UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ......primeiras linhas do projeto que escrevi para...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃOPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
IVÂNIA PAULA FREITAS DE SOUZA SENA
ALÉM DAS CERCAS, O QUE HÁ?:
A Educação do Campo no Contexto da Cultura Digital
Salvador
2020
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IVÂNIA PAULA FREITAS DE SOUZA SENA
ALÉM DAS CERCAS, O QUE HÁ?
A Educação do Campo no Contexto da Cultura Digital
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Educação.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Helena Silveira Bonilla
Salvador
2020
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SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira
Sena, Ivânia Paula Freitas de Souza.
Além das cercas, o que há?: a educação do campo no contexto da cultura
digital / Ivânia Paula Freitas de Souza Sena. – 2020.
440 p.: il.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Helena Silveira Bonilla.
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação,
Salvador, 2020.
1. Educação no campo. 2. Cultura digital. 3. Educação humanística. 4. Política
e educação. I. Bonilla, Maria Helena Silveira. II. Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Educação. III. Título.
CDD 370.91734 – 23. ed.
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IVÂNIA PAULA FREITAS DE SOUZA SENA
ALÉM DAS CERCAS, O QUE HÁ?:
A Educação do Campo no contexto da Cultura Digital
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em
Educação, defendida e aprovada em 31 de agosto de 2020.
Banca Examinadora
Prof.ª Dr.ª Maria Helena Silveira Bonilla – Orientadora
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia, Brasil
Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr. Nelson de Luca Preto
Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Federal da Bahia
Profª. Drª. Celi Nelza Zulke Taffarel
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Universidade Federal da Bahia
Profª. Drª. Marize Souza Carvalho Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia, Brasil
Universidade Federal da Bahia
Profª. Drª. Maria Nalva Rodrigues de Araújo Bogo Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Universidade do Estado da Bahia
Prof. Dr. Salomão Antônio Mufarrej Hage
Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Universidade Federal do Pará
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DEDICATÓRIA
À flor, Margarida, minha mãe e
ao poeta, cantador das coisas do
Sertão, Janjão, meu pai.
Desenho: Thauan Maia Kuhin
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AGRADECIMENTOS
Gratidão é a palavra certa.
Minha família (pais, irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhas, vocês são meu porto seguro),
especialmente, meu companheiro de sonhos, Ivanildo Freire, minhas meninas e menino
(Rosinha, Naná e João, incluindo, os filhos caninos Sheike e Lili, - companhia 24 horas), vocês
sempre estão comigo, não importam as consequências e isso me deixa bem.
A todos vocês que cruzaram meu caminho me trazendo alegrias ou alguma tristeza, experiências
necessárias para meu amadurecimento e evolução.
Aos amigos que atuaram como “equipe de apoio”, carinhosamente me ajudando em revisões de
texto, dialogando sobre minhas ideias, ou mesmo, articulando o encontro nas escolas-
comunidades envolvidas na pesquisa e até com um lindo desenho para compor a tese: Juscelita
Rosa, Edeil Reis, Átila Lima, Tiala Albuquerque, Pascoal Eron, Maria Elizabeth, Adson Bastos
Adlândia Dias, Edineide Vithor e Thauan Kuhin.
A vocês que aceitaram colaborar com esta pesquisa, professores, estudantes, lideranças
comunitárias das duas escolas, guardo vocês no meu coração, assim como, os companheiros
pesquisadores, educadores populares da Articulação Interterritorial de Educação do Campo.
Aos que cuidaram de minha saúde física, pois, sem eles e elas, não teria dado para chegar aqui:
Dr. Érico, Dr. Moacir, Dr. Sergei, Katinha, Cris Viana, Carol, Rousimar.
Aos amigos e amigas que torcem por mim, por todas as palavras carinhosas, por todo carinho
que recebo de vocês.
Ao GEC, pela oportunidade de aprendizagem, aos bons diálogos, às revisões do texto, às dicas.
Destaco aqui, Caio, Sule, Yaymar, Carol, Jaqueline, Rafael, Roger, Uriel.
À FAPESB, pelo apoio financeiro indispensável para conseguir dar conta do percurso com mais
tranquilidade.
À Maria Helena Bonilla, pelas incontáveis aprendizagens que a nossa relação me trouxe.
À amiga-irmã Marize Carvalho, por ser tão acolhedora, incentivadora, desde sempre.
À Celi Taffarel, pela aposta em mim, por tudo que você me ensina com sua coragem.
Ao Professor Nelson Pretto, sua simplicidade em partilhar conhecimentos faz toda a diferença
para quem cruza seu caminho. O GEC é a expressão desse movimento grandioso de
compartilhamento e coletividade.
Aos queridos membros da banca, por me honrarem com sua disponibilidade em colaborar com
a avaliação desta pesquisa.
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Gratidão a UNEB. Sou feliz por fazer parte dessa instituição, aqui incluo todos que foram meus
professores, alunos, colegas de trabalho. Gratidão especial aos amigos que partiram para outra
dimensão, Professor Paulo Machado e Professor Marcos Fábio. Professor Paulo, você leu as
primeiras linhas do projeto que escrevi para concorrer ao doutorado, mas não deu tempo de
saber da minha aprovação. Deve ter sorrido de lá de cima, dizendo com seus olhos brilhantes,
“eu não disse que você seria aceita, chefinha?”. E você, querido Marcos Fábio, quero dizer que
não chegamos a tomar o café que ficou combinado um dia antes da sua partida, mas que alegria
que pudemos ter uma última conversa! Obrigada pelo apoio, meus queridos!! Que estejam
festejando no céu de amor que está além daqui.
À UFBA, por me acolher duas vezes. Tornou-se uma segunda casa-formativa e isso muito me
honra.
A Deus pai, unidade criadora do universo, força infinita de amor, pela vida e todas as bênçãos.
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Deixe-me dizer-lhe, correndo o risco de parecer ridículo, que o
verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor.
Che Guevara
Amar e mudar as coisas me interessa mais.
Belchior
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SENA, Ivânia Paula Freitas de Souza. Além das cercas, o que há?: a educação do campo no
contexto da cultura digital. 440p. 2020. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2020.
RESUMO
A tese apresenta a Educação do Campo no contexto da Cultura Digital, dialogando dialeticamente com
o processo de reestruturação e expansão do capital, que tem as Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC) como aliadas. Parte do reconhecimento de que a cultura digital reconfigurou os
modos de produção, acesso e distribuição do conhecimento na atualidade, e gerou novas práticas
colaborativas e sociais. No Campo brasileiro, pessoas de todas as idades se utilizam dos mais diversos
meios tecnológicos, diariamente. Os camponeses, que têm em sua pauta a luta pela terra, pela água e
pelo alimento sem agrotóxico, também reivindicam o conhecimento como direito. A cultura digital é
um tema olhado sob uma desconfiança compreensível, já que, historicamente, as tecnologias sob o
domínio do grande capital não chegaram ao Campo como aliadas dos trabalhadores e sim como parte
de um projeto de desenvolvimento cuja lógica é sempre de dominação para expansão dos interesses do
mercado e expropriação dos camponeses. Nesse sentido, nos interessou conhecer: quais desafios da
Educação do Campo no contexto da cultura digital? Quais características do processo de acesso,
produção e difusão do conhecimento nessa cultura? Como as TIC se fazem presentes no cotidiano do
Campo? Como os camponeses, sobretudo os jovens, se relacionam com essas tecnologias? O acesso de
alunos e professores às tecnologias digitais da informação e comunicação, provoca que alterações no
cotidiano da Escola do Campo? Quais os limites e possibilidades da formação humana no contexto da
cultura digital? Como objetivo buscou-se compreender quais desafios teórico-práticos estão colocados
para a Educação do Campo no contexto da cultura digital. A pesquisa envolveu estudantes, professores,
lideranças de duas comunidades rurais do Território de Identidade do Piemonte Norte do Itapicuru,
pesquisadores e movimentos sociais da Articulação Interterritorial de Educação do Campo no
Semiárido. O método de pesquisa e de análise foi a perspectiva histórico-dialética. O percurso
constituiu-se da elucidação dos desafios e potencialidades evidenciados na realidade objetiva, a partir
da construção de relações teóricas entre as visões dos sujeitos sobre as tecnologias, os processos
educativos na cultura digital e os princípios que sustentam o conceito de Educação do Campo, tomando
por base as categorias contradição e totalidade, na relação dialética entre particular-geral, tese-antítese,
concreto-abstrato, indivíduo-coletividade, buscando interpretar a realidade social pelo movimento real
das coisas, ultrapassando a aparência e as representações. Dos resultados gerados, destacamos que há
muitos limites na relação dos sujeitos do campo com as TIC, dentre eles, o caráter de apenas
consumidores de conteúdo, que os expõe aos desejos e intenções do capital. Contudo, a realidade
concreta explicita que as TIC podem ser importantes aliadas nas lutas dos trabalhadores, desde que
constituam, sobre elas, uma percepção crítica das relações que as perpassam e se apropriem da
tecnologia na sua totalidade - desde o direito ao acesso, até ao domínio do potencial de produção e
comunicação do conhecimento que ela é capaz de gerar e comunicar. Dentre as conclusões, constata-se
que as TIC constituem parte do projeto de inserção dos valores do capital na educação, os quais são
representados pela forte presença de movimentos que reúnem empresários, como o Todos pela
Educação, que têm influenciado as políticas públicas, sobretudo, as reformas curriculares. A tese afirma
a relação do processo destas reformas com a reestruturação do capital e do trabalho, chamando para o
alinhamento político-pedagógico da Educação do Campo ao projeto histórico emancipador da classe
trabalhadora. Nesse sentido, é preciso discutir as TIC numa perspectiva crítico-superadora voltada,
portanto, ao fortalecimento da Educação do Campo.
