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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA
BRUNA MENDES DE FAVA
VALORES SOCIAIS NA MESA: COMIDA COTIDIANA E FESTIVA EM VILA
BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE
CUIABÁ
2015
BRUNA MENDES DE FAVA
VALORES SOCIAIS NA MESA: COMIDA COTIDIANA E FESTIVA EM VILA
BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea,
da Universidade de Mato Grosso, como requisito
parcial para qualificação em Estudos de Cultura
Contemporânea na Área de Concentração Estudos
Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa:
Epistemes Contemporâneas.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo.
CUIABÁ
2015
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Profa. Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo / UFMT
(Orientadora e Presidente da Banca)
____________________________________________________
Prof. Dr. Eneus Trindade Barreto Filho / USP
(Examinador Externo)
____________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Leite / UFMT
(Examinadora Interna)
___________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Xavier UFMT
(Suplente)
CUIABÁ
2015
Dedico este trabalho aos moradores de Vila Bela da Santíssima
Trindade pela hospitalidade, colaboração e atenção que
dedicaram para a realização da pesquisa e a minha família e
amigos, que fazem dos meus dias mais felizes e coloridos.
AGRADECIMENTOS
O Estudo da culinária na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade não teria acontecido
sem o auxílio dos moradores do local, que foram essenciais para a aquisição das informações
fundamentais para a constituição deste trabalho. Por isso manifesto minha alegria de ter
realizado essa pesquisa e apresentar meus agradecimentos aos moradores de Vila Bela, que
direta ou indiretamente, ajudaram-me na coleta de dados, e aos que me receberam de “portas
abertas” na cidade, quer fosse para hospedagem, festança, entrevista ou para uma conversa
sobre o município. Obrigada a todos!
A professora Maria Thereza Azevedo por inspirar-me a busca da arte e do conhecimento
durante suas disciplinas, e também por sua sensibilidade e empatia na orientação deste
trabalho. Obrigada, professora!
Aos professores da banca examinadora desta dissertação e aos professores da Pós-
Graduação/Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea–UFMT, por terem me instigado
a estudar o universo dos estudos de cultura e da realidade contemporânea.
Ao suporte dado pela secretaria de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea-
UFMT, assim como pela atenção, auxílio e delicadeza.
Aos meus familiares e amigos que sempre me deram o apoio emocional, força e equilíbrio
para seguir adiante e realizar essa pesquisa. Muito obrigada a todos! Amo vocês.
Aos colegas da Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea UFMT pela parceria e
apoio, além dos estudos em grupo e troca de informações.
Aos meus pais e irmã pelo apoio, carinho e paciência que me impulsionaram e estimularam
em todo o processo de mestrado.
Meus verdadeiros agradecimentos!
“Vivo dentro de uma teia de relações humanas, de meu clube de
xadrez até os Estados Unidos da América, que são também
ordenadas por meio do vocabulário. Desta maneira a linguagem
marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta
vida de objetos dotados de significação” (BERGUER;
LUCKMANN, 2004, p. 38-39).
RESUMO
O objetivo deste trabalho é compreender como a culinária e os hábitos alimentares revelam
os valores sociais na comunidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso. Com
essa finalidade, foram realizados estudos bibliográficos e visitas de campo ao município
durante as festas de santos, no mês de julho, para observar a comida festiva, e em dezembro,
para verificar a comida cotidiana. Foram entrevistadas oito mulheres que cozinham em suas
casas no dia a dia e nove mulheres que são cozinheiras da festa. Vila Bela da Santíssima
Trindade foi escolhida por ser composta, em sua maioria, por descendentes de negros
escravizados, com história única em termos de ocupação e desenvolvimento. Os principais
autores utilizados nos estudos teóricos foram Câmara Cascudo, sobre a história da
alimentação brasileira, Machado Pais, com a sociologia do cotidiano, e McCracken, Linares e
Trindade, Miller, Barbosa, Douglas e Isherwood, com a sociologia do consumo. O estudo do
consumo alimentar dos vilabelenses foi estudado a partir das compras cotidianas e festivas e
nas escolhas individuais e coletivas, reflexos identitários da comunidade. Também foi
examinado como a comida da comunidade expressa os valores sociais e relações de poder,
verificando o que a alimentação diz de seu povo. As entrevistas e as observações realizadas
permitiram compreender a relação existente entre a comida e a cultura da população, na qual
subsiste elementos históricos que justificam a utilização de determinados ingredientes,
receitas e pratos típicos da comunidade. A culinária e os hábitos alimentares revelam valores
sociais e ao mesmo tempo exprimem suas relações de poder e hierarquias marcadas nos
modos de servir da festa.
Palavras-chaves: Culinária. Vila Bela da Santíssima Trindade. Valores Sociais.
ABSTRACT
How the cooking and eating habits reveal social values in the community of Vila Bela da
Santíssima Trindade, Mato Grosso is the question that guides this work. On this research
bibliographical studies were done and visits during the saints parties in July to watch the
festive food, and in December to observe the everyday food. Eight women were interviewed
cooking in their homes on a daily basis and also eight women who are party cooks. Vila Bela
in Mato Grosso was chosen because it is in the majority composed by descendants of African
slaves, with unique history in terms of occupation and development. The main authors of the
theoretical studies were Cascudo on the history of Brazilian food, Machado Pais with the
sociology of everyday life and McCracken, Linares e Trindade, Miller, Barbosa, Douglas and
Isherwood with the sociology of consumption. The study of vilabelenses food consumption
was also studied, from the everyday and festive shopping and individual and collective
choices, identity reflections of the community. It is also observed how the food of the
community expressed the social values and power relations, checking that the power says of
his people. Interviews and observations allowed us to understand the relationship between
food and culture of the population, existing historical elements that justify the use of certain
ingredients, dishes and community income. The cooking and eating habits reveal social values
and at the same time express their power relations and hierarchies that can be look in the ways
of serving the party.
Keywords: Food. Vila Bela da Santíssima Trindade. Social Values.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE, COTIDIANO,
CULINÁRIA E CONSUMO ............................................................................................... 19
1.1 VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE ................................................................ 19
1.1 COTIDIANO .................................................................................................................... 24
1.2 CULINÁRIA ..................................................................................................................... 29
1.3 CONSUMO ....................................................................................................................... 36
CAPÍTULO 2 – COMIDA ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA ................................. 43
2.1 O QUE SE COME NO DIA A DIA EM VILA BELA? ............................................. 43
2.2 VOCÊS TÊM FOME DE QUÊ? ....................................................................................... 54
2.3 CONSTRUÇÃO DA REALIDADE NA COZINHA PASSADA DE GERAÇÃO À
GERAÇÃO ............................................................................................................................. 56
2.4 QUAL É A COMIDA EXTRAORDINÁRIA? ................................................................ 62
2.5 QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE A COMIDA COTIDIANA E FESTIVA? .............. 68
CAPÍTULO 3 – REFLEXOS IDENTITÁRIOS E SENTIMENTOS EXPRESSOS NAS
COMPRAS ORDINÁRIAS E EXTRAORDINÁRIAS ......................................................71
3.1 COM QUE FREQUÊNCIA VÃO AO MERCADO? ....................................................... 71
3.2 QUEM FAZ AS COMPRAS? .......................................................................................... 72
3.3 PRESENTES: LEGITIMAÇÃO DO AMOR ATRAVÉS DA COMPRA DE AGRADOS
ALIMENTÍCIOS .................................................................................................................... 75
3.4 VOCÊS FAZEM ECONOMIA? ....................................................................................... 77
3.5 PARTICULARIDADES ALIMENTARES NAS COMPRAS DOS VILABELENSE
.................................................................................................................................................. 80
3.6 COMPRAS E PREOCUPAÇÃO COM A SAÚDE ......................................................... 82
3.7 QUAIS OS VALORES SOCIAIS EXPRESSOS NAS AQUISIÇÕES DE COMPRAS
FESTIVAS? ............................................................................................................................ 83
3.8 COMPRAS COTIDIANAS E FESTIVAS ....................................................................... 84
CAPÍTULO 4 – VALORES NA MESA: COMIDA COMO EXPRESSÃO DOS
VALORES SOCIAIS ............................................................................................................ 87
4.1 SACRIFÍCIO E DEVOÇÃO ............................................................................................ 87
4.2 O AMOR PELA COZINHA ............................................................................................. 89
4.3 MODERNIDADE ............................................................................................................. 94
4.4 SAÚDE ............................................................................................................................. 91
4.5 NEGRITUDE .................................................................................................................. 101
4.6 HIERARQUIAS SOCIAIS E RELAÇÕES DE PODER ............................................... 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 108
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 113
10
INTRODUÇÃO
“Vale mais ter chaves do nada ou uma fechadura
sem chave, um enigma de abertura?” (PAIS, 2002,
p. 24).
Este trabalho é sobre o consumo alimentar de moradores de Vila Bela da Santíssima
Trindade (MT) em dois momentos: nas festas de santo que ocorrem em julho e no dia a dia da
comunidade. Para a pesquisa, foi necessário utilizar estudos de áreas distintas, como, por
exemplo, o estudo da sociologia do cotidiano, focando a cozinha como símbolo sociocultural
e o consumo em uma perspectiva sociológica.
A sociologia do cotidiano tem por objetivo trazer uma nova proposta de análise e
pesquisa, vislumbrando identificar, nas observações e interações etnográficas, estranhamentos
que estão nas entrelinhas das relações sociais e enxergar o que não pode ser visto sem um
olhar sociológico acurado e sensível às minúcias que muitas vezes passam despercebidas.
O objetivo principal foi compreender como a culinária, os hábitos alimentares e o
universo que circunda a comida da comunidade de Vila Bela revelam seus valores sociais e o
consumo alimentar na época festiva e no dia a dia.
Os hábitos alimentares, os utensílios de preparo, as dinâmicas de compra permitem um
entendimento acerca da cultura dos vilabelenses. Deste modo, recorri às teorias da
antropologia da alimentação e dos estudos de consumo para compreender as dinâmicas sociais
e seus valores nos aspectos de reprodução e transformação cultural.
Outros objetivos relacionam-se ao principal: quais são as semelhanças e diferenças da
comida cotidiana para a comida servida na festança? O que os alimentos que vão à mesa na
casa das pessoas e na festa expressam de sua comunidade? Quem escolhe o que comprar?
Quais as diferenças das compras do dia a dia para as compras festivas? Quais os valores
sociais expressos no consumo?
Com o intuito de responder essas questões, fui a campo para examinar a comunidade
na época festiva e também no seu dia-a-dia. A primeira visita à Vila Bela ocorreu em Julho de
2013, período em que conheci a cidade e tive o primeiro contato com os moradores locais.
Como era época da festança,1 realizei observações das manifestações culturais inseridas na
Festa do Divino Espírito Santo e São Benedito.
1 Festança é o termo utilizado pela população vilabelense para nomear o conjunto de festas de santos que ocorre
anualmente no mês de julho. A festança é composta de três grandes festas em homenagem a São Benedito,
Divino Espirito Santo e Três Pessoas da Santíssima Trindade.
11
Na Festa do Divino é comemorada a devoção ao Espírito Santo por meio das ladainhas
nas Rezas Cantadas, da esmola ao santo recolhida pelo Imperador e pela Imperatriz, que é a
forma de tratamento criada pela comunidade para homenagear os festeiros que organizam a
festa. Os festeiros são sorteados pela comunidade para organizar a festa do próximo ano.
As representações dessa festa revestem-se de delicados simbolismos, onde estão
marcadas a devoção e a criatividade dos devotos, que além do culto ao Senhor
Divino, têm como personagens principais o festeiro ou Imperador, festeira ou
Imperatriz, cantores e músicos da Alvorada, Folia do Divino, promesseiros e
promesseiras (MOURA, 2005, p. 127).
A autora faz uma ressalva, destacando que o Imperador e a Imperatriz, em algumas
situações, podem ser indicados pela organização religiosa, que é denominada Irmandade, sem
a necessidade de passar por sorteio. De acordo com Moura (2005), essas exceções ocorrem
quando a irmandade realiza alguma promessa ao sagrado.
No ritual de abertura, os festeiros levam a bandeira, o mastro e a pomba na
arrecadação de dinheiro e distribuição da graça na casa das pessoas. Esses elementos
constituem o universo simbólico da festa do Divino Espírito Santo.
Os festeiros, ou seja, o Imperador, a Imperatriz, o Capitão do Mastro, o Alferes da
Bandeira, são escolhidos por sorteio, organizado e direcionado pela Irmandade do
Divino Espírito Santo. Durante todo o período em que estes realizam as visitas,
pelas rezas e a liturgia do dia da festa. [...] Devem ainda, providenciar os fogos de
artifício, o levantamento do mastro, o vestuário dos Foliões, a preparação e
distribuição dos biscoitos, bebidas após as rezas e os banquetes coletivos nos dias da
festa do santo (MOURA, 2005, p. 131).
Na Festa de São Benedito ocorrem as manifestações culturais da Dança do Chorado e
do ritual do Congo. Ambos os rituais têm um enredo repleto de sistemas simbólicos e história.
Mas em que consiste o sistema simbólico?
Aquele formado pelo conjunto de códigos onde ha uma relação direta entre
significante e significado, ou seja, entre plano de expressão e plano de conteúdo. [...]
E como o significado e convencionado, sua leitura e possível apenas para quem
detem o conhecimento do código. O exemplo mais classico e os das cores do
semáforo (RAMALHO; OLIVEIRA, 1998, p. 52).
A dança do chorado remete ao período escravocrata, no qual as mulheres negras
dançavam para os senhores no intuito destes amenizarem os castigos contra seus maridos e
filhos.
12
Relatos apontam que a dança do Chorado era uma forma das escravas em Vila Bela,
pedirem clemência aos seus senhores, quando tinham seus filhos ou companheiros
castigados. Uniam-se em grupos e se dirigiam até onde estivesse o senhor, dançando
graciosamente, como um artifício para agradar e pedir perdão para os prisioneiros.
Era também comum, os senhores escolherem as escravas mais bonitas e obrigá-las a
dançar, como forma de entretenimento dos mesmos nos momentos de lazer e nos
finais das festas (MOURA, 2005, p. 167).
O Congo é um ritual teatral que apresenta envolvimento de vários personagens e
artefatos simbólicos, o cenário é a própria cidade e a história representada refere-se a uma
Guerra entre reis africanos. A partir dos relatos de um morador que participou ativamente da
dança do congo, Moura (2005) expõe a dinâmica do ritual:
Nazário Frazão de Almeida, morador de Vila Bela, apresenta a sua construção sobre
a Dança do Congo. Segundo seus relatos, elaborados num texto, a dança do Congo
surgiu com a vinda dos escravos africanos de origem da Guiné para Vila Bela. Aqui
desenvolveram suas atividades e de acordo com as regras de seus costumes, a dança
representada por uma disputa de poder entre o reinado e a comunidade negra
escrava. O reinado é representado pelo Rei do Congo, Secretário de Guerra, e o
Príncipe. A comunidade representada pelo Embaixador, figura chefe e seus soldados
rebeldes2 (MOURA, 2005, p. 159).
A última comemoração é a Festa das Três Pessoas, representada pelo Pai, o Filho e o
Espírito Santo, que se unem formando um único ser divino.
Santíssima Trindade ou Três Pessoas representa na doutrina cristã a união de três
pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, em um só Deus. Celebrada no
domingo seguinte ao de Pentecostes, segundo o calendário religioso católico, é o
santo padroeiro de Vila Bela, e é comemorado com uma série de rituais que marcam
o encerramento oficial da Festança (MOURA, 2005, p. 179).
Cheguei a cidade pela manhã e a comunidade já organizava os preparativos para festa.
Na praça, a banda colocava em ordem os equipamentos de som, Além disso, a população se
movimentava pela cidade, assim como alguns turistas.
Fiz um rápido reconhecimento do local, experimentei a comida caseira no hotel e, em
seguida, fui conhecer a cidade. A praça estava repleta de grandes murais com o cronograma
da festança, que havia disponibilizado onze dias de evento em homenagem ao Divino Espirito
Santo, a São Benedito e as Três Pessoas da Santíssima Trindade.
Tive a oportunidade de participar ativamente da preparação e da hora de servir de
alguns dos eventos que ocorreram durante a festança, ajudando no corte dos alimentos para a
2 Moura (2005) cita o relato de Frazão de Almeida, s/d.
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salada, na organização dos doces nos recipientes e também dispondo a comida nos pratos dos
convidados.
Participei da preparação do Almoço da Imperatriz, que faz parte da festa do Divino
Espírito Santo, que ocorreu no centro comunitário. Imperatriz é o termo empregado pela
população à festeira responsável por recolher as doações ao santo nas casas dos vilabelenses,
acompanhada do Imperador e da bandeira, mastro, pomba, que, como já mencionado,
simbolizam o Divino Espírito Santo.
A organização, compra de alimentos e controle das doações para festa do Divino são
de responsabilidade da Imperatriz, que, em contrapartida, recebe uma festa em sua
homenagem. É ela quem decide o cardápio da festa e possui um espaço exclusivo no centro
comunitário para seus convidados. O evento se caracteriza por um almoço típico vilabelense
para moradores e turistas.
Outro evento relevante que participei foi o Chá Afro, que é recriado pela Sra. Neusa, e
ocorre ritualmente em sua casa. Segundo a moradora, o Chá tem o objetivo de reunir amigos
e fomentar a cultura dos antepassados. Diferente do Almoço da Imperatriz, a anfitriã convida
algumas pessoas para um grande “cha da manhã”, composto de comidas típicas de Vila Bela.
De acordo com Moura (2005), o Chá Afro é servido em diferentes ocasiões, sendo
composto de diferentes tipos de chá, que são acompanhados de quitutes tradicionais.
Normalmente esses chás de canela, de folha de figo, de erva cidreira, de anis
estrelado, de folha de abacate, folha de laranja, camomila, licores de sabores
variados, são servidos acompanhados de biscoitos de Ramos, biscoito de Sinhá,
durante eventos oficiais realizados tanto em Vila Bela como em Cuiabá, os
denominados “Chas Afro”3 (MOURA, 2005, p. 259).
A festança é uma grande expressão do sincretismo da cultura africana e portuguesa,
além de outras contaminações contemporâneas. A missa que participei na praça da cidade,
apesar de conter todos os componentes de um ritual católico, como a organização do altar
para receber o corpo e o sangue de cristo e a presença do padre que realizou a cerimônia
religiosa, contém a mistura e influência perceptíveis da contribuição dos ancestrais de origem
africana, desde os adereços dos fiéis, como os turbantes e os figurinos utilizados pelos
3 As informações utilizadas por Moura (2005, p. 259): Fonte: Convite para a Noite Cultural e Chá Afro, em
homenagem ao Catequista. Vila Bela, agosto de 1996. / Chá-Afro em comemoração ao Dia das Mães, no Parque
Mãe Bonifácia, Promoção Associação Matingombé dos Filhos e Amigos de Vila Bela da Santíssima Trindade.
Cuiabá: Jornal A Gazeta. 09/05/2003 / Chá Afro realizado no Parque Mãe Bonifácia em 11/05/2003, evento
realizado pela Associação Matingombé (nome originário da África e usado nos versos dos guerreiros dos
Dançantes do Congo em Vila Bela. Significa: reunir-se para tocar tambores). Fonte: Jornal Vozes do
Matingombê. Cuiabá: maio de 2004. Edição nº 01/2004.
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músicos e litúrgicos que participavam da organização da música e das leituras, até as roupas
da dança do chorado e do ritual do congo, este último também continha os feitiços, crenças
e vocabulário que marcavam as representações de influência da cultura africana.
Voltei ao município em dezembro de 2013 com o intuito de estar mais próxima do
universo culinário cotidiano de Vila Bela e entrevistar mulheres4 que cozinham em suas casas
e na festança. Realizei dezessete entrevistas com cozinheiras da comunidade, sendo que oito
delas cozinham em seu dia a dia em suas casas e nove delas auxiliam no período da festança.
As idades das entrevistadas variaram. Natália, a mais nova, apresentava na época 38 anos e a
Sra. Arlinda, a mais velha, 84 anos. Dentre as entrevistadas, a maioria é dona-de-casa em
período integral. Algumas delas trabalham na Escola Estadual Verena Leite de Brito como
merendeiras e outras na Secretaria municipal de Cultura e Educação.
As entrevistadas foram hospitaleiras. Quando batia na porta de suas casas muitas
convidavam-me a entrar, ofereciam água ou suco. Eram solícitas ao realizar as entrevistas e,
mesmo algumas sendo tímidas e falando pouco, respondiam o que eu perguntava e passaram
diversas informações quanto aos seus modos de preparo, ingredientes utilizados e hábitos
alimentares. Grande parte das entrevistas ocorreram nos quintais das casas ou nas cozinhas, o
que foi interessante para observação da realidade de cada residência e do cotidiano das
famílias.
Várias entrevistadas nasceram em Vila Bela, algumas estudaram fora e retornaram
após o término dos estudos, outras se mudaram há algum tempo para o local. Muitas das
mulheres, a maioria com quem conversei, eram donas-de-casa humildes, seus lares simples,
apesar dos grandes quintais com plantações de frutas e verduras para consumo próprio.
A maior parte das cozinheiras apresentavam apenas o ensino fundamental, algumas o
ensino médio completo, outras não chegaram a completá-lo, e uma pequena parcela delas
concluíram o ensino superior. Quase todas as pessoas se conhecem na comunidade, e, desta
maneira, recebia indicações das cozinheiras de quem eu poderia entrevistar, o que beneficiou
a pesquisa e me fez entrevistar um número maior de mulheres.
Ocorreu a predominância da maioria das entrevistadas ser católica e muito devota, em
suas casas pode ser encontrado um santuário ou imagens de santos nas salas ou nos
corredores. Percebi que as mais envolvidas com a igreja também eram as que mais
4 Os nomes das entrevistadas utilizados neste trabalho foram alterados com o objetivo de preservar a privacidade
das cozinheiras com quem realizei as entrevistas.
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colaboravam com a festança. Três das entrevistadas eram evangélicas, e, embora já tivessem
participado no auxílio da festança, atualmente participam apenas da festa como convidadas.
Como visitei a comunidade em momentos diferentes, pude observar perspectivas
distintas da movimentação na cidade e do comportamento dos habitantes. Na visita de
dezembro, observei o dia a dia dos vilabelenses, a rotina de trabalho e o convívio em família.
Almocei com alguns moradores e conversei com as pessoas em seu ambiente de trabalho e em
suas casas.
Na festança, um grande número de moradores se uniu desde muito cedo para auxiliar
na preparação da comida e organização da festa, a cidade recebeu turistas, foram armadas as
estruturas para os eventos na praça e em suas proximidades, como uma tenda, que abrigou a
missa de São Benedito e os rituais do Congo e Chorado, os banners com as programações das
festas e imagens das representações cultuais do Congo e Chorado, e o palco para a
apresentação durante as refeições no centro comunitário. A movimentação também ocorreu à
noite, moradores e turistas usufruíram dos serviços de barraquinhas com variedades de
quitutes como algodão doce, espetinho, pastel, sorvete dentre outros.
Como já exposto, as festas de julho são marcadas por três eventos: a Festa do Divino
Espírito Santo, São Benedito e Três Pessoas, compostas de manifestações culturais, rituais
religiosos e artísticos e da culinária, que é inserida em vários eventos durante o período da
festança.
Essas festas podem ser vistas como um conjunto de práticas culturais, em que parte
da população se coloca como personagem mais importante no cenário de uma
representação do passado que se atualiza no presente, por meio da memória e
experiências vivenciadas nos rituais religiosos, nas práticas alimentares, nas redes
afetivas. Vida da cidade que desfilando uma série de rituais, transforma o seu espaço
num lugar cultural-religioso, impregnado de “símbolos produtores de usos e
significados” (MOURA, 2005, p. 29).
Mas, em que consiste o ritual? Trindade e Perez (2014) expõem que, geralmente,
ligamos esse fenômeno a eventos extraordinários, que remetem a cerimônias religiosas:
“imaginamos algo formal, arcaico, feito para celebrar momentos especiais e, muitas vezes,
ligados apenas à esfera do sagrado” (TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 158).
Porém, para os autores no artigo “Os rituais de consumo como dispositivos midiáticos
para construção de vínculos entre marcas e consumidores” (2014), é necessário adentrarmos
nos diversos questionamentos quanto ao conceito de ritual para compreendermos a sua
totalidade, tanto os conceitos clássicos, ligados às primeiras considerações antropológicas,
quanto às novas perspectivas que contextualizam esse fenômeno inserido na
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contemporaneidade, relacionando os rituais ao fenômeno do consumo.
A questão do ritual na sociedade contemporânea demanda novas posturas,
desamarradas do arcabouço antropológico inicial, sem afrontá-las, mas conectada
com as características da complexa vida social na atualidade. Assim, retomamos
algumas características dos rituais e aproximamos com as experiências do consumo
(TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 162).
Assim como na visão clássica de Turner (2005),5 trazida pelos autores, que vislumbra
o ritual como performativo, extraordinário e místico, Peirano (2003) apresenta o ritual como
componente inserido em um sistema cultural de transmissão simbólica que pode ser
performativo.
Para a autora, essa definição de ritual não é rígida e única, existindo particularidades
relativas a pesquisa de campo e ao grupo estudado. Em Vila Bela, por exemplo, estudo os
rituais cotidianos das refeições e compras do dia a dia, como também os rituais performativos
existentes na festança, como a Dança do Chorado e o Congo.
Explico em relação aos rituais: Em todas as sociedades, existem eventos que são
considerados especiais. Na nossa, por exemplo, distinguimos uma formatura, um
casamento, uma campanha eleitoral, a posse de um presidente da república, e até
mesmo um jogo final de Copa do Mundo como eventos especiais e não cotidianos.
Quando assim vistos, eles são potencialmente “rituais”. O pesquisador deve,
portanto, desenvolver a capacidade de apreender o que os nativos estão indicando
como sendo único, excepcional, crítico, diferente (PEIRANO, 2003, p. 9).
Trindade e Perez (2014) expõem a diversidade de rituais encontrada desde eventos
cotidianos às cerimônias especiais, mas que apresentam como semelhança a regularidade e a
repetição:
Os rituais, executados e vivenciados repetidamente, conhecidos ou ao menos
identificaveis pelas pessoas, concedem certa segurança psíquica. Pela familiaridade
com as sequências do(s) ritual (is), sabemos o que vai acontecer, os passos são
previsíveis e, por meio deles, celebramos nossa solidariedade, partilhamos
sentimentos, enfim, e possível vivenciar uma sensação de coesão social
(TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 160).
Portanto, os autores consideram as contribuições de McCracken (2010) no que diz
respeito a apresentação dos rituais como vínculos de transferência dos significados culturais,
que são transferidos dos bens de consumo aos indivíduos.
5 Os autores trouxeram o conceito da obra de Victor Turner, La selva de los simbolos. Madrid: Siglo XXI, 2005.
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É um tipo de ação social dedicada à manipulação do significado cultural, para
propósitos de comunicação e categorização coletiva e individual. O ritual é uma
oportunidade para afirmar, evocar, assinalar ou revisar os símbolos, significados
convencionais da ordem cultural (McCRACKEN, 2010, 114).
Embora Vila Bela tenha marcas culturais do seu passado, sabemos que a cultura se
ressignifica e se altera com o passar do tempo, recebendo influências de outras culturas, de
novas posturas sociais e das mudanças que atravessam as sociedades. As influências
familiares e as alterações no contexto sociocultural de uma dada comunidade são inevitáveis,
todavia se perceba no discurso popular certa resistência às mudanças nos processos culturais.
Canclini (2009) analisa o fato das pessoas acreditarem que as mudanças em
determinado objeto cultural geram a perda de significado e a degradação deste, a sociedade,
não compreendendo que o objeto na verdade se alterou, adquiriu outros componentes
culturais. Para o autor esta é uma visão etnocêntrica:
Não há porque argumentar que se perdeu o significado do objeto: transformou-se. É
etnocêntrico pensar que se degradou o sentido de artesanato. O que ocorreu foi que
mudou de significado ao passar de um sistema cultural a outro, ao se inserir em
novas relações sociais e simbólicas (CANCLINI, 2009, p.42).
Este estudo permite enxergar a cultura através da culinária e dos hábitos alimentares
de Vila Bela da Santíssima Trindade. As análises dos aspectos relacionados a cultura local
auxiliam a compreensão das transformações que ressignificam os objetos culturais e criam
algo novo. Os processos culturais presentes na região possuem “contaminações”,
interferências, misturas de tudo que herdaram, adicionaram e transmitiram.
Neste trabalho, além das transformações culturais passadas de forma impositiva pelos
poderes hegemônicos, foram observados não apenas os objetos culturais de produção
centralizada e espetacular dos que nos fala Certeau (1998), mas fui em busca de um olhar
mais sensível às subversões que geram algo novo na cultura que é socialmente imposta.
Na realidade, diante de um produção racionalizada, expansionista, centralizada,
espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso,
qualificada como “consumo”, que tem como característica seus astúcias, seu
esfarelamento em conformidade com ocasiões suas “ piratarias”, sua
clandestinidade, seu murmúrio, incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois
ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria seu lugar?) mas por uma
arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (CERTEAU, 1998, p. 94).
Para compreender a cultura de Vila Bela da Santíssima Trindade, foi preciso realizar
observações e análises na comunidade indagando como os componentes culturais, que
18
atravessam suas tradições e significados, podem ser simbolicamente apresentados nos rituais
da alimentação e nos componentes da cozinha.
O tripé culinária, cotidiano e consumo contribuiu para a construção do conhecimento
que auxiliou-me nas análises das pesquisas empíricas, tanto na observação participante como
nas entrevistas realizadas, compreendendo a comida ordinária e extraordinária, o universo dos
bens de consumo alimentares e os valores sociais.
Com a análise dos dados que construí e com a relação que estabeleci entre eles, dispus
esse trabalho da seguinte forma:
O primeiro capítulo do trabalho consiste na contextualização teórica do cotidiano,
compreendendo o porquê do uso da sociologia do cotidiano, no que ela consiste e como é
aplicada nas análises da comunidade de Vila Bela. A culinária também é contextualizada em
seus aspectos referentes à sociologia e à antropologia da alimentação e da cozinha nacional e
regional com o objetivo de compreender a história e a trajetória dos alimentos inseridos na
vida da comunidade e suas influências. Finalizo a abordagem teórica com o estudo do
consumo, enfatizando como este fenômeno se insere no universo dos significados simbólicos
da cozinha e quais os rituais de consumo que compõem as análises deste trabalho.
O segundo capítulo é composto pela descrição e análise da comida ordinária e da
comida servida na Festança, além da identificação das semelhanças e contrastes entre estes
dois momentos.
O terceiro capítulo trata do universo dos bens de consumo alimentares e das compras
cotidianas e festivas, relacionando a análise das entrevistas realizadas com as cozinheiras com
a abordagem teórica do consumo, o que me permitiu compreender as práticas de compra e o
modo como estas expressam os valores das donas de casa e de suas famílias, além dos
envolvidos nas compras da festa.
O quarto capítulo aponta como a comida da comunidade expressa seus valores sociais
e relações de poder, citando as semelhanças de sentimentos legitimados através dos hábitos
alimentares e as diferenças expressas nas hierarquias sociais presentes na comunidade.
CAPÍTULO 1 – VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE, COTIDIANO,
CULINÁRIA E CONSUMO
Alguns autores discorrem quanto à origem de Vila Bela durante o ciclo do minério na
região de Mato Grosso. Volpato, em seu livro A conquista da terra no universo da pobreza
(1987), cita que os portugueses vislumbraram na busca de minérios uma oportunidade para
19
lidar com a crise econômica e política, e, paulatinamente, as bandeiras para o interior do país
foram se consolidando.
Maria de Lourdes Bandeira, em Território negro em espaço branco (1988), expõe
que, embora a busca de minérios fosse a principal finalidade dos bandeirantes ao adentrar o
interior do país, eles tambem visavam a captura de índios ja que “asseverava garantia de
diminuição dos riscos do investimento, em caso de fracasso na busca do ouro, ou reposição de
parte do capital inicial, para a ampliação dos investimentos em caso de descoberta de ouro”
(BANDEIRA, 1988, p. 81).
Volpato (1987) acrescenta que a bandeira de Pascoal Moreira Cabral, na busca de
índios e minérios, encontrou a região de Cuiabá, posteriormente nomeada Vila Real do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
Dentro desse processo de penetração, teve início o povoamento da região de Cuiabá,
onde Pascoal Moreira Cabral descobriu ouro nas margens do rio Coxipó em 1719.
Com a descoberta de nova jazida, por Miguel Sutil, junto ao córrego da prainha em
1722, o povoamento foi transferido para as imediações do morro do Rosário e
elevado à categoria de vila- Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá – por
Rodrigo César de Meneses em 17276 (VOLPATO, 1987, p. 30).
Conforme a autora, o ouro encontrado na região da baixada cuiabana aos poucos foi se
esvaindo devido à grande exploração feita por um número crescente de mineradores que
chegavam ao local. Desta forma, os caçadores de metais preciosos começaram adentrar outras
porções das terras mato-grossenses em busca de mais minério, tendo Cuiabá como localidade
de apoio (VOLPATO, 1987).
