UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS CÉSAR … · o pensamento e o conceito da arte; ... 15 2.2.2...

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS CIÊNCIAS JURÍDICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREIT0 NÍVEL MESTRADO CÉSAR VERGARA DE ALMEIDA MARTINS COSTA DIREITO E LITERATURA: A COMPREENSÃO DO DIREITO COMO ESCRITURA A PARTIR DA TRAGÉDIA GREGA SÃO LEOPOLDO 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

CINCIAS JURDICAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREIT0

NVEL MESTRADO

CSAR VERGARA DE ALMEIDA MARTINS COSTA

DIREITO E LITERATURA:

A COMPREENSO DO DIREITO COMO ESCRITURA

A PARTIR DA TRAGDIA GREGA

SO LEOPOLDO

2008

CSAR VERGARA DE ALMEIDA MARTINS COSTA

DIREITO E LITERATURA:

A COMPREENSO DO DIREITO COMO ESCRITURA

A PARTIR DA TRAGDIA GREGA

Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno ttulo de Mestre, em Direito Pblico pelo Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. rea de concentrao: Direito Pblico

Orientador: Prof Dr. Jos Carlos Moreira da Silva Filho

SO LEOPOLDO

2008

Catalogao na Publicao: Bibliotecria Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184

M385d Martins Costa, Csar Vergara de Almeida Direito e literarura: a compreeso do direito com escritura a partir da tragdia grega / por Csar Vergara de Almeida Martins Costa. 2008. 146 f . : il. ; 30cm.

Dissertao (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Ps-Graduao em Direito, 2008. Orientao: Prof. Dr. Jos Carlos Moreira da Silva Filho, Cincias Jurdicas.

1. Direito - Literatura. 2. Literatura - Interpretao - Tragdia Grega.

3. Obrigao. 4. Constituio. 5. Justia. I. Ttulo.

CDU 34:82

CSAR VERGARA DE ALMEIDA MARTINS COSTA

DIREITO E LITERATURA:

A COMPREENSO DO DIREITO COMO ESCRITURA

A PARTIR DA TRAGDIA GREGA

Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno ttulo de Mestre, em Direito Pblico pelo Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. rea de concentrao: Direito Pblico

Aprovado em 29 de outubro de 2008.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Jos Carlos Moreira da Silva Filho - UNISINOS

___________________________________________________________________

Prof. Dr. lvaro Felipe Oxley da Rocha - UNISINOS

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Clarisse Beatriz da Costa Shngen - PUCRS

"Para Vivian, Camila e Csar Jr.

Em memria de meu pai, Cludio Afonso de Almeida Martins Costa, grande

contador de histrias e quem primeiro despertou em mim o amor pela arte."

Somente eu inoculei a estes que nos rodeiam tal sabedoria, ao emprestar-lhes

o pensamento e o conceito da arte; de tal modo que aqui/

agora todo mundo filosofa, e administra a casa e o ptio, o campo e os animais

com mais inteligncia que nunca: continuamente investiga e reflete

por qu?, para qu?, quem?, de onde?, como?, o qu?/

aonde isto chegou, quem me tirou aquilo? Aristfanes

RESUMO

A presente dissertao tem por objetivo a afirmao do Direito como escritura, que ao mesmo tempo transgressora e conservadora da tradio jurdica. Para tanto, parte-se da aproximao do direito literatura, investigando-se, mais precisamente, as relaes que se estabelecem entre a tragdia grega e o direito. Nessa senda, investiga-se o panorama geral em que se inserem os estudos que aproximam o direito da literatura e vice-versa, e visita-se a potica aristotlica para, ento, examinarem-se as caractersticas do gnero e do homem trgicos. So investigados conceitos bsicos da Grcia Antiga os conceitos de physis, ethos, nomos, hamartia, hybris, themis e dik - e, ento, a passagem das estruturas de pr-direito ao direito que se desvela nos mitos gregos e, por conseqncia, no gnero trgico, com base nos estudos de Louis Gernet e Vernant.vIdentificada, a partir da Potica Aristotlica, a mimesis nsita literatura, e, reconhecida a tragdia como evento que coincide com a afirmao da democracia grega e, portanto, com o traado dos esboos da vontade humana, percebem-se os laos que ligam, ontologicamente, a tragdia e o princpio jurdico (a palavra que obriga). A partir de ento, afirma-se a ocorrncia de uma mimesis inerente ao prprio texto legal - uma variao do imaginrio que est presente no direito objetivado - e que, portanto, precisa ser desvelada para que se faa a Justia no caso concreto. Trata-se, assim, da afirmao do direito como prtica interpretativa e, ao mesmo tempo, como escritura criativa. Afirma-se, assim, que o verdadeiro direito escritura, na medida em que, como prtica interpretativa, no pode trabalhar o institudo sem instituir: o direito - enquanto prtica interpretativa constante - labora num permanente aflorar da lngua, e o saber jurdico constantemente se renova atravs dos julgamentos que aproximam o texto, como projeto, da historicidade dos fatos que o comprimem. Portanto, no h incompatibilidade entre a reflexividade infinita que a literatura impe ao saber e aquela que o direito - como literatura - impe s suas formas institudas, ou seja: a escritura do direito trabalha com o institudo, mas permanentemente instituinte. Conclui-se, desse modo, que direito escritura criativa e igualmente comprometida com a tradio, que convive incessantemente com as ambigidades intrnsecas prpria linguagem. Escritura que se debate com uma mimesis prpria das variaes imaginativas que a lei opera sobre a realidade na elaborao de um projeto social e que, exatamente por isso, ao ser ao mesmo tempo ao e imitao , em si prpria, dramtica. Palavras-chave: Direito. Pr-direito. Literatura. Interpretao. Escritura. Tragdia Grega. Physis. Ethos. Nomos. Hamartia. Hybris. Themis. Dik. Potica. Aristteles. Mimesis. Obrigao. Constituio. Justia.

ABSTRACT

The main objective of the present dissertation is the affirmation of the Law as scripture, which is, at same time, transgressor and conservative of the juridical tradition. In order to state so, one has to approach the Law to the Literature, more precisely investigating the relations that have been established between the Greek tragedy and the Law. This way, one has to investigate the general panorama in which the studies that approximate law and literature (and vice-versa) are inserted, and the Aristotelic poetics is visited in order to allow the gender and the tragic man characteristics to be examined. Basic concepts of the ancient Grece are herewith investigated such as physis, ethos, nomos, hamartia, hybris, themis e dik as well as the passage of the pre-law structures to the law itself which are unveiled in the Greek myths and, consequently, in the tragic gender based on studies signed by Louis Gernet and Vernant . Identified since the Aristotelic poetics, the mimesis inserted into Literature, and tragedy being recognized as an event that coincides with the affirmation of the Greek democracy, and, therefore, with the sketches traced on Human Will, one can perceive the ties that ontologically link the tragedy to juridical principle (the words that obligate). From then on, one can state the occurrence of the inherent mimesis to the legal text itself a variation of the imaginary which is present on the objective law - which, once more, must be unveiled in order to allow justice in a concrete modus. It is, therefore, the affirmation of the law as an interpretative practice as well as a creative scripture. This way, one can state that the true law is a scripture by means of an interpretative practice that cannot operate the instituted without instituting: the law while considered as a constant interpretative practice, laborites in a permanent leveling of the language and the juridical wisdom constantly renovated through the judgments that approach the text, as a project, to the historicity of the facts that compress it. Therefore, there is no incompatibility between the infinite reflexivity that the literature imposes when taking knowledge and the one that the law, as literature, imposes to its instituted forms; i.e., the scripture of the law works with the instituted, although being permanently instituting. This way, one can conclude that the law is a creative scripture, equally compromised with the tradition, which cohabitates incessantly with the intrinsic ambiguities of the language itself; scripture that debates with the mimesis which is a characteristic of the imaginative variations that the law operates upon reality when elaborating a social Project that, exactly for the same reason, being action and imitation at once, is, in itself, dramatic. Key-words: Pre-law. Literature. Interpretation. Scripture. Greek Tragedy. Physis. Ethos. Nomos. Hamartia. Hybris. Themis. Dik. Poetics. Aristotle. Mmesis. Obligation. Constituition. Justice.

SUMRIO

1 INTRODUO .........................................................................................................9

2 DIREITO E LITERATURA............................. .........................................................11

2.1 COMEANDO PELA ETIMOLOGIA ...................................................................14

2.2 ASPECTOS HISTRICOS..................................................................................15

2.2.1 O Princpio .................................. ....................................................................15

2.2.2 O Alvorecer do Sculo XX Louis Gernet, G. S mith, Benjamin Cardozo

e John Henry Wigmore ...................... ............................................................16

2.2.3 Os Anos 70. Direito e Literatura: a Afirma o do Movemento

Universitrio Norte-Americano ............. ........................................................19

2.2.3.1 Richard Weisberg..........................................................................................19

2.2.3.2 Richard Posner a Integridade Esttica da Literatura ..................................33

2.2.3.3 James Boyd White o Direito como Retrica ...............................................37

2.3 OS DESDOBRAMENTOS DO MOVEMENTO NORTE-AMERICANO................40

2.3.1 Ronald Dworkin a Hiptese do Romance em Cad eia...............................41

2.3.2 Samuel Weber, Martha Nusbaum, Stanley Fish, I an Ward, Robin West,

Owen Fiss - Outros Enfoques no Movemento A mericano..........................43

2.4 DIREITO E LITERATURA ALM DOS ESTADOS UNIDOS ............................44

2.4.1 Blgica - Franois Ost....................... .............................................................45

2.4.2 Frana....................................... .......................................................................50

2.4.2.1 Jacques Derrida A Desconstruo do Direito.............................................50

2.4.2.2 Philippe Malaurie...........................................................................................51

2.4.2.3 Anne Teissier-Ensminger - La Beaut du Droit .............................................53

2.5 CANAD IOANNIS PAPADOPOULOS............................................................56

2.6 BRASIL................................................................................................................58

3 TRAGDIA GREGA CLSSICA .......................... .................................................63

3.1 O MUNDO GREGO PHYSIS, ETHOS, NOMOS, HYBRIS, HAMARTIA, DIK63

3.2 ORIGENS DA TRAGDIA...................................................................................74

3.3 A POTICA DE ARISTTELES..........................................................................81

4 AS RELAES ENTRE TRAGDIA E DIREITO............. ...................................103

4.1 CONFLITO, AMBIGIDADE, ROMPIMENTO DA ORDEM E ESBOO DA

VONTADE: A TRAGDIA DESVELA O JURDICO ..........................................103

4.2 O DIREITO COMO ESCRITURA QUE DESVELA A MIMESIS INTRNSECA AO

TEXTO LEGAL..................................................................................................118

5 CONCLUSO ........................................ ..............................................................126

REFERNCIAS.......................................................................................................135

9

1 INTRODUO

Dissertar sobre direito e literatura lanar-se em um saboroso caminho e,

paradoxalmente, em uma rdua trilha. A literatura nos convida ao devaneio, nos

transporta ao mundo do possvel1, e nela preciso tomar cuidado para manter os

ps na senda da concretude, em que pese esteja ela aberta pluralidade das

significaes da vida em sociedade. O direito - tal como corriqueiramente tratado e

estudado no mundo ocidental a partir dos rigorosos parmetros positivistas - nos

encurrala, por vezes, numa racionalidade instrumental que no cede espao

poesia, diante de seu atrelamento mera descritividade. preciso tomar cuidado

para no transformar o direito em uma simples tcnica desprovida do potico e, por

conseqncia, afastada do humano. Essa ambigidade, que aflige aqueles que se

propem a examinar criticamente o fenmeno jurdico, , ao mesmo tempo,

desafiante e perturbadora.