Palavras Chave: Educação do Campo, Cultura Digital, Formação Humana, Políticas Educacionais
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SENA, Ivânia Paula Freitas de. What are there beyond fences?: rural education in the context
of digital culture. 440p. 2020. Thesis (Ph.D.) - College of Education, Federal University of
Bahia, Salvador, 2020.
ABSTRACT
This dissertation presents Rural Education in the context of Digital Culture, in dialectically dialogue
with the restructuring and expansion of capital, which has Information and Communication Technology
(ICT) as an ally. It assumes that the digital culture has reconfigured the modes of production, access and
distribution of knowledge nowadays, and has generated new social and collaborative practices. In
Brazilian countryside, people of all ages use the most diverse technological facilities on a daily basis.
Peasants, who has in their agenda the struggle for land, for water and for food with no agrochemicals,
also claim knowledge as a right. Digital culture is seen as a suspicious issue, what is understandable,
since technologies, which are under the domain of capital, has not historically arrived in the countryside
as allies to the workers, but rather as part of a developing project whose logic is always related to the
domination to the expansion of the interests of the market and to the expropriation of peasants.
Therefore, we were interested in knowing: what are the challenges of rural education in the context of
digital culture? What are the characteristics of the process of access, production and spreading of
knowledge in this culture? How ITC are presented in everyday life in countryside? How peasants,
especially young ones, interact with these technologies? What changes does the access to digital
information and communication technologies by teachers and students provoke in everyday life in rural
schools? What are the limits and possibilities for human formation in the context of digital culture? The
objective was to understand what theoretic and practical challenges are posed to rural education in the
context of digital culture. The research involved students, teachers, leaders of two rural communities of
Itapicuru North Piemont Territory of Identity, researchers and social movements from the Interterritorial
Articulation of Rural Education in Semiarid. The method of research and analysis was the dialectical
historical perspective. The itinerary was constituted by the elucidation of challenges and potentialities
that were evinced in the objective reality from the construction of theoretical relations through the view
of the individuals about technologies, educational process in digital culture and the principles that
support the concept of rural education, taking as a basis the contradiction and totality categories, in the
dialectical relation between general-particular, thesis-antithesis, abstract-concrete, individual-
collectivity, trying to interpret social reality through the real movement of things, beyond appearance
and representation. From the generated results, we highlight that there are many limits in the relationship
between individuals from countryside and the ICT, among them, the aspect of being just consumers of
contents, what put them exposed to the intentions and desires of the capital. However, concrete reality
reveals that ICT can be important ally for the workers’ struggle, as long as they construct a critical view
about the relations in it and appropriate of technology in its totality – from the right to the access up to
the domain of the potentiality of the production and communication of the knowledge that ICT is capable
of generating and communicating. Among the conclusions it is found that ICT is part of the project for
the insertion of values from capital into education, which are represented by the strong presence of
movements that gather businessmen, for example the Everybody for Education, who has influenced
public policies, specially the curricular reforms. This dissertation points out the relationship between
this reform process and the restructuring of capital and labor, claiming for the political and pedagogical
alignment of rural education to the historical and emancipatory project of working class. Thus, it is
necessary to discuss the ICT issue in a critical and overcoming perspective compromised, therefore,
with the enhancement of rural education.
Keywords: Rural Education, Digital Culture, Human Formation, Educational Policies.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ANDES-SN Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
ANFOPE Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
BM Banco Mundial
BIRD Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento
BNCC Base Nacional Comum Curricular
BP British Petroleum
CAD Comitê de Assistência ao Desenvolvimento
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CAQ Custo Aluno Qualidade
CAQi Custo Aluno Qualidade Inicial
CEB Câmera de Educação Básica
CETA Coordenação Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados
CNE Conselho Nacional de Educação
CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPT Comissão Pastoral da Terra
CMI Conselho Indígena Missionário
CONSED Conselho Nacional de Secretários de Educação
DOU Diário Oficial da União
DRP Diagnóstico Rural Participativo
EAD Educação à Distância
EFA Escola Família Agrícola
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FONEC Fórum Nacional de Educação do Campo
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
GEC Grupo de Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias
IBOPE Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IF-BAIANO Instituto Federal de Baiano
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
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IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IRPAA Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
LEPEL Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física & Esporte e Lazer
MAPA Ministério da Agricultura, Agropecuária e Abastecimento
MBL Movimento Brasil Livre
MBC Movimento Brasil Competitivo
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEC Ministério da Educação
MCTIC Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
NEDET Núcleo de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Territorial
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ONG Organização não-governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PPA Plano Plurianual
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PNE Plano Nacional de Educação
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PPP Projeto Político-Pedagógico
PNERA Pesquisa Nacional sobre Educação na Reforma Agrária
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PSL Partido Socialista Liberal
PT Partido dos Trabalhadores
PRONERA Programa Nacional de Educação em Reforma Agrária
PROCUC Programa de Convivência com o Semiárido em Canudos, Uauá e Curaçá
PIBID Programa de Iniciação à Docência
HRW Human Rights Watch
TIC Tecnologias das Informação e Comunicação
SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade
SDT Secretaria de Desenvolvimento Territorial
UFBA Universidade Federal da Bahia
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UNE União Nacional dos Estudantes
UNDIME União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
UNEB Universidade Federal da Bahia
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNIVASF Universidade Federal do Vale do São Francisco
TIPNI Território de Identidade do Piemonte Norte do Itapicuru
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Mapa da grande rede ............................................................................ 87
Figura 1 - Mapa 1: Compreensão dos sujeitos sobre cultura digital...................... 88
Figura 2 - Mapa 2: Efeitos da cultura digital ........................................................ 89
Figura 3 - Mapa 3: Processos educativos na relação com a cultura digital ........... 89
Figura 4 - Mapa 4: As contradições e imposições da cultura digital .................... 90
Figura 6 - Capa do Álbum Parabolicamará ........................................................... 120
Quadro 1 -
Quadro relacional das premissas e perspectivas que dão base ao
consenso político nas reformas da educação ........................................ 290
Figura 7 - Relação professores e estudantes com as tecnologias digitais ............. 346
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SUMÁRIO
PRÓLOGO .............................................................................................................................. 23
DE ONDE VENHO - DO BARRO QUE ME FORJOU FIZ O CHÃO PARA
CAMINHAR ........................................................................................................................... 27
SEÇÃO I .................................................................................................................................. 35
PARA ALÉM DAS CONSTATAÇÕES: OUTRAS PERGUNTAS, NOVAS
EMPREITADAS ..................................................................................................................... 35
SEÇÃO II ................................................................................................................................ 59
OS MODOS DE CONHECER E EXPLICAR A VIDA NO CAMPO: OUTROS
DIÁLOGOS COM O CONHECIMENTO E COM A CIÊNCIA ...................................... 59
2.1 A CRÍTICA À PESQUISA EM EDUCAÇÃO: tensões sobre o óbvio? ............................ 72
2.2 ITINERÁRIO INVESTIGATIVO: a pesquisa como ato coletivo em movimento –
“UBUNTU” .............................................................................................................................. 76
2.2.1 A autoria como um exercício crítico filosófico da investigação ................................. 79
2.3 A PESQUISA E SEU CAMPO: Cenários, sujeitos e processos ........................................ 84
2.3.1 Princípios e formato dos caminhos da pesquisa em campo ....................................... 86
2.3.2 Desdobramentos: as rodas de conversa ....................................................................... 88
2.4 A DIALÉTICA COMO PRINCÍPIO E MÉTODO DA SISTEMATIZAÇÃO E
ANÁLISE DOS ACHADOS DA PESQUISA ......................................................................... 89
2.4.1 Síntese do percurso da organização dos achados da pesquisa................................... 93
SEÇÃO III ............................................................................................................................. 101
A FORMAÇÃO HUMANA – UMA TAREFA EDUCATIVA PARA ALÉM DA
ESCOLA ................................................................................................................................ 101
3.1 O CONHECIMENTO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO HUMANA: de qual (ou quais)
conhecimentos estamos falando?............................................................................................ 109
3.2 A PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO HUMANA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO ...... 117
SEÇÃO IV ............................................................................................................................. 127
CULTURA DIGITAL, MUITOS TEMPOS EM UM SÓ TEMPO ................................. 127
4. 1 CULTURA DIGITAL – CHEGOU “O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”?.................. 139
4.2 TEMPOS DE ESPERANÇAS E AMEAÇAS! ................................................................ 144
4.2.1 A sociedade digital e o encontro inesperado (?!) entre a informação e a ignorância
................................................................................................................................................ 158
SEÇÃO V............................................................................................................................... 185
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O CAMPO EM TRANSFORMAÇÃO: "ALÉM DAS CERCAS EMBANDEIRADAS
QUE SEPARAM OS QUINTAIS", HÁ LUTAS! ............................................................. 185
5. 1 AS BASES DOS "NOVOS" E "VELHOS CONFLITOS: O que está em disputa? ....... 208
5. 2 AS LUTAS NO CAMPO NÃO SE ISOLAM DAS OUTRAS LUTAS: a relação entre a
desigualdade social, econômica, a concentração da propriedade da terra e as lutas sociais .. 219
SEÇÃO VI ............................................................................................................................ 239
AS MULTIFACES DO CAPITALISMO NA CULTURA DIGITAL: O CONSENSO
IDEOLÓGICO SOBRE UM MODO DE VIDA INSENSATO ....................................... 239
6.1 A INSENSATEZ CONSENSUADA: Consumismo, individualismo e as superficialidades
como valores .......................................................................................................................... 248
6.2. O FETICHISMO DA IMAGEM E A SUPERVALORIZAÇÃO DA APARÊNCIA: a
expansão dos valores do capital sobre a subjetividade .......................................................... 263
SEÇÃO VII ........................................................................................................................... 287
A EDUCAÇÃO DO CAMPO É LUTA SOCIAL: ENFRENTAMENTOS
INEVITÁVEIS DE UMA PERSPECTIVA FORMATIVA QUE DESAFIA A LÓGICA
HEGEMÔNICA ................................................................................................................... 287
7.1 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO CONTEXTO DAS REFORMAS
EDUCACIONAIS A SERVIÇO DO CAPITAL ................................................................... 314
7. 2 A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO CONTEXTO DA CULTURA DIGITAL: desafios e
perspectivas para a escola e para os processos formativos nas Redes e Sistemas de Ensino 343
7. 2.1 A internet e os smartfones provocando inquietações no cotidiano das Escolas do
Campo: "nada será como antes", isso é fato! .................................................................... 352
7.2.2 Questões que perpassam a formação docente e desafiam as redes e sistemas de
ensino na condução da Educação dos Campo ................................................................... 359
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 377
EPÍLOGO ............................................................................................................................. 395
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 401
APÊNDICES......................................................................................................................... 423
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PRÓLOGO
Só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão. (Rita Lee)
Ainda criança, ouvi, vi, senti e vivenciei experiências pelas quais nenhuma criança
deveria passar. Não foram poucos os olhares ‘estranhos’ que às vezes revelavam ‘nojo’, ‘pena’
e até desprezo da menina que era filha de uma merendeira e de um criador de bode. As
estranhas experiências vividas ao longo da infância vinham sempre da relação com adultos.