Na busca de metais pelo interior do estado, encontrou-se o Vale do Guaporé e,
segundo Volpato (1987), foi considerado um dos principais pontos de mineração, embora não
fosse um local habitacional ideal.
Novos veios foram encontrados. O mais importante deles, as minas de Mato Grosso,
situava-se no vale do rio Guaporé, região insalubre e datada de difíceis condições
para a fixação do povoamento. Mesmo assim, o fluxo migratório para essas lavras
foi intenso, com a corrida de pessoas, vindas principalmente de Minas Gerais, Goiás
e Cuiabá7 (VOLPATO, 1987, p. 31).
6 A autora baseia-se na obra de Joseph Barboza de Sá, Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato Groso de
seus princípios thé os presentes tempos, Cuiabá, Edições UFMT/ SEC- MT, 1975, p.11, 14, 15 e 19. 7SÁ, Joseph Barbosa de. Op.cit, 1975, p. 37.
20
A autora relata que o Vale do Guaporé ficou ainda mais visado como localidade de
estabelecimento populacional com a assinatura do tratado de Madri, em 1750, já que este
garantiu a posse portuguesa das terras conquistadas até então e da bacia Amazônica.
Para Volpato (1987), a condição estipulada pelo tratado de Madri, da garantia dos
territórios conquistados, além da facilidade de acesso do Vale do Guaporé (haja vista que se
localiza na beira do rio), preocupou os portugueses e fez com que pensassem em uma forma
de assegurar o território no oeste mato-grossense.
Bandeira (1988) explica o temor português a partir das condições histórico-
geográficas da região e das disputas com a Espanha, expondo que a localidade no Vale do
Guaporé era estrategicamente interessante.
[...] de fato, tornou-se um ponto da política de fronteiras com a Espanha. Era
estrategicamente o ponto mais interior de amarração do território colonial português.
Por via fluvial, definia o ponto de inflexão das fronteiras a oeste de Tordesilhas,
ligando-se ao norte com Belém e ao sul com São Paulo. Através de Cuiabá, por rotas
terrestres, ligava-se à Bahia e ao Rio de Janeiro, Internamente, em termos de Brasil,
definiu um contraponto de tensão polarizadora da unidade territorial, claramente
visualizável no mapa de rotas fluviais e terrestres (BANDEIRA, 1988, p. 80).
De acordo com Volpato (1987), a atratividade da região fez com que a Coroa
portuguesa tomasse a decisão de garantir a posse do território através da criação de um núcleo
administrativo do governo, e com essa finalidade a Coroa nomeou Antônio Rolim de Moura
como primeiro capitão-general, incumbindo-o de gerir o novo polo administrativo colonial.
Pelo Alvará de 9 de maio de 1748, foi criada a Capitania de Mato Grosso, quando as
principais jazidas da região (Cuiabá e Mato Grosso) já se encontravam em fraca
decadência. O estabelecimento efetivo do seu governo só ocorreu a partir de 1751,
época em que chegou a Mato Grosso seu primeiro capitão-general, Antônio Rolim
de Moura, com a incumbência de dar início a sua organização administrativa e
militar (VOLPATO,1987 p. 34).
Bandeira (1988) discorre sobre a escolha e a chegada do capitão-general, expondo
que o nomeado ficou responsável não só pela organização administrativa, mas também
comercial, além de trazer de Portugal a planta da cidade, que seria construída nas margens do
Guaporé, e do Rio de Janeiro o protótipo arquitetônico das casas.
O primeiro governador da recém-criada capitania foi cuidadosamente escolhido [...]
D. Antonio Rolim de Moura chega a Cuiabá em 12 de janeiro de 1751, com a
incumbência de construir uma cidade que plantasse definitivamente as bases do
domínio português sobre o novo território, articulasse o comércio entre Metrópole e
a nova área de produção aurífera, controlasse a hemorragia do contrabando do ouro
das minas do Mato Grosso, assegurasse o controle da produção aurífera, controlasse
21
a hemorragia do contrabando do ouro das minas do Mato Grosso, assegurasse o
controle da produção e cobrança dos quintos [...] Na bagagem de Rolim de Moura
veio a planta da cidade feita em Portugal e os projetos das casas de residência feitos
no Rio de Janeiro (BANDEIRA, 1988, p. 83-86).
Volpato (1987) revela que em 1752 deu-se o surgimento do município de Vila Bela
da Santíssima Trindade, o outro polo administrativo da capitania de Mato Grosso.
A fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade em 19 de março de 1752 deu à
Capitania seu segundo núcleo urbano, que, juntamente com Cuiabá, serviu de
referência a uma população em constante busca de novas descobertas. A vila-capital,
além disso, funcionava como sede de órgãos administrativos que foram criados8
(VOLPATO, p. 36).
A construção da cidade não foi fácil. Segundo Bandeira (1988), os materiais para
construção vinham de outras localidades, o que repercutia em uma logística lenta e nada
acessível. A autora evidencia, baseada nos relatos dissertados pelo próprio Capitão General
Rolim de Moura9, que, além da questão logística, a localidade apresentou outros percalços nas
construções, como dificuldades de pessoal para construir as edificações na cidade, questões
econômicas e sanitárias, já que, devido à proximidade do rio, Vila Bela era alvo de
inundações e de epidemias. Por essas razões, muitas obras foram descontinuadas na cidade.
Bandeira (1988) expõe a fragilidade no desenvolvimento de Vila Bela, a cidade, desde
sua criação, pois que apresentava “‘um quadro de instabilidade’ devido a ambiguidade
normativa, a dependência do comércio, a fome, a doença, a desorganização da mineração e a
falta de consistência do setor agropecuario” (BANDEIRA, 1988, p. 109).
Os negros fizeram parte do processo de construção de Vila Bela, e “excluindo-se o
poder, em quaisquer de suas formas ou expressões, não houve uma só atividade que não fosse
sustentada pelos pretos” (BANDEIRA, 1988, p. 113). Conforme a autora, embora a
instabilidade política, econômica e cultural se intensificasse em Vila Bela, os negros livres e
escravos, em meio à opressão e à imposição da cultura dos brancos, conseguiram se unir e
construir seus valores e redefinições culturais.
Desenraizados e destribalizados, os pretos tiveram na opressão a condição imposta
de identidade. Livres ou escravos, independentemente de suas origens étnicas, os
pretos eram forçados a compartilhar uma identidade social definida pelos brancos.
Essa identidade estigmatizada, em sua própria força de compressão, estimulou os
pretos a definir, para além de suas diferenças, espaços de solidariedade em que foi
possível a redefinição de sua identidade étnica. Esse espaço se configura na
resistência à escravidão e, mais amplamente, à opressão (BANDEIRA, 1988, p.
8 Idem. Ibidem, p. 46. 9 Rolim de Moura, 1982, p. 100.
22
113).
De acordo com a autora, existiram duas formas de oposição dos negros às regras
impostas pela hegemonia branca: “a luta pela liberdade do corpo (fuga individual) e a luta
pela liberdade etnica (quilombos)” (BANDEIRA, 1988, p. 113).
Quando os escravos fugiam e formavam os quilombos, para Bandeira (1988), além da
fuga da escravidão, buscavam a oportunidade de criação de um grupo social no qual
pudessem compartilhar valores sociais e culturais.
Segundo a autora, nos arredores de Vila Bela formaram-se vários quilombos que
recebiam índios fugidos da opressão branca. Um dos quilombos mais relevantes, devido à
organização e ao tamanho, foi o quilombo do Piolho, que acabou descoberto pelos brancos, o
que causou o aprisionamento dos negros e índios residentes: “foram aprisionados 79 negros
de ambos os sexos e 30 índios, levados a ferros para Vila Bela. Muitos morreram e muitos
conseguiram evadir-se” (BANDEIRA, 1988, p. 120).
A relação entre negros e indígenas nem sempre era harmoniosa no Vale do Guaporé.
Dona Arlinda, a entrevistada de 84 anos de idade, citou que os vilabelenses conviviam com os
índios de forma amistosa ou em confronto. Ela fala das invasões indígenas que ocorriam no
local, expondo-me sua experiência.
Antigamente Vila Bela era pequenininha né, aqui a rua era só mato, só tinha um
caminhozinho que passava, ali na praça mesmo era mataréu, ai os índios
frequentavam aqui direto na rua, ai quando achava gente pra flechar, flechava né, e
ai quando não encontrava ao menos os animais, eles “flechava”. Quando ele vinha
aqui na cidade, entrava bem, como amigo, caçava, mas quando ia para o mato
matava a gente. Aí tinha um tal de Gregório, um vizinho, gostavam muito dele,
então quando vinha índio ficava na casa dele, tinha uma área aberta, ele dançava lá,
cantava, morava lá na casa dele, quando ia, matava. Ai o Gregório falou assim:
Vamos na Maloca! Vamos conosco na Maloca! Vamos fazer a derrota também lá
porque eles tão matando muita pessoa aqui.
Segundo Bandeira (1988), a situação econômica crítica da cidade fez com que Rolim
de Moura temesse a mudança da capital para Cuiabá, e, na tentativa de evitar esse
acontecimento, o Capitão General realizou algumas ações, “Para torna-la mais estável e
garantir-lhe certa margem de irreversibilidade, cuidou de instalar Ouvidoria, Intendência e
Provedoria, Casa de Fundação. Construiu palacio, igreja, porto, quarteis” (BANDEIRA, 1988,
p. 11).
Apesar dos esforços de Rolim de Moura, a cidade não se desenvolveu
significativamente, sendo que “a partir de 1800 o crescimento de Vila Bela entra em curva
descendente” (BANDEIRA, 1988, p. 111). Desta forma, o que o Capitão temia acabou por
23
ocorrer, a mudança da sede do governo para Cuiabá.
O argumento da insalubridade reforça e justifica maior permanência dos
governadores em Cuiabá, até que, finalmente, Francisco de Paula Magessi Tavares
de Carvalho resolveu transferir, em 1820, importantes órgãos públicos para Cuiabá e
ali estabeleceu de fato a sede do governo [...]A Lei nº. 19 de 28 de agosto de 1835
formalizou definitiva e irreversivelmente a declaração de Cuiabá como capital da
Província de Mato Grosso (BANDEIRA, 1988, p. 111- 112).
Conforme explica a autora, a mudança da sede administrativa ocasionou migrações
populacionais da maioria dos brancos para nova capital, principalmente do contingente de
pessoas que tinha relações profissionais junto ao governo, o que impactou ainda mais a
estabilidade social local, já que grande parte dos consumidores de bens e serviços se mudaram
para Cuiaba. “A quase extinção do estrato burocrata e brusca diminuição de camada branca
dirigente implicou a necessidade de reordenamento das relações sociais e econômicas da
cidade” (BANDEIRA, 1988, p. 128).
Em Vila Bela, portanto, permaneceram, em sua maioria, os negros livres e alguns
brancos, o que, segundo Bandeira, fez com que os brancos repensassem sua relação com os
negros, visto que eram minoria e desestabilizados devido ao insucesso de sua organização
anterior.
As instituições políticas, sociais e religiosas dirigidas e controladas pela elite branca
tiveram seus quadros desfalcados e sua força, coesão e prestígio comprometidos. A
camada branca da população vê-se compelida a redefinir as suas relações com os
pretos livres do modo a assegurar a reprodução da vida social e a sua própria
existência, em termos de continuidade da ordem social e econômica e sua inserção
privilegiada nessa ordem (BANDEIRA, 1988, p. 130).
Nessas condições, os negros paulatinamente começaram a assumir seu papel na
construção de “uma nova cidade”, onde podiam construir seus valores sociais e viver em
liberdade: “O trabalho do escravo liberado, como do preto livre, lhe pertence. Também passa
a lhe pertencer, pelo uso, a terra que seu trabalho faz produtiva. O trabalho que a escravidão
manipulara como o fator de independência, liberdade e dignidade” (BANDEIRA, 1988, p.
131).
1.2 COTIDIANO
A vida quotidiana é um tecido de maneiras de ser e de estar, em vez de um conjunto
de meros efeitos secundários de causas estruturais [...] as maneiras de fazer
quotidianas são tão significantes quanto os resultados das práticas quotidianas,
tantas vezes analisados à margem das retóricas e expressividades próprias da vida
quotidiana (PAIS, 2002, p.32).
24
Este trabalho se relaciona diretamente com a afirmação de Machado Pais, já que a
culinária de uma determinada comunidade é composta de maneiras de fazer e práticas
cotidianas que, quando analisadas, expressam os significados valorizados por determinado
grupo adquiridos culturalmente.
O estudo da sociologia do cotidiano assim como a análise do cotidiano dos
vilabelenses, principalmente dos seus modos de fazer e práticas culinárias, foram essenciais
para a identificação dos valores sociais da comunidade.
Machado Pais em seu livro Sociologia da Vida Quotidiana (2002) expõe a existência
das lógicas da demonstração e do descobrimento, ressaltando a inserção da sociologia do
cotidiano e dos modos de fazer na lógica do descobrimento, enfatizando a importância das
práticas cotidianas como fonte de pesquisa, já que, além das respostas, trazem também mais
questionamentos. “Se ha uma diferença entre uma lógica de demonstração e uma lógica de
descobrimento, sem dúvida que a lógica da sociologia do quotidiano é a de descobrimento, da
revelação” (PAIS, 2002, p. 33).
Pais procura explicitar ao leitor que no estudo do cotidiano as respostas raramente são
“entregues de bandeja” ao pesquisador. Para o autor, é preciso desenvolver um olhar
minucioso, que permita enxergar nas entrelinhas aquilo que gera estranhamento, o que está
escondido no óbvio do cotidiano. “Nesta forma de aproximação ao social, a realidade apenas
se insinua, não se entrega. Mas é assim mesmo que, na perspectiva da sociologia do
quotidiano, ela tem de ser imaginada, descoberta, construída” (PAIS, 2002, p.30).
A busca pelas respostas as questões deste trabalho estão nas nuances, nas minúcias,
fazendo com que a atenção seja ainda maior aos detalhes e aos pormenores, às análises das
entrevistas das cozinheiras, aos cenários das refeições, às festas devendo ser encarada como
um jogo de caça ao tesouro, aos prêmios escondidos, que, neste caso, são os significados
culturais inerentes contidos nas formas de preparo, nas atitudes, nas funções e papéis das
cozinheiras, nas atribuições dos homens e mulheres, jovens e adultos na cozinha, nas escolhas
e prioridades de consumo.
De acordo com Pais (2002), para desvendar os enigmas existentes nos modos de fazer
e práticas cotidianas é preciso utilizar das “situações de interação”, que compreendem o
objeto de estudo da sociologia do cotidiano.
A sociologia da vida quotidiana introduz um novo objeto de estudo: o das situações
de interação. Os instrumentos analíticos que são usados por esta sociologia (o
enfoque dramaturgo ou a análise da conversação) enquadram-se num paradigma
25
sociológico que podemos denominar de situacionismo metodológico (PAIS, 2002, p.
17).
O enfoque dramatúrgico e a análise da conversação citados pelo autor são ferramentas
utilizadas neste trabalho. A análise das conversações foi realizada de acordo com as
entrevistas feitas na comunidade e o enfoque dramatúrgico foi encontrado na festança, em
suas manifestações extraordinárias.
Muitas vezes, nas interações sociais ocorrem situações que são inesperadas,
confissões, constrangimentos, risadas, consentimentos dentre outros momentos não
planejados. Essas experiências não calculadas, como conclui Pais (2002), podem compor a
analise e contribuir para a pesquisa. “A vida quotidiana está cheia de situações insólitas e
desconcertantes e que essas situações, da simples ordem da interacção social, podem ser
estudadas pela sociologia” (PAIS, 2002, p. 15).
De acordo com o autor, a sociologia do cotidiano não tem o objetivo de constatar fatos
ou afirmar teorias do social, mas questioná-lo, colocá-lo em análise. Pais afirma que na
sociologia do cotidiano se analisa os vestígios das questões sociais que surgem no universo de
pesquisa e os sinais dados pelo público analisado, não uma “realidade social ”.
Para a sociologia do quotidiano, o importante é fazer insinuar o social, através de
alusões sugestivas ou insinuações indiciosas, em vez do fabricar a ilusão da sua
posse. A posse do real é uma verdadeira impossibilidade e a consciência
epistemológica desta impossibilidade é uma condição necessária para entendermos
alguma coisa do que se passa no quotidiano (PAIS, 2002, p. 30).
Berger e Luckmann (2004) também questionam a realidade e argumentam que,
embora existam várias delas, a realidade da vida cotidiana é a mais relevante.
O mundo consiste em múltiplas realidades […] há uma que se apresenta como sendo
a realidade por excelência, a realidade da vida cotidiana. Sua posição privilegiada
autoriza dar-lhe a designação de realidade predominante [...] A vida cotidiana
apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada
de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente (BERGER;
LUCKMANN, 2004. p. 35-38).
Assim como os autores citados acima, Pais (2002) também se refere a realidade como
interpretação construída socialmente. “Não e um objeto que possamos ver de maneira neutra
ou que nos seja dado; antes é uma estrutura semiótica construída, enquanto representação e
atraves da interpretação. A interpretação e sempre construção” (PAIS, 2002, p.70).
26
Para Berguer e Luckmann (2004), a análise fenomenológica é o melhor método para
compreensão da sociologia da vida cotidiana, e ela pode ser utilizada nos estudos do senso
comum recorrente nas realidades sociais no cotidiano.
O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase
científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos
descrever a realidade do senso comum temos de nos referir a estas interpretações,
assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas
fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos
(BERGUER; LUCKMANN, 2004. p. 37).
As práticas culinárias e os modos de preparo na cozinha, dentre as outras técnicas que
englobam a cultura alimentar em Vila Bela, têm relação direta com a sociologia do cotidiano.
A compreensão e estudo dessa temática facilitaram a imersão em campo e a composição
analítica deste trabalho.
A sociologia do cotidiano contribuiu para que as observações da culinária de Vila Bela
fossem mais apuradas, já que, na análise do universo culinário, é preciso observar as relações
sociais, os deslizes e improvisos da cozinha que se relacionam diretamente com os estudos do
cotidiano, que necessitam do foco de “atenção ao conflito, à instabilidade, à assimetria, à
diversidade” (PAIS, 2002, p. 53).
O autor propõe ao pesquisador que utiliza a sociologia do cotidiano, o
desenvolvimento do “olhar intrometido” diante do objeto observado: “Olhar metido no que
normalmente se desolha, mas também comprometido, isto é, envolvendo um compromisso,
uma obrigação de denúncia, de desocultação, de desvendamento” (PAIS, 2006, p. 34).
Pais (2006) explica que o olhar comprometido se caracteriza pelo “compromisso de
respeito em relação a quem se nos dá, no modo que se dá, como objecto de observação- à
vista aparentemente desarmada, mas na realidade armada de interrogações, inquietações e
intuições sociológicas” (PAIS, 2006, p. 34-35).
O autor propõe algumas fontes documentais que auxiliem o pesquisador na análise da
vida cotidiana de determinado objeto de pesquisa, expondo o “método biográfico” que se
refere às histórias relatadas da vida de quem se entrevista, “as fontes literárias” e
“audiovisuais” (PAIS, 2002). Na análise da comunidade de estudo, utilizei principalmente a
primeira e a segunda fonte, já que gravei os relatos das histórias e memórias das moradoras,
além de me apoiar nas fontes literárias, relacionadas à culinária, antropologia da alimentação
e consumo.
27
Berguer e Luckmann (2004) complementam os métodos de Pais sugerindo a “situação
face a face” com os membros sociais envolvidos na pesquisa. De acordo com os autores, essa
situação permite uma melhor conexão com objeto de pesquisa, já que o momento face a face
vivido entre observador e observado permite uma troca mútua de aprendizados um do outro.
Na situação face a face o outro é apreendido por mim num vivido presente
partilhado por nós dois. Sei que no mesmo vivido presente sou apreendido por ele.
Meu "aqui e agora" e o dele colidem continuamente um com o outro enquanto dura
a situação face a face. Como resultado, há um Intercâmbio continuo entre minha
expressividade e a dele (BERGUER; LUCKMANN, 2004. p. 47).
Os autores expõem que, embora nem sempre consigamos compreender totalmente os
sinais subjetivos transferidos pelo observado na situação “face a face”, esta ainda é a melhor
forma de interação social e compreensão da subjetividade dos envolvidos na pesquisa.
Na situação face a face a subjetividade do outro me é acessível mediante o máximo
de sintomas. Certamente, posso interpretar erroneamente alguns desses sintomas.
Posso pensar, que o outro está sorrindo quando de fato está sortindo afetadamente.
Contudo, nenhuma outra forma de relacionamento social pode reproduzir a
plenitude de sintomas da subjetividade presentes na situação face á face. Somente
aqui a subjetividade do outro é expressivamente próxima. Todas as outras formas de
relacionamento com o outro são, em graus variáveis, "remotas" [...]a interpretação
errônea e a "hipocrisia" são mais difíceis de manter na interação face a face do que
em formas menos "próximas" de relações sociais (BERGUER; LUCKMANN, 2004,
p. 47-49).
Nessa perspectiva, é importante imergir no cotidiano e estar bem atento ao momento
de interação com o grupo social, e no “aqui e agora” como exposto pelos autores. A análise
das práticas cotidianas e modos de fazer são tão relevantes no momento da pesquisa quanto às
observações dos detalhes de como cada indivíduo reage à interação com o pesquisador, suas
colocações e omissões, seus trejeitos e reações, tudo que ele faz pode contribuir para as
conclusões quanto às subjetividades do indivíduo e das particularidades do grupo social.
As considerações de Pais convergem com as reflexões de Berguer e Luckmann quanto
às situações “face a face”, ja que o autor (PAIS, 2006) também ressalta a importância da
interação com o grupo social utilizando, segundo ele, um olhar sociológico sensível que é
revelador não só do que se observa, mas, na mesma mediada, de quem olha, ou seja, do
próprio observador.
O olhar é um recurso notável da observação sociológica. A interacção entre
indivíduos baseia-se num intercâmbio de olhares. Mas o olhar através do qual se
procura entender o outro é, em si mesmo, expressivo. Pelo modo como olho o outro,
28
revelo-me a mim próprio [...] O olhar não pode sacar sem dar, ao mesmo tempo”
(PAIS, 2006, p. 35).
O sociólogo sugere o resgate da observação durante as entrevistas com os envolvidos
na pesquisa, expondo a importância do olhar sociológico na interação com o entrevistado, o
pesquisador devendo se atentar não só ao que é conversado, mas, concomitantemente, ao que
é visto, olhado, observado.
As ciências sociais recorrem abundantemente às entrevistas mas, na verdade, nem
sempre as vistas se entrelaçam com o observável [...] Quase todo o registo de
pertinências se faz no plano da fala: do que se pergunta, do que se responde, do que
se transcreve, do que se analisa. A vista, na entrevista, perde-se frequentemente de
vista. O que proponho é a recuperação da vista como suporte da observação
sociológica. Entrevista plena, vista, viva (PAIS, 2006, p.35).
Enquanto observadora das cozinheiras de Vila Bela, busquei utilizar dos métodos de
pesquisa desenvolvidos pela sociologia do cotidiano, em campo, procurei entrelaçar o que eu
via com aquilo que tomava conhecimento mediante as entrevistas, e, além disso, foquei
atenção nas falas das entrevistadas em outros momentos, como em conversas informais,
quando cozinhavam em suas casas, na hora do almoço à mesa, quando catavam frutas em seus
grandes quintais para fazerem suco ou quando dançavam e cozinhavam para os vários
convidados da festança.
Através da compreensão dos conceitos e maneiras de utilização da sociologia da vida
cotidiana, percebo que há a exigência de uma sensibilidade do pesquisador na busca por
resistências àquilo que parece incontestável, um desafio ao que tange o objetivo de encontrar
valores socioculturais expressos nos modos de fazer cotidianos, como é o caso da cozinha.
Machado Pais no livro Sociologia da Vida Cotidiana compara o estudo do cotidiano
com o trabalho minucioso da lançadeira de tear: “de um lado para o outro, num movimento
pendular, cerzindo no universo social as micro e as macroestruturas” (PAIS, 2002, p. 51). A
metáfora utilizada pelo sociólogo auxilia na compreensão do processo de pesquisa e a
inserção em campo, que deve tecer as minúcias sutis e enigmáticas do dia a dia e enxergar nos
detalhes objetos de análise.
Com o estudo do que consiste a sociologia do cotidiano, percebo que o subsídio
proporcionado pela teoria embasou a minha imersão no universo da culinária dos moradores
de Vila Bela, identificando nos detalhes implícitos pelo cotidiano os modos de fazer
culinários e a simbologia cultural da comunidade.
29
Cabe a este estudo, “revelar a riqueza oculta do tesouro cotidiano sob a aparente
pobreza e trivialidade da rotina, ou, como muito bem referiu Lefebvre, alcançar o
extraordinário do ordinário” (PAIS, 2002, p. 83). É no desafio de enxergar o banal, o trivial e
o repetitivo que o processo dissertativo se apoia, agregando a sociologia do cotidiano aos
questionamentos da cozinha.
1.3 CULINÁRIA
A comida e os hábitos alimentares são fenômenos diretamente relacionados aos temas
do cotidiano estudados, já que fazem parte do dia a dia dos grupos sociais e carregam
simbologias culturais imersas nos ingredientes, modos de preparo e hábitos à mesa.
A alimentação revela a estrutura da vida cotidiana, do seu núcleo mais íntimo e mais
compartilhado (o sexo é ainda mais íntimo, mas de uma partilha social bem mais
restrita). A convivialidade manifesta-se sempre na comida compartida.
(CARNEIRO, 2003, p. 5).
Para compreendermos o universo da comida ritual cotidiana e festiva em Vila Bela, é
necessário fazer primeiramente uma abordagem geral da culinária e entender o fenômeno da
alimentação como sistema simbólico cultural.
Carneiro (2003) aponta a importância da alimentação para o ser humano e expõe sua
teia simbólica tecida de outros elementos culturais.
A alimentação após a respiração e a ingestão de água a mais básica das
necessidades humanas. Mas como não só de pão vive o homem, a alimentação além
de uma necessidade biológica é um complexo sistema simbólico de significados
sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc. (CARNEIRO, 2003, p. 1).
Conforme Mintz (2011), a comida possui um papel relevante não apenas pela sua
essencialidade ao ser humano, mas porque o ato de comer proporciona ao indivíduo a criação
de seus próprios gostos e desejos. “Comer é uma atividade humana central não por sua
referência, constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera onde se permite
alguma escolha” (MINTZ, 2011, p. 32).
Carneiro (2003) discute a existência de uma grande quantidade de informações e
componentes culturais atrelados à alimentação, que, sendo imperativa, muitas vezes
regulamenta as escolhas sociais.
30
Muitos antropólogos sublinharam o fato de que nenhum aspecto do nosso
comportamento à exceção do sexo, é tão sobrecarregado de ideias. E estes hábitos
possuem uma intrínseca relação com o poder. A distinção social pelo gosto, a
construção dos papéis sexuais, as restrições e imposições dietéticas religiosas, as
identidades étnicas, nacionais e regionais são todas perpassadas por
regulamentações alimentares (CARNEIRO, 2003, p. 1)
Mintz (2011) também relaciona à alimentação determinado poder sob quem a ingere,
já que, para ele, esse fenômeno carrega certa moralidade e regulamentação de quem somos, a
comida nos integra ao mundo real e auxilia a conexão das ideias com as ações.
A comida “entra” em cada ser humano. A intuição de que se e de alguma maneira
substanciado – “encarnado” – a partir da comida que se ingere pode, portanto,
carregar consigo uma espécie de carga moral. Nossos corpos podem ser
considerados o resultado, o produto, de nosso caráter que, por sua vez, é revelado
pela maneira como comemos (MINTZ, 2011, p. 32).
O autor vê na comida um componente da identidade coletiva de um povo, “não e de se
surpreender, portanto, que o comportamento relativo à comida tenha sempre nos interessado e
documentado a grande diversidade cultural” (MINTZ, 2011, p. 31).
Para Peirano (2011), devemos estar atentos ao uso do termo identidade pois o mesmo
faz parte de um processo mutável, em constante transformação e que envolve interferências e
ressignificações constantes. “Aquilo que denominamos “identidade” geralmente não leva em
consideração que se trata de um processo em permanente movimento, precário e variável, e
que envolve mais de uma pessoa, alem da convenção que as une” (PEIRANO, 2011, p. 63).
Cascudo (2011) afirma que a comida expressa aquele que a consome, podendo ser
identificado nos hábitos alimentares a imagem do grupo social, “(...) dá a impressão confusa e
viva do temperamento e maneira de viver, de conquistar os víveres, de transformar o ato de
nutrição numa cerimônia indispensavel de convívio humano” (CASCUDO, 2011, p. 378).
Amon e Menasche (2008) constroem uma abordagem da comida como representante
social, na qual a comida de um povo pode ser considerada uma “narrativa de sua memória
social”, pois, por intermédio dela, é possível enxergar a cultura de uma comunidade seus
costumes, interesses, e seus valores.
Uma comunidade pode manifestar na comida suas emoções, sistemas de
pertinências, significados, relações sociais e sua identidade coletiva. Desenvolvem o
argumento de que a comida é uma voz que comunica, assim como fala, ela pode
contar histórias. As autoras sugerem que a comida e as práticas da alimentação
podem se constituir como narrativa da memória social de uma comunidade.
(AMON; MENACHE, 2008, p. 13).
31
Garcia (2011) analisa que, quando os hábitos alimentares, penetrados em uma cultura,
recebem influências e mudanças nas suas estruturas cotidianas existirão alterações nos modos
de fazer e das práticas alimentares. As alterações na rotina alimentar ocasionam “um
redimensionamento da rotina doméstica, das práticas sociais, do ritmo de vida, enfim,
representa uma reorganização e realocação da alimentação no modus vivendi, que só é
possível se for afetada tambem às condições de vida” (GARCIA, 2001, p. 7).
A autora mostra que a alimentação de um povo é carregada de símbolos e valores
passados de pai para filho, cada cultura carrega um conjunto de conexões e particularidades
em comum.
Adotar um modelo alimentar significa aderir a um elenco de alimentos, às formas de
preparação, às combinações de pratos, ao esquema de cardápio cotidiano, aos
temperos e suas formas de uso e ao modo como são compostos os pratos. As
práticas alimentares são apreendidas culturalmente e transmitidas de geração em
geração [...] Aderir a um modelo alimentar não se finda nele mesmo, mas no
conjunto de valores e símbolos que o acompanham, no corpo de elementos práticos
e simbólicos que o constituem (GARCIA, 2001, p. 4-5).
Mintz (2011) relaciona o ato da alimentação de dada comunidade com sua história e
cultura, ressaltando que a comida está diretamente relacionada ao aprendizado social.
Devemos comer todos os dias, durante toda nossa vida, crescemos em lugares
específicos, cercados também de pessoas com hábitos e crenças particulares.
Portanto, o que aprendemos sobre comida está inserido em um corpo substantivo de
materiais culturais historicamente derivados. A comida e o comer assumem, assim,
uma posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora
rotineira (MINTZ, 2011, p. 31).
Carneiro (2003) também faz uma relação entre a comida de um povo e sua trajetória
histórica e cultural, citando que as história alimentar e cultura se complementam e acontecem
concomitantemente, dependentes uma da outra. Dessa forma, de acordo com as constatações
do autor, para compreender a história da alimentação, é preciso relacioná-la a história das
sociedades e as transformações culturais.
A história da alimentação abrange, portanto, mais do que a história dos alimentos,
de sua produção, distribuição, preparo e consumo. O que se come é tão importante
quanto quando se come, onde se come, como se come e com que se come. As
mudanças dos hábitos alimentares e dos contextos que cercam tais hábitos é um
tema intricado que envolve a correlação de inúmeros fatores (CARNEIRO, 2003, p.
1).
32
O autor expõe a relevância dos estudos histórico-culturais referentes à alimentação
para a história e ciências humanas, além de salientar as pesquisas específicas dos hábitos
alimentares como simbologia cultural, das diferenças da comida ordinária e extraordinária,
dentre outros temas que compõem esse trabalho e expressam sua relevância.
O papel dos historiadores da alimentação, segundo a perspectiva das ciências
humanas, deveria ser o de enfocar ao menos os seguintes problemas [...] a) os
diferentes tipos de mercados, os preços etc.; b) as formas e técnicas de preparação;
c) as formas de consumo; d) o ambiente sociocultural e as avaliações individuais e
coletivas (diferenças entre pratos ordinários e festivos, comida como divisão social,
e como ação simbólica, religiosa e comunicativa); e) os conteúdos nutritivos e as
consequências para saúde (CARNEIRO, 2003, p. 1- 3).
Carneiro (2003) cita os estudos da alimentação como objetos da sociologia e
antropologia, relatando a indispensabilidade nas pesquisas das questões que perpassam a
contemporaneidade e que estão contidas nas sociedades, como a globalização, as novas
tecnologias de produção, consumo de alimentos, questões de diferenças e hierarquias de
gênero e papéis sexuais, gostos, classe sociais, identidades étnicas e regionais, rituais
alimentares, preceitos e tabus alimentícios entre outros.
Partindo da relação entre cultura e alimentação, trago as considerações de Claude
Lévi-Strauss, um dos primeiros estudiosos a abordar a alimentação por uma perspectiva
sociológica.
