y lo seguimos siendo para

seguir conservando un albergue existencial, para seguir tramando una

trama que no cesa de tejerse, una urdimbre que nos cobija en nuestra

precariedad existencial. Por eso somos y hemos sido hacedores de

mithoi.

Desde este modelo de instalación teórica abordaremos el

vínculo hombre-divinidad en lo que constituye el logos fundacional de

nuestra historia de Occidente: el mito griego, como primera trabazón

entre teología y literatura. Allí se impone el relato teogónico como

logos explicativo, como aquella palabra poética que da cuenta de lo

primerísimo como imagen originaria que satisface una pregunta

también originaria. El mundo es tal como los dioses lo han dispuesto

en el marco de una dramática divina de marcado sesgo

antropomórfico y agonístico, que parece repetirse en configuraciones

culturales de distintos estatuto. Esta primera ―religiosidad griega‖

constituye con la primera ―poesía sapiencial‖, un maridaje indisoluble

del vínculo entre el plano humano y el plano divino, reescrito de

múltiples maneras por una polifonía de voces histórico-culturales.

La experiencia poética como etho poiesis

Partimos de la idea de que no es posible captar la importancia

del hecho literario y del filosófico por fuera de sus relaciones con la

dimensión ántropo-religiosa. Poesía y filosofía parecen ser así dos

actividades emblemáticas de la Antigua Grecia y ambas,

emparentadas entre sí, no son entendibles por fuera de sus vínculos

con la sociedad. A partir de allí abordaremos cómo el lenguaje poético

y el filosófico responden, desde sus estructuras particulares, a los

vínculos que esos logoi guardan con su tiempo histórico y con la

necesidad del hombre de dar respuestas a sus interrogantes más

originarios. El lenguaje poético es el logos que corresponde a una

―lógica de la ambigüedad‖, inscrita en el horizonte mítico, mientras el

lenguaje filosófico es el logos propio de una ―lógica de la no

contradicción‖ (DETIENNE, 1986), que conoce en la emergencia de

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la ciudad, polis, su carta de nacimiento. Pensamiento y lenguaje

constituyen, pues, una unidad indisoluble sólo perceptible a partir de

los medios de producción que los hicieron posible como productos

sociales. Si el lenguaje de Homero señala lo verosímil, el logos

hesiódico señala lo verdadero, dividiendo las aguas entre literatura y

filosofía (GIGON, 1980). Su preocupación por la verdad, aletheia, y

el origen, arkhe, lo ubica como un antecedente fuerte de la primera

especulación filosófica. Poesía y filosofía parecen entonces rozar sus

territorios en la figura del poeta de Ascra, al tiempo que el lenguaje

poético y el filosófico intersectan sus objetos de problematización.

En este marco general, el propósito de la presente

comunicación consiste en efectuar una lectura ántropo-religiosa al

interior de la obra hesiódica. Lo pensamos desde la perspectiva de la

dualidad de planos que el marco religioso abre; por un lado, un plano

teológico y por otro, un plano humano, siguiendo en este tratamiento

la perspectiva que incluye Jean Pierre Vernant como modo de abordar

la obra hesiódica93

. Nuestro intento es efectuar un seguimiento de

ambas obras, Teogonía y Trabajos y Días, sumado a ciertas

intervenciones de carácter filosófico-antropológico, sobre todo en lo

que se refiere a la distancia que separa a hombres y dioses,

determinando dos plano heterogéneos en cuanto a la calidad de ser.

Nos parece oportuno recorrer los distintos significados del

término topos: lugar, sitio, territorio, región, espacio, condición,

categoría. De algún modo las distintas acepciones retornarán a lo largo

del trabajo. Si bien lo más familiar consiste en asimilar la noción de

topos a una imagen espacial, la propuesta es avanzar sobre otras

dimensiones.

La obra hesiódica es muy rica y pintoresca en estas

espacializaciones que pueblan ambas obras, dibujando el plano de los

93

VERNANT, J.P. Mito y pensamiento en la Grecia Antigua. Barcelona:

Ariel, 2001.

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dioses y de los héroes, de los hombres, a partir del mito de las edades,

y de las mujeres, a partir del mito de Prometeo; el territorio de las

potencias primordiales, el campo de los vencedores y los vencidos, a

partir de la titanomaquia y de la tifonomaquia, la región de las figuras

positivas y las negativas. Si pensamos en las otras acepciones del

término, también podemos efectuar algunas consideraciones ya que lo

que se observa son tensiones ontológicas que hablan de distintas

categorías de ser, sobre todo en la distancia que representa la

condición divina frente a la humana. En realidad los respectivos sitios

están determinados por los respectivos estatutos de ser.

Pasemos pues a recorrer el texto a fin de delimitar el proyecto

precedente. Comencemos por el plano teológico que tendrá a Zeus

como el gran protagonista del relato hesiódico, sobre todo a partir de

la solidaridad Zeus-Dike y de la absoluta confianza que el poeta de

Ascra sostiene en el Padre de todos los dioses y los hombres.

Plano teológico. Positivo.

Zeus reina sobre dioses y hombres. El final de las grandes

batallas por la organización cósmica de cuenta del reinado en términos

de absoluta soberanía: ―Luego de que los dioses bienaventurados

terminaron sus fatigas y por la fuerza decidieron con los Titanes sus

privilegios, ya entonces por indicación de Gea animaron a Zeus

Olímpico de amplia mirada para que reinara y fuera soberano de los

Inmortales. Y él les distribuyó bien las dignidades‖ (TEOGONIA,

881-886). No sólo se ha ordenado el kosmos, sino que se ha instaurado

la justicia, lo cual constituye en realidad una duplicidad. La justicia es

el doblete de kosmos, su par complementario.

Tensionando el plano divino, los hombres de la edad de oro

gozan de un estatuto semejante. ―Al principio, los Inmortales que

habitan mansiones olímpicas crearon una dorada estirpe de hombres

mortales. Existieron aquellos en tiempos de Cronos, cuando reinaba

en el cielo; vivían como dioses, con el corazón libre de

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141

preocupaciones, sin fatiga ni miseria; y no se cernía sobre ellos la

vejez despreciable, sino que, siempre con igual vitalidad en piernas

brazos, se recreaban con fiestas ajenos a todo tipo de males‖

(TRABAJOS Y DÍAS, 108-116). A la luz de lo que constituye el

mundo humano, se da una fuerte tensión entre ambos planos-

condiciones. Estos hombres desconocen la naturaleza humana,

transida por la precariedad ontológica, que retorna en males y

preocupaciones; parecen estar en un espacio más cercano a la

sempiterna felicidad de quienes habitan las mansiones olímpicas;

incluso cuando esta raza fue sepultada, por voluntad del mismísimo

Zeus, se convirtieron en démones benignos ―que vigilan las sentencias

yendo y viniendo envueltos en niebla, por todos los rincones de la

tierra‖ (TRABAJOS Y DÍAS, 124-126). Doble juego de positividad.

Por un lado, un destino casi regio, amparado por la máxima voluntad

divina, que desconoce las peripecias de la muerte de los mortales y, en

segundo lugar, un destino que complementa la acción del Padre,

vigilando la justicia en la tierra.

Plano teológico. Negativo.

Debemos rastrear la titanomaquia para dar cuenta del acto de

hybris que supone tensionar el poder real y con ello romper la justicia

instaurada por Zeus. El Padre ha castigado cada acto de desmesura y,

en este caso, obra en consecuencia con la ayuda de Coto, Giges y

Briareo, como aliados de la gesta. El combate se desarrolla y como es

de imaginar en un relato de corte optimista como el hesiódico, los

Titanes son vencidos. ―Allí los dioses Titanes bajo una oscura tiniebla

están ocultos por voluntad de Zeus amontonador de nubes en una

región húmeda al extremo de la monstruosa tierra; no tienen salida

posible: Posidón les puso encima broncíneas puertas y una muralla

les rodea de ambos lados. Allí habitan también Giges, Coto y el

valiente Briareo, fieles guardianes portador de la égida‖

(TEOGONIA, 730- 735). Interesante juego de tensiones: en primer

lugar, el plano positivo, Zeus-sophrosyne-justicia-triunfo, se distingue

claramente del plano negativo, Titanes-hybris-injusticia-derrota,

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142

permitiendo, una vez más sostener la visión optimista del mundo94

. En

segundo lugar, la tensión espacial entre lo subterráneo y lo que habita

por sobre la tierra. Las potencias negativas son sepultadas en una

territorialidad que guarda, según la imagen que devuelve el relato,

caracteres negativos; por el contrario, sabemos el topos que le

corresponde a los vencedores: las mansiones olímpicas, con los

consecuentes caracteres positivos de tan ilustre territorio. En tercer

lugar, la tensión entre lo positivo y lo negativo al interior del mundo

subterráneo. Elementos negativos y positivos se complementan: unos,

los Titanes, guardados donde corresponde encerrar la hybris, como

elemento desterritorializante del orden-justicia; otros, los

Hecatónquiros, vigilando las fronteras de la sophrosyne. Pura

complementariedad que ubica la tensión Mismidad-Otredad en su

punto justo, para seguir disfrutando de la visión optimista, a la que

aludiéramos.

El relato devuelva siempre la tensión entre lo Mismo y lo

Otro; asimismo podemos advertir una nueva tensión entre las figuras

positivas y negativas: la tensión lumínica. Las figuras negativas se

sumergen en la oscuridad de aquellos topoi que no conocen la

luminosidad.

Más allá de la especificidad de los acontecimientos puntuales

que recorrimos, el poema presenta una buena cantidad de catálogos y

genealogías que el propio Hesíodo ordena según cierta racionalidad o

bien siguiendo los parámetros de la tradición mítica. El lector se

encuentra entonces con un abundante material disperso de catálogos

de nombres, orígenes de dioses y algunos mitos. Teogonía supone la

divinización del universo que nos rodea, la personificación de los

fenómenos y las actividades con las que los hombres se enfrentan en

su vida humana. Todo lo efímero de la vida cobra un estatuto divino y

eterno y recibe un nombre que lo personifica. Así el dolor, el temor, la

94

GERNET, Louis. Antropología de la Grecia Antigua. Madrid: Taurus,

1981.

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alegría, la justicia y todo aquello que concierne a los hombres en su

precario existir, queda personificado a través del nombre que lo

nombra.

El otro propósito de Teogonía y más cercano a la lectura que

propusimos es dar cuenta del orden del universo, de su legalidad, de

su sentido cósmico, aludiendo precisamente a la noción de Kósmos

como orden. El universo responde a una armonía que debe

interpretarse en clave religiosa. Para ello, el poeta se ubica en su

propia tradición mítica porque ese telón de fondo que sostiene la

experiencia mítica coincide con su propia experiencia religiosa.

La posibilidad de orden cósmico viene de la mano de una

dimensión agonística, ya que la armonía del Kósmos deriva del

triunfo de ciertas potencias sobrenaturales sobre otras. El orden es el

resultado de una victoria, tras un largo ágon (combate), del que dan

cuenta la Titanomaquia, o batalla contra los Titanes y la

Tifonomaquia, o sea la batalla final contra Tifón, el más joven de los

hijos que Gea, la Tierra, pariera. Éste fue el enclave donde nos

movimos. El soberano no es otro que Zeus, quien, en realidad,

representa más que una figura en particular, un estado de legalidad

sobre aquello que debía ser ordenado. Zeus no es más que el símbolo

de un orden que garantiza un fondo optimista en torno a la percepción

de lo real. Hesíodo sostiene una visión optimista del mundo, la misma

que atraviesa la configuración de la pólis como percepción armoniosa

de la comunidad de hombres. Por detrás del caos aparente, se

garantiza la existencia de un orden, del cual es la poesía precisamente

su más lograda percepción. Como sostiene Louis Gernet, ella

constituye esa especie de ―filosofía popular‖ que al narrar las

sucesiones divinas narra al mismo tiempo la plasmación, a partir del

Caos, de un orden perfecto, sostenido por la justicia de Zeus. La

Teogonía constituye el primer intento griego de dar una explicación

divina al orden del universo. Por ello, desde una dimensión

genealógica que rastrea orígenes y líneas de sucesión, la poesía, en su

intento explicativo de lo real, es el antecedente de la filosofía como

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búsqueda de la arkhé (fundamento, origen) y el poeta, como maestro

de verdad, la figura que anticipa a la del filósofo. Recorriendo

genealogías, la filosofía antes de la filosofía, como señala Pierre

Hadot, nos devuelve la poesía como intento de explicación de una

armonía que subyace a lo aparente.

Se trata, en última instancia, de recorrer los caminos que

llevan del poeta al filósofo, en un desplazamiento de la figura del

maestro de verdad. En la medida en que el filósofo sigue buscando los

orígenes, los linajes conceptuales y la verdad, éste reproduce el

modelo de maestro de alétheia presente en la configuración poética.

De la figura de los maestros de verdad, poetas y adivinos,

encargados de pronunciar el discurso verdadero, a la figura del

ciudadano de la pólis, sostenedor del kósmos social, el lenguaje ha

sufrido importantes transformaciones en su modo de enunciación, en

los sujetos de tal enunciación y en la dimensión ritual de su puesta en

circulación, pero, asimismo, ha guardado un rasgo común: vehiculizar

la perspectiva que el hombre posee de lo real, plasmar en lógoi un

modo de instalación en el mundo.

El lenguaje colabora en la apropiación que el hombre hace de

la realidad, de allí que la problematización sobre el mismo no se agote

en un análisis meramente lingüístico, sino que roza un territorio

ántropo-religioso, en la medida en que el lenguaje da cuenta de la

relación entre el pleno humano y el plano divino. La palabra entendida

como discurso no es un mero instrumento para la comunicación ni

para la representación, sino que la palabra es el lugar en donde lo real

toma sentido y orden. La palabra que nos permite comprender el

inicio de este pasaje es la palabra poética. De la palabra del filósofo a

la palabra del poeta. De la palabra política a la palabra mágico-

religiosa. Siempre es el lógos el que permite ese recorrido por los

intersticios que dan cuenta de las diferentes maneras de instalación en

el mundo. La filosofía y la poesía, y entre ellas, el mundo complejo de

continuidades y discontinuidades.

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145

Documentação Textual

HESÍODO. Obras y fragmentos (―Los trabajos y los días‖ y

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A Rainha de Sabá e o Cristianismo da Etiópia

Maria da Conceição Silveira95

O país que é hoje conhecido como Etiópia já recebeu várias

denominações, conforme o período histórico, a extensão do seu

território e o contato com outras civilizações. Chamou-se Cuxe

quando seus limites alcançavam o sul do Egito, a partir do noroeste da

nação atual; seguiu, redesenhando sua geografia a cada conquista e a

cada derrota. Segundo Moktar (1983: 243), apesar da suposta

superioridade egípcia nunca lhes foi possível estabelecer uma

dominação efetiva das áreas situadas abaixo da segunda catarata, mas

os etíopes consolidaram seu poder no Egito em 712 a. C., formando a

XXV dinastia à frente de um Império que se estendia do Delta do Nilo

até a sexta catarata961

. Abssínia era o nome do território

compreendido pelo Sudão e Etiópia atuais e dá nome ao planalto que

se estende pelos dois países. Seus habitantes já foram, portanto,

chamados abexins. A denominação etíope, por sua vez, é de origem

grega e designava, em virtude da cor da pele, os povos que ocupavam

a região mais afastada do Mediterrâneo, além do Saara, pois o termo

significa ―homens do rosto queimado‖ e não se aplicava, portanto,

apenas aos antigos abissínios.

A Etiópia tem uma herança histórica muito peculiar e, na

qualidade de sociedade civilizada, é capaz de suportar qualquer

critério de avaliação, do mais progressista ao mais conservador. É

uma autêntica civilização africana, detentora de uma cultura rica que

se desenvolveu ao longo de milênios, sempre interagindo com os

povos que se destacaram nas épocas em que a História registra as mais

importantes transformações da humanidade. A ―situação

95

Prof.ª Dr.ª da área de letras clássicas da UFRJ. 96

O rio Nilo possui várias cataratas, mas, na Antiguidade, distinguiam-se seis

situadas entre Assuão (em território egípcio) e Cartum (capital do Sudão e

porto fluvial na confluência do Nilo Azul com o Nilo Branco).

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intermediária‖ da sua etnia demonstra a convergência de elementos de

variadas origens, formando um povo mestiço, vigoroso e belo,

inteiramente compatível com a superposição de culturas que forjou a

identidade nacional na Etiópia. A própria história de seus mitos

revela a natureza cosmopolita e híbrida do seu povo: a tradição

judaico-cristã que marca sua origem, a narrativa que o paganismo

grego criou para explicar a cor da pele dos seus habitantes e a lenda

que o Ocidente cristão reconstruiu e que ajudou a abrir as portas de

toda a África para o conquistador europeu.

A dinastia, que pela tradição bíblica teve início com a rainha

de Sabá, foi a mais longa da História, só extinta em 1975 com a morte

do Imperador Hailé Selassié, deposto por um golpe militar em 1974.

Havia na Etiópia um livro antiqüíssimo97

, que ao lado da

Bíblia Hebréia era muito venerado como um segundo Evangelho,

conservado na Igreja de Axum, a mais antiga Metrópole e sede do

Império, onde a Rainha de Sabá teve sua corte98

. Diz esse livro que

quando reinava na Etiópia a rainha Maqueda, chegaram notícias da

sabedoria do rei Salomão, trazidas por um rico mercador que,

retornando a sua terra, contou maravilhas sobre a justiça, a modéstia, a

doçura e a clemência, e muitas outras virtudes daquele rei. Desejosa

de ver e ouvir o sábio monarca, a rainha organizou uma caravana com

muitas riquezas, entre as quais ouro, aromas e incenso, e dirigiu-se a

Jerusalém. Com grande honra foi recebida por Salomão e hospedada

perto de sua casa. Quase diariamente o rei a visitava para verificar se

97

―Obra central da literatura e da civilização etíope, a Glória dos Reis

(Kebra Negast), escrito em geez, a língua clássica da Etiópia, é um texto

cuja forma atual foi fixada em finais do século XIII, na altura da ascensão

da chamada dinastia salomônica ao trono imperial nos planaltos do Tigré e

Amhara.‖ (RAMOS, 1998: 236) 98

―[...] o livro onde põem o catálogo dos Imperadores diz que a Rainha Azeb

(ou Maqueda) começou a reinar em Axum, e as ruínas dos edifícios que

ainda aparecem, mostram bem haver sido a mais suntuosa que houve em

Etiópia.‖ (PAIS, 1945: 25).

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o tratamento a ela dispensado estava de acordo com suas ordens.

Também ela ia visitá-lo para ouvir e aprender com sua sabedoria e

justiça, que eram dadas por Deus.

De volta ao seu reino, Maqueda teve um filho que concebera

de Salomão e chamou-o Menelik, o qual ao se tornar adulto voltou a

Jerusalém para conhecer o pai levando mensagem da rainha, que

suplicava que sagrasse seu filho rei de toda a Etiópia. Toda a corte se

admirou com a grande semelhança entre Menelik e Salomão, que não

hesitou em ungi-lo e coroá-lo rei, nomeando-o Davi99

. Depois que

prestou juramento, recebeu do pai, junto com outros presentes, muitos

primogênitos da corte de Israel para compor seu séquito, além de

oficiais de serviço da Casa Real de Judá, um Sumo Sacerdote e

ministros muito doutos, que deveriam acompanhá-lo. Tristes por

estarem sendo afastados de seus pais, os primogênitos entraram à

noite no Templo e tiraram de lá a Arca do Testamento, a que

chamavam Sion Celestial e a levaram para um Templo na terra de

Makeda100

. De posse dessa relíquia todos na Etiópia

101 reconheceram

o verdadeiro Deus102.

Também diz o livro que, ao entregar o reino ao filho,

Maqueda o fez jurar que nunca mais seria admitida uma mulher como

governante103

, e que só aos seus descendentes varões e pelo lado

99

―[...] daqui vem que os Emperadores de Ethiopia mudão o nome do

bautismo quando lhes entregão o Império.‖ (PAIS, op. cit. p. 31) 100

―Muitos de nossos sagrados expositores dizem que esta rainha era da

Arábia e não de Etiópia.‖ (TELES, 1936: 95). 101

―O livro de Reis 1-10 localiza o reino de Sabá no Iêmen, noroeste da

Arábia.‖ (ALMEIDA, 2002: 389). Com efeito, na divisão que Heródoto faz

dos etíopes aparecem os da Ásia, juntamente com os macróbios e os

trogloditas. (conf. BISPO, 2006: 28) 102

Segundo uma outra tradição, a rainha se converteu ao cristianismo depois

de batizada pelo seu eunuco (Fides). 103

Porém Menelik II, encontrando-se muito doente, transmitiu o reino a sua

filha Zaditu, em 1907. (N. A.)

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masculino seria dado o comando do Império. Do tempo da Rainha de

Sabá até o nascimento de Cristo consta ter havido 24 imperadores, e

que a fé católica foi adotada em 1437104

, no tempo do Imperador Zara

Jacob, que para isso enviou embaixadores abexins com carta ao Papa

Eugênio IV.

Conforme relata o Padre Baltazar Teles ―Junto a Axum, no

reino do Tigré, em Etiópia, está ainda hoje um lugar pequeno que se

chama Sabá ou Sabain, no qual dizem que nasceu a Rainha de Sabá;

também há os lugares de Azebó, que diz com o nome Azeb, e Beth

David, que significa Casa de David.‖

O período hebreu foi caracterizado pelo apogeu econômico e

cultural da Etiópia. No século III o Império de Axum já era um dos

maiores do mundo e a conquista de Méroe, então decadente, vai

aumentar seus territórios. No século IV foi adotada a fé cristã trazida

por Frumêncio, que desembarcou com seu irmão Edésio em um porto

do Mar Vermelho, onde foram aprisionados e levados à presença do

rei. Frumêncio permaneceu depois para ajudar na educação do jovem

príncipe Ezana, a convite da rainha, pois o rei Elle Ameda havia

morrido. Mais tarde foi consagrado pelo patriarca de Alexandria105

,

Atanásio, como primeiro bispo de Axum e batizou toda a família real.

Coube aos sucessores de Ezana consolidar o cristianismo na Etiópia,

dando início às peregrinações ao Santo Sepulcro.

A partir de 572 e até 975, Axum começa a perder algumas

províncias para os persas. Durante o século VIII os abissínios perdem

seus portos no Mar Vermelho106

. Em franca decadência, o Império

104

Teles (p.117), sem levar em conta o quão novo era o catolicismo entre os

etíopes, acusa-os de cismáticos. (N. A.) 105

O país ficou assim unido à Igreja Copta do Egito (culto cristão etíope e

norte-africano), que professa um cristianismo monofisista (defende a

natureza única de Jesus). (Idem, p. 13) 106

A Abissínia possuía os portos de Maçuá e Dalec, e mais ao sul, Zeila,

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conhece um período de devastação e trevas, até o surgimento no

século XII de uma nova dinastia. Lalibela, o ―São Luís Etíope‖,

famoso por sua devoção, construiu as famosas igrejas rupestres da

Etiópia e transferiu a capital para outra cidade que recebeu seu nome.