Irmãos, mães, pais de minhas amigas, que sempre olhavam ‘diferente’ para a menina pobre
que brincava no meio das outras de classe (e cor) não iguais a elas. A menina que não usava
as mesmas roupas, que não tinha os mesmos brinquedos, cujos pais eram gente simples,
pessoas pobres da roça, tentando vencer na vida.
Quando criança, não sabia sequer que existia a palavra preconceito. Descobri seu
significado bem mais tarde, e nem precisei pensar muito, pois seus efeitos avassaladores já
estavam em mim. Era familiar. Ao tornar-me adulta, percebi que o preconceito ainda estava
lá. Estranhamente, ele insistia em fazer-se presente em muitas situações do meu cotidiano.
Fosse na loja ‘chique’ quando era olhada de baixo para cima, como se perguntassem: “o que
você faz aqui? ”, outras vezes (e não raro), em ambientes onde as pessoas se vestem igual,
falam igual e agem da mesma forma; tive sempre meu lugar demarcado (às vezes só pra
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contrariar), com roupas diferentes (até fora de moda), falas próprias, princípios e ações
distintas dos habituais.
Em tempos de comportamentos cada dia mais padronizados e valores fúteis, manter
determinadas posturas significa andar na contramão. Nos ambientes de trabalho (por
exemplo), sobretudo no ambiente da academia, as marcas das ‘diferenças”, a saída do
‘padrão’ (ser pedagoga, inclusive, com postura de opinar, contrapor-se, posicionar-se) sempre
me colocou muito próxima de situações altamente preconceituosas e doloridas. Porém, mesmo
conhecedora (íntima) desse bicho chamado preconceito, me neguei a aceitá-lo como algo
‘natural’. Sinto seu cheiro de longe, no olhar atravessado, na palavra “mal” colocada, no
rosto que se vira, na voz que se cala, na agressão descabida e gratuita, no gesto quase
imperceptível que agride, ofende e desestimula a ação, a palavra, o sonho. Todavia, quanto
mais o preconceito se apresenta, mais me torno combatente! Isso exige muito esforço para não
desistir, não esmorecer.
Como não poderia deixar de ser, fiz a opção profissional de andar lado a lado com
meus pares, defender o que eu acreditava ser justo. Militar na área de Educação de Jovens e
Adultos, na Educação do Campo, andar junto aos movimentos sociais no Semiárido, aprender
com os camponeses, e combater, veementemente, as formas de opressão, de silenciamento, de
alienação, agregando sempre os mais frágeis, e jamais calar diante das injustiças. Tais opções
me colocaram diuturnamente diante de velhas e novas formas de manifestação do preconceito
que, muitas vezes, só sabe que é ele que está ali quem já o sentiu na pele, pelo sal das lágrimas,
pelo nó na garganta.
Carregar uma identidade, demarcar um lugar de partida e ter claro o ponto de chegada
é sempre um desafio que nos coloca no fio da navalha. Crescer à margem nos faz menos,
danifica a alma, porém, ao sobrevivermos, saímos mais fortes e dispostos a lutar. Assim como
tantos outros e outras que nasceram sem privilégios econômicos, sei bem o que é ser
desautorizada de tudo, de pensar, de se manifestar, de ser o que se é. Contudo, deixar-se
silenciar é uma condição inaceitável para quem ousou, desde criança, quebrar regras e sonhar
em ser mais.
A tese que aqui apresento resulta desse itinerário permanente pela superação de todas
as formas de opressão, pelo direito de sermos quem somos e de sonhar nossos próprios sonhos.
Sobretudo, pelo direito de dizer a palavra, de pensar livre de rótulos, de formatos, embora isso
desafie a própria academia, sua visão de ciência, de conhecimento e de relevância acadêmica
daquilo que produzimos. Pensar com autoria, escrever com autoria, questionar o já
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estabelecido é, sem dúvidas, uma ousadia, para muitos, inoportuna. Mas, é na ousadia que me
faço pensante e que me sinto cumprindo a tarefa que tenho que cumprir.
A minha militância, na defesa dos que, como eu, não nasceram sob o privilégio da
riqueza material, é meu jeito de manter a fé na vida e seguir adiante. Costumo dizer que sou
moldada de sonhos, de uma insistente esperança, semeada e cultivada nos tantos encontros
com gentes que, também como eu, enxergam no outro, extensão de si. Gentes que não se fizeram
indiferentes aos olhos lacrimejados da mãe que vê o dia nascer e a noite chegar sem ter como
alimentar seus filhos, gentes indignadas pela condição de invisibilidade dos que estão na
periferia dos direitos e que choram sozinhos suas dores, gentes que sabem ser impossível
ignorar o sangue derramado, as vidas ceifadas, interrompidas, na luta corajosa de homens e
mulheres pelo direito de todos viverem com dignidade.
Estes sentimentos, frutos dos muitos caminhos por onde andei, são as linhas do tecido
que me forma. Sou feita de muitos pedaços, dos sonhos partilhados e aprendidos com essas
tantas gentes que tive o privilégio de encontrar. Como uma colcha de retalhos, cada parte de
mim é uma peça vinda de um lugar, mas que só faz diferença quando se une aos outros pedaços.
Essa tese, as palavras que vão lhe dando sentidos (muitas vezes de forma carinhosa, noutras
tantas, indignada), são a materialização dessa construção coletivizada de quem sou, dessa
identidade partilhada, forjado na luta e na esperança com e de tantas outras pessoas que me
ensinaram a ver o mundo como o vejo.
O que está posto nos parágrafos de cada seção que vai tecendo o texto foi costurado
desde a experiência vivida, sentida, inclusive na palavra gramaticalmente “mal colocada” de
tantos homens e mulheres com quem pude conviver, aprender e admirar. Eles e elas me
ensinaram que suas ideias e sabedoria os colocavam além dos limites do domínio das normas
da língua convencional, sua riqueza residia em sua coragem diária de achar brechas para
viverem e se manterem esperançosos, sob condições tão duras e, muitas vezes, desumanas.
Para eles e elas, assim como para mim, desistir não faz parte do nosso dicionário.
Todo o texto que apresento daqui em diante tem cheiro de suor, cheiro de terra, cheiro
de gente. Tem marca de vozes, de clamores, de denúncias, de desejos, que brotam de um chão
real e para ele se volta, sem a menor pretensão de ser disseminador de respostas definitivas
sobre qualquer que seja a indagação. Por ser uma produção tão implicada, carregada de
identidade, pode provocar estranhamento daqueles que não se sentem muito bem, lidando com
gente de verdade, gente com cheiro de mato e sotaque carregado.
