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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DISCIPLINA: MONOGRAFIA FINAL ORIENTADOR: PROF. DR. MARCO AURÉLIO OLIVEIRA DA SILVA DISCENTE: LAECIO DA COSTA ALVES A questão da liberdade em Tomás de Aquino Salvador 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DISCIPLINA: MONOGRAFIA FINAL

ORIENTADOR: PROF. DR. MARCO AURÉLIO OLIVEIRA DA SILVA

DISCENTE: LAECIO DA COSTA ALVES

A questão da liberdade em Tomás de Aquino

Salvador

2014

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LAECIO DA COSTA ALVES

A questão da liberdade em Tomás de Aquino

Monografia apresentada ao curso de

Graduação em Filosofia, da

Universidade Federal da Bahia, como

parte dos requisitos necessários à

obtenção do grau de licenciado em

Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio

Oliveira da Silva.

Salvador

2014

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Aos meus pais,

Raimundo Nonato e Maria Lucia.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, à minha mãe, Maria Lucia, ao meu pai Raimundo Nonato.

Seus incentivos sempre foram fundamentais e inspiradores. Ao meu irmão Cleirton e ao

meu tio José de Arimatéia e a todos os familiares que contribuíram para a conclusão

deste ciclo. Ao meu grande amigo Eduardo por sempre ter me motivado e animado. E

agradeço especialmente ao professor Marco Aurélio pela cordialidade e

profissionalismo com que pautou sua orientação e cujo resultado foi o presente trabalho.

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RESUMO

Nesta monografia procurou-se investigar a clássica questão da liberdade,

especificamente na obra do filósofo medieval Tomás de Aquino. Para tanto se fez mister

compreender o contexto teórico em que a noção de livre-arbítrio, base para a

caracterização da liberdade, se localiza e atua. O livre-arbítrio é uma potência da alma

específica dentre tais potências. Mais particularmente o livre-arbítrio é uma potência

específica da vontade. Desse modo, ao relacionar livre-arbítrio e vontade em todo esse

contexto, foi de fundamental importância investigar certos elementos da potência

intelectiva como sendo aquela que salvaguarda a liberdade pelo fato mesmo de ser

originadora de atos judicativos, e mediante estes, coordenadora de ações. Ademais,

examinou-se a problemática do fim-ultimo da vontade de modo a discutir em que

medida há liberdade no arcabouço das potências da alma, para por fim traçar algumas

considerações sobre a natureza classificatória da teoria da ação tomista.

Palavras-chave: Filosofia medieval, Tomás de Aquino, Liberdade, Livre-arbítrio, Ética,

Teoria da ação.

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ABSTRACT

This monograph sought to investigate the classic question of freedom, specifically the

work of the medieval philosopher Thomas Aquinas. For both became important

understand the theoretical context in which the notion of free will, the basis for the

characterization of freedom, is located and operates. Free will is a power of the soul

among such specific powers. More particularly free will is a specific power of will.

Thus, to relate free will and desire in this whole situation, was of fundamental

importance to investigate some aspects of intellectual power as being that which

safeguards freedom by the very fact of being the originator of judicatives acts, and

through these, coordinator of actions. Furthermore, we examined the problem of last

weekend's will in order to discuss the extent to which there is freedom in the framework

of the powers of the soul, to finally draw some considerations about the classificatory

nature of Thomistic theory action.

Keywords: Medieval philosophy, Thomas Aquinas, Freedom, Free Will, Ethics, Action

theory.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

1º CAPÍTULO

AS POTÊNCIAS DA ALMA E O LIVRE-ARBÍTRIO 3

1.1. O livre-arbítrio como potência específica da vontade 3

1.2. A Vontade e o fim-último 7

1.3. Meio e fim na vontade e a sensibilidade 11

1.4. O livre-arbítrio 13

2º CAPÍTULO.

INTELECTO E VONTADE 21

2.1. Como a vontade não é uma potência superior ao intelecto 21

2.2. A vontade como motor do intelecto 25

2.3. O intelectualismo tomista 28

2.4. Vontade e necessidade 30

2.5. Sto. Tomás: determinismo, libertarismo ou compatibilismo? 32

CONCLUSÃO 35

BIBLIOGRAFIA 37

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1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho possui como tema central a problemática da liberdade no

pensamento de Tomás de Aquino.

A princípio são expostas considerações sobre a questão das potências da alma e

sua relação com o princípio do livre-arbítrio de modo que é apresentado grosso modo o

que é o livre-arbítrio e como tal é entendido por Sto. Tomás como uma potência da alma

relacionada com a vontade.

A vontade possui uma abordagem que o Aquinate expõe de maneira que gera

uma complicada interpretação no que tange a noção finalista da potência volitiva. Para o

pensador medieval a vontade deseja algo, - pelo menos um elemento -, como necessário.

Isto é, cabe a vontade perseguir necessariamente o que Sto. Tomás denomina bem-

aventurança, isto é, a felicidade. Tal constatação tornou-se ponto de polêmica por partes

de intérpretes como Stump, estudiosa a qual se refere este trabalho e com a qual o

presente trabalho compartilha a solução considerada mais adequada.

São apresentadas noções de meio e fim e a relação que há entre a irascibilidade e

concupiscibilidade de modo tal que são entendidas não meramente como paixões, isto é,

inclinações abruptas que surgem aleatoriamente, mas como potências constitutivas da

existencialidade humana como potências do próprio homem e de que modo tais

potências se relacionam com o livre-arbítrio.

Por fim o primeiro capítulo expõe de maneira geral o que vem a ser o livre

arbítrio a partir da noção de potências da alma tendo como base dois textos no qual o

Angélico aborda a temática, isto é, tanto na Suma Teológica quanto na obra De Malo.

Num segundo momento enfatiza-se a relação entre vontade e intelecto a fim de

explicitar melhor o papel que a potência intelectiva possui na manutenção do livre-

arbítrio enquanto esta última é entendida em sua relação com a volição.

Desse modo, procura-se investigar o por que de Sto. Tomás afirmar a

superioridade do intelecto sobre a vontade, o que será importante para mostrar por que é

nessa superioridade que se garante a existência do livre-arbítrio, isto é, da liberdade de

ação no homem. É também examinado a fim de tornar mais ampla a explicação da

mencionada relação o porquê do pensador medieval considerar a vontade como um

motor do intelecto.

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Destaca-se ainda a classificação da teoria geral de Sto. Tomás como um

intelectualismo em oposição ao voluntarismo, sobretudo aquele que é relacionado a

Duns Escoto, sendo isso uma maneira de esclarecer a importância que o Aquinate

atribui ao intelecto e por que tal atribuição é relevante para a sustentação teórica do

livre-arbítrio. Ademais, discute-se especificamente à vontade e a necessidade ainda

como parte do problema da perseguição do fim último por parte da volição.

Por fim, apresenta-se uma discussão sobre a natureza da teoria da ação tomista

frente aos enquadramentos tradicionais do determinismo e do libertarismo, sem no

entanto deixar de ponderar a questão do compatibilismo tal como fora apresentado pelo

intérprete tomista Robert Pasnau, um dos autores considerados para o exame deste

trabalho.

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CAPÍTULO 1

AS POTÊNCIAS DA ALMA E O LIVRE-ARBÍTRIO.

1.1 – O livre-arbítrio como potência específica da vontade.

O presente estudo tem por objetivo investigar a concepção de Sto. Tomás de

Aquino, filósofo medieval da escolástica, no que concerne a noção do livre-arbítrio, e

sobre em que medida podemos falar que o homem é livre, ou ainda, “o homem tem

livre-arbítrio em seus atos, ou eles ocorrem necessariamente?”1 Desse modo, temos que

para Tomás de Aquino a noção de livre-arbítrio é nada mais que a potência de escolha,

esse é ponto de partida para a compreensão pretendida aqui.

Para tanto, todavia, cabe situar em que pontos localizam-se não só a noção do

livre-arbítrio, bem como as noções outras com as quais ela se relaciona. Uma das duas

abordagens as quais haverá um enfoque da noção de livre arbítrio encontra-se no âmbito

da Suma Teológica na primeira parte do tratado do homem, entre o que Tomás

denomina de potências da alma. Potência aqui deve ser compreendida como faculdade,

isto é, capacidade que um ser possui para que seja possível uma ação ou operação e não

a possibilidade de um ser sofrer um determinado ato, e em acordo com a formulação

tomista pode-se acrescentar que “as potências da alma são princípios das ações vitais”

(ST, Iª, q.78, a.1). A segunda abordagem encontra-se na obra De Malo na questão 6.

Alma segundo Tomás “é o primeiro princípio de vida dos seres vivos que nos

cercam, pois aos seres vivos chamamos animados, e aos carentes de vida de

inanimados.” (ST,Iª,q.75, a.1) Desse modo, temos que a alma é por definição o

elemento que garante a sustentação da vida no sentido que é o motor vital de todo ser

vivente.

Sendo assim, o Aquinate concebe que há duas classes de potências, ou

faculdades da alma, a saber, as potências da alma em geral e as potências da alma em

especial (ou em particular). É de maior interesse o tratamento dado às potências da alma

1 “On human choice do human beings have free choice in their acts, or do they choose necessarily?”.

TOMÁS DE AQUINO. On Evil. Editora: Oxford, University Press. Tradutor: Richard Regan. p. 253

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em especial pois a estas se dirige o livre-arbítrio. Esta por sua vez, além das potências

vegetativa, locomotiva e sensitiva se bifurca com enfoque maior em duas partes, as

potências intelectivas e as potências apetitivas.

Intelecção e apetite são definidos como sendo quanto a primeira a própria razão

estando em sua definição como é dito no artigo 8 da questão 79.Assim intelecto e razão

são uma e mesma coisa. A razão segundo Sto. Tomás é caracterizada por ser capaz de

elaborar raciocínios, isto é, de a partir de um dado objeto inteligível conhecido passar a

conhecer outro. Quanto a segunda, as potências apetitivas são tomadas como sendo a

faculdade de querer algo. A apetição pode ser entendida em pelo menos dois sentidos:

apetite natural e apetite cognoscível. Sto. Tomás expõe que o apetite natural é uma

inclinação que se dá de forma determinada, isto é, por sua própria natureza um ente

tende a realizar uma dada ação, ou apresentar um certo comportamento (ST,Iª,q.80, a.1).

No entanto, nos seres dotados de capacidade cognoscitiva, como o homem, sua

inclinação está numa relação de dependência com aquilo que é passível de receber do

exterior, enquanto sentidos.

Por fim, as potências apetitivas se subdividem e são analisadas em quatro

questões da Suma, compondo as quatro últimas da primeira parte do tratado do homem.

São elas: a que trata do apetite em geral (q. 80), da sensibilidade (q. 81), da vontade (q.

82) e finalmente do livre-arbítrio (q. 83) especificamente.

Após esta breve esquematização, é imperativo esclarecer melhor em que consiste

a potência apetitiva da alma. Primeiramente, Tomás toma por referência a teoria

aristotélica sobre a matéria e a forma abordada na obra Metafísica denominada

hilemorfismo. Forma tem uma relação conceitual muito próxima com a noção de

substância. Substância é aquilo que existe por si, ao contrário da definição de acidente,

o que existe em outro.

