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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
MICHELE FREIRE SCHIFFLER
LITERATURA ORAL E PERFORMANCE: A IDENTIDADE E A
ANCESTRALIDADE NO TICUMBI DE CONCEIO DA BARRA, ES
VITRIA
2014
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MICHELE FREIRE SCHIFFLER
LITERATURA ORAL E PERFORMANCE: A IDENTIDADE E A
ANCESTRALIDADE NO TICUMBI DE CONCEIO DA BARRA, ES
Tese apresentada ao Programa dePs-Graduao
em Letras da Universidade Federal do Esprito
Santocomo exigncia parcial para a obteno do
ttulo de Doutora em Letras, sob a orientao do
Professor Doutor Jorge Luiz do Nascimento e
co-orientao da Professora Doutora Ana Lcia
Lopes de S (CEA-ISCTE/IUL)
VITRIA
2014
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Dedico este trabalho a meu marido,
Christiano; aos meus irmos, Gisele e
Dalton; minha me, Ftima; e minha
av, Virgilina.
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AGRADECIMENTOS
minha famlia. Ao meu marido, Christiano, pela pacincia, pelo carinho, pela
companhia e pelo apoio em todas as fases de construo deste projeto. Mesmo sendo
uma rea to distante da sua, esteve presente nos diversos caminhos e lugares
percorridos nos ltimos quatro anos.
minha me, pelo exemplo de luta e fora, pelo ensinamento de que os obstculos so
fontes de aprendizagem e superao, no de impedimento para a realizao de nossos
sonhos.
Aos meus irmos, o Dalton, que com seu jeito moleque mostra todos os dias a
importncia da palavra na construo de uma pessoa honrada; e a Gisele, que esteve do
meu lado desde o primeiro segundo de minha vida e que sempre, por mais que as
situaes parecessem impossveis, dizia com ternura: calma, nunca se esquea de que
eu sempre estarei do seu lado. Obrigada, meus amores!
Aos meus sogros, Rachel e Eli, por me acolherem como filha e sempre me incentivarem
a lutar pelos meus sonhos. Por acreditarem em mim quando eu nem imaginava do que
seria capaz.
s minhas sobrinhas queridas, Rayra, Giovana, Maria Amlia e Ana Vitria, que
enchem meu corao de alegria a cada dia que passamos juntas, trazendo o ensinamento
do amor incondicional.
Aos meus amigos, em especial s queridas rika, Fernanda e Geysa, que compreendem
o meu sumisso ao longo da jornada empreendida. Aos amigos e companheiros de
trabalho no Centro Educacional Charles Darwin, que h quase dez anos compartilham
de meus projetos, em especial, Marcia Botti (in memoriam), Alice Simoni, ao
Armando Chafik e ao Ricardo de Assis.
Aos brincantes quilombolas, ao mestre Tertolino, por compartilhar sua histria, sua
cultura, sua sabedoria, seus sonhos, suas indignaes, sua f e sua arte.
Capes, por propiciar a realizao da pesquisa do outro lado do Atlntico, permitindo
minha estada em Portugal e a descoberta de novas travessias e margens em minha
jornada acadmica, por intermdio do Programa de Doutorado Sanduche no Exterior.
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Aos professores da Universidade Federal do Esprito Santo que, direta ou indiretamente,
contriburam para as discusses presentes neste trabalho: Paulo Sodr, Orlando Lopes,
Osvaldo Martins de Oliveira, Adlia Miglievich, Wilberth Salgueiro e Jurema de
Oliveira. E ao Wander, por sempre ser to atencioso e paciente com o corpo discente.
Aos companheiros do Centro de Estudos Africanos do Instituto Universitrio de Lisboa
(CEA/ISCTE-IUL), os quais carrego no corao: professores Jos Horta, Eduardo Costa
Dias, Pedro Vasconcellos, Clara Piarra, e a querida Fernanda Alvim. Aos amigos do
curso de Histria da frica e aos da senda flamenca, em especial, Rute de S Lopes,
Helena Cruz e Sandra Rebello. Ao professor da Universidad de Alcal, Jos Manuel
Pedrosa, o Pepe, pelo auxlio nas pesquisas e pela imerso na cultura madrilea e nas
cores de Lavapies.