Mas, ressalto que essa tese é também um trabalho para questionar, vislumbrar
horizontes elucidativos, traçar perguntas e mais perguntas. Não é uma escrita para consensuar
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opiniões ou para dizer o que se espera ouvir e sim para dizer o que precisa ser dito. É um
exercício de pensamento livre, crítico e questionador, que busca ser colaborativo de outras
possibilidades de diálogo, para manter viva a esperança de que há sempre a possibilidade de
transgredir o óbvio e vislumbrar outros caminhos. Portanto, tudo aqui é provisório e pode ser
questionado. A única manifestação recusada é aquela que se sustenta em marcas
preconceituosas dos que acham suas posições superiores, inquestionáveis ou daqueles que só
validam aquilo que converge com suas opiniões.
Por fim, vale dizer, e todo o texto, daqui em diante, pretende fazê-lo melhor, que esse
trabalho foi escrito com muita consciência política de quem sabe exatamente o barro do qual
foi forjada e do chão quente onde pisam seus pés. Portanto, qualquer semelhança dessa tese
com um manifesto político não é mera coincidência.
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DE ONDE VENHO - DO BARRO QUE ME FORJOU FIZ O CHÃO
PARA CAMINHAR
Por fim um crítico sagaz revelou
(eu já sabia que iam descobrir)
que nos meus contos sou parcial
e tangencialmente apela
que assuma a neutralidade
como qualquer intelectual que se respeite
creio que tem razão
sou parcial disto não tem dúvida
mais ainda eu diria que um parcial irrecuperável
caso perdido enfim já que por mais esforço que faça
nunca poderei chegar a ser neutro
[...] sou parcial
incuravelmente parcial
e mesmo que possa soar um pouco estranho
totalmente parcial já sei
isso significa que não poderia aspirar
a tantíssimas honras e reputações
e preces e dignidades
que o mundo reserva para os intelectuais
que se respeitam
quer dizer para os neutros
com um agravante
como cada vez existem menos neutros
as distinções
se dividem entre pouquíssimos
[...]além disso e a partir das minhas confessas limitações
devo reconhecer
que a esses poucos neutros
tenho certa admiração ou melhor
lhes reservo certo assombro
já que na realidade é necessário uma
têmpera de aço
para se manter neutro [...]
(Mario Benedetti. Sou um caso perdido.
In: Poesia da Luta na América Latina, 2017)
Fonte: Arquivo pessoal da Pesquisadora
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É que tem mais chão nos meus olhos do que cansaço nas minhas pernas,
mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros, mais
estrada no meu coração do que medo na minha cabeça.
Cora Coralina
Quem se propõe vivenciar um processo de pesquisa parte para essa empreitada
estimulado por razões que estão diretamente ligadas às suas identidades, seu percurso de vida,
trajetória profissional e/ou mesmo afetiva. Aliás, a vida, a profissão, os afetos, todos são
constituintes de quem somos, e separá-los é sempre um exercício quase impossível. A primeira
parte deste trabalho trata de contar parte de minhas itinerâncias e de como eu cheguei até ao
doutoramento em Educação da Universidade Federal da Bahia. Situo minha trajetória dando
ênfase à minha militância junto aos meus pares, gentes com quem dividi sonhos e com as quais
me constituí quem sou, de modo que justifico, ou melhor, exponho, nesse percurso, os
elementos que me condicionaram ao estudo aqui tratado, em sua relação direta com as inúmeras
questões que por ele se atravessam.
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança. É como se Deus irradiasse
uma forte energia. Que sobe pelo chão. E se transforma em ondas de baião,
xaxado e xote. Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!
(MORAES; FERREIRA, 19921).
Nasci numa tarde quente do ano de 1976 na pequena Fonte Nova, uma propriedade rural
localizada no município de Uauá, situada no “Sertão de Canudos”, região Nordeste da Bahia.
Tinha pouco mais de um ano de idade quando meus pais mudaram para a cidade, em busca de
garantir escola para os oito filhos, dos quais sou a mais nova. Uma infância sem garantias das
necessidades básicas de uma criança, porém, vivida com intensidade, sonhos, esperança e muito
afeto. Desde cedo, vi meu pai trabalhar arduamente na roça, enquanto transpunha parte do seu
cotidiano para canções de profunda beleza que se anunciavam por sua voz grave, entoada com
o “auxílio luxuoso” de seu velho e sensível violão. Minha mãe, professora não diplomada,
desdobrava-se em várias atividades para que pudessem manter seus oito filhos: dava aulas para
jovens não alfabetizados durante algumas noites e, no período diurno, se dedicava ao preparo
amoroso e cuidadoso da merenda escolar, como funcionária pública em uma escola da rede
estadual. Aos fins de semana, ela dividia seu tempo com uma máquina de costura, já velha, mas
1 Trecho da canção “De onde vem o baião” – dos compositores José Moraes, José Domingos De Moraes e
Lucinete Ferreira, gravada por Gilberto Gil no Álbum Parabolicamará lançado em 1992.
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29
que servia para reaproveitar as roupas usadas que nos eram enviadas por um parente distante e
que chegavam como presentes de “Papai Noel”, cujo aroma permanece na memória. Outra parte
do tempo, ela passava costurando “para fora”, ou fazendo doces de umbu para uma maior renda
ao final do mês. Uma vida de labutas, que serviu para me ensinar o valor das pequenas
conquistas, das oportunidades que não podem ser desperdiçadas, da importância de cada passo
dado para o futuro sempre presente que é a vida.
Cresci ouvindo as histórias de minha mãe sobre os lugares que ela tinha percorrido para
dar aulas às pessoas que sabiam o quanto era importante aprender a ler e escrever. Suas histórias
reforçavam, diariamente, que o ‘estudo’ era fundamental para ser alguém melhor na vida, para
nos abrir portas e nos dar esperanças. Talvez tenha sido esta fala insistente que me conduziu a
um compromisso permanente com o meu processo educativo, com a educação de meus filhos
e dos filhos e filhas de tantas outras pessoas. Quando completei 13 anos, quatro dos meus sete
irmãos já tinham deixado a cidade natal e partido para Juazeiro-Bahia em busca de
oportunidades de trabalho. Naqueles anos, já não era mais possível viver na pequena Uauá sem
ter horizontes que alimentassem o sonho de “ser alguém na vida”. Nossos anseios fizeram com
que minha mãe tomasse a corajosa decisão de vender o único bem material que possuíamos, a
casa onde morávamos, e que havia sido adquirida por meio da venda da nossa pequena fazenda.
Meus pais não tomaram aquela decisão por vontade própria; sair da cidade natal era muito mais
uma escolha que se impunha diante da ausência de condições de viver com dignidade no seu
próprio lugar. A decisão que pareceu mais difícil para meus pais revelou-se o grande passo que
alterou radicalmente o nosso futuro.
Aos 15 anos, decidi que o magistério seria minha profissão. Seguia, assim, o caminho
não possível de minha mãe e assumido com orgulho por mais três irmãs. Aos dezessete anos,
concluí o Curso Normal e aos 18 entrei no curso de Pedagogia, na Universidade do Estado da
Bahia (UNEB) – Campus III, de Juazeiro. Mesmo sendo a mais nova, era a segunda pessoa da
família a cursar um curso superior. Àquela época, já estava profundamente encantada com a
docência experimentada desde os 16 anos, como auxiliar em uma escola de educação infantil e
no estágio de um ano em uma escola pública estadual. Ao completar 19 anos, mudei-me para o
município de Curaçá, a noventa e dois quilômetros de Juazeiro e fui convidada a dar aulas na
Rede Municipal, iniciando minha trajetória como professora do Ensino Médio. No final de
1997, recebi o convite da Secretaria Municipal de Educação para compor a equipe pedagógica.
Na Secretaria, lancei-me a participar de uma experiência pioneira na região, fruto de uma
parceria da prefeitura com uma organização não governamental, o Instituto Regional da
Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), juntamente com a Universidade do Estado da
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30
Bahia (UNEB/Campus III) e o Unicef. Esta experiência foi definitiva para minha caminhada
profissional e pessoal. O trabalho visou difundir a “Convivência com o Semiárido”, tendo como
linha de frente a perspectiva de superação da ideia do combate às secas a partir da compreensão
de que um fenômeno climático não poderia justificar o grave quadro de desigualdades sociais
que se fazia gritante, sobretudo, naquele final de década.
Confirmava-se, pela teoria da “Convivência com o Semiárido”, que os efeitos
decorrentes da estiagem prolongada (fome, falta de água, morte dos animais e muita pobreza)
eram, em sua maioria, de ordem política. O trabalho fez do município de Curaçá referência na
discussão da Educação Contextualizada no Semiárido, o que foi um marco para a região e
divisor de águas na minha trajetória de vida pessoal e profissional. Envolvi-me completamente
no debate que ali se iniciava e que me levou ao reconhecimento de uma identidade política que
afirmava meu campo de militância e profissional. A discussão da educação contextualizada
contribuiu para revisão dos processos educativos decorridos na região e questionou a
perspectiva curricular universalista que distanciou a escola do seu papel de mobilização de
outras possibilidades formativas necessárias à formação humana.