Desse modo em complementaridade, há a necessidade de se estabelecer a forma,

sendo esta aquilo que caracteriza e define uma substância. Forma e matéria são

portanto, os princípios estruturais da substância que seria o elemento essencial

constituinte dos entes, com exceção dos seres que são pura forma, isto é, em cuja forma

há ausência de matéria como Deus. Nesse sentido da distinção ontológica entre forma e

matéria, todo ser em virtude de sua forma possui certa tendência, ou uma inclinação a

um dado comportamento observável como o Aquinate afirma no artigo 1 da questão 80:

“[...] a toda forma segue-se uma inclinação. Por exemplo, em virtude de sua forma, o

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fogo tende a subir e a produzir algo semelhante a si”.

Conforme Sto.Tomás aborda o composto substancial humano no artigo 5 da

questão 75, a alma é em termos hilemórficos uma forma sem matéria. Todos os seres

tratados pela metafísica tendem a apresentar essa composição ontológica entre forma e

matéria, ora sendo inteligido um, ora o outro, ora ambos.

A alma humana é tida como um aspecto de imaterialidade que segundo o Doutor

Angélico possui dois sentidos que podem ser sintetizados como duas etapas explicativas

dessa conceituação. A primeira acepção é uma ponderação sobre a natureza da alma de

um modo geral. Isto é, é próprio da alma em sentido lato que seja um aspecto

substancial, ou seja, essencial dos entes animados que por sua constituição mesma e seja

ausente dela a participação de conteúdo material.

A segunda acepção diz respeito à consideração de que a alma dentre outros

elementos, tais como proporcionar crescimento corporal e nutrição, é em parte uma

entidade intelectiva do ser humano. Sto. Tomás toma como definição de alma intelectiva

a potencialidade de ser suscetível à recepção de conhecimento de em sua estrutura

formal, como por exemplo, uma árvore, a alma intelectiva capta a forma da árvore tal

qual dada, que nos dizeres do Aquinate, é sua “razão formal” (ST, Iª, q.75, a.5), aquilo

que justamente distingue entre gênero, ou a qualidade geral de algo, e a diferença

específica, as singularidades de uma coisa.

Desse modo, fica patente para o doutor Angélico que se não procedesse dessa

maneira à alma humana nunca seria capaz de conhecer e julgar o universal, estando

sempre condicionada a apreender o singular. Exemplo disso é a sensibilidade que

sempre capta seus objetos de apreensão em sua individualidade, pois é próprio dela, ao

passo que o intelecto pela sua própria definição característica adere ao que é universal.

Sobre a característica intelectiva da alma humana Pasnau discorre destacando a

sutileza que a noção de alma humana encerra, nos seguintes termos:

A posição de Tomás de Aquino repousa sobre uma distinção bastante sutil.

Visto que a essência da alma está sempre se efetivando, durante o tempo que

a substância existe, várias potências da alma farão parte dessa essência se

esses poderes são sempre efetivados. Mas esses poderes nem sempre ocorrem

dessa forma: um ser humano nem sempre é realmente envolvido em

operações intelectivas ou sensoriais. Portanto, essas operações não vêm

diretamente da essência da alma. Eles vêm de poderes separados. Ainda

assim, a posse desses poderes é um pré-requisito para ser humano, e assim os

seres vivos sempre possuem tais capacidades próprias. Mas as capacidades, -

elas sim -, vêm diretamente da essência da alma.2

2 “The position Aquinas takes rests on a rather subtle distinction. Since the soul’s essence is always

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Desse modo, podemos observar que Pasnau (2004) salienta a distinção entre

capacidade da alma e operação da alma numa dualidade conceitual muito próxima.

Capacidade é a potencialidade que a alma tem em relação a sua constituição, já

operação é a ação que a capacidade é habilitada a realizar. A potência apetitiva, por

exemplo, é uma capacidade da alma humana, enquanto que o livre-arbítrio é uma

operação produzida por tal potência em partilhamento com a potência intelectiva.

Objeções poderiam ser levantadas para tal raciocínio estabelecido a partir das

formulações de Pasnau, como a que apontaria que sendo assim, o livre-arbítrio seria

tanto uma potência, quanto uma operação, pois o mesmo enquanto potência de escolha

quando não utilizada permanece como um aspecto intelectivo. Talvez, seja o caso

considerar irrelevante tal objeção, pois como Pasnau concebe, a distinção apresentada é

bastante sutil, sendo difícil não proceder assim quando se está apreciando a referida

distinção tomista.

Segundo a classificação tomista, portanto, procede da essência da alma mesma o

livre-arbítrio, contudo a potência apetitiva concebe o livre-arbítrio, sendo concebida

assim como uma subdivisão da potência apetitiva. Outro aspecto que é possível

apreender da passagem em questão, diz respeito ao fato de que tal gama de capacidades,

em especial a posse da capacidade apetitiva com sua operação, ou ainda

operacionalidade de escolha livre, isto é, o livre-arbítrio, é o que torna garantida a

essencialidade do homem enquanto homem.

Prosseguindo, pressupõe o Aquinate que a forma apresenta-se de maneira

ontologicamente superior nos seres que são dotados de faculdade cognoscitiva. Isto é, a

potência de conhecer implica numa atividade inerente ao ser que a possui. Assim, seres

sem cognição seriam passivos e não promotores de ações, apresentando-se como

passivos e numa hierarquia qualitativa como menos “nobres”.

Tal inclinação superior faz com que um animal possa tender para aquilo que

conhece, sem haver inclinação totalmente natural. Isto é, enquanto o fogo que é um ente

inanimado, - no sentido de não ter alma e nada conhecer -, isto é, um ser inanimado que

actualized, for as long as the substance exists, the soul’s various powers will be part of its essence

only if those powers are always actualized. But those powers are not always actualized: a human

being is not always actually engaged in intellective or sensory operations. Hence these operations do

not come directly from the soul’s essence, They come from separate powers. Still, the possession of

those powers is a prerequisite for human being, eand son a living does always possess the capacities

themselves. Hence the capacities come directly from the soul’s essence.” PASNAU, Robert. Thomas

Aquinas on Human Nature. Editora: Cambrigde Press, 2004. Página: 156.

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é capaz somente de um movimento natural. Dentre os corpos que possuem alma, isto é,

animados, vários são capazes de movimentar-se mediante ação própria.

Há a presença do que Tomás denomina de apetite natural no homem e nos

animais em geral, categoria em que os homens estão incluídos, como o querer

relacionar-se sexualmente ou simplesmente ingerir alimento. Sendo assim, apetite

natural é uma inclinação natural, mas conclui Tomás que a “inclinação superior pertence

à potência apetitiva da alma; por ela o animal pode tender para aquilo que conhece, e

não somente para as coisas às quais se inclina por sua forma natural” (ST, Iª, q.75, a.1).

Isto é, é preciso o querer ou desejar no processo de relação homem e demais entes.

Segundo Robert Pasnau, em seu livro Thomas Aquinas on human nature (Sobre

a natureza humana em Tomás de Aquino, em uma tradução livre), temos que:

Para mover-se, uma coisa deve ter uma parte que se move e uma parte que é

movida. Os animais têm isso, porque o seu lado cognitivo move seu lado

apetitivo, que por sua vez move seus corpos. Como vimos, este ainda não dá

aos animais o tipo de controle sobre seu comportamento que os seres

humanos têm, mas os torna auto-motores sem um nível bem acima do nível

bruto das plantas.3

Desse modo, percebemos que há nessa perspectiva apresentada uma devida

consonância com a explanação anterior na medida em que se demonstra que os seres

animados sensíveis possuem em certo grau uma capacidade de recepção de dados do

ambiente, constituindo o que o autor denomina de “lado cognitivo” (cognitive side) dos

mesmos.

Contudo, salienta-se que a capacidade cognoscitiva animal é um aparato

rudimentar de construção de conhecimento sendo segundo Pasnau, não necessariamente

inferior em grau, porém peculiar, própria e exclusiva ao aparelho corporal animal,

diferentemente da potência cognitiva humana que, no caso do homem se alia a sua

capacidade ou faculdade intelectiva tornando-o apto a coordenar ativamente seus atos.

Entretanto, a distinção entre apreensão intelectiva e a simples apreensão

sensitiva dos animais apresenta um diferencial não tão somente de grau, porém de

natureza, uma vez que o intelecto no homem quanto nas criaturas angélicas, é o fator

substancial de sua constituição ontológica.

3 “To move oneself a thing must have a part that moves and a part that is moved. Animals have this,

because their cognitive side moves their appetitive side, which in turn moves their bodies. As we will

see, this does not yet give animals the sort of control over their behavior that human beings have, but

it does make them self-movers of a sort well above the crude level of plants.” PASNAU, Robert.

Thomas Aquinas on Human Nature. Editora: Cambrigde Press, 2004. Página: 211.

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As potências apetitivas em geral são agrupadas em três subgrupos: o apetite

sensitivo, isto é, a sensibilidade e apetite volitivo, isto é, a vontade e o livre-arbítrio. Em

que consiste a vontade? Para o Aquinate a vontade é a potência que se encarrega do

querer, do desejar. Desse modo faz-se mister, primeiramente elucidar a questão 82 que

discorre sobre a vontade.

1.2 –Vontade e o fim-último.

Para Tomás a vontade pela sua própria constituição deseja uma coisa de maneira

necessária. Essa necessidade não vai de encontro à liberdade, pois o Doutor Angélico

salienta a distinção dos vários significados para necessidade. Em princípio, necessidade

“é o que não pode não ser” (ST, Iª, q.82, a.1), ou aquilo que por sua própria natureza não

é potencialmente suscetível de comporta-se de outra maneira, isto é, somente numa dada

forma. Sto. Tomás menciona a necessidade natural, como por exemplo, o todo é maior

que a parte. Há também a necessidade de fim, o medicamento é necessário a certa

doença. Por último, há necessidade de coação, quando somos violentamente impelidos a

fazer algo em razão de uma agente externo, a exemplo de uma ação humana causada por

uma intimidação violenta de um terceiro.

O significado empregado para se referir à necessidade da vontade é em sentido

natural, que da mesma maneira que o intelecto tende a aderir aos primeiros princípios4,

a vontade tende a aderir a um fim último que para o homem é a bem-aventurança ou

felicidade. Tal noção finalista remete a ponderação de Aristóteles sobre a causalidade

final que seria inerente a todo ser. Assim, o Estagirita identifica a existência de um telos,

ou seja uma finalidade, em todo ser. Esta finalidade é justamente a razão de existir de

uma dado objeto, sua natureza, digamos.

Sto. Tomás reexamina tal noção aristotélica reinterpretando-a a partir da matriz

cristã de pensamento. Uma vez que todo ser estaria dotado de um fim último, a razão de

ser da vontade é conduzir o homem a plenitude de realização enquanto criatura divina,

que é o encontro com o criador. Desse modo, os desejos ou inclinações da volição tem

como fim estabelecer o elo com este fim último que somente pode se dar mediante um

ato do intelecto de adesão aos princípios divinos, no entanto, dando-se esta consumação

4 Aristóteles em sua obra Metafísica discorre acerca dos primeiros princípios. Os primeiros princípios

concernem aos princípios lógicos, a saber: o princípio de identidade, da não contradição e do terceiro

excluído.

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tão somente no pós-morte, espiritualmente após a extinção do corpo.

O filósofo medieval afirma “assim como se chama natural o que é segundo a

natureza, chama-se voluntário o que é segundo a inclinação da vontade” (ST,Iª,q.82,

a.1). Há no homem como foi dito anteriormente uma vontade necessária com vista a um

fim, sendo esse fim “o fim”, isto é, a finalidade máxima da constituição humana, a

saber, a bem-aventurança ou felicidade.