A pesquisa inicia mirando o que vem acontecendo naquilo que se tem

chamado de Movemento direito e literatura. Vrios autores tm se dedicado ao

estudo das relaes possveis entre direito e literatura, dentre eles merecendo

especial destaque os juristas americanos. A presente pesquisa no tem a pretenso

de esgotar os mltiplos enfoques que tm sido dados ao tema. Todavia, so

investigadas as abordagens oferecidas pelos principais nomes do Movemento

americano Law and Literature movement, sobretudo na diviso de correntes que se

estabelece entre os que vem o direito na literatura e os que vem o direito como

literatura. So investigadas, nessa senda, as posies adotadas por autores

europeus e, no Brasil, visitada a obra de Eliane Botelho Junqueira. Esse primeiro

momento da dissertao visa demonstrao da importncia do dilogo

estabelecido entre os campos do jurdico e do literrio.

O segundo momento da pesquisa trata especificamente de conceitos

fundamentais presentes na sociedade grega quando do advento da Tragdia (sc. V

1 Veja-se, a propsito: OST, Franois. Contar a lei: as fontes do imaginrio jurdico. Traduo de

Paulo Neves. So Leopoldo: Editora Unisinos, 2005. p. 13. (Coleo Dke, 108). [...] enquanto a literatura libera os possveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma rede de qualificaes convencionadas, a encerra num sistema de obrigaes e interdies.

10

a. C). So, neste ponto, examinadas no s as origens da tragdia como gnero

literrio, mas tambm as estruturas presentes na sociedade grega que apontam

para a existncia de uma elaborao jurdica da qual a tragdia vai necessariamente

se ocupar. Busca-se, assim, demonstrar que o grande tema do qual se ocupa a

tragdia grega o processo de afirmao da polis que se estrutura no

desdobramento de estruturas de pr-direito em estruturas de direito. Para tanto, a

pesquisa visita, como no podeira deixar de ser, a Potica aristotlica e, igualmente,

ampara-se nos estudos desenvolvidos por Vernant2 e Gernet3. So, por

conseqncia, examinadas as caractersticas da tragdia como gnero literrio

singular e, igualmente, a significao do homem trgico.

Investigadas algumas das principais relaes possveis entre direito e

literatura e, igualmente estudados o gnero e o homem trgicos, a pesquisa se

encaminha para o dilogo entre a tragdia e o direito para, enfim, afirmar a

possibilidade do direito como escritura criativa e igualmente comprometida com a

tradio, que convive incessantemente com as ambigidades intrnsecas prpria

linguagem. Escritura que se debate com uma mimesis prpria das variaes

imaginativas que a lei opera sobre a realidade na elaborao de um projeto social e

que, por isso mesmo, ao ser, ao mesmo tempo, ao e imitao , em si prpria,

dramtica.

2 VERNANT, Jean-Pierre. O momento histrico da tragdia Grega. Tenses e ambigidades na

tragdia grega. Esboos da vontade na tragdia grega. In: ______; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragdia na grcia antiga. So Paulo: Perspectiva, 2005. p. 1-52.

3 GERNET, Louis. Recherches sur le dveloppement de la pense juridique et morale en Grce: tude smantique. 22. dition. Paris: ditions Albin Michel, 2001. 467 p.

11

2 DIREITO E LITERATURA

Direito e literatura inserem-se nas reas do conhecimento que, do ponto de

vista acadmico, convencionou-se chamar de Cincias Humanas. Embora essa

classificao possa ser questionada, e passe pela prpria discusso acerca do

conceito de cincia, optou-se por iniciar o percurso utilizando a expresso cincias

humanas que so aqui assim entendidas como as reas do conhecimento e da

expresso que tem como epicentro a condio humana e suas implicaes no

tempo e no espao.

O dilogo entre o direito e literatura tem se apresentado como um novo

espao transdisciplinar que tenta viabilizar a obteno de respostas para

questionamentos tais como: O que o direito? Quem deve obedec-lo? Por que

deve? O que a Justia? O que pode a literatura?

Como esclarece Barretto, a hiptese desenvolvida pelos estudos

contemporneos, que levam a rubrica geral de Direito e Literatura a de que se

encontram analisados e descritos na imaginao literria, de forma mais viva que na

prpria doutrina, os fundamentos da ordem jurdica, seus mecanismos e significados

simblicos.4

A aproximao entre o direito e a literatura tem se dado, basicamente, atravs

de quatro campos transdisciplinares, que, Malaurie5 assim classifica:

a) o direito na literatura: campo no qual se busca identificar na literatura a

representao de temas jurdicos, tais como a prpria idia de direito, de

4 BARRETTO, Vicente de Paulo. Philia, autocracia e legitimidade. In TRINDADE, Andr Karam;

GUBERT, Roberta Magalhes; COPETTI NETO, Alfredo et. al. (Org.). Direito & Literatura: reflexes tericas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.117.

5 MALAURIE, Philippe. Droit et Littrature: une anthologie. Paris: Cujas, 1997. p. 7: Il y a plusieurs manires au moins quatre denvisager les rapports entre la literature et le droit:1) le droit de la literature: la proprit littraire, la responsabilit civile de lcrivain et le droit de La presse diffamation, injure; 2) le droit comme littrature, les qualities littraires du droit; 3) le droit compare la littrature, quon pourrait aussi nommer la structure littraire du droit: la comparaisson des methods littraires et juridiques; 4) le droit dans la littrature: la faon dont la littrature se reprsente la loi, la justice et les grands problems du droit. Il sagit dans ce livre du droit dans la littrature, ce qui a diverses acceptions.

12

lei, justia, liberdade, propriedade, crime, pena, herana, e as prprias

instituies judicirias e institutos processuais que configuram o sistema

jurdico. Trata-se do exame do prprio direito presente nas obras literrias,

de que exemplo o estudo feito pelo professor Ost acerca da

temporalidade do contrato na obra O mercador de Veneza, de

Shakespeare.6

b) o direito como literatura: campo pelo qual se buscam identificar os

aspectos literrios do texto jurdico atravs da utilizao de mtodos

especficos da crtica literria. o estudo do prprio direito afirmado por

meio de prticas da crtica literria que auxiliam na compreenso e na

aplicao do direito, de suas instituies e decises, bem como a

compreenso do prprio conceito de Justia. Por isso, essa rea de

conexo entre o direito e a literatura privilegia o papel do intrprete e da

obra, atravs da visitao do direito como literatura. Como esclarece

Chueiri, nesse campo, a nfase se d na forma narrativa da obra que pode

servir para compreender a narrativa jurdica desvelada nas sentenas

judiciais, por exemplo.7

c) o direito comparado literatura: campo que se dedica ao exame

comparativo dos mtodos jurdicos e literrios ou, ainda, da estrutura

literria do direito.

d) o direito da literatura: campo em que so estudadas questes jurdicas

pertinentes ao direito de autoria, a propriedade intelectual, a liberdade de

expresso, a responsabilidade civil do escritor e as questes concernentes

injria, difamao e calnia na obra literria.8 Trata, em sntese, da

normatizao jurdica das obras literrias.

A aproximao do direito literatura coloca em relevo o papel do intrprete.

Interpretao e narrativa formam um binmio essencial compreenso do direito

(CHUEIRI).9 Tal aproximao tem conseqncias importantes no desenvolvimento

de uma prpria teoria da Justia. A argumentao jurdica e a atividade interpretativa

6 MALAURIE, Philippe. Droit et Littrature: une anthologie. Paris: Cujas, 1997. p. 108. 7 CHUEIRI, Vera Karam de. Direito e literatura. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio de

filosofia do direito. So Leopoldo: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 235. 8 Ibid., p. 117. 9 CHUEIRI, Vera Karam de. Direito e literatura. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio de

filosofia do direito. So Leopoldo: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 117.

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passam a ser vistas como prticas interpretativas que do espao criatividade,

obviamente balizadas por valores que so, em primeiro plano, estticos, o que traz

consigo a idia de que a interpretao no apenas um mtodo a servio do jurista,

mas constitutiva do prprio conceito de direito: Direito interpretao.

Alm disso, a viso do direito como interpretao, que se possibilita pela

aproximao entre o direito e a literatura, amplia os horizontes do direito, que deixa

de ser meramente descritivo (positivismo jurdico) e abre espao para as dimenses

narrativas e prescritivas que esto associadas histria. Tal constatao est

vinculada tradio hermenutica segundo a qual a narrativa se situa

intermediariamente entre o ponto de vista descritivo e o ponto de vista prescritivo

acerca da ao: narrar situar-se entre a descrio e a prescrio acerca da ao.