A nova dinastia, que remontaria a Moisés e não a Salomão, reinou por

cento e trinta e três anos. Em 1270, ocorre a chamada ―restauração

salomônica‖, com a subida ao poder da antiga aristocracia axumita. É

um período de grande renascimento literário, quando enfim a História

da Abissínia começa a ser produzida por um escriba real.

A arquitetura que se desenvolveu no período cristão ainda

hoje intriga e fascina os especialistas, pois há uma infinidade de

mosteiros construídos em altíssimos penhascos, além das Igrejas

totalmente entalhadas em blocos de pedra (igrejas monolíticas ou

rupestres)107

. Na parte noroeste ainda existem pirâmides – vestígio,

provavelmente, do império cuxita – e muitas ruínas de um passado de

esplendor.

Durante séculos a Etiópia permaneceu como reduto cristão,

cercado e assediado pelos mouros que precisavam ser energicamente

combatidos e, para cujos domínios, perdeu boa parte de seu território,

incluindo as terras às margens do Mar Vermelho, e mais teria perdido

se não fossem as freqüentes guerras travadas para defender ou

recuperar suas províncias. Na Idade Média, o Ocidente recebeu

notícia da existência de um reino cristão muito próspero na costa

oriental da África, que era o flagelo dos infiéis, e entre tantas outras

lendas e utopias em que o período medieval foi pródigo nasceu a

lenda do Preste João que foi posteriormente identificado como sendo

o chefe do Império da Etiópia

todos ocupados por muçulmanos que pagavam tributo ao reino. (conf.

SANCEAU, 1940: 57-59). 107

Existe uma cidade na Etiópia, também de nome Lalibela onde se

encontram igrejas monolíticas, esculpidas na rocha viva, por ordem do rei

Lalibela. (N. A.)

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Entretanto não se pode dizer que o Cristianismo triunfou

plenamente na Etiópia – bem como em outras nações africanas. A

localização do Império, às margens do Mar Vermelho, favoreceu o

desenvolvimento de uma cultura marcada por influências estrangeiras.

O reino de Axum desempenha em certa época um papel

importante na História da África Oriental: A fundação do

reino serviu de base para a edificação de um império. Do

fim do século II ao início do século IV, Axum tomou parte

nas lutas diplomáticas e militares que opunham os Estados

da Arábia Meridional. Os axumitas submeteram as regiões

situadas entre o planalto do Tigre e o vale do Nilo. No

século IV, conquistaram o reino de Méroe, então em

decadência. Desse modo foi-se constituindo um império

que abarcava as ricas terras cultivadas do norte da Etiópia,

o Sudão e a Arábia Meridional, incluindo todos os povos

que ocupavam as regiões situadas ao sul dos limites do

Império Romano – entre o Saara, a oeste, e o deserto de

Rub al-Khali, no centro da Arábia, a leste. (GIORDANI,

1985: 83)

A presença muçulmana e o freqüente contato com os hebreus

explicam o caráter híbrido, também da religião professada na Etiópia.

No século XVI, apesar do empenho de portugueses e etíopes para

aproximar o país do clero romano, as práticas pouco ortodoxas

daqueles cristãos tão afastados da cultura ocidental, levaram a que os

Papas (Paulo III, Clemente VII) dessem pouca atenção às freqüentes

embaixadas que o país enviava à Itália em busca do reconhecimento

da sua fé.

Vemos que este imperador dos etíopes com todos os seus

súditos, como será observado em nosso relato, deseja

também viver sob tua lei e nada mais deseja. Não ignora,

além disso, por causa da doutrina dos Apóstolos, que

possui, dividida em oito livros, que a primazia dos bispos e

de todo o mundo é devida ao bispo romano, a quem inteira

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e santamente quer submeter-se e também ser instruído por

ele nos princípios da Igreja de Cristo. (GÓIS, 1541: 05).

O Papa Eugênio III (de 1145 a 1153), num passado remoto,

reunira-se num Sínodo, em Malta, com José, patriarca de

Constantinopla, grande número de bispos e arcebispos, e também com

os patriarcas de Antioquia, Alexandria e Jerusalém, quando foi

estabelecida e consagrada a doutrina, superando, pela reforma dos

costumes, a disciplina da Igreja e a evangelização do povo, as

dificuldades e divergências que havia em suas práticas. Legados do

imperador etíope da época levaram ao país esse código de conduta

cristã, conforme narrativa do imperador Davi, em carta ao rei D

Manuel, de Portugal, no ano de 1524.

Mas no século XVI, a expansão do Islã e o surgimento do

protestantismo, abalaram sensivelmente a antiga tolerância para com

os outros cristãos, mesmo aqueles que, em virtude de uma cultura

singular, não seguiam com rigor os preceitos do catolicismo ortodoxo.

E esse era o caso dos etíopes, que jamais conseguiram se afastar de

suas tradições, apesar de estarem entre os povos que mais

precocemente adotaram a fé cristã.

Nesse contexto, foi em vão que os sacerdotes da Etiópia

buscaram abrigo para seu cristianismo primitivo e mestiço junto à Sé

romana. Afinal, mesmo declarando-se portadores dos oitos livros

escritos pelos Apóstolos e confessando-se fiéis à Santíssima Trindade

– na época questionada por eruditos europeus, como Michael Servetus

–; embora celebrassem datas festivas, como a Anunciação, a

Natividade, a Circuncisão, os Círios, o Batismo, o Domingo de Ramos

e a Sexta-Feira Santa, entre outras, havia na sua ritualística influências

consideradas de origem pagã ou heréticas.

O jejum às quartas-feiras, em memória do Concílio dos

Judeus, e às sextas-feiras, dia da crucificação, desde a manhã até o

pôr-do-sol, o resguardo diferenciado para a mãe que deu à luz menino

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ou menina e a circuncisão – inclusive para as meninas – aproximava-

os do judaísmo. A permissão do casamento aos clérigos, para que não

vivessem em pecado, aproximava-os do luteranismo. A observância

do Antigo Testamento era própria do calvinismo. O costume de não

entrar no templo com os pés calçados, fazia-os semelhantes aos

muçulmanos. Por isso nunca foram reconhecidos pelas autoridades

eclesiásticas do Ocidente como autênticos e legítimos católicos.

Assim, entre os séculos XVII e XIX, depois de terem expulsado os

jesuítas de seu território, ficariam esquecidos no meio de seus

conflitos e à mercê da influência muçulmana, que acabou por reduzir

o domínio do catolicismo, ainda que seja esta a religião oficial e

professada por, mais ou menos, cinqüenta por cento da população.

Além de ter assimilado as três maiores religiões monoteístas

do mundo – Cristianismo, Judaísmo e Islamismo – a Etiópia

conservou vestígios de sua religião ancestral e seus cultos, associados

à adoração das árvores, da serpente-rei, do sol, da lua e da deusa

Astarte108

. Essas religiões da natureza possuem um número

significativo de seguidores, em torno de quinze por cento, devido, em

parte, à grande concentração populacional em áreas rurais – pouco

mais de dez por cento dos etíopes vivem nos centros urbanos. O

Judaísmo, que remonta aos tempos mais antigos do país, apesar de ter

seus fundamentos na Bíblia de Israel, desenvolveu-se contaminado

pelos cultos indígenas.

A adesão ao Islamismo, em torno de trinta e cinco por cento

da população, deve-se principalmente à tolerância característica da

religião muçulmana, onde foi possível encontrar refúgio para muitos

dos cultos nativos. Por essa razão, as relações com os representantes

estrangeiros não resultou em conflitos de natureza teológica, e a

religião islâmica foi adotada em seu estado quase puro. Também a

língua falada na Etiópia (amárico) favoreceu esse intercâmbio, uma

vez que a interação com os povos árabes foi muito mais intensa que

108

Deusa fenícia do amor e da fertilidade, associada à Afrodite.

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com as culturas judaicas, inclusive em virtude da localização e do

comércio na região do Mar Vermelho, desde os tempos em que a

Abissínia se estendia até a costa.

O cristianismo que se preservou na Etiópia não está submetido

à Igreja de Roma, mas à Igreja copta do Egito, de culto nestoriano. A

oposição ao domínio árabe pode ser a principal causa da

sobrevivência dessa religião, apesar de toda polêmica relacionada aos

seus dogmas. Desde a sua origem, quando se deu a conversão do

Imperador Ezana, que ao morrer deixou o cristianismo firmemente

enraizado na consciência do seu povo, nenhuma mudança significativa

se verificou na doutrina estabelecida pelos primeiros Concílios. O de

Calcedônia, em 451, que estabeleceu a doutrina das duas naturezas de

Cristo, uma divina e outra humana, foi, por esse motivo, rejeitado

pelos coptas, entretanto não produziu efeitos no cristianismo etíope,

uma vez que ali o monofisismo já era aceito e assim explicado:

mesmo na pessoa de Cristo encarnado pairava sua natureza divina. O

cisma sobre as duas naturezas de Cristo entre os cristãos do oriente,

também, deu origem a perseguições e condenações por heresia.

A Etiópia ofereceu refúgio a muitos desses religiosos

perseguidos. Contudo os imperadores de Bizâncio, que lideraram as

perseguições, especialmente Justiniano I, mantiveram com o país

abissínio relações amigáveis, talvez porque seu território distante não

fazia parte dos limites do Império bizantino, como, também, jamais

fora reduzido à condição de província romana.

O Senhor dirigiu sua promessa à descendência de Abraão,

ou seja, a todos os povos, não somente aos romanos. Em

virtude dessa promessa, já é uma realidade: diversos povos

não submetidos à dominação de Roma receberam o

Evangelho e fazem parte da Igreja que produz seus frutos e

se espalha no mundo inteiro. E poderá crescer ainda, até

se cumprirem profecias. Os povos não virão ao Senhor,

abandonando sua pátria, mas confessando a fé em sua

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própria terra. (SANTO AGOSTINHO, Carta a Hesíquio,

12, 47)109

De acordo com Kebra Negast, o Imperador da Etiópia e

Justiniano I haviam sido designados por Deus para se reunirem em

Jerusalém e dividir entre eles o domínio da religião no mundo. Com

efeito, a Igreja etíope manteve, por setenta anos, o controle sobre os

cristãos do sul da Arábia. O projeto por demais audacioso de

converter toda a Arábia não se efetivou em virtude do fortalecimento

do islamismo em 570.

A unificação da Etiópia como Império está intimamente

associada à adoção do Cristianismo, cerca de 900 anos antes de Cristo,

quando teve início a dinastia salomônica, com o rei Menelik I, que, de

acordo com a tradição judaico-cristã era filho do Rei Hebreu com a

Rainha de Sabá, governante de Shoa, em terras abissínias.

Unificação no passado e independência no futuro, eis o legado

da religião cristã à Etiópia. Além de não ter sido alcançado pela

dominação romana, é um dos dois países africanos que não sofreu a

colonização européia. Esta se restringiu a um curto espaço de tempo

da ocupação pela Itália, que, por não ter sido agraciada com nenhuma

parcela do Novo Mundo, resolveu empreender a conquista da região,

mas foi derotada em 1896 por Menelik II, na batalha de Adua.

Invadida novamente pela Itália, em 1935, sua ocupação

alcançou a maior parte do território até 1941. Mas a Inglaterra,

empenhada em expandir seus mercados, em decorrência da Revolução

Industrial e da ascensão do Capitalismo, desde o século anterior

passara a apoiar os movimentos de independência, como também a

França, que aliou-se aos ingleses para auxiliar na libertação do país.

109

Apud ALBERIGO, 1988: IX.

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Mesmo sendo um dos mais antigos países cristãos da História, a

Igreja Ortodoxa Oriental divide com outros credos a fé do povo

etíope. A intolerância religiosa, que desde as origens é motivo de

conflitos até mesmo entre cristãos, talvez tenha sido a causa principal

do crescimento do islamismo no país, impedindo a adesão

incondicional à fé católica.

Apesar de se considerarem os herdeiros e guardiães da Arca da

Aliança, furtada pelos primogênitos israelitas que acompanharam

Menelik I em seu retorno à Abissínia, os conflitos religiosos e a

instabilidade política e econômica representam um entrave ao

desenvolvimento social e humano na Etiópia. Além disso, a mudança

do regime deu origem a uma espécie de messianismo à africana desde

a morte de Hailé Selassié (o Negusa Negast da Etiópia.), pois o povo

permanece, ainda, à espera daquele que há de retornar para governar

todos os afro-descendentes do mundo.

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Muçulmanos e Cristãos: uma construção da alteridade dos

fiéis das duas crenças

Maria do Carmo Parente110

A vitória dos turcos seldjúcidas sobre as tropas bizantinas em

agosto de 1071 foi um duro golpe para os exércitos cristãos, uma vez

que abriu caminho para o assentamento do inimigo na região da

Anatólia. É difícil não se reconhecer neste evento o ápice de um

processo de expansão muçulmana iniciado logo após a morte do

fundador do islamismo.

O surgimento do Islã e sua conseqüente expansão ocorreu

num momento em que as vitórias do imperador Heráclio sobre o

império sassânida pareciam ter efetivado definitivamente a soberania

cristã sobre a Ásia Menor, Egito, Síria e Mesopotâmia, áreas

importantes por seus imensos recursos naturais e humanos.

Os governantes dos impérios bizantino e sassânida foram

pegos de surpresa, quando se iniciaram as primeiras investidas dos

muçulmanos sobre suas fronteiras. A perspectiva com que ambos

encaravam os árabes não era das mais lisonjeiras. As tribos nômades

habitantes da península Arábica vivendo em permanentes conflitos

umas com as outras não pareciam constituir uma ameaça aos dois

impérios, que não acreditavam que estas pudessem transcender seus

ódios tradicionais, aliando-se para a formação de uma unidade política

obediente a um único governo.

Mas, o tribalismo e o modo de vida nômade dos beduínos era

uma característica da Arábia setentrional e média, e não de toda a

região. No sul florescia uma apreciável cultura urbana, possível pela

construção de grandes diques e sistema de irrigação. Sua posição -

110

Prof.ª Dr.ª da área de Antiga e Medieval, da UERJ. Membro do Núcleo de

Estudos da Antiguidade e do CEHAM/UERJ.

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saída do mar Vermelho - tornava-a ponto de convergência das grandes

rotas mercantis Oriente- Ocidente e ainda local de ligação comercial

entre o oceano Índico e as rotas terrestres que se dirigiam para a Síria

e o Egito.

Mas, uma região cuja posição favorecesse o comércio acabava

sempre por levar ao abandono do nomadismo. Tal fenômeno pode ser

observado em Meca, posicionada no entroncamento de duas grandes

rotas de caravanas, tornou-se por este motivo um vigoroso entreposto

comercial, dirigida por uma aristocracia de ricos comerciantes.

Os árabes não viviam isolados em seu território interagindo

com persas e bizantinos das mais diversas maneiras: trabalhavam

como soldados mercenários, mas também praticavam o comércio

fornecendo aos dois impérios camelos, incensos ou escravos.

Além disso, os governos de ambos os impérios defendiam

suas fronteiras de eventuais invasões incentivando a formação de

pequenos estados clientes semi-beduínos governados por príncipes

árabes.

As contínuas relações entre bizantinos e árabes e, mesmo

entre estes e os judeus explicam o aparecimento, a partir do século VI

de uma mudança espiritual, mudança esta que apontava em direção ao

monoteísmo denunciando uma grave insatisfação com a religião

politeísta tradicional.

O aparecimento de uma terceira fé monoteísta na região não

foi percebida de imediato. Primeiramente porque as querelas

religiosas que sacudiram periodicamente o império bizantino

tornavam fácil acreditar que o islamismo seria apenas uma outra

corrente teológica desviante da ortodoxia imposta pelo clero de

Constantinopla. E talvez, a própria ausência da idéia de pluralismo

religioso tornasse impossível conceber o surgimento de uma nova

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religião, uma vez que acreditava-se ser a Bíblia a fonte legítima de

todo o conhecimento espiritual.

A pregação de Maomé e a consequente formação da Ummá

significou a suspensão das lutas tribais e a canalização da

agressividade para fora da península Arábica, mas exatamente para

regiões pertencentes aos impérios persa e bizantino. Mas, estes

estavam por demais ocupados em manter uma guerra um contra o

outro, conflito que se arrastou do ano de 602 até 628, exaurindo as

riquezas e os exércitos de ambos.

Em 629 uma coluna de beduínos, comandada pelo filho

adotivo de Maomé atacou Mu‘ta, fortificação bizantina no mar

Vermelho. Este foi o primeiro passo de um processo que levou os

exércitos árabes a alcançar a Espanha e o Turquestão. Mas, para as

autoridades bizantinas Mu‘ta não passara de uma escaramuça de

fronteira sem uma importância maior. Mas em dez anos desapareceria

o império persa varrido pela força das tropas muçulmanas enquanto

Bizâncio passou a viver em constante estado de alerta devido a

crescente pressão islâmica, que se mostrara tão avassaladora que no

ano de 640 arrebata-lhe sua mais rica província—o Egito.

Durante muito tempo explicou-se a rapidez da conquista

muçulmana pela capacidade dos homens que compunham seus

exércitos de enfrentarem as mais duras provações, uma vez que

estavam habituados ao modo de vida nômade dos beduínos, aliado a

isto a ambição de obter a posse de enormes riquezas. Contudo, uma

análise mais acurada sobre a situação do Oriente bizantino demonstra

que existia uma debilidade intrínseca na capacidade do governo de

Constantinopla em fazer-se obedecer em suas diversas províncias.

Tal situação era, sem dúvida, o resultado das inúmeras

querelas religiosas que durante séculos sacudiram o império, criando

dissensões que na maioria das vezes sob o manto religioso

expressavam na verdade insatisfações de caráter político, aumentadas

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pela rigorosa política fiscal estabelecida pelo imperador Heráclio, com

o intuito de obter recursos, pois a guerra contra os persas esvaziara o

tesouro.

Além disso, o fator cultural também era um fator ponderável

nas difíceis relações do império com suas províncias. No caso da Síria

e do Egito, a primeira possuía uma cultura aramaica enquanto a

cultura egípcia era copta. A população de ambas as regiões adotara o

monofisismo. Assim, não havia nenhuma identificação com o governo

bizantino, tanto sob o ponto de vista étnico quanto cultural.

A lealdade destas populações em relação ao Império

Bizantino era bastante fraca e podemos acreditar que não houve a

oposição de uma forte resistência ao avanço muçulmano. Fontes

siríacas informam-nos que a expansão árabe foi considerada como um

castigo divino enviado por Deus para punir o pecado dos imperadores

bizantinos, especialmente Heráclio, cuja feroz política em relação às

comunidades monofisistas e nestorianas havia trazido um enorme

ressentimento contra o domínio imperial.

A própria postura tolerante dos invasores , que não forçaram

a conversão de cristãos e judeus, vistos como al-kitab (povos do

Livro) e por isso participantes da verdade levou a uma rápida

acomodação entre conquistadores e conquistados.

A tolerância dos primeiros califas foi um reflexo da própria

carreira do Profeta, que fundara um império religioso na Arábia,

usando muito mais a diplomacia do que a guerra. Assim, os

comandantes muçulmanos ofereciam condições generosas –proteção e

tolerância— em troca de um tributo fixo, obtendo desta forma a

rendição de importantes cidades, como foi o caso de Damasco e

Alexandria.

A conquista estendeu-se e no século VIII abarcava terras que

se estendia do rio Tejo, em Portugal, ao rio Indus no Paquistão, do

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Atlântico ao mar de Aral, na Ásia Central, do sul do Saara aos montes

Pirineus entre a Espanha e a França. As vitórias conseguidas neste

empreendimento legitimaram-se sob a égide da Jihad , ou seja, da luta

contra o infiel. É bem verdade, que este não é o único nem o primeiro

significado desta palavra, que na sua origem queria dizer ―combate na

senda de Deus contra si mesmo a fim de se aperfeiçoar‖.

Uma segunda expansão ocorreu no século XI e não apresentou

um caráter militar, mas foi realizada por comerciantes e missionários

que adentrando da Índia Meridional, do arquipélago das Maldivas, da

ilha de Sumatra, da Malásia, da China Meridional, do arquipélago da

Indonésia, da África Oriental, da Etiópia e do Sudão procuraram

converter os príncipes e soberanos locais. A expansão do islamismo

nestas regiões configurou-se num processo de larga duração temporal.

A empresa militar iniciada logo após a morte do Profeta

conheceu sua maior expansão a oeste com a conquista da Sicília entre

827 e 902. A guerra santa havia chegado ao fim com a ascensão do

califado abássida, que mudando a capital para Bagdá no Iraque

transformou o califado do império mediterrâneo em império asiático.

O processo de expansão colocou os árabes muçulmanos em

contato direto e, por vezes, bastante estreito com povos das mais

diversas religiões. Os de fé monoteísta fizeram jus à tolerância, por

meio de um pacto - dhimma - que, se por um lado garantia-lhes o

direito de continuarem praticando sua própria religião, gozando

mesmo de certo grau de autonomia comunal; por outro os obrigava a

pagar a jyzia, imposto por cabeça.

Desta forma, numerosas minorias cristãs sobreviveram em

números expressivos no Egito, Síria, Líbano e Palestina, embora o

mesmo não tenha ocorrido na Ásia Central, Sul da Arábia e Norte da

África. Contudo, budistas, hindus e animistas, não fizeram jus à

tolerância dos conquistadores.

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O islamismo é apresentado no Corão como uma religião que

se define por sua oposição às outras - umma dunal-nas. Que podemos

traduzir como povo ou comunidade distinta do resto da humanidade.

Derivada desta idéia a perspectiva política tornava-se bem clara,

quando os territórios dominados pelo Islã eram denominados Dar al-

Islam, ou seja, Casa do Islã; enquanto as terras sob outra soberania

eram vistas como Dar-al-Harb - Casa da Guerra, que deve ser

conquistado para a charia, a lei islâmica, e isto poderia ser feito seja

pela pregação da palavra, ou se esta se mostrasse inútil, pela força das

armas.

Mas, esta rígida polarização mostrou-se inexeqüível durante o

processo expansionista, obrigando os juristas a criarem outras

categorias. O chamado Dar el Soth ( território da trégua) podia-se

conservar em paz mediante o pagamento de tributos aos muçulmanos.

O reconhecimento de que determinados territórios não poderiam ser

conquistados pela superioridade militar ou numérica dos infiéis ou

mesmo por imperativos econômicos, técnicos e sociais levaram a que

as relações com estes fossem regidas pela daruriyya, ou seja, pelo

estado de necessidade.

Mas, a constituição de uma marcada alteridade islâmica foi

um processo longo. Em relação aos povos politeístas havia desde o

início a consciência bastante forte da diferença, emanada do

ensinamento fundamental do Profeta, Deus é Único, impôs-se. Mas, o

mesmo não ocorria em relação aos dois outros povos de fé monoteísta.