Isto é, em consonância com Sto. Tomás, há um fim último na constituição

humana que é uma plenitude de satisfação, sendo ela de natureza divina e espiritual em

última instância. Entretanto, salienta Nicolas (2002), no percurso material em que o ser

humano vem a se encontrar, há uma série de elementos que estabelecem uma relação

volitiva para com o homem de modo que mediante sua capacidade intelectiva ajuíza e

assevera sobre o que lhe convém como “bom”. Entretanto, seguindo tal exposição, o

que pode figurar como bom à vontade, talvez não seja bom em sua totalidade para o

corpo, ou como diz Nicolas pode ser “objetivamente errôneo” (apud TOMÁS DE

AQUINO, 2002) no que tange a escolha da vontade perpetrada a partir do ajuizamento

do intelecto.

Para Stump (2002), isto corrobora a visão do Aquinate a qual afirma que a

vontade não deseja todas as coisas de maneira determinada, mas sempre está

determinada por uma forma que poderíamos chamar de parâmetro para a orientação das

ações humanas, quando assim escreve:

A vontade é um apetite para o que é bom. Por “bom” Tomás deseja significar

aquilo que é bom em geral, não esta ou aquela coisa boa especificamente; isto

é, a vontade é uma inclinação para aquilo que é bom, onde a frase “aquilo

que é bom” é usada atributivamente e não referencialmente.5

Isto é, a vontade poder-se-á dizer não possui como expõe Stump um referencial

o qual a guia de maneira determinada, como se houvesse um alvo fixo nas coisas,

alheias ao corpo que a levasse a sempre escolher necessariamente determinados bens.

Pelo contrário, Stump assinala que a inclinação da vontade se dá de forma atributiva, no

sentido de que o que é “bom”, é uma atribuição ou ainda, uma predisposição da

potência do desejar com relação a algo, de um modo geral, o que se apresenta como

5 “The will is a hunger, an appetite, for goodness. By 'goodness' in this connection Aquinas means

goodness in general, not this or that specific good thing; that is, the will is an inclination for what is

good, where the phrase 'what is good' is used atributively and not referentially." STUMP, Eleonore.

Aquina’s account of freedom: Intelect and Will. In: Contemporary Philosophical Perspectives. Editado

por: Brian Davis. Editora: Oxford University Press, 2002. Página: 275.

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“bom” em sentido amplo. Desse modo, se atribui mediante a inclinação da vontade, a

um certo fruto de sabor mavioso a conotação de agradável, de tal modo que a razão

“prescreve” (ST, Iª, q.82, a.3) nos dizeres de Sto. Tomás as partes do corpo que tal fruto

precisa ser consumido.

Desse modo, a vontade de acordo com Tomás, deseja uma coisa de maneira

necessária como é demonstrado no primeiro artigo da questão 82, sendo esta

denominada de várias formas tais como: bem-aventurança, beatitude ou felicidade.

No entanto, no segundo artigo da questão em foco Tomás caracteriza que a

vontade, apesar de desejar uma coisa necessariamente como exposto anteriormente, não

deseja todas as coisas necessariamente, pois como afirma o pensador medieval “a

vontade não quer por necessidade tudo o que ela quer” (ST,Iª,q.82, a.2). De modo que

ocorre para o Aquinate, que ele considera que certos elementos não servem a bem-

aventurança, estes não são motivo de necessidade para a vontade. E o Doutor Angélico

estende esse raciocínio afirmando que também não chegamos ao estado de bem-

aventurança com base numa relação de necessidade volitiva, mas devido a uma

conformação intelectiva.

Há no ser humano a potência do livre-arbítrio, que pode ser entendida como

uma potência específica da vontade. Sendo assim, o livre-arbítrio mesmo se

relacionando proximamente com a vontade possui independência funcional em relação à

mesma, como será mais propriamente explicitado na terceira parte do presente capítulo.

A vontade é a potência de desejar, ou de objetivar uma coisa, já arbitrar livremente é

poder escolher uma coisa em detrimento de outra.

Contudo, segundo Stump:

(..) A vontade pode mover-se em mais de uma maneira. Ele pode mover-se

indiretamente pelo intelecto comandando para parar de pensar em algo, (...).

Ele também pode mover-se indiretamente porque, em virtude de um fim

disposto na certeza de que se move à vontade do meio para esse fim. Isto é, a

vontades deseja algo por certos meios porque quer um fim particular e porque

aquilo que se lhe apresenta como significando o melhor para atingir esse

fim.6

6“(..) the will can move itself in more than one way. It can move itself indirectly by commanding intellect

to stop thinking about something, as we've just seen. It can also move itself indirectly because in virtue

of willing a certain end it moves itself to will the means to that end. That ir, the will wills a certain

means because it wills a particular end and because presents that means as best for attaining that

end”. STUMP, Eleonore. Aquina’s account of freedom: Intelect and Will. In: Contemporary

Philosophical Perspectives. Editadopor: Brian Davis. Editora: Oxford University Press, 2002. Página:

279.

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Desse modo, observando a dinâmica na qual está envolvida a vontade, é possível

concordar com Pasnau (2004) quando ele define a vontade humana como sendo um

apetite racional, que nada mais é que uma tendência que faz com que suas apreensões

sejam submetidas às inclinações da potência intelectiva, pois no caso humano a vontade

está submetida em grau organizacional no organismo de modo que o intelecto guia a

vontade de acordo com seu funcionamento judicativo que lhe é próprio. Tal organização

se dá em vista de que a vontade está submetida inferiormente ao intelecto, de modo que

a verdade como objeto do intelecto é mais universal e abrangente que aquilo que é bom,

coisa que é o fim da volição. Exemplo disso é que apraz mais ao indivíduo conhecer a

verdadeira caridade que alimentar-se de determinado alimento saboroso ao paladar.

1.3 – Meio e fim na vontade e a sensibilidade.

Tendo em vista a noção de meio, que nos revela que meio é aquilo através do

qual somos capacitados a alcançar uma dada coisa, podemos refletir que a vontade

deseja múltiplas ações e objetos do ambiente levando em conta sempre uma certa

finalidade em relação ao meio externo. A finalidade diz respeito ao exposto pelo

Angélico na questão 82 em seu artigo 1, isto é, o fim de cada ação humana tem como

caráter a obtenção de um meio para o alcance da felicidade, há no entanto exceções

como quando, por exemplo, executamos trabalho como meio para o fim de obter

alimentos para o sustento do corpo, apesar de isso não conduzir o indivíduo para o fim

último necessariamente.

Entretanto, os vários meios de que dispomos em vida para atingir o fim das

ações humanas, podem ser em diversos casos, erros da escolha do arbítrio humano. Isso

se dando em consonância com Stump (2002), como foi dito anteriormente, que há um

atributo não referencial nas ações humanas com vistas a um “bom” interpretando esse

“bom”, com um sentido amplo, de algo satisfatoriamente aprazível aos desejos, isto é,

há escolhas que atuam como meio para uma felicidade instantânea terrenamente

falando, como por qual par devemos optar para um matrimônio, e há escolhas que são

meios para se atingir a visão beatífica como seguir o decálogo.

A partir disto, o Aquinate procura demonstrar por que a vontade move o

intelecto distinguindo duas formas de movimento, como causa final e causa eficiente,

que podem ser situados no âmbito de um mesmo e duplo movimento. A primeira em

relação a uma finalidade de razão de ser de algo. Nessa primeira acepção o intelecto é

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que move a vontade, uma vez que o que se conhece é o objeto da vontade e assim “a

move enquanto fim” (ST, Iª, q.82, a.4), desse modo, o fim ou objeto da vontade segundo

Sto. Tomás é o bem universalmente concebido.

Porém, quanto a segunda forma, no que diz respeito a aquele que realiza, é o que

é superior pois “o que altera move o que é alterado; o que impele move o que é

impelido.” (ST, Iª, q.82, a.4). Desse modo a volição é o motor enquanto causa eficiente

não somente do apetite intelectivo como das demais potências da alma a ela

relacionadas.

Diferentemente do apetite sensitivo ou sensibilidade, que se divide em irascível

e concupiscível, o apetite volitivo não se distingue dessa maneira. A sensibilidade, -

cabe essa observação -, designa abrangentemente, em verdade, essas duas outras

potências. A irascível é segundo Tomás aquela “pela qual o animal resiste aos atacantes

que combatem o que lhes convém e lhe causam dano” (ST, Iª, q.81, a.2), isto é, a

potencialidade do ser animado conservar-se frente à ação de externalidades

agressoras.Em segundo há a concupiscível que é aquela “pela qual a alma é

absolutamente inclinada a buscar o que lhe convém na ordem dos sentidos, e a fugir do

que pode prejudicar” (ST, Iª, q.81, a.2), isto é, a potencialidade de se inclinar à atrativos

externos ou repeli-los de maneira incisiva.

Contudo, para o Doutor Angélico o homem mediante a ação do intelecto obtém

controle sobre as paixões, sejam elas quais forem como ele afirma: “[...] evidentemente

que a razão universal controla o apetite sensitivo que se distingue em concupiscível e

irascível, e que esse apetite lhe obedece.” (ST, Iª, q.81, a.3) É patente, portanto, no

pensamento tomista que a razão opera com tendência a ser senhora sobre as paixões.

Ademais, afirma Tomás, não só a vontade está subordinada ao intelecto como também

de forma encadeada a sensibilidade está subordinada a vontade “O apetite sensitivo

submete-se à vontade, quanto à execução” (ST,Iª,q.81, a.3), pois a causa final do apetite

volitivo é um ato intelectivo, qual seja, a visão beatífica de Deus.

Expandindo tal pensamento, temos que a execução a qual o Angélico se refere

diz respeito à motricidade do ser animado, isto se dá uma vez que, no caso dos animais

desprovidos de intelecção, eles tem sua vontade obedecendo à irascibilidade e

concupiscibilidade de impulsos surgidos frente à fenômenos externos como respostas

automáticas a tais situações. Entretanto, nos seres dotados de intelecto, como é no caso

humano, se há algum fenômeno que se manifeste pernicioso ao organismo, não há o

automatismo de uma reação, mas antes o homem pondera intelectivamente se deve agir

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e como deve agir, de modo que temos que o apetite sensitivo é tido como inferior ao

apetite volitivo em escala gradativa.

Há o instante em que pode-se detectar a suspensão da capacidade do livre-

arbítrio como podemos perceber na afirmação de Sto. Tomás que diz “Sabemos, por

experiência, que o irascível e concupiscível se opõem a razão.” (ST,Iª,q.81, a.3). É

possível observá-lo quando fazemos algo a qual a vontade adere por via da sensibilidade

que intelectivamente sabemos ser nociva, isto se dando mediante a ação da

irascibilidade ou da concupiscibilidade. Há ainda o caso quando o que é ruim

sensitivamente e vai de encontro com a vontade mas a intelecção assere ser benéfica

para o corpo como está dito pelo Aquinate nos seguintes termos: “(...) quando sentimos

ou imaginamos uma coisa agradável que a razão proíbe, ou uma coisa desagradável que

a razão prescreve.” (ST,Iª,q.81, a.3). Isto é, certos impulsos da sensibilidade são capazes

de quebrar a orientação do intelecto diante de tais paixões, sendo no entanto, passíveis

de dominação da razão universal.

1.4– O livre-arbítrio.