Nessa senda, atravs da aproximao do direito com a narrativa possvel

compreend-lo para alm de sua descrio, poltica e eticamente, uma vez que a

teoria narrativa pode, genuinamente, mediar entre descrever e prescrever, na

medida em que alarga o campo da ao (da prtica) e antecipa consideraes ticas

na prpria estrutura do ato de narrar (CHUEIRI).10

O encontro do Direito com a Literatura, e vice-versa, se descortina numa tica

de transdisciplinaridade que, muito alm de estabelecer um dilogo horizontal entre

disciplinas (interdisciplinar) se constri numa perspectiva de abertura e tolerncia

que no se intimida diante do novo e do imprevisvel, que vai alm da mera troca de

conhecimentos pois, transitando pelas disciplinas em idas e vindas recorrentes,

afirmam o conhecimento que pressupe a fronteira entre disciplinas como espao de

troca e construo e no como obstculo, espao que visa integrao dos saberes

e no sua fragmentao.11

10 CHUEIRI, Vera Karam de. Direito e literatura. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionrio

de filosofia do direito. So Leopoldo: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 234. 11 Vide, a propsito da questo da transdisciplinaridade: SOUSA, Ielbo M. Lbo de; FOLMANN,

Jos Ivo. (Org. ) Transdiciplinaridade e Universidade: Uma proposta em construo. Unisinos, 2003, 127 p.

14

2.1 COMEANDO PELA ETIMOLOGIA

A palavra literatura de origem latina e provm do vocbulo litterae

habitualmente traduzido por letras. Os gregos utilizavam o vocbulo

gramamatikke. No mundo clssico, a literatura freqentemente reconhecida

como potica, ou arte potica, dela tendo tratado Aristteles (Potica), Horcio

(Ars Poetica - Epistula ad Pisones), e Longino ou Dionsio (Tratado sobre o Sublime,

cuja autoria bastante discutvel).12

Por sua vez, a palavra direito, de controvertida origem, geralmente tida

como derivada do latim directus, particpio passado do verbo dirigere, ou da

expresso de rectum, atribuda situao em que o fiel de uma balana

apresentava-se de forma perpendicular ao solo.

Da raiz latina derivaram diritto (italiano), derecho (espanhol), droit (francs),

dret (alemo), drech (occitano). Na lngua portuguesa, o vocbulo evolui de directo

(1277) para dereyto (1292) at aparecer na forma atual direito a partir do sculo

XVIII.

Na matriz germnica, a palavra rihit originou o vocbulo right (ingls) e

recht (alemo), provavelmente por influncia do indo-europeu reg-to , prximo ao

latim rectus com significao de andar em linha reta. Atualmente, os pases da

Common Law se valem das expresses law e rigths, a primeira significando o

direito como tal, ou seja, como sistema de direitos, e a segunda, como os direitos

que o prprio direito reconhece.

De outro lado, no direito romano aparece, ainda, a palavra ius como

sinnimo do direito objetivo e subjetivo: ius est norma agendi e ius est facultas

agendi.

12 Ver ARISTTELES; HORCIO; LONGINO. A potica clssica. Introduo de Roberto de Oliveira

Brando; Traduo direta do grego e do latim por Jaime Bruna. 12. ed. So Paulo: Cultrix, 2005.

15

No mundo grego, a palavra dik (justia, lei, pena, direito), remetia

concepo de direito vinculada de Justia13: pedia-se dik, espalhava-se dik,

atravs do processo de contradico. O Juiz era o dikastes e o Tribunal, o

dikasterion.14 A palavra themis, por sua vez, significava a lei do soberano.

2.2 ASPECTOS HISTRICOS

O dilogo entre direito e literatura remonta prpria histria dos primeiros

textos jurdicos. Aspectos literrios so encontrados, por exemplo, no Deuternimo.

Contudo, o estudo do direito por meio de textos literrios tomou flego no incio do

sculo XX, atravs de autores como Cardozo, Wigmore e Gernet, vindo,

posteriormente, a desaguar no efervescente Movemento direito e literatura. A

evoluo histrica desse Movemento merece, pois, ser examinada.

2.2.1 O Princpio

Em que pesem suas diferenas etimolgicas, o direito e a literatura, ao longo

da histria, sempre estiveram profundamente conectados, j que, de um modo ou de

outro, ambos funcionam, intencionalmente ou no, como espelhos privilegiados da

sociedade.15

Assim, nos primrdios da histria humana (a histria que se inicia com a

escrita), difcil estabelecer um corte profundo entre as duas reas. Os primeiros

documentos histricos que refletem o Direito so, antes de tudo, obras de maestria

literria e simblica, que geralmente contm um prlogo de estrutura narrativa e

potica que narra o momento e as condies que ensejaram a produo da norma 13 FERRAZ, Trcio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito. So Paulo: Atlas,1994. p. 32. 14 JONES, Peter V. (Org.). O mundo de Atenas: uma introduo cultura clssica ateniense. So

Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 372. 15 Veja-se, mais uma vez, OST, Franois. Contar a lei: as fontes do imaginrio jurdico. Traduo de

Paulo Neves. So Leopoldo: Editora Unisinos, 2005. p. 24 (Coleo Dke, 108). Entre direito e literatura, decididamente solidrios por seu enraizamento no imaginrio coletivo, os jogos de espelho se multiplicam, sem que se saiba em ltima instncia qual dos dois discursos fico do outro.

16

ou conjunto de normas. Por outro lado, os grandes textos literrios, a exemplo das

tragdias gregas a quem Aristteles atribua a condio de arte potica maior -

ocupam-se fundamentalmente, do princpio jurdico.16

Com efeito, o que tm em comum o Cdigo de Hamurabi (1760 a.c), a Tor, a

legislao Mosaica, o Arthashastra (400 a.c) e o Manusmriti (100 a.c) indianos ,

antes de sua carga normativa, o sublime de sua linguagem potica.

Note-se: o prprio Deuternimo se inicia com o Discurso de Moiss na

Plancie do Jordo em que, poeticamente, o profeta adverte: No torcers o juzo,

no fars acepo das pessoas nem tomars peitas; porquanto a peita cega os

olhos dos sbios e perverte as palavras dos justos.17

Portanto, ao contrrio do que se possa pensar, o entrelaamento entre

Direito e Literatura no algo novo ou recente. O que h de relativamente novo o

estudo sistemtico desse entrelaamento, cuja importncia, em termos tericos,

situa-se no incio do Sculo XX, como se ver.

2.2.2 O Alvorecer do Sculo XX Louis Gernet, G. S mith, Benjamin Cardozo

e John Henry Wigmore

Na Frana da primeira metade do sculo passado, Louis Gernet teve, sem

dvida, papel precursor no estudo aprofundado do direito atravs de textos literrios,

no caso, especificamente, da literatura clssica grega. Sua obra Recherches sur Le

dveloppement de La pense juridique et morale em Grce18, editada por Ernest

Leroux em Paris no ano de 1917 um marco na transdisciplinaridade direito-

literatura, na medida em que, para afirmar sua tese central a da existncia de um

pr-direito precedente ao direito que se satisfaz pelo Estado Gernet visita, com

maestria, os textos de Homero, Hesodo e os trgicos gregos. Essa metodologia de

16 Vejam-se, principalmente, A trilogia dos tridas Oresteia de squilo e as tragdias dos

Labdcidas, sobretudo a Antgona de Sfocles. 17 ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. 5. ed. So Paulo: cone, 1989. p. 24. 18 GERNET, Louis. Recherches sur L dveloppement de la pense juridique et morale em Grce

Paris: Ernest Leroux, 1917. 464 p. (Estude smantique).

17

pesquisa referendada na obra Droit et Instituitions en Grce Antique19 que, vindo

a pblico apenas no ano de 1968, ou seja, um qinqdio aps a publicao da

primeira, confirma o comprometimento de Gernet com uma pesquisa sobre o direito

que vai alm dos limites dos textos tcnicos jurdicos. Na segunda obra citada, o

pr-direito e o direito grego so visitados na literatura grega: analisando temas

literrios como mito do Banquete de Tntalo, o episdio da Espada de Heitor na

Ilada, O sacrifcio dos reis de Atlntida, O calcanhar de Aquiles, A maldio de

Althaia e outros, Louis Gernet estuda as instituies do direito grego e seus

princpios.

Aproximadamente no mesmo perodo aparece a obra de Smith The

Administration of justice from Hesiod to Solon datada de 1924 e que, publicada na

Revue des tudes Grecques, tomo 38 no ano de 1925, confirmando a dedicao de

autores da lngua inglesa em pesquisa que necessariamente pressupunha o exame

da literatura grega para a compreenso do direito e sinalizando uma tendncia que,

posteriormente, desaguaria no hoje festejado Movemento direito e literatura

protagonizado, em primeira mo, pelos juristas norte-americanos.

De fato, nos Pases do Common Law, o enlace entre o jurdico e o literrio ,

mais evidente, justamente porque o sistema do Common Law se baseia na

narrativa dos precedentes, o que consagra um elemento pico intrnseco ao prprio

funcionamento da Justia. Com efeito, tanto os Juzes quanto os advogados

dependem, ali, da narrao dos julgados precedentes e talvez, por isso, o

Movemento direito e literatura tenha encontrado, nos Estados Unidos, solo to

frtil.

Na tradio norte-americana, as figuras precursoras so, de um lado, o

conhecido Juiz da Suprema Corte, Cardozo (1870-1938) e, de outro, Wigmore

(1863-1943)20, cujas obras influenciaram diretamente o surgimento, j na segunda

metade do sc. XX, do importante Movemento Law and Literature que, desde os

anos 70, se afirma no seio das Universidades Norte-Americanas.

19 GERNET, Louis. Droit et Instituitions en Grce Antique. Paris: Librairie Franois Maspero, 1968. 330 p. 20 Ver, a respeito; SIMONIN, Anne. Mais qui est Richard H. Weisberg. Droit et Littrature: nouvelles

rflexions sur la question juive. Raisons Politiques, Paris, n. 27, p. 11-36, ago. 2007.