O estruturalismo na Antropologia, a partir da obra de Lévi- Strauss, tratou da relação
da alimentação com estruturas mitológicas em O cru e o cozido (1964), Do mel às
cinzas (1967) e Origem das maneiras à mesa (1968). A diferença entre o cru e o
cozido, para este antropólogo, fundaria a própria cultura, distinguindo-a da natureza
(CARNEIRO, 2003, p. 20).
Na sua obra o Triângulo Culinário (1979), Lévi Strauss cria o “sistema culinario”, em
que explica as relações entre a natureza e a cultura, colocando a cozinha como conectora entre
essas duas estruturas.
A arte da cozinha não se situa inteiramente do lado da cultura, respondendo às
exigências do corpo, e determinada nos seus modos pela maneira particular pela
qual, aqui e ali, se efetua a inserção do homem ao mundo, colocada portanto entre a
natureza e a cultura, a cozinha representa acima de tudo a necessária articulação
entre ambas (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 33).
Assim como na representação do autor, o alimento cozido retrata a cultura, a relação
entre cozinha e cultura vem se mantendo nas relações e grupo sociais: “como não existe
33
sociedade sem linguagem, não existe uma que, de um modo ou de outro, não cozinhe pelo
menos alguns de seus alimentos” (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 25).
Segundo Lévi-Strauss (1979), o ato de cozinhar um determinando componente
alimentar, utilizando o fogo, a água e um recipiente para colocá-lo, representa um ato de
transformação cultural do alimento até então desprovido de interferências, pois estava cru, em
seu estado natural.
O autor também discorre quanto às diferenças entre o assado e o fervido,
classificando o primeiro como “do lado da natureza” e o segundo “do lado da cultura”.
Pode-se dizer que o assado está do lado da natureza, e o fervido do lado da cultura.
Realmente, uma vez que o fervido requer o uso de um recipiente, objeto cultural,
simbolicamente, pelo fato de que a cultura é uma mediação das relações entre o
homem e o mundo, e que o cozimento por ebulição exige uma mediação (pela água)
da relação entre o alimento e o fogo, ausente no caso do assar (LÉVI-STRAUSS,
1979, p. 26).
A interferência da cozinha na cultura de um povo e como os processos e sistemas
simbólicos se formam nessas estruturas culturais expõem a visão de Lévi-Strauss (1979) da
cozinha como comunicadora social: “A cozinha de uma sociedade e uma linguagem na qual
ela traduz inconscientemente sua estrutura, a menos que ela se resigne, sempre
inconscientemente, a nela desvendar suas contradições” (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 34).
As considerações do autor quanto ao alimento cozido como elemento essencial na
construção cultural, e também do alimento cru e do assado simbolizando a natureza,
sensibilizaram meu olhar aos estudos das simbologias culturais e facilitaram minha imersão
no estudo da cozinha vilabelense.
Cascudo (2011) ressalta a importância da alimentação na união e amparo cultural: “a
manutenção usual dos alimentos regionais é um elemento poderoso de defesa coletiva, no
sentido psicológico, mantendo, como uma “permanente”, as características de nutrição
popular” (CASCUDO, 2011, p. 381).
Nas pesquisas para essa dissertação identifiquei como a população vilabelense utiliza
seus alimentos como defesa dos aspectos culturais e de nutrição de seu povo, o que
permanece como essencial diante dos alimentos passados de geração à geração e as
transformações e ressignifições dos hábitos alimentares.
A cozinha Brasileira é marcada desde sua formação histórica por misturas, influências
e contaminações culturais de povos distintos. Para Botelho (2013), as transformações e
34
interferências culturais na comida, modos de preparo e nos hábitos alimentares continuam
acontecendo e se intensificando cada vez mais.
Quando falamos em cozinha brasileira estamos nos referindo a formas culturalmente
estabelecidas que fazem parte de um sistema alimentar composto por um conjunto
de técnicas, produtos, hábitos e comportamentos relativos à alimentação. Porém, não
se trata de algo estático, pois os intercâmbios entre os distintos povos são constantes
e cada vez mais intensos, e as sociedades que geram suas culinárias também se
modificam ao longo do tempo (BOTELHO, 2013, p. 62).
Botelho (2013) defende que a comida de cada região do país é marcada por
interferências sociogeográficas, condições territoriais, de clima, da história de ocupação
dentre outros fatores.
Cada uma dessas receitas revela um gênero de vida, uma maneira de relacionamento
do homem com o meio geográfico que foi desenvolvida durante vários séculos e que
recebeu influências diversas de grupos étnicos distintos. A proximidade do mar ou
de rios, a mediterraneidade, o tipo climático, a intensidade da presença das culturas
indígena, africana e europeia, as atividades econômicas desenvolvidas, o grau de
desenvolvimento dos meios de comunicação são alguns dos elementos
sociogeográficos que contribuem para a formação de uma cozinha regional
(BOTELHO, 2013, p. 62- 64).
Para os estudos da culinária, foi utilizada principalmente a bibliografia de Câmara
Cascudo, A História de Alimentação no Brasil (2011), a obra faz uma rica abordagem que
trata questões para além de nossa trajetória alimentar, e abrange muito da história de
portugueses, africanos e dos imigrantes que vieram para o Brasil Colônia. Carneiro (2003)
salienta o trabalho do autor revelando sua relevância e a forma como o autor adquiriu as
informações do livro.
Câmara Cascudo além de escrever a obra mais completa sobre alimentação no
Brasil, exatamente a sua História da Alimentação no Brasil (1967) permeou o
conjunto extenso de sua obra de referências etnográficas, históricas e gastronômicas
sobre alimentação [...] Ele também organizou uma Antropologia da alimentação no
Brasil (1977), compilação de textos da época, e de autores diversos, sobre variados
aspectos do tema (CARNEIRO, 2003, p. 156).
Quando os bandeirantes adentraram as terras mato-grossenses, trouxeram com eles
seus hábitos alimentares, além de criarem novos costumes pela condição itinerante que as
bandeiras impunham. O alimento era estrategicamente planejado, já que se nutriam no interior
das matas pelas quais caminhavam em busca de terras. Cascudo (2011) descreve a comida dos
bandeirantes apresentando os procedimentos de preparo da carne, feijão e a farinha, citando a
paçoca como prato bastante consumido nas expedições.
35
Carne assada com farinha era a base essencial do estomago na marcha das bandeiras.
Veio a paçoca, carne assada, pilada com farinha, guardada nas bruacas de couro,
garantindo a matalotagem das caminhadas. O feijão ficava para horas de pouso,
armado o acampamento, esperando a fervura das panelas de barro ou de ferro,
erguida nas trempes, a luz das fogueiras vigilantes (CASCUDO, 2011, p. 441).
Vila Bela é uma cidade habitada principalmente por descendentes de escravos, é
importante compreender como a cozinha deste povo foi constituída e, muitas vezes, imposta
pelos seus senhores. Cascudo (2011) trata da predominância da farinha de mandioca dos
escravos do norte brasileiro e do milho no centro do país.
Para o norte a farinha de mandioca garantia o pirão, indispensável, sinônimo do
próprio alimento geral. Pelo interior da Bahia para o centro e sul do Brasil estendia-
se a geografia do milho. A farinha de mandioca não era ignorada nem ausente no sul
e centro, tal e qual o milho concorria no norte e nordeste mas sem a predominância
do primeiro elemento, característico nos repastos (CASCUDO, 2011, p. 202).
O milho predominou no centro do país, em Vila Bela foi possível verificar a presença
desse ingrediente em alguns pratos regionais, como nos biscoitos e Chicha10 (bebida feita de
milho torrado que varia no teor de fermentação, que é considerada o suco de Vila Bela) por
exemplo. O autor descreve a alimentação específica dos negros escravizados de Mato Grosso
e Goias: “Angu de milho, toucinho, alguma carne semanal era o regime do escravo em Minas
Gerais, Mato Grosso e Goiás, na mineração, pastorícia e lavoura, juntando-lhes o adminículo
da ocasional caça e da pesca feliz” (CASCUDO, 2011, p. 204). Esses ingredientes foram
citados em diversas entrevistas como típicos da região.
O estudo da comida como simbologia da cultura de um povo e o conhecimento da
culinária brasileira servem como base para a pesquisa específica de Vila Bela, facilitando as
conexões e análises relacionadas à alimentação da comunidade, melhor identificando os
aspectos da cultura vilabelense, verificados nos hábitos alimentares comunitários, além de
contribuírem para a compreensão de elementos da culinária ritual cotidiana e festiva, suas
relações e valores sociais.
Outro estudo que auxiliou na revelação dos valores sociais da comunidade de Vila
Bela é referente ao fenômeno do consumo. A mesma atenção dada ao que se come na cidade e
ao como se prepara os ingredientes de um prato, deve ser depositada na análise das escolhas
10 “Bebida que faz parte dos costumes alimentares da população o indígena Chiquitana, da Bolívia. Possui um
teor alcoólico, e é feita com o milho em repouso num cocho ou vasilhames apropriados e bem lacrados, para que
ocorra o processo de fermentação” (MOURA, 2005, p. 269).
36
de consumo nas ocasiões propostas, pois é o momento em que se conhece as prioridades das
entrevistadas e os valores sociais tornam-se mais perceptíveis.
1.4 CONSUMO
Assim como a comida representa quem a consome, as escolhas de consumo
expressam os desejos e particularidades dos consumidores. Este fenômeno pertence a outro
campo de análise, dotado de significados que auxiliarão a identificar os valores sociais da
comunidade de Vila Bela.
Barbosa e Campbell (2006) sugerem que o consumo nos permite compreender quem
somos através dos aspectos identitários contidos em nossos desejos e escolhas.
É ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de
provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e
serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de
sentido e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma
estratégia utilizada no cotidiano pelos diferentes grupos sociais para definir diversas
situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria
central na definição de sociedade contemporânea (BARBOSA; CAMPBELL, 2006,
p. 26).
Linares e Trindade (2011) expõem que é possível compreender os significados
culturais através dos bens de consumo de determinado grupo ou indivíduo, esses significados
podem se alterar de acordo com as mudanças da própria cultura. Os bens de consumo
alimentares também se inserem neste contexto recebendo influências diversas e sendo
reconstituídos constantemente.
O caráter mutável dos significados é salientado no livro Cultura e Consumo: Novas
Abordagens ao Caráter Simbólico dos Bens e das Atividades de Consumo, de McCraken
(2010). O autor destaca a importância de estudos que ressaltem a constante transformação dos
significados culturais e constrói um esquema que representa o movimento de significado do
sistema cultural da moda, passado de um mundo culturalmente construído para os bens de
consumo até os consumidores.
Linares e Trindade (2011) fazem uma adaptação do modelo do movimento de
significado do antropólogo para o sistema alimentar, alterando os meios de transmissão do
significado dos bens de consumo para os consumidores por meio de rituais de compra,
preparação, consumo e apresentação que serão abordados mais adiante.
37
Figura1- Movimento de Significado do sistema alimentar adaptado do modelo de McCraken
(MCCRACKEN, 2010, p. 100). Fonte: LINARES, TRINDADE, 2011, p. 50.
De acordo com McCracken (2010), compreender a fluidez dos significados culturais
auxilia no processo de compreensão da sociedade contemporânea. “Uma compreensão plena
da qualidade móvel do significado cultural e de consumo pode ajudar a demonstrar parte total
da complexidade do consumo atual e a revelar de modo mais detalhado exatamente o que é
ser uma “sociedade de consumo” (McCRACKEN, 2010, p. 101).
O autor argumenta que a cultura se ressignifica o tempo todo no mundo social, o
fluxo dos significados culturais se transfere para os bens de consumo através do auxílio dos
envolvidos com o desenvolvimento desses bens. “O significado está initerruptamente fluindo
das e em às suas diversas localizações no mundo social, com a ajuda de esforços individuais e
coletivos de designers, produtores, publicitários e consumidores” (MCCRACKEN, 2010, p.
99).
Para McCracken (2010), o fluxo do movimento de significado parte do mundo
culturalmente construído, que é dotado de interferências diversas, atreladas ao nosso dia a dia,
valores sociais adquiridos e nossas conexões culturais. O antropólogo cria duas maneiras para
vislumbrar o mundo culturalmente construído: atraves das “lentes”, no qual o mundo é visto
pelo olhar cultural, e do plano de ação, que representa o mundo modelado pelo homem.
38
A cultura detem as “lentes” atraves das quais todos os fenômenos são vistos”. Ela
determina como esses fenômenos serão apreendidos e assimilados. Em segundo
lugar, a cultura e “o plano de ação” da atividade humana. Ela determina as
coordenadas da ação social e da atividade produtiva, especificando os
comportamentos e os objetos que delas emanam (MCCRACKEN, 2010, p. 101).
Desse modo, as lentes e o plano de ação determinam como o mundo é visto através
dos olhos da cultura e modelado pelo homem, “a cultura constitui o mundo suprindo-o com
significado” (MCCRACKEN, 2010, p. 101).
O antropólogo classifica os significados em dois conceitos: categorias culturais e
princípios culturais, sendo que as categorias compreendem a divisão do mundo por seus
aspectos culturalmente construídos e os princípios constituem a origem desses aspectos.
Se as categorias culturais são o resultado da segmentação do mundo pela cultura em
parcelas discretas, os princípios culturais são as ideias através das quais esta
segmentação é pormenorizada. São os pressupostos licenciados ou as ideias
organizadoras que permitem distinguir todos fenômenos culturais, classifica-los, e
inter-relacioná-los. Enquanto ideias orientadoras do pensamento e da ação, eles
encontram expressão em cada aspecto da vida social e não menos que em todo o
resto nos bens (MCCRACKEN, 2010, p. 104-105).
Segundo Linares e Trindade (2011), a partir das considerações de McCracken
(2003), os bens de consumo constituem a cultura materializada, onde as categorias culturais e
os significados podem ser melhor vislumbrados e as categorias culturais mais explícitas: “Os
bens são uma instância da cultura material porque permitem fazer uma discriminação palpável
das categorias culturais” (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 51).
Para os autores, com base nos bens de consumo alimentares pode-se classificar os
indivíduos, existindo relações com a faixa etária, gênero, classe social, dentre outras.
Neste contexto, é possível se referir as considerações de Bordieu em seu livro
Distinção (2007), no qual o autor relaciona as categorias culturais com os hábitos sociais, para
expor os hábitos como princípio das categorias culturais distintivas e do gosto.
O autor apresenta a conceituação de habitus, além de auxiliar a compreensão das
distinções da sociedade, de seus gostos e de suas perspectivas de vida, que facilitam o
entendimento das categorias culturais, permitindo uma melhor distinção das categorias
econômicas, sociais, dos estilos de vida, etc.
A relação estabelecida entre as características pertinentes da condição econômica e
social- o volume e estrutura do capital, cuja apreensão é sincrônica e diacrônica- e
os traços distintivos associados à posição correspondente no espaço dos estilos de
39
vida não se torna uma relação inteligível a não ser pela construção do habitus como
fórmula geradora que permite justificar, ao mesmo tempo, práticas e produtos
classificáveis, assim como julgamentos, por sua vez, classificados que constituem
estas práticas e estas obras em sistema de sinais distintivos (BOURDIEU, 2007, p.
162-163).
Como exposto anteriormente, Linares e Trindade (2011), quando realizam o esquema
do sistema alimentar, expõem rituais diferentes dos utilizados por McCracken no sistema da
moda, apontando a diferença das duas perspectivas de sistema cultural.
Os rituais, no sistema alimentar, são diferentes daqueles aos quais o autor faz
referência no texto (ligados à moda), sobretudo devido à natureza efêmera do valor
utilitário dos alimentos, à prática cotidiana destes movimentos de significados e pela
possibilidade de saciedade (fisiológica) que outros bens não possuem. [...]
esclarecemos que nesta reflexão, os rituais alimentares não estão localizados em
uma cultura particular, porque o objetivo é exemplificar os rituais gerais do sistema
alimentar (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 58).
Como vimos, nos rituais de transferência utilizados no esquema de movimento de
significado alimentar de Linares e Trindade (2011), os bens de consumo alimentares são
transferidos para os consumidores através dos rituais de compra, preparação, uso e consumo,
celebração e apresentação.
Os rituais de compra aparecem de modo relevante à pesquisa, já que é por meio
destes que podemos vislumbrar as escolhas, prioridades e desejos da comunidade. O processo
de realização das compras de produtos alimentares “se transforma em um ritual simbólico ao
estabelecer um processo regular de transferência de significados” (LINARES; TRINDADE,
2011, p. 58).
O espaço onde se realizam as compras de alimentos desempenha uma parte
importante da construção destes rituais. De acordo com o tipo de espaço e sua
evolução histórica, o consumidor estabelece diferentes significados e constrói
diferenças simbólicas entre estes (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 58).
Douglas e Isherwood (2009) relacionam o consumo as escolhas dos indivíduos,
revelando que, quando compramos e decidimos o que comprar e não comprar, a escolha final
é nossa, mesmo que haja influência de fatores externos. “O consumo não é imposto; a escolha
do consumidor é sua escolha livre. Ele pode ser irracional, supersticioso, tradicionalista ou
experimental: a essência do conceito de consumidor individual do economista é que ele
exerce uma escolha soberana” (DOUGLAS, ISHERWOOD, 2009. p. 101).
Os autores expõem que os bens de consumo transmitem informações a respeito de
quem os compra, permitindo identificar características dos compradores, ao mostrar o que
40
são, seus gostos e escolhas. “O homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e
para entender o que se passa à sua volta” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009, p. 149).
Barbosa (2008) vê o consumo como uma ação cultural, o ato de comer, inserido neste
contexto, pode ser considerado na análise social. As compras alimentares envolvem contextos
culturais, relações sociais e aspectos identitários dos envolvidos na compra.
Campbell, citando April Benson (2000, p. 505), deixa evidente a identificação de
quem compra e as decisões que estas acarretam.
[...] Comprar é provar, tocar, testar, considerar e pôr para fora nossa personalidade
através de diversas possibilidades, enquanto decidimos o que precisamos ou
desejamos. Comprar conscientemente não é procurar somente externamente, como
numa loja, mas internamente, através da memória e do desejo. Fazer compras é um
processo interativo no qual dialogamos não só com pessoas, lugares e coisas, mas
também com partes de nós mesmos. Esse processo dinâmico, ao mesmo tempo
reflexivo, revela e dá forma a partes de nós mesmos que de outra forma poderiam
continuar adormecidas... O ato de comprar é um ato de autoexpressão, que nos
permite descobrir quem somos (CAMPBELL, 2007, p. 53).
No contexto deste trabalho, que busca identificar valores sociais através dos hábitos
alimentares dos vilabelenses, é possível fazer uma relação entre os rituais de troca, expostos
no esquema de movimento de significados da moda de McCraken (2010), com os de compra,
abordados no sistema alimentar de Linares e Trindade (2011), já que, baseado nos estudos de
Miller (2002), os bens de consumo alimentícios podem ser vistos como “presentes” que
legitimam sentimento, principalmente de amor pelo indivíduo a quem se destina o “presente”
ou agrado que se compra.
Vislumbrando os produtos alimentícios comprados como presentes, considera-se os
rituais de troca apresentados por McCracken (2010). Conforme o autor, o ato de presentear
possibilita a transferência de significados simbólicos aos consumidores receptores e “têm
importância vital para as propriedades significativas dos bens trocados” (MCCRACKEN,
2010, p.115).
O ritual de troca de presentes estabelece um potente meio de influência interpessoal.
Permite aos indivíduos insinuar certas propriedades simbólicas na vida de um
receptor-de-presentes. Permite-lhes iniciar a possibilidade de transferência de
significado. Em termos mais gerais, todos os consumidores, enquanto doadores-de
presentes, são feitos agentes de transferências de significado, à medida que
distribuem seletivamente certos bens dotados de certas propriedades para recipientes
que, de outra forma, poderiam ou não tê-los escolhido (MCCRACKEN, 2010,
p.115).
41
Para explicar os rituais de preparação, esses autores recordam o triângulo culinário
de Leví-Srauss [(1997) 1965], já exposto neste trabalho. De acordo com os autores, o modo
de preparo dos ingredientes e sua condição física determinam os significados culturais, além
das distinções de categoriais culturais.
Seu objetivo era encontrar a estrutura profunda e universal do ato de cozinhar que,
em seu triangulo culinário, tinha como principais pontos de referência: cru, cozido
(transformação cultural), podridão (transformação natural). Estas categorias (mesmo
quando o autor francês inclui outras como defumado, grelhado, frito) representam
uma dupla oposição entre natural/cultural e elaborado/não elaborado, as quais geram
diferentes associações entre diferentes categorias, como gênero e classe social
(LINARES; TRINDADE, 2011, p. 59).
Assim, os autores argumentam que, como nos modos de preparo do alimento os
significados também passam por transformações, pois “modificam-se de acordo com as
práticas e crenças das culturas e constroem-se de acordo a estes diferentes significados”
(LINARES, TRINDADE, 2011, p. 59).
Os rituais de uso e consumo, segundo Linares e Trindade (2011), transferem os
significados ao consumidor através do ato de ingerir, desde a ordem de ingestão da comida11,
dos utensílios utilizados na refeição, assim como a expressão corporal e as tradições à mesa.
A etiqueta na hora de comer inclui o uso de diferentes artefatos, ou não, destinados a
levar o alimento à boca, o manejo do copo e da expressão corporal na mesa, e as
diferentes tradições no ato de comer ou beber que dependem da cultura e do tipo de
alimento (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 60).
Está incluso entre os rituais do sistema alimentar dos autores o de celebração, que
também será analisada na dissertação, principalmente no estudo da comida festiva. “As
diferentes culturas e religiões celebram diferentes datas e ocasiões de acordo a suas tradições,
permissões, interdições e suas práticas, sendo a comida uma parte importante das diversas
celebrações” (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 60).
Embora os rituais de celebração geralmente se refiram a ocasiões extraordinárias
tradicionais, Linares e Trindade (2011) expõem que a comida pode ser vislumbrada em outros
tipos de celebrações.
No entanto os rituais de celebração aqui propostos não são referidos a feriados
específicos, mas também dizem respeito a diferentes tipos de celebração, a saber: os
alimentos podem representar de acordo a cada celebração um símbolo, um
11 O autor aborda quanto a ordem de ingestão da comida baseado na obra de Fox (2009): FOX, R. Food and
eating: an anthropological perspective. Oxford: Ed. Social Issues Research Centre, 2009.
42
instrumento de sedução, um marcador ou a confirmação de alguma crença ou
identidade (LINARES; TRINDADE, 2011, p. 60).
Os rituais de apresentação de acordo com Linares e Trindade (2011) se referem a
exposição da comida, do que está aparente na visão, nestes significados estão presentes
componentes estéticos, de sedução, modos de servir dentre outros.
A apresentação dos alimentos é uma celebração estética ao ato alimentar que não se
restringe ao modo de servir os alimentos à mesa, mas vai além dela, pois é onde a
sedução gastronômica se completa e os sentidos, todos, jogam nesse momento um
papel determinante na experiência da alimentação [...] Esta representação também
está ligada à representação que instituições como a publicidade, livros de receitas,
cardápios de restaurantes fazem da comida.
É através destas categorias culturais, materializadas nos bens de consumo, referentes
ao sistema alimentar, que pretendo identificar os valores sociais da comunidade de Vila Bela,
compreendendo, por meio dos significados culturais expressos nesses bens comprados, nos
modos de preparo, na disposição à mesa e na forma de consumir, os reflexos identitários da
comunidade.
CAPITULO 2 – COMIDA ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA
43
2.1 O QUE SE COME NO DIA A DIA EM VILA BELA?
Na primeira visita, realizada em julho de 2013, participei das festas religiosas do
Divino Espírito Santo e de São Benedito. Nas festas são realizados almoços e jantares
comunitários abertos à população e aos turistas, além de outras celebrações (como a Reza
Cantada e o Chá Afro, que ocorrem nas casas de alguns moradores) em que são servidos
vários quitutes aos que prestigiam a festança. Participei ativamente da preparação do Almoço
da Imperatriz, que ocorre durante a comemoração do Divino, o que contribuiu para as análises
dos modos de preparo culinários durante as festividades.
Na visita de dezembro do mesmo ano, observei a comida do dia a dia da comunidade
e identifiquei as semelhanças e contrastes com a culinária festiva, assim como suas
disposições, simbologias e peculiaridades culturais. Neste segundo momento, interessava-me
conhecer melhor os moradores e continuar as observações iniciadas no período da festança.
Mesmo com a boa relação com os que conheci, estava receosa quanto à recepção das
pessoas e também com a maneira que ocorreria nosso processo de interação, até porque,
agora, tinha como objetivo imergir em seu cotidiano, não apenas observar, mas inserir-me em
sua rotina e conhecer suas particularidades e resistências. Para meu alívio inicial, a maioria
das moradoras com quem conversei foram acessíveis e contribuíram para minha análise.
Cheguei ao município para uma segunda visita no dia treze de dezembro de 2013, em
uma manhã de sexta-feira ensolarada. O ritmo da cidade não era o mesmo que encontrei em
julho, existindo menos pessoas andando pelas ruas e mais estabelecimentos comerciais
abertos. Comecei a caminhar pela praça me questionando: como iniciar minha interação?
Com quem conversar? Sabia que o público a procurar eram as mulheres vilabelenses, mas
como abordá-las?
Além da abordagem, como desenvolver um olhar sensível ao que estava nas
entrelinhas? Ao que não estava claro nas banalidades do dia a dia? Lembrando que Pais
(2006) sugere, a partir da observação do cotidiano de um objeto, que desenvolvamos um
“duplo olhar- intrometido e comprometido – é tanto mais objectivo quanto mais tocado por
uma subjectividade conscientemente cúmplice do observador” (PAIS, 2006, p. 35). Para
conseguir obter este duplo olhar, era preciso intrometer-me no cotidiano daquela comunidade,
e procurar vivenciar junto com ela sua rotina, contrastes e oposições diante do habitual.
O autor explica que o olhar comprometido é uma relação de respeito com quem se
observa (PAIS, 2006).
44
Por olhar comprometido também não pretendo significar uma irreal supressão das
distâncias sociais entre quem observa e é observado, apenas um compromisso de
respeito em relação a quem se nos dá, no modo que se dá, como objecto de
observação - à vista aparentemente desarmada mas na realidade armada de
interrogações, inquietações e intuições sociológicas (PAIS, 2006, p. 34-35)
Concentrei-me em vivenciar o cotidiano junto às moradoras de Vila Bela, depositar
tais interrogações, intuições e inquietações na vivência. Minhas indagações iniciais se
basearam nos seguintes questionamentos: em que consiste a comida do dia a dia da cidade?
Quais são as semelhanças e diferenças da comida cotidiana, que geralmente não se observa e
se analisa, para comida servida na festança? Analisar o espaço culinário, assim como propôs
Certeau (1988) em suas pesquisas, também poderia ser uma oportunidade de me inserir neste
contexto e de compreender a realidade local que não era a minha.
Os processos complexos da arte culinária se inserem em uma prática de espaço,
assim como as maneiras de frequentar um lugar ou instaurar a confiabilidade nas
situações sofridas, abrindo uma possibilidade de vive-las reintroduzindo dentro
delas a mobilidade de interesses e prazeres, uma arte de manipular e comprazer-se
(CERTEAU, 1998, p. 50).
Para responder meus questionamentos dei início as entrevistas. Abordei uma senhora
que estava caminhando lentamente pela praça da cidade. Ela não foi muito receptiva,
justificou-se alegando não gostar de falar. Continuei a caminhar e avistei mais duas senhoras
que me retribuíram um sorriso, apresentei-me e perguntei se eram do local, após a resposta
positiva expus minha intenção e verifiquei a possibilidade de interrogá-las. Ambas disseram
que era para eu encontrá-las posteriormente na Secretaria de Educação, onde, assim como
elas, algumas mulheres de Vila Bela trabalhavam. Enquanto as aguardava poderia entrevistar
outras pessoas que ali estivessem.
Mas interrogar as mulheres em horário de trabalho? Eu disse que não pensava ser uma
boa ideia. Porém, as duas mulheres sorriram, ressaltaram, em seguida, que também estavam
trabalhando, e que não teria problema, revelando a presença de outros pesquisadores no local
em diferentes oportunidades, nestas mesmas condições.
Mesmo receosa, fui até a secretaria para ver como seria, ao chegar, conversei com uma
senhora chamada Deva, nascida em Vila Bela e que, quando expliquei minha intenção, disse
adorar cozinhar e fez questão que eu a entrevistasse. Esta senhora, além de contribuir com seu
relato, fez uma lista com nome de várias cozinheiras da festança, informando-me os
endereços destas mulheres. Mais segura e com uma direção, parti em busca de mais
entrevistas e outras conversas informais, que acabaram por auxiliar nas observações.
45
Nos questionamentos indaguei quanto às culinárias cotidiana e festiva, a entrevista
com as cozinheiras da festança sendo mais detalhada nas perguntas acerca dos modos de
preparo e procedimentos com a comida durante o período da festança, e para as convidadas os
questionamentos enfatizavam suas experiências como convidadas e suas opiniões como
frequentadoras da festança. Nos questionamentos da comida cotidiana e das compras para
suas casas não existiram grandes distinções entre convidadas e cozinheiras da festança, já que
todas fazem parte do dia a dia em Vila Bela e suas opiniões e relatos seriam relevantes na
busca pela compreensão do universo cotidiano na cozinha das entrevistadas.
Dentre as perguntas realizadas sobre o dia a dia destas mulheres, indaguei qual a
comida do dia a dia, como aprenderam a cozinhar, seus pratos de infância, o que mudou na
comida da família ao longo do tempo, a preocupação com a saúde na cozinha, como
classificam a comida, as diferenças entre a comida da festa e a comida cotidiana entre outros
questionamentos.
A pergunta quanto ao dia a dia das entrevistadas foi essencial para o processo de
análise da comida cotidiana e, portanto, seus detalhamentos se fazem necessários para
compreender as minúcias do que se come ritualmente, seus contrastes e semelhanças nas
famílias vilabelenses, e para realizar uma comparação com a comida da festança.
A entrevistada Celena (41 anos, formada em Letras) revelou que a alimentação é a que
todo mundo come, arroz, feijão, salada, e citou que algumas vezes em sua casa é preparada a
comida típica da cidade, como o baião de dois, baião de três, paçoca e o caldo de banana.
O baião de três é um prato que chamou a atenção. Celena disse que existe o Baião de
quatro também e descreveu-o: “de dois e só o arroz e o feijão... aí o de três e arroz, feijão,
carne seca... ate de quatro... e tudo, mais a banana madura”.
Ela me perguntou se conheço o massaco, outro prato típico da região e detalhou como
é o prato, além de mencionar o mocotó no feijão, o catuní, que eu também desconhecia, e o
toicinho de porco. Quando falou desses pratos, acrescentou que sua família e os vilabelenses
em geral não os comem com frequência devido à tendência dos negros a serem hipertensos
em Vila Bela.
Massaco é banana verde cozida... aí soca no pilão com torresmo, aí tempera coloca
cheiro verde, porque geralmente a gente comia assim de manhã, como primeira
alimentação, agora que está mudando de vida, até porque a gente tem tendência para
ser hipertensa, tem que evitar comida muito gordurosa né, então a gente mudou
totalmente o nosso habito alimentar. […] Comíamos mocotó, mudamos devido a
isso... mocotó no feijão. Já comeu mocotó no feijão? Então catuní no feijão? Catuní
é a parte do joelho do boi, então tira a, tipo assim, tira a paleta e coloca para secar, aí
coloca no feijão. [...] Toicinho de porco... então a gente está evitando esse tipo de
46
alimentação em Vila Bela. Cada vez mais devido tantas complicações que a gente
vem sofrendo no decorrer do tempo.
Celena ressaltou que o prato mais consumido é arroz e o feijão, e que comem muito
caldo de banana, arroz sem sal e carne, revelou que os vilabelenses são muito carnívoros. Para
ela, comer esses alimentos em sua casa é cultural, e que não comem muita salada, Celena
sempre tem que lembrar da salada porque a mãe esquece.
Então, minha mãe prepara o almoço, ela primeiro preocupa com arroz... feijão e
carne... ela é bem carnívora (risos) então a salada fica de lado... sempre a gente
briga... discute preparar primeiro a salada, depois... Em Vila Bela, isso... é cultural já
percebi isso... porque os vilabelenses são carnívoros... a gente... percebi assim na
minha mãe... pais... as minhas tias... primeira coisa é a carne.
A entrevistada Arlene (40 anos, merendeira) disse que, em sua casa, é o arroz e o
feijão que não podem faltar e uma mistura que “inventa na hora”. Revelou que seu prato
predileto em casa é arroz, feijão, bife e uma salada de tomate ou alface, além de macarronada.
Cecília (60 anos, dona de casa) relatou que costuma fazer em seu cotidiano arroz,
feijão, carne de panela, frango e também macarrão e carne moída. Deva (54 anos,
recepcionista da Secretaria de Educação) falou da comida cotidiana e se referiu a suco e
sobremesa.