Tais como os fiéis do judaísmo e do cristianismo, o

mulçumano é um homem ―temente a Deus‖ e preocupa-se com o

Juízo Final. Como acima já dissemos judeus e cristãos como povos do

Livro - o Antigo Testamento - não foram obrigados a converterem-se.

Isto aliado ao fato da contínua convivência entre estes e os

muçulmanos poderia levar a uma ―contaminação‖ da fé islâmica.

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Para compreendermos melhor esta questão devemos refletir

sobre alguns pontos importantes para entendermos as dificuldades que

se apresentaram, primeiramente ao próprio Profeta e, posteriormente

aos diversos califas no processo de definição de uma teologia

muçulmana própria, livre das idéias oriundas do judaísmo e do

cristianismo.

Como já o dissemos, desde muito cedo as tribos beduínas

entraram em contato com cristãos e judeus, tendo um grande número

destes últimos habitado na península Arábica. Deste modo sabemos

que na região, quando Maomé começou sua pregação, já haviam

tribos convertidas ao cristianismo e ao judaísmo.

Em Hira existia, por volta de 510 um bispado nestoriano,

fazendo surgir no século VI uma comunidade arábico-

nestoriana(‗ibad), que por sua combinação de grupo religioso e

organização tribal, constituiu-se num prenúncio da comunidade

islâmica. Tribos beduínas foram cristianizadas a partir do reino

gassânida, sendo que algumas destas possuíam seus próprios bispados.

Não podemos esquecer que, segundo a tradição, em Meca

acreditava-se que a Caaba havia sido fundada por Abraão e a princípio

dedicada a um único deus, mas a maldade dos homens acabaram por

desvirtuar este objetivo, dedicando-o a numerosos deuses. Deste

modo, podemos afirmar que os elementos que no final do século VI

impulsionaram uma mudança espiritual na península Arábica foram o

cristianismo e o judaísmo.

A oposição às predicações de Maomé em Meca não se

fundamentavam numa rejeição ao monoteísmo, mas por suas idéias

escatológicas e a severa condenação ao politeísmo, especialmente das

divindades locais. A animosidade dirigida ao Profeta era reforçada

pelo ressentimento social e pelo temor que suas prédicas pudessem

prejudicar a lucrativa indústria da peregrinação.

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A Hégira significou o primeiro passo no processo de definição

do islamismo. Até sua chegada em Medina, Maomé acreditava que a

revelação que lhe fora feita era a mesma anunciada a judeus e cristãos,

mas a refutação feita pelos primeiros de sua mensagem modificou a

sua concepção de missão religiosa. Embora, continuasse afirmando

que Moisés e Cristo não eram falsos profetas, explicava que eles não

conheciam a verdade plena, ou seus seguidores haviam-na

conspurcado após a morte de ambos. A mudança no costume de rezar

voltando-se para Meca e não mais para Jerusalém foi um reflexo do

distanciamento do Profeta das influências hebraicas.

Mas, a contínua convivência dos muçulmanos com cristãos e

judeus dentro dos territórios conquistados tornava sempre presente a

ameaça de que a doutrina islâmica fosse ―contaminada‖. Tal

convivência foi provocada pelas necessidades da montagem de um

sistema administrativo, tarefa impossível de ser realizada sem a

admissão de cristãos e judeus como funcionários.

Além disso, não podemos esquecer outra contribuição de

vital importância recebida pelos muçulmanos dos ―infiéis‖: foram eles

que lhes apresentaram a cultura da Antiguidade helenística e persa.

Igualmente, estes conhecem por meio dos seguidores de Maomé, a

sofisticada literatura poética nascida no deserto, e se deixam por ela

encantar.

Nas terras do Crescente Fértil dominadas pelos muçulmanos

estabeleceu-se uma estreita cooperação entre estes e os cristãos em

dois campos em que os estudos serviam para o avanço de ambos: os

de serviço profissional e intercâmbio intelectual.

Durante o século dos califas omíadas os costumes beduínos

ainda estavam muito presentes, conferindo uma superioridade social

aos árabes evitando que eles perdessem a sua individualidade no meio

da imensa população de povos conquistados, pois no século VIII

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somente uma minoria muçulmana (cerca de 10%) podia ser contada

na população do Irã, Iraque, Síria, Egito, Tunísia e Espanha.

No sul da Espanha dominado pelos árabes que ali

estabeleceram um emirado, a convivência entre muçulmanos e

cristãos levou a inúmeras controvérsias entre eles, embora a leitura

das fontes hagiográficas não deixem dúvidas sobre a cooperação

prestada por uma parte dos prelados cristãos às autoridades

muçulmanas. No século IX o bispo da cidade de Málaga foi acusado

por Samson, abade de um convento cordovês de estabelecer

compromissos com o Islã. As acusações fundamentavam-se no

trabalho que Hostégesis fazia para as autoridades árabes. Conhecedor

da língua dos muçulmanos ele traduzia para o latim as missivas que

eram dirigidas pelo Emir para o rei Carlos, o calvo.

Por outro lado, Hostégesis acusava seu inimigo de procurar

nos seus concílios agradar os libidinosos autorizando o casamento

entre primos irmãos. Tal prática, na realidade, era uma influência do

meio árabe-berbere, onde este tipo de matrimônio era reputado como

o ideal.

A presença árabe na Península Ibérica, de certa maneira isolou

os cristãos que ali residiam do restante da comunidade cristã do resto

da Europa e é inegável a fascinação que a cultura árabe exerceu sobre

eles. Em decorrência disto, o latim foi pouco a pouco sendo

abandonado e, embora em 869 ainda houvesse um bispo na cidade de

Mérida, nenhum de seus paroquianos era capaz de traduzir uma

inscrição latina.

As atas do Concílio de Córdova em 839, que condenam a

heresia denominada ―Acéphales‖ demonstram que a comunidade

moçárabe do Andalus encontrava-se exposta a todo o tipo de

influência da cultura árabe, influências não somente doutrinais, mas

referentes a práticas de casamentos consangüíneos, de interditos

alimentares, da circuncisão, e de inúmeras outras influências orientais.

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No século X o número de conversões ao islamismo havia

aumentado não só na Espanha, mas em todas as regiões de dominação

islâmica, tanto na população urbana quanto um considerável número

de habitantes das zonas rurais. Isto pode ter ocorrido porque a linha

entre fiéis e infiéis estava mais nitidamente estabelecida, definindo-se

mais claramente todo um sistema de ritual doutrina e lei próprio dos

seguidores da fé islâmica, claramente diferente daqueles pertencentes

a judeus e cristãos, ou seja, no referido século um seguidor dos

ensinamentos do Profeta tinha mais consciência de si mesmo como

muçulmano em oposição aos fiéis das outras religiões monoteístas.

Este processo – a definição de uma alteridade muçulmana—

foi longo, difícil e por vezes bastante tortuoso, não podendo ser

reduzido apenas à clássica oposição fiéis, muçulmanos versus infiéis,

cristãos e judeus. Na verdade, a expansão muçulmana incorporou

povos, das mais diversas culturas, que ao se converterem à fé de seus

conquistadores, acabaram por criarem suas próprias interpretações da

mensagem do Profeta entrando em conflito com os árabes. Muitas

vezes, estas interpretações eram usadas para exprimir

descontentamentos políticos.

O primeiro século da dominação muçulmana na Península

Ibérica foi marcado pela oposição entre os governantes árabes e os

berberes, estes últimos componentes das fileiras do exército que

desembarcou em 711, efetuando a conquista. Os berberes provinham

do norte da África e eram tribos bastante aguerridas, de cujos hábitos

bastante semelhantes aos das tribos beduínas habitantes da Arábia no

tempo em que Maomé iniciou sua pregação.

Os berberes eram olhados com desprezo pelos árabes e após a

conquista da Espanha, embora fossem em maior número do que estes

não receberam postos de comando e foram assentados em terras

menos produtivas. Assim, em 740 um grande levante berbere sacode o

Magrebe, alastrando-se pela Península Ibérica. Esta revolta foi

alimentada por idéias religiosas do carijismo. Em 768, outro falso

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profeta, apresentando-se como descendente de Maomé levou os

berberes do centro da Península a uma grande revolta de inspiração

xiita, que durou por uma dezena de anos.

A chegada dos almorávidas à Península Ibérica constituiu-se

numa dura provação aos cristãos, num momento em que a tomada de

Toledo pelas tropas de Afonso VI parecia prenunciar a definitiva

vitória destes na guerra de Reconquista. Os recém-chegados eram

berberes e foram chamados pelo rei da taifa de Sevilha, receoso que

seus domínios fossem também tomado pelo exército inimigo.

A seita almorávida - monges soldados - iniciou-se com a

fundação de um ribat no norte africano, local ao mesmo tempo

fortaleza e monastério. O local passou a ser considerado, um lugar de

purificação e de formação do muçulmano exemplar. Seu fundador,

Abdala Bem Yasin, considerado um homem santo e propagador de

uma teologia rigorista do Islã não teve dificuldade em arregimentar

um grande número de seguidores dispostos a dar suas vidas pela causa

islâmica.

A dominação almorávida na Península Ibérica vinculou-a a

um poder extra- peninsular, uma vez que em Marrakesh é que se

encontrava o centro do poder decisório e representou uma nova

berberização do sul da Espanha. Apesar, do inegável impulso

econômico, com a introdução de uma nova moeda, o dinar, a

mentalidade almorávida estava profundamente penetrada pelo ideal de

guerra santa com um rigoroso respeito ao texto corânico, negando-se a

toda e qualquer contemporização com os infiéis.

Esta postura fez com que se estabelecesse uma severa

restrição às manifestações culturais, tendo os juristas um papel de

destaque na implementação de um política de estrito zelo à

interpretação estrita do Corão, o que significou numa restrição a todo

o pensamento especulativo.

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As autoridades almorávidas logo ficaram escandalizadas com

a grande tolerância com que eram tratados judeus e cristãos nos reinos

das taifas, tornando cada vez mais difícil a vida destes. Por outro lado,

o islamismo que até então fora praticado no Andalus de maneira

formal e oficial, sob o governo almorávida converteu-se, para a

maioria de seus seguidores espanhóis numa crença interiorizada e

fundamentadora de seu sentimento de alteridade.

De forma análoga, os cristãos espanhóis, agora integrados ao

resto da cristandade européia pela reforma gregoriana tomavam

consciência das diferenças teológicas que os separavam dos invasores

e, por conseguinte do caráter específico de sua comunidade, levando a

uma adesão maior à luta contra aqueles, o que explica as vitórias

seguidas dos exércitos cristãos sobre os muçulmanos.

Contudo, um novo movimento religioso havia surgido no

Norte da África com os almóades, que seguindo o rastro daqueles que

os antecederam, atravessaram o Gibraltar (1146), invadindo a

Espanha, derrubando o poder almorávida. O curioso é que os novos

invasores acusavam os almorávidas de não seguirem fielmente o texto

corânico.

A invasão almóade traduz-se num fortalecimento do processo

de berberização do sul da Península Ibérica, acompanhada de uma

sistemática política persecutória dirigida a cristãos e judeus. Estes

últimos foram duramente perseguidos em Sevilha, Granada e Lucena

enquanto a comunidade mozárabe sofreu um processo de constante

diminuição, acabando por extinguir-se por volta de 1126.

A vitória militar sobre as tropas cristãs na batalha de Alarcos

(1195) embora tenha representado um duro revés para o inimigo

demonstrou, contudo, a fragilidade do poder almóade, uma vez que

jamais conseguiu consolidar sua vitória no território conquistado,

limitando-se a defendê-los. Isto permitiu a contra-ofensiva cristã

materializada na vitória de Las Navas de Tolosa em que tropas dos

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reinos de Navarra, Castela e Aragão impuseram uma derrota ao

exército muçulmano, e iniciando o declínio do poder almóade na

Península Ibérica.

Em 1238 só restava do poder muçulmano na península o reino

nazari de Granada, cujo soberano prestava vassalagem ao rei

castelhano. Mas, a dominação muçulmana na região marcou

profundamente o processo histórico dos reinos peninsulares, uma vez

que estes reinos tiveram suas estruturas políticas, sociais e até mesmo

econômicas pautadas e definidas pelas necessidades impostas pelo

estado de guerra intermitente contra o invasor. Mas, outra

característica diferenciava a Espanha das outras regiões européias – a

sua população cristã era a única que vivia em contato direto com

outras religiões.

Este contato determinou uma visão de mundo bastante

peculiar, onde a tolerância não era entendida como um respeito ao

diferente, mas sim como uma estratégia necessária à sobrevivência.

Mas, também o medo de que a convivência acarretasse uma

contaminação religiosa dos fundamentos de qualquer uma, ou na pior

hipótese, das três religiões monoteístas, promoveu uma severa luta

para manter a diferença entre elas. Deste modo, o primeiro elemento

definidor da alteridade das populações radicadas em solo ibérico foi o

fator religioso.

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Santidade Feminina na Gália Merovíngia: Radegunda de

Poitiers

Miriam Lourdes Impellizieri Silva111

Uma das questões que mais nos tem interessado, nos últimos

anos, é a relativa ao estudo da santidade cristã, no período comumente

denominado de Antiguidade Tardia, quando, passado o período das

perseguições, que fizera emergir o modelo do santo mártir,

testemunha preferencial do Cristo, em sua morte pela fé, novos

modelos de santidade começam a surgir, reveladores das mudanças

ocorridas na percepção religiosa dos cristãos e das suas novas

necessidades, frente aos problemas relativos ao culto e à devoção

cristãos.

Trabalhos de historiadores como Peter Brown, Andrè Vauchez,

Sofia Boesch Gajano, Evelyn Patlagean, entre outros, têm aclarado

nosso conhecimento sobre a temática, como aberto caminho a novas

discussões e problemáticas, a partir das suas reflexões e conclusões,

na maioria das vezes não definitivas.

A verdade é que o estudo da santidade seja na abordagem

metodológica das suas fontes (para o período acima citado, quase

sempre as vitae, as narrativas de translação e as narrativas dos

milagres em vida e pós-morte), seja na problematização das mesmas,

apresenta-se como um grande campo a ser desbravado pelo

pesquisador, principalmente, no que toca à santidade feminina,

relativamente pouco explorada e dependente dos modelos

determinados para a santidade masculina, ou então, vista somente a

partir do viés dos estudos de gênero.

111

Professora de História Medieval da UERJ; Doutoranda em História Social

na USP.

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Dos autores em questão, podemos inferir ser a santidade cristã

um fenômeno nascido no interior do cristianismo, resultante da sua

própria religiosidade e da sua percepção do sagrado112

, que se altera

de acordo com as épocas, a partir das suas necessidades religiosas (daí

os diversos modelos em que os santos são inseridos), majoritariamente

masculino, com funções bem definidas dentro da sociedade cristã,

também de acordo com o tempo: é o morto excepcional, de quem se

espera o papel de intermediação entre as pretensões e problemas

humanos e a divindade inacessível; é aquele que, graças a suas

práticas ascéticas e seu profundo amor pelos outros homens, adquire o

controle e domínio sobre sua própria natureza e um poder sobrenatural

sobre os elementos, que expulsa demônios e reintegra marginalizados,

restabelece a concórdia e a paz sociais, restaura a ordem perturbada

pelo pecado através da sua taumaturgia; e, finalmente, é o

sustentáculo da Igreja e o exemplo para os outros fiéis (VAUCHEZ,

1987: 289-291).

Após esta breve introdução, é hora de lançarmos um olhar sobre

Santa Radegunda Poitiers, tema de nossa presente comunicação, a

partir de duas questões: quem foi Radegunda, de acordo com suas

fontes, e como ela se insere no quadro da santidade do século VI,

com sua tipologia variada, de acordo com seus hagiógrafos.

112

Devemos a Peter Brown (1971) a percepção de que o fenômeno da

santidade, tal como se coloca e se desenvolve no decorrer dos séculos, é

próprio do Cristianismo, forjado a partir da sua própria religiosidade e como

tal deve ser analisado. Aqui, cabe uma observação, de que durante boa parte

do século passado, a idéia de que a santidade cristã era mera continuação do

culto dos deuses antigos, ou melhor, sua substituição dentro de um quadro

mental organizado pela Igreja, em seu processo de cristianização da

população romana e, posteriormente, dos povos germânicos, tal como o

pretendia Saintyves em seu Les saints, sucesseurs des Dieux, de 1907,

praticamente não tinha opositores, a não ser entre historiadores católicos,

como Étienne Delaruelle, Henri Marrou, Jean Leclercq.

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Radegunda de Poitiers e suas Fontes

A beata Radegunda, de quem recordamos no início do livro

dos mártires, depois de uma vida de trabalho e de méritos

migrou deste mundo. Tendo recebido a notícia do seu

passamento, fomos até o mosteiro que ela mesma havia

fundado, na cidade de Poitiers. Encontramo-la jazendo no

ataúde; a santa estava esplêndida, a ponto de superar a

beleza dos lírios e das rosas. Ao redor do féretro, em

realidade, estava uma multidão imensa de monjas, em

número de cerca de duzentos que, seguindo suas palavras

levavam uma vida santa, as quais segundo a dignidade do

mundo provinham não apenas de famílias senatoriais, mas

algumas também da própria estirpe real e que levavam uma

vida perfeita segundo esta forma de vida religiosa.

(Gregório de Tours, Liber in Gloria Confessorum, cap.

104)

É com as palavras acima que Gregório de Tours fala de

Radegunda, a quem conheceu de perto, em vida, e de quem participa

das exéquias, tecendo-lhe elogios pessoais e a sua obra. Princesa

turíngia, rainha dos Francos, diaconiza, e por fim, monja. Afinal,

quem era Radegunda?

Radegunda nasceu na Turíngia (cerca de 518-520), de estirpe

nobre, filha e neta de reis, seu pai, o rei Bertário, foi morto pelo tio

Ermenenfredo. Após a derrota dos turíngios para os francos (531), foi

levada para a Gália, como despojo de guerra, juntamente com um

irmão, tendo a sua posse disputada por Teodorico I e Clotário I,

ambos filhos de Clóvis. Clotário sai vencedor da disputa e a leva para

Athies, onde é educada juntamente com os outros jovens do palácio

real. Possivelmente, após a morte da rainha Ingonda (538), Clotário

manifesta o desejo de desposá-la (será a sua 4ª esposa), o que faz com

que tente fugir, sem sucesso. Já casada, mas descontente com os

costumes da corte merovíngia, e principalmente com o casamento

forçado, Radegunda procura refugiar-se na religião (vive imersa em

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orações, jejuns, mortificações, cuidado com os pobres e doentes),

afastando-se cada vez mais da vida mundana, apesar de continuar a

viver no palácio real. Com o assassinato de seu irmão por ordem de

Clotário, ou pelas mãos do próprio Clotário, ela abandona de vez o

marido e se refugia junto ao bispo Medardo, a quem força a consagrá-

la diaconisa. Vai para Tours, em peregrinação ao túmulo de São

Martinho e acaba por se fixar na região do Saix, que o rei lhe havia

dado de presente de núpcias e onde funda um hospital. Mais tarde,

talvez depois da morte de Clotário, ocorrida em 561, dirige-se para

Poitiers, e em propriedade que lhe fora concedida por aquele funda

um mosteiro feminino, chamado inicialmente de Santa Maria e depois

de Santa Cruz. Ali, viverá até sua morte, em 587, que ocorre em "odor

de santidade", após anos de reclusão e de vida ascética pronunciada.

A permanência da memória e o culto a Radegunda, em Poitiers,

mantiveram-se ao longo de toda a Idade Média, chegando até a época

da Revolução Francesa, quando seu mosteiro foi desativado, seus

restos mortais confiscados e sua igreja, em parte, destruída.

Melhor sorte, porém, tiveram as suas fontes escritas,

relativamente numerosas, se pensarmos em termos da região e da

época em que viveu: a Gália Merovíngia, no século VI, e em se

tratando de uma rainha, que desempenhou papel importante na vida

política e religiosa do seu tempo. As fontes formam, pois, um

respeitável corpus documental.

Assim, chegaram até nós três hagiografias medievais: a de

Venâncio Fortunato, poeta, amigo pessoal da santa e bispo de Poitiers,

escrita no final do séc. VI; a da monja Baudonívia, do início do século

VII, sobre quem pairam dúvidas se havia conhecido ou não

Radegunda em vida; e a do bispo de Le Mans, Hildeberto de

Lavardin, do séc. XII, que escreve fundamentado nas Vidas dos dois

autores anteriores. Encontramos igualmente diversas referências a

Radegunda e a seu mosteiro na História dos Francos de Gregório de

Tours (livros III, VI, IX e X), inclusive com a transcrição de cartas

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que teriam sido escritas pela santa. Do mesmo autor, temos a

descrição das suas exéquias, no Liber in Gloria Confessorum (cap.

104), e da chegada da relíquia da santa cruz ao mosteiro de

Radegunda (À Glória dos Mártires, cap. V), além de diversos poemas

escritos por Venâncio Fortunato em suas Poesias, que fazem

referências a fatos e situações de sua vida, e da relação entre ambos.

Seria possível, a partir da leitura e análise destas fontes, traçar

um perfil de santidade para Radegunda, inserindo-a nos modelos

existentes para a sua época? É o que tentaremos fazer, a seguir.

Tipologia da santidade feminina na Antiguidade Tardia e

Radegunda

Como é sabido, o primeiro modelo de santidade que se

desenvolve no Cristianismo é o do mártir, sem grandes distinções

entre homens e mulheres, no que toca ao sofrimento, à coragem

demonstrada diante dos suplícios, à defesa da fé através do destemor

diante da morte, da intrepidez diante dos juízes e das autoridades

romanas. Venerados pelo exemplo de fé que haviam dado, e que os

habilitava a se tornarem intermediários bem-sucedidos entre o plano

humano e o divino, bem rapidamente, o culto a suas memórias e as

suas relíquias ultrapassam a região de origem, contribuindo para a

expansão do Cristianismo no século IV, em território romano113

.

113

Como exemplo, citamos o culto a São Estevão, difundido por todo o

Mediterrâneo no século V, segundo um caso narrado por Santo Agostinho,

em seu sermão 322, da Terça-feira depois da Páscoa, de 425 ou 426. Um

homem chamado Paulo, de Cesaréia da Capadócia, em busca da cura de seus

males, juntamente com uma irmã, havia peregrinado por vários lugares de

culto a São Estevão, do Oriente ao Ocidente, passando pela Itália, até chegar

à África do Norte. Depois de um sonho, acabou dirigindo-se para Hipona,

onde na basílica do santo, junto ao bispo Agostinho, foi milagrosamente

curado. Disponível em:

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Contudo, também bem rapidamente, outros modelos de

santidade começam a aparecer, mais próximos no tempo e no espaço,

dos cristãos do séc. IV. Seguindo o exemplo de Santo Antão, cuja

hagiografia, escrita por Santo Atanásio, por volta de 354, faz sucesso

retumbante por todo o Império, desenvolve-se o culto aos ascetas e

monges do Oriente, que logo encontra a sua contrapartida no culto aos

monges e bispos evangelizadores do Ocidente, modelo calcado na

figura de S. Martinho de Tours, e da sua vida, escrita por Sulpício

Severo, por volta de 397.