18

J em 1925, Cardozo publicou o artigo Law and Literature, no The Yale

Revue, no qual se dedicava a descrever o estilo judicirio, afirmando a existncia

de um elo consubstancial entre a forma e o fundo da deciso judicial, asseverando

que a forma no era qualquer coisa agregada ao fundo como um simples ornamento

protuberante, pois os dois forma e fundo so unidos de modo inseparvel. Da, a

idia de que a fora que nasce da forma e a fraqueza que resulta da sua ausncia

so, na verdade, qualidades de fundo da deciso. Cardozo enfrenta a questo o

que um grande caso?, afirmando que uma idia falsa e paralisante considerar

que os casos so grandes simplesmente, ou principalmente, em razo de sua

natureza. Os casos so grandes pelo que ns fazemos deles.21

A importncia de Cardozo indiscutvel, sobretudo, por ter afirmado a idia

de que um julgamento no poderia ser fruto de uma deciso poltica autoritria, mas

sim uma deciso que, para se impor, deveria convencer os outros juzes e

conquistar sua autoridade no seio da comunidade a que se remete. Justamente sob

esse prisma que a literatura ganha flego na atividade judicial de Cardozo: uma

opinio judiciria deve possuir as mesmas qualidades de um romance bem escrito22

As bases da corrente Law as Literature, estavam, ento, lanadas em solo norte-

americano.

De outro lado, coube a Wigmore - cuja importncia no tem sido to

destacada como a do festejado juiz Cardozo - a primeira incurso sistemtica no

intuito de responder o que pode a literatura nos falar acerca do direito. Em 1900

Wigmore publicou a List of legal Novels - lista dos romances judiciais a que se

seguiram outras nos anos de 1908 e 1922. Wigmore definia os romances judiciais

legal novels em sentido estrito: tratava-se, invariavelmente, de um romance em

lngua inglesa, ou um romance em lngua estrangeira, obrigatoriamente traduzido

para o ingls: uma pea de teatro ou poema no entravam na categoria na qual o

romance era tolerado.

21 SIMONIN, Anne. Mais qui est Richard H. Weisberg. Droit et Littrature: nouvelles rflexions sur la

question juive. Raisons Politiques, Paris, n. 27, p. 14, ago. 2007. (traduo nossa). 22 Ibid., p. 14.

19

Como esclarece Simonin23, Wigmore classificava os romances judiciais em

quatro categorias: a) processo, b) retrato-tpico de juristas, c) procedimento, d)

pontos de direito. A classificao de Wigmore criticada por Simonin que considera

que os livros se rebelam contra esse encaixotamento cujos fins utilitaristas

contaminados de puritanismo so descartados pela literatura. De qualquer forma, a

lista de Wigmore tem a relevncia de, no incio do sc. XX possibilitar o

direcionamento do olhar dos juristas norte-americanos para o direito na literatura.

Sua obra foi juntamente com a de Cardozo um dos pilares do Movemento Law and

Literature e da prpria obra de Weisberg que hoje desponta como um dos mais

importantes nomes do Movemento norte-americano.

De fato, se a potica como forma vem de Cardozo, a potica como

substncia encontra sua primeira expresso em Wigmore.24

2.2.3 Os Anos 70. Direito e Literatura: a Afirma o do Movemento

Universitrio Norte-Americano

Durante a dcada de 70 os estudos transdisciplinares estabelecidos entre

direito e literatura adquiriram grande importncia, chegando insero do tema em

disciplinas especficas nas Universidades norte-americanas. Weisberg, Posner e

White, atravs de diferentes abordagens, foram os responsveis pela afirmao das

linhas matrizes que vm, at hoje, surtindo desdobramentos no Law and literature

Movement.

2.2.3.1 Richard Weisberg

Foi com base na atividade precursora de Cardozo e Wigmore, que

necessariamente impunha o pensar o direito como e na literatura, que Richard

23 SIMONIN, Anne. Mais qui est Richard H. Weisberg. Droit et Littrature: nouvelles rflexions sur la

question juive. Raisons Politiques, Paris, n. 27, p. 18, ago. 2007. (traduo nossa). 24 Ibid., p. 18.Si la pothique comme forme vient de Cardozo, la pothique comme substance trouve

sa premire expression chez Jonh Henry Wigmore.

20

Weisberg, hoje considerado o grande expoente do Movemento norte-americano,

estabeleceu as bases epistemolgicas do Law as and in Literature.

Precedido por estas duas correntes, Weisberg, que um dos trs professores

universitrios norte-americanos que encabeam o Movemento Law and Literature,

ao lado de Posner e seu respectivo adversrio Boyd White, foi o responsvel pelo

lanamento do Law and Literature no ano de 1976 num colquio da Association of

Modern Language, que resultou na introduo da discusso direito x literatura nas

Universidades norte-americanas. O Movemento se estabeleceu, desde o incio, sob

o eixo Law as e Law in Literature (direito como e direito na literatura).

Em 1977 Weisberg publicou Law and Literature: Introducing and Aplication25.

A obra de Weisberg est associada ao legado de Cardozo e Wigmore.

Em 1976 Weisberg rev a lista de Wigmore (list of legal novels) nela inserindo

obras de teatro, sobretudo, de Shakespeare e Sfocles e, ao mesmo tempo,

redefine as categorias classificatrias da obras literrias de interesse ao direito

estabelecidas por Wigmore que passam a ser: a) processo, b) jurista como

personagem principal, c) estudo de um corpo de leis especficas, d) relaes entre

direito, justia e indivduo. Como assevera Simonin, Weisberg no questiona os

esquecimentos nem tampouco as rejeies de Wigmore imputveis a razes outras

que ao carter no traduzido ou no publicado de certas obras.26

De outro lado, Weisberg retoma a obra de Cardozo, cuja opinio no clebre

caso Hynes x New York Central Railroad Co. (1921) tida por Weisberg como um

modelo de escritura judiciria.27 Tratava-se de ao movida pela famlia do jovem

James Harvey Hynes (16 anos) contra a New York Central Railroad: Alguns anos

antes um desconhecido colocara uma prancha no topo da divisa que impedia o

acesso de estranhos s guas do Rio Harlem que cruzavam a propriedade da N.Y.

25 WEISBERG, Richard. Law and litterature: introducing and aplication. studies. Literature, University

of Hartford, v. 9, n. 2-3, 1977. 26 SIMONIN, Anne. Mais qui est Richard H. Weisberg. Droit et Littrature: nouvelles rflexions sur La

question juive. Raisons Politiques, Paris, n. 27, p. 18, ago. 2007. [] il mantenait inchang lrchitecture des listes de Wigmore, ninterrogeant ni leus oublis ni leurs refus, imputblees des raisons autres quau caractre non traduit ou non publi de certaines oeuvres.

27 Ibid., p. 15. (traduo nossa).

21

Central Railroad. A prancha vinha sendo utilizada pelos jovens da regio como

trampolim e se situava justo abaixo dos fios de alta tenso que alimentavam a

ferrovia. O Jovem Hynes nadava no rio e resolveu subir na prancha. No momento

em que o jovem se equilibra no trampolim para mergulhar caem vrios fios de alta

tenso ocasionando sua queda na gua junto com a prancha e sua morte. O

processo no esclarece se a morte foi ocasionada por eletrochoque ou por

afogamento.

A famlia de Hynes processa a New York Central Railroad sustentando sua

responsabilidade civil por negligncia no trato do direito de passagem do caminho de

ferro. A defesa, por sua vez, sustenta que a ferrovia no poderia ter qualquer

responsabilidade sobre os atos cometidos por algum que havia invadido uma

propriedade privada. A responsabilidade da ferrovia trazida a julgamento e as

decises de primeira instncia so contrrias pretenso dos familiares de Hynes.

O processo submetido Corte Superior: o Juiz Cardozo, em deciso histrica,

vota pela condenao da empresa.

Tanto Weisberg quanto Posner dedicaram-se a examinar a postura de

Cardozo no caso Hynes, embora sob diferentes enfoques. Weisberg examinou as

palavras utilizadas por Cardozo em sua deciso, chegando concluso de que

Cardozo defende uma cincia pragmtica inspirada pela sociologia em oposio

jurisprudncia mecnica identificada como um mtodo de deduo a partir de

idias predeterminadas caracterstica do direito americano do incio do Sc. XX. De

fato, em 1921 Cardozo publica The nature of the judicial Process (A natureza do

processo judicial) em que afirma que o caso Hynes a prova real de que uma outra

jurisprudncia uma jurisprudncia de resultados que coloca no centro das suas

preocupaes o fator humano e relega a lgica ao seu justo lugar , qual seja e ao de

instrumento - seria possvel. E ser no jurista socilogo que Cardozo ver a

possibilidade da afirmao dessa nova jurisprudncia de resultados e ele prprio

ser esse tipo de jurista.28

28 SIMONIN, Anne. Mais qui est Richard H. Weisberg. Droit et Littrature: nouvelles rflexions sur la

question juive. Raisons Politiques, Paris, n. 27, p. 17, ago. 2007.

22

Com efeito, no caso Hynes, pela tica de Weisberg, Cardozo efetivamente

busca elementos na doutrina para contrariar os precedentes que isentavam de

responsabilidade o proprietrio de terras frente ao invasor, mas, acima de tudo,

utiliza-se de palavras escolhidas desenvolvendo uma narrativa que recompe o

caso utilizando-se de artifcios de criao literria. Assim, Cardozo inicia seu voto

referindo-se a Hynes como um garoto de dezesseis anos. Como esclarece

Simonin, a anlise de Weisberg sobre o caso Hynes, demonstra que a referncia

utilizada por Cardozo projeta o leitor imediatamente no mundo familiar da inocncia

dos jogos infantis. De outro lado, Cardozo no nomina jamais as Cortes inferiores

que haviam julgado o caso, apenas se refere s mesmas como elas, recorrendo

sempre a metforas emprestadas da geometria e da natureza para caracterizar o

conflito entre as leis apreciadas no caso. Do ponto de vista tcnico, a brincadeira de

Hynes caracteriza infrao por ter o mesmo ingressado ilegalmente em uma

propriedade alheia, o que, segundo Weisberg, Cardozo no ignora. Todavia, o voto

de Cardozo rompe com os precedentes com apoio na Doutrina (precisamente, em

um artigo publicado na Columbia Law Review, de autoria de Roscoe Pound, contra a

jurisprudncia mecnica).