No mesmo período que desdobrávamos esta vivência nos municípios do Semiárido,
nacionalmente (no ano de 1997), construía-se a base do Movimento Nacional de Educação do
Campo, com o I Encontro Nacional dos Educadores na Reforma Agrária (I Enera) que resultou
em uma articulação nacional, dada a inexistência de políticas públicas específicas para a
Educação do Campo, expressas no Plano Nacional de Educação. No ano seguinte, a articulação
realizou a primeira Conferência Nacional de Educação do Campo, em Luziânia-GO, que
referendou a necessidade da educação se vincular a um projeto popular para o Brasil, e da
escola, ao assumir a caminhada dos povos do Campo, colaborar para interpretar os processos
educativos que acontecem fora dela, e para a inserção dos sujeitos na transformação da
sociedade.
No início dos anos 2000, recebi o convite do IRPAA para assessorar a expansão da
proposta para mais dois municípios – Uauá e Canudos, por meio do Programa de apoio
educativo, técnico e comunitário para a vida, escola, produção, beneficiamento e
comercialização sustentáveis no contexto climático de três municípios do Semiárido (quente)
brasileiro – Canudos, Uauá e Curaçá (Procuc), apoiado pela União Europeia. O Procuc
mobilizou diferentes linhas de discussão, a exemplo das questões relativas ao acesso à água
(tecnologias de captação e armazenamento da água de chuva); uso sustentável da terra por via
das tecnologias de produção; mobilização e organização comunitária em torno do
beneficiamento e comercialização, com base na economia solidária e fortalecimento da
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agricultura familiar2. Entre estas linhas, a proposta teve o papel de mobilizar a escola para
garantir no seu currículo a presença destas questões, sinalizando que, até aquela época, o
currículo não dava conta dos múltiplos elementos que precisariam ser agregados à formação
dos povos do Campo no Semiárido.
A vivência junto aos trabalhadores e trabalhadoras do Campo revelou-me que havia
muito para aprender para além da escola e, ao mesmo tempo, o quanto a escola no Semiárido e
a educação estavam distantes da problemática de vida dos trabalhadores e trabalhadoras,
especialmente dos que vivem no Campo. A partir daí, passei a compreender e analisar de forma
mais cuidadosa o lugar que os sujeitos do Campo e o meio rural ocupavam nas políticas
públicas, sobretudo, as educacionais, e quanto esta ausência colaborava para a manutenção do
quadro de desigualdades no Campo. Em 2004, apresentamos os resultados deste trabalho na II
Conferência Nacional de Educação do Campo, que já havia avançado no cenário nacional,
tendo sido assumida como política pública a partir das Diretrizes Operacionais para a Educação
Básica nas Escolas do Campo (CNE/ RESOLUÇÃO Nº2/2002)3 e se consolidado a partir da
criação da Coordenação Nacional de Educação do Campo, na Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade (SECAD/MEC).
No período de 2006 a 2008, atuei numa consultoria em Educação do Campo e
Desenvolvimento Territorial junto à Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), pelo Instituto Interamericano de Apoio à Agricultura
(IICA), em Brasília. Foi uma importante aproximação com a política de Desenvolvimento
Territorial, ainda em processo de implementação, com a responsabilidade de estabelecer uma
articulação entre educação e desenvolvimento territorial e ampliar a visão de educação para
além do espaço escolar. As atividades vivenciadas no âmbito da Secretaria de Desenvolvimento
Territorial (SDT/MDA) levaram-me a construir um olhar mais aprofundado e amplamente mais
interessado sobre as políticas educacionais e sua relação com outras políticas e outros processos
educativos que se desdobram em vários espaços de organização social. Nesse mesmo período,
imersa no debate do Campo, acompanhei, de 2006 a 2009, a Secretaria de Educação do
2 O conceito de agricultura familiar é definido pela Lei nº 11.326/2006. Nela são considerados agricultores
familiares e empreendedores familiares rurais aqueles que praticam atividades no meio rural, possuem área de até
quatro módulos fiscais, utilizem predominantemente mão de obra da própria família, tenham porcentagem mínima
da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento e dirijam seu
estabelecimento ou empreendimento com sua família. Também são considerados agricultores familiares:
silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores, indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária
(MELO, 2018, p. 24).
3 As Diretrizes constituem-se a primeira legislação que definiu princípios e procedimentos para o atendimento
escolar no Campo, em âmbito de toda a educação básica e profissional.
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município de Sento Sé-Bahia, onde havia um movimento intenso em uma das comunidades
rurais, em que a escola estabelecia um laço muito estreito com os agricultores, incorporando os
temas da convivência com o Semiárido ao Projeto Político-Pedagógico. A inovação daquela
comunidade levou o município a tomar a experiência como referência para a organização da
política educacional na rede de ensino, a partir da elaboração da Proposta Político-Pedagógica
da Rede – Educação no Sertão, Bonitezas de uma Construção Coletiva, publicada em 2009,
tendo como principal referência as Diretrizes de Educação do Campo (RESOLUÇÃO
CNE/MEC/SEB, Nº 1/2002).
Ainda nesse período, concorri ao mestrado em Educação da Universidade Federal da
Bahia, na linha de Políticas e Gestão da Educação, onde desenvolvi o trabalho de pesquisa que
gerou uma dissertação sobre a gestão da Educação Contextualizada nos municípios de Uauá e
Curaçá, estimulada, inclusive, pela precariedade dos processos de gestão da educação nos
municípios por onde havia passado durante a minha trajetória profissional, e que conhecia de
perto. No ano de 2012, assumi como professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia
e levei adiante o que vinha construindo nesse itinerário por tantos lugares. Passei a representar
o Departamento de Educação no Colegiado Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável
(CODETER) e na Câmara de Educação do Fórum Territorial de Educação do Piemonte Norte
do Itapicuru, onde a UNEB, Campus VII, se insere.
No período de 2014 a 2016 coordenei o Programa de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES/UNEB): “Experimentando Possibilidades na Organização do Trabalho
Pedagógico das Escolas do Campo Multisseriadas” que deixou explícita a precariedade das
políticas educacionais nos anos iniciais do Ensino Fundamental do Campo , a fragilidade do
currículo, mas, também, nos apontou alguns dos caminhos possíveis para a concretização de
uma escola socialmente mais engajada e comprometida com a formação humana. As questões
levantadas ao longo do PIBID puderam ser disseminadas juntos aos professores da rede pública
do Território.
Nos anos 2015 e 2016 coordenei o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento
Territorial (NEDET), projeto financiado pelo CNPq. A chamada para o projeto foi resultante
de uma demanda do Ministério do Desenvolvimento Agrário, da Secretaria de
Desenvolvimento Territorial (MDA-SDT) e da Secretaria de Políticas para Mulheres, ainda no
Governo Dilma. As indagações, descobertas e desafios gerados pela inquietante experiência do
PIBID e do NEDET somaram-se aos elementos levantados durante o Curso Especialização em
Educação do Campo (que coordenei em 2015/2016), voltado, prioritariamente, para
profissionais das escolas do Campo. O curso teve o objetivo de garantir, por meio da pesquisa
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intervenção, o diálogo dos discentes com seus ambientes de trabalho e militância, bem como
conhecer mais de perto as questões que envolvem a Educação do Campo nos municípios. O
curso nos fez constatar que, mesmo sendo a Educação do Campo uma política pública
educacional, há muitos caminhos a serem percorridos nas redes de ensino para que os preceitos
legais e teóricos se efetivem. Vimos que há pouca clareza teórico-epistemológica em torno de
seus princípios e fundamentos; tímidos investimentos na formação de professores e muita
precariedade dos espaços físicos das escolas, que no seu todo explicita a precarização da
educação que chega aos povos do campo. Todas estas vivências nos fizeram conhecer de perto
a diversidade do campo nesta parte do Semiárido, assim como os avanços e conquistas em torno
dos direitos sociais e, mais ainda, as suas fragilidades.
Foi tomada de todas estas constatações, desafios e provocações, que cheguei ao
doutorado. O primeiro projeto apresentado para ingresso no Programa buscava evidenciar as
redes de ensino e suas estruturas. No entanto, ao iniciar o doutoramento, novas questões me
foram lançadas e me levaram a outros debates, um lugar pouco visitado por mim –o universo
das tecnologias da informação e comunicação. Nesse novo lugar, busquei entrelaçar um diálogo
entre discussões que pouco encontraram uma linha de convergência, a Educação do Campo e
as TIC. Ainda assim, ciente dos desafios que esse diálogo me lançaria, resolvi me arriscar a
aprender. Lancei-me, assim, na busca por desvendar o que o universo da cultura digital significa
no atual contexto e como o campo, seus sujeitos, a educação e a escola aparecem em meio a
esta cultura que alterou a vida em todas as suas dimensões. São estas indagações que estão nesta
pesquisa que, daqui em diante, passo a apresentar.
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SEÇÃO I
PARA ALÉM DAS CONSTATAÇÕES: OUTRAS PERGUNTAS, NOVAS
EMPREITADAS
A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois
passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para
que eu não deixe de caminhar.