E quanto às mulheres? O modelo que se lhes impõe tem como

exemplo as duas Macrinas, a Velha e a Jovem. Macrina, a Velha (séc.

III), tornou-se exemplo da viúva cristã, honesta e caridosa; enquanto

sua neta, Macrina a Jovem (séc. IV), na pena de seu irmão Gregório

de Nissa, que fixa sua memória, torna-se modelo do ideal da virgem

consagrada, daquela que serve de inspiração para outras jovens que,

desistindo do século e do casamento, seguem-na em sua vida de

ascetismo e privações rigorosas, na reclusão, longe dos olhares do

mundo.

Contudo, outro modelo surge, o da rainha santa114

. Seu exemplo

fundador é a imperatriz Helena, mãe de Constantino, rígida defensora

da ortodoxia niceniana e organizadora do culto às relíquias de Cristo,

como a da verdadeira Cruz, que descobre e que traz de suas viagens

de Jerusalém para o Ocidente.

La emperatriz Elena, madre de Constantino, implicada en

primera persona en la política religiosa del hijo, revistió

como ejemplo una importante función simbolica en los

territorios del poder imperial y de sacralización de los

lugares. Peregrina en los territorios en los que el precedente

http://www.augustinus.it/italiano/discorsi/index2.htm. Acesso em: 13 de

março de 2009. 114

Apesar de surgido no século IV, este modelo só terá seu pleno

desenvolvimento nos séculos medievais.

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nomos pagano se sustituía por el nomos del soberano

cristiano, Elena encontrabava la cruz de Cristo, escondida

en aquellos lugares del demonío, y a éstos se presentaba

creando un paralelismo entre su papel de redentora de

emperadores y el de Virgen Maria redentora de la

humanidad [...] si las emperatrices son a menudo retratadas

con características y virtudes tipicamente marianas, la

misma Virgen es poética y litúrgicamente llamada regina e

imperatrix, en los siglos IV e V, cuando se convierte

incluso en exemplum para la tipologia feminina de la virgo,

vidua, mater."(CABIBBO, s/d: 40).

Portanto, são três os papéis da mulher, não apenas na sociedade,

mas também na santidade. Virgem, viúva, mãe. Papéis que se

entrecruzam, no caso da santidade régia feminina, a qual se estabelece

ao longo da história, em torno de três variáveis, segundo novamente

Sara Cabibbo:

1ª) Fundada na distância física e na obediência com que se

submete às estratégias matrimoniais da família de origem e às leis da

corte;

2ª) Apoiada, ao mesmo tempo, no sentimento de amor e de

amor recíproco entre a soberana e seu esposo, e na missão civilizadora

e evangelizadora que desenvolve nas relações com a corte;

3ª) Exaltatória das virtudes de adaptabilidade da mulher diante

das diferentes situações de sua vida, como filha dócil, excelente

esposa e amorosa mãe; exemplo de rigor, monacal, de obediência a

regras conventuais, de penitência corporal e espiritual, depois de seu

ingresso no mosteiro após a morte do marido soberano. (Ibid.., p. 42).

O caso de Radegunda estaria, portanto, dentro daquela primeira

variável, como veremos a seguir. Levada para longe do seu país de

origem, educada entre estrangeiros, obrigada ao casamento, fugitiva

do seu marido, reclusa em Poitiers.

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Voltando, porém, à questão das fontes para o estudo de nossa

santa, dos quatro autores medievais que escreveram sobre ela, seus

contemporâneos Venâncio Fortunato e Gregório de Tours, da monja

do Mosteiro de Santa Cruz, Baudonívia, e Hildeberto de Lavardin,

analisaremos, aqui, apenas as obras dos dois primeiros que lhe são

relativas115

.

Comecemos por Gregório de Tours, o único que não redigiu

nenhuma hagiografia da santa, mas cujas informações sobre sua vida,

ao longo de sua História dos Francos consideramos preciosas para

nós. Para o autor, Radegunda é a santa rainha, cujo casamento com

Clotário serviu para legitimar a conquista da Turíngia efetuada pelos

francos, já que ela foi levada para a Gália, como prisioneira após a

derrota de seu povo. Casamento que serviu para estabelecer a paz,

depois de décadas de guerras entre francos e turíngios, confirmando,

assim, a inserção de Radegunda na primeira variável que citamos mais

atrás.

Ao mesmo tempo, Gregório a reverencia como cristã e, pela

sua religiosidade, a considera uma "nova Helena".

Como Helena, que dois séculos antes, descobrira a Cruz de

Cristo, em sua peregrinação ao Oriente, Radegunda, utilizando-se de

suas ligações com o imperador de Constantinopla (um primo seu,

Hamalafredo, havia fugido do ataque dos francos e se refugiara junto

à corte do imperador bizantino, passando a viver ali), pede que ele lhe

envie algumas relíquias sagradas, das quais o Ocidente carecia, e entre

estas, um pedaço do "lenho santo", o que engrandece o mosteiro de

Poitiers.

115

Esta comunicação é apenas a primeira onde estudaremos a figura de Santa

Radegunda. Nos trabalhos a seguir, usaremos suas outras fontes,

principalmente a escrita pela monja Baudonívia.

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Da cruz e das suas maravilhas. Comparada a Helena, pelas

relíquias e méritos, a rainha Radegunda obteve uma porção

da verdadeira cruz e a colocou devotamente com outras

relíquias no mosteiro que havia fundado em Poitiers [...] (À

Glória dos Mártires, V).

Nossa Radegunda é também, uma "confessora", termo usado

preferencialmente para os homens, já que Gregório não hesita em

colocá-la entre os santos com tal atribuição, em sua obra, Livro à

glória dos confessores, dedicando-lhe largo capítulo. No texto ela é

chamada de "beata rainha", "santa rainha", já para as monjas é a

"mãe santa", enquanto os notáveis da cidade que pedem ao bispo de

Tours que presida as cerimônias de consagração do túmulo,

denominam seus despojos de "carne santa". E isto não acontece por

acaso, pois

quando estávamos salmodiando e comecávamos a

transportar o corpo santo, subitamente os possuídos pelo

demônio a proclamaram e a glorificaram santa de Deus,

confessando serem torturados por ela (Ibid. ibidem),

confirmando a continuação do poder de seu corpo de fazer milagres

depois da morte, o que caracteriza a sua virtù.

Quanto a Venâncio Fortunato, sua ligação com Radegunda foi

sempre muito forte. Aliás é a presença de Radegunda em Poitiers e

graças a suas admoestações que Fortunato, italiano de nascimento, em

passagem pela Gália, em peregrinação a Tours, para agradecer a São

Martinho pela cura de uma doença nos olhos, resolve estebelecer-se

definitivamente naquela cidade, de onde, segundo algumas fontes

fidedignas, tornou-se bispo após a morte da santa. A relação pessoal

com Radegunda é bem evidenciada em suas Poesias, assim como o

afeto e a veneração que lhe dedicava:

Vós que sois minha mãe por vossa dignidade

e minha irmã pelo privilégio de um puro amor,

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a quem eu rendo homenagem, nela fazendo concorrer meu

coração,

minha fé e minha piedade,

que eu amo com uma afeição celeste, totalmente espiritual,

e sem a criminosa cumplicidade da carne e dos sentidos

(Poesias, XI,6)116

No Prólogo de sua "Vida de Radegunda", esquecendo-se dos

lugares-comuns apresentados por outros hagiógrafos e por ele mesmo

em outras hagiografias que escreve, Fortunato apresenta Radegunda

de forma nova, a da mulher que, mesmo de frágil complexão, com a

ajuda divina, pode chegar a rivalizar com os homens, em pé de

igualdade, na luta para alcançar a santidade (PEJENAUTE RUBIO,

2005: 173).

I 1. A magnanimidade do nosso Redentor é tão grande por

realizar freqüentemente no sexo feminino esplêndidas

vitórias e por tornar as próprias mulheres, mais frágeis de

corpo, ilustres pela capacidade de uma alma forte. Cristo

torna vigorosas pela fé aquelas que têm uma inata

delicadeza, assim como aquelas que parecem frágeis,

apesar de serem decoradas pelos méritos, levam ao cume a

fama do seu Criador, de quem são rezes eficientes,

conservando em vasos de argila os tesouros escondidos do

céu: nos seus corações habita o mesmo Cristo Rei com as

suas riquezas. (Vida de Radegunda, Prólogo).

O tema da narrativa que Fortunato apresentará a seguir está

centrado na idéia mulier/femina fortis/virilis, já encontrada e definida

nos Padres dos primeiros séculos.

A idéia de que a mulher constitui um sexo inferior é voz

comum em toda a literatura antiga, tanto clássica como

116

"Mater honore mihi, soror autem dulcis amore/ Quam pietate, fide,

pectore, corde colo:/Cœlesti affectu, non crimine corporis ullo, /Non caro,

sed hoc quod spiritus optat, amo."

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cristã. Assim, se a mulher quiser, no terreno da santidade,

chegar a ser coroada, terá que sofrer o martírio ou levar a

cabo uma série de atos de autêntico heroísmo (vida

ascética, renúncia ao mundo, sacrifícios e mortificações em

alto grau), o que lhe valerá o qualificativo de "mulher

forte/mulher viril". (PEJENAUTE RUBIO, op. cit., p. 176).

Daí se entender, o porquê de Fortunato enfatizar, não só no

processo de conversão (passagem da vida laica para a religiosa), como

depois em sua vida no mosteiro, de forma pormenorizada, os

sacrifícios e penitências a que se impunha, principalmente no período

da Quaresma, conforme se pode ler nos capítulos XXII, XXV, XXVI,

o que faria dela um modelo de santidade ascético-monástico, próprio

dos homens, indo mesmo além deles, e que difere radicalmente dos

papéis representados pelas outras mulheres santas conhecidas, até

então117

.

Como exemplo do rigor com que tratava seu corpo, a narrativa

da penitência a que se impôs em uma Quaresma:

[...] Mas, aquela que era a torturadora de si mesma, pensava

em algo ainda mais grave. Durante uma das quaresmas,

além de um severo jejum e do tormento de uma sede

ardente, além do risco do cilício que com as ásperas cerdas

machucava seus membros sensíveis, manda que lhe tragam

uma bacia de bronze cheia de carvões em brasa. Tendo

117

De forma a corroborar questão, recordemos as palavras de Andrè

Vauchez, a respeito da formação do ideal do "homem de Deus", do vir Dei,

famoso porque "recusa os valores dominantes da sua época (poder, riqueza,

dinheiro, vida citadina), para se refugiar na solidão e levar uma vida

totalmente religiosa, isto é, consagrada à penitência e à mortificação. [...]

apesar de todos os esforços destinados a dissimular os seus carismas, essas

personagens rapidamente se tornaram famosas devido às excepcionais

privações a que se sujeitavam. (...) Violando os limites da condição humana

em matéria de nutrição e de sono [...] apresentavam-se aos olhos dos

contemporâneos como seres extraordinários." (VAUCHEZ, 1989: 213).

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todas as outras ido embora, com o coração palpitante, o

ânimo armado contra o sofrimento, pelo fato de não ser

mais o tempo das perseguições, meditava como tornar-se

mártir por si mesma [...] delibera de queimar o corpo;

assim, coloca sobre o bronze incandescente os membros

que queimam estridentes, a pele se consome e onde encosta

o calor se forma uma profunda cavidade... (Vida de

Radegunda, XXVI, 62-63).

O desejo de martírio já estaria esboçado na infância. A vitória

dos francos sobre os turíngios118

e a condução da pequena Radegunda,

como prisioneira, ao reino dos primeiros, faz com que seja comparada

a uma "filha de Israel", passando a viver no exílio (a corte franca, de

onde tenta se subtrair), a partir daí:

[...] a menina, entre os outros trabalhos próprios a seu sexo,

foi erudita nas letras; falando freqüentemente com os

rapazes, mostrava-se desejosa de tornar-se mártir, se as

condições da época o tivessem permitido (Ibid., II, 4)

Em outra passagem, Fortunato não hesita em chamá-la, além

de mártir, também de "confessora", o que o aproxima da visão de

Gregório de Tours, acerca da santidade de Radegunda:

Quanto afluxo de povo houve no dia em que a santa decidiu

encerrar-se no mosteiro, tanto que se amontoaram sobre

tetos, subindo neles, os que os caminhos não puderam

118

Segundo Gregório de Tours, a ferocidade da guerra de conquista da

Turíngia, levada a cabo pelos francos, em 531, levou à imensa mortandade

entre os turíngios, "todo o leito do rio ficou repleto de cadáveres e os francos

passavam por cima deles como sobre uma ponte para ir de uma margem à

outra. Conseguida, assim, a vitória, os francos recuperaram a região e a

colocaram sobre seu poder" (História dos Francos, III, 7). Já Venâncio

Fortunato, em De excidio Thruringiae, associa o massacre da Turíngia àquele

de Tróia: "Nom jam sola suas lamentent Troja ruinas: Pertulit et caedes

terra Thoringa pares".

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conter? Que coisa além de jejum, de submissão, de

humildade, de caridade, de fadiga e de mortificação

fervorosamente a santíssima fez? Se alguém examinasse

todas estas coisas, a proclamaria tanto confessora como

mártir (grifo nosso) (Ibid., XXI, 50).

Mas, como entender a santidade sem a realização do milagre,

prova irrefutável da ligação estreita entre a santa e Deus, que a atende

em todos os pedidos?

Dos 39 capítulos pelos quais se estende a narrativa da vida de

Radegunda, 14 são dedicados a milagres. No XI, há liberação de

condenados com a quebra das correntes que os prendiam; no XX,

relata-se a cura de doentes não diretamente, mas através de objetos

que haviam tido algum contato com ela (folhas sobre as quais fazia o

sinal da cruz, restos de velas que havia usado durante a noite, frutas e

doces que enviava aos doentes); no XXVII é a cura de uma mulher da

cegueira; no XXVIII, livra duas mulheres dominadas pelo demônio;

no XXIX, devolve a saúde a uma monja doente havia seis meses; no

XXX, são recordados episódios relativos a vitória sobre os demônios -

é o demônio que cai por terra diante das suas palavras, livrando uma

mulher, o rato que morre ao morder um novelo que havia sido fiado

pela santa; no XXXI, salva um seu dependente de um naufrágio; no

XXXII, liberta da febre uma jovem através de uma vela acesa; no

XXXIII, realiza milagres através da oração - caso do pé de loureiro

que revive, da mulher que é libertada do demônio, que sai pela sua

orelha; no XXXIV, temos dois milagres, o da monja que recupera a

visão, e do neonato que é ressuscitado; no XXXV, é a monja curada

de hidropisia; no XXXVI, fica em êxtase durante a oração; no

XXXVII, ressuscita uma irmã; no XXXVIII, realiza milagres perto da

morte, como o da libertação de prisioneiros, da cura de um alto

funcionário que sufocava, a quem indica, em sonho, o lugar em que se

encontravam os restos de São Martinho, para que ali fosse construído

um templo digno do santo.

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Assim, os milagres promovidos por Radegunda são

direcionados a todos os necessitados, homens (serviçais, prisioneiros,

altos funcionários), mulheres (laicas ou religiosas), crianças.

Radegunda é taumaturga e profeta, encaixando-se, no relato de

Venâncio Fortunato, no quadro das funções dos santos, estabelecido

por Andrè Vauchez e que vimos no início deste trabalho.

Fortunato omite, de caso pensado, a relação de Radegunda com

o mundo depois da sua entrada no mosteiro, o que as cartas editadas

por Gregório de Tours e a hagiografia de Baudonívia, centrada no

modelo da rainha santa, demonstram ter sido intensa. A verdade é que,

mesmo no interior do mosteiro, ela manteve-se em destaque, estando

diretamente interessada na política da época e nos conflitos entre os

filhos de Clotário, seus ex-enteados, a quem busca pacificar. Contudo,

o posicionamento do autor não deve nos surpreender, já que um dos

elementos da santidade ascética era justamente o do afastamento do

mundo e dos seus problemas, de forma a se poder vivenciar, de forma

mais pura, a religião.

Para finalizar, fiquemos com as palavras de Fortunato na

conclusão da hagiografia, onde ele pede que a grandeza de Radegunda

seja avaliada não pelo número de milagres realizados, mas pela

"piedade, moderação, bondade, doçura, humildade, honestidade, fé,

fervor, com que ela viveu, coisas que ainda depois da morte a

acompanham nos milagres da passagem à beatitude eterna" (Ibid.,

XXXIX).

Documentações Textuais

GREGOIRE DE TOURS. De la gloire des bienheureux martyrs.

Disponível em:

http://remacle.org/bloodwolf/historiens/gregoire/miracles1.htm.

Acesso em: 04 de novembro de 2010.

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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ

188

____________________. De la gloire des Confesseurs. Disponível

em: http://remacle.org/bloodwolf/historiens/gregoire/miracles3.htm.

Acesso em : 04 de novembro de 2010.

____________________. Histoire des Francs. Disponível em:

http:/remacle.org.bloodwolf/historiens/gregoire/francs.htm. Acesso

em: 05 de novembro de 2010.

VENANCE FORTUNAT. Poésies Mêlées. Traduits en français pour

le première fois par M. Charles Nisard. Paris: Librairie de Firmin

Didot et C., 1887. Disponível em:

http://remacle.org/bloodwolf/eglise/fortunat/poesies1.htm. Acesso em:

01 de novembro de 2010.

VENANCIO FORTUNATO. Vita di Radegonda di Poitiers. In:

Vita dei santi Ilario e Radegonda di Poitiers. Roma: Città Nuova,

1977.

Referências Bibliográficas

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O Culto Imperial como “Transcrito Público”

Norma Musco Mendes119

A institucionalização do sistema imperial romano de acordo

com a documentação textual de natureza diversa, com as evidências

epigráficas e arqueológicas teve início no final do período

republicano, sob a forma de uma infra-estrutura frágil, marcada pelos

caóticos expedientes administrativos locais empreendidos pelos

magistrados que por delegação assumiam a soberania (maiestas) do

povo romano e tiveram o controle temporário da res publica. Somente

pode ser acelerada e consolidada pelos Imperadores, durante o século

I d.C.

Partimos do pressuposto que a institucionalização do sistema

imperial não pode ser vista meramente como obra do Imperador

Otávio Augusto, mas fruto das amplas transformações causadas pelo

impacto da conquista (imposição de novas formas de taxação, de nova

classe política, de novas práticas sócio-políticas, de nova orientação

jurídica, novas formas de organização do espaço) nas sociedades

provinciais. Enfim, foi um processo que acompanhou a

provincialização da cultura romana e, consequentemente, a formação

da cultura provincial.

Ser romanizado significava introduzir-se num sistema de

relações muito mais amplas, que colocava as cidades no âmbito de

relações comerciais e políticas mais complexas e de caráter

internacional (ROWLANDS, 1987: 04-09). Essa possibilidade era

extremamente atraente para as cidades com potencial econômico a ser

explorado, ou mesmo para grupos que viam, no contato com Roma, a

possibilidade de implementarem suas condições de vida através da

manutenção e afirmação do seu status perante a comunidade local.

119

Prof.ª Dr.ª da área de História Antiga, da UFRJ. Membro do

LHIA/PPGHC/UFRJ.

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A extensão do poder imperial nas províncias representou

desafios e oportunidades para aqueles que se encontravam localizados

nas novas e amplas interfaces entre o Império e a comunidade

(WOOLF, 1995: 12). O principal mediador eram os membros das

elites locais sejam aristocratas, chefes tribais, reis clientes, aqueles

que viviam próximos dos colonos e serviam como soldados romanos.

Portanto, a institucionalização do sistema imperial coincide

com os primeiros vestígios de documentação de cultura material e de

inscrições epigráficas, datados do século I d.C. O crescimento destes

testemunhos denota mudanças socioeconômicas, políticas e culturais

nas províncias ocidentais. Talvez o principal vetor destas mudanças

tenha sido a civitas que passam a funcionar como centros difusores do

domínio romano e signos da concepção cosmológica romana.

Posto isto, o estudo da institucionalização do sistema de

domínio imperial romano deve considerar os aspectos formais

(criação dos governos provinciais, centralização imperial, nova

organização militar, organização municipal, estabelecimento de um

novo sistema de imposto), assim como, os informais (apropriação de

práticas sociais próprias da vida urbana, relações de patronato,

patrimonialismo, nova sensibilidade para a importância das

representações do imperador e da família imperial e novas formas de

sentimento religioso, dentre os o culto imperial).

O objetivo desta intervenção não é uma análise da religião

romana. No entanto, parece-me importante ressaltar que no âmbito do

Império Romano é preciso fazer uma distinção entre religião

tradicional da cidade de Roma, e demais religiões, sejam aquelas

ligadas às famílias, distintas corporações de ofícios, ou mesmo, fora

de Roma, às distintas cidades anexadas.

Talvez, o mais certo seria falarmos em ―religiões romanas‖.

No entanto, a religião pública foi estruturada em torno dos rituais que

eram considerados imprescindíveis para a proteção e prosperidade das

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cidades e do Império, de tal forma que podemos falar num modelo de

religião normativa, plenamente de acordo com as elites e que

fundamentava a identidade cívica local e imperial (RIVES, 2000:

262).

Aproximar-nos-emos, assim, do conceito criado por Fustel de

Coulange de religião cívica que abrange apenas os officia publica: os

cultos que apareciam nos calendários, para os quais o Estado provia

sacerdotes e fundos e eram realizados como cerimônias públicas,

assistidas por todos os cidadãos da cidade.

G. Wooff (2009: 22) relativiza a aplicação deste conceito não

somente porque enfocam a religião a partir do estudo do poder da elite

cívica, mas também porque surge no universo intelectual do

nacionalismo. Desta forma, o conceito exclui os cultos rurais,

domésticos e outras formas de culto politeísta como, por exemplo,

Isis, Dionísio, Eleusis que tiveram grande importância para no mundo

Mediterrâneo e, mesmo, para os imperadores. Considerando-se apenas

as religiões politeístas, o conceito não analisa o pluralismo religioso e

a diferenciação de grupos religiosos existentes no Mediterrâneo.

O estabelecimento do Principado representou um momento de

reorganização política, espacial e temporal, durante o qual foi

acelerado os processos de Romanização, entendidos como as

transformações multifacetadas e bidirecional que tornaram possível o

domínio romano nas regiões banhadas pelo Mar Mediterrâneo e do

litoral do Oceano Atlântico.

Neste contexto, a religião foi identificada com o poder

político não somente pelo fato de Otávio ter recebido o título de

Augusto, mas também, por ter assumido a posição de pontifex

maximus. Assim, o imperador se tornava o chefe da religião romana e,

como tal, o responsável pela manutenção da pax deorum.