O recurso doutrina e a elementos literrios na narrativa do caso (Hynes

apenas um garoto de dezesseis anos frente New York Central Railroad)

permitiram que Cardozo, mesmo rompendo a cadeia (R. Dworkin) dos precedentes,

conseguisse fundamentar rigorosamente a deciso sob o ponto de vista terico,

chegando concluso: Num sentido, o mais tcnico e o mais artificial, o

mergulhador na ponta do trampolim um intruso no terreno vizinho. Noutro sentido,

este que os realistas aceitaro mais facilmente, ele est sempre em guas pblicas

no exerccio de seus direitos. A partir da o direito deve escolher seu campo e,

integrando consideraes de analogia, praticidade, poltica, e de justia considerar

a responsabilidade civil da New York Railroad.29

Nota-se, assim, que a deciso de Cardozo vem imbuda de uma forte carga

narrativa que reconstri os fatos trazidos a julgamento, e ao mesmo tempo, implica

29 SIMONIN, Anne. Mais qui est Richard H. Weisberg. Droit et Littrature: nouvelles rflexions sur la

question juive. Raisons Politiques, Paris, n. 27, p. 17, ago. 2007. (traduo nossa).

23

um discurso tico, de forma semelhante ao que ocorre na obras literrias que

Weisberg vai chamar de narrativas de procedimento (procedural narratives).

Em seu artigo Law and Literature: Self-Generrated Meaning in the Prodedure

Novel que se examinou, aqui, em sua verso traduzida para o francs (Le droit

dans et comme littrature: La signification autognre dans Le roman de

procdure30), Weisberg afirma que juristas e pesquisadores em literatura discutem,

hoje, uma linha de demarcao cultural, e afirma que a partir de 1976, mais

precisamente a partir das convenes anuais da Modern Language Association ou

de seu equivalente nas escolas de direito - as convenes da American Association

of Law Schools -, os pesquisadores se libertaram das comportas disciplinares que

haviam caracterizado o direito e a literatura durante muitos anos.

Nessa senda, afirma que estamos redescobrindo o fato de que todos os

saberes que se fundam na narrao formam uma unidade e que as principais linhas

que aprisionam o discurso que conecta o direito e a literatura comeam pouco a

pouco a se liberar.

Assim, no que diz respeito ao papel do direito na crtica e na teoria literrias

percebe-se que o principal trabalho foi fornecido no campo da crtica e histria dos

textos. Afirma Weisberg que a manifestao do direito, que to evidente no seio de

um gnero especfico, o romance do sculo XIX, se verifica igualmente nos seus

predecessores, ou seja, no teatro elisabetano e jacobino, na poesia medieval e na

tragdia grega do sculo V, todos os gneros e perodos literrios nos quais o

interesse pelo direito j foi objeto de profunda pesquisa. Afirma Weisberg que ao

mesmo tempo em que a atrao dos juristas pela literatura pode, finalmente, lhes

desviar da teoria, em proveito do texto de fico em si mesmo, de outro lado, no

campo dos estudos literrios, a reflexo ligada ao direito tambm poderia nos

conduzir do texto em direo teoria, e esta fenomenologia pode levar a

conseqncia de que o direito reconduza a teoria literria em direo primazia do

texto, assim como a presena da literatura nas faculdades de direito colocou em

questo essa primazia.

30 WEISBERG, Richard. Le droit dans et comme literature: la signification autogner dans le

roman de procdure. Raisons politiques, Paris, n. 27, p. 37-49, aot. 2007.

24

A esse Movemento de eficcias distintas provocadas pela aproximao do

direito com a literatura e vice-versa, Weisberg chega a qualificar como uma

basculante constante no equilbrio hermenutico que refora a pertinncia da

tendncia interdisciplinar que aproxima os dois campos em discusso, pois, no seu

entender, se a teoria jurdica deve corrigir a idia de um pretenso sentido primeiro e

a existncia de princpios universais de interpretao textual, tambm possvel

sustentar que as teorias literrias recentes foram muito longe na direo exatamente

oposta. Isso porque a estrutura legal uma vez integrada da fico moderna implicaria

num retorno primazia do texto e a uma noo da significao do texto descolada

da subjetividade de todo o pblico ou intrprete. Nesse sentido, ficaria afastada a

pretenso de encontro de uma suposta vontade do legislador, por exemplo.

Weisberg acentua que essa tendncia muito prpria de alguns grandes

textos romnticos escritos na poca do ceticismo crescente e do niilismo que

caracterizaram o perodo que vai da segunda metade do sculo XIX primeira

metade do sculo XX. Weisberg sustenta que preciso encarar esse paradoxo que

se revela nas grandes obras literrias que tratam do direito, qual seja: o que uma

das pocas mais iconoclastas e mais contestadoras na histria do romance

produziu, ao mesmo tempo, um esquema estrutural repetitivo que corrobora a idia

de uma realidade que foi verificvel, anterior e prefervel quela dos intrpretes

subjetivos ou a de seu pblico.

Nessa senda, afirma Weisberg que os anos de 1860 a 1960 so exemplos de

um dos mltiplos perodos em que a literatura ocidental foi contaminada por uma

verdadeira fascinao pelo direito, pelos advogados nas cenas de um tribunal e

pelos detalhes dos interrogatrios legais.

Weisberg chama a ateno ao fato de que os advogados que povoam esses

romances modernos em nmero desproporcional no so representados atravs de

uma forma caricatural ou mesmo satrica, sobretudo a partir de Balzac e Dickens. Ao

contrrio, so advogados dotados de uma expresso verbal e inclinados a rearranjar

o real atravs da narrao e, justamente por isso, so a melhor metfora do trabalho

do escritor, ao ponto de que os valores pessoais desses advogados desmoronam

sob efeito de uma angstia ou sofrimento psquico (ressentimento): eles servem

25

ento de meio de expresso a auto-crtica do autor. Partindo dessa premissa,

Weisberg afirma que os advogados, nas obras de Flaubert, Dostoevski, Melville,

Kafka, Faulkner e Camus e tambm em autores contemporneos como Barth,

Malamud e Doctorow nos convidam a sermos cticos a respeito da palavra,

sobretudo diante da palavra tal como eles a empregam, com o plus de eficcia

tpico de seres inteligentes e eloqentes que exercem responsabilidades

institucionais e culturais.

De outro lado, para Weisberg, de forma paradoxal, o processo judicirio, na

maior parte dos romances, nos incita a preservar uma noo no ctica de

acessibilidade verdade. neste ponto que Weisberg introduz a noo de

narrativas de procedimento (procedural narratives) talvez uma de suas mais

importantes contribuies no dilogo entre direito e literatura. Weisberg denomina

procedural narratives os romances que se focam sob um processo jurdico de

grande envergadura criando uma estrutura que admite a possibilidade de uma

compreenso verificvel dos eventos anteriores ao momento mesmo em que se

coloca em dvida a interpretao puramente subjetiva ou muito elaborada desses

eventos. Nesse sentido, Weisberg sugere uma lista das verdadeiras procedural

narratives encontradas nos romances modernos que deveria necessariamente

incluir as seguintes obras: O Estrangeiro, de Albert Camus, Crime e Castigo e

Irmos Karamazov, ambos de Dostoevski, Santurio, de Willian Falkner, o Processo

Maurizius, de Jakob Wassermann entre outros. De outro lado, a seu ver, uma lista

de procedural narratives modificadas, ou seja, que contm variaes imperfeitas

em cima de uma norma estrutural poderia incluir A Queda, de Albert Camus; Lord

Gin, de Joseph Conrad; O Livro de Daniel, de Doctorow; Passagem para a ndia, de

Kafka; entre outros.

Weisberg toma como exemplo o personagem de Camus em A Queda: Matre

Jean-Baptiste Clamance que afirma: La verit est assommante, ou seja, a verdade

maante. Por isso, adverte Weisberg que preciso pacincia para identificar o

efeito estrutural da racionalidade jurdica numa narrativa de procedimento

(procedural narratives). preciso que o leitor fixe sua ateno para os detalhes,

muitas vezes desprezando as declaraes grandiosas ou os grandes dramas

humanos, tal como ocorre com o jurado no curso de um processo complicado.

26

Para Weisberg, a forma narrativa do interrogatrio no produz o drama nem

mesmo desgua em alguma soluo, ela produz, sobretudo, a narrao geralmente

em grande quantidade, diferentemente do que acontece na cena de um tribunal do

teatro ou da cultura popular. Nesse sentido, o leitor no somente colocado de

forma simblica na posio de jurado que avalia a prova em funo da significao

textual, mas, ainda, no caso das narrativas de procedimento, o leitor

explicitamente convidado a desempenhar este papel e sua resposta s informaes

que lhe so apresentadas a preocupao ou a indiferena com o detalhe do texto

coloca prova a prpria teoria que a estrutura distende singularmente.

Para Weisberg, sob esse prisma, muitos leitores fracassaram no seu papel de

jurados: incapazes ou pouco inclinados a resistir seduo de uma linguagem hbil,

tais leitores facilmente aceitam inteiramente a perspectiva do advogado ou da figura

do advogado eloqente. Num processo de recepo que caracteriza uma tendncia

dos leitores de romance a aceitar praticamente tudo o que um heri eloqente diz e

pe prova de forma cativante num romance de procedimento.

Assim, acentua Weisberg que preciso muita ateno e mesmo muita

vontade para retardar o progresso natural da fico seguindo o princpio aristotlico

com vista a assegurar a pertinncia das interpretaes diversas do evento narrativo

passado, o que justifica o fato de que poucos so os capazes de se lembrar e

principalmente de saborear as sesses de procedimento de romances longos como

Os Irmos Karamazov, ainda que essas sesses ocupem o lugar central e sejam

apesar de extensas, incontornveis. Weisberg acentua que esse um aspecto

presente at mesmo em romances mais curtos como O Estrangeiro que, seguindo a

estrutura legalista de Dostoevski, apresentam uma tessitura que raramente chama a

ateno do leitor.

Salienta ainda Weisberg que somente recentemente, atravs da obra Billy

Budd Sailor, que o interrogatrio aparece com a preciso de argumentos jurdicos

avanados atravs do eloqente Capito Ver, na sua sede de condenar o anjo de

Deus. Para Weisberg, essas trs obras: Os Irmos Karamazov, O Estrangeiro e

Billy Budd Sailor, e outras narrativas de procedimento (procedural narratives) de

idntico gnero criam uma estrutura didica ou tripartite em vista de contar a ao

27

no centro da histria. Nesse tipo de estrutura a ao freqentemente um crime,

como no caso da obra Crime e Castigo, de Dostoevski ou, ainda, na obra Santurio,

de Faulkner. Mas ela tambm pode ser um evento no criminal como no caso do

presente presumido na obra Spotted Horses de Faulkner, que um autor que

Weisberg equipara a um verdadeiro Charles Dickens ou M. Twain do sculo XX,

pela sua predileo pelas transaes jurdicas cotidianas.