Geralmente e arroz, feijão ne, macarrão, a gente gosta muito e bife... banana frita e
salada...E um suquinho natural... É fruta... a gente gosta muito de suco de fruta da
época assim... ou então a gente compra mesmo no mercado... mas e suco natural...
que a gente compra... e poupa que a gente compra... eu faço suco natural de
acerola... eu tenho pe em casa... faço suco de maracuja também... Araça boi, goiaba,
caju... Entendeu, isso que eu faço... Canjiquinha quando tem la em casa...
A senhora Suelen (52 anos, dona de casa) disse que a comida cotidiana em sua casa é
pesada, e citou o caldo de banana e arroz sem sal, que também foi mencionado por outras
entrevistadas.
É, diariamente, a gente come, assim, comida um pouco pesada, porque a gente come
feijoada, aqui na minha casa. Assim, todos os dias têm que ter carne no feijão, agora
que eu estou parando um pouco de fazer... Porque faz mal comer muita carne. [...]
Eu cozinho... Eu gosto de fazer também e: caldo de banana com arroz sem sal, o
arroz puro na água e o caldo de banana... Hoje mesmo eu iria fazer... Caldo de
banana... Couve... Arroz, couve passadinho no óleo e e gostoso.
As entrevistadas Gertrudes (81 anos, dona de casa), Natália (38 anos, merendeira),
Genésia (55 anos, dona de casa), Adena (50 anos, dona de casa) e Arlinda (84 anos, dona de
47
casa) citaram os mesmos alimentos no dia a dia. Falaram que comem arroz, feijão, carne e
salada, A última citada adicionou que também faz couve e arroz carreteiro. A Sra. Gertrudes
(81 anos, dona de casa) recordou que, às vezes, faz uma paçoquinha e uma farofinha. Ela
gosta de fazer sempre caldo de banana, mas comentou que esta difícil encontrar a “banana de
fritar”. Não gosta de nada amargo como jiló e chicória.
A Sra. Anne (65 anos, dona de casa) come comida seca, gosta de fazer baião com
couve, e também falou dos caldos, como o de mandioca, de banana, de peixe. Algumas vezes,
Anne faz em sua casa “um frito ou um assado”, mas revelou que não é seu estilo.
Dona Mara (52 anos, dona de casa) acredita que no dia a dia come a comida típica:
“Olha... a minha comida, e típica mesmo, assim do que eu fui criada, e, por exemplo, eu gosto
de fazer arroz carreteiro, o feijão com o pedaço de carne seca, eu faço caldo de banana com
costela com mandioca, frango caipira e ovo caipira.
Mauriane (65 anos, dona de casa) gosta de comer no dia a dia arroz, arroz temperado,
carne frita, feijão, salada de repolho e banana frita. Também gosta de fazer arroz com carne,
macarrão com carne e mandioca e também se referiu aos caldos com arroz sem sal: “caldo de
banana... caldo de maxixe... todo com arroz sem sal”.
A senhora Nilza (48 anos, merendeira) disse que faz em sua casa arroz, feijão, salada,
carne, farofa e churrasco. Valdeci falou que faz sopa de mandioca, arroz, feijão, carne, salada
e o caldo de banana.
O questionamento sobre a comida cotidiana já nos permite ter algumas constatações
em relação à culinária vilabelense. O feijão com arroz é recorrente em praticamente todas as
entrevistas. Damatta (1986) aponta esses alimentos como presentes na vida do brasileiro,
comumente sendo utilizados para falar do que é repetitivo e rotineiro. Quem nunca ouviu: “é
que nem feijão com arroz, todo dia!”
Mas, como surgiu esse ritual cotidiano do arroz e feijão? Ele é nítido entre as
entrevistadas de Vila Bela. É necessário fazer uma conexão histórica para compreendermos a
indispensabilidade desses alimentos. “A cultura e um padrão possível de significados
herdados do passado imediato, um abrigo para as necessidades interpretativas do presente”
(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009, p. 111).
Cascudo (2011) observa que, na história da alimentação, o arroz já era um dos
ingredientes prediletos dos negros antes de serem trazidos para o Brasil, além de ser muito
valioso nas trocas comerciais africanas: “Uma constante alimentar era o arroz. [...] o que
dispensava a cultura nos alagados e era o preferido. Promovia a nutrição, pagava o imposto ao
48
rei, comprovava mais uma mulher para cama e trabalho de campo” (CASCUDO, 2011, p.
167-168). Segundo o autor, esse ingrediente fica em evidência no Maranhão, no século XVIII.
Juntamente com a farinha, o feijão foi valorizado no país anteriormente ao arroz e é
considerado produto indispensável exclusivamente no Brasil, não se verificando essa
predileção em outros países (CASCUDO, 2011).
Poderíamos dizer o binômio feijão e farinha estava governando o cardápio brasileiro
desde a primeira metade do século XVII [...] Em Portugal e na África o feijão não
tem a procura, a indispensabilidade, a predileção como é consumido no Brasil [...] O
brasileiro, filho do português, ameríndios e africanos, foi o consumidor
propagandista do feijão (CASCUDO, 2011, p. 434-441).
O feijão e a farinha eram considerados alimentos básicos dos negros escravizados
juntamente com outros ingredientes que foram muito citados pelas entrevistadas como a carne
e a banana.
A alimentação dada aos senhores escravos consiste em farinha de mandioca, feijão,
carne seca, toucinho e banana, [...]Também toucinho, feijão e farinha eram infalíveis
na refeição do negro das cidades, negro de ganho a jornal ou artesão. [...] No interior
do país normalmente nas casas mais pobres as vezes tem que se contentar durante
meses com laranja e farinha” (CASCUDO, 2011, p. 204).
Não só nas perguntas relacionadas à comida cotidiana, mas nas entrevistas de modo
geral, o feijão foi destaque na alimentação do vilabelense. Uma das entrevistadas disse que
sem feijão na refeição é como se não tivesse comido.
Quando fui almoçar na casa da Sra. Deva, ela fez um bobó de galinha, que, de acordo
com a maioria das mulheres que conversei, é um “prato moderno”, realizado algumas vezes
em Vila Bela. Identifiquei a indispensabilidade do feijão para a família, quando ela disse que
mesmo não comendo bobó de frango com feijão porque não combinava, tinha que colocar na
mesa porque “feijão não pode faltar”. Fiquei observando que ninguem comeu o feijão, apenas
o bobó de galinha, arroz, batata palha, mas o feijão estava à mesa, pois “não poderia faltar”.
Mas, por que não poderia faltar, se ninguém comeu? Mesmo não consumindo o alimento, a
força do ritual se manteve e o hábito do feijão e do arroz diariamente na mesa prevaleceu.
Será essa indispensabilidade do feijão fruto de uma imposição do passado? Cascudo
(2011) cita a imposição do plantio desse produto, juntamente com o milho e a mandioca, para
ser alimentação essencial nas casas dos senhores de engenho e seus escravos.
A junta de governo pernambucano e bando de 30 de abril de 1801 empunha que
todo senhor de engenho lavrador de cana, algodão ou outra lavoura plantasse
49
primeiro a mandioca, feijão, milho necessário para o sustento de sua casa, escravos e
trabalhadores de jornal, depois do que poderiam plantar e cultivar o que melhor lhe
conviesse para o seu comércio (CASCUDO, 2011, p. 209).
Essa predileção pelo feijão no gosto vilabelense, pode ter relação com seus hábitos
cotidianos de plantio impostos no período colonial, e que refletem de forma tão intensa na
comunidade, a ponto de ser indispensável à mesa mesmo sem ser comido.
Verifiquei na visita a campo pequenas roças inseridas em grandes quintais nas casas
dos moradores, o povo sempre plantando e colhendo seus alimentos. A realidade se relaciona
com o que Cascudo (2011) revela quanto ao deslocamento da família e do feijão, “O feijoal
pertence à classe das plantas que acompanham o deslocamento do homem. E, mais
especificamente da família, porque constituí labor das mulheres o plantar e o colher”
(CASCUDO, 2011, p. 439).
Além do feijão com arroz, as entrevistadas citaram, na maioria das vezes, a carne e a
salada como inseridas na comida cotidiana. Moura (2005) observa que a carne é um alimento
levado a sério na cidade, já que os vilabelenses possuem uma legislação minuciosa que
regulamenta o abate dos animais.
Percebe-se a importância do consumo da carne bovina e dos suínos, como um
costume alimentar básico da população, através de uma detalhada legislação
relacionada à criação e abate de rês, vaca ou novilha, existente nos registros do
Código de Posturas da Cidade, como pelas normas referentes à criação de porcos
(MOURA, 2005, p. 58).
Percebi, desde a primeira visita à comunidade, que as moradoras de Vila Bela veem na
carne um componente básico para realização da comida. Na festa, muitos pratos apresentavam
este alimento, como a farofa e o feijão, além disso, verifiquei que, em um considerável
número de entrevistas, a carne era mencionada como indispensável nas compras e refeições
da casa das moradoras, ou o quanto valorizavam uma carne de corte nobre, que muitas vezes
não podem comprar.
Cascudo (2011) também aborda a essencialidade da carne no Brasil e a verdura como
alimento complementar.
Todos os alimentos vegetais são, para o povo brasileiro, complementares e apenas
essenciais como responsáveis na formação do bolo digestivo. A força, substância,
potencia, vivem na carne que tenha sangue quando viva, abatido o animal com a
intenção de constituir vitualhas (CASCUDO, 2011, p. 363).
50
Minhas percepções das entrevistas se assemelham com o constatado por Cascudo, já
que, embora a maioria das entrevistadas tenha citado a salada como prato do dia a dia, percebi
nas falas que a salada é consumida no cotidiano principalmente pela preocupação com a
saúde, não sendo um costume da população anteriormente. A Sra. Celena deixou essa
constatação clara em sua fala:
Em Vila Bela, isso... não vem muito assim da salada... então minha mãe prepara o
almoço, ela primeiro preocupa com arroz... feijão e carne... ela é bem carnívora
((risos)) então, a salada fica de lado... sempre a gente briga... discute, prepara
primeiro a salada...
Dentre os alimentos citados na culinária cotidiana da comunidade, identifiquei a
recorrência dos caldos, principalmente de banana e de mandioca, que, geralmente,
acompanham o arroz sem sal, que foi citado muitas vezes como complemento do caldo. De
acordo com Cascudo (2011), o caldo é de origem portuguesa juntamente com a sopa e ambos
eram confundidos no período colonial e influenciaram os pratos brasileiros.
Anterior ao nome de sopa viviam os caldos, correspondendo aos consommés,
servidos quentes, caldus, e a sopa recebeu-se em Portugal valendo refeição porque
realmente era um repasto em sua apresentação [...] A confusão entre sopa e caldo
estabeleceu-se no Brasil do século XVI, ficaram as designações diferenciais: - o
caldo para o molho do cozido, mesmo aproveitado independente, e a sopa sendo um
caldo preparado com forma especial, autônoma, abrindo a refeição da tarde, o jantar
que era a portuguesa ceia, o souper na França (CASCUDO, 2011, p. 534).
Além do caldo, a banana e a mandioca foram bastante citadas em outros quitutes,
como farofa de banana, carne com mandioca e paçoca com banana frita.
A banana, segundo Cascudo (2011), era a fruta predileta das pessoas escravizadas:
“nunca recusavam peixes ou bananas que eram sua fruta preferida. Comiam banana com
farinha, mel de engenho e açúcar mascavo” (CASCUDO, 2011, p. 213).
O consumo da banana com a farinha condiz com o que percebi durante o Chá Afro. Na
mesa da festa, encontrava-se pequenos recipientes de paçoca de pilão, cada um com uma fatia
de banana verde. Perguntei para anfitriã da festa o porquê da banana em cima da paçoca, ela
respondeu que se trata da tradição de Vila Bela comer a paçoca ou a farinha habitualmente
com a banana.
A banana era recorrente na comida dos negros:
A alimentação do negro em uma propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão
negro, toucinho, carne seca, laranjas, banana e farinha de mandioca. Essa
51
alimentação reduz-se, entre os pobres, a um pouco de farinha de mandioca
umedecida, laranjas e bananas (CASCUDO, 2011, p. 2002).
O caldo de mandioca também foi bastante mencionado, além da farinha feita dela.
Cascudo (2011) expõe que a mandioca foi considerada o pão do Brasil:
Não tanto milho, arroz, feijão eram recomendados, mais principalmente a mandioca
que se responsabilizaria pelo pão do Brasil. Essa valorização continua e notória,
ainda mais consolidou no espirito popular brasileiro a impressão da
indispensabilidade da farinha, julgada, pela predileção das indicações oficiais, base
do alimento diário (CASCUDO, 2011, p. 210).
O autor argumenta que se produzia a farinha de mandioca, milho e arroz no Brasil
colônia intensamente: “Plantava-se a mandioca de uma maneira que recorda o processo dos
nossos pequenos lavradores de hoje em alguns estados: em montículos de terra muito fofas,
de proposito sem dúvida para facilitar assim o desenvolvimento da raiz” (CASCUDO, 2011,
p. 175).
Conforme Cascudo, no interior do país a inserção da mandioca foi realizada pelos
indígenas capturados e escravizados a mando dos bandeirantes, quando estes, juntamente com
outros participantes das bandeiras, paravam para dormir, os indígenas deveriam plantar a roça
de mandioca, além de caçar a carne. Neste contexto surgiu a paçoca feita da farinha da
mandioca e da carne seca (CASCUDO, 2011).
Ficava um bandeirante com uma turma aguardando a maturação. Ali mesmo,
arrancadas as raízes do solo, improvisava se farinha aos fardos, fechadas em palha
trançada, alcançavam a bandeira distante, onde estivesse, nos lombos infatigáveis da
tropa de choque ameraba. A carne obtinha-se na caçada. A paçoca nascia,
indispensável e completa. Resolvia o duplo imperativo de comer sem deter-se e
possuir os hidratos de carbono e a proteína animal, em estado útil. [...] Paçoca: carne
fresca ou seca, assada ou frita, desfiada ou cortada em pedaços pequenos e socada ao
pilão ou passada a máquina, com farinha de mandioca (CASCUDO, 2011, p. 742).
O consumo de doces após as refeições foi pouco citado durante as entrevistas, sendo
que raras entrevistadas falaram do biscoito, canjiquinha e do arroz doce, no entanto, não do
consumo frequente destes no cotidiano. Na festa, verificamos a existência do doce de mamão
e de leite, além de biscoitos e bolos, mas todos foram pouco citados nos questionamentos da
festança.
A pouca importância dada para o doce no município seria pelo fato deste não ser
historicamente tão expressivo na cultura brasileira como na portuguesa? Mesmo não sendo
citados com recorrência nas entrevistas cotidianas, os doces estavam presentes na festança, na
Reza Cantada, os biscoitos de polvilho, no Almoço da Imperatriz, os doces de leite e mamão e
52
no Chá Afro, a variedade de doces e bolos, inclusive os próprios cubos de cana de açúcar à
mesa. Nas festas populares portuguesas havia doces. Seria a influência dessas festas na
festança vilabelense?
Cascudo (2011) relata que o doce era presente nas festas populares em Portugal:
Nas terras velhas as festas populares determinavam aparecimento de acepipes e
doces indispensáveis a euforia coletiva da ocasião. As comidas do natal São João,
semana Santa, Carnaval, portuguesas, não podiam admitir aclimatação no Brasil
pela diferença climatérica. Dezembro é verão e junho inverno brasileiro, ao inverso
de Portugal. Vieram as datas jubilosas, mas a culinária não imigrou
qualitativamente. O milho festejou o São João e o peru ameríndio dispensou o porco
do Natal (CASCUDO, 2011, p. 370).
Assim como as festas religiosas católicas tiveram influência portuguesa, sua culinária
pode ter sido inserida no ritual do vilabelense, bem como a própria entrada do doce no país,
que, conforme Cascudo, não era costume nem dos índios, nem dos negros, sendo apresentado
a esses povos pelos portugueses.
Antes do indígena, o Africano mordera a cana de açúcar mas não provara açúcar.
Seria a revelação do português plantando as moendas verticais no Brasil: Doce, doce
como o mel, era o mel de abelhas, anterior ao gênero humano, amado pelas três
bocas da etnia brasileira, nem os negros nem os amerabas faziam doces além da pura
degustação da sacarose vegetal e mastigar os favos das colmeias, com cera, abelhas
e mel, conjuntos. Criaram galináceos, detestando ovos. Tabus para muitos grupos
africanos e sem sabor para os indígenas (CASCUDO, 2011, p. 591).
Não só os doces, mas toda constituição alimentar brasileira ocorreu de forma
diferenciada, em um contexto específico de um país colonizado, que recebeu e recebe
influências de povos de culturas diversas. Maciel e Menasche (2004) argumentam quanto à
complexidade cultural advinda da construção alimentar brasileira.
Em linhas gerais, pode-se dizer que as populações que se deslocaram para as
Américas trouxeram com elas seus hábitos, costumes e necessidades – todo um
conjunto de práticas alimentares, incluindo plantas, animais e temperos, além de
preferências, interdições e prescrições –, é importante salientar que as várias
influências não são meras "contribuições", mas fazem parte de um processo colonial
que confrontou povos diferentes e, consequentemente, sistemas alimentares muito
diversos (MACIEL, MENASHE, 2004, p. 1).
O processo de construção cultural repercutiu nas condições da cozinha de Vila Bela
que encontramos hoje, a presença do doce, assim como a forte influência do catolicismo
português, fazendo parte dessa trajetória.
53
O toucinho também foi bastante exposto, principalmente quando utilizado no feijão e
na preparação do Massaco (considerado o pão vilabelense, feito de banha de porco), prato
típico descrito por Celena e outras entrevistadas, que é feito de banana e toucinho, além da já
citada banha de porco, geralmente saboreado e tendo como acompanhamento de chá de
cidreira, mate dentre outros. O prato é consumido no café da manhã, substituindo o pão.
De acordo com Cascudo (2011), o toucinho era a alimentação dos negros escravizados
de cidades juntamente com outros alimentos.
A alimentação dada aos senhores escravos consiste farinha de mandioca, feijão,
carne seca, toucinho e banana. Também toucinho, feijão e farinha eram infalíveis na
refeição do negro das cidades, negro de ganho a jornal ou artesão. Descendentes de
escravos de Vila Bela ainda mantém muito da comida escrava em sua vida cotidiana
(CASCUDO, 2011, p. 2003).
O arroz, feijão, caldos de banana, mandioca, a carne e o toucinho são recorrentes tanto
na abordagem histórica da alimentação brasileira como na fala das entrevistadas quanto a
comida do cotidiano. Assim como na festança em que foram preparados para o Almoço da
Imperatriz no centro comunitário. Portanto, os descendentes dos escravizados de Vila Bela
ainda mantêm muito da comida escrava em sua vida cotidiana, a tradição e a ligação com seus
ancestrais implícita em seus hábitos alimentares.
Com a primeira análise do que as entrevistadas comem no cotidiano, posso construir
um panorama com a alimentação ordinária dos vilabelenses em geral. O duplo olhar que Pais
(2006) engendra como “intrometido e comprometido” é aguçado nas conexões dos relatos da
culinária local e sua trajetória, o que justifica e explica seus costumes e rituais, enriquecendo
e inspirando ainda mais a pesquisa.
As constatações feitas quanto à primeira questão da comida cotidiana auxiliarão na
análise das outras perguntas feitas as entrevistadas a respeito da comida ordinária, já que essas
observações trazem um primeiro entendimento dos aspectos culinários e culturais dos
vilabelenses. Questionei sobre quem escolhe o cardápio e quem cozinha, para saber quem são
as pessoas que administram e influenciam diretamente a preparação da comida na casa. As
respostas foram semelhantes, sendo que em todos os relatos a comida é responsabilidade das
mulheres da casa. Os maridos e genros contribuem em uma coisa ou outra, mas não cozinham
efetivamente e não escolhem o cardápio diretamente.
Quando as entrevistadas mencionam o churrasco, então aparece a contribuição ativa
masculina, ao gerir o processo de preparação. Este prato foi relatado menos na comida
cotidiana do que nas ocasiões festivas e esporádicas. Cascudo (2011) explica que a
54
responsabilidade do homem com a carne é recorrente, assim como a ideia da mulher ser
responsavel por cozinhar. “O homem assou a comida desde tempo imemorial. Milênios antes
de possuir cozinha, mesmo com seu surgimento o domínio pertencia a mulher. A lição
classica e que o homem asse e a mulher cozinhe” (CASCUDO, 2011, p. 507).
2.2 VOCÊS TÊM FOME DE QUÊ?
Quando perguntei às cozinheiras se no momento de cozinhar, elas levavam em conta o
gosto dos outros membros da família, a maioria das respostas foi negativa, que tudo que elas
têm é a iniciativa de fazer com que todos comem, e não há a possibilidade da não aprovação
da comida, todos comem o que tem. Porém analisando o discurso das entrevistas, algumas
delas levam em consideração o gosto dos outros membros da família, mas percebo que, por
terem uma semelhança de gostos, este fato fica implícito, as cozinheiras não questionam o que
os familiares querem, pois já possuem a informação.
Celena observou que:
Olha, simplesmente lá em casa, praticamente todos os cardápios que a gente come,
todo mundo come... não tem isso de ai! não como isso, não como aquilo... então já
agrada a todos, geralmente agrada a todos... Não... precisa nem pensar que... eu não
como isso, eu não como aquilo, graças a Deus a gente não tem isso.
Arlene disse que todos aceitam o que ela prepara: “Não sendo egoísta... mas,
geralmente, todo mundo gosta quando eu escolho fazer uma macarronada para fim de
semana... Assar uma carne... Ou um peixe... Fazer um prato meio diferente todo mundo aceita
aquilo que eu faço”.
Deva relatou que:
Eu faço e eles gostam de tudo que eu faço... faço varias coisas em casa… É... se eu
faço um arroz com frango ele gosta... se eu faço um frango com carne de porco ele
gosta... se eu faço frito... saladinha de tomate... feijãozinho... farofinha... então ele
gosta de tudo e nunca reclamou... Se eu fizer ovo ele gosta ((risos))...
Não só nos discursos citados, mas, na maioria dos relatos das cozinheiras, fica
implícita a afinidade do gosto alimentar existente entre os familiares, e essa afinidade pode
ser compreendida quando analisamos o significado de gosto e o de gosto alimentar.
55
Bordieu (2007) relaciona o significado de gosto com o conceito de habitus,
defendendo que o gosto é a escolha de distinção ou apreciação de práticas e produtos.
O habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e,
ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas.
Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de
produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de
apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social
representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida (BOURDIEU, 2007, p. 162).
Mas, o que essa capacidade de escolha entre um produto ou prática diz a respeito do
gosto alimentar dos moradores de Vila Bela? De acordo com Santos (1997), o gosto alimentar
é passado de geração para geração, e este fato explica a afinidade nas escolhas da mesa do
grupo estudado. Para o autor, o gosto alimentar de uma comunidade é passado através de
rituais culturais.
É determinado não apenas pelas contingências ambientais e econômicas, mas também
pelas mentalidades, pelos ritos, pelo valor das mensagens que se trocam quando se
consome um alimento em companhia, pelos valores éticos e religiosos, pela
transmissão inter-geração (de uma geração à outra) e intra-geração (a transmissão vem
de fora, passando pela cultura no que diz respeito às tradições e reprodução de
condutas) e pela psicologia individual e coletiva que acaba por influir na determinação
de todos estes fatores (SANTOS, 1997, p. 160).
Os conceitos citados auxiliam à compreensão da fala das entrevistadas de Vila Bela, já
que se entende que o gosto da comunidade foi construído socialmente, as escolhas e
distinções alimentares fazem parte de um gosto comum. Quando as entrevistadas afirmam que
os familiares comem e aceitam o que elas preparam, o que acontece é que eles se apoiam na
existência de escolhas e gostos sociais pré-estabelecidos e que são expressos na aprovação das
refeições e compartilhamento de valores socioculturais.
No compartilhamento de valores também existem as hierarquias sociais, que surgem
das distinções construídas socialmente (BORDIEU, 2007), pois que, com a escolha de
produtos diferenciados, a estrutura de classes vai sendo criada, e, nesse contexto, percebi que
muitas entrevistadas são de classe média e baixa. Verifiquei esse aspecto nas suas condições
básicas de moradia, quando entrei em algumas das casas para realizar as entrevistas, e
segundo relatos de algumas moradoras e entrevistadas, muitas famílias de Vila Bela e entorno
sobrevivem da agricultura familiar e de subsistência, o que certamente contribui na
constituição dos gostos compartilhados na culinária e em outros aspectos culturais.
56
Outras questões levantadas foram como elas aprenderam a cozinhar os pratos que
faziam no cotidiano, quais eram os pratos de sua infância, se faziam receitas tradicionais,
ensinadas por suas mães e avós. Percebo que nestas questões também podemos considerar a
constituição socioculturais dos gostos que são desenvolvidos socialmente e passados
ritualmente de geração para geração.
Nessa transferência de conhecimentos, a realidade social vai sendo construída,
estabelecida pelos significados culturais adquiridos por determinado grupo. Berger e
Luckmann (2004) abordam a construção social da realidade, avaliando que o mundo é tecido
a partir do conhecimento e da atribuição de sentido depositada nele, se tornando real para os
que o criaram e o recriam e acreditam em sua existência.
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade cercada
pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido
que imprimem a suas vidas mas é um mundo que se origina no pensamento e na
ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles (BERGER,
LUCKMANN, 2004. p. 36).
Mas, o que é construído socialmente no mundo culinário em Vila Bela? O que
aprenderam a construir? É na análise da vida cotidiana que irei responder essas questões.
Embora existam várias realidades, o conhecimento adquirido na realidade da vida cotidiana,
de acordo com Berger e Luckmann (2004), e a que prevalece: “Entre as múltiplas realidades
há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência. É a realidade da vida
cotidiana. Sua posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade
predominante” (BERGER; LUCKMANN, 2004. p. 38).
2.3 CONSTRUÇÃO DA REALIDADE NA COZINHA PASSADA DE GERAÇÃO A
GERAÇÃO
Para enxergar a realidade da vida cotidiana em Vila Bela através da comida, partindo
da perspectiva da construção da realidade passada de geração à geração, analiso as respostas
das cozinheiras sobre a fonte do conhecimento da sua cozinha.
Os questionamentos que me aproximam dessas respostas são onde aprenderam a
cozinhar e quais eram os pratos e receitas tradicionais e de infância, analisando os discursos, a
maioria das entrevistadas expôs que aprenderam a cozinhar olhando suas mães e familiares e
descreveu suar relações sociais ao falar dos pratos que comiam quando eram crianças.
57
A entrevistada Celena disse: “Olha, isso aí é olhando a minha mãe fazendo mesmo...
ninguém me ensinou assim... Sabe? Faz isso e isso... É olhando mesmo a minha mãe
fazendo... As minhas tias... Então a gente acaba aprendendo ne?” Ela tambem falou sobre sua
infância.
Olha, na infância eu me lembro que comia bolo de arroz feito no pilão, assado na
folha de bananeira... aí de manhã, minha mãe preparava um chocolate... já comeu
chocolate de amendoim? Então, como a minha família era de sete irmãos, então
geralmente a minha mãe preparava assim aquele banquete... bolo de arroz... biscoito,
mas isso só em tempo de festa, então, quer dizer, que era bem tradicional mesmo
tudo feito manual... socado... né, peneirado o arroz depois a preparação do bolo... e a
gente acompanhava com chocolate de amendoim... torrava o amendoim socava no
pilão e colocava agua quente… Virava um chocolate...
Celena descreveu um doce ainda não citado, que é o chocolate de amendoim, além do
bolo de arroz e do biscoito. Nesta fala fica claro que o doce no município evidenciado em
períodos extraordinários, não sendo um costume cotidiano, assim como a festa de santos, é de
influência portuguesa. A construção culinária aqui se revela, a comida, que é típica e tem forte
influência de africanos escravizados, ressignifica-se durante o período festivo, com a adição
dos doces concomitante à adoração dos “santos portugueses”.
Arlinda revelou que cozinhar esta no sangue da família, “vem de berço”. Esta fala
demonstra explicitamente como o ato de cozinhar e o gosto alimentar têm forte relação com
os ancestrais. Ela disse que não se recordava claramente da infância, porque foi criada com a
madrinha, mas sabe que comia o básico: arroz, feijão e carne. Falou que foi criada na cidade,
e que faz receitas de sua mãe e avó, como a paçoca e a farofa. Considera como pratos
tradicionais a Maria Isabel, galinha, peixe e a macassa, que é o baião de dois. Segundo ela,
macassa é na linguagem africana.
Percebi que não só a senhora Arlinda, mas outras entrevistadas que apresentavam mais
idade, como a Sra. Gertrudes, referiram-se ao baião de dois como macassa, e se
considerarmos que este nome é da linguagem africana como expôs a entrevistada, o nome
adquiriu outra nomenclatura com o passar do tempo.
Natália relatou: “Eu aprendi a cozinhar com a minha mãe... eu vejo as pessoas
cozinhando... assim, receita eu nem... olho receita por olhar... mas eu mesmo... eu olho as
pessoas cozinhando e aprendo”. Na infância comia feijão, carne e verdura, mas disseque hoje
não faz receitas da sua avó porque não a conheceu, porém faz comidas da mãe, falando que
ela a ensinou a fazer muitas coisas, como arroz e feijão com muito alho.
58
A comida com muito alho e muito tempero é citada também por Celena, que disse que
a comida dos negros vilabelenses sempre é carregada de condimentos, diferente da comida
dos moradores que vem imigrando para Vila Bela. Quando eu sugeri um exemplo a ela, falou-
me do arroz: “Eu percebo que nós, vilabelenses, cozinhamos arroz que fica soltinho com
bastante alho e óleo e o do imigrante fica diferente... é o arroz papa e grudento e que não
coloca nem alho”.
A fala de Celena, assim como os relatos da Sra. Arlinda, evidencia o fenômeno das
combinações culturais, mostrando que a comida da comunidade, tanto cotidiana quanto
festiva, já é uma mistura e que se altera com o passar do tempo, com as hibridações culturais
dos novos habitantes que chegam ao município e influenciam na alimentação tradicional.
Celena revelou que a festança estava recebendo muitas influências dos imigrantes, mas que
agora voltou a ser tradicional.
Olha, Vila Bela hoje é uma mistura. Hoje a gente percebe que vilabelenses são
poucos... porque, por falta de oportunidade, muitos saíram da sua terra para procurar
melhora... todos foram para Cuiabá, Cáceres, e estão vindo pessoas que antes não
moravam aí, então a gente percebe que vai se misturando muito grande... questão de
cardápio também, porque eles os imigrantes entram também na culinária
vilabelense... Então o tempo da festança era sempre mantido culinária... hoje não...
Hoje não é mantido porque hoje a gente percebe que ali tem churrasco... tem
salpicão... tem molho madeira... que foge da culinária africana... então isso acontecia
há uns três anos, agora hoje não, hoje já faz alimentação da festança voltada mais
para a cultura vilabelense mesmo... por lá você vê paçoca... você vê arroz com
carne, você vê é feijão com toicinho, então já está mais.
A entrevistada Cecília, assim como vimos com Arlinda quanto ao baião de dois,
também comentou sobre a mudança de nomenclatura dos pratos, citando, dentre as comidas
tradicionais que ela faz, o arroz carreteiro, prato que anteriormente era chamado de Maria
Isabel: “É o arroz com carne, que antes se falava Maria Isabel... e hoje nós falamos arroz
carreteiro... Outros falam arroz com carne”.
Por ter sido criada por sua madrinha, aprendeu a cozinhar com ela e posteriormente
com sua cunhada. Ela disseque os pratos não tradicionais, aprendeu vendo outras pessoas
fazerem.
Olha... Eu aprendi assim com a minha madrinha... porque eu morei com ela e fui
criada um tempo com ela e depois acabei de aprender com a minha cunhada, que eu
vim e fui ficar um pouco com a minha cunhada, e depois essas outras comidas...
massas... maionese e essas outras coisas eu fui aprendendo, assim, vendo os outros
fazerem. [...] Na infância, comia pratos vilabelenses caseiros: farofa, paçoca, banana
frita, arroz com carne.
59
A entrevistada deixou claro que os pratos tradicionais que ela sabe fazer são os que
aprendeu com a família, mas os que são considerados modernos por ela e pela maioria das
entrevistadas, aprendeu com outras pessoas. O que é considerado tradição para Cecília é o que
veio dos rituais culturais culinários passados de geração para geração, como é o caso da Maria
Isabel. Porém, os pratos que posteriormente não obtiveram influências familiares, como a
maionese e as massas, não fazem parte do conhecimento adquirido através da família.
A senhora Adena aprendeu a cozinhar com a mãe, com a avó e em um hotel que
trabalhou: “Olha... aprendi a cozinhar com a minha mãe... a minha avó... a minha tia Jona... eu
trabalhei muito tempo no hotel Guaporé... desde criança, quando o meu pai morreu... aí fiquei
com eles la e fui aprendendo a fazer comida com eles”.
Na infância falou que comia massaco de banana, bolo de arroz, farofa, banana frita:
“Era só isso mesmo... e esse negócio de chá... chá de capim santo... erva cidreira... e tem um
chá que nós gostávamos muito... Tem um nome que eu não lembro... só sei que é chá que nós
todos tomamos”.