Naturalmente, diante da sua própria auctoritas perante o mundo

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romano e por ser o filho do divus, incorpora uma posição semi-divina,

passando a ser cultuado em vida.

O culto imperial teve origem nos reinos helenísticos quando

as cidades gregas pela primeira vez tiveram que lidar com governantes

que eram mais gregos do que estrangeiros, mas não faziam parte da

cidade–estado. Roma substituiu os reis helenísticos nas cidades gregas

e as cidades começaram a criar novos cultos. Algumas vezes era em

relação ao Senado e aos lideres militares, porém era mais freqüente à

deusa Roma, a personificação da cidade.

Com o estabelecimento do Principado o Imperador se tornou o

foco destes cultos e sob Augusto se espalhou para a parte Ocidental.

O culto imperial não pode ser considerado uma forma de

religião nos moldes do pensamento monoteísta, pois não havia

nenhuma teologia explicita ou doutrina determinada a qual se

esperava a adesão das pessoas. Ao contrário, o culto imperial era

centralizado no ritual. Seguia a idéia de que as práticas básicas do

sacrifício e das preces articulavam as relações de poder entre os

homens e os deuses e assim também serviam para articular as relações

entre o imperador e seus súditos. Era uma forma de se entender e

conceber o mundo.

Era caracterizado pela inexistência de homogeneidade dos

meios empregados (rituais, poesia, iconografia, dedicatórias), assim

como, dos tipos de associação dos imperadores às divindades

específicas.

Apesar de os imperadores serem representados e adorados

como homem e deus, dualidade que caracterizou as tensões políticas

ao longo do Principado, o culto imperial tinha um significado

diferente daquele do culto aos deuses.

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Os deuses também possuíam numen, mas as oferendas não

eram feitas ao numen dos deuses e sim aos próprios deuses.

Diferentemente, no culto imperial às oferendas eram em honra ao

numen, quer dizer, ao Gênio do Imperador, o qual personificava todas

as suas virtudes inatas. O culto ao Gênio era uma modalidade de culto

tradicional, o qual podia estar ligado às pessoas (Paterfamilia), às

divindades, aos lugares (Roma) e ao Gênio do povo romano.

Ressaltamos que os imperadores romanos somente se

transformavam em deuses após a sua morte através da cerimônia da

apoteose e do reconhecimento senatorial consecratio. Caso contrário,

se os feitos de imperador não fossem reconhecimentos pelo Senado

(damnatio memoriae) sua memória deveria ser proscrita.

O culto imperial tinha como característica principal criar

vínculo entre as diversas localidades do Império e Roma, bem como a

lealdade ao Imperador vigente. Era realizado em ocasiões especiais,

como por exemplo: o aniversário do imperador, para celebrar uma

importante vitória.

Se seguirmos a linha de raciocínio do conceito de ―religião

cívica‖, acima mencionado, o culto imperial estaria parcialmente

excluído porque interagiu com a religiosidade local, assumindo

diferentes modalidades de culto.

No caso da Península Ibérica há vestígios de moedas,

inscrições, estátuas em louvar da família imperial de altares e

inscrições, datados desde fins do século I a.C., em honra a Otávio

Augusto e a membros da família imperial: a Caio ou Lúcio César e a

Agripa Póstumo, na cidade de Braga, por exemplo (ALARCÃO,

1988: 178).

A construção de templos e a organização do culto a Augusto

se expandiram para a capital da Lusitânia, para os municípios e até

para os oppida, a partir do reinado de Tibério. Desenvolvia-se, assim,

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o culto dinástico para os herdeiros de Augusto (ENCARNAÇÃO,

2007: 356)

A devoção ao imperador poderia ser expressa por indivíduos

pela construção de templos ou em altares dedicados a Iuppiter

Optimus Maximus, nos locais em que o culto municipal não estava

organizado.

O culto a Júpiter, por sua vez, alcançou as mais diversas

camadas sociais. Por ser o principal deus do Panteão romano

angariava diversas funções, tornando-se de fácil associação com

diversos deuses locais, o que facilitou sua divulgação e adaptação

entre as diversas classes sociais locais. Desta forma encontramos

vestígios deste culto mesmo em áreas pouco romanizadas. Diante

dessa capacidade de diálogo com a cultura nativa, que marcou a

tipologia de domínio do sistema imperial romano, foi também, um

importante difusor da cultura romana.

Podemos, também, incluir os miliários como suportes para se

registrar o culto aos imperadores. São monumentos epigráficos de

formato semi-cilíndrico com conteúdo textual específico:

identificação em dativo do imperador em cujo reinado a estrada foi

construída, designação dos seus títulos e indicação do número de

milhas referente á distância entre o local da sua colocação e a cidade

de origem da estrada.

Encarnação, (1984: 750; 1996: 39-43; 2010: 385-394) ressalta

que os miliários são importantes documentos históricos, revestidos de

caráter propagandístico, pois não podem ser considerados

simplesmente como um mero indicador de distâncias. Se a sua função

fosse apenas esta não se teria perdido tanto tempo para gravar os

títulos imperiais.

Existem testemunhos seguros do culto imperial em diversos

municípios representado por inscrições que mencionam os flamines,

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flaminicae, augustales ou seviri augustales, sacerdotes ou sacerdotisas

encarregados da celebração do culto.

Para honrar oficialmente o gênio imperial geralmente

associado à deusa Roma, existiam os flâmines, sacerdotes eleitos

anualmente dentre os notáveis dos municípios e das colônias.

No Ocidente, se desenvolveu o flaminato provincial. Os

municípios elegiam um sacerdote (flâmine municipal) que num

santuário comum, geralmente na capital da província, celebrava o

culto ao Imperador. Desnecessários dizer a importância de tais títulos

nas relações de poder nos municípios e na província.

Os seviri Augustales eram eleitos pelos membros das collegia

existentes nos municípios da Itália ou das províncias. Eram libertos

imperiais ou libertos de ex-amos particulares que tinham contraído

compromissos especiais com os imperadores. Tratava-se de uma

posição importante nos municípios reservada para aqueles que em

virtude de sua origem não podiam ser eleitos nem magistrados e nem

pertencer á ordem dos decuriões. Eram libertos ligados às atividades

mercantis que através da realização do culto imperial demonstravam a

sua coesão e zelo pelos atos públicos, pelos espetáculos e sacrifícios.

A celebração do culto imperial se transformava num ato ritual de

demonstração de riqueza, prestígio e poder local. (GAGÈ, 1964: 140).

Ademais, o cerimonial do culto incluía a distribuição de

presentes, alimentos e vinho, algo que pode ser interpretado como

uma tentativa de se buscar a unanimidade de participação das

diferentes classes sociais das cidades. O seu cerimonial era, assim, um

fator de integração social. Portanto, os cargos religiosos no nível

provincial além de demonstrar a fidelidade a Roma atuava como um

fator de desigualdade e mobilidade social, na medida em que marcava

identidades no nível local e em relação ao centro hegemônico.

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Logo, a sua celebração congregava os distintos grupos sociais

existentes na comunidade.

Diante dos limites desta intervenção apresento abaixo algumas

epígrafes provenientes da Lusitânia, as quais comprovam as

afirmações que acabamos de fazer. Limitar-me-ei a destacar destas

epígrafes os aspectos relacionados com os objetivos desta

participação, com base nas análises realizadas pelo epigrafista já

bastante conhecido entre nós, Prof. Dr. José d´Encarnação.

1) Inscrição Honorífica

Ach: Alcácer do Sal

Par: Museu nacional de arqueologia e etnologia. Lisboa

Data: ano 5 a 4 a. C com base nas qualificações honoríficas atribuídas

a Augusto

Descrição: bloco paralelepipédico em granito. Dimensão 44,5 X 90 X

31

Inscrição

IMP • CAESARI • DIVI • F • AVGVSTO

PONTIFICI • MAXVMO • COS • XII

TRIB • POTESTATE • XVIIII

VICANVS • BOVTI • F

SACRVM

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198

Transcrição

Consagrado ao imperador César Augusto, filho do divino,

pontífice máximo, cônsul pela 12ª vez, no seu 18° poder tribunício.

Vicano, filho de Búcio (IRPC 184)

Testemunho do culto ao Imperador Augusto por um indígena

romanizado que se identifica à maneira indígena, através do seu

cognome e do seu pai. Vicano acredita-se que deriva de vicus (aldeia)

e Boutius (Búcio) é um nome celta.

2) Pedestal dedicado a Marte Augusto

Ach: Sines

Par: Museu Arqueológico de Sines

Data: Segunda metade do século II d.C

Descrição: bloco de pedra possivelmente colocado no fórum da

cidadede Sines. Posteriormente, foi utilizado como peso de lagar.

Dimensão: 96,5 x 54,5 x 41,5 cm

Inscrição em texto corrido:

SIGNUM MARTI AUGUSTO.

CICERIUS IUVENALIS

AUGUSTALIS EX TESTAMENTO

PONI IUSSIT. MASCLIONUS (?)

SIVE RAICIRRI […]PONENDUM

(?) CURAVIT.

Transcrição:

O augustal Cicério Juvenal mandou colocar por testamento.

Mascliono –

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também chamado Raicirri… – tratou de executar a cláusula

testamentária.

Era habitual entre os augustales oferecerem estátuas às

divindades de sua devoção. Entretanto, no caso acima antes de morrer,

Cicério Juvenal determina, por testamento, que os beneficiários da sua

herança mandassem fazer, em seu nome, uma estátua ao deus Marte

na sua qualidade de Augusto. Podemos interpretar como um reflexo

da devoção do dedicante. No entanto, fica também evidenciada a sua

intenção de ficar publicamente perpetuada a sua memória, como uma

demonstração de prestígio político e social.

Fonte: (ENCARNAÇÃO, 2008)

3) Pedestal

Ach: Faro, largo da Sé. Par:

Museu de Faro

Data: Segunda metade do século II d.c

Descrição: paralelepípedo de calcário, com

pátina amarela. Dimensão 82 X 54 X 53

Inscrição:

M(arco) CORNELIO/ Q(uinti) F(ílio)

GAL( eria tribu) PERSAE / FLAMINI /

PROVINCIAE LYSITANI(ae) [sic]

CIVITAS OSSONOB(ensis) /

PATRONO

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Transcrição:

A Marco Cornélio Persa, filho de Quinto, da tribo Galéria,

flâmine da província da Lusitânia – a cidade de Ossonoba ao

patrono. (IRPC: 7).

Inscrição dedicada ao patrono da civitas ossonobensis, pelo

cidadão romano inscrito na tribo Galeria. M. Cornélio Persa era um

flâmine do culto imperial. Devido a menção à tribo a que pertence e

ao cognome Persa, trata-se de um indígena que recebeu a cidadania

romana, pois esta era uma condição sine qua non para ser flâmine.

Interessante ressaltar que esta epígrafe foi encontra no local

onde muito possivelmente se situaria o fórum da cidade de Ossonoba

(Faro).

4 ) Dedicatórias a Caio

Boco

4.1. Ach: Alcacer do Sal

Par: Murete da Quinta do

Solar da Sempre Noiva

(Évora)

Data: século I d. C.

Descrição: Bloco

paralelepipédico de

mármore azul. Dimensão

29 X 49 X?

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Inscrição:

[L(ucio)] C[ORN]ELIO C(aii) [F(ilio)] / BOCCHO / [FL]AM(ini)

PRO[V]IN C(iae) TR(ibuno) MIL(itum) / [CO]LONIA

SCALLABITANA / [OB E(ius)] MERITA IN COLON(iam)

Transcrição

A Lúcio Cornélio Boco, filho de Gaio, flâmine provincial,

tribuno militar – a Colônia Escalabitana, devido aos serviços por ele

prestados à colônia. (IRPC 185)

4.2) Ach. Alcacer do Sal

Par: Museu de Alcacer do Sal

Data: século I d. C.

Descrição: Parte direita de uma placa

honorífica em mármore destinada a

ser encaixada num monumento.

Dimensão 53 X 164 X 10

Inscrição:

[L(ucius) CORNELIVS C(aii) F(ilius) BOC]CHVS PR(aefectus)

CAESARVM BIS / [FLAM(em) PROVINC(iae) PON]T(ifex)

PERP(etuus) FLAMEN PERP(etuus) / [DVVMVIR AEDILIS ] (?) II

(bis) PR(aefectus) FABR(um) V (quinquies) TR(ibunus) MIL(itum)

D(e) S(ua) P(ecunia) F(ecit)

Transcrição:

Lúcio Cornélio Boco, filho de Gaio, prefeito dos Césares pela

segunda vez, flâmine provincial, pontífice perpétuo, flâmine perpétuo,

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duúnviro, edil duas vezes, prefeito dos artífices cinco vezes, tribuno

militar, fez a expensas suas. Fonte : IRPC 1895)

5) Ach. Quinta da Torre dÁires, Luz, Tavira

Par: Museu de Faro

Data: século III d. C.

Descrição: Pedestal de calcário que foi utilizado para plinto do púlpito

de uma Igreja. Com moldura da base constituída por filete e gola

reverso Dimensão 119 X 60 X 45

Inscrição:

FORTVNAE • AVG (ustae) • / SACR(um)

• / ANNIVS • PRIMITIVVS / OB•

HONOREN • / IIIIIIVIR (atus) • SVI •. /

EDITO BARCARVM / CERTAMINE •.

ET• / PVGILVM SPORTVLIS / ETIAM•

CIVIBVS / DATIS • / D(e) • S(ua) •.

P(ecunia) •. D(ono) •. D(edit) •

Transcrição:

Consagrado a Fortuna Augusta.

Ânio Primitivo, um liberto ofereceu, em

honra do seu sexvirato, tendo realizado um

combate de barcas e de pugilistas e também

oferecido dádivas aos cidadãos, a expensas

suas. ( IRCP, 73)

Até o momento não há evidências

da existência de templos em Balsa. No

entanto, a inscrição abaixo faz menção a um

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séxviro, pertencente ao colégio dos augustales, que ao ser nomeado e

como prova de ostentação de riqueza cumpriu a summa honorária,

quer dizer ofereceu ao povo presentes, provavelmente dinheiro e

financiou a apresentação de duas modalidades de ludi (jogos):

combate de pugilistas e batalha naval (naumaquiae). Isto não somente

atesta a existência de um circo na cidade com a apropriação da prática,

assim como, da internalização do significado da realização dos

festivais.

6) Ach: Capela de S. João dos Azinhais, Torrão, Alcácer do Sal.

Par: Museu Regional de Évora

Data: Segunda metade do século I d.c

Descrição: Possivelmente uma Ara Votiva em

mármore branco com bandas cinzentas. Uma

das fases apresenta a inscrição. Do lado

esquerdo, em relevo vemos a representação da

águia de braços abertos, símbolo de Júpiter,

apoiada numa árvore ou num tronco. A fase do

lado direito, também em relevo é decorada com

um motivo vegetal, possivelmente

simbolizando a fecundidade.

Inscrição

IOVI · O (ptimo) · M (aximo) · / FLAVIA ·

L(ucii) · F (ilia) · RVFINA / EMERITENSIS /

· FLA/MINICA · PROVINC (iae) · /

LVSITANIAE · ITEM · COL(oniae) /

EMERITENSIS / · PERPET(ua) · / ET ·

MVNICIPI(i) · SALACIEN(sis) / D(ecreto) ·

D(ecurionum).

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Transcrição

A Júpiter Óptimo Máximo. Flávia Rufina, filha de Lúcio, natural de

Mérida, flamínia da província da Lusitânia assim como perpétua da

Colônia Emeritense e do Município Salaciense. Por decreto dos

decuriões. (IRPC. 183)

Esta epígrafe demonstra uma variável do culto imperial na

Lusitânia representado pelo culto a Júpiter Ótimo Máximo, celebrado

por uma flaminica provincial com apoio da ordo decurionum da

cidade de Salácia120

. Trata-se de uma celebração oficial, na qual

Rufina se preocupou em enumerar os seus cargos. O fato de ter sido

flaminica perpétua da sua cidade natal, Emerita Augusta (Mérida) e de

Salacia (Alcácer do Sal), demonstra a importância das relações sociais

e de poder entre o município de origem nativa, Salacia e a sede do

governo provincial instalado no município Romano de Emerita

Augusta. Esta epígrafe representa uma importante contribuição para os

estudos de História de Gênero, visto que comprova a difusão pela

província da atuação cívica de uma categoria de mulheres

privilegiadas, ou seja, a sacerdotisa pública Flávia Rufina, cuja família

teria atingido provavelmente o grau eqüestre ou decurional com o pai

L(ucius) Flavius.

7)Ach. Faro

Par. Museu de Faro

Data: ano de 274

Descrição: Um pedestal de calcário que possivelmente sustentava uma

estátua. Dimensão: 96 X 50 X 44

120

Salacia Urbs Imperatoria deve ter sido o nome atribuído por Sexto

Pompeu a um oppidum indígena.

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Inscrição:

IMP - CAES

L - DOMITIO

AVRELIANO

PIO - FEL - AVG

P-M-T-P-P-P-

II - COS - PROC

R - P - OSSONOB

EX DECRETO

ORDIN

D - N - M - EIVS

D - D

Transcrição

Ao Imperador César Lúcio Domicio Aureliano , Pio, Félix,

Augusto, pontífice máximo, no seu poder tribunício, pai da Pátria,

cônsul pela segunda vez, procônsul – a República Ossonobense, por

decreto da ordem, ofereceu e dedicou, por devoção ao seu gênio e

majestade. (IRPC 47)

A res publica dos ossonobense dedica ao imperador Aureliano

que já é denominado como dominus. Fica aqui registrada a

transformação do culto ao imperador que já adquire um caráter

sagrado, diante das interações com as religiões orientais,

principalmente o culto de Mitra.

Conclusão

Inicialmente, chamo a atenção para a importância da

documentação epigráfica para a História, visto que pode ser

considerada uma ―fonte primária‖ no estrito sentido do termo. Trata-

se de um texto deixado pelos antigos que passou à posteridade sem

intermediários e sem possibilidades de deturpações e rasuras. Pode ser

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206

utilizada com segurança pelo historiador, como um documento

absolutamente fidedigno (ENCARNAÇÃO, 2006: 17).

Considerando a prática comparativa da equipe de pesquisadores

as conclusões apontam para a conexão entre poder e cultura como

fundamentais para o estudo das sociedades imperialistas. Portanto,

defendemos a hipótese de que a dimensão cultural do imperialismo

romano foi materializada pela cidade.

As cidades não podem ser entendidas simplesmente como um

mecanismo estatal de observação e controle. Os vestígios de cultura

material que são identificados como marcos espaciais urbanos e

rurais: o teatro, o fórum, a basílica, os templos, as estátuas, as pontes,

as estradas, os aquedutos, as villae não são meramente imagens.

Podem ser entendidos como signos repletos de significados

simbólicos que atuavam como fatores de integração política, social e

da solidariedade das elites em relação ao corpo cívico (PREUCEL,

2006: 84).

Tais signos foram unificados pela dimensão religiosa

representada pelo ―circuito litúrgico do culto imperial‖

(WHITTAKER,1997:149ss.).

Tais afirmações validam o título da presente comunicação.

Ou seja, o culto imperial conceituado como uma modalidade de ato

ritual de poder: produção intelectual e artística; atos de deferência e

comando; cerimonial; punição pública; uso de títulos honoríficos;

procissões; festivais; comportamento e indumentária do governante e

da elite; funerais; inaugurações de construções públicas; coroações.

São sistemas de representação simbólica que exprime um determinado

padrão de poder em substituição ao uso da coerção. Estes tipos de

formação discursiva construídos pelas elites dominantes são

conceituados pelo sociólogo J.C. Scott por ―transcrito público‖, visto

que exercem na comunicação política, as seguintes funções:

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1) Afirmar e ratificar a hierarquia de poder, a potencialidade da

coerção e a estrutura normativa da sociedade;

2) Dissimular. Ao controlar e custear a organização do transcrito

público a classe dominante cria uma aparência ideal do poder para ser

vista pelos subordinados, protegendo o seu status quo;.

3) Eufemizar. Usada para obscurecer o uso da coerção e os aspectos

que podem comprometer o poderio e a autoridade, exaltando o caráter

benéfico, inofensivo e positivo das relações de poder;

4) Estigmatizar como nefastas as atividades ou pessoas que se opõem

aos parâmetros oficiais de sustentação do Estado;

5) Unanimidade. O comparecimento às reuniões coletivas autorizadas,

promovidas e custeadas por aqueles que detêm o poder veiculam a

noção de consentimento dos subordinados que se revela como

importante componente visual da ideologia hegemônica, fornecendo

plausibilidade à eufemização do poder e buscando promover a

integração social (SCOTT, 1990)

Portanto, a organização e os rituais de culto ao imperador devem

ser entendidos como um testemunho de hibridismo cultural de

dimensão política, social e religiosa e representou um indicativo de

pertencimento à ordem mundial globalizada por Roma.

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“Pondo o lixo pra fora” – da relação entre exclusão de

grupos sócio-religiosos e interdição literária na tradição

judaico-cristã – João, Judas e Lutero.

Osvaldo Luiz Ribeiro121

Introdução

A tradição judaico-cristã foi, desde o início, constituída por

múltiplas representações sócio-religiosas. Fossem todas harmônicas e

homogêneas, tenderiam a uma fusão pacífica. Mas não foi o caso.

Essa tradição (re)conhece uma multiplicidade de tradições, a maioria

das quais, à medida que o Cristianismo vai se consolidando e

aproximando do poder romano, vai-se constituindo como um fundo

―herético‖, logo, a ser combatido (cf. Judas 3 – ―batalhar pela fé que

uma vez foi dada aos santos‖).

Por outro lado, combater tradições de ―fundo herético‖

implica no conflito direto com os respectivos portadores dessas

mesmas tradições, de modo que o combate pela fé tem por

consequência o banimento dos ―soldados‖ do exército ―inimigo‖ –

fenômeno que pode, por exemplo, ser ilustrado por referências à

expulsão da comunidade ―cristã‖ (joanina) da sinagoga, em João 9,34

(―Mas eles retrucaram: Tu és nascido todo em pecado e nos ensinas a

nós? E o expulsaram‖) e 16,2 (―Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem

mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um

serviço a Deus‖).

Todavia, os dois fenômenos – rejeição de literatura e expulsão

de comunidades – não são explicitamente relacionados. De um lado,

podem-se mapear as histórias em torno de inúmeros cânones,

estabelecidos sempre politicamente pelas inúmeras comunidades

121

Doutor em Teologia pela PUC-Rio.

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históricas – é o caso do cânon farisaico, que exclui deliberadamente

certas porções da LXX, bem como é, também, o caso da literatura

mais tarde classificada como gnóstica, mas que, no entanto, fora base

para argumentações de norma e tradição dentro daquela que se tornará

literatura canônica do Cristianismo.