Como esclarece Weisberg, a primeira parte da estrutura da narrao o

evento ele mesmo, seguido de uma espcie de interrogatrio preliminar, conduzido

por um advogado ou pela figura do advogado que chega a uma nova verso

narrativa do evento. Depois, ocorre habitualmente, mesmo que isso no seja uma

exigncia estrutural, um processo que produz ainda uma interpretao narrativa do

evento seguida de uma sano institucional de todos os conflitos jurdicos.

Observando essa estrutura Weisberg percebe que a descrio de um verdadeiro

processo no necessria, surpreendentemente. Para tanto, lembra que em Crime

e Castigo, por exemplo, o eplogo oferece breves pargrafos sobre o processo, ao

passo que o interrogatrio se estende por trs captulos completos e se torna

indispensvel estrutura do romance, o que ocorre em outras obras do gnero.

Assim as chamadas procedural narratives, diferentemente da cena de tribunal no

teatro, apresentam interesse maior na produo de relatos sucessivos dos eventos

passados verificveis e no tanto na resoluo dos conflitos. Trata-se de uma

estrutura que repousa muito mais na indagao quem disse o que, onde o projetor

esclarece o intrprete o advogado e suas tcnicas narrativas tanto ou mais que

as partes em causa no litgio. Desse modo, o advogado se apresenta pronto a

deslocar a narrao do problema em todo o lugar, desde o frum que constitui a sala

de audincia antes do processo, at lugares menos convencionais como uma

taberna, uma olaria ou mesmo um cabar, como o caso de Porfrio Petrovitch em

Crime e Castigo.

Segundo Weisberg, os romancistas modernos descrevem a tnue distncia

que separa a interpretao, fazendo autoridade da primeira descrio do evento na

narrativa. A essa primeira descrio do evento, que a primeira parte da estrutura

da narrativa de procedimento, Weisberg denomina situao anterior e esclarece

que o acesso situao anterior a cada momento da narrativa de procedimento

28

distingue formalmente o fenmeno literrio de um interrogatrio real sobre um

evento passado e exemplifica: seis pessoas so testemunhas de um acidente de

carro, dez minutos mais tarde, temos seis verses diferentes do acontecimento. O

que realmente se passou? Num romance por mais tortuosos que sejam os caminhos

para contar o evento, o que realmente se passou est disposio do leitor se ele

volta simplesmente folhando as pginas do livro situao anterior.

A narrativa de procedimento, assim, postula a existncia de uma realidade

anterior identificvel com aquela a qual o interrogatrio jurdico e o seu resultado

devem ser confrontados sob a forma de um teste. A situao anterior, a qual

seguidamente no falta ambigidade, tem um local privilegiado na estrutura e chega

ao leitor ou pelo menos pretende faz-lo com status de verdade.

Da, se o advogado que aparece na segunda parte da narrativa de

procedimento (como no caso de O Estrangeiro, em que o advogado demonstra que

Meursault no queria ver o corpo de sua me no momento de seu velrio), ns e

vrios leitores temos a capacidade de encontrar na primeira parte da narrativa, ou

seja, na situao anterior, informaes narrativas que provam exatamente o

contrrio. Weisberg salienta que um controle parecido permite verificar quantos

rubros que Mitia Karamazov havia pretensamente pago a Mokro, no romance

Irmos Karamazov.

Nessa senda, sustenta Weisberg que preciso pacincia e mesmo

sobriedade com vista a retardar nossa progresso ao seio da narrativa e, com efeito,

ns fomos convidados pelo escritor a prestar ateno aos detalhes que ele,

cuidadosamente, coloca no corao da intriga. Se esse cuidado e essa ateno so

observados pelo leitor, ele ento percebe, de forma inevitvel, que o advogado ou a

figura do advogado, que conduz o interrogatrio a despeito ou por causa da sua

facilidade verbal, perde quase totalmente de vista a situao anterior. E aqui,

Weisberg avana em relao a uma nova categoria. Ele afirma que as deformaes,

no incio, pequenas, e, depois, catastrficas, se imiscuem na anlise do advogado,

sempre expressada com arte, geralmente sob a forma de enunciados narrativos

prolixos que se transformam em metforas da prpria empreitada do escritor. O erro

no inevitvel. Porm, adverte Weisberg, que no romance moderno, quanto mais a

29

interpretao do evento dissimulada e bem expressa, a probabilidade de erro

maior.

Para Weisberg, desde Hamlet, a literatura tem conscincia do perigo que

representa uma linguagem eloqente empregada como substituto da fora interior

necessria para enfrentar a realidade tal como ela . As palavras tendem a

deformar muito mais que a refletir a intuio bem exercida, se que ela existe, do

ser que se exprime bem. Todavia, numa procedural narrative, os leitores so

chamados a colocarem sua inclinao arraigada em questo, tornando-se cticos

diante da palavra. Os leitores, se comportando como jurados, devem abandonar a f

colocada no advogado eloqente. Percebendo os efeitos de uma inteligncia

perversa os leitores vm, justamente, a acentuar a veracidade da situao anterior.

Ao menos, o interesse do locutor pelas palavras nelas mesmas, se encontra, dado o

contexto jurdico, iluminado de uma forma bizarra. Se um intrprete

psicologicamente instvel descrito deformando os eventos ou os textos passados,

a situao anterior vista como tanto mais importante. A intuio do leitor, pela qual,

malgrado seu gosto pelo verbo, percebe a primazia da situao anterior. Fazendo

referncia a Hamlet ( minha alma potica!) Weisberg afirma que ns acabamos

por rejeitar a pressa fatal de Hamlet, refugando, de incio, toda a anterioridade e, em

seguida, se colocando em direo s interpretaes mais satisfatrias sob o plano

esttico e, no entanto, menos aptas a dar conta da realidade.

Sustenta Weisberg que os leitores que so capazes de acabar, bem mais do

que colocar em dvida, tais textos, sero finalmente inclinados a respeitar e a crer

na interpretao verbalmente virtuosa da realidade feita pela figura do advogado.

Isso porque acabamos por admirar o advogado que compartilha nosso interesse

excepcional pela linguagem. Da, afirma Weisberg, a estrutura tripartite da narrativa

de procedimento pode, num primeiro momento, dar ao desvio do intrprete a

impresso de ser ridculo ou mesmo adorvel. Tudo, at mesmo o erro histrico,

jurdico ou textual mais divertido do que a reconstruo da realidade logo que ela

deslocar nosso gosto pelas palavras ( a realidade maante!).

Weisberg salienta que esse tipo de narrativa (procedural narratives)

geralmente tem um fim triste, no no sentido banal de um amor ou mesmo de uma

30

vida perdidos. Na verdade, ocorrem outras negaes estruturais srias: a avaliao

institucional comumente admitida e, no entanto errnea, de uma pessoa ou de um

acontecimento e a desordem do equilbrio esttico do romance bem no momento de

sua concluso.

Weisberg esclarece, no que diz respeito primeira negao, ou seja,

questo da avaliao institucional comumente admitida e no entanto errada de uma

pessoa ou evento, que o romancista que se interessa pelo direito e se apaixona

pelos seus detalhes, deve supor no seu pblico um interesse particular pelo

procedimento judicial e seu resultado. O direito pode ser objeto de stira por muitas

razes, tais como a avareza, a crueldade, a injustia e os tiques nervosos daqueles

que o praticam, mas a concluso errnea de um procedimento judicial bastante

detalhado, faz do autor, tanto quanto do leitor, objetos de stira: as palavras

instrumentalizadas por um locutor despreocupado de toda a realidade coercitiva, tem

um efeito devastador para a cultura, a menos que o locutor ou o pblico no

cheguem a reconhecer no somente a tenso extrema entre uma interpretao

delirante e a matria textual anterior, mas tambm o imenso fardo que pesa sobre o

intrprete que deve validar uma metodologia puramente subjetiva.

J no tocante segunda negao estrutural referida (a desordem do equilbrio

esttico do romance no exato momento da sua concluso) Weisberg diz que ela se

orienta em direo a uma reavaliao terica tanto quanto temtica num Movemento

que vai desde a primeira reformulao dos fatos at aquela verso que tida como

verdadeira. Essa reavaliao nos exorta a ver alm da falsificao lingstica

produzida pelos advogados considerados como brilhantes e criativos e a considerar

a concluso que se segue ao processo do prprio romance. Esta tambm evoluiu

desde a situao anterior, acrescendo, sempre, a acentuao sobre uma srie de

snteses prolixas que enganam o leitor, alimentando sua vaidade. Quando a

narrativa de procedimento se acaba, o seu criador, com uma suspeita de

perversidade, nos incita a negar a primazia da situao anterior menos eloqente,

uma primazia que o autor (ironicamente) afirmou.

Prossegue Weisberg concluindo que o fim de uma procedural narrative que

segue em regra geral a concluso de um processo legal, mostra seguidamente um

31

protagonista at aqui orador loquaz e no-jurista que se perde pela primeira vez no

seu prolixismo.

O leitor logocntrico toma, freqentemente, este desenvolvimento como um

progresso e restabelece ento, falaciosamente, a primazia da palavra, no entanto,

negada pelo resto do texto. Por exemplo, vrios leitores presumem que Mersault

amadureceu de uma maneira ou de outra no fim da narrativa, porque nesse

momento ele se torna, enfim, expressivo. Que esse retorno brutal, tenha, na

verdade, um sentido negativo, percebe-se pela associao das confisses

demasiadamente puras diante do evento da morte. Mersault no se torna eloqente

seno momentos antes da execuo de sua pena de morte. O mesmo prolixismo

percebido no personagem de Ariocha Karamazov diante do tmulo do inocente

Ilioucha.

Essa alterao da fala do protagonista, na parte final dos romances de

procedimento, que muitas vezes migra de uma linguagem livre de qualquer

formalismo verbal para uma eloqncia prolixa, uma indicao sutil que, aliada ao

fato de que o fim do romance ao menos to importante quanto seu princpio, leva

os leitores, muitas vezes, a verem essa eloqncia ampliada como um bem.