Uma vez que como o Aquinate provou no artigo segundo da questão 82 que a

vontade não deseja todas as coisas necessariamente e retomando a noção de que vontade

e livre-arbítrio formam uma mesma potência que se define como a potência de querer e

escolher, concluímos que embasado da capacidade judicativa do intelecto, arbitramos

livremente e instituímos assim uma relação de subordinação entre intelecto e vontade.

Dito isto porque, apesar de necessariamente almejarmos a bem-aventurança

naturalmente, não sabemos necessariamente como alcançá-la. O homem em geral,

segundo Tomás, não é capaz de naturalmente aderir a esse pressuposto já que como ele

afirma “antes que a necessidade dessa conexão seja demonstrada pela certeza da visão

divina, a vontade não adere necessariamente nem a Deus nem às coisas que são de

Deus” (ST,Iª,q.82, a.2). Ou seja, para que o crente conclua que a bem-aventurança

consiste na adesão a Deus e seus preceitos, é preciso que se julgue ou escolha entre

seguir ou não seguir a este pressuposto, isto é, mesmo em se tratando de finalidade

última e realização máxima do ente humano, asserir tal finalidade requer um ato

judicativo, sendo um indicativo da existência da liberdade, pois sinaliza para uma não

coação, condicionamento ou dependência frente a elementos alheios ao deliberar do

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intelecto.

Na mesma medida em que os seres humanos são considerados em acordo com

Pasnau (2004) “agentes voluntários” isso se dá em virtude de serem capazes de terem a

potência intelectiva influenciada pela vontade, porém guiada por deliberações

diferentemente dos animais que muito embora fossem estes capazes de agir em certa

medida com “liberdade”, sendo inclusive de acordo com Pasnau, capazes de realizar

decisões, decide porém em sentido fraco, sendo que essas decisões não seriam livres em

sentido amplo, de modo que a “liberdade” observada nos animais não pode ser

considerada como existindo de fato.

Contudo, é de relevância discernir o porquê de a despeito de serem consideradas

a mesma potência, livre-arbítrio e vontade, serem expostas e tratadas de forma

separadas e distintas uma da outra pelo Aquinate. A vontade estaria, num primeiro

momento do processo cognoscitivo, no nível estrito do querer, isto é, do desejar, desejar

este que significa uma inclinação da vontade com vistas a um determinado fim. O livre-

arbítrio se encontraria num segundo momento, no nível próprio do escolher, isto é, do

arbitrar. Pode-se assim, afirmar que querer e escolher integram um mesmo processo.

Enquanto o querer seria atrelado ao desejo indeterminado e passivo sobre aquilo que se

conhece tendo em vista aquilo que é “bom” em sentido amplo, o escolher está atrelado

ao julgamento ativo e portanto racional daquilo que foi apreendido cognoscitivamente e

foi objeto da vontade. Atrelado a esta escolha, que por natureza é deliberada e, portanto

racional ou intelectiva, de acordo com a boa escolha da razão, muito embora para Sto.

Tomás esse fim ao qual se adere mediante um ajuizamento do intelecto, é o gozo no

pós-morte.

Partindo do pressuposto de que vontade e livre-arbítrio são a mesma potência

ainda é forçoso destacar porque apesar de apresentar tal afirmação, Tomás trata a

vontade e o livre-arbítrio de forma separada em sua exposição. Ele afirma do livre-

arbítrio na questão 83 é que “o livre-arbítrio nada mais do que a potência de escolha”

(ST,Iª,q.83, a.4), sendo distinta da vontade que é a potência de desejar. O livre-arbítrio é

uma potência apetitiva que se apresenta ligada intimamente à vontade, porém não

perfazem uma mesma noção, pois justamente por tratar separadamente as duas noções,

pode-se afirmar que o livre-arbítrio figura como uma espécie de potência específica da

vontade como já dito anteriormente neste texto.

Para Tomás, o que sustenta o livre-arbítrio, isto é, a liberdade humana, é o fato

mesmo da existência de racionalidade no homem. Entretanto o que significa razão em

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Tomás? Razão é a faculdade de raciocinar que “é propriamente passar de um

conhecimento ao conhecimento do outro” (ST,Iª,q.83, a.4). Contudo, antes de raciocinar,

conhecemos e conhecer “implica a aceitação simples de alguma coisa” (ST,Iª,q.83, a.4).

Todavia, afirma Tomás, o suposto julgamento, – que em verdade é distinção de

impressões –, dos animais não é livre pois não discernem por comparação, isto é não

raciocinam. Diante desse quadro Stump afirma:

Alguns, como plantas ou coisas inanimadas mesmo, tem uma inclinação

intrínseca para o bem além de qualquer conhecimento do bem. Tomás de

Aquino às vezes chama esta inclinação um apetite natural. (...) Mais acima na

escala de seres estão animais de certos tipos que são naturalmente inclinados

para o bem, mas com alguma (sensorial) cognição. Eles podem conhecer

bens particulares, embora eles não tenham a capacidade de refletir sobre eles

ou de pensar neles como boa.7

De modo, que se definem os demais entes como possuidores de um “apetite

natural” que independentemente do uso da razão se inclinam para o fim que lhe é

particular.

Segundo Tomás, o processo que resulta numa tomada de decisão livre se dá em

três etapas como descrito na questão 83. Em primeiro lugar, “conhecer implica a

aceitação simples de alguma coisa”, de maneira que o ato de conhecer está vinculado à

apreensão de dados do meio externo ou reflexões internas e sendo os sentidos o veículo

para o primeiro, temos que estamos a todo o momento captando impressões sensitivas

do ambiente. Em segundo lugar, raciocinar é passar de um conhecimento a outro, isto é,

temos a possibilidade de partindo de certos princípios obter determinadas conclusões

frente a gama de impressões que captamos como descrito primeiramente. Por fim, isto

implica no escolher, que strictu sensu os animais não possuem, pois este se define por

“desejar alguma coisa por causa de outra que se quer conseguir” (ST, Iª, q.83, a.4), ou

seja, a escolha é um ato judicativo que estabelecemos com relação a um bem em virtude

de um outro.

Assim, ao contrário dos demais seres animados, o homem possui uma

capacidade de estabelecer um ato judicativo frente às impressões diversas que obtém da

7 “Some, like plants or even inanimate things, have a built-in inclination to the good apart from any

cognition of the good. Aquinas sometimes calls this inclination a natural appetite. (… )Higher up the

ladder of being are animals of certain sorts which are naturally inclined to the good but with some

(sensory) cognition. They can cognize particular goods, although they lack the ability to reflect on

them or to think of them as good.” STUMP, Eleonore. Aquina’s account of freedom: Intelect and Will.

In: Contemporary Philosophical Perspectives. Editado por: Brian Davis. Editora: Oxford University

Press, 2002. Página: 277.

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natureza. Em acordo com Tomás pode-se concordar que “esse julgamento não é efeito

de um instinto natural aplicado a uma ação particular, mas de uma certa comparação da

razão, por isso, o homem age com julgamento livre, podendo se orientar para diversos

objetos” (ST, Iª, q.83, a.1), ou seja, enquanto que parece predisposto volitivamente a um

“bem” geral, ao homem por natureza lhe é facultada a capacidade de erigir conexões

entre elementos distintos com os quais pode deliberar.

Examinemos o corpo principal da argumentação tomista sobre a questão VI da

conhecida obra De Malo. Tal obra como destaca o título se debruça sobre a temática da

existência do mal, contudo a mencionada questão retoma e desenvolve especificamente

a problemática do livre-arbítrio, sendo ela exposta da seguinte forma: “o homem tem

livre-arbítrio em seus atos, ou eles ocorrem necessariamente?”8 Segundo o Aquinate

constata, os seres humanos possuem a semelhança dos demais entes, isto é, os entes da

natureza em geral, uma origem ou fonte para os seus atos. Estes se denominam fonte

ativa ou fonte causal no ser humano, que se estrutura a partir da potência intelectiva e da

potência volitiva. O autor medieval ressalta que a fonte ativa nos entes não humanos,

como o fogo que pode ter sua constituição descrita como tendente a se dissipar para

cima, se ordena de modo tal que passam a ser designados de apetites naturais das coisas

mesmas. Toda e qualquer ação desses entes resultam de inclinações desses apetites.

O movimento é natural com o significado anterior, a partir do instante em que

consideramos que os corpos inanimados realizam movimentos. Simplesmente se

inclinam para o seu local considerado como sendo o local para o qual tendem corpos

sem alma. Entretanto, os seres animados possuem dentre outras potências da alma, a

potência locomotora em conexão com a potência sensitiva e as potências apetitivas

como dito em ST, Iª, q.78, a.1. Desse modo, temos que a primeira potência referida,

qual seja, a locomotora, desenvolve sua operação peculiar em virtude do corpo sensível

que estimulado faz com que a potência apetitiva da vontade que se caracteriza por ser

aquela a qual se liga a algum elemento externo por via de uma intencionalidade, persiga

ou rejeite algo em determinada ação. Ou seja, corpos inanimados se pautam pela

passividade no que tange ao movimento, diferindo assim da atividade do movimento

presente em seres animados.

No caso do ser humano, existe a intelecção e a volição que atuam influenciando

nas inclinações resultantes das mesmas. Tomás conclui que especificamente as

8 “On human choice do human beings have free choice in their acts, or do they choose necessarily”.

TOMÁS DE AQUINO. On Evil. Editora: OxfordUniversity Press. Tradutor: Richard Regan. p. 253

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“inclinações da volição permanecem indeterminadamente dispostas para várias coisas”9

(QDM, 6)10

. Sendo assim esta se inclina a algo determinado por uma coisa, de uma

forma proveniente de um entendimento que é universal e contém em si diversos

elementos individualmente. Por exemplo, um escultor que tem diante de si um pedaço

de pedra bruta, mesmo partindo de um objeto determinado da matéria individualizada,

possui uma ampla gama de alternativas para se esculpir formas as mais variadas. Nas

palavras de Eleonore Stump:

Em seres humanos, no entanto, o apetite sensitivo aguarda o ato da vontade, o

qual é o apetite superior. O apetite inferior, Tomás de Aquino pensa, não é por

si só suficiente para o movimento em outros poderes a menos que o apetite

superior, a vontade, permita que haja o movimento. 11

Para o Aquinate nossos sentidos estão em um permanente processo de contato

com o ambiente e assimilando impressões dessas exterioridades que nos ofertam uma

gama de possibilidades com as quais o intelecto poderá contar. Desse modo, as paixões

de acordo com Stump (2002), incitam as sensações chegando a exercer, por

conseguinte, influência sobre o intelecto, porém esta influência pode sofrer resistência

do intelecto um vez que este se apresenta como sendo uma potência ativa do arcabouço

cognitivo humano.

Após estes esclarecimentos iniciais, segue-se uma segunda etapa da investigação

da resposta presente na questão 6 em foco. Assim o Aquinate distingue dois tipos de

inclinações da vontade para demonstrar que esta não escolhe necessariamente, a saber, a

vontade concernente à execução da ação e a vontade em relação especificamente a ação.

De acordo com Tomás é evidente que a potência volitiva “move” ela mesma, pois assim

como ela “se move”, - no sentido de tender para -, assim também ela atua com vistas ao

desejo de algo.

Essa inclinação é resultante de um dispor-se inerente aos entes humanos, de

modo que haja a inclinação para uma determinada ação por parte de uma potência

9. “(...) Inclinations of the will remain indeterminately disposed to many things”. TOMÁS DE AQUINO.