Ora, não é revelador que os dois fenômenos, ainda que

tomados isoladamente, tangenciem as mesmas bases literárias? De um

lado, João e a comunidade joanina, expulsa da sinagoga e, de outro,

Judas, a convocação para o combate pela fé, fundamentado em

literatura então traditivo-normativa e a posterior exclusão dessa

literatura, classificada, então, como ―apócrifa‖.

É necessário, pois, alinhar os dois fenômenos, relacioná-los

histórico-socialmente. É preciso verificar em que medida, na tradição

judaico-cristã, a interdição de literatura está relacionada à expulsão de

comunidades sócio-religiosas.

1. O “caso” João – o cisma sinagogal e o “cânon” dos fariseus

O cisma sinagogal do primeiro século (isto é, a expulsão dos

judeus messiânicos, aderentes à fé em Jesus de Nazaré como messias,

das sinagogas judaicas [BROWN, p. 42-45]) pode122

/deve123

estar

diretamente relacionado à formação do ―cânon‖ farisaico – o que

Könings (p. 36) permite subentender. De um lado, a expulsão de

judeus aderentes à ―fé‖ messiânica em Jesus de Nazaré como messias,

e, de outro, a interdição político-normativa de literatura constante da

―lista de rolos‖ dos LXX, em que essa comunidade se baseava na

elaboração de sua cristologia ―alta‖ – para o que aqui importa:

Eclesiástico, Sabedoria e Baruque. É possível que o fenômeno da

expulsão de judeus-―cristãos‖ da sinagoga esteja consignado em três

passagens do Evangelho de João – a) a expulsão do cego de nascença,

122

Princípio de plausibilidade. 123

Minha hipótese de trabalho.

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212

curado por Jesus, cuja história está em Jo 9 (RIBEIRO, 2010), b) a

referência ao medo de judeus – criptocristãos (BROWN, p. 74-76) –

de serem identificados como aderentes à fé messiânica em Jesus de

Nazaré e, por isso, expulsos da sinagoga, e c) o vaticinium ex eventu

da expulsão dos discípulos, constante de Jo 16,2.

Ora, é justamente nesse entroncamento histórico – cânon

sinagogal e interdição de literatura judeu-―cristã‖ (LXX), de um lado,

e de outro, a formação da ―comunidade joanina‖, ou seja, a ―primeira

fase‖ de Brown (p. 20-21 – não muito seguro disso está Könings [p.

33ss]) – que se instala o tema fundamental da cristologia joanina: a

―alta‖ cristologia.

A identificação de Jesus, o messias, com a Sabedoria da

tradição judaica (MATEUS; BARRETO, p. 14-17 – e esta justamente

na forma da ―Palavra que arma a tenda em Jacó‖ [Eclesiástico 24,8])

parece ter sido elaborada por meio do recurso à literatura agora

deuterocanônica (RIBEIRO, 2006). Parece justo considerar-se que,

ainda quando vinculada à sinagoga, a plataforma retórica da apologia

da comunidade devesse estar disponível ao acesso da comunidade

sinagogal como um todo, resultando necessário admitir que, por

conseguinte, devesse estar bem assentado na consciência sinagogal o

fato de a defesa judaico-messiânica da identificação de Jesus de

Nazaré como ―a Palavra que arma a tenda em Jacó‖ ser possível por

meio da LXX, ou, ao menos, ser por meio dela eficientemente

legitimada. Conseqüentemente, em tendo sido expulsos os judeus

aderentes à fé messiânica, resulta compreensível que também a sua

literatura apologética (MATEUS; BARRETO, p. 14-17) tenha sido

interditada à comunidade sinagogal remanescente. Para isso não

faltaram ―argumentos‖ – por exemplo, o fato da redação grega dessa

literatura. A determinação das ―razões‖ é, nesse(s) caso(s),

posterior(es) à determinação política.

Além disso, o fato de os judeus aderentes à fé messiânica

afirmarem que Jesus de Nazaré era ―a Palavra que arma a tenda em

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Jacó‖ constituiria flagrante polêmica com o judaísmo tradicional das

sinagogas, que, nos termos de Baruque 4,1, por exemplo, afirmava

que essa ―Palavra que arma a tenda em Jacó‖ era – já – a Torá. Ora,

aos ouvidos de judeus, a declaração de fé de que essa Palavra é Jesus

ressoaria na forma polêmica de ―a Palavra que arma a tenda em Jacó

é Jesus e não a Torá‖. Com efeito, o Prólogo de João não diz outra

coisa que não isso: Jesus é a ―Palavra que arma a tenda em Jacó‖ (Jo

1,14), ao passo que ―Moisés‖ é – apenas – a lei (Jo 1,17a). Ainda que

se possa considerar que tal declaração tenha sido formulada de modo

decisivo somente após a expulsão dos judeus messiânicos da

sinagoga, não se pode descartar a hipótese de que ela já se fazia

pronunciar nas próprias reuniões sinagogais, expondo a

constrangimentos os portadores da Torá – é inclusive plausível supor

que, no decurso da polêmica entre judeus messiânicos e judeus

tradicionais, aqueles tenham se servido da tradição da Sabedoria-

Palavra criadora que sai da boca de Yahweh (Provérbios, Sabedoria),

que arma a tenda em Jacó (Eclesiástico) e é então identificada à Torá

(Baruque), aplicando-a, polemicamente, então, ao messias – Jesus de

Nazaré (RIBEIRO, 2006).

Se tal polêmica poderia ser resolvida internamente é uma

questão para além da investigação histórica. Permanece, apenas, o fato

de que ela não foi resolvida, e, uma vez que não se tenha chegado a

um bom termo, a sinagoga expulsa os judeus heterodoxos (BROWN,

p. 20), impede de circulação nas sinagogas a sua literatura fundante e

recusa terminantemente a sua interpretação verbo-messiânica do judeu

de Nazaré: ―a batalha entre a sinagoga e a comunidade joanina era,

no final das contas, uma batalha sobre cristologia‖ (BROWN, p. 45).

Na conclusão dessa hipótese, o cânon farisaico é um cânon-

espelho – que ―reflete‖ a polêmica grave entre a comunidade farisaica

e a recentemente expulsa comunidade joanina. Cânon e construção de

identidade interceptam-se no campo de batalha.

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2. O “caso” Judas – um cisma “gnóstico” e a interdição de

apócrifos

O cisma gnóstico de que aqui se trata constitui, sob o regime

indiciário, um ―estudo de caso‖. A epístola de Judas foi escrita como

tentativa de combater a pregação heterodoxa de um grupo de

pregadores que se havia infiltrado na comunidade de destino da

epístola (Jd 3).

O tom da carta inspira autoridade. Ela apela para o combate à

fé uma vez por todas dada aos santos (v 3), fé essa que podia ser

recordada facilmente pela comunidade (v. 5) e que fora, inclusive,

pronunciada pelos apóstolos (v. 17), de cuja autoridade constitui,

agora, tradição e norma. Sobre esse fundamento normativo e apelando

justamente para ele, a carta enumera condenações sobre condenações

que os antepassados haviam merecido, quando se comportavam da

forma como aqueles ―homens ímpios‖ agora se comportavam.

Grande parte dos argumentos e da peroração da carta baseia-

se na citação de literatura hoje classificada como apócrifa: Testamento

dos 12 Patriarcas (ou Enoque), Ascenção de Moisés e Enoque. A

carta cita textualmente, ainda que, eventualmente, de memória, uma

passagem de Enoque – da mesma forma como Mateus o fizera com

―profecias‖ da tradição judaica ―canônica‖: ―Quanto a estes foi que

também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que

veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra

todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras

ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras

insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele‖ (v. 14-15). O

registro performativo é o mesmo: o que a literatura citada afirma é

norma para a comunidade.

Não é uma tarefa de todo fácil determinar o caráter histórico

da pregação dos ―homens ímpios‖ a que se refere Judas. Ela está

relacionada, contudo, a alguma forma de religiosidade ligada a a)

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anjos, b) sexualidade e c) mística extática. Tratar-se-ia de um caso

dentre aquelas variadas correntes religiosas do cadinho judaico-

helênico do final do primeiro século, dentre os quais se destacarão a

partir daí, os movimentos gnósticos.

Para o contexto desse ensaio, o que é relevante é o fato de

Judas recorrer à literatura agora classificada como apócrifa para

combater a ―invasão‖ dos ―homens ímpios‖. Toda a autoridade da fé é

sobreposta às referências a essas Escrituras.

Com que se deve, então, saltar para 2 Pd 2. Em termos

histórico-literários, é mais do que meramente provável, é

superlativamente plausível, que 2 Pd 2 seja uma compilação de Judas,

levada a termo por razões de, quem sabe?, sua autoridade traditiva,

mas, agora, em contexto de interdição da literatura ―apócrifa‖, em que

a ―primeira edição‖, digamos assim, da carta, se baseava. Uma

―segunda edição‖ se fizera necessária, mas encomendara-se o expurgo

total das referências que permitissem fossem ligados as duas

grandezas: de um lado, a fé e, de outro, a literatura interditada –

porque a fé não bote brotar da literatura ―apócrifa‖...

O que resulta de uma comparação entre 2 Pd 2 e Judas é a

quase absoluta manutenção do teor original da epístola, inclusive na

estrutura narrativa, com alguma variante não muito significativa, e

com a flagrante determinação de ―purificar‖ o texto das referências

aos ―apócrifos‖ – na prática, uma erasio memoriae daqueles

conteúdos e fontes.

É preciso aprofundar a investigação desse ―caso‖, e buscar-se

entender mais precisamente a razão de a literatura que serviu de base

para a ―primeira edição‖ de Judas ter-se tornada proibida na ―segunda

edição‖ De algum modo, comunidades que eventualmente aderiram às

práticas consideradas heterodoxas pelas autoridades passassem a

utilizar em sua defesa justamente a literatura sacada contra ela, de

modo que a ―excomunhão‖ de tais comunidades implicava na

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proibição do uso de sua literatura. Ou, alternativamente, a leitura da

literatura empregada em Judas terminava por aguçar a teologia dos

anjos e sua relação sensual com os homens, de modo que o ―remédio‖

podia conter efeitos colaterais, algo como a preocupação com a

educação sexual de crianças, sob o argumento de que falar de sexo

com elas, em tão precoce idade, pode revelar por efeito colateral

justamente o despertamento sexual precoce que se espera evitar.

Seja como for, o desenvolvimento do cristianismo deixará

revelar dois dos aspectos identificados no caso Judas versus 2 Pd 2.

Primeiro, a comunidade cristã tenderá, sob o regime da política

clerical, a acomodar-se na tradição ―romana‖ (aqui, meramente

―conceito‖ para a ―ortodoxia‖), de modo que as práticas alternativas,

as teologias ―heterodoxas‖ e a fé não-tradicional serão cada vez mais

perseguidas e banidas. Segundo: paralelamente a essa segregação do

―escandaloso‖, a coleção canônica tenderá a acatar o princípio

presente em 2 Pd 2 – o expurgo de um certo tipo de literatura,

princípio tão mais revelador quando se percebe que tal expurgo se

tenha dado em flagrante contradição com o fato de que o livro

canônico – Judas – tenha se servido dele com tamanha força de

autoridade.

3. O “caso” Lutero – cisma protestante e a re-encenação

deuterocanônica

O Antigo/Primeiro Testamento da Bíblia protestante está

marcado definitivamente pelo cisma luterano. Mais uma vez, é o

cisma o fator sócio-determinante: eles usam esses livros: fora com

eles, fora com esses livros... No caso luterano, a pressão foi ainda

mais forte, uma vez que se tratava da crítica do cânon tecnicamente

formado, milenar. Mas do que interditar um conjunto de rolos no

momento da formação canônica (sinagoga), mais do que interditar um

conjunto de rolos e pergaminhos de conteúdo perigosamente sugestivo

(Judas versus 2 Pd 2) – trata-se, com Lutero, de impor-se a uma

Tradição com ―T‖ maiúsculo. Se for recordada, ainda, a questão

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muitíssimo delicada de Lutero com Tiago, o livro canônico que

parecia justificar a teologia das obras, revelar-se-á ainda mais

claramente a relação entre a interdição de literatura fundante e o cisma

sócio-religioso.

É natural que, no caso Luterano, as circunstâncias tenham sido

substancialmente diferentes, se comparadas aos casos anteriormente

discutidos. O recurso luterano ao ―cânon judaico‖ poderia, sob certo

enfoque, reduzir a questão a um caráter meramente ―técnico‖ – o

cânon judaico era o cânon menor, de modo que, inspirado por valores

renascentistas, e, por isso, recorrendo aos ―originais‖, Lutero tenha se

pronunciado criticamente em face da Vulgata. Contudo, por si só isso

não explicaria, absolutamente, a também conseqüente recusa do

caráter ―canônico‖ de Tiago.

Com Tiago, estamos diante da ―repetição‖ do princípio de

exclusão anterior? Trata-se não de Tiago em si, mas da Igreja romana

– que, em sendo ―banida‖, leva tudo o que se fizer referir, direta ou

indiretamente a ela, tudo o que tiver seu ―cheiro‖, a ser igualmente

banido?

É conveniente admitir que não se trata de um princípio

―cego‖. É mais adequado considerar-se que se trata de um princípio

mais ou menos elástico. Fosse cego, já que Lutero retira-se da Igreja

de Roma, deveria, então, ter-se separado de tudo que fosse romano –

inclusive o Credo, e, até, as próprias Escrituras. Mas não se trata

disso. Trata-se de um princípio ―seletivo‖, operado pela consciência

de ―verdade‖ e ―norma‖.

A comunidade responsável pela interdição da literatura não é,

sempre, a comunidade ―forte‖. Ao contrário do caso sinagogal, no

caso luterano, é a comunidade expulsa que se ―vinga‖, interditando

internamente a literatura que a comunidade que a expulsara emprega

como normativa.

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Além disso, a comunidade que opera a interdição não reage

diretamente à comunidade adversária. Ela opera, antes, sob o regime

da ―verdade‖, da ―norma‖ e da ―tradição‖. Expulsando ou sendo

expulsa, ela se mantém sobre a plataforma da ―verdade‖, e é desde aí,

e sobre esse ―valor‖, que julga a literatura prévia, expurgando dela

aquilo que, à luz da norma e da verdade, deve ser ―descartado‖. Esse

princípio ajudaria a compreender a razão pela qual, de um lado,

Lutero exclui a literatura ―deuterocanônica‖, mas, por questões

relacionadas à ―norma‖ protestante, não pára aí, mas investe contra o

coração do próprio cânon nicênico, arrancando dele uma peça

tradicional. São o calor da batalha e o furor da norma os fatores que

operam o critério luterano. Mais tarde, quanto mais distante se estiver

da batalha e do calor do momento, tanto mais facilmente o ―excesso‖

luterano poderá ser esquecido, e Tiago poderá retornar para seu lugar

de honra.

Conclusão

É possível fazer uma afirmação teórico-metodológica a

respeito da relação histórico-social, na tradição judaico-cristã, entre,

de um lado, a interdição de literatura, e, de outro lado, a expulsão de

comunidades sócio-religiosas, concluindo que a interdição de

literatura está diretamente relacionada à expulsão de comunidades. A

rigor, não se trata de dois fenômenos, mas de um fenômeno mais

complexo.

Em algum momento da história de certas comunidades,

instaura-se o conflito ―teológico‖ em torno da tradição, da ―verdade‖,

da ―norma‖, conflito sempre caracterizado pelas implicações políticas

que potencialmente carrega. O conflito substancia-se na forma de

fundamentação traditiva, de modo que cada lado alicerça-se sobre

determinada literatura, até então, de comum circulação, se

considerado o grupo amplificado, dentro de cujo conjunto encontra-se

deflagrado o conflito.

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Ao conflito, se seguirá o rompimento geográfico e traditivo.

Cada grupo aprofundará a sua posição, tornando ainda mais aguda a

distância entre a sua hermenêutica da fé e a do ―outro‖ grupo. Esse

agudamento redundará no estreitamento da relação desse grupo com

certa porção da literatura mais ampla, anteriormente disponível no

campo de batalha, e, ao mesmo tempo, implicará na rejeição política

da porção dessa mesma literatura endossada pelo grupo oponente.

O rompimento do grupo trará por conseqüência uma cisão no

corpus literário, de modo que cada grupo assumirá mais radicalmente

a sua tradição sobre determinada porção da literatura antes comum,

rejeitando a parte endossada pelo grupo adversário.

Não se trata, pois, de uma decisão investigativa acerca da

―verdade‖. Trata-se do posicionamento político de uma comunidade.

Cada qual tenderá a não apenas assumir com cada vez mais

engajamento a sua própria interpretação, mas ocorre ainda de esse

engajamento administrar, por assim dizer, cada vez mais

politicamente as rotinas de interpretação, de modo que o conflito

político-ideológico se transfere cada vez mais radicalmente para as

rotinas de interpretação da tradição. No final do processo, aquelas

duas comunidades que, antes, gravitavam em torno da mesma

tradição, flagram-se distantes quilômetros de distância uma da outra –

unicamente por força do aprofundamento das diferenças já

perceptíveis no período de confluência, quando, então, não

representavam necessariamente motivo de desagregação do grupo.

O gatilho que há de disparar a intolerância em face das

―heterodoxias‖ que orbitam o grupo ampliado será político, traduzido

em termos de definição de identidade e de autoridade.

Aqui se assume, esse foi o caso clássico da comunidade

joanina – expulsa das sinagogas, estas interditam a literatura sobre a

qual a comunidade sustentava a sua diferença em relação ao grupo

―hegemônico‖.

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Esse foi também o caso da comunidade a que Judas se destina

– considerável porção da tradição literária serve de ―arma‖ na batalha

da defesa da fé, mas, ao menos no que diz respeito às comunidades

afetadas, a batalha é perdida para a pregação heterodoxa, por razões

que precisam ser aprofundadas, até a própria carta de Judas vê-se

expurgada dessa literatura, o que apontaria para o fato de ela ter sido,

de algum modo, cooptada – se já não lhe servia de base, antes – pelas

comunidades ―gnósticas‖. Com a cisão entre cristãos clássicos e

gnósticos, toda a literatura, até então valiosa para a fé, torna-se

herética. Porque os gnósticos são classificados como heréticos, a sua

literatura é rejeitada, pela mesma razão.

Finalmente, esse é o caso de Lutero. Sob sua ótica, a expulsão

dos ou pelos católico-romanos implica na recusa categórica de sua fé e

de sua base de argumentação. Nesse sentido, a rejeição da

canonicidade de Tiago reflete bem esse mesmo conflito político-

teológico, milênio e meio após aqueles dois primeiros ensaios da

cristandade.

Do mesmo modo como nenhum texto bíblico constitui

―tratado teológico‖, assumindo, antes, inexoravelmente, o tom de

literatura político-performativa, tão pouco as seleções de literatura, os

processos de quase-canonização – e mesmo esses – constituem

fenômenos de reflexão teológica ―pura‖. Quando se aproxima a lente

histórico-social de cada um desses momentos, verifica-se o conflito

humano, a segregação do outro, a exclusão do diferente. Com as

pessoas expulsas, vão os livros que carregam.

Referências Bibliográficas

BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado. 2 ed. São

Paulo: Paulinas, 1984.

KÖNINGS, J. Evangelho Segundo João – amor e fidelidade. São

Leopoldo: Sinodal, Petrópolis: Vozes, 2000.

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221

MATEUS, J. e BARRETO, J. O Evangelho de João. São Paulo:

Paulinas, 1989.

RIBEIRO, O. L. A Invenção do Cristo Celeste no Prólogo de João.

Importações de Provérbios, Sabedoria e Eclesiástico em contexto

polêmico. 2006. Ensaio disponível em

http://www.ouviroevento.pro.br/biblicoteologicos/A_invencao_do_Cr

isto.htm.

RIBEIRO, O. L. “É a Tradição que os cega!” – intertextualidade

programática entre Jo 5,1-18 e Jo 9 como retórica apologética

joanina, Revista Jesus Histórico e sua Recepção, v. 1, n. 1, 2010,

disponível em

http://www.revistajesushistorico.ifcs.ufrj.br/arquivos4/3Osvaldo.pdf.

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Considerações sobre a religiosidade grega

Pedro Paulo A. Funari124

Introdução

Os gregos da Antigüidade nunca foram muito unidos. Falavam

dialetos variados, viviam em diferentes regimes políticos e sociais,

variadas eram suas origens étnicas. Embora sua religião fosse também

local e particularizada, havia tanto características compartilhadas,

como especificidades que nos permitem falar em religiosidades gregas

antigas. Neste capítulo, essa diversidade religiosa será explorada, para

mostrar sua originalidade e o quanto dela ainda nos diz respeito.

Mesmo quando completamente estranha para nós (por ser baseada em

outros valores), essas experiências continuam a inspirar as gerações

posteriores. Ou a causar espanto e admiração ao mesmo tempo.

Talvez se possa afirmar que a religião grega, ou seus aspectos e mitos,

constitua o fundamento mais sólido da maneira como nós pensamos o

nosso próprio mundo moderno. Ela surge no nosso quotidiano, a cada

vez que falamos em ―complexo de Édipo‖, ou nos referimos a um

―bacanal‖. Para nós, podem ser conceitos elaborados, como o

complexo de Édipo da Psicanálise, como podem ser uma expressão

popular e despretensiosa para descrever uma festa meio desregrada (o

tal bacanal). O que significavam para os gregos? Como chegaram até

nós? O que nos dizem, ainda hoje? Estas algumas das perguntas desta

conferência.

124

Professor Titular do Departamento de História da Unicamp, Bolsista em

produtividade científica do CNPq, líder de Grupo de Pesquisa do CNPq,

coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp, CEAv/Unicamp.

www.gr.unicamp.br/ceav.

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A religiosidade e a historiografia

O estudo do poder tem longa tradição - e em certo sentido,

a própria narrativa historiográfica- está atrelada às lides do

poder. O historiador grego Heródoto preocupou-se com as

relações entre gregos e persas, assim como Tucídides escreveu

sua obra a partir da contraposição entre as cidades gregas em

guerra. Portanto, na origem da narrativa histórica, como gênero

literário, o poder, kratos, esteve ligado à coerção física e à luta,

polemos. Esta dimensão militar e bruta da força permeou,

também, ainda que de forma diversa, a nascente ciência

histórica moderna, motivo pelo qual reis e generais continuaram

a ocupar lugar de destaque no discurso histórico. O século XX

viria a testemunhar uma ampliação das preocupações do

historiador e o poder foi relacionado a outras esferas da atuação

humana, em particular, às representações, sentimentos,

identidades e sensibilidades. Poder e saber passaram a serem

termos correlacionados e em constante conexão.

Um dos aspectos relevantes dessa ênfase no simbólico tem

sido o estudo das conexões entre poder e religiosidade ou

conjunto de sentimentos relativos às forças superiores, mágicas

ou espirituais. Segundo as concepções dos próprios antigos, os

deuses e as manifestações de forças desconhecidas faziam parte

da vida quotidiana, nas formas mais variadas e freqüentes.