Para Weisberg, essas deformaes subjetivas executadas pela linguagem

levam, conseqentemente, ao erro judicirio e mentira romanesca. Assim, a

estrutura do romance de procedimento (procedural narrative) inverte, de forma

discreta, sua admirao manifesta pelo verbo. O texto tomado no seu contexto nos

aconselha a evitar qualquer dependncia, gratificante para o leitor, da linguagem em

si mesma, sobretudo quando se trata de assumir o encargo extremamente

importante e vital da interpretao das realidades passadas e exteriores a ns

mesmos.

Nessa senda, prossegue Weisberg advertindo que ns somente podemos

evitar a transgresso metafrica, dando uma escrupulosa ateno em relao a

esses romances que consistem em narrativas de procedimento pois, neles, quando

o leitor aborda o texto, deve estar pronto a imergir no corao das suas significaes

32

intuitivamente simples e prescritas pela prpria estrutura e no as sacrificar num

altar de um filocentrismo legalista.

Postas estas questes, Weisberg encerra seu artigo Le droit dans et comme

litterature: la signification auto-gnre dans Le Roman de procdure advertindo

que a tarefa da verificao das realidades anteriores difcil na vida, na arte e,

talvez, sobretudo, na crtica literria em si mesmo. Entretanto, talvez seja importante,

no plano terico, valorizar e fazer novamente dessa verificao das realidades

anteriores um encargo desejvel. Essa reavaliao poder ser talvez, na viso de

Weisberg, um dia reconhecida como a mais essencial contribuio do direito aos

estudos literrios.

Como se v, Weisberg um dos mais importantes autores que integram o

Movemento direito e literatura nos Estados Unidos e sua contribuio abre um canal

que permite tanto a compreenso do direito atravs da literatura como a

compreenso da prpria crtica literria atravs do direito. Sua obra aponta uma

preocupao com os limites da interpretao e, portanto, com a prpria questo da

objetividade do texto, vindo de encontro, desse modo, com as teorias que admitem a

incerteza das normas e o arbtrio do intrprete.

Nesse sentido, esclarecem Trindade e Gubert31 que para Weisberg a literatura

consiste em uma excelente fonte de conhecimento do direito na medida em que

aborda dimenses do fenmeno jurdico que normalmente no so tratadas pelos

mtodos tradicionais. Atravs da literatura, Weisberg demonstra que possvel

entender como os juristas se comunicam (a construo do discurso jurdico), como

os juristas se relacionam com os outros, como os juristas estruturam suas

argumentaes e, ainda, como os juristas se sentem. Atravs desses elementos a

literatura possibilita a compreenso de problemticas tico-jurdicas e se apresenta

como um campo propcio para afirmao de uma tica jurdica calcada nos ideais de

igualdade e liberdade. Assim, a contribuio de Weisberg est associada a uma

preocupao tica que se identifica com a defesa da tese de que o jurista tem que

31 TRINDADE, Andr Karam; GUBERT, Roberta Magalhes, COPETTI NETO (Org.). Direito e

literatura: reflexes tericas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 35

33

optar por uma linguagem proba e honesta ou por uma linguagem que distorce a

realidade e manipula os textos legais em busca de benefcio pessoal.

Essa preocupao fica evidente quando Weisberg demonstra as distores

que ocorrem a respeito do evento que inaugura a procedural narrative atravs do

discurso empolado dos advogados que povoam o romance do sculo XIX.

Weisberg , portanto, uma referncia fundamental, sobretudo, quando se

busca na transdisciplinaridade direito e literatura, a construo de um direito que se

fundamente em princpio tico que repele a dissimulao deliberada da linguagem

na construo do discurso jurdico.

2.2.3.2 Richard Posner a Integridade Esttica da Literatura

Richard Posner , igualmente, um nome essencial na configurao Law and

Literature Movement. Considera que os modelos utilizados pela crtica literria no

so aplicveis ao campo do direito, embora reconhea que a interdisciplinaridade

entre o direito e literatura enriquece ambas as reas. Sua posio a de que essa

interdisciplinaridade32 tem significao pedaggica j que o conhecimento de

determinadas obras literrias obviamente importante para a formao do jurista.

Por essa razo Posner dedicou-se a promover estudos interdisciplinares entre o

direito e a literatura e tambm da problemtica da lei e do conceito de justia. Como

esclarece Chueiri, para Posner a literatura no serve tanto a dogmtica jurdica

quanto teoria do direito, pois h obras literrias que poderiam, facilmente, substituir

extensos trabalhos tericos no campo do direito, como, por exemplo, a de

Shakespeare, Dostoevski, Kafka e Camus, entre outros. Segundo Chueiri, Posner

reconhece a importncia da literatura para a teoria do direito e ressalta a existncia

de obras literrias que poderiam substituir trabalhos tericos nesta rea. Todavia,

em postura contrria s correntes desconstrutivistas (Derrida) e da hermenutica

32 A nosso ver, trata-se de transdiciplinaridade pois o debate no se esgota entre disciplinas

34

crtica, Posner assume uma postura ctica resultante de uma concepo pragmtica

do direito que est associada ao liberalismo econmico.33

Na verdade, Posner tem um importante trabalho de crtica ao prprio Law

and Literature Movement na medida em que se esfora em demonstrar a

inaplicabilidade dos mtodos de anlise legal aos textos literrios e, bem assim os

mtodos de hermenutica literria aos textos legais, preservando, no entanto, a

importncia do intercmbio entre o direito e a literatura, na medida em que se dedica

ao constante exame da forma como a literatura trata das questes jurdicas e,

igualmente, dos reflexos que isso tem na construo jurisprudencial.

Sua abordagem bastante complexa, o que se revela pelo prprio ttulo de

sua principal obra, qual seja Law and Literature34, editada em 1988. O primeiro

captulo intitulado Literary texts as legal text, ou seja, textos literrios como textos

legais. Nele, Posner inicia sua reflexo sobre direito e literatura abordando a obra de

M. Twain, bem como a de Camus e Stendhal e prossegue examinando a questo da

vingana como um prottipo legal e como um gnero literrio examinando a Ilada

de Homer e Hamlet de Shakespeare. Alm disso, aborda as antinomias da teoria

legal partindo da obra de Sfocles bem como questiona os limites da jurisprudncia

literria, abordando a obra de Kafka, Dickens e Wallace Stevens. Prossegue

examinando a questo do direito como ressentimento bem como os valores do

romantismo na literatura e no direito, passando pela obra Billy Bud Sailor e Irmos

Karamazov que como anteriormente j visto, tambm so examinadas por Weisberg.

Posner examina, ainda, neste primeiro captulo, as perspectivas legais presentes na

obra de Kafka, que divide em uma perspectiva liberal e outra de cunho socialista.

O segundo captulo da obra tem o ttulo inverso ao primeiro, ou seja, Legal

text as literary texts (textos legais como textos literrios). Aqui Posner aborda as

teorias de interpretao dos contratos, leis e constituies e enfrenta a questo de o

que pode o direito contribuir para o ensino da crtica literria e, bem assim, analisa

as opinies judiciais sobre os textos literrios.

33 POSNER, Richard A. Law and literature. Revised and enlarged edition. Cambridge, Massachusetts:

Harvard University Press, 1998. p. 235. 34 Ibid., p. 422.

35

No terceiro captulo, The literary turn in legal scholarship, (a virada literria

no conhecimento jurdico), Posner enfrenta a questo da necessidade de educao

literria para os advogados, bem como a questo da aproximao da verdade e da

mentira na narrativa jurdica, examinando o Movemento da narratologia jurdica, bem

como a biografia judicial americana.

A obra se encerra com o exame da regulao da literatura pelo direito que

perpassa a proteo dos direitos autorais e da criatividade e seus aspectos legais.

Aqui, Posner examina o conceito de autor, a questo da difamao pela fico, a

questo dos direitos editoriais e a questo da pardia em contraposio ao plgio.

Portanto, a obra de Posner atinge uma gama complexa de questes atinentes

transdisciplinaridade direito e literatura o que, por si s, confirma sua importncia

no Law and Literature Movement. De fato, o percurso traado por Posner permite

que ele afirme a existncia das limitaes do Movemento direito e literatura sem, no

entanto, deixar de expor os aspectos que considera positivos nesse Movemento e

que so, sob a sua tica, identificados com a possibilidade de uma melhor formao

dos juristas atravs do conhecimento das obras literrias que contemplam em seu

bojo questes jurdicas. De certa forma, Posner, ainda que receba de alguns a

pecha de conservador 35, tem o mrito de sustentar que o criticismo s tem sentido

quando baseado no conhecimento da lei e, ainda, de defender a

interdisciplinaridade entre direito e literatura como um potente instrumento

pedaggico na formao dos juristas (A nosso ver, como dito, a questo de cunho

transdiciplinar). Sua preocupao em impor limites influncia da literatura no direito

decorre da tese que sustenta no sentido de que a literatura no tem a preocupao

realstica que impositiva para os juristas. Isso no significa, no entanto, que Posner

deixe de afirmar a importncia da literatura para o direito sob o enfoque

representacional do humano, ou seja, de que os textos literrios espelham a

condio humana e, por isso, so fundamentais formao do jurista. Posner

entende que o uso da metfora na linguagem legal no se equipara metfora

35 Veja-se, nesse sentido, CHUEIRI, Vera Karam. Direito e literatura. In: BARRETTO, Vicente de

Paulo (Org.). Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 234.

36

literria. Como bem esclarecem Trindade e Gubert36, baseados nos ensinamentos de

Mari37 e Talavera38:

[...], Posner sustenta que a posio de subordinao do intrprete em relao ao texto deve ser entendida como uma condio de legitimidade da interpretao jurdica, de maneira que no possvel aplicar os modelos utilizados pela crtica literria ao campo do direito. Mais do que isso: Posner chama a ateno para o fato de que um determinado discurso jurdico pode implicar conseqncias dramticas, haja vista a especificidade das condies e funes sociais a que tem de observar, alertando, desse modo, para a inadequao dos mtodos interpretativos da teoria literria. Observa-se, assim, que Posner coloca uma verdadeira barreira contra qualquer dimenso hermenutica relativa ao estudo das disciplinas jurdica e literria, embora isso no o impea de reconhecer que a interdisciplinaridade tanto o conhecimento literrio por parte dos juristas como tambm o conhecimento jurdico por parte dos literrios mostra-se extremamente enriquecedora para ambos os campos do saber. Dito de outro modo, entre as conexes do direito com a literatura, Posner considera significativas somente aquelas de ordem pedaggica, isto , de natureza formativa. Entretanto, para o autor, isso no pode encobrir o perigo decorrente do amadorismo que est presente em toda atividade interdisciplinar: o jurista que escreve sobre literatura pode cativar outros advogados da mesma maneira que o romancista que escreve sobre direito pode encantar outros literatos. Isso ocorre, todavia, apenas porque os deslumbrados no so especialistas em uma matria que lhe alheia e, conseqentemente, no esto em condies de avaliar a qualidade daquilo que lhes apresentado.