Fernando Birri4
4 Citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’ (1993).
Fonte: Arquivo pessoal da Pesquisadora
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Talvez tenha sido pela força da utopia que tenhamos, em coletividade, fecundado, até
aqui, a esperança insistente em dizer que é possível romper com o modelo de vida que nos
explora e construir, pouco a pouco, a base para uma sociedade fundada na igualdade e na justiça.
Talvez, se não fosse pela utopia que nos inspira a cada nova manhã, não haveria tantos de nós
nos colocando a anunciar novos horizontes possíveis, em meio a um cenário de investidas
ferozes do grande capital sobre os trabalhadores e trabalhadoras. Por meio do ataque aos direitos
sociais e pela construção de um discurso de naturalização das desigualdades como inerentes à
constituição social, o capital ocupa a política e busca silenciar as vozes dissonantes que se
contrapõem à lógica hegemônica. Estas vozes denunciam que a história não está determinada,
e que é, portanto, forjada pelos homens e mulheres que se fazem sujeitos na permanente postura
de inconformidade com a realidade que os constituem.
As últimas décadas têm sido expressivas destas vozes, a exemplo dos movimentos de
luta pela terra - o movimento dos camponeses no Brasil, os quais insurgem fortemente nas
décadas de 1980/1990, dentro de um cenário que se anunciava complexo e desafiador, tanto
pelo fortalecimento da presença do grande capital no Campo, como pelas rápidas mudanças que
passaram a ser vivenciadas no mundo da produção agrícola, somadas e potencializadas pelos
avanços na ciência e na tecnologia, sobremaneira, no âmbito dos meios da produção de
alimentos e das tecnologias da informação e comunicação (TIC), alterando o Campo em todos
os âmbitos da vida. Para Vendramini (2015, p. 50), a presença de elementos “na conjuntura do
capitalismo global com novas modalidades de acumulação, mudaram a questão agrária centrada
em parcerias nacionais de desenvolvimento do capitalismo no Campo e sua contribuição para
a industrialização”.
No contexto destas mudanças, ganha lugar expressivo o fortalecimento do agronegócio5
que tem mudado suas táticas de avançar no Campo brasileiro e suprimir dos trabalhadores a
capacidade de produzir em suas terras e nelas viverem com dignidade. Uma das estratégias do
setor tem sido a fusão de grandes empresas para maior controle da produção e comércio, a
exemplo da compra, pela Bayer (farmacêutica e companhia de produtos químicos alemã), no
ano de 2016, por US$ 66 bilhões, da norte-americana Monsanto, líder mundial de herbicidas e
do setor de sementes transgênicas de milho, trigo e soja. As duas empresas, juntas, passaram a
5 Fernandes (2004, p. 4) define que o “[...] agronegócio é, portanto, o novo nome do modelo de desenvolvimento
econômico desse conjunto de sistemas que contém, inclusive a agropecuária capitalista. Esse modelo não é novo,
sua origem está no sistema plantation, em que grandes propriedades são utilizadas na produção para exportação
[...] O conceito de agronegócio é também uma construção ideológica para tentar mudar a imagem latifundista da
agricultura capitalista.
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dominar cerca de um quarto do mercado mundial combinado para sementes e pesticidas,
controlando 28% das vendas de herbicidas, segundo destacou o The Wall Street Journal, de 16
de setembro de 2016. Como afirma Vendramini (2015, p. 50), “a agricultura tornou-se central
na financeirização da economia em âmbito mundial”. A autora ainda afirma que,
Há uma motivação do agronegócio e do setor financeiro para fusões, compras
e arrendamentos de terras, dadas a lucrativa produção e a especulação no valor
dos recursos naturais dos produtos e da terra. O Estado tem papel vital em
tornar a terra disponível para corporações domésticas ou estrangeiras, visando
ocupá-la com agricultura, indústria, residência, comércio, extração de
recursos e projetos de infraestrutura. Também persiste a força como meio de
criação e reprodução do mundo capitalista, para a abertura de oportunidades
para o acesso ao mercado, a negócios, investimento e extração de recursos
(VENDRAMINI, 2015, p. 50).
Comandado por grandes grupos econômicos e transnacionais, o agronegócio controla
as determinações sobre os preços dos insumos e produtos, desde sobre o quê, quando, onde
produzir e comercializar, assegurando a consolidação de estratégias do mercado internacional.
Sua expansão tem agravado a violência no Campo, precarizando ainda mais as relações de
trabalho, a rotatividade no emprego e a flexibilização de direitos, alargando as desigualdades.
Destaca-se aí a concentração fundiária, que tem resultado na expulsão dos Camponeses de suas
terras, inclusive com reforço do Estado Brasileiro que, por meio de alianças com os grandes
latifundiários, tem reforçado o financiamento ao agronegócio e ameaçado retirar as
comunidades tradicionais (quilombolas e indígenas) de seus territórios. Desde que a
regularização fundiária das terras das comunidades tradicionais teve início, no ano de 1995, o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) registrou, até o ano de 2017,
220 territórios titulados e 1.563 em processo de regularização. No governo de Michel Temer,
tendo em vista as pressões da bancada ruralista no Congresso Nacional, houve uma queda
significativa nos recursos para a demarcação de terras tradicionais, que, segundo o site da BBC
Brasil, em reportagem publicada em abril de 2017, foi o menor volume destinado a esta
atividade desde o ano de 2009, dando maior lentidão aos processos de regularização. Aliado a
esse fato, temos o quadro da não universalização de políticas básicas como energia, água,
saneamento, saúde, educação; o fechamento massivo de escolas e os limites historicamente
impostos ao acesso às tecnologias da informação e comunicação, e que têm sido expressivos
reforçadores da exclusão econômico-cultural nas áreas rurais brasileiras.
Segundo Fernandes (2006), “no Campo, os territórios do campesinato e do agronegócio
são organizados de formas distintas, a partir de diferentes classes e relações sociais” (p. 29),
porque sobre eles circulam interesses também distintos, que representam modelos de sociedade
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contrapostos. A mercadoria é a marca do território do agronegócio e, por isso, “a composição
uniforme e geométrica da monocultura é caracterizada pela pouca presença de gente no
território, porque sua área está ocupada pela mercadoria, que predomina na paisagem”
(FERNANDES, 2006, p. 3). O território Camponês, por sua vez, caracteriza-se pela
diversidade, pela presença das pessoas que lá organizam e produzem a vida em múltiplas
dimensões.
A constituição distinta, território Camponês e território do agronegócio, para Fernandes
(2006, p. 4), explicita a “conflitualidade entre os diferentes territórios das classes sociais que
ocupam o Campo como espaço de vida e de produção de mercadorias”. O Campo brasileiro se
constitui, portanto, território disputado. Mais claramente, de um lado os povos que defendem
outro modo de produção da vida, as terras e águas como bem natural indispensável para o
equilíbrio da vida no Campo e no planeta; do outro, as elites econômicas que disputam estes
mesmos bens para acumular lucros e gerar riquezas para si, transformando a vida em
mercadoria de menor valor. Para Fernandes (2008),
[..] temos então uma disputa territorial entre capital e campesinato. As
propriedades Camponesas e as capitalistas são territórios distintos, são
totalidades diferenciadas, onde se produzem relações sociais diferentes, que
promovem modelos divergentes de desenvolvimento. Territórios Camponeses
e territórios capitalistas como diferentes formas de propriedades privadas
disputam o território nacional. (p. 4)
Sabendo disso, tem-se a clareza de que não apenas as terras, as águas e a produção de
alimentos estão em disputa no Campo brasileiro. A Educação, o conhecimento, a escola também
são territórios disputados e, por esta razão, Caldart (2009) nos lembra que “a Educação do
Campo não pode ser compreendida em si mesma, ou apenas desde o mundo da educação ou
desde os parâmetros teóricos da pedagogia. Ela é um movimento real de combate ao ‘atual
estado de coisas” (p. 40), impondo novos desafios para as lutas dos movimentos sociais do
Campo.
No conjunto dos desafios, se colocou a necessidade de assegurar, na agenda de luta, a
reivindicação pelo acesso ao conhecimento acumulado e aos bens culturais produzidos pela
humanidade, como indispensáveis na criação de estratégias de contraposição à expansão
vertiginosa do capital, de modo a garantir, para a classe trabalhadora do Campo, maiores
possibilidades de concretizar um projeto de Campo e de sociedade justo e emancipador. Desse
modo, a Educação do Campo se lança na contramão do que foi a educação rural.
Marcada por um modelo de escola que mais serviu para manter as desigualdades e a
marginalização dos sujeitos do Campo, do que para superá-las, a escola rural pautou-se em um
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perfil de educação sustentado na perspectiva universalista de um tipo de conhecimento (de base
euro, etno e urbanocêntrico), forjado na pretensa ideia de abarcar todas as culturas, realidades
e saberes, sob uma falsa camada de neutralidade e verdade que se colocaram como
inquestionáveis por muito tempo. Um saber descomprometido com a realidade das lutas diárias
e acessível de forma fragmentada, fria e pouco aprofundada. Nas escolas do Campo, esse
contexto se agravou ainda mais, pela ausência e/ou precárias condições da formação docente e
das estruturas escolares.