On Evil. Editora: Oxford University Press. Tradutor: Richard Regan. p. 258. 10

Detendo o que Tomás denomina de apetite natural como mencionado anteriormente e dessa maneira,

um ente como uma pedra tende na concepção física de Aristóteles ao seu local natural, isto é o solo. Já

uma forma resultante de um entendimento, isto é, de um ato intelectivo tende a ter um leque de opções

ou de “itens” a serem submetidos a uma deliberação. 11

“In human beings, however, the sensitive appetite awaits the act of the will, which is the superior

appetite. The lower appetite, Aquinas thinks, isn’t by itself sufficient movement in other powers unless

the higher appetite, the will, permits that movement.” STUMP, Eleonore. Aquina’s account of

freedom: Intelect and Will. In: Contemporary Philosophical Perspectives. Editado por: Brian Davis.

Editora: Oxford University Press, 2002. Página: 277.

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determinada, seja ela a volitiva ou a intelectiva. Segundo Tomás pondera na resposta a

décima objeção, a vontade particularmente em relação aos seus atos não é movida por

nenhuma outra potência (apesar de mover o intelecto, como já dito), sendo assim o

Aquinate afirma que a vontade é movida por si mesma. Contudo examinando de outra

perspectiva, a vontade quando relacionada aos objetos é também movida assim como o

intelecto o é, a exemplo de quando aquilo que é um bem necessário age sobre o

intelecto, impreterivelmente, como uma verdade que não pode ser concebível como

falsa, segundo o próprio Tomás.

Tomás afirma a maneira de Aristóteles que, assim como coisas leves tendem a

subir - tal como o fogo -, e coisas pesadas tendem a ir para baixo, - tal como a pedra -.

Assim a vontade teria também uma condição estrutural própria, mas sendo este da

seguinte maneira: a potência volitiva está organizada de modo tal que

indeterminadamente está disposta a coisas diversas e distintas. Tal se dá em virtude da

potência volitiva estar vinculada em seu funcionamento as percepções sensitivas, que

por sua vez são múltiplas devido a multiplicidade de elementos da ambiência na qual

um ser humano pode se encontrar.

Quanto à vontade concernente especificamente a ação o autor medieval salienta

na resposta a objeção 7 que há um bem que é bem perfeito, sendo este a bem-

aventurança, e segundo Tomás a vontade não pode não desejar a bem-aventurança,

entendendo esta como aquilo que traz como produto final a contemplação beatífica, sem

antes se revelar em inclinações a coisas com as quais nos deparamos em vida, em

acordo com a expressão do Angélico nas objeções 7 e 9 da questão 6 do De Malo, que a

felicidade é um alvo fixo e inerente a natureza humana, porém esse condicionamento

não faz com que estejam condicionados, pois “Os seres humanos, embora,

necessariamente desejem a felicidade, eles não desejam necessariamente as coisas que

levam a felicidade” (QDM, q. 6), isto é, é parte constituinte da natureza humana de

acordo com o Aquinate o alcançar a felicidade, porém, tal não está pré-fixado.

Esclarecendo a problemática da beatitude recorreremos a uma passagem da Suma

Contra os Gentios quando o Doutor Angélico afirma:

A vontade, move os apetites sensitivos, constituídos pelo irascível e

concupiscível. Por isso, não seguimos a concupiscência se não houver o

império da vontade. E o apetite sensitivo, movido pelo consentimento da

vontade, move o corpo. Por isso, o fim do intelecto é o fim de todas as ações

humanas. Ora, o fim e o bem do intelecto é a vontade. Por conseguinte, o seu

fim último é a primeira verdade (VI Ética 2, 1139a, Cmt 2, 1130). Logo, o

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fim último do homem e de todas as operações e desejos humanos é conhecer

a primeira verdade, que é Deus.12

Como dito anteriormente, o homem não deseja de forma necessária tudo que

encaminha o ser humano em direção ao fim último. Filosoficamente, Deus como

exposto pelo Aquinate na passagem referida é a primeira verdade que é a fonte

originária de todos demais conhecimentos. Desse modo, as paixões tanto irascíveis

quanto concupiscíveis, são controladas pelo intelecto, ou razão, como é afirmado em

ST, q. 81, a.3. Isto é, a sensibilidade ou apetite sensitivo está subordinado ao que Sto.

Tomás denomina de “razão universal”, isto é, as paixões são controladas pelo intelecto e

tal não ocorre quando em virtude de uma paixão ou impulso sobremaneira violento seja

capaz de anular o livre-arbítrio.

Quando por exemplo, um indivíduo adquire o vício em uma determinada

substância, a princípio ele não ansiava por torna-se um dependente químico, pressupõe-

se que somente desejava inicialmente obter prazer por meio de determinada substância.

Entretanto o uso torna-se um vício e este lhe traz dor e sofrimento. Isto, que a princípio

era tido como intencionalmente objetivando um estado de felicidade, transforma-se em

insuportável estado de sofrer. Sua liberdade se enfraquece, chegando até mesmo a

anular-se, pois o livre-arbítrio de não escolher usar a substância chega a não ocorrer.

Mas é perfeitamente admissível que o livre-arbítrio possa ser revigorado se se

ajuizar que o mal do vício é que acarretará problemas quanto à consumação da

beatitude. Isto é, a acrasia verificada num dado momento é passível de

“momentaneidade”, e se aplicável num dado momento pode não ser verificado noutro

caracterizando uma situação de abstinência. Ademais, salienta Tomás, o que pode ser

apreendido como bom ou agradável, nem sempre é de fato, o que traz o bem ao corpo,

pois exemplifica Tomás, aquilo que é bom para a saúde pode não trazer uma boa

apreciação plena por parte do corpo.

O Aquinate afirma que a razão é quem controla a vontade, no sentido de que

nem tudo que desejamos nós deliberamos realizar, ou o contrário, quando não

desejamos algo, mas deliberamos ser melhor para nosso corpo. Exemplo disso é quando

escolhemos uma coisa que é útil à saúde, mas que não traz prazer físico, como quando

ingerimos um medicamento de sabor desagradável, mas que irá curar o organismo.

Assim, a potência volitiva sempre está envolvida num jogo de inclinações cujas

12

SCG, lib. 3, cap. 25, n. 10.

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premissas são indeterminadas, garantindo a capacidade de alterar impulsos os mais

diversos, dentro de possibilidades contrárias, que sobre o governo da razão dirige as

escolhas livres, garantindo o livre-arbítrio.

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CAPÍTULO 2

INTELECTO E VONTADE

2.1 - Como a vontade não é uma potência superior ao intelecto.

Tomás pondera na questão 82, especificamente em seu artigo 3, que é possível

estabelecer duas formas de se distinguir a superioridade de algo em relação a outro.

Primeiramente o autor reflete sobre o caráter absoluto, isto é, em si mesmo da

superioridade do intelecto sobre a vontade.13

Isto se dá uma vez que o objeto da

potência intelectiva é a razão, isto é, o “motivo” que ocasiona no intelecto o fato mesmo

do fim almejado por ele. Razão, em acordo com Sto. Tomás, é um termo análogo para

intelecto, compondo dessa forma uma mesma designação para a mesma potência como

é discutido no artigo 8 da questão 79. Tal potência é a capacidade que o indivíduo tem

de a partir de um dado conhecimento, passar inferencialmente desse conhecimento a

outro, de modo a se apreender um dado inteligível.

Segundo Tomás a vontade não é uma potência superior ao intelecto. O autor

estabelece dois sentidos para superioridade, um em sentido absoluto outro em sentido

relativo. Examinando o sentido absoluto, temos que é a disposição da vontade em

desejar algo em si mesmo. O objeto do intelecto para Tomás é a razão do bem desejável

(ST,Iª,q.82, a.3.). E prosseguindo, à medida que um ente é mais simples e abstrato, mais

nobre e superior se torna (ST,Iª,q.82, a.3.). Conclui-se daí a superioridade do intelecto.

Muito embora no sentido relativo, a vontade possa parecer em certa situação

superior ao intelecto, fundamentando-se em Aristóteles, o Aquinate menciona que o

bem e o mal são os objetos da vontade e se encontram nas coisas, enquanto que a

verdade e a falsidade são objetos do intelecto se encontram na mente. Assim, se uma

coisa em que se encontra o bem é inferior à alma, no sentido relativo, essa coisa é do

mesmo modo algo inferior ao intelecto. Tal concepção de superioridade do intelecto é

importante se admitir no presente pensamento de Sto. Tomás, pois é mediante a

submissão da potência volitiva ao intelecto que se garante a liberdade pois, é este último

que é emissor de juízos e coordenador das ações dos membros corporais.14

13

Conferir abordagem sobre a vontade e o intelecto no tópico 1.2 do capítulo primeiro. 14

Tal posição é explicitada por Stump e é a posição adotada para se explicar a ação humana no presente

trabalho.

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22

Ele defende que quanto mais um objeto é simples e abstrato mais ele se torna

superior. Isto pode ser examinado da seguinte forma: entendendo a simplicidade e a

abstração como uma garantia de universalização mais abrangente, e que a referida

simplicidade e abstração conduz a um conceito cuja completude é maior, observamos

desse modo uma superioridade implícita no intelecto em relação à volição. Esta

conclusão ocorre, pois de acordo com Tomás “a razão própria de uma potência está na

relação com o objeto” (ST,Iª,q.82, a.3.), assim tendo em vista a equivalência dessas

noções de que o “motivo” ou razão está para o intelecto bem como o objeto da vontade

para o “bem desejável” extrai-se que em termos absolutos o intelecto é uma potência

que em grau de superioridade encontra-se acima da potência volitiva.

Isto é, podemos observar coadunando-se com a colocação de Stump, que a

relação da vontade com o intelecto se dá de uma maneira assaz intrincada, como se

atesta com a seguinte passagem:

A vontade pode mover-se em mais de uma maneira. Ela pode mover-se

indiretamente pelo intelecto por comando para parar de pensar em alguma

coisa [...]. Ela também pode mover-se indiretamente, porque em virtude do

disposto a um determinado fim que se move para a vontade como meios para

esse fim. Ou seja, a vontade deseja certo meio porque quer um fim particular

e porque o intelecto apresenta aquele meio como o melhor para atingir esse

fim.15

Pode-se concluir que como será mencionado a seguir no presente tópico, o

intelecto é a potência que se caracteriza por objetivar a verdade como fim de sua

potencialidade. A intelecção é movida pela volição, no sentido de que ela estimula a

potência intelectiva a perseguir determinado meio objetivado pela última, não obstante,

a intelecção imprime sua forma ao objeto da volição, isto é, a verdade torna-se

parâmetro para o intelecto julgar sobre a perfeição ou imperfeição de um certo objeto,

sobre a real bondade de um objeto ou não. Ou seja, se se deve asserir a validade de certo

objeto para o corpo ou não.

Prosseguindo, a liberdade de ação é uma complexa estrutura do indivíduo que

reúne elementos que se interligam no que Stump designa de sistema (system), no qual a

15

“The will can move itself in more than one way. It can move itself indirectly by commanding intellect

to stop thinking about something, as we've just seen. It can also move itself indirectly because in virtue

of willing a certain end it moves itself to will the means to that end. That is, the will wills a certain

means because it wills a particular end and because intellect presents that means as best for attaining

that end.” STUMP, Eleonore.Aquina’s account of freedom: Intelect and Will. In: Contemporary

Philosophical Perspectives. Edita do por: Brian Davis. Editora: Oxford University Press, 2002.