Portanto, Posner embora reconhea a importncia da aproximao entre o

direito e literatura para a formao dos juristas ctico no que diz respeito

utilizao de mtodos literrios para a compreenso do direito.

A explicao para esta postura est justamente no fato de que Posner

declara, expressamente, como faz no artigo Law and Literature a relation

reargued (Direito e literatura a relao rediscutida), para ele o direito e

humanidades so coisas distintas, pois, a seu ver, o direito uma tcnica de

governo, tcnica esta que pode ser aprimorada pelo contato com a literatura, mas

que com ela no se confunde.39

36 TRINDADE, Andr Karam; GUBERT, Roberta Magalhes, COPETTI NETO (Org.). Direito e

literatura: reflexes tericas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 39-40. 37 MARI, Enrique. Derecho y literature. Algo de lo que si se puede hablar pero en voz baja. Doxa:

Cuadernos de filosofia del derecho, Alicante, n. 21, p. 285,1998. 38 TALAVERA, Pedro. Derecho y literatura. Granada: Comares, 2006. p. 35. 39 POSNER, Richard A. Law and literature: a relation reargued. In LEDWON, Lenora. Law and

literature: text and theory. New York: Garland Publishing, 1996. p. 85.

37

2.2.3.3 James Boyd White o Direito como Retrica

James Boyd White , igualmente, um dos principais nomes do Law and

Literature Movement e um de seus precursores. Sua vasta obra literria se inclina

em uma direo oposta a de Richard Posner na medida em que defende a

criatividade na leitura dos textos jurdicos e a interatividade entre o texto e seu leitor,

o que aproxima, assim, o mecanismo da leitura do texto jurdico ao mecanismo da

leitura do texto literrio. White trabalha conceitos ligados retrica, persuaso e

comunidade e afirma que o direito linguagem. Ao contrrio de Posner, para White,

o direito uma atividade essencialmente literria, retrica e tica, o que busca

comprovar estabelecendo pontes entre a jurisprudncia, a literatura, a filosofia, a

histria e a cincia poltica. Em sua obra Heracles Bow Essays on the Rethoric

and Poetics of the Law 40, White aborda a questo da retrica, identificada como a

arte da persuaso e suas implicaes na vida em comunidade.

No primeiro captulo White trata dos conceitos de persuaso e comunidade na

tragdia Filoctetes de Sfocles. A tragdia narra um dos episdios da guerra de

Tria na qual Odisseu, a fim de vencer os troianos, desembarca na ilha de Lemnos,

acompanhado de Neoptlemo (o filho de Aquiles) e ordena que este subtraia das

mos de Filoctetes (guerreiro dos tridas) as armas de Hrcules (Hracles) que a

ele haviam sido confiadas. Filoctetes j um ancio que fora abandonado pelo

prprio Odisseu por haver sido contaminado com uma ferida incurvel decorrente da

picada de uma serpente guardi do Santurio da Ninfa Crises. Por tal razo, vive

rancorosamente na ilha remoendo suas dores fsicas e a solido que lhe fora

imposta. Num primeiro momento Neoptlemo nega-se a cumprir as ordens de

Odisseu, mas acaba cedendo consumido pelo seu prprio desejo de glria, ou seja,

pela sua vaidade. Assim, Neoptlemo se aproxima de Filoctetes valendo-se da

amizade que este ltimo nutria por seu pai Aquiles e, com base num discurso

recheado de mentiras, acaba conseguindo roubar as armas de Hracles e parte com

Odisseu. No entanto, Neoptlemo arrepende-se e acaba retornando ilha para

devolver as armas a Filoctetes.

40 WHITE, James Boyd. Heracles bow: essays on the rhetoric and poetics of the law. 10. ed. Madison:

Wisconsin, 1995. 251 p.

38

A tragdia de Sfocles acentua a astcia e pragmatismo de Odisseu em

contraposio honra e nobreza de Neoptlemo colocando, entre eles, no centro do

conflito, o personagem principal, que Filoctetes. O primeiro episdio da tragdia

regido pela mentira. Neoptlemo persuadido por Odisseu a subtrair as armas que

esto em poder de Filoctetes. Neoptlemo, por sua vez, utilizando-se de um

discurso marcado pela mentira convence Filoctetes a entregar-lhe as armas de

Hracles. Todavia, arrepende-se, a partir do momento em que ele mesmo

compreende o que a deciso de tomar as armas por meio de uma retrica

dissimulada representa em termos prticos e ticos. E por essa razo, a partir de um

conflito interno de Neoptlemo, este decide retornar ilha ainda que sob a violenta

objeo de Odisseu e resolve fazer o que deveria ter feito desde o incio, ou seja,

persuadir Filoctetes a seguir viagem junto com ele e Odisseu voluntariamente,

convencendo-o de que isso seria o melhor para ele e para todos. Mas, Filoctetes

permanece obstinado e insiste que Neoptlemo cumpra sua promessa de lev-lo

para casa. Neoptlemo est a ponto de cumprir sua promessa quando Heracles,

miraculosamente, aparece e assevera Filoctetes que ele deve realmente ir Tria,

onde ele ser curado e obter grande glria. Ento Filoctetes obedece e a pea

termina com a sua despedida da ilha. Sfocles agrega retrica de Neoptlemo

uma sada comum na tragdia grega, qual seja, a interveno de um deus ex

machina, no caso, a figura de Hercles que acaba sendo decisiva no

convencimento de Filoctetes.

White se utiliza da tragdia de Sfocles para explorar o papel da retrica,

enquanto arte da persuaso, na construo do consenso que se d atravs da

argumentao. Questiona, assim, o papel da retrica na construo de um direito

comprometido com os princpios de igualdade e democracia, indagando quais os

tipos de discurso pelos quais aqueles que praticam o direito, em especial, os

advogados, devem optar. A retrica como arte da persuaso diretamente

relacionada questo comunitria chegando White a afirmar que o direito e a

retrica so as artes da vida cultural e comunitria.

A obra de James Boyd White bastante extensa e reconhecida como um

verdadeiro marco na configurao do Movemento direito e literatura. The Legal

39

Imagination41, publicada em 1973 considerada como a primeira obra especfica

que reflete o Law and Literature Movement. Nela White apresenta a figura do

advogado como escritor, afirmando que o direito uma arte, o caminho para se

fazer algo novo alm dos dados j existentes: a arte de falar e de escrever.

Em When Worlds lose their meaning Constitutions and Reconstitutions of

Language, Character, and Community42, White se vale da Ilada de Homero, da

narrativa de Tulcdides (460-455 a.C histria da Guerra de Peloponeso), do

Gorgias de Plato e de obras da literatura americana (Jane Austens Emma) entre

outros, atravs das quais examina a conexo entre o pensamento individual e sua

linguagem e cultura, bem como a comunidade textual (textual community)

estabelecida entre o escritor e seu pblico leitor.

White afirma que o direito uma arte essencialmente literria e retrica

na sua natureza, uma forma de estabelecer sentidos que constitui a comunidade

atravs da linguagem.43

Da mesma forma, em Acts of Hope Creating Authority in literature, Law,

and politics44, White se dedica a examinar a problemtica que se estabelece quando

o poder se torna objeto de consenso atravs do argumento, examinando a questo

da autoridade da lei e da filosofia no Crtilo, de Plato, a criao do mundo pblico

atravs de Ricardo II, de Shakespeare, e a poesia de Emily Dickinson, na tentativa

de responder a questes como qual a natureza da autoridade e de que forma essa

autoridade pode ser garantida.

White sustenta a tese de que o direito cultura, ou, mais precisamente, uma

cultura da argumentao (uma arte retrica) pela qual ocorre ao mesmo tempo a

preservao e a transformao dos textos e princpios jurdicos no seio de uma

determinada comunidade. Atravs da argumentao, o direito se reescreve

41 WHITE, James Boyd. The legal imagination. 6. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1997.

302 p. 42 WHITE, James Boyd. When words lose their meaning: constitutions and reconstitutions of language,

character, and community. 10. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2007. 377 p. 43 WHITE, op. cit., p. 117 44 WHITE, James Boyd. Acts of hope: creating authority in literature, law, and politics. 15. ed. Chicago

and London: The university of Chicago Press, 2003.

40

constantemente por meio de uma atividade que criativa e que resulta de uma

espcie de linguagem hereditria que se sedimenta e adquire autoridade em uma

determinada comunidade. Outro aspecto importante da contribuio de White a

tese por ele mais recentemente defendida no sentido de que o direito traduo.

Como esclarecem Trindade e Gubert45, no incio dos anos 90 White volta-se para a

relao entre o direito e linguagem, assim como para o tema da traduo

considerada um processo de inventio -, e sustenta que o direito, como um ato

lingstico, ao no mundo, utilizando-se para tanto das teses de Wittgenstein.

Portanto, inegavelmente, a contribuio de James Boyd White fundamental

na transdisciplinaridade direito e literatura e, sobretudo, para uma postura crtica

que indaga os limites ticos da retrica e da argumentao jurdica.46

2.3 OS DESDOBRAMENTOS DO MOVEMENTO NORTE-AMERICANO

As contribuies de Cardozo, Wigmore, Weisberg, Posner e White tornaram

vivel o amadurecimento do Law and Literature Movement, possibilitando novas

abordagens que revelaram a fertilidade do terreno permeado pela aproximao do

jurdico ao literrio e vice-versa. Dentre elas, a hiptese desenvolvida por Ronald

Dworkin, que valoriza a atividade do intrprete, h que ser especialmente visitada.

A