Ela contou que faz as receitas da avó como o bolo de arroz e o biscoito de polvilho.
Faz comidas tradicionais no dia a dia e citou uma experiência em que fez essas receitas:
“Estes dias eu rezei para a minha santa e fiz uma boloiada e chicha12 para o pessoal rezar em
uma ladainha aqui... foi divertido mesmo... Se você estivesse aqui você iria gostar ((risos))”.
Percebo que quando as ocasiões se tornam extraordinárias os doces aparecem no
cardápio da festa, quer seja a grande festança de julho ou uma festa particular para o santo. Os
doces, bolos e, no caso de Adena, a chicha, que vi no período da festança e não nas
observações cotidianas, são pratos priorizados em rituais esporádicos e não no dia a dia.
Algumas entrevistadas falaram que aprenderam a cozinhar em brincadeiras de
infância, brincando de “quitute”, que é brincar fazendo comida de verdade. Esse fato mostra
como a culinária sempre esteve inserida no contexto social das mulheres de Vila Bela que
vivem a cultura da cozinha em períodos ordinários e extraordinários, muitas expondo o prazer
de cozinhar em casa e auxiliar no preparo da comida da festa.
12 A “boloiada” que a entrevistada expôs são as variedades de bolos que ela fez em homenagem a santa, e a
chicha, considerada o suco de Vila Bela, é citada por Moura (2005) como uma bebida que foi utilizada e
produzida primeiramente pelos indígenas. A autora cita os estudos de Bohn Martins (2000), que informam que:
“Os conjuntos de práticas sociais que envolviam o consumo de bebidas alcoólicas pelos índios Guaranis ou ‘as
festas da Chicha’ eram traduzidos pelos religiosos jesuítas como ‘borracheiras’, um vício com inspirações
demoníacas e generalizadas entre as populações indígenas Os rituais de iniciação de primeiras colheitas e outras
comemorações, ocasião de festas comunitárias e até mesmo intergrupais, efetuadas em contextos revestidos de
simbolismos, onde aconteciam danças, jogos, cantos, troca de noticias, de presentes e alimentos, e uma
preparação prévia de muita comida, e o uso de bebidas como a Chicha, eram vistos pelos missionários da
Companhia de Jesus como um dos problemas a serem superados pela ação civilizatória e evangelizadora”
(MOURA, 20005, p. 248).
60
Deva falou dos quitutes como brincadeira de infância e disse que as mulheres mais
antigas têm uma autonomia ao cozinhar que as mais jovens não possuem, estas precisam olhar
na internet.
Sabe, aqui em Vila Bela todo mundo já sabe fazer comida desde pequeno... brincava
de fazer quitute... então desde pequeno eu sei cozinhar... aqui... agora, que o pessoal
de hoje até que não sabe... tem que olhar na internet e não sei o quê... nossa!... nós,
mais antigos, assim de cinquenta anos para cima, aprendemos a fazer sozinhos,
assim olhando a mãe fazer... brincando de fazer comida... assim, uma turminha...
antigamente a gente brincava... na infância, antigamente, a gente saia no mato, assim
para brincar... fazer casinha... fazia a comida de verdade... comia... hoje as crianças
não fazem mais... [...] Daqui de Vila Bela, eu comia de tudo... porque nosso prato
aqui mesmo era mais galinha caipira... porque não tinha de granja... era galinha
caipira no quintal... porco... carne de porco e peixe... era o que nós consumia dentro
de Vila Bela.
Quanto aos pratos de infância, Deva narrou que não faz mais nenhuma receita,
porém disse que faz comida que “mulher velha gosta” e citou o arroz com carne, arroz
carreteiro, baião de dois, ela falou como se prepara o baião de dois: “Baião de dois e aquele
feijão e arroz junto... pessoal de Vila Bela come muito baião... É gostoso... aí você frita um
ovinho caipira ou então um bife...Um lobó frito...peixe frito ou cozido((risos))”.
Os pratos que as mulheres mais velhas gostam são os considerados tradicionais para a
maioria das entrevistadas. Deva contou que o baião é considerado tradicional e mencionou
outros pratos tradicionais como o caldo de lobó branco, um peixe da região com caldo com
muito tempero e cebola, que pode ser feito com peixe frito.
Deva revelou ainda que os vilabelenses gostam muito de banana frita, arroz sem sal
com carne seca, que é feita secando a carne e a assando, geralmente sendo saboreada com este
arroz ou com xibe,13 prato que, até então, não tinha sido citado, mas que essa entrevistada
disse ser tradicional, sendo feito com farinha e agua: “Você pega a farinha e coloca no prato
ou no copo e põe água... aí faz aquela água com farinha e come com carne assada...
antigamente comia muito, sabe? Agora que esse pessoal não come mais”.
Deva também expôs como podemos aproveitar o arroz colocando açúcar:
O arroz é sem sal de uma vez... eu gosto... vilabelense gosta dessas coisas bem
antigas... arroz sem sal é só com água... às vezes você pega aquele arroz também que
sobra e coloca água e açúcar, depois da sobra, se tiver fome mais tarde, se quiser
comer um arroz, uma coisinha diferente, você pega o arroz, põe água gelada e põe
13 O conceito do xibe, citado pela entrevista, converge com o exposto nos relatos de Cascudo: “O xibe ou jacuba
é a farinha de mandioca com água. Simplesmente. Bebida de remeiros, caçadores, seringueiros, indiada vadia
nas sombras das aldeias” (CASCUDO, 2002, p. 136).
61
açúcar e come... Essa comida daqui era assim antigamente... não comia muito óleo...
agora que começa a comer com óleo.
Suelen também falou das experiências fazendo quitutes e que seu conhecimento da
cozinha veio ao ver outras pessoas cozinhando.
Eu aprendi fazendo e vendo outras pessoas fazer... assim, desde criança... Minha
mãe... nós tínhamos também uma brincadeira de fazer quitute... quitute que reunia
bastante criançada da vizinhança toda... daí cada um levava uma coisinha, daí a
gente aprendia cozinhar assim, fazendo comidinha... [...] A comida mesmo assim... o
comum... a mesma coisa... o feijão... o arroz… Assim o massaco... paçoca...
Mandioca... peixe... o meu pai era pescador e pegava muito peixe…
Esta senhora falou que faz receitas tradicionais que a mãe ensinou, como bolo, caldo
de banana, arroz sem sal e o baião de dois. Citou8 a carne seca que, hoje em dia, nomeia-se
como carne de sol, mais uma vez a nomenclatura é alterada: “Arroz sem sal e carne assada na
brasa... carne de sol que fala... mas a gente falava carne seca... fazia aquele arroz só na água,
assava uma carninha e comia... ou colocava farinha com água e comia com a carne... era
gostoso.
Suelen fez referência a outros pratos tradicionais como o arroz carreteiro, feijoada,
caldos, chicha e massaco de banana verde. Para ela, fazer a chicha engorda.
Fica gostoso, e comia no chá de manhã aquele massaco... é daqui o massaco...
chicha também é daqui, porque até hoje a gente ainda faz chicha... Às vezes, faço
chicha quando está muito quente, porque ela e refrescante... então eu faço a chicha...
só que engorda muito, por isso que não dá... sabe, coisa de milho engorda... o doce
de milho tambem e muito bom... o doce de milho e uma delicia.
É possível perceber na fala das entrevistadas que a mãe tem papel essencial na
construção da realidade e de seus valores, e através da comida, é possível observar a função
materna da passagem dos conhecimentos adquiridos, que influenciam nas escolhas e na
concretização da realidade cultural. Muitos dos pratos, receitas e ingredientes tradicionais
citados pelas cozinheiras, convergem com os mencionados no dia a dia e analisados
anteriormente. Portanto, a tradição faz parte da realidade cotidiana dessas mulheres e suas
famílias e são tradicionais porque se mantêm vivos na alimentação desde quando suas mães e
avós os preparavam.
A análise do que se repete nos pratos citados traduz o senso comum das opiniões das
entrevistadas. Essas opiniões são muito valiosas para este trabalho, pois permitem enxergar no
que realmente acredita a comunidade de estudo, o que valoriza e o que mantém em suas
62
refeições cotidianas. Berguer e Luckmann (2004) defendem a importância de se analisar as
interpretações do senso comum.
O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase-
científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos
descrever a realidade do senso comum temos de nos referir a estas interpretações,
assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas
fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos
(BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 37).
2.4 QUAL É A COMIDA EXTRAORDINÁRIA?
Estudei a comida cotidiana e suas relações com a tradição e cultura dos vilabelenses,
e, em alguns momentos, a comida da festança atravessou esses relatos. Mas, o que mais posso
considerar da comida extraordinária? É importante compreender o contexto da festança,
utilizando minhas percepções das visitas e participação nestas, para dar suporte ao discurso
das entrevistadas e essas duas fontes de dados auxiliarem no embasamento da análise.
Como já exposto, realizei uma visita de campo na época da festança em julho de 2013,
juntamente com professores e pesquisadores da UFMT, e nesta experiência pudemos
participar de uma multiplicidade de rituais que estavam inseridos nas festas que participei: a
Reza Cantada, que é um evento em que os moradores e visitantes da cidade se encontram na
casa de algum morador para rezarem e cantarem ladainhas aos santos; o Almoço da
Imperatriz, que é o almoço realizado no centro comunitário organizado pelos imperadores
sorteados no ano anterior; e o Chá Afro, café da manhã na casa de uma moradora, com direito
a comidas típicas quilombolas e que remete a cultura dos antepassados vilabelenses.
Nestes três momentos, eu estive em contato com a culinária local, o que foi relevante
para realizar notas etnográficas14 do universo que presenciei e uma primeira observação dos
hábitos alimentares da comunidade. Tive a oportunidade de participar ativamente da
preparação da comida, desta maneira, pude “entrar no mundo” das cozinheiras da festança, o
que muito contribuiu para aquisição de dados, assim como para o processo de análise.
14 As notas etnográficas utilizadas neste trabalho já foram expostas em um primeiro trabalho, que constitui um
artigo sobre a festança realizado por mim e pela Prof.ª Dra. Juliana Abonizio. O artigo publicado na revista
Documento Monumento, intitulado Comida Ritual em Vila Bela: Análise da experiência da Reza Cantada,
Almoço da Imperatriz e Chá Afro, expõe nossas observações e experiências na participação e preparação da
comida das três festas religiosas de Vila Bela, o que auxiliará na descrição do observado e das posteriores
análises da comida extraordinária deste trabalho.
63
O primeiro ritual que participei foi a Reza Cantada, que ocorre anualmente na época
da festança, e se caracteriza por uma união de fiéis na casa de um anfitrião da cidade, que se
unem para rezar e cantar ladainhas, que são cânticos religiosos. A celebração ocorreu durante
a Festa do Divino.
No dia 20 de julho, a reza cantada deu início à Festa do Divino, que aconteceu em
uma casa em frente à praça da cidade, e estava decorada com o altar do divino,
montado com a bandeira, a pomba, o mastro e a coroa, que correspondem aos
componentes representantes do império do Divino Espírito Santo. Esta reza é
caracterizada como cantada, porque é composta por ladainhas (ABONIZIO, FAVA,
2013, p. 357).
Enquanto as pessoas participavam da celebração, fomos até a cozinha da casa onde
várias pessoas preparavam a comida que seria servida no próximo dia, no Almoço da
Imperatriz.
Na cozinha pudemos observar a comida sendo preparada, mas não era a comida que
seria servida na Reza, era a comida a ser servida no dia seguinte […] Naquele
momento, três homens cortavam carne e duas mulheres organizavam as bacias que
já estavam cheias. Uma informante local, voluntária nos preparativos, disse que tudo
devia estar preparado para o almoço do outro dia, e que os membros da comunidade
que estavam trabalhando ali eram amigos dos Imperadores do Divino e estavam
ajudando com tudo que era preciso para o Almoço da Imperatriz. Ela disse que,
além da casa onde estávamos, em mais casas estavam sendo cortadas as carnes para
levar ao centro comunitário, e que a carne era doada por quem criava os gados,
geralmente moradores dos povoados que estão mais afastados do centro
(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 357).
Durante nossa conversa com o pessoal da cozinha, algumas mulheres começaram a
organizar um lanche para servir as pessoas que participavam da reza, e, neste momento, pedi
para auxiliar na distribuição. O lanche era composto de biscoitos assados na comunidade e da
Chicha citada pelas entrevistadas, que é uma bebida considerada pela população como suco
vilabelense, que é feita de milho torrado e tem relação com a história da comunidade.
A chicha ser considerada o suco vilabelense, […] tem forte relação com o contexto
histórico-econômico da comunidade, ja que […] o milho era uma das únicas
alternativas de sustento dos negros na época da mineração, estes tinham que
otimizar o máximo que pudessem a utilização e potencial dessa matéria-prima.
Verificamos o uso do milho em bolos, e nos biscoitos, os últimos também foram
servidos no final da reza, em pequenos pacotes. Junto, foi servido a chicha, em um
grande balde e depois em garrafas plásticos de onde se vertia o suco em copos
descartáveis (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 358).
No outro dia participamos da preparação da comida para o almoço comunitário
denominado Almoço da Imperatriz.
64
No almoço, o cardápio era carne de churrasco, mandioca cozida, arroz, feijão, farofa
com carne , banana e cenoura, salada e, como sobremesa, doces de mamão e leite
[…]deparamo-nos com muitas pessoas fazendo a comida da festa.O número delas
mudou, alguns componentes chegaram depois para auxiliar no preparo e
organização do centro comunitario. […]Havia mais mulheres do que homens na
cozinha, os últimos cuidavam do assar e cortar as carnes e bananas (ABONIZIO;
FAVA, 2013, p. 359).
Além do auxílio na cozinha, ajudamos a servir a comida às pessoas no centro
comunitário, havia uma grande fila, íamos servindo a refeição em pratos de plástico, além de
outros recipientes trazidos pelas pessoas para levarem para casa.
Quando começamos a servir o lado de fora, percebemos que as pessoas pediam uma
grande quantidade de comida, levando ao limite da extensão os pratos descartáveis,
nos quais a comida era servida. Também distribuíamos talheres de plástico.
Algumas pessoas iam para fila com recipientes plásticos, inclusive potes vazios de
sorvete, pedindo que fosse servido mais. A ideia era levar a comida para casa.
(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 361)
No outro dia, iniciaram-se as comemorações e rituais da Festa de São Benedito, e
neste dia recebemos o convite de uma das festeiras para participarmos do Chá Afro, que foi
um café da manhã com receitas típicas na casa de uma moradora.
Trata-se da oferta de um café da manhã ofertado pela festeira em sua casa após a
Missa em homenagem a São Benedito. Este chá, diferente dos rituais citados, não
está no cronograma da festa, tendo como público os convidadados da anfitriã que
eram familiares, amigos, agregados e jornalistas, apesar de estar aberto ao público.
Mesmo com um caráter mais intimista que os outros rituais citados, exitia sim um
interesse de divulgação da culinária, haja vista que todos os pratos apresentavam
legenda com o nome e sabor, e os jornalistas tomavam nota (ABONIZIO; FAVA,
2013, p. 362).
A mesa do chá era composta por vários pratos e bebidas típicas de Vila Bela, e que,
segundo a anfitriã da festa, tinham influência africana e quilombola:
O chá era composto de muitos pratos típicos da culinária africana e quilombola. Na
mesa econtramos o canjinjin […] composto de agua ardente, gengibre, cravo, mel,
canela, raizes, erva-doce [...] a mesa estava composta por licores, como Leite de
Onça e o Sassafraz, considerada bebida afrodisíaca, Cha “Levanta Tudo”, feito de
canela e gengibre, Cha do “Amor Carrancudo”, Cha dos “Apaixonados”, com folha
de manjericão, cana de açúcar em pequenos palitos, bolos e biscoitos diversos, como
o bolo de milho, fubá, e biscoito de Ramos, banana frita, bolo de arroz, feito na
folha de bananeira, chicha de milho, saltenha afro-chiquitana, castanhas, paçoca de
pilão, banana frita, cangica, pipoca, além do mamão em cubos. O que estava claro
era o desejo de ser uma referência à África, inclusive nas roupas de estampa étnica
ostentada pela anfitriã (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 362).
65
Percebo que a comida de infância das cozinheiras é a comida considerada tradicional
para elas. Mas, o que elas dizem da comida extraordinária da comunidade? Elas são
tradicionais? Estas indagações surgiram quando realizei as entrevistas em dezembro. As
perguntas quanto à festança foram feitas tanto para as cozinheiras ativas na preparação da
comida como também para as mulheres que participavam como convidadas. Perguntei o que
achavam das comidas servidas na festa e do modo de servir, se pensam que a comida servida
é tradicional de Vila Bela, a diferença da comida da festa e da comida cotidiana dentre outros
questionamentos.
A maioria das cozinheiras da festança disse que a comida é tradicional de Villa Bela e
que aprova a comida da festa, grande parte concorda com o modo de servir nas filas, dizendo
ser a forma mais organizada, haja vista que o volume de pessoas da festança aumentou. De
acordo com os relatos, anteriormente a comida era servida na mesa, e para elas era mais
confortável e melhor.
Na visita de julho de 2013, observei que existia uma divisão nos locais onde era
servida a comida, os convidados da Imperatriz e Imperador comendo em uma sala separada
no centro comunitário e o restante, dos que vinham para festa, do lado de fora do local.
Perguntei se as entrevistadas concordam com esse modo de servir e grande parte diz que não
vê problemas nessa divisão. Embora a Imperatriz e o Imperador sejam membros da
comunidade responsáveis pela festa, o título de festeiro e festeira do Almoço da Imperatriz
atribui poder aos contemplados, e essa posição segrega os demais membros da comunidade a
desfrutar das regalias na hora do almoço, como o espaço exclusivo aos convidados da
Imperatriz.
Celena e convidada da festa e falou que a comida e muito boa: “Tempero excelente,
até porque é liderado por vilabelenses mesmo... Já tem aquelas cozinheiras que sempre estão
ajudando, sempre estão ali”. Ela tambem gosta do modo de servir, acha que há organização:
Agora tem a mesa, as pessoas servindo... fazem a fila... todo mundo come... já está
uma maneira bem organizada em relação a antes... até porque também o local...
existe um local único para toda... servir toda a refeição de todos os festeiros... antes
comia na casa do festeiro... hoje não... hoje é um local único, o centro comunitário...
mudou...
Quanto ao que pensa da comida, ela entende de modo diferente das cozinheiras da
festança em geral, ao expor que não é mais tão tradicional como antes, que, apesar de ter
alguns pratos típicos, como a paçoca e a chicha, o bolo de arroz e o biscoito de ramos, que,
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inclusive conservou-se a técnica de preparo (todo desenhado e assado na folha de bananeira),
não tem mais o caldo de banana, o massaco, mas novos pratos como o salpicão e saladas frias.
Para Celena, a diferença da comida da festa para a cotidiana é especificamente o tempero.
Arlene também é convidada e relatou gostar da comida da festa: “Mas, para comer
todos os dias, eu garanto que a pessoa iria ficar bem ‘obesinha’”. Ela disse que o cardápio da
festa é típico da cidade, e quando perguntei do modo de servir, ela remeteu ao tratamento e a
hospitalidade do povo, recordando-se de como a comunidade é calorosa, e quando questionei
a maneira como se serve, ela disse preferir quando servem na mesa de cada um, porque é mais
aconchegante e organizado, e explicou o procedimento:
Tem vezes que colocam mesas para servir... aí todo mundo fica sentadinho em suas
mesas... aí vem as meninas servindo nas mesas ou então, quando não acontece isso,
fazem filas... duas ou três filas e servem todo mundo… Geralmente depende muito
de cada festeiro né... do rei... da rainha... da Imperatriz... depende de cada dono da
festa que vai dar o jantar... que vai dar o almoço... eles organizam do jeito que eles
querem e fica mais a critério dos festeiros.
Quando perguntei a diferença da comida cotidiana para a da festa, Arlene comentou
que na festa se come de tudo de bom que tiver, “Desde o doce na festa faz aquela fartura
mesmo...”, e em sua casa, no cotidiano, não é assim, já que sua comida é só para duas
pessoas, ela faz um pouquinho de cada prato “Tipo assim, se hoje mesmo eu fiz uma
macarronada e uma salada de tomate só, foi de carne moída, só isso e pronto, não fiz arroz,
não fiz outra coisa, só foi isso, então em casa a gente diminui bastante”.
Cecília é convidada e achou a comida da festa gostosa e bem temperada, e quanto ao
modo de servir, ela, no início, não gostava, mas agora ela gosta, pois já se acostumou, antes
não fazia fila e agora tem. Cecília contou que hoje, em todo lugar que se vai, tem fila, e que
foi necessário se acostumar. Disse que o cardápio é típico de Vila Bela por ter arroz, feijoada
com toicinho de porco e às vezes fazem com linguiça com arroz carreteiro. Para ela, não
existe diferença alguma da sua comida do dia a dia para a da festa.
Suelen também foi para prestigiar a festa como convidada e considerou a comida da festa boa
e falou que eles servem o que é típico da comunidade, porém não gosta do modo de servir,
“Eu não gosto não, do modo de você ficar na fila... Eu não gosto... Preferia que eles
cobrassem uma taxa... Mas que todo mundo ficasse sentado e fosse servido”. Ela disse que a
comida da festa é quase a mesma que faz em casa, que modifica algum prato ou outro, mas é
praticamente a mesma coisa da festa.
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Natália é convidada e também gosta muito da comida da festança e achou os pratos
tradicionais, porém não aprovou o modo de servir. “Eles organizam as filas... quatro ou cinco
filas e as pessoas vão à fila e começam a servir... Eu acho certo”. Para ela, a diferença entre a
comida da festa e cotidiana é que em sua casa existem mais caldos, enquanto na festa a
comida é mais seca.
A diferença é que lá eles fazem... que nem carne assada -- que eles variam -- é carne
assada... arroz... é que às vezes, em casa, a gente quer comer um caldo... e lá não faz
caldo... lá é mais comida seca... faz farofa... arroz com linguiça... arroz com carne
seca... mandioca... churrasco... salada... que não tem essa em casa... se você quer
fazer um caldo... você vai fazer um caldo... é diferente.
Para a Anne, a diferença da comida da festa para cotidiana é que “Na festa tem muito
povo de fora... então você tem que caprichar e é muita coisa... e na sua casa é simples... é
como hoje mesmo, eu fiz um bife... um arroz... um feijão e uma salada de pepino... é uma
coisa bem simples... não e como na festa”.
Arlinda também é cozinheira da festança e gosta do que faz na festa e do modo de
servir, acha que os convidados em fila é o melhor modo. Para ela, a diferença entre a comida
da festança e a cotidiana, é que da festa é tradicional e em casa adiciona-se outros pratos que
se escolhe.
Genésia também faz a comida da festa, gosta da comida e do modo de servir em fila,
porque considera mais tranquilo. Quanto a diferença entre comida da festa e a sua cotidiana,
ela entende que: “Na festa e muito, e assim... a gente em casa quase não liga de fazer arroz
com linguiça... assim... arroz carreteiro... a gente faz... mas não é muito e na festa é
frequente”.
Mara tambem cozinha e gosta da comida e do modo de servir. “É ótimo. É a melhor
maneira até de a gente tratar o pessoal melhor e de não ficar muitas pessoas e muitas horas na
fila... porque fica... queira ou não queira, ainda fica... porque é quase mais de quatro e cinco
mil pessoas e a comida é de graça”. Quanto às diferenças da comida cotidiana e festiva, ela
defendeu que a diferença é a quantidade e expôs minuciosamente como prepara sua comida.
É a mesma coisa... do mesmo jeito que eu faço... do mesmo jeito que eu faço na
minha casa eu faço lá... o mesmo maneira... por exemplo... de fazer se eu for
escaldar a carne é três ou quatro vezes... se eu vou fazer eu faço lá e faço aqui... por
que o meu arroz carreteiro eu não uso corante... o meu arroz carreteiro é feito... eu
corto a carne... cozinho a carne... salgo... é escaldo bem ela... depois eu corto a
cebola... eu douro a cebola bem dourada ai eu jogo a carne que vai cozinhar com
aquela cebola dourada... ai você vai fritando e ela vai pingando água e ai ela vai
dourando por si... a cebola ela fica... ela torna um dourado e ela mesmo doura as
coisas e é por isso que eu uso muita cebola
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Mauriane é cozinheira e também gosta da comida e do modo de servir, já que vê que
em fila dá menos trabalho do que ir de mesa em mesa. Ela entende que a única diferença da
comida da festa para a do dia a dia é a quantidade.
Nilza, Sra. Valdeci e Vaniara são cozinheiras da festa e gostam da comida e do modo
de servir. Nilza acha pratico: “É um modo bem mais pratico do que as pessoas mesmas
ficarem se servindo... daí eles servem aquele tanto e acaba desperdiçando... daí, as pessoas
estando ali, vai servindo... se elas querem mais voltam para fila, repetem”. Quanto às
diferenças entre a comida cotidiana e a festiva, elas disseram que não há diferença, porque a
comida é quase a mesma. A Sra. Valdeci e Vaniara acham que a única coisa que muda é a
quantidade, e dona Nilza contou que a comida se difere apenas porque em casa se cozinha no
fogão a gás e na festa, no fogão a lenha. É uma das únicas convidadas que não citou a
quantidade como diferença.
2.5 QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE A COMIDA COTIDIANA E FESTIVA?
A união das observações com a análise do discurso das cozinheiras auxiliou na criação
de um panorama da comida ordinária e extraordinária, suas nuances, contrastes e semelhanças
que são o reflexo da cultura da comunidade.
Com a análise das entrevistas percebo que, por mais que a opinião das entrevistadas
tenha sido semelhante quanto à questão das diferenças entre a ocasião cotidiana e festiva,
existem sim diferenciações entre estas duas ocasiões. Primeiramente, nas casas que visitei,
além de alguns relatos das próprias entrevistadas, percebi a presença de muitas frutas,
principalmente da manga e do caju, que não foram citadas no uso cotidiano porém são
frequentemente consumidas na comunidade, quer seja no consumo do fruto ou do suco.
Mesmo algumas entrevistadas não enxergando diferenças no modo de preparo e na
comida do cotidiano para a da festança, como vimos em seus relatos, muitas citaram o uso de
temperos industrializados na preparação de sua comida do dia a dia, e na festança não vi o uso
destes condimentos, apenas o uso do sal, alho e cebola. Além disso, como pudemos perceber
nas entrevistas sobre a comida do dia a dia, os pratos consumidos no cotidiano são geralmente
compostos de carne, salada, arroz, feijão e um caldo de banana ou mandioca, e não do que
geralmente é servido na festança, como arroz carreteiro, churrasco, farofa, arroz com linguiça
ou galinha dentre outros pratos citados.
Percebi nas entrevistas com as cozinheiras, principalmente as envolvidas na festança,
69
certa ênfase ao retratar a comida tradicional. Pareceu-me que a vontade de expor os pratos
típicos e defender certa identidade, era mais acentuada do que discorrer sobre seus pratos do
cotidiano. Notei que elas falavam da comida como se fizesse parte de sua profissão, não só
como cidadãs, mas como se dedicassem suas vidas a fazer comida.
De acordo com Rocha (2010), a comida é um dos principais conectores identitários de
um grupo social.
O alimento pode ser considerado um eixo central na estruturação identitária dos
diversos povos. Desde o seu princípio, as práticas culinárias como cortar, cozer,
assar, temperar, macerar, defumar, entre outras, variaram em grau de complexidade
de povo para povo (ROCHA, 2010, p .2).
Penso que Vila Bela possui uma relação muito forte com a culinária e seu grau de
complexidade é alto neste contexto. A culinária transcende o cultural e se transforma em uma
parte das cozinheiras, uma extensão delas. O valor da cozinha é percebido na dedicação e no
orgulho de saber cozinhar. Esse conhecimento que é passado de geração para geração, como
visto nos relatos da infância, além de trazer a identificação das cozinheiras, faz parte de uma
filosofia de vida, cozinhar para muitas delas é existir. Maura, em seu discurso, deixou clara
sua identificação e devoção à cozinha.
Eu comecei a cozinhar de dois mil... mil novecentos e noventa e cinco... desde o
momento que o meu pai foi festeiro – que ele caiu na festa do congo -- eu aprendi
ter essa responsabilidade... foi aonde eu comecei a adquirir... a dar, assim, valor a
nossa tradição... então desse momento eu comecei a cozinhar e de lá para cá eu
nunca mais parei [...] Para mim, cozinhar é o que eu gosto de fazer, é a minha
paixão .. A minha vida é cozinhar...
O uso de elementos históricos relacionados à alimentação auxiliou a compreensão de
alguns hábitos alimentares dos moradores de Vila Bela, já que justificam a utilização de
determinados ingredientes, pratos típicos e receitas da comunidade, como vimos na utilização
da carne, arroz, feijão, banana, toucinho, milho e mandioca, por exemplo.
Quanto às diferenças da comida cotidiana para a da festança, uma das únicas
distinções mencionadas pelas cozinheiras, é em relação a quantidade, esta diferença foi citada
pela maioria das delas. Embora algumas cozinheiras tenham exposto que são mais
caprichosas na realização da comida da festa, e que a comida de casa é mais variada, essas
não demonstram grandes contrastes entre uma situação e outra.
Porém, percebo diferenças nas duas ocasiões. Enquanto na comida cotidiana verifica-
se o arroz, o feijão e a carne de forma básica, que não parece ter nada a acrescentar e mudar,
70
características que, como vimos, fazem parte do cotidiano, na festança há um incremento
diferente, que altera a condição simplificada e repetitiva do dia a dia, quer seja no acréscimo
de pedaços de carne no feijão, a banana no arroz, a recorrência da farofa de carne, que não é
tão citada no cotidiano, e a carne que, em vez de cozinhada, é feita no churrasco.
Essas misturas nas refeições estão presentes nos pratos tradicionais mencionados no
discurso da infância das entrevistadas, esses com relação direta na comida extraordinária,
sendo diferentes dos habituais pela mistura e incremento para formar a refeição, como o arroz
carreteiro, que é o arroz com carne, o baião de dois, de três ou de quatro, que é o arroz
misturado com feijão, carne e a banana.
Ainda que algumas entrevistadas tenham citado alguns quitutes tradicionais nos pratos
do dia a dia, a maioria deles é feito em período extraordinário, como é o caso dos doces
servidos na Reza Cantada, no Almoço da Imperatriz, nos pratos do Chá Afro, e em outras
situaçãoes extraordinárias, como pode ser verificado na reza ao santo, na casa da Sra. Adena.
Esses eventos justificam a preparação do tradicional, feito, especificamente, em
acontecimentos festivos.
As diferenças da comida ordinária e extraordinária têm relação com sua própria
condição temporal. A comida extraordinária é a comida que remete aos rituais festivos que
aprenderam com seus antepassados, tem ligação com a valorização da tradição refletida na
maior frequência em pratos tradicionais do que vemos no cotidiano. A comida das festas se
difere da comida cotidiana, porque esta não é incrementada como os pratos tradicionais, é
básica, ordinária, é “o feijão com arroz”.
CAPITULO 3 – REFLEXOS IDENTITÁRIOS E SENTIMENTOS EXPRESSOS NAS
COMPRAS ORDINÁRIAS E EXTRAORDINÁRIAS
A análise das compras das cozinheiras auxiliou na compreensão de alguns de seus
valores sociais, já que através das escolhas de compra e do contexto que as cercam, é possível
identificar as peculiaridades de quem compra e de sua relação com seus familiares ou com
outros membros da comunidade.
3.1 COM QUE FREQUÊNCIA VÃO AO MERCADO?
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Para começar a compreender como funcionam as compras na comunidade, perguntei
às donas-de casa qual é a periodicidade que vão ao mercado. A maioria diz ir as compras
mensalmente, adquirindo produtos não perecíveis e produtos de limpeza. Porém, quando
começam a descrever o que compram, acabam relatando outras idas ao mercado durante a
semana, que são para comprar produtos como frutas e verduras, para abastecer a casa no
consumo diário da família.
Embora existam as compras semanais, elas não foram lembradas pelas cozinheiras
quando perguntei a frequência que iam ao supermercado. O fato de não incluírem essas
pequenas compras em suas falas tem relação com o que Goidanich (2012) aborda quanto a
pouca importância dada as compras cotidianas pelas pessoas. Pelo fato de realizarem as
pequenas compras no dia a dia, as cozinheiras lidam com elas de forma banal, por serem
habituais, nem sequer lembram ou as consideram. “Compras e consumo são pressupostos
básicos para a manutenção da vida cotidiana e suas rotinas e, como tal, são dados como certos
e pouco se reflete sobre eles” (GOIDANICH, 2012, p. 19).
Além das compras realizadas semanalmente na comunidade, algumas cozinheiras
citaram o recebimento da cesta de quilombo. Essa cesta, de acordo com o site da Fundação
Cultural Palmares (2015), é proveniente de uma ação do Ministério de Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, e se caracteriza por ser uma cesta básica de auxílio alimentação
para descendentes de quilombolas que cadastram nome e CPF, e assim tem direito ao
recebimento mensal do auxílio. Algumas moradoras disseram ter seus nomes e dos membros
familiares cadastrados.