Página: 279.

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23

vontade estaria atrelada intimamente a possibilidade de ação intelectual ou dos

membros do indivíduo. Isto, todavia, pode ser interpretado como uma constatação do

que Sto. Tomás já formulara na Suma teológica, por exemplo, quando ele identifica no

artigo 4 da questão 83 que a potência de arbitrar, isto é, de decidir sobre a maneira pela

qual seus membros irão se comportar, com a potência apetitiva de desejar algo. Como se

em duas instâncias houvesse o desenvolvimento de modificações do espírito no âmbito

de um processo intelectivo e volitivo, quase que simultaneamente.

Retomando as considerações de Stump, podemos inferir que esta autora

apresenta similaridades com as colocações de Pasnau no que concerne ao papel da

volição e da intelecção na dinâmica na qual está envolvida a ação humana. Segundo

Stump (2002), o intelecto não está compelido plenamente com relação às paixões, pois

este é capaz de resistir a tais impulsos provenientes da interação da volição com a

sensibilidade. As paixões são matéria de operação próprio da potência volitiva. Em

certos animais, segundo Stump (2002), a movimentação de seus membros está

diretamente ligada com a sensibilidade, de forma que estas captações de impressões

exteriores são a fonte de ações.

Ao expandir a reflexão, temos que continuando com o exame da mencionada

comparação, observa-se que a razão de ser de uma coisa é absolutamente a verdade

daquilo que se almeja, daí Tomás afirmar ”O bem é, com efeito, uma espécie de

verdade” (ST,Iª,q.82, a.3.) e, além disso, também é considerado de maneira equânime

que “por outro lado, a própria verdade é uma espécie de bem, na medida em que o

intelecto tem como seu fim a verdade” (ST,Iª,q.82, a.3.). A verdade é dita como sendo o

fim de maior relevância para o intelecto uma vez que este representa o objeto mesmo da

potência intelectiva. A diferença entre bem e verdade seria de ordem qualitativa, uma

vez que bem é aquilo que é bom, agradável e desejável, desse forma o intelecto tem

como fim a verdade pois esta é aquilo a que o intelecto deseja como sendo seu fim para

o qual está ordenado.

Examinando de modo relativo, o Aquinate chega à conclusão de que sob esta

perspectiva o intelecto não se constitui como sendo uma potência superior à vontade,

isto é, nesse caso a potência volitiva seria vista como superior. Tal modo relativo do

exame se caracteriza no momento que se leva em conta a relação de uma coisa com

outra coisa diversa.

Tomás exemplifica que tomando o caso em que aquilo que produz efeitos

sonoros, - um instrumento musical, a exemplo de um violino -, for considerado mais

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24

excelente que outro objeto a vista de um ser humano, então se poderia concluir que o

som seria tão mais excelente do que aquilo que é colorido, muito embora assinale

Tomás “a cor seja mais nobre e mais simples que o som”(ST,Iª,q.82, a.3.). Ainda nesse

caso, outra exemplificação seria a elaboração de uma pintura que guarda em si a

simplicidade das matizes de cada cor em separado, mas que no entanto, perfaz um

retrato de uma pessoa ou ambiente que representa em sua totalidade uma complexidade.

Assim, o retrato é tido muitas vezes como mais excelente do que as cores em si.

Deve-se dizer que a razão de causa se toma por comparação de uma coisa a

outra. E em tal comparação, é a razão de bem que aparece como principal.

Mas a verdade se diz de uma maneira mais absoluta, e exprime a razão do

próprio bem. O bem é, com efeito, uma espécie de verdade. Mas, por outro

lado, a própria verdade é uma espécie de bem, na medida em que o intelecto

tem como seu fim a verdade. E, entre os outros fins, esse é o mais excelente,

como é o intelecto entre as outras potências.16

Desse modo, percebe-se que o bem ao qual a potência intelectiva se dirige e

capta uma figura com uma tipo de bem desejável, é este bem a verdade. A verdade é o

fim ao qual tende o intelecto. Uma vez que como será apresentada em seguida a vontade

é um motor para a intelecção, de modo que o conteúdo intelectual advém das potências

apetitivas sensitiva e volitiva. Temos que a verdade sendo um objeto superior à

bondade, objeto este da volição, está como guia de ação para o intelecto. Contudo, a

dinâmica das potências interliga a intelecção com a volição já que o que a potência

intelectiva apreende como verdadeiro passou antes pela potência volitiva via potência

sensitiva.

Todavia em sentido absoluto, a potência encontra-se em grau de imperfeição

superior ao ato propriamente dito, desse modo, pode-se afirmar assim que o ato está em

uma relação de anterioridade no que concerne à potência. Partindo deste encadeamento,

prossegue-se que a intelecção é anterior a volição, sendo dessa maneira a potência

intelectiva mais perfeita, isto é, encontra-se em um grau de perfeição superior ao apetite

volitivo. Isto ocorre no sentido que o ente que situa-se como motor é mais perfeito no

que concerne ao ente movido, sendo também o princípio de atividade, que é por sua vez

encontrado em maior grau de perfeição do que o princípio de passividade.

Portanto, seguindo nesta perspectiva tem-se que os processos resultantes da

potência intelectiva estariam fundamentadas no sujeito cognoscente. O produto da

volição se caracterizaria a partir do momento em que a mesma está voltada para o

16

ST, Iª, q.82, a.3.

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objeto ao qual busca. Tomás afirma que “o bem e o mal, objetos da vontade, estão nas

coisas e que a verdade e a falsidade, estão na mente” (apud, ST,Iª,q.82, a.3.).

Assim Sto. Tomás conclui que o bem seria em grau mais excelente no momento

em que se situa o motivo de sua existência enquanto ser, e ainda observando em sentido

relativo, a potência volitiva se revelaria em grau superior. Contudo, curiosamente se

persiste o exame deste leque de relações cognitivas na perspectiva da relatividade, Sto.

Tomás constata que o ente em que se situa o bem está em grau de inferioridade à alma, e

desse modo à potência intelectiva se encontraria em um patamar de superioridade em

relação à potência volitiva.

2.2 - A vontade como motor do intelecto.

A partir disto, há a ressalva, presente no artigo 4 da questão 82, segundo a qual o

Aquinate procura demonstrar por que a vontade move o intelecto distinguindo duas

formas de movimento. A primeira em relação a uma finalidade, como sendo causa final

aquela que se refere à intenção ou razão de ser de uma coisa, a exemplo, de um pintor

que ao pintar um retrato tinha como escopo salientar a beleza física do indivíduo

retratado.

Nessa primeira acepção o intelecto é que move a vontade, uma vez que o que se

conhece é o objeto da vontade e assim “a move enquanto fim” (ST,Iª,q.82, a.4.). Porém,

quanto a segunda forma, no que diz respeito a aquele que age, é o que é superior pois “o

que altera move o que é alterado; o que impele move o que é impelido.” (ST,Iª,q.82,

a.4.). Desse modo a volição é o motor não somente da potência intelectiva como das

demais potências da alma, excetuando-se a potência vegetativa.

Segundo o Aquinate, as potências que se dispõem a um fim universal inclinam-

se a se manifestar como motores daquelas potências que buscam fins que demonstram

ser de natureza particular. A vontade, que se define como a faculdade de desejar algo,

tem como escopo formal um fim universal que é a bondade das coisas as quais ela é

exposta mediante a atuação da sensibilidade. Como o conteúdo intelectual está

subordinado à estimulação sensitiva, aquilo que a potência intelectiva apreende por sua

vez mediante seu próprio crivo peculiar, passa pela objetivação da verdade como fim de

sua constituição mesma.

Desse modo, a vontade não somente move o intelecto, - por estar este

hierarquicamente entre a potência volitiva e a potência sensitiva -, como é responsável

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por mover, isto é causar, quase a totalidade das demais potências da alma, sendo a

exceção situada nas chamadas potências vegetativas, que não se relacionam

essencialmente com as demais potências.

Sto. Tomás ilustra com a analogia de que essa hierarquização se verifica mesmo

na prática das relações políticas, no momento em que por exemplo um monarca governa

tendo como objetivo o bem comum, este bem comum é justamente um fim universal,

pois visa ao alcance da bondade de todos que estão presentes na dada sociedade dirigida

pelo referido monarca. Desse modo, os membros da administração real, acatam num

processo em cadeia, as medidas de alcance do bem para a sociedade do mencionado

reino. Assim, a volição caracteriza-se pelo querer influi causalmente no

“comportamento” das demais potências devido ao seu caráter voltado para a efetivação

da ação propriamente dita movendo as potências intelectivas e locomotivas, por

exemplo.

Stump corrobora a imbricação das potências apetitiva da vontade e intelectiva do

intelecto nos seguintes termos.

Se o intelecto apresenta algo à vontade como bom, então, devido a vontade

ser um apetite para o bem, a vontade deseja-o, - a não ser que a vontade dirija

o intelecto para reconsiderar, para direcionar sua atenção para outra coisa ou

deixar de considerar a coisa apresentada.A vontade de fazer essas coisas, é

claro, é o resultado do intelecto de apresentar tais ações da parte da vontade

para dirigir a atenção do intelecto. Na visão de Tomás de Aquino, cada ato da

vontade é precedido por apreensões provenientes do intelecto, mas nem todas

as apreensões por parte do intelecto precisam ser precedidas por um ato de

vontade.17

Tal passagem evidencia a relação que há entre as potências em questão. O

intelecto comporta-se no âmbito das potências da alma como um direcionador de ações

pois é dele que se originam os juízos, o ato judicativo é pois, o traço caracterizador da

razão. Sto. Tomás esclarece que a vontade é quem fornece os estímulos que nortearão os

juízos do intelecto ou nos dizeres medievais movimentos que moveriam o intelecto.

Contudo a proeminência do intelecto se faz sinalizar na mencionada citação,

pois toda ação volitiva é dependente dos comportamentos intelectuais guiados pelo

17

“If intellect does present something to the will as good, then, because the will in an appetite for the

good, the will wills it, - unless will directs intellect to reconsider, to direct its attention to something

else, or to stop considering the matter at hand. Will's doing such things, of course, is a result of

intellect's presenting such actions on the part of the will directing the attention of the intellect. On

Aquinas' view, every act of the willing is preceded by come apprehensions on the part of the intellect,

but not every apprehension on the part of the intellect need be preceded by an act of the will.”

STUMP, Eleonore. Aquina’s account of freedom: Intelect and Will. In: Contemporary Philosophical

Perspectives. Editado por: Brian Davis. Editora: Oxford University Press, 2002. Página: 279-280.

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senso de verdade que lhe é próprio, além disso, Pasnau salienta que existem apreensões

do intelecto que não dependem da vontade, e são atos internos ao âmbito próprio da

potência intelectiva. Isto é, para querer algo é preciso saber o que se quer, daí a

proeminência do intelecto que busca o saber no que se refere à volição que busca o

querer, é portanto nesse encadeamento que a intelecção é tida como superior a volição

na dinâmica humana.

É interessante observar a terminologia própria de Pasnau quando se refere aos

homens como “agentes voluntários” (2004), pois de acordo com a consideração do

Aquinate na Suma Teológica q. 82, artigo 4, a volição move o intelecto, muito embora

seja uma via de mão dupla, numa dinâmica na qual o intelecto objetivando a verdade

julga os desejos da vontade, isto é, se por um lado a volição é a origem dos movimentos

de causação do intelecto, o intelecto é a origem dos movimentos de causação da

vontade.