Mesmo um autor como Tucídides, historiador considerado pelo

positivismo como precursor da descrição neutra e imparcial, não

deixava de mencionar a fortuna, tykhé, e o mesmo pode ser dito,

a fortiori, dos restantes antigos para os quais, claro, o próprio

amor, Eros, era uma força divina.

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A separação moderna entre razão e religião viria a tardar a

expansão da atenção aos aspectos simbólicos e religiosos das

manifestações de poder, mas estes estudos expandiram-se, de

forma exponencial, nas últimas décadas, tanto na análise das

sociedades modernas, como antigas.

O estudo da religiosidade insere-se nos debates

epistemológicos das últimas décadas. As discussões da teoria

social das últimas décadas foram importantes para criticar os

modelos normativos, ainda muito difundidos, em contribuição

significativa para os estudos também das sociedades do passado.

Estudos empíricos e reflexões teóricas apontaram para o caráter

heterogêneo da vida social, da fluidez das relações, e das

contradições e conflitos sociais. No lugar de normas e desvios às

normas, surge uma pletora de comportamentos e visões de

mundo. Outro aspecto importante, proveniente das reflexões

filosóficas e antropológicas, consiste no papel central dos

conflitos na vida social. À tendência de se enfatizar a

reprodução social, contrapôs-se a atenção aos conflitos. Na

tradição marxista, já se havia ressaltado que as contradições de

classe eram o motor da História, na famosa assertiva do

Manifesto Comunista de 1848. Contudo, a tradição sociológica

do século XX, tributária de Max Weber ou de Émile Durkheim,

havia relevado o conflito à categoria de anomalia, doença social,

desvio da reta via. As últimas décadas do século XX, entretanto,

testemunharam uma série de lutas sociais, intensas, como a luta

pelos direitos civis, contra a discriminação racial, contra a

guerra, pela diversidade sexual, pela emancipação feminina, mas

também movimentos em sentido contrário, como o

fundamentalismo religioso e o nacionalismo xenofobista.

Sociedades dilaceradas pelo conflito armado ou civil

multiplicaram-se e muitos estudiosos não hesitaram em retomar

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e melhor explorar o caráter intrinsecamente conflitivo das

relações sociais.

A religiosidade representou, com freqüência, um aspecto

pouco assimilável para o conceito de identidade decorrente do

estado nacional moderno. As igrejas constituídas, em geral, não

se limitavam a uma nação, como no caso das denominações

protestantes ou no universalismo do Catolicismo ou da

Ortodoxia, assim como na diversidade das congregações

judaicas ou das seitas muçulmanas. A diversidade, em qualquer

caso, seria uma conseqüência indesejável, assim como a falta de

controle da autoridade do estado nacional, perante as hierarquias

religiosas e, mais ainda, aos sentimentos religiosos das pessoas,

que fugiam ao controle e às determinações nacionalistas e

tendentes à homogeneidade. A religiosidade, tanto por sua

imensa variedade, como pelos poderes paralelos, constituía

antes um problema a ser, se possível, evitado.

A historiografia sobre o mundo grego, de alguma forma,

foi afetada por tais humores. A imensa diversidade étnica,

cultural, mas também religiosa, no mundo de língua grega, foi

sempre reconhecida, mas não sem certo receio de perder a

unidade, supremacia e homogeneidade desse neologismo, o

helenismo. Neologismo, pois nunca houve o termo helenismo,

na própria antiguidade, mas o próprio conceito de helenização

implicava um telos, um objetivo final, o ser grego. Neste

quadro, as religiosidades do mundo grego, não apenas com sua

diversidade, mas com suas contradições e conflitos,

representaram desafios para a historiografia normativa, aquela

que considera que a sociedade está regida por normas sociais

respeitadas pela maioria e rejeitada apenas pelos desviantes.

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Como podemos saber sobre a religião grega?

Os gregos deixaram-nos muitas obras e um grande número

delas trata, de uma forma ou de outra, da religião e constituem fontes

primárias e de primeira importância para quem quiser ter um

conhecimento direto da religiosidade grega. As principais foram

traduzidas para o português, algumas em edições muito acuradas e

bonitas. A Ilíada de Homero, traduzida pelo poeta Haroldo de

Campos constitui uma porta de entrada privilegiada, assim como duas

outras jóias: Édipo Rei de Sófocles e As Bacantes de Eurípides, ambas

traduzidas por Trajano Vieira; ou a Teogonia de Hesíodo, vertida por

Jaa Torrano. Na verdade, quase todas as obras de autores gregos

tratam, de alguma forma, da religião. Os historiadores não deixam de

mencionar a deusa Fortuna, nem os filósofos o deus do Amor (Eros).

Mas não foram apenas os gregos a escrever sobre sua

religiosidade: os latinos também o fizeram e são, para nós, guias

importantes, pois tudo que estranhavam ou era diferente, eles

relatavam. Claro, os gregos nem sempre escreviam aquilo que era

óbvio para eles mesmos. Talvez o mais envolvente autor latino seja

Ovídio, em suas Metamorfoses, com suas tantas historinhas

mitológicas, na boa tradução de Bocage. Tomemos cuidado, contudo:

como veremos, os gregos nunca tiveram relatos de suas história

míticas como se fossem um manual, como dá a entender a leitura de

Ovídio.

A Arqueologia produziu, desde o século XIX, uma infinidade

de informações que vieram a complementar, mas também a

contradizer a tradição literária. As escavações trouxeram à luz uma

infinidade de inscrições que mostram o dia-a-dia da religião, assim

como os edifícios e objetos retratam a imensa variedade e

especificidade das práticas religiosas gregas. São dados que podem

contradizer o que nos dizem os antigos, como no caso mais notável,

que trataremos abaixo, de Dioniso. Ele era considerado pelos antigos

como deus vindo do Oriente, pouco tempo antes da sua época, o

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século V a.C. Hoje, sabemos, por meio da Arqueologia, que esse deus

já era conhecido em Micenas, muito antes, em 1400 a.C. O melhor

estudo arqueológico ainda não foi traduzido e está citado na

Bibliografia (Ancient Greek Religion).

Os gregos e suas religiosidades

Os gregos nunca constituíram um estado, com fronteiras

delimitadas, uma língua nacional, uma capital. Eram definidos, por si

mesmos, como os helenos: aqueles que falavam dialetos aparentados e

cultuavam mais ou menos os mesmos deuses. Isto significa que, onde

houvesse gregos, havia religiosidade grega. Quando pensamos na

Grécia Antiga, logo pensamos na cidade-estado, conhecida por seu

nome original: polis. A polis, contudo, é tardia, tendo surgido nos

inícios do primeiro milênio a.C. e muitos gregos viviam em

assentamentos humanos que não eram cidades, como os povoamentos

ou etnias (ethné). Suas origens, também, são mais longínquas no

tempo e mais variadas do que se pode supor. Desde o início do

segundo milênio a.C., existiram civilizações que foram as precursoras

da Grécia Antiga: os minóicos e os micênicos. Estes últimos, em

particular, são melhor conhecidos, tendo nos deixado escritos, em um

grego arcaico, que foram decifrados no século XX. Em meados do

primeiro milênio a.C., no Peloponeso floresceu uma civilização

micênica centrada em palácios. Nos tabletes decifrados, foram

encontrados os nomes de algumas das principais divindades gregas

clássicas: Zeus, Hera, Posidão, Ártemis, Atena, Hermes, Ares, e

Dioniso, entre outros. Também, encontraram-se vestígios de templos e

referências a sacerdotes e sarcerdotisas, chamados com os mesmos

nomes que teriam posteriormente (ijereu, que daria hieros, prefixo que

chegou até nós: ―hierarquia‖, poder sagrado).

Nos primeiros séculos do primeiro milênio, surgiram as cidades

(poleis), em sociedades aristocráticas e guerreiras e o início dos Jogos

Olímpicos, em 776, segundo a tradição, marca a presença da religião

como base cultural dos helenos. Essas competições eram reuniões de

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caráter religioso. A religiosidade grega que conhecemos é a das

cidades-estados, desde o século VIII a.C., que atinge seu apogeu nos

séculos seguintes, mas que continuará até a instituição do

Cristianismo como religião oficial em 380 d.C.

A religião grega, com suas origens no Mediterrâneo oriental,

expandiu-se junto com os colonos gregos para o sul da Itália, Sicília e

costas da França e da Espanha. A partir das conquistas de Alexandre o

Grande (356-323 a.C.), a religião grega - adaptada por inúmeros

povos - atingiu culturas a oriente e a ocidente.

Considerações sobre as características da religiosidade grega

Religião sem livro sagrado, a vivência espiritual dos gregos

baseava-se em algumas crenças que, em grande parte, eram vistas

como meras especulações do ser humano, diante do que sabiam

ignorar. Não havia informações incontestes, nem textos ou sacerdotes

que pudessem definir, sem direito a contestação, dogmas. Por isso

mesmo, as explicações e mitos variavam de um lugar a outro, de uma

época a outra e mesmo de um indivíduo a outro. As divergências entre

as versões dos mitos, que podem parecer ilógicas, resultam,

justamente, de saberem que nada está certo de forma segura sobre o

mundo dos deuses. Sem nada saber com certeza, não por acaso, uma

premissa básica da religião grega era: ―conhece-te a ti mesmo‖. Isto

significava: saiba da sua ignorância e mortalidade (esta a grande

certeza).

Chegamos, aqui, a um segundo aspecto essencial: a mortalidade

humana e imortalidade divina. Essa divisão era essencial e

instransponível. Ou, como tudo para gregos, mais ou menos: havia

dúvida se um humano poderia tornar-se divino, ou em que medida era

divino. Os heróis eram seres humanos que, mortos e enterrados,

recebiam culto e, de alguma forma (mas só parcialmente) eram

deuses. Os deuses tudo podiam, os homens, nada, daí a importância do

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culto. A morte levaria a uma situação miserável, como está na

Odisséia (11, 488-91):

Não tente falar-me com subterfúgio da morte, glorioso

Odisseu. Preferia, se pudesse viver na terra, servir como

escravo de outra pessoa, como serviçal de um sem-terra de

poucos recursos, do que ser um grande senhor de todos os

mortos que já pereceram.

No dia-a-dia, as lápides funerárias mostram que não se pensava

que houvesse senão lembrança entre os vivos, após a morte:

Se tivesses alcançado a maturidade, pela graça da fortuna,

todos antevíamos em ti Macareus, um grande homem, um

mestre da arte trágica entre os gregos. Mas, agora, tudo o que

permanece é a tua reputação de temperança e virtude

(Inscriptiones Graecae, II, 2, 6626).

A importância dos ritos

Em qualquer tradição religiosa, a maioria das pessoas tem

pouca ou nenhum conhecimento dos preceitos teológicos e mesmo os

relatos sagrados podem ser apenas parcialmente conhecidos. Os ritos,

contudo, constituem a vivência, aquilo que torna vivo o sentimento

religioso. Isto era tanto mais verdadeiro para os gregos antigos, pois

acreditavam que dos rituais dependesse a sorte dos humanos. Em

geral, os ritos existentes levaram os gregos a proporem mitos que os

explicassem. Daí que os rituais precediam os deuses, o que já nos diz

muito sobre sua importância. Os gregos distinguiam o templo, um

edifício (naos), do terreiro (temenos) e do lugar sagrado (hieron). O

edifício sagrado recebia, muitas vezes, o nome do deus, como

Artemision (da deusa Ártemis, Diana). O terreno sagrado era

delimitado por muros que separavam a propriedade divina do mundo

humano: eram os limites sagrados (horoi), que cortavam o espaço dos

homens (cortar é a origem da palavra temenos). Tudo girava em torno

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do altar de sacrifícios (bomos), a tal ponto que havia altares sem

edifícios, mas nunca o contrário.

Para os deuses celestes, o sacrificador ficava sobre uma

plataforma, onde se cortava o pescoço do animal. Uma parte da carne

era queimada para que o odor agradasse ao deus, sendo o restante da

vítima consumida. Para os deuses subterrâneos, havia um buraco para

se verter o sangue do animal e queimava-se toda a vítima. Os

sacrifícios para os deuses ligados aa morte estavam contaminados,

impuros, com um miasma a ser eliminado, daí que tudo fosse posto ao

fogo. Sacrifícios humanos não eram desconhecidos: um casal de

inimigos podia ser morto, como remédio mágico (pharmacoi) para os

males da coletividade. À exceção do deus infernal Hades, todos os

cultos podiam ser celestes ou infernais (urânios e ctônicos, em grego).

A palavra grega para denominar o sacrifício significa também

festa religiosa (thysia). Quase todas eram de caráter local, ainda que

ligadas a eventos do calendário agrícola, como, em particular, as

festas de renascimento da vida e da vegetação, que marcam o fim do

inverno e o início do ano agrícola. Os sacrifícios, parte essencial do

culto e das festas, são acompanhados de cânticos e música, de caráter

mágico, assim como danças, com movimentos ritmados. A pureza

ritual podia exigir a abstinência sexual, assim como morrer ou nascer

estavam vedados no recinto sagrado (os casos excepcionais deviam

ser superados por um sacrifício de purificação).

A maior parte das festas nos santuários incluía jogos ou

competições, o que chamavam de uma disputa (agon). Eram artísticas

(canto coral de crianças e adultos, de instrumentos musicais), de

ginástica e atléticas. Os jogos em honra a Zeus em Olímpia, com a

participação de todos os gregos, fundados em 776 a.C. davam-se em

volta do Templo do deus.

Não apenas os jogos eram religiosos, mas também as

representações teatrais, tragédia e comédia, tinham esse caráter

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ritualístico. Dioniso era o deus do êxtase, que significa ―estar (stasy)

fora (ec) de si‖. Era o deus das vinhas e das moças tomadas pelo

êxtase: as mênades. Ai estava a origem das representações teatrais. A

saga de Dioniso, retratada tão bem nas Bacantes de Eurípides (século

V a.C.), revela bastante sobre a relação dos gregos com seus deuses.

Em uma palavra, o deus, tendo sido rejeitado, é apresentado, ao

mesmo tempo, como o mais terrível e o mais gentil para a

humanidade. Terrível, se não for satisfeito. Gentil, se for cultuado.

Religiosidade e hierarquias

Os gregos mantinham uma relação ambígua, em relação ao

poder e o faziam a partir de um questionamento religioso do mundo.

Os deuses tudo podem, já o homem estava sempre diante da

possibilidade de extrapolar, de ser arrogante, descontrolado,

desmedido. Chamavam essa arrogância de hybris. Para o ser humano,

deixar-se levar pela soberba era ―não se conhecer a si mesmo‖, não

reconhecer as limitações do humano, à diferença do divino, sendo

Édipo um bom exemplo disso. Este mito mostra como as relações de

poder estavam no cerne da religiosidade grega. Aparecem a incerteza

(moira) e o acaso (tykhe) - ambas forças mágicas - mas o tema central

é o poder ilimitado e sua punição. O que causa a perdição de Édipo é

sua pretensão:

A desmedida gera a tirania.

A desmedida –

Se infla o excesso vão

Do inoportuno e inútil –

Galgando extremos cimos, decairá

No precipício da necessidade,

Onde os pés não têm préstimo.

(Édipo Rei de Sófocles, 872-878, tradução de Trajano

Vieira)

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O nome da peça de Sófocles, no original, não por acaso é

Édipo Tirano. Essa aversão ao poder não significa, contudo, que não

houvesse hierarquias. O culto, tanto doméstico como da cidade, era

masculino, mas isso favoreceu o florescimento de uma religiosidade

que admitia mulheres e outros excluídos: os cultos de mistério, de

cunho salvacionista. O mais famoso, em Eleusis, na Ática, revela suas

características principais: secreto, para iniciados, voltado para a

fertilidade e a salvação, como diz um fragmento de Sófocles (837):

―três vezes abençoados os mortais que, após terem visto os ritos vão

ao Hades. Apenas eles viverão lá, os outros terão todos os males‖.

Era como se os mais excluídos das hierarquias citadinas tivessem nos

mistérios uma religiosidade popular que invertia, pela expectativa pós-

morte, as relações de poder quotidianas.

Do lado das hierarquias controladas pelas elites, havia o

sacerdócio, que não era profissional, mas podia ser mais ou menos

hereditário, sendo apenas uma das atividades do sacerdote, cujo nome,

hiereus, significa apenas ―sagrado‖ ou ―consagrado‖. Deuses

costumavam ser servidos por sacerdotes e deusas por sacerdotisas. O

sacerdote vivia, no dia-a-dia, longe do santuário e não tinha qualquer

vestimenta ou comportamento especial. Só era reconhecido durante a

celebração.

Uma clivagem básica reflete-se na religiosidade grega: seu

localismo. Embora houvesse festivais pan-helênicos, os cultos e

festividades religiosas eram de caráter local e mesmo familiar, sem

que houvesse possibilidade de inclusão dos que estavam de fora.

Assim, o culto doméstico nunca incluiria os escravos, nem quaisquer

agregados. Nos bairros, os cultos só estavam abertos aos cidadãos do

bairro, excluídos os escravos e mesmo um cidadão de outro bairro. Os

cultos da cidade excluíam os metecos (estrangeiros residentes). Isso

significa que a hierarquização nós/eles estava presente a todo tempo (à

exceção, em parte, dos cultos de mistério) e que a religiosidade

adquiria características paroquiais. Assim, a Atena cultuada em

Atenas não era a mesma que recebia culto em outro lugar.

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Conclusão

A religiosidade grega assentava-se em um preceito ético:

conhece-te a ti mesmo. O ser humano em sua pequenez, sem nunca

poder ambicionar a vida eterna, apanágio dos deuses, mas sempre

atento a si mesmo e às suas limitações. Ainda mais ético, pois era

sabedor daquilo que, em seu interior, podia destruí-lo: a hýbris, a

arrogância. Por isso, estava preocupado não com uma outra vida, mas

com agir com valor, preservar uma reputação de modéstia e virtude.

Ética também aqui, pois essa lembrança constituia um bem comum, só

tinha sentido como parte de uma comunidade que dela se lembrava e

valorizava.

Agradecimentos

Este artigo retoma o paper que apresentei no Núcleo de

Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do

Rio de Janeiro informa, 08 e 12 de novembro, I Congresso

Internacional de Religião, Mito e Magia no

Mundo Antigo. Agradeço a Maria Regina Cândido e a José Geraldo

Costa Grillo. Menciono, ainda, o apoio institucional do CNPq,

FAPESP e UNICAMP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se

ao autor.

Referências Bibliográficas

GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MIKALSON, Jon D. Ancient Greek Religion. Oxford: Blackwell,

2005.

ROBERT, Fernand. La Religion Grecque. Paris: Presses

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Janeiro: Bertrand Brasil, 1984.

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235

Um manuscrito pseudo-zoroástrico e o papel do Salvador na

cristandade primitiva oriental

Vicente Dobroruka125

Para Patricia

ἔκ τοί με τήξειρ: καί σ᾽ ἀμείψασθαι θέλω

υιλότητι χειπῶν.

Eurípides, Orestes 1047-1048.

Este capítulo discute brevemente um dos aspectos menos

explorados do cristianismo primitivo - suas relações com o tema da

―refeição sagrada‖ e desta com o culto a Mitra. Todavia, o caminho

para se chegar ate essa discussão é tortuoso e, ao final do capitulo,

possivelmente o leitor terá a impressão de que a evidência material

mitraica importa menos do que a documentação escrita compulsada,

de natureza sincrética e, talvez, oracular.

Os possíveis paralelos para a comunhão e para a Santa Ceia são

inúmeros: entre os estudiosos dos Manuscritos do Mar Morto não ha

quem ignore as regras relativas às refeições (os exemplos são vários,

mas fiquemos com 1QS 1.11-13, na Regra da Comunidade), ou para

Para as citações bíblicas utilizei a Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus,

1985), cotejada com os trechos em grego do software BibleWorks 7.0. Para

os textos clássicos utilizei as edições da Loeb Classical Library e, para a

única referência aos Manuscritos do Mar Morto, a edição inglesa de Geza

Vermès. The Complete Dead Sea Scrolls in English. London: Penguin,

1997. As demais fontes são listadas conforme aparecerem ao longo do

capítulo. 125

Doutor em Teologia pela Universidade de Oxford. Professor de História

Antiga na UnB e Membro do Ancient Indian and Iran Trust.

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os que crêem que sejam os essênios os autores ou consumidores dos

Manuscritos, quem se refira ao testemunho de Josefo sobre o assunto

(Guerra dos judeus 2.129 ss., entre outros).

Aqui tratarei de um lugar-comum entre os apologetas cristãos

da Antigüidade tardia, que é o uso de personagens pagãos para

―confirmar‖ a vinda do Messias (Jesus Cristo), ou da Parusia, ou de

ambos. De certa maneira, a técnica pode ser vista como um

desdobramento (lógico) do uso da Bíblia Hebraica pelos cristãos para

construírem com mais solidez o enredo soteriológico no qual se

fundamenta o Cristianismo.

Entre os muitos personagens pagãos que tiveram esse uso, os

mais famosos são, sem duvida, as sibilas. Outros devem ter sido muito

consumidos ao final da Antigüidade, mas pouco nos restou deles -

oráculos envolvendo Apolo, Zoroastro126

ou Hystaspes (o Vištasp da

tradição persa, seja ele o rei mítico que acolheu Zoroastro, seja ele o

pai de Dario)127

. O tema da relação entre a refeição sagrada tal como

entendida pelos apologetas cristãos e um texto árabe tardio é o objeto

deste capítulo, portanto. Dito de outro modo, um desenvolvimento

tardio de um tema que deve ter sido bem comum ao final da

Antigüidade e começo do medievo oriental.

No Evangelho de Lucas, após o anúncio de catástrofes cósmicas

(Lc 21:24-28) semelhantes ao material escatológico encontrado nas

126

Utilizo alternadamente ―Zoroastro‖ quando tratar-se de referência comum

e geral ao personagem, e Zardušt, Zaradušt ou outros mais próximos do

persa quando lidar com passagens específicas em que não faria sentido

―helenizar‖ o nome próprio. 127

Que tal confusão tenha apenas aumentado com o passar do tempo é bem

atestado pela obra de Amiano Marcelino. História romana. 23.6 - Magiam

opinionum insignium auctor amplissimus Plato machagistiam esse verbo

mystico docet, divinorum incorruptissimum cultum, cuius scientiae saeculis

priscis multa ex Chaldaeorum arcanis Bactrianus addidit Zoroastres, deinde

Hystaspes rex prudentissimus Darei pater.