Ação de Distribuição de Alimentos (ADA) é coordenada pelo Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Cabe à Fundação Palmares a indicação
das comunidades quilombolas que receberão as cestas, a partir dos critérios
estabelecidos pela Ação. Cabe também à FCP o controle do recebimento e da
distribuição das cestas. O controle é feito por meio dos formulários de prestação de
contas que os beneficiários assinam ao receberem as cestas em suas comunidades
(FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, Disponível em:
http://www.palmares.gov.br/ge_id=12 acesso em: 15 janeiro 2015).
O jornal Diário de Cuiabá (18/07/2005) e o relato da entrevistada Anne, trouxeram
informações quanto as organizações responsáveis pelo auxílio alimentação em Vila Bela que
são as Associações de Comunidades Remanescentes de Quilombo Bela Cor e Associação
Rural Negra de Vila Bela/Quilombo Acorebela. As associações atuam em busca de recursos
financeiros junto ao governo.
72
A cesta auxilia as donas de casa com os mantimentos básicos, e por isso influencia na
frequência e quantidade concernentes as compras das famílias da comunidade. Na época que
conversei com a entrevistada Arlene, ela estava recebendo a cesta havia cinco meses, e, por
essa razão, suas compras passaram a compor apenas frutas e verduras. Ela não participou das
reuniões anteriores e por isso começou a receber o auxílio alimentação depois de outras
moradoras.
Como eu recebo a cesta do Quilombo, eu só compro carne e verdura né, que é uma
vez por mês [...] Quando abriu essa associação dos quilombolas, até então eu nunca
tinha participado, daí o presidente me chamou falando que a minha família fazia
parte de um quilombo e tal… E acabei fazendo a minha inscrição… O quilombo que
tem aqui é Acorebela, [...] Por não ter muitas reuniões e quando tinha não participei,
eu estou começando agora a pegar as cestas mais sério, tem uns quatro, cinco meses.
[...] Já vinha antes, mas até então eu não pegava, é da turma do Retiro.
Embora algumas entrevistadas recebam a cesta de quilombo, a Sra. Deva disse que
não se pode contar com o auxílio todo mês, e por isso deve considerar a compra de
mantimentos caso a cesta não chegue.
Como está só eu e o meu marido... quase que não compra muita coisa... porque tem
a cesta... tem arroz... tem feijão... tem macarrão... Às vezes, a gente compra mais
verdura e carne. Mas não é toda vez que tem cesta também... tem vezes que falha, aí
você tem que comprar tudo....
3.2 QUEM FAZ AS COMPRAS?
Buscando compreender o que as escolhas de compras expressam quanto às
particularidades das famílias, perguntei às cozinheiras quem compra a comida e quem escolhe
o que vai comprar em suas casas. A maioria das mulheres revelou que são elas mesmas quem
compram e escolhem o que deve ter e o que não deve ter no carrinho das compras cotidianas.
Porém, houve exceções, duas entrevistadas disseram não serem as responsáveis pelas
compras. A Sra. Adena contou que quem escolhe e faz as compras é o marido, e parece estar
satisfeita com essa atribuição do esposo: “Ele mesmo escolhe o que vai comprar... Ele já sabe
tudo o que está faltando dentro de casa... Eu não preciso nem falar... Ah... Eu quero tal coisa...
Está faltando tal coisa... Ele abre a geladeira e vê... Ele abre o armário e vê o que está
faltando, ele mesmo que compra”.
Suelen também é uma exceção entre as entrevistadas, já que é seu marido quem realiza
a compra e, ultimamente, escolhe quais os mantimentos para a casa. Porém, sua situação é
73
diferente da Sra. Adena, já que, em seu caso, ela não gosta que o marido decida sozinho os
produtos que serão comprados, Suelen alega que o marido compra o que quer e isso a deixa
irritada: “O meu marido nem me pergunta o que eu quero... Vai lá e compra... Me irrita... Mas
o que é que vai fazer? É que às vezes a gente quer fazer alguma coisa diferente e ele vai lá e
compra outra coisa... Só o que ele quer”.
A irritação de dona Suelen por não fazer as escolhas de compra em sua casa, assim
como o fato da maioria das entrevistadas fazerem questão de se responsabilizarem pelas
escolhas e compra dos mantimentos, pode ter relação com um sentimento comum entre as
donas-de-casa observados por Miller (2002) e Goidanich (2012), que é o de serem mais
capazes e responsáveis em determinar escolhas de consumo para suas famílias, sentindo que
sabem melhor do que ninguém o que é adequado para seu lar e para “os seus”.
Nas pesquisas de Goidanich (2012), realizadas com donas-de-casa da cidade de
Florianópolis-Santa Catarina, a autora constata que as compradoras se sentem mais capazes
de realizar as compras que seus companheiros, e nos momentos que eles fazem as compras,
devem respeitar condições que elas determinam e que estejam de acordo com sua gestão. Este
fato é um indício da busca pelo controle da casa.
A autora (2012) salienta que, mesmo com as várias transformações da sociedade
contemporânea, a mulher ainda sente o dever de cuidar da casa, das práticas e afazeres
domésticos.
Apesar de todas as transformações da sociedade, cuidar da casa, ser uma boa dona-
de-casa, continua sendo uma marca de respeito e proficiência nas sociedades
contemporâneas. Como se observa nas compras de produtos de limpeza e nas
descrições que fazem das formas como limpam ou gostariam de limpar, também
estas práticas, carregadas de importância simbólica e moral, são esforços que as
mulheres empreendem no sentido de dar ordem e estrutura ao cotidiano
(GOIDANICH, 2012, p. 223).
Miller (2002) também percebe, em suas pesquisas com donas-de-casa de Londres-
Inglaterra, a preocupação com a administração das casas e das compras. O autor expõe as
entrevistadas sentiram ter uma capacidade maior para escolher o que é melhor para seus
familiares.
Ao justificar suas decisões, as donas-de-casa geralmente reclamam possuir uma
perspectiva mais ampla do que a dos demais membros da família. Vêem-se como
possuidoras de uma antevisão que evitará o embaraço e o desdém de que sua família
poderá ser alvo se vestirem como eles próprios escolherem ou se determinarem sua
própria alimentação (MILLER, 2002, p. 32).
74
A semelhança dos resultados das análises dos autores com o que foi observado nos
relatos das cozinheiras de Vila Bela, exprime valores sociais da comunidade que são o
controle e necessidade feminina na gestão das escolhas e decisões da cozinha. As vilabelenses
entrevistadas são, em sua maioria, mulheres matriarcas, que possuem um papel soberano na
opinião do que é melhor para seus familiares.
Os estudos de Miller (2002) se assemelham a outra percepção que tive das relações
sociais em Vila Bela, que é a da legitimação de sentimentos pelos familiares e comunidade
através dos atos de compra. O autor expõe que as práticas de compras podem expressar
sentimentos de devoção, egoísmo, hedonismo entre outros, destacando o amor como
sentimento predominante no momento de comprar.
Nem toda prática de compras se relaciona com o amor; existem outras mais ligadas
ao egoísmo, ao hedonismo, à tradição e a uma série de outros fatores. Contudo, o
que afirmo é que o amor não só é normativo como também é facilmente dominante,
com o contexto e motivação da maior parte das verdadeiras práticas de compra
(MILLER, 2002, p. 36).
Miller (2002) constatou em suas conversas com as donas-de-casa de Londres, que
legitimam seu amor por seus familiares através da compra de alguns agrados ou presentes.
Presentear, para o autor (2002), é um ato que transcende o objetivo da compra básica e
necessária e, desta forma, enquanto as compras cotidianas têm a função de suprir as
necessidades, os presentes são caprichos e por isso envolvem outros sentimentos e
motivações.
O que pretendo defender é que o dar-se um presente por si só define todo o resto das
compras, em relação ao comprador, com compras não-realizadas com o intuito de se
dar um presente, ou seja, como direcionadas a necessidade, à moderação, e em
benefício de uma entidade mais ampla (MILLER, 2002, p. 54).
3.3 PRESENTES: LEGITIMAÇÃO DO AMOR ATRAVÉS DA COMPRA DE AGRADOS
ALIMENTÍCIOS
Ao visar compreender se no município de estudo as donas-de-casa entrevistadas fazem
o mesmo que as entrevistas por Miller (2002) na sua pesquisa em Londres, perguntei se ao
irem as compras costumam trazer agrados para os familiares. A maioria compreende os
agrados comprados como presentes aos seus familiares, o que facilita as relações com os
estudos de Miller (2002). Quando questionei se levam presentes aos membros da família as
75
respostas foram majoritariamente positivas, nas quais citaram uma variedade de produtos que
levam para casa.
Celena respondeu que pensa mais nos filhos na hora de escolher presentes no mercado
do que em si mesma, expôs o que gosta de comprar para ela, mas fez questão de falar que é
principalmente para o filho. O que demostra o ato de amor legitimado na compra.
Eu procuro trazer algo que agrada a todos... até porque todos chegam a um consenso
que isso é bom e que vai fazer bem... Eu vou e compro, principalmente para o meu
filho ((risos)). Que quer comer, por exemplo - mãe quero comer um creme de milho...
quero comer uma lasanha... aí já vou... compro os ingredientes e já preparo. Para
mim... Olha eu não preocupo assim não... é assim, se eu estou a fim de comer uma
coisa assim diferente, eu vou e compro, se eu estou a fim de uma lasanha vou e
compro o ingrediente... bobó de galinha...
Arlene foi ainda mais enfática ao revelar que pensa primeiro na filha na hora de
comprar ou dar um agrado, disse que é mãe coruja e seu ato de amor fica ainda mais explícito.
Mais para ela... eu acabo sempre esquecendo de mim assim... eu acho que é um pouco
daquela mãe coruja demais... sério, eu acabo sempre esquecendo de mim e sempre
trago para ela... como eu sei que ela gosta de maçã... gosta de uva... às vezes uma
caixinha de chocolate... aí eu levo para casa.
Cecília não faz questão de demostrar seu ato de amor, disse que compra sorvete pra
ela e que não leva agrado para as crianças. Porém, depois acabou confessando que o sorvete é
para todos da casa e que todos gostam.
Quando perguntei sobre os presentes para Deva, ela contou que compra para ela e
também para o marido. Ela gosta de chocolate e ele de amendoim, no entanto os dois comem
juntos um pouco de cada.
Natália pensa no filho em primeiro lugar, o menino mesmo pede um presentinho
quando ela vai fazer as compras.
Sempre quando vou no mercado, ele pergunta o quê que eu vou levar para ele... Aí
eu levo um brinquedo... E de comer, um chocolate ou um pacote de pirulito. Para
mim, não trago só produto... assim... de cabelo... xampu... essas coisas. De comida,
para mim, só frutas.
É possível verificar na fala das entrevistadas que os presentinhos comprados são, na
maioria, petiscos, e que não fazem parte de suas refeições habituais. De acordo com as
pesquisas de Miller (2002),
76
O presentinho é tido também por uma aquisição levemente transgressora, algo
calórico ou doce, além de caro pelo pouco que oferece [...] a palavra “presente”
parece evocar não só a ideia da extravagância, mas também a de comidas que
engordam (MILLER, 2002, p. 55-60).
Dentre os presentes citados, podemos observar que fogem ao habitual e se inserem no
universo dos alimentos calóricos e transgressores. Os apresentados por Celena foram lasanha
e creme de milho, por Arlene, que apesar de citar primeiramente as frutas, finalizou falando
da caixa de chocolate, Deva mencionou amendoim e barra de chocolate, Cecília, sorvete, e
Anne falou em doces de caju.
Adena e Suelen são as únicas entrevistadas que relataram não ter o costume de incluir
presentes na compra da família. No caso delas especificamente, os maridos são os
responsáveis pelas compras da casa. Suelen disse que o marido “só compra o que ele quer, o
que ele sentir vontade, ele compra para ele comer... Mais é verdura mesmo e carne assada...
ele gosta muito de carne assada”.
O curioso no depoimento das últimas entrevistadas citadas é que são as únicas cujos
maridos realizam as compras, e também as únicas que não são contidas de lembranças para os
familiares. Percebo que comprar presentes e agrados é um ato da mulher que legitima seu
amor pela família, assim como é função feminina ser dona-de-casa. Os homens podem não ter
sentido a necessidade de realizar esse ato por entenderem não estar verdadeiramente inseridos
nesta função. Nos casos expostos, eles não tiveram a preocupação de levar algo extra que
simbolizasse o carinho e amor por suas esposas e filhos, e, provavelmente, legitimam seu
amor em outra função que ideologicamente pertencem a eles.
Miller (2002) observa em sua etnografia que, na maior parte dos casos, mesmo
existindo envolvimento dos homens nas compras, estes percebem a atividade como atribuição
da mulher.
Mesmo as exceções, configuradas por homens influenciados pelo feminismo, que
positivamente se identificam com o fazer compras, tendem a ver nessa atitude
precisamente um ato feminista. Eles vivenciam suas compras como uma forma
deliberada de discriminação positiva pela qual esperam obter (e quase sempre de
fato recebem) muito mais crédito do que uma mulher que se limita a fazer compras
em conformidade com o que tradicionalmente se espera dela (MILLER, 2002, p.
53).
Goidanich (2012) identifica, em suas pesquisas com as donas-de-casa, uma
necessidade da mulher em preservar a imagem de suas famílias, e nesta perspectiva,
transmitem essa preocupação com as compras para suas filhas.
77
As mulheres despendem grande energia em construir e manter a imagem pública de
suas unidades familiares, bem como se dedicam a repassar estes conhecimentos para
suas filhas. Ou seja, as compras associadas a tarefas de cuidado que historicamente
recaem sob a responsabilidade das mulheres, apresentam uma forte marcação de
gênero (GOIDANICH, 2012, p. 220).
Essa necessidade de transmitir o valor da compra para as filhas também ficou clara nas
entrevistas que realizei em Vila Bela, já que a maioria das mulheres comentou que, quando
não fazem as compras ou quando necessitam de ajuda, levam suas filhas para auxiliar. Assim
como pude notar que as mulheres aprendem na infância a cozinhar, posso dizer que também
aprendem a comprar.
Segundo Miller (2002), o papel feminino nas compras já é intrinsicamente aceito pelo
homem e pela mulher, lidando de forma natural com a liderança feminina nas práticas de
compra: “Muita coisa é revelada por essa diferença no tratamento do comprador homem e da
compradora mulher. A mulher compradora está ideologicamente inscrita na norma,
independentemente das estatísticas que demonstram toda uma diversidade de práticas
(MILLER, 2002, p. 53).
A ausência da preocupação dos homens da casa de Suelen e Adena, quanto a levar
algo extra para a família, fica mais compreensível quando consideramos que presentar através
de compras de mercado é um ato feminino, assim como identifico que o fato da maioria levar
os presentinhos para seus familiares, evidencia o valor social do amor e preocupação das
mulheres da comunidade por suas famílias.
De acordo com as análises, o controle feminino nas escolhas da família e o amor das
mulheres por seus familiares foram até então os valores sociais expressos nas compras das
cozinheiras de Vila Bela. Quais são os outros valores sociais que posso identificar nas suas
decisões no mercado?
3.4 VOCÊS FAZEM ECONOMIA?
Miller (2002), em seus estudos, percebe que o ato de economizar é um dos mais
importantes na hora da compra, expondo que a relevância dada ao ato de comprar produtos
para os lares é tão relevante quanto economizar. “A economia pode ser mais bem
compreendida não, como se pode supor, como meio para algum outro fim, mas como um fim
em si mesmo” (MILLER, 2002, p. 63).
O que as cozinheiras de Vila Bela pensam do ato de economizar? Perguntei a elas se
costumam fazer economia quando fazem compras e a maioria respondeu positivamente. Mas,
78
como acontece essa economia? Compram produtos mais baratos? Buscam uma menor
quantidade? Ou uma melhor qualidade? Em que produtos economizam? Essas questões são
relevantes pelo fato de que comprar o produto mais barato, não é a única maneira e nem
sempre é a melhor forma de economia, podendo envolver outras estratégias de se extrair
benefícios dos produtos comprados.
A variedade de meios pelos quais um senso de economia pode entrar numa ida às
compras é bastante extraordinário. [...] A economia enquanto experiência não
equivale de fato a gastar menos dinheiro, [...] seu propósito nas compras de modo
algum é tão simples como pode ter sido previsto (MILLER, 2002, p. 63).
Arlene contou-me sobre sua ida ao mercado. Disse que nem sempre pensa em
economia, apenas quando está sem dinheiro. Quando precisa economizar, ela corta da compra
o produto que está com preço mais elevado, deixando muitas vezes de comprar produtos que
gosta. “Eu já deixei de comprar sardinha, que eu gosto, por causa do preço... Enlatadinha é
mais cara ne, outros peixes tambem”.
Assim como essa cozinheira, Cecília revelou que abre mão do produto que está com o
preço elevado, deixando para comprar os produtos realmente necessários, mesmo que estes
estejam mais caros.
Eu procuro economizar... Às vezes não compro tomate... Mas é só o tomate mesmo
quando está muito caro... Mas o resto tem que comprar, porque são coisas que
precisam... são caros... mas não tem jeito... porque o feijão também aqui está muito
caro... o arroz aqui está caro... mas tem que comprar, eu compro... O feijão... Às
vezes está cinco reais ou seis... mas a gente tem que comprar porque não pode ficar
sem ele. A carne e o frango também estão caros, mas tenho que comprar.
O fornecimento da cesta de quilombo também influencia na economia da casa de
quem a recebe, e faz com que a realidade das compras mude. Muitos dos produtos, para quem
ganha a cesta, não são englobados na compra e desta forma a lista pode mudar e assumir
outras prioridades. Anne comentou que quando o arroz está muito caro, ela espera vir o da
cesta de quilombo, o que muda a perspectiva de sua compra. “Sabe o que eu achei caro?
Arroz... Aí eu fui lá na prateleira e ‘Meu Deus!’ ... Arroz de dez e doze! Vou esperar a cesta
de quilombo... ”.
Respostas semelhantes foram dadas pelas entrevistadas Natália e Adena quando
pergunto sobre a economia no mercado, ambas frisaram que economizam comprando o que é
de qualidade, já que, para elas, o produto que muitas vezes parece mais convidativo pelo
79
preço, pode não ser de qualidade ou eficiente. As duas cozinheiras disseram que “o barato sai
caro”.
Suelen e Anne também economizam de forma parecida, pois pechincham os produtos
junto aos fornecedores. Suelen revelou que pechincha na compra de verduras: “Eu economizo
na hora de comprar verdura.... Mesmo porque a gente pechincha onde é que está a verdura
melhor... Onde esta mais barato para poder comprar...”. Anne disse que “Tem que olhar o
preço dos produtos... Você tem que pechinchar... Porque se não é uma conta alta que você não
aguenta nem pagar... Não e mesmo?”
Conforme Miller (2002), pechinchar é parte do ato de economizar: “O primeiro e mais
importante elemento da economia nas compras em supermercados está na busca de savers. O
saver é um termo generico da língua inglesa que designa diferentes tipos de pechincha”
(MILLER, 2002, p. 65).
Na conversa com Deva, percebi que ela não só economiza no preço, mas também na
qualidade, priorizando a quantidade da carne na compra, que é o produto que citou
economizar. Ela contou-me que tem um sítio na beira do rio e que gosta de chamar os amigos
no final de semana para um churrasco. A cozinheira falou que, embora goste de picanha,
quando está muita cara, prefere fazer economia e acaba comprando outros cortes de carne
mais baratos para render para os amigos que vão chegando e que muitas vezes aparecem sem
avisar. Ela comentou dos cortes de carne mais baratos:
Uma roda de acém, uma costela, alcatra. Se não compra mais barato não dá, porque
sempre chegam mais pessoas... Então, se for um pouco mais caro, não dá, e não
rende para todo mundo. A ponta de peito gostoso é gostosa também e é mais
barata... A fraldinha, que é muito boa, e a linguiça são mais baratas também...
Embora tenham sido citadas distintas formas de economizar, esse ato é levado em
consideração nas compras da maioria das cozinheiras entrevistadas. Portanto, fazer economia
pode ser compreendido como um valor social das donas-de-casa vilabelenses.
A fala da Sra. Deva mostra uma peculiaridade que identifiquei no perfil de várias
moradoras da cidade, que é a liberdade e a frequência das visitas à casa das pessoas sem a
formalidade do convite pelo anfitrião.
Notei nas visitas que realizei, que as moradoras faziam questão de me convidar para
entrar em suas casas, ofereciam petiscos e me pediam para que ficasse para as refeições.
Assim como o depoimento de Deva, percebi que várias moradoras têm em mente que as
80
visitas podem acontecer a qualquer momento, e, por isso, devem estar preparadas e
abastecidas de comida caso mais pessoas cheguem.
Também notei esse costume nas festas de julho, a casa dos moradores recebendo
vários visitantes, como testemunhei na Reza cantada e no Chá Afro. Assim como em suas
casas, os vilabelenses fazem bastante comida durante a festança, caso cheguem mais pessoas
para prestigiar o evento. O mecanismo sempre é a fartura diante do inesperado número de
pessoas que podem chegar.
Ironicamente, a economia e a fartura estão presentes nos valores sociais de Vila Bela.
A economia vista na hora da compra, na pechincha, na busca de melhor qualidade, do menor
preço e do custo benefício. A fartura percebida na grande quantidade de comida da festa e das
casas, com o objetivo de festejar e agregar pessoas.
3.5 PARTICULARIDADES ALIMENTARES NAS COMPRAS DOS VILABELENSES
Além dos valores sociais comuns entre os moradores, foi possível enxergar nas
escolhas de compra das entrevistadas alguns valores particulares, que variam de casa para
casa, o que diferencia a cultura familiar da cultura da comunidade como um todo. Douglas e
Isherwood (2009) observam que as decisões de consumo se alteram com o passar do tempo, e
com elas, a cultura particular toma nova forma e adquire outras prioridades. “As decisões de
consumo se tornam a fonte vital da cultura do momento. As pessoas criadas numa cultura
particular a veem mudar durante suas vidas: novas palavras, novas ideias e maneiras
(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009. p. 102).
Para Lipovetsky (2007), as escolhas de consumo passaram a consideram os desejos
individuais na sociedade contemporânea, “não é o desejo de representação social que
impulsiona o consumo mais os desejos de auto governo, dos poderes organizadores do
indivíduo (LIPOVETSKY, 2007, p. 48).
Para compreender quais são os valores particulares das famílias das cozinheiras,
perguntei quais suas prioridades e do que abrem mão na compra, e elas falaram de produtos
distintos. A entrevistada Deva, que detalhou sua predileção em cozinhar o bobó de galinha,
disse que não pode faltar os ingredientes que compõem o prato de forma alguma, essa
indispensabilidade sendo individual à ela e a sua casa. Celena falou dos alimentos
indispensáveis para ela como leite, chocolate em pó e frutas. Para Arlene, é o azeite que não
pode faltar. Também há produtos que as entrevistadas não fazem questão de adquirir. Adena
citou o refrigerante, Celena, bolacha recheada e embutidos, e Anne, carne de porco. As
81
prioridades das cozinheiras, assim como o que abrem mão na compra, exprimem suas
escolhas individuais.
Gilles Lipovetsky (2007) expõe que a sociedade passou por fases de consumo que
foram se modificando com o passar do tempo. Segundo o autor, a primeira fase foi a do
acesso ao consumo à massa, a segunda trata-se da abundância do consumo e descoberta dos
desejos e prazeres, e a terceira é a do hiperconsumo, a qual a sociedade contemporânea
pertence, em que os desejos particulares são mais valorizados. Para o autor, neste terceiro
momento, a perspectiva do individual e social se alteram.
A terceira fase é marcada pela nova relação emocional dos indivíduos com as
mercadorias, tendo como prioridade o que se sente, mudando o significado social e
individual do universo consumidor que acompanha o impulso de individualização de
nossas sociedades (LIPOVETSKY, 2007, p. 46).
Percebi que a comunidade de estudo se insere na fase do hiperconsumo, já que tem
como valor social a preocupação com suas necessidades e desejos particulares,
compartilhados ou não por suas famílias, mas que se destacam e diferem-se entre as casas das
entrevistadas. Nos produtos que elas escolhem nas compras, por mais que existam os valores
sociais coletivos e os produtos sejam similares aos da comunidade, também encontramos
subversões ao senso comum alimentar expressas nas escolhas particulares.
As escolhas individuais podem ser observadas apenas nas compras do cotidiano, já
que na festança a comida é a mesma para todos. Por mais integrada que seja a cultura local, e
que a festa coloque em evidência a culinária típica vilabelense, não se pode considerar as
características que são únicas de cada família ou indivíduo neste momento.
O foco nas necessidades do indivíduo, além de colocar em destaque os desejos
particulares, trazem consigo a busca pela qualidade de vida e uma maior preocupação com a
saúde. Lipovetsky (2007) coloca a saúde como um dos mais relevantes valores da sociedade
do hiperconsumo.
Os espíritos são invadidos todos os dias um pouco mais pelos cuidados com a saúde,
os concelhos de prevenção, as informações médicas, mas também transmissões,
artigos de imprensa para o grande público. [...] Eis a saúde erigida em valor primeiro
e aparecendo como uma preocupação onipresente quase em qualquer idade: curar
doenças já não basta, agora se trata de intervir a montante para desviar-lhes o curso,
prever o futuro, mudar os comportamentos em relação às condutas de risco, dar
provas de boa “observância” (LIPOVETSKY, 2007, p. 53).
3.6 COMPRAS E PREOCUPAÇÃO COM A SAÚDE
82
Seguindo as colocações do autor, questiono: a comunidade de Vila Bela tem como
valor social a preocupação com a saúde? Perguntei as cozinheiras se pensam na saúde na hora
de fazer as compras e a maioria das respostas foi positiva. Celena pareceu-me uma das
entrevistadas mais preocupadas com a saúde. Mencionou que sua família mudou totalmente
seus hábitos alimentares em pró de uma vida mais saudável.
Geralmente a gente comia massaco como primeira alimentação de manhã... Mas
agora que estamos mudando de vida... Até porque temos tendência para sermos
hipertensos, e por isso temos de evitar comida muito gordurosa... Então mudamos
totalmente o nosso hábito alimentar.
Ela também revelou que sofre de hipertensão, e que por isso vem diminuindo a
quantidade de fritura e o filho, que tem gastrite, diminuiu a quantidade de macarrão, que
comia para se cuidar. Ela passou a observar as calorias, o sódio e a gordura dos produtos.
“Dou atenção a tudo que e saudavel.”
Arlene disse que passou a se preocupar mais com a vida saudável depois que perdeu o
pai, que não cuidava da alimentação, e hoje insere frutas e verduras em sua vida diária.
Eu penso na saúde sim... eu passei... tipo assim... como eu não ligava para saladas...
uma boa fruta... verduras... eu comecei a ligar muito mais para esse lado...
principalmente quando você perde alguém e você vê que é importante... Eu perdi
meu pai por causa da alimentação… Aí… Você acaba aprendendo a dar mais valor
para a sua vida.
O fato de pensar na morte e de dar mais valor à vida, relatado no discurso da
cozinheira, e uma das características da fase do hiperconsumo: “A insegurança, a
desconfiança, a ansiedade cotidiana crescem na proporção mesma de nosso poder de
combater a fatalidade e alongar a duração da vida” (LIPOVETSKY, 2007, p. 55).
Deva também se preocupa com a saúde na hora da compra e com os cuidados que
deve ter com o aumento da idade. Disse que procura comprar carne magra e que tem
acompanhamento médico.
Tenho medo... até porque cinquenta e poucos anos você não pode estar comendo
muita gordura, né? Muita comida pesada... Esses dias eu passei mal... eu comi muito
queijo, que também é pesado se você comer muito [...] carne, por exemplo, eu gosto
de magra. Compro tudo mais magro, até a galinha caipira se estiver muito gorda faz
mal [...] Tem uma doutora aqui, que é gente boa para caramba... Doutora Teresa...
Ela fica policiando não só a mim, como todo mundo, sabe? Eu acho bom porque ela
não deixa para depois né... Ajuda a alertar.
83
Natália e Suelen dizem que compram frutas pensando em uma vida mais saudável.
Suelen disse, “Compro laranja, uva, essas coisas... [...] Meu marido já gosta mais de ameixa e
melancia. Em casa não falta melancia... Hoje só não tem por causa que, à noite, teve uma
mulher gravida que ficou com vontade de chupar melancia e nós demos a nossa para ela”.
Com a análise dos relatos, posso afirmar que a preocupação com a saúde é um valor
social dos vilabelenses, assim como com a qualidade de vida. Por esses valores estarem
presentes na comunidade, é possível concluir que se inserem na fase do hiperconsumo
abordada por Lipovetsky.
Uma das tendências fortes de nossas sociedades coincide com a formidável
expansão das técnicas destinadas não apenas a conservar e alongar a vida, mas
tambem a melhorar a “qualidade de vida”, a resolver cada vez mais problemas da
existência cotidiana tanto dos mais jovens quanto dos mais idosos”
(LIPOVETSKY,2007, p.57).
3.7 QUAIS OS VALORES SOCIAIS EXPRESSOS NAS AQUISIÇÕES DE COMPRAS
FESTIVAS?
Consegui descobrir alguns valores sociais das donas-de-casa por intermédio das suas
compras cotidianas. Quais os valores sociais expressos nas aquisições de compras festivas?
Do mesmo modo que perguntei as donas-de-casa quem era o responsável pelas compras da
família, fiz a mesma pergunta sobre a festa. Todas as entrevistadas falaram que os festeiros
têm o dever de organizar as compras festivas com o auxílio das irmandades, que são
compostas por um grupo de moradores que auxiliam nos preparativos da festa.
Os festeiros muitas vezes compram os produtos com dinheiro próprio e administram o
patrocínio vindo da prefeitura, que, anualmente, disponibiliza uma verba para festança. Além
destas fontes, muitas doações são feitas por amigos, parentes dos festeiros, pela própria
comunidade e entorno rural que doam espontaneamente ou com o incentivo da esmola do
Divino, que é retirada pela caminhada dos festeiros junto à bandeira do Divino Espírito Santo,
passando nas casas pedindo colaboração da comunidade durante a festa.
É possível perceber que as compras para a festança se assemelham as compras
cotidianas, no sentido de que existe uma autonomia do festeiro que escolhe os produtos e faz
as compras, assim como as donas-de-casa, além de haver doações em ambos os casos. Nas
compras cotidianas, a cesta de quilombo mensal, e durante a festança, a verba da prefeitura e
da própria população.
84
3.8 COMPRAS COTIDIANAS E FESTIVAS
Analisando o momento cotidiano e festivo, percebo que as compras realizadas na
comunidade de Vila Bela, de maneira geral, são movidas por uma legitimação de sentimentos.
Se nas compras cotidianas as donas-de-casa expressam o valor social do amor pela família,
durante a festança a comunidade, através dos festeiros, irmandades e da população, também
expressa o valor do amor, além da coletividade e solidariedade por seu povo e por sua cultura,
já que sacrificam tempo, dinheiro e preocupação com a festa.
Algumas cozinheiras relataram que há uma demora em receber as doações da
prefeitura para festa, assim como nem sempre recebem a doação da cesta de quilombo, que,
de acordo com algumas moradoras, deveriam receber mensalmente. Vaniara disse que os
festeiros têm que pagar com seu dinheiro os mantimentos para a festa enquanto não recebem a
verba da prefeitura: “É assim ... Vem o dinheiro da prefeitura para o festeiro para comprar os
ingredientes... Aí como a verba demora, o festeiro já vai comprando tudo antecipado para não
ficar em cima da hora das comemorações”.
Os valores do amor e da solidariedade da comunidade podem ser enfatizados pelo
comprometimento com as compras independente das doações realizadas. Embora as doações
ajudem os festeiros na arrecadação de comida, não são seguras e regulares, os envolvidos com
as compras precisam estar preparados para assumir as responsabilidades caso não possam
contar com as doações.
O valor social da preocupação com a economia, da maneira como verifiquei nas
compras cotidianas, também pode ser considerado nas compras festivas. As cozinheiras
revelaram que economizam no preço de alguns produtos para festa se deslocando até cidades
relativamente próximas a Vila Bela para fazer as compras, como Pontes e Lacerda e Cuiabá,
onde se encontram produtos mais baratos, como, por exemplo, pratinhos para servir a comida
da festa. Todas as entrevistadas ressaltaram que não se aproveitam da compra da festa para
realizar compras particulares, mas, o que sobra da comida da festa, é dividido entre as
cozinheiras que auxiliaram no preparo da festança, e os produtos comprados são distribuídos
pelos festeiros para os que ajudaram, vão para a casa do próprio festeiro ou são passados para
moradores que administram outras festas.
É possível fazer uma relação com as formas de distribuição dos produtos comprados e
não utilizados da festança com o ato de presentear abordado por Miller (2002). Enquanto as
donas-de-casa se autopresenteiam ou a seus familiares com alguma amenidade na hora da
85
compra, as festeiras e as cozinheiras das festas se presenteiam com o que sobra dos
mantimentos e comida da festa, como reconhecimento pelo esforço, por terem auxiliado nas
compras e na preparação da comida. Segundo Miller (2002), o reconhecimento do esforço
através do presente pode se referir não somente as donas-de-casa, mas ainda a “unidades
sociais mais amplas [...] Mesmo quando entendido como uma recompensa pelo trabalho, o
presente é também claramente considerando como um ato hedonista de autoindulgência
materialista” (MILLER, 2002, p. 62).