Se ocorre a potência intelectiva possuir certa influência, porém atentemos que o

sentido aqui objetivado por Sto. Tomás é explicitar que embora tenhamos razão, esta

não se comporta de maneira estanque e isolada em relação a outras faculdades da alma.

Assim, ao chamar de voluntários os atos que os homens são capazes de produzir, o

Doutor Angélico salienta o fato de que a volição exerce influência na ação humana,

porém uma vez que há a presença da intelecção nesse processo temos que os juízos são

atos mentais próprios dos seres providos de intelecto, como os seres humanos. Desse

modo, conclui-se que devido à capacidade de julgar, isto é, ponderar entre contrários

sobre certos bens, o homem salvaguarda sua liberdade.

A seguinte passagem explicita o dito anteriormente nos termos a seguir:

Se pode ver por que essas duas potências se implicam mutuamente em seus

atos: pois o intelecto conhece que a vontade quer, e a vontade quer que o

intelecto conheça. Por igual razão, o bem está incluído na verdade, enquanto

é uma verdade conhecida, e a verdade está incluída no bem, enquanto é um

bem desejado.18

A potência intelectiva e a potência volitiva segundo Sto. Tomás se interligam

num sistema de causalidades mútuas que em sua terminologia ele designa como

“movimento”, sendo movimento aquilo que no tomismo concerne a causação de algo.

Isto é, o Aquinate procura desenvolver uma explanação de sua classificação de tais

movimentos em dois sentidos. Quando ele afirma que a vontade move o intelecto, isto

18

ST, Iª, q.82, a.4.

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ocorre de maneira que esse movimento se dá como uma causa eficiente, ou seja, como a

causa que concerne aquele que produziu diretamente determinada coisa ou efeito.

Quando o Angélico afirma que o intelecto move a vontade, esta é no sentido de que a

vontade como causa final move o intelecto, sendo tal causa final referente ao fim

ocasionado por algo ou ainda, a razão de existir de determinada coisa ou efeito.

Expandindo a referida distinção tomista, temos que se a potência intelectiva for

examinada sob o viés da universalidade de seu objeto, que é a verdade, sendo que se

coloca em foco a vontade como uma potência específica de um complexo de faculdades

hierarquicamente dispostas de acordo com sua excelência, podemos observar que o

intelecto é superior à volição. Isto pois a vontade estaria inclusa com seu ato e seu

objeto no ato da intelecção. Contudo se se inverte a forma como se examina a relação

do intelecto e da vontade, temos que segundo o Aquinate a vontade moveria o intelecto

pois estariam “contidos na razão universal de bem, à maneira de bens particulares, tanto

o intelecto, como seu ato e objeto, que é a verdade” (ST, Iª, q.82, a.4).

Stump, enfatizando a capacidade de arbitrar com a expressão latina “liberum

arbitrium”, procura apresentar o elemento fundamental da capacidade do intelecto de

coordenar nossas ações. Entretanto, a liberdade frisa Stump (2002) não se limita a

capacidade do “liberum arbitrium”, sendo a liberdade composta também como pela

capacidade de escolher na qual também está circunscrita a vontade inclusive. Segundo

Stump (2002), o arbitrar é uma potência que se envolve tanto com a potência intelectiva,

como quanto com o apetite volitivo. O intelecto assim é um mediador (Stump, 2002),

entre a potência volitiva e a ação humana com relação ao controle nos membros

corporais. Tal posição de Stump como mencionado no tópico 2.1, é a posição padrão

para se explicar a ação humana no presente trabalho.

2.3 O intelectualismo tomista.

No âmbito da escolástica medieval a filosofia tomista caracteriza-se por uma

ênfase no intelecto e sua ação a intelecção, como os princípios básicos que norteiam a

elaboração de um sistema sobre a ordem das coisas, sobretudo no que diz respeito ao

proceder humano a cujo foco se dirige o presente trabalho. O intelecto é justamente

aquela potência humana, - embora não somente humana -, que se dirige para o universal

e seu “objetivo” é justamente “intelectualizar-se” (Rousselot, 1999, p. 179) como afirma

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29

Rousselot, daí ser o intelecto o guia máximo das ações do indivíduo sobre o fazer e o

não fazer tal coisa em detrimento deste ou daquele elemento julgado.

O filósofo francês entende que tal ênfase no intelecto é tida como um

intelectualismo, noção esta que se constitui como sendo o ato intelectual a origem de

todo comportamento humano. Tal intelectualismo pressupõe como salienta Rousselot

uma valorização da abstração, aspecto este não só de natureza tomista, mas natural para

toda a escolástica. Contudo apesar desse núcleo comum a partir da abstração, o intelecto

pode não representar o elemento sobre o qual está a abstração, daí haver pensadores que

divergem de Sto. Tomás, e afirmam o primado da vontade sobre o intelecto no

indivíduo humano.

O principal filósofo do medievo a assinalar o primado da vontade sobre o

intelecto foi o escocês João Duns Escoto, daí sua doutrina ser considerada um

voluntarismo. O escotismo, desse modo, representa um posicionamento diametralmente

discordante da tradição até então estabelecida, isto é, o eixo aristotélico-tomista. Assim,

a escolástica medieval se bifurca nesse antagonismo entre intelecto e vontade, de modo

que cada qual procura responder a pergunta: qual a potência mais importante, e portanto

superior, o intelecto ou a vontade?

O intelecto para o Doutor Angélico cuja ação se dá na intelecção é um

mecanismo de apreensão de ser acima de tudo, e assim mais do que um mero

reconhecedor de conceitos. É com a especulação intelectual que o homem prescindindo

em grande medida de simples intuições vai ao encontro da intelectualização auxiliado

por apreensões sensíveis para aceder abstratamente as noções universais. Tal é o fim do

homem, isto é, a especulação pura.

É com base nesse encadeamento que na obra de Pierre Rousselot “A teoria da

inteligência segundo Tomás de Aquino” se conclui, considerando o papel da

necessidade da autoridade prevalecer sobre a razão que ele afirma “Então, na terra, os

valores humanos não são diretamente intelectuais, e sim morais” (Rousselot, 1999, p.

29). Assim, é que o filósofo francês vai examinar em que medida o objetivo de

intelectualização se faz presente no âmbito das ações humanas. Para tanto, Rousselot irá

afirmar que atingir a especulação pura em meio à ação dos indivíduos que é um “papel

da inteligência [que] é provisório e subordinado” (Rousselot, 1999, p. 29). Provisório

devida à fugacidade da existência material humana, subordinado porque liga-se ao fim

último da visão beatífica.

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2.4 - Vontade e Necessidade.

Segundo Pierre Rousselot “[...] em todos os seres inteligentes, exceto em Deus, a

liberdade não é completa, porque o espírito não é igual ao ser”19

. Para se compreender

em que nível a afirmação de Rousselot se encontra relacionada ao desejo necessário de

algo por parte da vontade, temos de observar que para Sto. Tomás a vontade deseja

alguma coisa de maneira necessária, sendo que tal desejo que se dá de modo necessário

é o fim último que é a visão beatífica. Tal ponderação tomista gira em torno de uma

múltipla acepção do vocábulo “necessário” que foi abordada no capítulo 1, item 1.2 será

expandida.

“Necessário” como significando necessidade de coação, é segundo Sto. Tomás

totalmente contrária a volição, isto se dá de modo que a coação inibe totalmente o

funcionamento da vontade, pois a coação como uma necessidade anula o desejar. Assim

é impossível e uma contradição em termos que uma ação seja voluntária e promovida

violentamente em simultâneo. Isto é, o caráter coercivo de uma ação não pode

formalmente ser enquadrada como voluntária de um modo que tal impedimento

coercitivo parta do interior do ente, ou seja, de sua própria constituição interna. Esta se

opõe diametralmente à vontade.

“Necessário” numa segunda consideração pode ser uma necessidade de fim

também denominada de necessidade de utilidade. Esta se relaciona a um princípio

extrínseco, ou ainda causa final ou eficiente. Essa necessidade diz respeito a algo que é

externo, disso se depreende uma dependência no que concerne a precisão de um ente

que sirva de meio para se atingir um determinado fim, daí ser dito que tal ente participa

de uma condição de necessidade que é com relação à utilidade. Esta diferentemente da

necessidade de coação não se contrapõe a vontade, pois não a inibe, de modo que a

vontade se manifesta.

Sto. Tomás aponta uma concepção de “Necessário” que pode significar numa

terceira acepção de necessidade como sendo da necessidade natural ou absoluta que é a

mais adequada ao presente tratamento, que delineado em suas palavras: “[...] é o que

não pode não ser” (ST, Iª, q.82, a.1.). Tal forma de necessidade, de acordo com o

Angélico, ancora-se na inexorabilidade da presença do fim último, que em outras

palavras é também designado como bem-aventurança. Isto é, nossas ações são

19

ROUSSELOT, Pierre. A teoria da inteligência segundo Tomás de Aquino. Edições Loyola, São Paulo,

Brasil, 1999, p. 183.

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coordenadas por um princípio de “bondade”, como já dito por Stump e a vontade é uma

potência que constitui-se como uma capacidade que está voltada à um certa noção de

“bom”, mas como dito, não um “bom” específico, mas o “bom” em geral. Exemplos

disso são que um bom em geral é almejar um alimento saboroso pelo sabor que nele há,

pois esta é a inclinação do corpo desejar o saboroso e repelir o de sabor desagradável, o

bem específico é um dado alimento saboroso em particular. Nesse ínterim, é que entra o

papel do juízo, como mecanismo do intelecto para discernir sobre o “bem”.

A esse respeito, destaca Rousselot no seguinte ponto que:

O homem, sem dúvida, é livre mas como sua especulação, no estado atual,

estende-se apenas ao inteligível existente no sensível, assim, suas idéias e

práticas estão restritas, a um círculo traçado por sua natureza corporal e

limitada: ele não pode, por exemplo, comunicar seu pensamento a seu

semelhante sem levar em conta o tempo e o lugar; não pode pensar sem

imagens [...]20

Isto é, o filósofo francês salienta a imperfectibilidade do intelecto que podemos

ligar ao processo de discernimento do que é “bom” e a suscetibilidade do intelecto que é

apontada existir por Rousselot no que concerne a estrutura intelectiva. Tal posição desse

pensador neo-tomista liga-se a defesa de uma distinção hierárquica entre os seres que

não são dotados de nenhuma liberdade, como os seres brutos, inanimados; os seres

intermediários, dotados de parcial potência de livre-arbítrio e o ser totalmente provido

de liberdade, isto é, Deus, espírito conformado por ser pura forma.

No entanto, Rousselot numa passagem anterior de “A teoria da inteligência

segundo Tomás de Aquino”, ainda na terceira parte, frisa a relevância que se faz

presente na exploração da noção de intelecto e suas implicações para a manutenção da

liberdade:

Por conceber a vontade como uma tendência ao bem em geral, é no

conhecimento que Sto. Tomás procura, para cada ação, concreta, o princípio

de determinação. Se o ideal humano é intelectualizar-se, pertence à natureza

humana não poder agir voluntariamente a não ser por motivos intelectuais. A

vontade é toda do espírito e para o espírito. E, como a amplidão própria à

linguagem é a raiz da liberdade (ex hoc enim quod ratiodeliberans se habet

ad opposita, voluntas in utrumquepotest)21

Desse modo, podemos notar nessa passagem de Rousselot que como bem

20

ROUSSELOT, Pierre. A teoria da inteligência segundo Tomás de Aquino. Edições Loyola, São Paulo,

Brasil, 1999, p. 183. 21

Ibidem. Página: 179.