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fontes zoroástricas (usando um termo propositalmente genérico),

Jesus anuncia um aspecto peculiar de Seu ministério:

E tomou um pão, deu graças, partiu e distribuiu-o a eles

[aos discípulos], dizendo: „isto é o meu corpo que é dado

por vós. Fazei isto em minha memória‟. E, depois de

comer, fez o mesmo com o cálice [...]128

Passagens paralelas encontram-se em Mt 26:26-28 (catástrofes

e Juízo em 25:31 ss.) e Mc 14:22-24 (semelhante em sua simplicidade

à descrição da ceia pascal de Lucas). A parte as discussões mais

recentes sobre o ―Jesus histórico‖, que analisam estas passagens no

contexto do judaísmo da época129

, vejamos o tema central da

narrativa: a analogia do corpo de Jesus com o pão (Lc e Mc) e o

significado de sua ingestão (desenvolvimento posterior ou idéia

original, encontrado em Mt). O significado da ingestão em Mt reveste-

se de importância que só se pode entender após a compreensão da

primeira analogia: ―Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o

abençoado, partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse: „Tomai e

comei, isto é o meu corpo‟‖.

Aqui o caráter sagrado da refeição reveste-se de um significado

especial: a identificação do fiel com Jesus. Não se fala em

―identificação‖ como linhagem biologicamente estabelecida (que,

128

Lc 22:19-20. 129

Geza Vermès. A religião de Jesus, o judeu. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

p.23. O cuidado de Jesus com relação às observâncias pascais deveria, nos

termos de Vermès, deixado Jesus ―nauseado‖ (op.cit. p.23; para exemplos

desse cuidado, cf. Mc 14:12-16; 26:17-19; Lc 22:7-15). Em meio a tanta

discussão infrutífera sobre o ―Jesus histórico‖ (já tornado clichê), Vermês

analisa com sensatez o que se pode ou não inferir legitimamente do material

de que dispomos sobre Jesus. Convém lembrar que os Evangelhos não são,

nem pretenderam ser, biografias de Jesus. Para a falta de sensibilidade de

investigadores modernos como Crossan, cf. p.13.

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aliás, é cuidadosa e criativamente estabelecida ao começo de Mt); mas

os apologetas cristãos dariam um passo audacioso nesse sentido.

O primeiro desses apologetas a ser examinado aqui é Teodoro

bar Konai, em seus Comentários (σχόλιον). Teodoro deve ter vivido

entre 780-823 d.C., ou seja, durante o patriarcado de Timóteo I130

, e

seus scholia fornecem material muito importante para a compreensão

de outras doutrinas ―concorrentes‖ ao cristianismo - entre as quais o

zoroastrismo.

Tal como modernamente organizado, vemos na passagem de

Teodoro um Zoroastro notavelmente semelhante a Jesus. Reunido

também com seus discípulos Gouštasp131

, Sāsan e Māhman (ou

Māh-i-man), inicia-se um diálogo interessante entre os quatro132

.

130

É a opinião consensual entre a maior parte dos estudiosos de bar Konai,

embora alguns o tenham identificado com outro personagem, um bispo do

séc.IX. 131

Gouštasp pode ser Vištasp, em função da troca do ―vi‖ inicial ―pelo ―gu‖,

a partir do séc.I d.C.; todavia, em Pahlavi , a similaridade dos traços pode

explicar também a troca devida a erros ou descuidos dos copistas. Cf. Franz

Cumont e Joseph Bidez. Les mages hellénisés. Zoroastre, Ostanès et

Hystaspe d‟après la tradition grecque. Paris: Belles Lettres, 2007. Na

reimpressão da edição de 1938, que é a citada e utilizada, o trecho encontra-

se no que era originalmente o tomo II, p.127, nota 2. 132

Os três personagens são mencionados com freqüência entre os primeiros

discípulos de Zoroastro, e encontra-se aqui novamente o tema da ―vinda do

grande rei‖ (do Oriente), e a associação (talvez análoga à de Is 53:2) do

Messias com uma ―grande árvore, impossível de desenraizar‖ - cf. Cumont e

Bidez, op.cit. p.127). Pode tratar-se aqui da ―árvore da vida”ou ―pilar

cósmico‖, tema comum nas grandes religiões do Oriente Próximo, mas talvez

seja uma referência mais específica à árvore do Bahman Yašt. Sāsan aparece

também na Caverna dos tesouros, com o nome de Sīsan; o texto da Caverna

é atribuído a Efraim (306-373), mas na forma em que chegou até nós não

deve ser anterior ao séc.VI d.C.. Cf. a edição da Caverna, Ernest W. Budge.

The Book of the Cave of Treasures. London: The Religious Tract Society,

1927.

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239

Gouštasp pergunta a Zaradušt quem é maior, o Messias ou o

próprio Zoroastro responde que o Messias virá de sua linhagem, de

sua família (aqui Teodoro pode estar mal-interpretando - ou

interpretando bem demais - a tradição segundo a qual os

ensinamentos dos magoi eram transmitidos de pai para filho,

literalmente). ―Ele sou eu, e ele é [mim]. Eu estou nele, e ele em

mim‖.

A semelhança com o Saošyant, onde a transmissão também

é, ao seu modo, biológica, é notável - o Messias zoroástrico virá ao

mundo após uma virgem banhar-se no lago Kasaoya, onde o

esperma de Zoroastro foi, miraculosamente, preservado, e será

fecundada desse modo. Assim, temos ao mesmo tempo uma

linhagem biológica e a manutenção da virgindade da ―mãe‖ do

Messias.

Prosseguindo na análise do texto de Teodoro, Zaradušt é

portanto um avatar de Jesus. O tema encontra eco não apenas em

Lc 21:25 mas, em termos mais amplos, na tradição sibilina e na

propaganda mitradaica também. A passagem termina com uma

exortação típica da literatura apocalíptica: o topos segundo o qual

os três discípulos devem ―guardar‖ em seus corações o que

ouviram (semitismo? O ―coração‖ era tido por outros autores

apocalípticos como o locus do pensamento; p.ex. TestPatr,

Test12Jud 13:2; também como sede do desejo em Test12Rub 3:6;

ApAbr 23:30; como órgão ligado à função do intelecto em Jub

12:20 e, finalmente, como ligado à função volitiva em 1En 91:4 e

Jb 1:15133

).

Teodoro encerra essas palavras foram proferidas pelo ―segundo

Balaão‖. Ao referir-se a Zaradušt como um ―homem do vulgo‖,

133

Para uma discussão aprofundada da relação entre órgãos e funções na

apocalíptica, cf. David S Russell. The Method and Message of Jewish

Apocalyptic. Philadelphia: The Westminster Press, 1964. Pp. 142 ss..

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Teodoro acreditava que Zoroastro fosse de origem judaica, como o

Livro da abelha faz o mesmo (37 - ―Profecia de Zârâdôsht acerca de

Nosso Senhor‖)134

:

Gûshnâsâph lhe disse, ‗O que tem de poder, esse de quem

falas? Ele é maior do que ti, ou és maior do que ele?‘

Zârâdôsht lhe respondeu, ‗Ele descenderá de minha família;

eu sou ele, e ele sou eu; ele está em mim, e eu nele. Quando

Sua aparição tiver começo, sinais prodigiosos aparição no

Céu, e sua luz superará a do Sol135

. Mas vós, nascidos da

semente da vida, que viestes dos tesouros da vida, da luz e

do espírito, e fostes plantados na terra de fogo e água, a vós

cabe esperar a Sua vinda e guardar estas coisas de que vos

falo, para que aguardeis a Sua vinda; pois sereis os

primeiros a notar a vinda do grande rei136

, que libertará os

134

Bidez e Cumont, op.cit. p.129. O Livro da abelha, em 55 capítulos, é de

autoria de Salomão de Akhlat (1222). Como a Caverna, o Livro da abelha

discute uma variedade de temas teológicos ligando o AT ao NT, mas revela

grande preocupação com a genealogia de Jesus e com o Juízo Final (os

mesmos temas presentes no uso de Zoroastro por Teodoro bar Konai). Para

os interessados, cf. a edição (relativamente) moderna de Ernest W. Budge.

The Book of the Bees. Oxford: Clarendon Press, 1886. O ―Prefácio‖ trata da

analogia entre a atividade das abelhas com a base ―de cera‖ que se deve

estabelecer para o estudo das Escrituras - sem indagar de menos, mas

tampouco em excesso, para ―não saciar-se mel até o vômito‖ (remissão a Pr

25:16). 135

No OH, cf. especialmente a passagem de Lactâncio nas Instituições

divinas 7: DI 7: [...] naquele tempo o Filho de Deus será enviado pelo Pai,

para destruir os perversos e libertar os pios [...] essas coisas são verdadeiras

e certas, tendo sido anunciadas unanimemente por todos os profetas, já que

Trimegisto, Hystaspes e as Sibilas anunciaram, todos, as mesmas coisas‖; cf.

ainda Lc 21:8-19, Mt 24:4-8 e Mc 13:5-13. 136

O ―grande rei‖ pode ser entendido, nesse contexto, como o rei persa, dada

a proveniência de Zoroastro - e o fato de Teodoro bar Konai estar

familiarizado com os temas padrão da patrística oriental, grega - cf. entre

muitos outros exemplos possíveis Tucídides, História da Guerra do

Peloponeso 1.110 e a propaganda mitradaica em geral. O Oráculo de

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prisioneiros137

. Agora, meus filhos138

, guardai este segredo

que vos revelei, e que seja guardado nos cofres139

de vossas

almas. E quando surgir a estrela de que vos falei, enviai

embaixadores com oferendas [vossas], e oferecei-lhas em

culto140

. Olhai, observai, e não O desprezei, para que Ele

não vos destrua pela espada141

; pois ele é o rei dos reis, e

todos os reis dele recebem suas coroas. Ele e eu somos um

[só]‘. Essas foram as coisas ditas por esse segundo Balaão e

Deus, segundo o Seu costume, compeliu-o a interpretar

essas coisas; ou ele nasceu de um povo acostumado às

profecias relativas a Nosso Senhor Jesus Cristo, e declarou-

as antes do tempo. [grifos meus]

Além de todos os temas relacionados nas notas à passagem

acima, outro salta aos olhos como elemento comum à ―profecia‖ de

Zoroastro e outros usos de personagens pagãos para ―confirmar‖ a

verdade do Evangelho e a iminência da Parusia. Trata-se da passagem

final em que Teodoro afirma ser ―costume‖ de Deus ―compelir‖ à

profecia - exemplos desse tipo poderiam ser encontrados no AT (p.ex.

Jr 1:4; 4:19), mas os paralelos com a Sibila mostram-se mais

evidentes. OrSib 2:1-5 faz a Sibila dizer que142

Quando Deus parou minha canção perfeitamente sábia,

Hystaspes também faz amplo uso do tema. Todavia, ao final do texto

Teodoro afirma que Zoroastro era judeu, o que torna a interpretação da

passagem difícil. 137

Cf. Jo 8:36; Lc 12:58 ss. e Mt 5:25-26. Algo da discussão sobre ―quem é

mais forte‖ pode ser um eco de Lc 9:46 e Mt 18:1-5. 138

Cf. nota abaixo. 139

Lit., ―casas de tesouros‖ - alusão à Caverna? 140

Referência ao tema dos reis magos. 141

Mt 10:34 e Lc 2:35. 142

Para os Oráculos sibilinos utilizei a edição de John J. Collins in: James

H. Charlesworth (ed.). The Old Testament Pseudepigrapha. New York:

Doubleday, 1983-1985. Vol.1 comparada com o texto grego estabelecido em

Alfons Kurfess. Sibyllinische Weissagungen. München: Heimeren, 1951.

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conforme [eu] rezava por muitas coisas,

Ele novamente colocou em meu peito

o delicioso proferimento de palavras maravilhosas.

Falarei do seguinte com todo o meu ser em êxtase

Pois [eu] não sei o que dizer, mas Deus me inspira cada

coisa falada.

A passagem enfatiza o caráter compulsório da inspiração da

Sibila, embora também revele um certo ―deleite‖ por parte do

visionário. Em contraste direto com esse tipo de experiência temos

OrSib 2:340; 3:1-7; 11:315-324, 13:1 e por fim, o fragmento 8 é muito

curto mas cheio de indicações do processo de indução extática por

parte do visionário143

, com a indagação a Deus da razão do dom

profético ser impingido à Sibila:

A [Sibila] eritréia, então, a Deus: ‗Por quê‘, diz ela, ‗ó

Mestre,infliges a compulsão da profecia sobre mim144

e não

me proteges, erguida sobre a Terra, até o dia de Vossa mui

bendita vinda?‘

Em comum, todas essas passagens sibilinas atribuem a Deus o

dom da profecia e o expõem como algo compulsório - exatamente

como ocorre com Zoroastro ao final da passagem de Teodoro bar

Konai.

A passage de Teodoro bar Konai relaciona-se, de modo

surpreendente, com uma homilia pertencente à Coleção Mingana de

mss., bem mais tardio. Trata-se do ms. Mingana 142, ff.48-61,

143

Sabemos bem pouco desse fragmento, encontrado no Discurso aos santos

de Constantino (de datação incerta, composição original em latim e teor

―popularesco‖). Dado o caráter tão ―franco e aberto‖ da passage, é realmente

uma pena termos somente este fragmento - que de algum mode parece

relacionar-se a OrSib 3:1-5 and 296. 144

Evidência bem escassa, mas que merece a citação por extenso: ―i¿dein me lo/gon ke/letai me/gan‖.

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atualmente em Birmingham. O manuscrito está em árabe registrado

em caracteres siríacos (Garshūni); ele oferece uma discussão paralela

entre Jesus e Zoroastro na qual os ―erros‖ do zoroastrismo são

expostos. A homilia, redigida em letra clara, encontra-se na escrita

siríaca ocidental (Serṭā)145

, e desenvolve de modo surpreendente

alguns dos aspectos encontrados no texto de Teodoro bar Konai.

O texto ―denuncia‖ a diferença entre os milagres realizados

pelo Deus verdadeiro e os milagres ―falsos‖ de outros. Também

encontram-se nele citações de Aristóteles (que devem ser

interpolações tardias, supondo que o autor do ms. Mingana

conhecesse os scholia de Teodoro), e fala-se do deus cultuado até a

vinda de Cristo, 146 ܒܝܕܐܪܛܘܣ.

No fol. 59a encontra-se um novo diálogo entre Zoroastro e seus

discípulos:

Esse Zardasht disse a seus discípulos: ‗Quem não comer do

meu corpo nem beber do meu sangue, de modo a que eu me

misture a ele e ele a mim, esse não terá salvação [...]‘ Mas o

Cristo disse a seus discípulos: ‗Quem comer o meu corpo e

beber o meu sangue terá a vida eterna‘.

Tal como Teodoro bar Konai, o autor da homilia conhecia a

tradição segundo a qual atribui-se ao banquete mitraico a fundação

145

Alphonse Mingana. Catalogue of the Mingana Collection of

Manuscripts now in the Possession of the Trustees of the Woodbrooke

Stettlement, Selly Oak, Birmingham. Vol.1. Syriac and Garshūni

Manuscripts. Cambridge: W. Heffer and Sons, 1933. Pp.323-324. O ms.

deve ter sido confeccionado em torno de 1690. 146

Idem, p.323.

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244

por Zoroastro147

; lamentavelmente o final do ms. Mingana 142 B

encontra-se incompleto.

O sacerdote mitraico, ao vestir a pele do touro sacrificado,

poderia adquirir suas qualidades vitais - e desde os princípios do

cristianismo isso foi interpretado como uma paródia satânica da

comunhão. Justino, o Mártir e Tertuliano já falavam do mitraísmo

nesses termos148

. Efetivamente, existe um paralelo entre a

―reutilização‖ da pele de um boi ou touro e a imortalidade, ou a

comunicação com o mundo dos mortos149

. A associação com o

―banquete‖ cristão, i.e. a participação do fiel na imortalidade de Cristo

mediante a comunhão é quase inevitável; o touro forneceria apenas

um aspecto da ligação.

O surpreendente é a ligação, estabelecida em algum momento

entre o texto de Teodoro e o ms. Mingana, com relação à promessa de

imortalidade e o fogo, ambos relacionados à figura de Zoroastro. O

culto ao fogo estaria ligado a vários aspectos possíveis da

imortalidade:

Em primeiro lugar, à lenda segundo a qual Zoroastro ainda

criança teria pulado numa fogueira e saído incólume (possível

embelezamento de uma prática de ordálio). Assim, no Livro de

147

Franz Cumont. Un bas-relief mithriaque du Louvre In: Revue

Archéologique 25, 1946. P.193. 148

Respectivamente, na Apologia 1.60 e em De Praescriptione

Haereticorum 40. 149

Carlo Ginzburg. História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo:

Companhia das Letras, 1991. Pp.37 ss.; o autor mostra como o tema tem sido

continuamente estudado desde Benveniste. Para a especificidade do tema

com relação ao mitraísmo, cf. Monuments relatifs aux mystères de

Mithra. Tome I, p.186, e Cumont, op.cit. p.185 para a associação do touro

mitraico com o touro primordial [do zoroastrismo, suponho, uma vez que

Cumont não se detêm no ponto].

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Zoroastro 8 (Zarâtusht Nâma, em persa): trata-se do ―terceiro

milagre‖ realizado por Zoroastro150

:

Vendo-se com problemas, os feiticeiros tomaram Zarâtusht

de seu pai. Foram para o deserto, onde juntaram uma

montanha de madeira, que empaparam de betume negro e

de enxofre amarelo. Tendo acendido a chama gigantesca,

jogaram Zarâtusht. Mas por ordem do Deus Vitorioso [um

dos epítetos de Ahuramazda], não lhe ocorreu qualquer

mal; para ele, as chamas ardentes fizeram-se doces como a

água, e ele dormiu no meio delas151

.

Em segundo lugar, à apropriação das qualidades do animal

sacrificado que, ressuscitado mediante a entrada de um sacerdote

dentro de sua pele (ritual xamanístico típico, no qual o xamã

―renasce‖ ou entra em contato com o mundo dos mortos)152

.

Em terceiro lugar: tanto Teodoro bar Konai quanto o autor

anônimo de nossa homilia do ms. Mingana empenham-se em

distinguir a vitória sobre a morte obtida tanto por Zoroastro quanto

por Jesus; mas não conseguem livrar-se da tradição, que devia ser

comum na cristandade oriental, que associava os dois líderes

religiosos.

150

A edição utilizada para este artigo é a de Frederic Rosenberg. Le Livre de

Zoroastre, Zarâtusht Nâma: De Zartusht-I Bahram Ben Padju. S.

Petersburgo: Académie Impériale dês Sciences, 1904. P.12. 151

O paralelo com os três jovens na fornalha em Dn 3 é inevitável; nos dois

casos, pelo fato das histórias ambientarem-se entre persas não há como evitar

a associação com alguma forma de ordálio. O tema do Juízo Final pelo fogo é

corrente no NT e na literatura persa (Seleções de Zâd-Sparam 16.8. Dinkart

7.8. Nas Seleções a ordem de apresentação dos milagres é ligeiramente

diferente). A passagem mais óbvia é a Bundahišn 30.18. 152

Mircea Eliade. Shamanism. Archaic Techniques of Ecstasy. London:

Penguin, 1989. Pp.32-33; 93; 107-108 e principalmente pp.375-427.

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246

Em suma, os usos que Teodoro bar Konai e o autor anônimo da

homilia do ms. Mingana 142B fazem são bastante semelhantes entre

si: o que salta aos olhos nesse ms. pseudo-zoroástrico é que a refeição

―sagrada‖ não é tratada como paródia, mas levada à sério num

contexto que envolve talvez outros ―filósofos‖ pagãos que

―predisseram‖ a vinda de Jesus.

Entre eles, obviamente, encontra-se Zoroastro.

Uma retrospectiva desses ―filósofos cristãos‖ avant la lettre

encontra-se noutro ms. da coleção Mingana, o 481B. Mas isso é tema

para uma discussão própria, a ser feita noutro artigo ou capítulo153

.

De todo modo, a apropriação crista parece dever mais à

traditional leitura helenizante do Oriente como espaço do inusitado,

do grotesco ou do diferente154

e ao ―orgulhoso monoligüismo‖ dos

gregos155

do que ao desejo de combater o zoroastrismo como doutrina

rival; ao mesmo tempo, convém não esquecer que, não obstante os

usos feitos por Teodoro e pelo autor anônimo de nossa homilia, a

semelhança evidente com os Evangelhos, por um lado, e com

153

O ms. 481B expõe, nos ff.221b-225b ―uma coleção de ditos de filósofos

pagãos acerca da vinda de Cristo. Em Garshūni‖ (Mingana, op.cit. p.889. Os

filósofos citados (seguidos de seus nomes em Garshūni, que não repito aqui

por razões de ordem prática são: ―(a) Hermes, (b) [nome não-identificado],

(c) Archias (?), (d) Eriphus, (e) Platão, (f) Aristóteles, (g) Íon (?), (h) [nome

não-identificado], (i) [nome não-identificado], (j) Zoroastro‖. Embora não

tenha data, o ms. 481B apresenta muitas características em comum com o

142B, incluindo as marcações freqüentes em vermelho e uma curiosidade -

ao final do texto, ficamos sabendo que, nas margens largas há notas sobre o

―cliente‖ que encomendou a cópia e pagou por ela 2 rīyâls‖. É bom lembrar

que os nomes ―não-identificados‖ estão em escrita legível e bonita, em Serṭā. 154

Diógenes Laércio. Vidas dos filósofos ilustres, 1. 155

Arnaldo Momigliano. Essays in Ancient and Modern Historiography.

Middletown: Wesleyan University Press, 1987. Pp.12-13.

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episódios da vida de Zoroastro tal como narrados em fontes persas não

podem ser ignorados.

Nisso tudo, os elos fundamentais na transmissao da idéia da

―paródia‖ da refeição sagrada podem ter sido Justino e Tertuliano.

Um dos problemas mais sérios e que levou a discussões mais

graves entre os iranólogos é precisamente o da datação das fontes.

Amiúde essa discussão resume-se ao questionamento da data deste ou

daquele ms.156

; isso é ma metodologia, em minha opinião. Ninguém

usaria o mesmo argumento para datar, digamos, Josefo (cujos mss.

mais recentes são dos sécs.X-XI); portanto, a sobrevivência da

historieta pseudo-zoroástrica mostra uma notável continuidade entre

os temas tradicionais da hagiografia referente ao próprio Zoroastro e

um ms. do séc.XVII para o qual o paralelo mais próximo, até onde sei,

é o texto do séc.VII de Teodoro bar Konai.

O papel de Zoroastro na difusão e compreensão do cristianismo

no Oriente pode ter durado muito mais do que se imagina, e

certamente muito mais do que o zoroastrismo durou como religião de

Estado.

156

Philippe Gignoux. L’apocalyptique iranienne est-elle vraiment la

source d’autres apocalypses? In: Acta Antiqua Academiae Scientiarum

Hungaricae 31 (1-2): 67-78, 1988.Pp.69 ss. e Jacques Duchesne-Guillemin.

Apocalypse juive et apocalypse iranienne. In: Ugo Bianchi e Maarten J.

Vermaseren. La soteriologia dei culti orientali nell'Impero romano: atti

del Colloquio internazionale su la soteriologia dei culti orientali

nell'Impero romano, Roma, 24-28 settembre 1979. Leiden: Brill, 1982,

passim.

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Referências Bibliográficas

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Religious Tract Society, 1927.

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