Perguntei para as cozinheiras quais diferenças enxergavam entre as compras
cotidianas e festivas. A quantidade de produtos comprados na festa, que é muito maior que
nas compras cotidianas, foi a principal diferença citada entre as cozinheiras, que não
mencionaram contrastes no tipo de ingredientes e produtos comprados. Porém, percebi que
existem distinções nas compras dos dois momentos, já que, além de serem levados nas
compras para casa produtos de limpeza, higiene pessoal dentre outros, que não fazem parte
das compras para festa, a própria compra de comida se difere entre os dois momentos. Nas
compras para casa são incluídos os petiscos e guloseimas como o sorvete e o chocolate, assim
como são preparados pratos diferentes como lasanha, bobó de galinha dentre outros citados,
mas que não fazem parte da comida festiva.
Embora existam diferenças entre os ingredientes comprados para festa e para os lares
dos vilabelenses, identifiquei um valor social semelhante entre os dois momentos, que é a
gestão e o controle das famílias e da comunidade pelos responsáveis pelas compras das casas
e da festança, respectivamente.
Como visto nas compras cotidianas, as donas-de-casa sentem a necessidade e a
responsabilidade de gerirem seus lares e controlarem a alimentação da família. Os festeiros
também administram, controlam e escolhem as compras dos ingredientes para a festa, já que
criam o cardápio de suas celebrações e compram os produtos que serão necessários para a
preparação dos pratos. A diferença dos festeiros para as donas-de-casa é que essa autonomia e
poder lhes são delegados e atribuídos a partir do momento que são sorteados para serem
festeiros,15 e, desta forma, a administração e controle são concedidas pela comunidade para
organização da festança. No caso das donas-de-casa, o poder é atribuído por elas mesmas e
seus familiares, ficando implícito em suas ações no supermercado e nas escolhas dos
alimentos para suas casas.
15 O sorteio dos nomes dos festeiros para as festas de santo ocorre em julho. São sorteados durante a festança
quais os festeiros que organizarão as celebrações de São Benedito, Divino Espírito Santo e Três Pessoas do
próximo ano, e desta forma eles tem o período de doze meses para organizar os preparativos e realizar a festa.
86
A análise das compras cotidianas e festivas das vilabelenses permitiu-me identificar os
valores sociais expressos nos atos de compra, dentre eles o amor e a solidariedade pelas
famílias e comunidade, o controle feminino, a preocupação com a economia, qualidade de
vida e saúde das famílias, a realização de desejos particulares, a fartura no período festivo e
cotidiano dentre outros.
CAPÍTULO 4 – VALORES NA MESA: COMIDA COMO EXPRESSÃO DE
VALORES SOCIAIS.
A conexão entre comida e identidade social feita por Mintz, exprime o que este
capítulo se propõe. “O comportamento relativo à comida liga-se diretamente ao sentido de nós
mesmos e à nossa identidade social, e isso parece valer para todos os seres humanos”
(MINTZ, 2001, p. 31). Se nossa identidade coletiva pode ser expressa através da alimentação,
nossos valores sociais também podem ser revelados através dela.
De acordo com Da Matta (1986), o alimento que é neutro, distingue-se da comida que
pertence a um povo e é carregada de sentido coletivo. Os valores sociais que busco identificar
na comida do vilabelense foram construídos coletivamente, apresentando caráter próprio e
comum aos seus cidadãos.
Através das observações e análises das entrevistas, pude identificar, nos contextos
cotidiano e festivo, componentes culturais da culinária que exprimem os valores sociais do
sacrifício, devoção, fé, solidariedade, amor pela culinária, modernidade, negritude, e relações
de poder.
4.1 SACRIFÍCIO E DEVOÇÃO
87
Os valores do sacrifício e da devoção foram observados desde a primeira visita na
época da festança e confirmados na fala das cozinheiras. Esses foram identificados na
constante preocupação das entrevistadas com seus lares e família, bem como na ajuda e
dedicação no preparo da festança.
Quando se pensa em sacrifício, geralmente se atribui a ideia de devoção a um ser
divino (MILLER, 2002), porém, Miller considera que além da devoção existem outros tipos
de sacrifício que podem ser reconhecidos em uma sociedade, citando como exemplo o das
donas-de-casa por suas famílias.
O verdadeiro ato do sacrifício parece ser aquele que é dirigido a um agente divino
como ato de devoção. Podemos falar tanto em sacrifícios como em favor da
sociedade, como o de pessoas na guerra, quanto em auto sacrifício da dona-de-casa
em favor de seu lar (MILLER, 2002, p. 92).
Em Vila Bela, são identificadas duas formas de sacrifício sugeridas pelo autor: a do
autossacrifício das cozinheiras por suas famílias, comunidade e visitantes da festa e a da
devoção a um ser divino.
O autossacrifício das cozinheiras se caracteriza pelo dispêndio de tempo, dinheiro e
trabalho depositados na compra, organização e preparação da comida cotidiana e festiva. “O
sacrifício é sempre um ato de consumo, uma forma de dispêndio pelo qual alguma coisa ou
alguém é consumido” (MILLER, 2002, p. 96). O sacrifício por meio da ajuda financeira na
festança foi bastante citado pelas mulheres, muitas delas falaram que os moradores costumam
doar esmolas ao Divino Espírito Santo, que passa em suas casas, representado simbolicamente
pela bandeira e a pomba levados pelos festeiros que pedem doações.
Além da esmola do Divino, há outra doação, mencionada na conversa com Arlinda,
que é uma quantia de dinheiro oferecida pelos festeiros chamada de joia, com o objetivo de
ajudar a igreja. As cozinheiras também auxiliam a igreja, não só na época da festança, mas
durante o ano todo, através de doações na realização das missas.
O sacrifício pela devoção a seres divinos é visto na comunidade na forma de
dedicação transcorrido em um mês completo de festas para São Benedito e para o Divino
Espírito Santo. A festança é repleta de comida, adoração e outras representações culturais, os
santos são homenageados e presenteados no ritual festivo, na comida, no festejo e na
adoração. Para Miller (2002, p. 89), “o sacrifício não somente institui objetos de devoção,
88
mas também se comunica com eles”, na comunidade a comunicação sendo percebida através
das Rezas Cantadas, suas ladainhas e também nas missas dedicadas aos objetos de devoção.
Miller (2002) expõe que os sacrifícios geralmente ocorrem por meio de festas com
datas marcadas, assim como vemos no município no mês de julho com um cronograma de
cada festa.
Muitos outros sacrifícios são com datas fixas, datados por festividades sazonais ou
por eventos relativos ao ciclo de vida como os nascimentos e os casamentos. A
gama de sacrifícios se estende desde esses ritos rotineiros até à afirmação mais geral
da devoção absoluta de um povo a seus deuses (MILLER, 2002, p. 90).
De acordo com o autor, os sacrifícios, geralmente, consistem em uma troca entre o ser
divino e o indivíduo que se sacrifica, a realização de uma promessa, por exemplo, constitui o
cumprimento de um ato sacrificial em troca de um milagre. Essa crença na promessa e na
graça recebida expõe outro valor social, que é o da fé nos santos. Quando perguntei se
ganham alguma recompensa por ajudar, a maioria das entrevistadas respondeu positivamente
e falaram da graça que é recebida por contribuírem. A fé é expressa na crença de que
ajudando na festa serão abençoadas pelos santos que são devotos.
Anne evidenciou sua fé quando se referiu a uma promessa que realizou ao Divino
Espirito Santo e a São Benedito, pedindo que a filha viesse morar mais próxima dela, e, em
troca, prometeu aos santos que iria cozinhar e ajudar no que fosse preciso durante o período
da festança.
Fiz uma promessa tão grande que minha filha, que morava a quilômetros de Vila
Bela, voltasse para cá. Pedi para seu Divino e São Benedito que trouxessem a minha
filha que eu iria para a cozinha trabalhar... Ajudar... Fazer qualquer coisa na festa...
Eu ia e acostumei, sabe? Mas eu consegui a graça... Sabe? E quando eu não estou
querendo ir, eu falo... Aí, meu Deus, eu fiz promessa ((risos)). Mas eu não iria não...
eu só ia para comer antigamente...
Maura disse que recebeu a graça de São Benedito como recompensa por ajudar na
festa e reconhecimento da própria comunidade.
Recebo a graça de São Benedito que eu nunca deixei... Porque toda vez que eu pedi,
ele nunca me deixou. O reconhecimento vem por parte de todo mundo daqui... Eu
reconheço muito à ajuda que o pessoal dá... que uma tradição que faz a gente
cozinhar para duas ou três mil pessoas.
Nilza falou da graça que recebeu dos santos, a recompensa de não faltar nada em sua
casa: “O santo entra na minha casa, eu vou pedir para ele abençoar a minha casa... dar saúde
89
para os meus filhos... é assim... essas coisas assim que a gente pede para o santo. A
recompensa é não faltar nada...”.
4.2 O AMOR PELA COZINHA
Posso dizer que o amor pela cozinha é um valor social na comunidade, já que percebi,
em muitos momentos, o carinho das cozinheiras ao presentear famílias e amigos por
intermédio da comida. Raros os momentos das visitas ao município em que eu não estava
dentro de uma cozinha ou em um quintal cercado de frutas e verduras.
A maioria das entrevistas aconteceu dentro da cozinha na casa das cozinheiras e
também na cozinha da escola municipal, onde algumas mulheres trabalhavam fazendo a
refeição das crianças. Os questionamentos foram feitos durante o abre e fecha de geladeiras, o
calor dos fogões, das refeições sendo preparadas, na coleta de frutas e verduras nos grandes
quintais com uma diversidade de plantações, que muitas vezes se mostravam
desproporcionais ao tamanho das próprias casas, que, em geral, não eram tão grandes. Em
todas as visitas realizadas, voltei com biscoitos ou frutas presenteadas pela comunidade, além
do bobó de galinha presenteado por dona Deva, que fez questão que eu trouxesse para meus
familiares provarem.
O amor pela culinária e o prazer em presentear com ela parecem ser a moeda de troca
na comunidade, quer seja aos familiares, amigos, novos amigos e ou os milhares de
convidados da festança. As cozinheiras relataram que a comida doada pelos festeiros no
término das festas também é considerada recompensa e reconhecimento por ajudarem, o que
evidencia, não apenas a comida como moeda de troca mas outro valor social, que é o da
solidariedade do povo vilabelense.
A Sra. Arlinda disse que recebeu como recompensa por ajudar na festança a comida da
festa, que ela chama de cesta básica: “Quando termina a festa, a festeira distribui para as
cozinheiras que ajudaram a comida, o que sobrou dá para cada um... Eu faço isso quando sou
festeira, redistribuo o que foi doado para cada um a sacolinha... A cesta básica para cada
cozinheira”.
Dona Genésia também falou que, o que não é usado na festa, é redistribuído para as
cozinheiras, e revela que os festeiros reconhecem à ajuda agradecendo as cozinheiras que
contribuíram.
90
Os festeiros dão o que sobra da comida da festa, o alimento que sobra e que não vai
ser usado... Se sobra, eles doam para gente que ajuda e que colaborou, eles ficam...
Vixi! Gratos com a ajuda, que nem ela, por exemplo, ela foi festeira (a amiga ao
lado) ... ela agradeceu e o marido dela foi muito gentil com a gente.
Foi possível perceber no modo de expressar de Mara, que já foi festeira algumas
vezes, o orgulho em ajudar na festa e em cozinhar. Ela expôs por meio de sua trajetória na
preparação da comida da festança o prazer em passar essa tradição as filhas.
Olha... eu comecei a cozinhar desde mil... Mil novecentos e noventa e cinco... Desde
o momento que o meu pai foi festeiro, ele caiu na festado congo, eu aprendi ter essa
responsabilidade... Foi quando eu comecei a dar valor a nossa tradição... Então,
desde esse momento, eu comecei a cozinhar e, de lá para cá, eu nunca mais parei...
Eu cozinho e minhas filhas todas cozinham também... Nessa parte, graças a Deus, eu
tenho três filhas e as três filhas todas cozinham... Quando eu pego uma
responsabilidade de cozinhar nas festas, elas ficam junto comigo... eu tenho um
genro e esse genro também me ajuda muito.
Dona Nilza disse que outra forma de reconhecimento do esforço das cozinheiras na
preparação da festa é a comemoração das cozinheiras, que é um dia de festa após o término da
festança, com muita comida e bebida oferecida pelos festeiros.
[...] No final da festança, o dono da festa costuma pegar um dia para fazer a festa das
cozinheiras… Um dia inteiro... Faz aquela comidaiada com bebida, com chicha,
com biscoito, com tudo ali para as cozinheiras... Aí quem toma cervejinha... os
festeiros compram cerveja e vinho... Tudo isso...
Os valores sociais do amor e da solidariedade são materializados através do trabalho
das cozinheiras em Vila Bela, quer seja ajudando na preparação da comida de casa, da
festança ou fazendo compras para festa ou família. Miller (2002) certifica em suas pesquisas
com as donas-de-casa, que o amor justifica o esforço das mulheres e elas enxergam esse
trabalho como natural, por acharem que faz parte de suas funções.
Só o amor pode legitimar de maneira satisfatória sua devoção ao trabalho. Também
se evidencia que, a fim de que exista satisfação, os que recebem o amor devem
desejar o que a dona-de-casa vê como seu dever normal de dedicação e ser
reconhecidos por isso (MILLER, 2002, p. 35).
Posso dizer que existe essa sensação de dever nas cozinheiras de Vila Bela ao
ajudarem na preparação da comida de suas famílias e também da festa. O ato de cozinhar se
tornou rotina e caracteriza o perfil da maioria das vilabelenses.
91
4.3 MODERNIDADE16
Outro valor social que percebi na primeira visita de campo em Vila Bela foi o da
modernidade, e para compreender melhor como as cozinheiras enxergam suas mudanças e a
perspectiva moderna, perguntei quais as alterações notadas por elas na culinária de Vila Bela
e quais pratos consideravam modernos. Algumas respostas foram semelhantes quanto aos
utensílios, pratos e ingredientes, e outras foram distintas, as entrevistadas expuseram uma
variedade de interferências modernas que se mesclaram com o tradicional da sua cozinha.
Conforme ocorriam as conversas com as cozinheiras, compreendi que a culinária foi
se modificando com o tempo e estas transformações estão expressas nas alterações dos
utensílios de preparo, dos procedimentos da cozinha, da facilidade tecnológica, além da
adaptação e conhecimento de novos pratos.
De acordo com Garcia (2001), as alterações na alimentação diária de dada comunidade
acarretarão em modificações nas práticas sociais e alimentares do povo.
Qualquer mudança na dieta implica profundas alterações nas práticas alimentares o
que, por sua vez demanda um redimensionamento da rotina doméstica, das práticas
sociais, do ritmo de vida, enfim, representa uma reorganização e realocação da
alimentação no modus vivendi (GARCIA, 2001, p. 1).
As considerações da autora podem ser relacionadas ao que foi observado em Vila
Bela, as mudanças na dieta da comunidade pelas influências modernas, repercutindo no
surgimento de uma nova forma de vida e de hábitos na cozinha no momento festivo e no dia a
dia.
Garcia (2003) discute a importância da globalização e da consolidação das indústrias
na dispersão de produtos, inserindo a indústria alimentícia nesse contexto:
A globalização atinge a indústria de alimentos, o setor agropecuário, a distribuição
de alimentos em redes de mercados de grande superfície e em cadeias de
lanchonetes e restaurantes. A difusão da ciência nos meios de comunicação e o uso
16 O termo modernidade, atribuído como valor social da comunidade de Vila Bela, ou aos pratos e utensílios
utilizados que denominou-se modernos, refere-se a utilização de ingredientes, utensílios ou modos de preparo
que utilizem elementos implementados tecnologicamente em comparação aos objetos do passado ou a novas
formas de cozinhar e novos ingredientes que surgiram na comunidade em decorrência da globalização e avanço
comercial.
Faço essa ressalva para evitar qualquer confusão com o período referente à filosofia da modernidade que, de
acordo com Chaui (1987), é o período denominado Século de Ferro (entre 1550 e 1660), que corresponde as
grandes transformações socioeconômicas e políticas do capitalismo, ou conforme outros estudiosos da época,
correspondente ao período da Guerra dos Trinta Anos (1618 e 1648), ao período político e cultural da “Europa
moderna”.
92
do discurso científico na publicidade de alimentos também exercem seu papel no
cenário das mudanças alimentares (GARCIA, 2003, p. 485).
Lipovetsky (2007) afirma que, por volta do ano de 1880, a substituição dos mercados
locais pelos nacionais se consolidou em consequência de facilidades modernas, como novos
meios de transporte e estruturas de comunicação, o que causou um crescimento do comércio e
a disseminação dos produtos industrializados pelos mercados nacionais.
Vê constituir-se, No lugar dos pequenos mercados locais, os grandes mercados
nacionais tornados possíveis pelas infraestruturas modernas de transporte e de
comunicação: estradas de ferro, telégrafo, telefone. Aumentando a regularidade, o
volume e a velocidade dos transportes para as fábricas e para as cidades, as redes
ferroviárias, em particular, permitiram o desenvolvimento do comércio em grande
escala, o escoamento regular de quantidades maciças de produtos, a gestão dos
fluxos de produtos de um estagio de produção a outro” (LIPOVETSKY, 2007, p.
26- 27).
Essas transformações no cenário brasileiro podem ter repercutido nas mudanças
ocorridas em Vila Bela e nos hábitos alimentares de seu povo, que aderiu aos produtos
industrializados, inserindo em suas vidas domésticas novos utensílios e ingredientes. A
maioria das entrevistadas citou como utensílios modernos o liquidificador e o forno micro-
ondas, algumas falaram do ralador, da panela elétrica de arroz, do cilindro de fazer pão e da
batedeira.
Neusa mencionou a geladeira como utensílio que facilitou a vida dos vilabelenses,
expondo que, anteriormente, não se reservava muita comida, e por isso o alimento era
adquirido e consumido em seguida, caso contrário, estragava. Ela mostrou-se satisfeita com o
surgimento da geladeira e falou de forma humorada da cerveja: “Hoje quem que toma uma
cerveja quente? Já dá dor na barriga... Já dá dor no estômago... então a modernidade veio
facilitar muito nossa vida”.
Ela também disse que os ingredientes mudaram muito, referindo-se ao leite de coco,
que anteriormente era tirado do próprio coco na comunidade e hoje se compra industrializado,
assim como a farinha de polvilho. Neusa ressaltou a importância dos alimentos
industrializados, já que esses permitem a facilidade de fazer a compra no mercado e
dispensam a necessidade de entrar no mato e pântanos para buscar de alimentos.
O pessoal aqui fazia esses bolos de arroz... esses biscoitos tudo com leite de coco...
ia no mato e tirava aquele coco de babaçu... Quebrava... Quer dizer... Hoje ainda tem
pessoas que fazem, mas faz porque gostam, porque tem aquele sentimento ainda de
voltar lá no passado... Mas hoje você já encontra um leite de coco industrializado...
93
O polvilho que o povo antes tinha que plantar a mandioca e fazer isso e aquilo para
até chegar a fécula, então facilitou absurdos... Muito e muito mesmo...
Deva também citou utensílios da cozinha que pensa terem trazido praticidade, como o
micro-ondas, o liquidificador, o forno a gás e a panela de pressão. Ela falou de novos
ingredientes que inseriu na sua comida, mencionando o caldo de galinha industrializado e o
extrato de tomate que substituiu o colorau.
O uso do micro-ondas e bem recente. O forno era de barro antigamente, não tinha
forno a gas... Agora tudo e no gas, ne? O ingrediente que a gente usa agora e o
Sazon... Antigamente não existia isso, aquele outro... Como que é? Caldo Knorr.
Ontem eu ate fiz um caldo Knorr com frango. [...] Antigamente não tinha, você
fritava o frango e fazia o caldo com cebolinha, pimentinhas e essas coisas... Gosto
de usar tomate, e bem natural.... Quiabo... Mas eu não uso muito extrato de tomate.
Eu não gosto, só no macarrão que eu coloco, pouquinho, mas coloco... Antigamente
era usado o colorau ... Agora não se usa mais...Esta bem difícil para achar.
Assim como Deva, Celena também explanou sobre a inserção moderna do caldo de
Galinha e do extrato de tomate. Ela disse que utiliza alguns utensílios novos como o
liquidificador, a panela de pressão, a vasilha de inox e o pirex de vidro.
Maura falou das mudanças dos ingredientes. Ela disse que hoje, quando vai ao
mercado, vê produtos que não existiam no passado, e que, segundo ela, são menos básicos:
“Mudou muito! No mercado tem muitas coisas novas como o creme de leite, o milho verde e
azeitona, por exemplo”.
Lipovetsky (2007) aborda as facilidades que as técnicas de fabricação com processos
contínuos permitiram, entre elas, produzir em enormes séries mercadorias padronizadas que,
embaladas em pequenas quantidades e com nome de marca, puderam ser distribuídas em
escala nacional, a preço unitário baixo.
A facilidade de acesso aos produtos industrializados fez com que os moradores de Vila
Bela vislumbrassem outras formas de preparo de alimentos e outros ingredientes, o que
mudou a perspectiva da culinária e contribuiu para o surgimento de outras possibilidades de
consumo. Neusa discorreu sobre a grande relevância dos produtos industrializados e das
mudanças que um local específico para as compras trouxe para os vilabelenses.
Há uma grande contribuição da indústria para nossas receitas... Porque hoje é difícil
você sair aí para pegar um coco nesses matos e nesses pântanos, e com a presença
no mercado você vai lá e compra tudo (a granel) como você queria e faz em
quantidade. Usamos a granel quando compramos a fécula de mandioca por
exemplo... Na época da festança é aproximadamente cem ou cento e cinquenta sacos
de fáculas de mandioca e assim por diante.
94
Ela também ressaltou a praticidade e a rapidez que as facilidades tecnológicas
trouxeram para Vila Bela, citando a agilidade atual para adquirir informações com o advento
da internet. Mostrou a repercussão das facilidades tecnológicas na cozinha, através do
exemplo da troca de receitas com seu sobrinho por e-mail:
A cada dia você vê que o avanço está grande... Eu faço esta receita aqui e eu posso
passar na hora num e-mail de um sobrinho, de um parente que está lá em São
Paulo... Como eu tenho um sobrinho que está fazendo esse curso de gastronomia em
São Paulo, e o desejo dele é colocar no cardápio algumas receitas típicas de origem
quilombola, que ele faz parte, né? Então eu já mandei algumas para ele... Tudo
como? Por e-mail... Quer dizer que facilita, né? e isso tudo... isso tudo vai para a
cozinha...
No período da festança conversei com as mulheres que estavam preparando a comida
e estas falaram que a culinária da festa também passou a conter utensílios modernos.
Utiliza artefatos tecnológicos para facilitar a preparação da comida (como a máquina
de moer a carne e preparar os biscoitos, do liquidificador, dentre outros), foi
possível perceber que a população se adapta às facilidades tecnológicas modernas,
estas atravessam sua cultura e modifica-se com elas, não só em suas ferramentas
culinárias mas em sua dinâmica cultural. É possível perceber que a comunidade não
só aceitou a inserção moderna, mas aderiu à modernidade nos procedimentos da
cozinha (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 362-363)
Outro utensílio da festa foi o bebedouro de canjimjim na mesa do Chá Afro, uma festa
que ocorreu na casa de uma moradora local, composta de uma mesa com muitos pratos
típicos. A bebida que, geralmente, é comercializada em garrafas, mudou sua apresentação
durante o período extraordinário, o que alterou, além da embalagem, a facilidade de acesso
que é parte dos benefícios da modernidade.
O canjimjim apresentado nesta condição nos expõe uma outra finalidade de
consumo da bebida, não mais como “cultura engarrafada”, mercadoria, mas em
condição democrática para conhecimento e apreciação. Percebemos nesse sentido,
outra perspectiva do acesso à bebida, que mesmo tendo o objetivo final de
reconhecimento regional perante o público, naquele momento foi utilizada uma
estratégia distinta, com características modernas marcantes, como a democracia,
inovação e acesso (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 363).
Perguntei também quais os pratos que consideravam modernos na comunidade. O
bobó de galinha é o mais citado pelas entrevistadas, ressaltado por Deva, que quando fala do
bobó, o enxerga como uma extensão de suas características e qualidades pessoais.
Ela não mencionou o bobó de galinha apenas como prato moderno, como também
afirmou em vários momentos que todos amam seu bobó e que realmente faz muito bem esse
95
prato. Ela disse que aprendeu sozinha e que os amigos comentaram que o melhor bobó da
cidade é o dela.
Quando eu aprendi bobó, eu acho que eu tinha uns doze anos... Quando eu fiz o
primeiro bobó, faz tempo, muitos anos, de doze para cinquenta e quatro…Tem
tempo […] Ninguem me ensinou, faço do meu modo. Aqui e assim, tem bobó e
cada um tem um modo de fazer, cada um tem um sabor, não tem um sabor igual […]
Nada que eu coloco de diferente, eu não sei o quê que é, mas eles sempre acham
bom, não é? Tem uma menina aí no hotel que fala: - Se não for Deva não vai sair
bom... Aí falo: - Mas, gente, eu dou a receita… - Não, mas você que faz diferente.
[...] Eu tenho um amigo que trabalho no Banco do Brasil que fala que o bobó que eu
faço é o melhor. Teve um casamento uma vez de uma amiga nossa, que é também
afilhada dele, aí falaram que o bobó que eu faço é bom demais... a minha prima
também... e muita gente acha.
Há em sua fala uma relação com a identidade individual e coletiva abordada por Elias
(1994), já que Deva sente uma necessidade de autoidentificação com seu prato, mas também
de aprovação de outros membros sociais: “A identidade eu-nós e parte integrante do habitus
social de uma pessoa, e como tal, esta aberta à individualização. Essa identidade representa a
resposta à pergunta Quem sou eu? como ser social e individual” (ELIAS, 1994, p. 151).
Deva falou de alguns ingredientes que foram surgindo nos pratos com a modernidade,
dizendo que hoje os jovens gostam de mortadela, bacon e calabresa, ingredientes que não se
utilizava no passado. Manifestou que em seu tempo comia-se arroz com galinha e porco e
que, hoje em dia, os jovens preferem colocar bacon e calabresa nos pratos.
Tem também novas comidas, na minha filha, por exemplo, eu percebi mudanças...
Ela gosta mais de mortadela, essas coisas... Bacon, tudo que antigamente não tinha.
Calabresa, não e como eu, que quando era da idade dela, era comida antiga...
Assim... Era arroz com carne, frango com arroz, porco, carne de porco frita ou com
arroz também. E agora os jovens só querem saber de colocar no arroz calabresa e
bacon... Ate eu ja estou gostando.
Celena também se referiu as mudanças na preparação da comida, expondo a
readaptação no modo de preparo do massaco, sendo utilizado, em vez do pilão, o
liquidificador pela praticidade e rapidez.
Mudou... hoje o liquidificador faz o trabalho do pilão... Então é menos trabalhoso
para fazer o massaco com liquidificador, é raridade você ver casa que tenha pilão
nessa nova geração de Vila Bela... Então está perdendo um pouco aquela tradição...
Até porque é prático e rápido, né? E quase ninguém tem tempo, trabalham o dia
inteiro. [...] No passado, a cozinha era de fogão a lenha, aí para fazer massaco, era
descascada a banana verde, tinha que ser bem verde... depois era socada a pilão...
Depois de socado, aí vinha com o torresmo... aí misturava e depois fazia e ainda
colocava mais gordura de porco para poder temperar... colocava cheiro verde...
96
Então esse que era antigamente o nosso quebra torto, a gente comia isso com o chá
mate, muito bom...
As razões das mudanças nos modos de preparo expostas por Deva e Celena têm
relação com as características da sociedade contemporânea expostas por Garcia (2003).
Segundo a autora, a alimentação na contemporaneidade é marcada pela falta de tempo para a
realização da comida, o que facilita a compressão da troca de utensílios do pilão para o
liquidificador. Ela também coloca que hoje existem outras formas de conservação da comida
e uma variedade de produtos, o que me fez compreender a utilização de ingredientes
diferentes dos antigos nos pratos como bacon e calabresa.
A comensalidade contemporânea se caracteriza pela escassez de tempo para o
preparo e consumo de alimentos; pela presença de produtos gerados com novas
técnicas de conservação e de preparo, que agregam tempo e trabalho; pelo vasto
leque de itens alimentares; pelos deslocamentos das refeições de casa para
estabelecimentos que comercializam alimentos (GARCIA, 2003, p. 484).
Anne, assim como Celena, discorreu sobreo massaco, revelando que era preparado
com mais frequência como componente do “quebra torto”, que é um café da manhã mais
reforçado.
Mudou muito... nem sei nem te falar... De manhã, geralmente tinha o que eu mais
gosto na minha vida... Sabe o quê que e? Uma farofa... um massaco... Massaco e de
banana... eu não sou chegada assim em pão... Eu gosto de comida como era
antigamente e que nós fazíamos... Porque antigamente a gente cozinhava pela
manhã a comida mesmo... comia e ja fazia tambem o almoço... Chamavam assim de
quebra torto... não era cafe da manhã...era mais reforçado...
Para ela, os pratos modernos que podem ser encontrados em Vila Bela são “O
salpicão, […] outros também modernos como a maionese, aquela que e uma macarronada
com molho e moderno... e gostoso…”.
Arlinda disse que a maior mudança foi o surgimento de pratos como bobó e maionese:
“Agora mudou sim...Têm muitos pratos que não fazia antes... outras especies… Como o bobó,
por exemplo... nós não sabíamos dele antes... (risos)… Maionese tambem não tinha”.
Natália citou como pratos modernos a lasanha, o estrogonofe, o bobó de galinha e o
macarrão: “Eu faço alguns pratos modernos. De vez em quando lasanha, estrogonofe, bobó de
galinha e macarrão branco, que eu coloco presunto, mozarela e creme de leite”.
Genésia elencou como novos pratos o salpicão, o bobó de frango e uma carne
recheada que ela explicou como se faz: “O salpicão e o bobó de frango são os pratos
97
modernos daqui... Tem outro que e assim: faz um rolo de carne... aquele bifão... Aí põe
recheio dentro para colocar na panela de pressão para fazer”.
A maioria dos pratos expostos pelas mulheres apresenta creme de leite e também
maionese na constituição, os mais citados foram o salpicão, creme de milho, lasanha e
macarronada. Deva disse que o creme de leite é um ingrediente que surgiu há pouco tempo na
comunidade, e que por isso é moderno, a maioria dos pratos quando não contidos deste
ingrediente possui a maionese, que, assim como o creme de leite, não fazia parte das comidas
tradicionais da cidade mencionadas anteriormente.
Os pratos modernos e as novas maneiras de fazer que a comunidade adquiriu
relacionam-se com a reapropriação do espaço exposta por Certeau: “as maneiras de fazer
constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas
tecnicas de produção sociocultural” (CERTEAU, 1998, p. 41). Em Vila Bela a inserção dos
pratos modernos, além de expressar o valor social da modernidade, dispõe uma nova condição
do espaço, dos modos de fazer ingredientes e modos de preparo.
Partindo das variedades de utensílios, pratos e ingredientes citados e das constatações
e observações em campo, afirmo que a comunidade tem como valor social a modernidade, e,
mesmo que algumas entrevistadas tenham suscitado de forma nostálgica elementos
tradicionais que foram se alterando com o passar do tempo, todas elas possuem artefatos
modernos e aderiram às novas práticas e inovações na cozinha.
4.4 SAÚDE
Outro valor social percebido quando perguntei sobre mudanças na comunidade ao
longo do tempo foi o da saúde. No capítulo que analisei as compras, expus a preocupação
com o consumo de produtos que a mulheres julgam saudáveis para si e para a família, este
interesse pela saúde reapareceu na fala de grande parte das entrevistadas quando as questionei
sobre quais mudanças perceberam na comunidade com o passar dos anos.
A maioria das cozinheiras fala que se preocupa com a saúde inserindo mais legumes e
frutas na dieta e diminuindo a gordura. Arlene, Suelen e Celena ressaltaram a mudança na
alimentação na busca de uma vida mais saudável.
Arlene disse que mudou a alimentação, substituindo as comidas mais pesadas e
inserindo mais frutas e sucos naturais.
98
O que mudou bastante, que depois que passei a morar somente eu e minha filha.
Mudamos as comidas bem pesadas, hoje não fazemos mais… É um arroz mesmo...
Um feijão... Uma carne frita e usamos muita salada e sucos naturais... É o que mais
mudou… Eu gosto de suco de laranja... Acerola... Para comer é a maçã, que eu
compro muito... Gosto de leite também para ter sempre em casa... Adoro manga,
gente... Que é uma fruta que tem muito... Banana...
Suelen inseriu mais verduras em sua alimentação e disse que antes comia mais
comidas pesadas: "Para mim mudou, porque hoje eu como mais verdura... Eu cozinho muita
verdura e como pura assim. Antes não, era só comida pesada... buchada, mocotozada...
Aquele rolo danado…”.
Celena comentou que a comida era mais gordurosa antigamente, o hábito alimentar
mudou para melhorar a saúde.