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32

ressaltado, aponta para a noção de intelectualização que o indivíduo possui por sua

própria natureza intelectiva, isto é, de um ser dotado de espírito. Como Sto. Tomás

atribui ao intelecto o papel responsável por ajuizar, pressuposto básico para que o

agente opere livremente, esta capacidade de ajuizar é alimentada pelos conteúdos

cognitivos oriundos dos sentidos. É nesse conhecimento adquirido sensivelmente que o

neo-tomista enquadra o que ele denomina de “princípio de determinação”.

2.5 – Sto. Tomás: determinismo, libertarismo ou compatibilismo?

O determinismo é uma classificação teórica que define o homem, ou ainda o

universo inteiro, como sendo pautado por ações e acontecimento pré-fixados e não

aleatórios. Certamente Sto. Tomás não era um determinista. Em certas passagens da

obra do Doutor Angélico aqui examinadas, - à exemplo da questão 83 da primeira parte

da Suma Teológica, bem como a questão 6 da obra De Malo -, o intuito do autor em

questão é realizar uma defesa da liberdade humana. Sua pretensão é elaborar uma

argumentação que sustente o livre-arbítrio sem atenuantes, como declara em suas

próprias palavras: “O Homem é dotado de livre-arbítrio, do contrário os conselhos, as

exortações, os preceitos, as proibições, as recompensas e os castigos seriam vãos”

(ST,Iª,q.83, a.1).

Desse modo, a princípio o Aquinate se enquadraria na classificação

contemporânea de libertário ou libertarista, que é a classificação teórica que define um

arranjo aberto e não previamente delineado das ações do indivíduo e dos

acontecimentos do universo como um todo. Na questão 83 mencionada, procura-se

apresentar a existência do livre-arbítrio de maneira que ela pareça incondicional na

existência humana. Segundo Sto. Tomás: “[...] é necessário que o homem seja dotado de

livre-arbítrio, pelo fato mesmo de ser racional.” (ST,Iª,q.83, a.1). Isto é, para o

escolástico a liberdade é uma necessidade humana visto que a racionalidade lhe

assegura uma potência judicativa sobre suas ações de modo que necessariamente se é

livre pra realizar escolhas frente as circunstâncias apreendidas pela potência

cognoscitiva como exposto no capítulo 1, item 1.1.

A intenção de formular uma incondicionalidade e não determinação para o livre-

arbítrio pode ser encontrada em excertos tais como: “O homem age com julgamento

livre, podendo se orientar para diversos objetos”(ST,Iª,q.83, a.1), ou em outro momento

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quando escreve: “Como as ações particulares são contingentes, o julgamento da razão

sobre elas se refere a diversas e não é determinado a uma única” (ST,Iª,q.83, a.1). Dessa

forma, pode-se observar que na questão 83 da Suma Teológica, a exposição da temática

da liberdade do juízo é pautada por um esforço de fundamentar uma concepção

plenamente livre do juízo e do agir humano.

Na obra De Malo, outros excertos reforçam uma concepção libertária no

pensamento de Sto. Tomás como: “A vontade está disposta para coisas contrárias e não

é necessariamente movida para uma delas” (QDM, 6), e ainda quando afirma “Os seres

humanos tem livre escolha em seus atos” (QDM, 6). Sendo assim, é perceptível o

esforço tomista em quando se propôs a desenvolver em específico a problemática da

liberdade, sua formulação sempre fez ressoar o libertarismo como abordagem teórica no

tratamento da referida problemática.

Tal concepção libertária de Sto. Tomás é endossada por Stump. Para Stump

(2002), o libertarismo tomista se ancora na própria estrutura das potências da alma

humana, uma vez que a referia constituição do intelecto e da vontade como abordada

nos capítulos 1 e 2 do presente trabalho estão de maneira tal direcionados para a escolha

livre para aquilo que é bom, que como demonstrado no capítulo 1, não restringe a

liberdade, pois aquilo que é bom diz respeito ao que é bom em geral, sendo tal um

referencial orgânico que funciona como um mecanismo natural de busca pelo que for

satisfatório e adequado ao organismo.

Contrariamente, Pasnau advoga uma leitura compatibilista da concepção tomista

de liberdade. O compatibilismo é uma classificação contemporânea que defende em

termos teóricos um meio termo para o clássico problema da liberdade humana. Isto é,

nem há uma total determinação prévia das ações humanas e acontecimentos universais,

nem há uma total liberdade para os mesmos. O compatibilismo é, portanto, uma teoria

conciliatória, que busca justamente compatibilizar, ou seja, tornar compatível a

liberdade humana com a existência de certos elementos determinísticos.

Contudo, considera-se no presente trabalho que realizar uma leitura

compatibilista de Tomás de Aquino, como o faz Pasnau, não consegue alcançar

consistência conceitual visto que mesmo com o mencionado direcionamento da potência

volitiva para aquilo que é bom não constitui uma determinação.

Uma vez que o bom aqui visto no trabalho de Stump é apenas um mecanismo

natural de auto-satisfação, não necessariamente para o que é prazeroso ou desprazeroso,

mas para o que é em amplo sentido, de conveniência para a volição, um mecanismo que

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gera um parâmetro como mencionado no capítulo 1, item 1.2, de modo que tal estrutura

reflete um referencial para guiar o corpo para aquilo que lhe for mais conveniente.

Porém, tal não se configura em termos pré-fixados, isto é, a vontade continua atuando

frente a um arranjo não estabelecido previamente.

Desse modo, observa-se que não obstante a presença de uma estreita ligação da

potência de escolha, isto é, do livre-arbítrio com a potência volitiva, e a vontade ser tida

pelo Aquinate como o motor do intelecto e o intelecto ao ser movido pela vontade, deve

ser entendido que tal causação não se configura como determinística, pois ao possuir o

homem a possibilidade de julgar sem condicionamentos as diferentes matérias de ação

que lhe são submetidas, isto garante um arcabouço de liberdade para a prática de atos

livres.

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CONCLUSÃO

As potências da alma são basicamente cinco, a saber: a locomotica, vegetativa,

sensitiva, intelectiva e apetitiva. O livre-arbítrio é justamente uma potência secundária

da potência apetitiva da vontade compartilhada com a potência intelectiva. Desse modo,

temos que para compreender essa intrincada estruturação, fez-se mister compreender o

livre-arbítrio como a potência de escolher que integra com a vontade, a potência do

querer numa mesma potência apetitiva.

Para Tomás a vontade pela sua própria constituição deseja uma coisa de maneira

necessária. Existe um fim último para o homem que é a bem-aventurança ou felicidade.

O filósofo medieval afirma “assim como se chama natural o que é segundo a natureza,

chama-se voluntário o que é segundo a inclinação da vontade” (Tomás de Aquino,

2005, v.II, p.476). Há no homem como foi dito anteriormente uma inclinação da

vontade que é necessária com vista a um fim, sendo esse fim, isto é, a finalidade

voluntária máxima da constituição humana, a saber, a bem-aventurança ou felicidade.

Contudo deve-se entender essa finalidade em sua condição ainda material abstraindo da

finalidade beatífica que é puramente espiritual.

A potência volitiva possui uma relação de fim e meio como mencionado

anteriormente na qual a bem-aventurança tem um papel decisivo. O fim é a felicidade

mas o meio ao qual se tem de buscar para tal nunca é determinado. A vontade está

pautada por um fim que a determina mesmo que seja de maneira vaga, atributiva e não

referencial como salienta Stump.

A sensibilidade que é a potência que submete o corpo a apreensões da

externalidade, diferentemente não está guiada por um fim determinado, muito menos

por meios pré-fixados, mas funciona sob uma estrutura que interfere nos desejos da

volição e nas escolhas do intelecto, as paixões tanto irascíveis as quais são

caracterizadas pelo impulso de auto-preservação, e as concupiscíveis que se

caracterizam como pelo desejo violento de dor e prazer. Sendo tal o intelectualismo

tomista, a potência intelectiva através de sua capacidade judicativa é capaz de resistir e

dominar tais paixões a depender das circuntâncias.

Para sustentar sua tese, Tomás afirma que por sermos seres racionais, a

deliberação e o arbitrar constituem uma característica da presença do livre-arbítrio. O

filósofo exemplifica que se não o tivéssemos, seria em vão e inútil todos os preceitos e

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mandamentos, tanto divinos quanto humanos. O homem possui a capacidade judicativa

e com tal capacidade, pode assim decidir, isto é, ajuizar sobre coisas distintas.

O intelecto é superior a vontade de modo que o intelecto busca um fim mais

simples e abstrato que a vontade, e sendo o objeto do intelecto o conhecimento do

universal, disto conclui-se que o intelecto é mais nobre o portanto superior. A vontade

tem como objeto algo por si mesmo, isto é, pelo fato mesmo de tal objeto ser tido como

desejável. Por conseguinte, tem-se que a vontade por sua vez, é motor do intelecto uma

vez que o desejo é o que direciona enquanto, digamos, um meio para determinada ação

que será jugada pela intelecção.

Devido a ênfase de Sto. Tomás no papel centralizador da intelecção na condução

dos atos do homem, seu sistema filosófico passou a ser caracterizado por um

intelectualismo, opondo-se a preconização da vontade tal como defendida pelo filósofo

João Duns Escoto a qual é designada um voluntarismo. A determinação mais uma vez

retomada no item 2.4, possui como mérito mostrar que dentre as várias concepções de

necessidade, a necessidade como natural, é que se enquadra na necessidade do fim

último da vontade, uma vez que ele não é coercitivo, nem finalista no sentido de algo

pré-fixado de maneira exata.

Contemporaneamente, tem-se acrescentado à discussão em moral sobre a

divergência liberdade versus determinismo uma terceira via no sentido de

compatibilizar a duas teses discrepantes. Desse modo, é importante observar nessa

perspectiva contemporânea, que o livre-arbítrio é a capacidade não apenas de um agente

moralmente fazer o que é certo ou errado, é também a atribuição de uma

responsabilidade sobre sua conduta. Num determinismo completo ao homem não pode

ser imputada responsabilidade moral, já que não age por si mesmo.

Entretanto, tendo em vista o exposto ao longo dos capítulos elaborados e das

considerações traçadas agora por último, temos que a parcela de determinação presente

na estrutura da volição tendo em vista esse bem geral, é de uma sutileza tal que como

dito, representa um sentido muito fraco ao determinismo, conclui-se portanto que

Sto.Tomás é um libertarista, um amplo defensor da liberdade humana.

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BIBLIOGRAFIA:

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Brasil, 2002.

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D. Odilão Moura O.S.B. Porto Alegre, 1996.

TOMÁS DE AQUINO. On Evil. Editora: Oxford University Press. Tradutor:

Richard Regan, 2003.

NICOLAS, Marie-Joseph. Apud Thomas d’Aquin – Somme Théologue, Les

Éditions du Cerf, Paris, 1984.

PASNAU, Robert. Thomas Aquinas on Human Nature. Editora: Cambrigde

Press, 2004.

STUMP, Eleonore. “Aquinas’s account of freedom: Intellect and Will” In: Brian

Davis. Contemporary Philosophical Perspectives. Oxford: Oxford University Press,

2002.

ROUSSELOT, Pierre. A teoria da inteligência segundo Tomás de Aquino.

Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1999.