O resultado foi um processo educativo alheio ao contexto real das condições históricas
e culturais que configuram os modos de vida no Campo e dos saberes constituídos nas tradições
e cultura camponesas, legitimando o espaço rural brasileiro como lugar de menor valor, oposto,
portanto, à cidade, historicamente entendida como locus do desenvolvimento e das prioridades.
A Educação do Campo se sustenta na perspectiva de uma educação para a formação humana
(que é, ao mesmo tempo, base e horizonte) do processo educativo. Parte do pressuposto de que
o acesso ao patrimônio material e cultural acumulado permitirá um ato formativo no qual os
sujeitos serão capazes de sair do senso comum para alcançar uma consciência mais elaborada
de si e de mundo.
Pautar uma educação que reconheça os diferentes espaços formativos dos sujeitos, e
mais, que se propõe a ser constituinte de um outro projeto de Campo requereu, primeiramente,
a afirmação do Campo como locus de vida e não apenas da produção para o consumo e o lucro.
Essa compreensão exige não perder de vista que há, indiscutivelmente, dois grandes projetos
de Campo em disputa: um da classe trabalhadora e outro das forças conservadoras do capital.
É importante ter a clareza de que este embate tem consequências sobre a realidade educacional
em todas as esferas, inclusive escolar. Caldart (2009) afirma que a Educação do Campo não é
uma proposta de educação, mas é, sim, a crítica a uma concepção de educação (e de Campo)
que sinaliza a necessidade de uma outra percepção de escola, de educação, de conhecimento,
que oriente a formação escolar dos povos do Campo. Uma visão de educação que nasce de uma
outra concepção de Campo e, sobretudo, dos seus sujeitos (quem são, o que significam, que
lugar ocupam). Por esta razão, tratamos da Educação Do Campo e não apenas NO ou PARA o
Campo.
Nesse sentido, a Educação do Campo se confronta com a “Educação Rural”, mas não se
configura como uma “Educação Rural Alternativa”: não visa a uma ação em paralelo, mas sim
à disputa de projetos, no terreno vivo das contradições em que essa disputa ocorre. Uma disputa
que é de projeto societário e de projeto educativo (CALDART, et al. 2012, p. 14). Molina (2011,
p. 17) reafirma que, como parte de um projeto maior da classe trabalhadora, cabe à escola do
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40
Campo desenvolver uma “prática educativa que efetivamente fortaleça os Camponeses para as
lutas principais, no bojo da constituição histórica dos movimentos de resistência à expansão
capitalista em seus territórios”. Essa afirmação expressa que os movimentos Camponeses estão
cientes do contexto socioeconômico e político mundial; do avanço das forças conservadoras e
do acirramento da crise do capital e de como isso tem provocado mudanças nos modos de
produção da vida, não apenas na economia, mas em todas os setores, alcançando também o
Campo. Segundo Araújo (2007),
[...] vive-se sob a égide do neoliberalismo, cujos fundamentos são a
desregulação da economia, a privatização dos serviços públicos e os cortes
orçamentários, a implantação do Estado mínimo. O modelo econômico
neoliberal como proposta de reorganização da sociedade, em função do livre
mercado a serviço do capital, deixa entregues ao mercantilismo os direitos
sociais básicos como: saúde, educação, a própria vida humana, enfim. (p. 20-
21)
Desse modo, por meio das forças do Estado, o capital vai legitimando seus interesses
que, materializados na retirada de direitos, via um conjunto de reformas, legitima o avanço das
políticas neoliberais e minimiza o papel do Estado no provimento dos direitos básicos. Tudo
isso ocorre de forma bem orquestrada em discursos que se propõem a convencer à população
do que deve ou não apoiar, tendo como aliado os meios de comunicação de massa e a
potencialidade avassaladora das tecnologias digitais, e que se utilizam da manipulação de
informação e de ideias conservadores, provocando o que Santomé (2003) denomina como
“pânico moral” na sociedade, que se vê atemorizada diante de crises político-econômicas, as
quais essa sociedade sequer compreende a fundo, e passa a aprovar, sem consciência crítica,
uma série de retrocessos “a fim de tentar recuperar modos de condutas típicos de um passado
totalmente idealizado e inexistente” (SANTOMÉ, 2003, p. 34), insistentemente apregoado pela
grande mídia, sobretudo, a televisiva.
É importante compreender que no centro das investidas do capital estão as estratégias
de intervenção nos processos educativos, na formação de valores, na intervenção na cultura e
difusão de princípios que regem as relações humanas, com fins óbvios de limitar as condições
de a população apreender os fundamentos, efeitos e propósitos das mudanças, para que, sem
capacidade de análises mais profundas, possa apoiá-las, legitimá-las ou não as questionar.
Santomé (2003) faz a seguinte análise:
As contrarreformas aplicadas pela direita política depois de recuperar o governo de um
país – por exemplo, os conservadores do Reino Unido depois dos trabalhistas, o Partido Popular
da Espanha depois dos socialistas, etc. – caracterizam-se pela reestruturação e modelos
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educativos conservadores, que em muitos países anglófonos e anglófilos são rotulados como
“movimento de volta ao básico”. Essa linha conservadora baseia-se nesse mar de lamentações
que exige mais disciplinas nas instituições e salas de aula, e que insiste na aprendizagem de
conteúdos culturais reinterpretados a partir de concepções muito tradicionais do saber, em
grande parte para tentar construir identidades pessoais que não questionem velhos e classistas
modelos de sociedade. (p. 28)
O alerta de Santomé tem uma importante atualidade no contexto brasileiro,
considerando as ‘reformas’ propostas para a Educação, especialmente, pós saída da Presidente
Dilma Rousseff e ascensão de Michel Temer à presidência, em novembro de 2016, as quais
trouxeram pautas polêmicas como a constituição de uma Base Nacional Comum Curricular
(levada a cabo por um conjunto de empresas e fundações privadas), homologada no final de
2017, a proposta do encurtamento do período de alfabetização das crianças para o segundo ano
do Ensino Fundamental; a reforma do Ensino Médio (através de Medida Provisória), com a mal
intencionada ‘flexibilização’ do currículo, onde parte das disciplinas passa a ser optativa e os
objetivos da educação se resumem à formação de competências para o mercado. Todas estas
contrarreformas expressaram a clara intenção de esvaziar os processos formativos escolares e
acelerar a inserção dos jovens no mercado de trabalho, sem condições teóricas de fazerem
análises históricas mais aprofundadas.
A complexidade da contemporaneidade e a multiplicidade de elementos que nela se
entrecruzam vêm provocando os movimentos e organizações do Campo a qualificarem os
processos de formação dentro dos próprios movimentos, sindicatos e também na escola. Em
setembro de 2016, em uma mesa de diálogo com o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra (MST), defendemos que precisamos, como condição de luta, ampliar e assegurar, nas
nossas escolas, o acesso ao conhecimento cultural, artístico, tecnológico, científico que a
humanidade vem produzindo e, tudo isso, sem perder de vista as questões da labuta diária, as
condições objetivas nas quais a vida se tece.
Ou seja, não podemos abrir mão do conhecimento histórico, tampouco tratá-lo sem que
seja na relação com as questões que perpassam a vida concreta, com suas demandas imediatas.
Isso quer dizer que é preciso ter vários tipos de conhecimento transitando ao longo do percurso
formativo escolar e estes devem dialogar entre si, numa perspectiva interdependente. Para tanto,
é preciso superar a oposição conhecimento científico e conhecimento produto das práticas
vividas, enxergando que tal separação só interessa ao capitalismo e à sua lógica de
fragmentação do pensamento e empobrecimento dos processos formativos, que limitam
drasticamente a capacidade de compreender a realidade na sua complexidade e dialética.
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As análises conduziram o debate inicial da Educação do Campo a uma inevitável
comparação destes elementos, os quais deflagraram contrastes alarmantes entre o Campo e a
cidade, bem como um quadro inquestionável de desigualdades, que se ampliou no decorrer da
história do país. No entanto, é desafio permanente superar a dualidade que coloca em Campo s
opostos o rural e o urbano, o Campo e a cidade).
A superação da histórica oposição Campo-cidade; rural-urbano, local-global; particular-
universal, tem gerado distintos debates na Educação do Campo, sobretudo por requerer clareza
de que o reforço desta separação tem servido para fragmentar as lutas sociais, “naturalizar e
legitimar relações de força, as relações de dominação que exercem determinados grupos sociais
sobre outros” (VARELA, 2002, p. 93), impedindo a unidade da classe trabalhadora para a
construção das condições de um outro modelo de sociedade. Na contraposição dessa lógica, a
Educação do Campo tem reconhecido e defendido o lugar de outros conhecimentos (inclusive
daqueles constituídos no cotidiano), como importantes no processo de formação humana,
questionando, portanto, o modelo hegemônico que excluiu do currículo escolar todas as formas
de saberes construídas para além da lógica científica positivista. Há ainda outros tipos de
conhecimentos, no campo das artes, da cultura, das tecnologias, por exemplo, que
historicamente foram negados aos povos do Campo como se fossem dispensáveis à sua
formação.