Antes a comida era mais gordurosa... Olha só... A gente comia: mocotó no feijão...
Toicinho no feijão ... Então a gente foi mudando o hábito alimentar conforme os
problemas de saúde mesmo... Comemos menos sal porque era bem temperado e a
gente agora está evitando temperar muito... Devido as complicações da saúde.
Ela acrescentou que agora os vilabelenses estão mudando de vida, e quando questionei
a causa das mudanças, ela citou um fato curioso, expondo que sua família e cada vez um
número maior dos vilabelenses, se preocupam ainda mais com a saúde por serem da raça
negra, que, de acordo com um médico e estudos científicos, os negros possuem predisposição
a serem hipertensos.
[…] Nós vilabelenses... Principalmente da raça negra, temos predisposição para
sermos hipertensos... Na minha família... Os dois lados... tanto do meu pai quanto da
minha mãe, todos eles são hipertensos... Então a gente evita, para termos uma vida
mais prolongada. […] Esta no gene da raça negra isso aí. […] Quando o medico
cardiologista falou para o meu pai a gente até pensou que fosse questão de racismo...
Mas isso foi comprovado cientificamente... Negros são mais hipertensos que os
brancos. Tanto é que a mulher negra vive menos que a mulher branca... porque está
nos genes, então... É a herança genética, né? Então a gente evita esse tipo de comida
muito gordurosa, salgada... A gente não se alimenta como se alimentava antes...
Celena ainda disse que, pelo motivo da hipertensão mais propensa na raça negra,
alguns pratos que são pesados como o massaco, são restringidos no dia a dia, sendo inseridos
outros alimentos como batata e suco de laranja no cotidiano, que, segundo ela, são mais
saudáveis.
Por exemplo, hoje lá em casa a gente não faz mais massaco mais porque é gorduroso...
Tem o torresmo, então é gorduroso e a gente não faz mais [...] Hoje, a gente não está
podendo comer muito isso, alimentos pesados... Mudamos muita coisa na nossa
alimentação... Tipo assim, quando vou fazer um arroz, feijão e carne frita, eu prefiro
99
sempre cozinhar uma batata e também fazer um suco de laranja sem muito açúcar... no
máximo umas duas colheres por litro de água.
Celena não foi a única entrevistada a falar da hipertensão como predisposição da raça
negra. Arlete quando enunciou sua de preocupação com a saúde, comentou sobre a questão da
pressão alta no coletivo, referindo-se aos vilabelenses como um todo. As entrevistadas Mara,
Cecília e Nádia também falaram desta questão, Cecília revelou que, por motivo da pressão
alta e pelo fato do filho ter gastrite, diminuiu a fritura em casa, e Nádia diminuiu a quantidade
de macarrão.
Assim como Celena, Deva falou que foi um diagnóstico médico que mostrou esse
problema da raça negra, “O negro tem o negócio de pressão, né?”, dizendo que uma doutora
na cidade, que policia a comida de todos, esclareceu essa realidade aos moradores. Mas, o que
essa crença social diz da comunidade de Vila Bela? O diagnóstico médico aponta que todos
negros têm tendência a hipertensão baseado em quê?
As pesquisas científicas podem auxiliar na compreensão de onde surgiu a questão da
pressão alta na raça negra inserida no discurso das cozinheiras. Porém, o cuidado com a
pressão alta entre os vilabelenses foi uma crença social construída culturalmente na
comunidade. Berguer e Luckmann (2004) defendem que a referência às interpretações
científicas da realidade cotidiana deve ser realizada quando lidamos com o senso comum, e,
desta forma, recorro aos estudos científicos para compreender a questão construída
socialmente na realidade dos vilabelenses.
O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase-
científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos
descrever a realidade do senso comum temos de nos referir a estas interpretações,
assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas
fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos
(BERGUER; LUCKMANN, 2004. p. 37).
Verificando estudos científicos sobre os temas levantados, encontrei alguns autores
que abordam a predisposição à pressão alta nos negros. De acordo com Cruz e Lima (1999),
as questões de saúde mais recorrentes na etnia negra no Brasil são as complicações
cardiovasculares e a Hipertensão Arterial Essencial (HAE).
A etnia negra é um forte fator predisponente à HAE, deixando as pessoas afro-
brasileiras expostas ao desenvolvimento de uma hipertensão mais severa, como
também a um maior risco de ataque cardíaco e morte súbita quando comparadas às
pessoas de etnia branca (CRUZ; LIMA, 2009, p.3).
100
Segundo os autores, a predisposição à hipertensão na raça negra faz com que o negro
fique ainda mais preocupado com os cuidados com a saúde e com “fatores ambientais, tais
como o fumo, álcool e estresse, dentre outros, que irão se unir ao primeiro e potencializar os
riscos para o desenvolvimento da HAE” (CRUZ; LIMA, 2009, p. 3).
Não posso dizer ao certo como as pesquisas científicas se sustentam, ou como os
médicos que diagnosticaram a predisposição nos vilabelenses chegaram a esta conclusão, mas
posso afirmar que existe uma crença dos habitantes da comunidade nessa asseveração médica,
que fez com que eles mudassem sua forma de pensar a alimentação e seus hábitos alimentares
para ter uma vida mais saudável.
Porém, é importante considerar que, embora tenham aderido a mais produtos naturais
na alimentação, reduzido o teor de gordura nos pratos devido à hipertensão dentre outras
ações, ainda existem alimentos com alto teor calórico citados no consumo das entrevistadas.
O creme de leite, macarronada, lasanha, maionese que são considerados alimentos modernos
por elas, também são alimentos calóricos, consumidos na comunidade, não ocorrendo nenhum
questionamento quanto à repercussão na saúde do uso destes ingredientes.
As crenças e significações de um povo revelam seus comportamentos alimentares, já
que “estamos inseridos num sistema de significados que determina o que a alimentação
representa para a sociedade” (MURTA; REZENDE; MACHADO; 2011, p. 2). Os autores
expõem que os conhecimentos populares se agregam aos científicos nos processos de
construção de significados de dada comunidade, estando em constante processo de mudança.
Partindo dessas constatações, percebo que o valor social da saúde em Vila Bela é
reforçado com a crença na fragilidade da tensão arterial ou nervosa da raça negra, e, através
da união dos saberes populares e científicos, a comunidade está cada vez mais procurando ter
uma vida mais saudável.
De acordo com a análise das entrevistadas, percebo que, ainda que encontremos
alimentos que devam ser questionados, quanto a sua condição saudável para a comunidade
como os pratos modernos, a carne frita, o creme de leite dentre outros que a comunidade não
mostrou preocupação e que podem sem considerados gordurosos, houve uma mudança nos
hábitos alimentares, que fizeram com que surgisse o valor da saúde na comunidade, o povo
alterando sua alimentação e pensado no cuidado relacionado ao que colocar na mesa,
priorizando a qualidade de vida. O valor social da saúde pode ser enxergado na comunidade
não apenas nessa preocupação com a pressão alta, mas, como vimos nas compras para casa,
na preocupação em ter um peso saudável, na contagem de calorias, na inserção de mais
legumes e frutas na dieta, nos exercícios físicos no dia a dia, na substituição dos pratos, como
101
no caso da troca do massaco e do quebra torto por um café da manhã mais equilibrado dentre
outras ações que exprimem o valor da saúde.
4.5 NEGRITUDE
A negritude também pode ser considerada um valor social na comunidade, já que na
fala das entrevistadas percebi a necessidade de se identificarem como representantes da raça
negra e o orgulho de seus ancestrais e de sua tradição.
Encontrei reflexos desse valor tanto no cotidiano quanto na festança. No dia a dia, a
negritude expressada na valorização da comida dos descendentes negros e no gosto pelo que é
prato africano e quilombola, e na festança identifiquei esse valor na culinária e na necessidade
de trazer a negritude em outras manifestações culturais, como na dança e no teatro.
Perguntei às cozinheiras sobre a classificação da comida vilabelense, se é de negro, de
branco, de quilombola ou de africanos. Nessa questão, a maioria das entrevistadas disseram
que não se tem uma classificação específica, mas citaram ingredientes e pratos que
consideram ou quilombolas ou africanos ou de negros. Esses alimentos fazem parte do
cotidiano e da festança, o que demonstra a valorização da tradição da comida dos negros em
seus aspectos culturais.
Percebi o orgulho em ser negra na fala de Celena, quando perguntei sua idade,
surpreendi-me com o fato dela aparentar ser mais nova do que realmente ela é, ela dizendo
que “este e um privilegio da raça negra”. A entrevistada deu ênfase nesta colocação e disse
ter orgulho das vantagens que a raça proporciona.
Pergunto a ela como é a comida de sua família, se é de branco, de negro, africana ou
quilombola. Ela revelou que não sabe dizer, mas disse que em sua casa gostam de comer a
farinha da forma como os quilombolas faziam e que não tem no supermercado.
Não encontra no mercado farinha artesanal. Assim, feita ralada e depois torrada, a
comida quilombola tem essa característica, tudo manual, então a gente mantém essa
tradição... Farinha lá em casa a gente prefere artesanal mesmo que o sabor é
diferente, e no mercado a gente encontra o fubá... Lá em casa, a gente não come esse
tipo de farinha, tem que ser aquela grossa... ralada... então a gente dá preferência no
alimento artesanal... É bem mais... quer dizer, é bem mais gostoso.
Arlene também consome alimentos que diz serem típicos quilombolas. Ela fala do
charque, feijão e banana, e quanto à comida de negro, diz que é comum na comunidade,
citando outros alimentos:
102
A charque e o feijão preto são de quilombo, tem muito da tradição de Vila Bela...
Tem a banana também... A comida de negro é a compra comum... Você vai e
compra o arroz, o óleo e o feijão... A carne e um peixe, um milho, a canjica para
você fazer no final de semana, que eu tanto gosto.
Suelen disse que consome de tudo e não tem uma classificação em sua comida. Falou
que consome o feijão, a farinha e o fubá, que, para ela, são comidas quilombolas. A comida
de negro que ela disse consumir são a feijoada, o arroz carreteiro e o angu: “De negro é a
feijoada... o arroz carreteiro... O angu... Tem uns que falam mungunza”.
A entrevistada Anne também falou do feijão do quilombola, mas comentou que o que
tem no mercado e diferente: “O feijão de quilombola e aquele feijão antigo vermelho e
preto.... No mercado só tem o feijão preto”.
Adena disse que come fubá e toma chicha, que são típicos quilombolas: “Fubá de
milho, né? Porque a gente tem que fazer um pouquinho da polenta e de chicha”. Natália citou
o arroz e o feijão, que come em sua casa, como típicos dos quilombolas, e os outros produtos,
que vêm no que ela chama de “sacolão do quilombo”: “No sacolão de quilombo tem o arroz...
Feijão... Que nem aqui tem o sacolão... Eu mesma pego todo mês o sacolão do quilombo... É
arroz, feijão, leite, farinha, macarrão, óleo, fuba”.
Neusa é uma das entrevistadas que mais demonstrou seu orgulho pela raça negra. Ela
disse que o orgulho de ser negro dos vilabelenses está presente na preservação das tradições
na época da festança, citando as manifestações culturais que são mantidas desde o período
escravocrata.
Os negros vivem sua cultura na festança: na Dança do Congo e no Chorado que são
danças afro vindas lá da época da escravatura e do tempo dos quilombos... Então,
em todo o lugar que se tem essa reunião e que tem toda essa manifestação, é um
local de cultura quilombola.
Ela também citou o Chá Afro, que ocorre em sua casa, como um ritual que tem o
objetivo de mostrar os pratos típicos dos quilombolas e exaltar a cultura negra.
As receitas do Chá Afro perduraram desde a época dos quilombos, e do próprio
povo negro e africano que fazia parte deles... Então... O quilombola foi para uma
região refugiada do trabalho escravo e por isso se chamou quilombo aquela
organização... Então se desfez o quilombo e todos nós estamos aqui...
A entrevistada falou de seu orgulho pela sua cultura e pelos grandes líderes negros que
lutaram pela liberdade de seu povo.
103
Somos descendentes da rainha negra Tereza de Benguela, que era a grande líder do
Quilombo Quariterê, o maior de Mato Grosso. Ela protegia a minoria negra...
Tivemos grandes líderes negros como Zumbi e hoje penso em Nelson Mandela que
já se foi e que hoje o reconhecemos como um grande líder... Um grande defensor
das causas das minorias... Então, quero dizer que nós fazemos parte dessa cultura, e
essa cultura quilombola é a cultura africana.
Nos depoimentos de algumas mulheres como Célia e Neusa, percebi também um
orgulho pelas conquistas de seu povo e por sua tradição, o que ressalta a negritude como valor
social de Vila Bela. Os ingredientes e pratos citados como quilombolas e de negros compõem
a mesa dos vilabelenses durante o ano todo, e, embora as cozinheiras não classifiquem sua
comida de uma forma específica, existe a identificação destas com os alimentos que eram de
costume dos escravos que se refugiavam nos quilombos, o povo fazendo questão de manter
em seu cardápio diário alguns pratos quilombolas e igualmente no período festivo. A mesa
vilabelense expressa o valor social da negritude e da culinária dos afrodescendentes.
4.6 HIERARQUIAS SOCIAIS E RELAÇÕES DE PODER
Apesar dos moradores de Vila Bela apresentarem valores sociais em comum como o
da fé, devoção, amor, sacrifício, modernidade, saúde e negritude, o município é marcado por
relações de poder e hierarquias sociais. Durante a visita de julho foi possível perceber que,
embora a festança tenha a finalidade de ser comunitária, não se pode identificar
procedimentos e regras igualitárias em todo contexto festivo.
Mas o que e poder? “A etimologia da palavra [...] torna sempre uma palavra ou ação
que exprime força, persuasão, controle, regulação etc.” (FERREIRINHA; RAITZ, 2010).
Durante a festança, percebi o maior controle e a força de alguns membros comunitários e
algumas divisões hierárquicas expressas nas manifestações culturais da festança.
O poder pode ser expresso além das fronteiras jurídicas (FOUCAULT,1979), as
relações sociais da comunidade podem expor a autoridade dos indivíduos sob os outros e
determinar o lugar ocupado por eles em um contexto social, quer seja de submissão,
autonomia ou liderança.
Trata-se [...] De captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações
[...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais,
principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam
e delimitam [...] Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos
jurídica de seu exercício (FOUCAULT, 1979, p. 182).
104
Compreendi algumas relações de poder existentes entre os festeiros. O sorteio dos
festeiros por exemplo, é uma celebração em que a comunidade fica na expectativa para saber
quem será responsável pela preparação das festas do Divino no próximo ano, os moradores
sorteados têm o dever de organizar, gerenciar e controlar cada evento, sendo denominados
Imperadores e Imperatrizes de cada festa. O poder atribuído, mesmo que temporariamente, ao
Imperador e a Imperatriz e a própria forma de nomear os gestores das festas expõem as
hierarquias criadas no período da festa.
Mesmo que seja para organização das festas, não se pode negar que atreladas à
“festança comunitaria” estão as relações de poder e divisões de classe, que
sutilmente, ou não, influenciam nos benefícios e vantagens para alguns membros
comunitários, o que pode ser visto em alguns momentos das festividades analisadas
(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 363- 364)
De acordo com as observações e conversas com a comunidade, pude verificar que o
poder de controlar e administrar a festança anual, atribuído aos Imperadores e Imperatrizes,
não significa que esses vão se responsabilizar por todas as suas funções na festança, já que
alguns voluntários da cozinha disseram que nem todos os responsáveis se comprometiam com
todas as suas atribuições.
Abonizio e Fava (2013) discorrem sobre o desabafo de alguns membros comunitários
durante a visita, que disseram que muitas vezes se encontram pessoas que se preocupam e se
responsabilizam por algumas funções da festa, mas não são intitulados como líderes, enquanto
os responsáveis da festa não realizam todas as suas funções como festeiros. “Independente da
veracidade dessas colocações, pode-se dizer que os títulos têm repercussão na comunidade e
envolvem mais que a simples forma de organizar a festança e cumprir o ritual” (ABONIZIO;
FAVA, 2013, p. 364).
Outra situação relatada em nosso artigo, que expõe as relações de poder e hierarquias
sociais como valores intrínsecos na comunidade, ocorreu durante o evento da Reza Cantada
que participei em 2013, que foi realizada na casa de um membro comunitário. De acordo com
Abonizio e Fava (2013), durante a celebração a casa foi se enchendo de pessoas para
participar do ritual e, aos poucos, lotou. Alguns membros políticos chegaram no momento da
reza, e o que deu origem a uma situação curiosa, as pessoas começaram a se apertar para dar
passagem aos representantes, para que ocupassem um lugar à frente da sala, onde ocorria o
evento, o que demonstra o poder dos políticos sobre a comunidade, quer seja por auxiliarem
financeiramente na captação de divisas da festa, como expus nos capítulos anteriores, ou/e por
apresentarem uma posição hierárquica respeitada perante a comunidade.
105
A função do governante, de acordo com Foucault, é “estabelecer a economia ao nível
geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos
individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de
família” (FOUCAULT, 1979, p. 281).
No entanto, o poder e controle dos governantes de Vila Bela se impõem além de suas
atribuições profissionais, pois não existe uma separação entre sua função profissional e sua
condição de cidadão comum em um evento comunitário. A comunidade e os políticos, que
são os membros envolvidos nas relações de poder, não distinguem a situação da reza, que
deveria ser democrática e igualitária, das funções dos governantes como chefes de estado, o
fato de terem chegado atrasados e não serem ignorados por serem governantes da cidade.
Percebo na situação relatada uma hierarquia de valores sociais ao qual a comunidade é
submetida, o poder e posição hierárquica prevalecendo sob os valores da fé e da devoção. O
prevalecimento do poder também foi testemunhado durante os rituais do congo e chorado na
praça, onde existia um lugar restrito aos convidados e representantes políticos como ocorreu
no Almoço da Imperatriz, no centro comunitário (ABONIZIO; FAVA, 2013), evento que tive
a oportunidade de participar da preparação da comida nos bastidores e do momento de servir.
Apesar de toda comida preparada ter sido feita para todos os convidados do evento, a
divisão existiu nos locais onde foram servidos os pratos. Como detalhamos no artigo da
festança (2013), os convidados da Imperatriz e do Imperador sentavam-se em uma sala ao
lado do centro comunitário juntamente com seus convidados e o restante dos que estavam
prestigiando a festa ficavam em uma grande área na parte de fora do centro. Além do local
diferente, os utensílios utilizados também eram distintos.
O espaço comunitário escondia um ambiente separado com porta fechada e
diversamente decorado, onde a comida foi servida para comensais de alguma forma
destacados da comunidade. A comida era a mesma, mas os pratos, apesar de
também serem de plástico, eram de modelagem superior, e o modo de servir também
foi diferenciado, já que cada qual pode servir-se do modo e quantidade desejados
(ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 364).
Nessas percepções fica claro que a titulação dos Imperadores e Imperatrizes, não só
prestigia os que pegam a responsabilidade de realização das festas, mas também dá poder e
privilégio em suas mãos, tanto sobre a escolha dos pratos que serão servidos como dos
convidados que irão compor o local reservado. Além destas vantagens, também existe o
diferencial da menor demora em serem servidos, já que no local reservado há menos pessoas
do que na parte externa. A sala reservada é como um camarote com regalias e serviços
106
especiais, enquanto o lado de fora é o local das pessoas sem o poder necessário para usufruir
dos benefícios da área restrita.
Na apresentação do congo foi possível observar as relações de poder, haja vista que o
teatro é composto de vários personagens com funções que, por mais que sejam simbólicas,
representam hierarquias sociais expostas simbolicamente durante o teatro (ABONIZIO;
FAVA, 2013).
O Rei, o Príncipe, o Secretário de Guerra, o Embaixador, os Guerreiros, os Músicos,
os Secretários de Guerra e os soldados do Rei), com suas hierarquias pré-definidas,
e, mesmo que apenas no período da Festa de São Benedito, os membros do Congo
pegam a chave simbólica da soberania da cidade na casa do prefeito, que os recebe e
faz a entrega ritual, permitindo que estes sejam os dominantes na comunidade
durante o período da festança (ABONIZIO; FAVA, 2013, p. 364).
As várias percepções do poder e das hierarquias sociais nas relações dos moradores de
Vila Bela expressam que, apesar de existirem valores sociais semelhantes entre os moradores,
as classificações hierárquicas e o poder os diferenciam e os colocam em posições diferentes
diante das escolhas, regalias, direitos e deveres.
O poder hegemônico e a condição subalterna dos indivíduos da comunidade, ainda que
presentes e subentendidos nas manifestações culturais, ficam sobrepostos a outros valores
sociais como da solidariedade, fé e coletividade da comunidade, consistindo no que Canclini
(1997) chama de um poder oblíquo híbrido, em que as hierarquizações sociais e relações de
poder são marcadas nas regalias e vantagens expostas nas manifestações culturais, mas
imbricadas e mescladas com outros valores sociais comuns entre os membros da comunidade.
O autor caracteriza o subalterno e o hegemônico como “palavras pesadas, que nos ajudaram a
nomear as divisões entre os homens, mas não a incluir os movimentos do afeto, a participação
em atividades solidárias ou cúmplices, em que hegemônicos e subalternos precisam um do
outro” (CANCLINI, 1997, p. 347).
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização do trabalho interdisciplinar relacionado aos estudos de cultura
envolvendo áreas distintas proporcionou uma grande oportunidade de aprendizado e de
desenvolvimento do olhar mais entendido e sensível das dinâmicas socioculturais e dos
sistemas de significados que as circundam.
A comunidade de Vila Bela da Santíssima Trindade foi uma escolha feliz enquanto
objeto de pesquisa para o desenvolvimento do estudo das significações socioculturais da
cozinha, já que é composta de uma trajetória única em termos de ocupação e
desenvolvimento, assim como recebeu e vem recebendo influências, interferências em seu
cenário alimentar, o que enriqueceu as informações adquiridas e agregou valor aos estudos de
cultura contemporânea.
Pesquisar os processos simbólicos e culturais em Vila Bela me fez compreender que a
cultura vilabelense ou qualquer comunidade de estudo que se proponha estudar, é volátil e
itinerante. Os estudos de cultura, portanto, se concentram nas análises dos significados que
atravessam as tradições sociais, colocando a cultura em uma posição heterogênea e menos
decifrável.
Assim, o que identifiquei neste trabalho foram os processos socioculturais imersos no
contexto alimentar local, as “contaminações”, interferências, misturas do que a comunidade
herdou, adicionou e transmitiu, e que ainda assim se transformará com o passar do tempo.
A cultura não é apenas um conjunto de obras de arte ou de livros e muito menos
uma soma de objetos e muito menos uma soma de materiais carregados de signos e
símbolos. A cultura apresenta-se como processos sociais, e parte da dificuldade de
108
falar dela deriva do fato de que se produz, circula e se consome na história social
(CANCLINI, 2009, p. 41).
A cultura não é cristalizada, está em constante movimento, e neste trabalho esse
caráter mutável é vislumbrado nos novos desejos e novas formas de preparo, nas
interferências tecnológicas, novos ingredientes, temperos e dinâmicas sociais da comunidade
de estudo. Portanto, os valores sociais identificados como modernidade, negritude, saúde
dentre outros não serão imutáveis, certamente receberão ressignificações de acordo com
novas interferências e mudanças nos processos culturais.
O fato deste estudo ter abordado o sistema alimentar, seus significados culturais e as
perspectivas simbólicas da sociedade a que pertence, torna esta pesquisa inesgotável, pois que
as mudanças de significado e assim suas constituições culturais continuarão em constante
alteração e transferência, e novas pesquisas serão necessárias na identificação dos valores
socioculturais da comunidade.
Os elementos históricos que documentam a alimentação brasileira, a comida dos
negros escravizados, do índio e do português, seus ingredientes, hábitos alimentares e pratos
típicos auxiliaram nas conexões realizadas com a comida do povo de Vila Bela,
principalmente pela recorrência de ingredientes usais como a carne, arroz, feijão, banana,
toucinho e milho, elementos inseridos no dia a dia e nas festas da comunidade de estudo.
Os elementos utilizados no passado são recorrentes no presente e evidenciam que, por
mais que a cultura da comunidade seja ressignificada através de seus novos significados e
hábitos alimentares, grande parte do conhecimento construído pelos seus ancestrais
permanece e compõe os “saberes construídos a partir de experiências sobrepostas,
descontínuas e fragmentadas, representando o entrelaçamento de diferentes práticas culturais,
imbricadas no presente, e visibilizadas por meio da documentação” (MOURA, 2005, p. 262).
Os estudos culturais da alimentação em Vila Bela também foram relevantes para o
fomento da pesquisa da comida enquanto perspectiva simbólica, e também por trazer
abordagens do contexto alimentar conectados a realidade da sociedade contemporânea.
Carneiro (2003) expõe a importância de pesquisas que abordam o crescimento cada vez maior
das interrelações mundiais e da Globalização, temas tratados neste trabalho, principalmente
quando expostos os novos valores sociais da comunidade vilabelense como o da
modernidade.
Pode-se ainda abordar a questão da alimentação do pondo de vista dos sistemas
alimentares, no qual combina-se determinados alimentos e suas formas de produção,
distribuição e consumo, especialmente na época contemporânea, quando a
109
interdependência mundial se acentua. E, finalmente, a alimentação pode ser
interpretada a partir dos estudos dos hábitos alimentares, de como determinados
padrões de consumo se estabelecem e se alteram (CARNEIRO, 2003, p. 4).
O valor dado às novas informações, ingredientes, utensílios de cozinha e práticas
alimentares, mesmo que revelem a inserção moderna da comunidade de estudo, não eliminam
a necessidade e desejo de manter elementos tradicionais na sua cozinha e hábitos alimentares.
A tradição e as mudanças na cozinha caminham juntas e se complementam em Vila Bela em
seus rituais cotidianos e festivos, o que expressa o caráter híbrido da comunidade no contexto
contemporâneo.
Canclini (2011) expõe que a tradição e a modernidade podem coexistir em um
contexto social, assim como verifiquei na comunidade de estudo:
Ao contrário e de forma complementar, a reprodução das tradições não exige fechar-
se à modernização [...] a reelaboração heterodoxa - mas autogestiva - das tradições
pode ser fonte simultânea de prosperidade econômica e reafirmação simbólica. Nem
a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais
é ficar de fora da modernidade (CANCLINI 2011, p. 238-239).
A coexistência de valores aparentemente contraditórios assim como a modernidade e a
tradição, foi recorrente neste trabalho, como o da economia e da fartura, da coletividade e
particularidade dentre outros que revelam mais profundamente a condição híbrida da
comunidade. O fenômeno híbrido é relacionado aos “processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinem para gerar
novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI 2011, p. 19).
Embora a comunidade de estudo apresente os valores sociais da coletividade e
solidariedade, as hierarquias sociais e relações de poder são marcadas em suas festas e em seu
cotidiano. No dia a dia foi possível observar a distinção social não só na simplicidade das
casas de algumas entrevistadas em comparação as outras, mas na dificuldade de expressão e
no temor e timidez na formulação das ideias de algumas em contraste com a eloquência de
outras. A diferença ao expressar-se ficou evidente entre as entrevistadas.
As que apresentavam um nível de escolaridade mais alto, eram as mais espontâneas,
faziam questão de expor sua opinião durante as entrevistas e passaram muitas informações,
além de expressarem certo bairrismo, orgulho de fazer parte da comunidade. Uma das
entrevistadas, inclusive, expôs que lançaria um livro de receitas de Vila Bela para evidenciar a
culinária típica.
110
Eu estou aqui preparando com essa ideia... Estou pedindo ao senhor que se realize,
porque nada se realiza sem a vontade de Deus, para que eu possa fazer o lançamento
deste livro de receitas típicas de Vila Bela, oriundo também do quilombo, que faz
parte da nossa história.
As mais humildes falavam baixinho, e eu apresentava dificuldade de compreender o
que diziam e assim pedia para repetirem. Na maioria dos casos, essas mulheres apresentavam
baixo nível de escolaridade e eram menos influentes nas dinâmicas sociais e na festança.
Senti também que, de certa forma, eu as inibia pela minha condição de pesquisadora
universitária, o que as deixava constrangidas, essa situação fez-me compreender o poder
intrínseco no nível de escolaridade, que as colocavam diferentes não só nas entrevistas, mas
no convívio e na condição social. Embora as entrevistadas com curso superior sejam a
minoria, inibiam de certa forma as que tinham pouco estudo, constatação que torna mais
evidente as “relações de poder oblíquas” na comunidade.
Na festança, a hierarquia social e as relações de poder ficaram perceptíveis nas
divisões dos espaços, nas regalias aos convidados da festeira na dança e representação do
Congo, onde os moradores participantes do ritual aproveitam para fazer críticas políticas
através dos personagens do teatro.
As práticas culturais da festança de Vila Bela, assim como as demonstrações
cotidianas, como expõe Canclini (1997), são atuações sociais, que aproveitaram do espaço
simbólico da representação para fazer demonstrações do social.
As práticas culturais são, mais que ações, atuações. Representam, simulam as ações
sociais, mas só às vezes operam como uma ação. Isso acontece não apenas nas
atividades culturais expressamente organizadas e reconhecidas como tais; também
os comportamentos ordinários, agrupados ou não em instituições, empregam a ação
simulada, a atuação simbólica (CANCLINI, 1997, p. 250).
Destaco a importância das obras de Machado Pais, Câmara Cascudo, Daniel Miller,
Grant McCracken e Linares e Trindade na compreensão dos temas desse trabalho, já que
esses foram autores norteadores das análises e conexões realizadas.
As obras de Machado Pais, Sociologia da Vida Cotidiana (2002) e Nos Rastros da
Solidão Deambulações Sociológicas (2006), que compreendem os estudos da Sociologia do
Cotidiano foram essenciais na expansão da perspectiva de estudo de campo, no
desenvolvimento da minha sensibilidade de observação e análise e no aprendizado da imersão
no universo sociológico.
Câmara Cascudo, por intermédio da obra História da Alimentação no Brasil (2011),
ajudou-me a compreender as origens da culinária brasileira e a realizar as primeiras conexões
111
com o objeto de estudo, esta obra sendo essencial nas análises da comida ordinária e
extraordinária, principalmente no que se refere aos ingredientes e dinâmicas na cozinha
refletidos no universo cotidiano e festivo.
A obra Teoria das Compras: o que orienta as escolhas dos consumidores, de Daniel
Miller (2002), fez-me compreender como os valores sociais podem ser revelados através dos
bens de consumo, o que facilitou a elaboração da entrevista semiestruturada com as
cozinheiras de Vila Bela, e a ampliou minhas ferramentas de identificação dos valores sociais
da comunidade de estudo. A forma como o autor construiu suas análises através de suas
pesquisas com as consumidoras de Londres, auxiliou-me na organização das ideias e na
confecção de um texto menos descritivo e mais imbricado de análises.
Embora não tenha utilizado diretamente nas análises dos capítulos, o esquema de
movimento de significado da obra Cultura e Consumo, de Grant McCracken, e a adaptação
deste para o sistema alimentar realizada por Nicolás Linares e Eneus Trindade (Processos de
movimentos de significados simbólicos no consumo alimentar, 2011), a leitura de ambos os
textos foi essencial para compreender como os bens de consumo materializam os significados
culturais, e desta forma, ficou ainda mais clara a relevância da comida como reveladora da
cultura.
A utilização da sociologia do cotidiano como instrumento de pesquisa foi um desafio
para mim enquanto pesquisadora, já que foi preciso desenvolver um olhar minucioso e
cuidadoso na busca de questões sociológicas, que se insinuavam nas práticas alimentares da
comunidade de estudo e destas identificar respostas que me permitissem fazer análises e
identificar os valores sociais intrínsecos, nos modos de fazer e nos bens de consumo. Além
disso, segundo Pais (2002), o estudo do ordinário, do que não parece ter nada a destacar e
contribuir muitas vezes não é compreendido como tema que contribua com o universo da
construção do conhecimento:
Essa ânsia de acercamento da realidade, de converter o quotidiano em permanente
surpresa, insinuando-o através de um naturalismo rebelde nem sempre bem
compreendido e muitas vezes tomado como insolente, atrevido ou subversivo- é um
dos desígnios da sociologia da vida quotidiana (PAIS, 2002, p. 28).
O preconceito no estudo do banal, e do repetitivo, também tange os estudos do
consumo, no que se refere as compras, que também é inserida nas atividades rotineiras e de
acordo com Miller (2002) não existe um esforço para enxergá-las como comunicadores de
valores socioculturais.
112
Difamação do ato de comprar e pela ma vontade de enxerga-lo como uma pratica
que revela desenvolvimentos mais profundos do que triviais nos valores e crenças
humanas. Essa e a acusação generica do fetichismo que supõe que qualquer ênfase
sobre a cultura material tomara necessariamente o lugar das relações sociais, em vez
de se tornar um meio para intensificar os valores sociais (MILLER, 2002, p. 141).
Neste sentido, este estudo contribui para quebra desses paradigmas, pois que os
valores sociais foram identificados na observação do cotidiano das cozinheiras em seus dias
normais, trabalhando em suas casas ou na rua, fazendo suas compras para família e
preparando a comida como mais um de seus afazeres diários.
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