A problemática que envolve as lutas diárias dos Camponeses exige uma compreensão
de totalidade e do conjunto das contradições que perpassam a organização da vida no contexto
do capitalismo e das disputas que nele se expressam. Estas contradições se evidenciam nas lutas
enfrentadas diariamente, no chão das comunidades, dos acampamentos e assentamentos e se
inserem em um contexto macro de outras relações que nem sempre reconhecemos, mas que
condicionam o cotidiano.
A tomada de posição dos movimentos sociais do Campo, ao reivindicarem uma
educação a partir de seus modos de vida, pode ser datada desde os anos de 1990, quando o lugar
do rural no projeto brasileiro passa a ser questionado pelos Camponeses organizados, tendo,
como elementos principais, o direito à terra e os graves indicadores sociais gerados pela
ausência do Estado. Como um fenômeno da realidade brasileira atual, como destacam Caldart
et al. (2012), a Educação do Campo “não pode ser apreendida senão no seu movimento real,
que implica um conjunto articulado de relações (fundamentalmente contradições) que a
constituem como prática/projeto/política de educação e cujo sujeito é a classe trabalhadora do
Campo ” (p. 14).
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A Educação do Campo se constitui no confronto direto de projetos societários e de
projetos educativos. Nasce no contexto da luta pela terra e reivindica uma educação que
fortaleça essa luta. Nascida na disputa por um outro projeto societário, como diz D´Agostini
(2012), sua concepção requer superar o aprendizado mecânico dos conteúdos isolados e as
ações empiristas e despolitizadas, como foram as desenvolvidas pela pedagogia rural, sendo
necessário voltar-se aos interesses dos trabalhadores. Tais interesses se articulam a outras lutas
sociais que se dão no confronto ao projeto capitalista que, no Campo, se expressa pelo latifúndio
e pelo modelo de agricultura baseado no negócio - o agronegócio. Daí se afirmar que a
Educação do Campo é luta de classes.
No Encontro Estadual de Formação de Educadores do MST, destacamos que, talvez, o
grande desafio para a Educação do Campo, independentemente de onde ela ocorre, nos
assentamentos ou nos outros espaços escolares da rede pública, seja fazer das escolas do Campo
centros de produção do melhor e mais qualificado conhecimento. Centros de ampliação do
universo cultural e de formação humana, onde as crianças, jovens e adultos possam ter
aumentadas suas capacidades de ser, de ver, de sentir, de interagir socialmente, de produzir e
de lutar pela vida. Não uma luta pela sobrevivência, mas pela vida em toda sua plenitude. Para
isso, é preciso abrir um canal de interdependência entre os saberes tácitos e aquilo que
cientificamente já foi e está sendo produzido, e com outros saberes sequer reconhecidos. Para
Da Mata (2012):
Para transformar a sociedade é necessário, dentre outros elementos, diminuir
a fronteira do conhecimento entre as classes. A classe trabalhadora é oprimida
pela classe possuidora dos meios de produção não só materialmente, mas
também e fundamentalmente submissa e inerte culturalmente. Sem o
conhecimento teórico não há domínio teórico e, sem domínio teórico, não há
possibilidade de a classe trabalhadora superar o domínio ideológico da classe
dominante. (p. 61)
Quando a classe dominante detém sozinha o domínio dos conhecimentos técnicos,
científicos, filosóficos, “a tendência deverá ser a continuidade da centralização das decisões, da
dominação, da implementação dos métodos de comando, e não de libertação da classe
trabalhadora” (SILVA, et al., 2010, p. 160-161). Por esta razão, é preciso que os trabalhadores
e trabalhadoras, desde cedo, se apropriem de tais conhecimentos para terem ampliadas as
condições de participação nas lutas coletivas e no processo de transformação social. Tomando
como referência as palavras de Saviani (1994),
O trabalhador não pode ter meio de produção, não pode deter o saber, ele
também não pode produzir, porque para transformar a matéria precisa dominar
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algum tipo de saber. Sim, é preciso, mas ‘em doses homeopáticas’, apenas
aquele mínimo para poder operar a produção. [...]. É dessa forma que se
contorna a contradição. O trabalhador domina algum tipo de saber, mas não
aquele saber que é força produtiva, porque a produção moderna coletivizou o
trabalho e isso implica em conhecimento do conjunto do processo,
conhecimento esse que é privativo dos grupos dirigentes (p. 161).
Nessa mesma direção, Ivo Tonet (2006, p. 3), tomando como base os fundamentos onto-
metodológicos de Marx, diz que a formação humana se constitui do “processo de o indivíduo
singular se tornar membro do gênero humano”, se apropriando “do patrimônio material e
espiritual acumulado pela humanidade em cada momento histórico” (TONET, 2006, p. 3).
Tendo essa afirmativa como premissa, a formação humana na Educação do Campo implica o
desafio de criar canais para os Camponeses dialogarem com a complexidade que constitui a
sociedade e suas relações, incluindo aí as velozes transformações que lhes são próprias e
desafiam nossa capacidade de fazer análises mais profundas em um tempo que é atravessado
por múltiplas linguagens que se misturam na difusão de um quantitativo excedente de
informações. São, também, muitos elementos contraditórios, avanços e retrocessos marcantes
que impedem de enxergar com clareza as origens e os rumos das mudanças e a diversificação
das formas de opressão/dominação.
O fluxo das informações nas redes sociais, por exemplo, pode ser compreendido a partir
de vieses distintos. Ora pelo caráter emancipador, por disponibilizar informações que geram o
debate público (transpondo o monopólio da grande mídia televisiva e impressa) e assumem o
papel de apontar que há outros pontos da verdade ou, até mesmo, outras verdades sobre o
mesmo ponto a serem analisadas; ora também pode ser utilizado para cooptar mentalidades e
opiniões, com um conjunto de falsas verdades que circulam em alta velocidade e com grande
alcance populacional e geográfico, confundindo visões e formando opiniões que atendam aos
interesses de uma hegemonia econômica, política e cultural que também domina a internet e
seus canais e modos de acesso. Marcuse (1999) retoma bem esta relação quando diz que
A tecnologia, como modo de produção, como totalidade de instrumentos,
dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao
mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações
sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento
dominantes, um instrumento de controle e dominação (p. 73).
É consenso que o avanço das tecnologias da comunicação e informação na era digital
instalou uma cultura comunicacional-formativa que tem alterado o conceito tempo-espaço
(cronológico e territorial), forjou outros modos de produção e socialização do conhecimento,
diversificou as estratégias de mercado, os formatos da comunicação individual e coletiva,
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provocando desenhos educativos que se configuram em novos e complexos desenhos sociais.
São, portanto, “arranjos inovadores de compartilhamento e colaboração típicos dos coletivos
conectados pela internet” (CARVALHO JÚNIOR, 2009, p. 9).
As tecnologias digitais da informação e comunicação (TIC) alteraram as formas e
formatos das relações, encurtaram distâncias, mudaram a velocidade e a intensidade do acesso
à informação, bem como aos modos de comunicação, que se tornaram mais intensos e
permanentes. Segundo a Pesquisa TIC Domicílios, divulgada em agosto de 20196, 70% da
população brasileira tinha acesso à internet em 2018, sendo o celular o meio mais utilizado para
este fim, por 97% dos usuários. Na área urbana, 74% tem conexão à internet, nas áreas rurais,
o número cai para 49%. Nas camadas mais pobres de toda a população (classes D e E), 48%
estão conectados à rede, embora o número de domicílios sem acesso à conexão em todo o país,
seja de 46,5 milhões.
A pesquisa mostrou que o uso do computador para acessar a internet caiu de 51%, em
2017, para 43%, em 2018. Em 2014, 80% da população se conectava à internet via computador.
Ganha destaque, na pesquisa, o fato de que 77% das conexões de internet, nas áreas rurais,
ocorre por via do celular, exclusivamente, apenas 20% usam celular e computador, apontando
que as políticas públicas de acesso à informação e comunicação também não chegaram,
efetivamente, ao Campo. A Pesquisa TIC Domicílios também revelou que 43% das escolas
rurais ainda não têm acesso à internet. Entre a população com renda de até um salário-mínimo,
78% usam o celular como meio exclusivo de acesso à internet. Um dos dados que chama a
atenção é que 80% dos usuários dizem utilizar a internet todo os dias, para várias atividades.
Nas classes D e E, 78% fazem uso diário, sendo que a troca de mensagens em redes sociais é,
para estas classes, a atividade mais presente. Como diz Santaella (2010, p. 18), “o que
impressiona não é tanto a novidade do fenômeno, mas o ritmo acelerado das mudanças
tecnológicas e os consequentes impactos psíquicos, culturais, científicos e educacionais” que a
velocidade destas mudanças causa. Há, portanto, outros modos de estabelecer relações sociais,
econômicas, produtivas que vão moldando “novas formas de sociabilidade” (LEMOS, 2002),
ainda que sob as mesmas bases da divisão de classe e da hegemonia do capital.
No sentido das mudanças culturais em torno do acesso ao conhecimento e das relações
humanas, é possível afirmar que as redes sociais e os grupos presentes em aplicativos para troca
de mensagens instantâneas, por meio de uma conexão à internet, tais como o WhatsApp,
6 Disponível em https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/08/28/uso-da-internet-no-brasil-cresce-
e-70percent-da-populacao-esta-conectada.ghtml. Acesso em: 20 mar. 2020.
https://g1.