Em especial aos meus orientadores, que me conduziram nesta longa jornada: Jorge Luiz
do Nascimento, que acreditou em meu trabalho e me chamou para a terra quando me
perdia em narrativas e histrias (Salve, Jorge!); e Ana Lcia Lopes de S, que
compartilhou seu conhecimento e tempo, conduzindo meus estudos e me acolhendo to
gentilmente em terras lusitanas.
A Deus, Nossa Senhora de Ftima e So Benedito, pelas bnos e por guiarem meus
passos no caminho da serenidade e do amor.
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RESUMO
O presente trabalho analisa a importncia da literatura oral na construo da identidade
de comunidades remanescentes de quilombos da regio Norte do Estado do Esprito
Santo, conhecidas como Sap do Norte. So observados cantares, enredo, melodia,
performance corporal e verbal gravada e transcrita dos Bailes de Congos de So
Benedito.
O corpus evidencia uma srie de tenses sociais que cercam a regio das comunidades
de Sap do Norte, sendo possvel perceber forte relao entre o patrimnio cultural, a
ancestralidade e a questo territorial, assim como constantes processos de
desterritorializao e hibridismo nos campos religioso, social e lingustico.
Na performance, o tempo passado se faz presente em memrias de tradies africanas
que so revividas e atualizadas no momento enunciativo, possibilitando aos sujeitos
histricos participantes do Ticumbi a escrita de uma narrativa hbrida, simblica e
tradutora de sua identidade plural.
nesse espao de tenses que a tradio e a ancestralidade cantadas nos versos dos
Bailes de Congos se constituem como o local da cultura, engendrado por lutas e
tradies. Local em que a riqueza, a sabedoria e o universo simblico das comunidades
compem um patrimnio cultural imaterial a ser preservado, difundido e legitimado
socialmente.
Palavras-chave: literatura oral, performance, identidade, Ticumbi.
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RESUMEN
Esta investigacin habla de la importancia de la literatura oral en la construccin de la
identidad de comunidades descendientes de quilombos en la regin Norte del Estado de
Esprito Santo, en Brasil, conocidas por Sap do Norte. Son analisados los cantes, los
sucesos de la narrativa, la meloda y la performance del cuerpo y de la voz, grabados y
transcritos de los Bailes de Congo de San Benedito.
El corpus indica diversas tensiones sociales alrededor de la regin de las comunidades
de Sap do Norte, em que se percibe fuerte relacin entre el patrimonio cultural, la
ancestralidad y la pose de la tierra, adems de los procesos de desterritorializacin y
hibridez en la religiosidad, la sociedad y la lingustica.
En la performance callejera, el tiempo pasado se hace presente en la memoria de las
tradiciones africanas revividas y actualizadas en la enunciacin, lo que posibilita a los
sujetos histricos que hacen parte del Ticumbi la escrita de una narracin hbrida,
simblica y traductora de su identidad plural.
Es en ese espacio de peleas que la tradicin y los ancestros se cantan en los versos de
los Bailes de Congos y se hacen como local de la cultura, lleno de luchas y tradiciones.
Sitio donde la riqueza, la sabidura y el universo simblico de las comunidades
componen el patrimonio cultural inmaterial que debe ser preservado, propagado y
legitimado socialmente.
Palabras clave: literatura oral, performance, identidad, Ticumbi.
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ABSTRACT
This research examines the importance of oral literature in quilombola communities
identity building from the North area of Espirito Santo State, known as Sap do
Norte. It is observed their singing, their plot, melody, tune, verbal and body
performance which were recorded and transcribed from the regional festival Baile de
Congos de So Benedito.
The corpus shows a series of social tensions surrounding the region of Sap do Norte
communities, which shows a strong relation between cultural heritage, ancestry, and
territorial issues, as well as constant processes of dispossession and hybridism in the
religious, social, and linguistic fields.
In performance, past time is present in the memories of African traditions, which are
lived and updated in speech moments, enabling an hybrid symbolic writing that
translates its plural identity narrative for the historical subjects from Ticumbi.
It is in this tension space that tradition and ancestrality are sung in verses from the
Bailes de Congo and became part of the local culture, engendered by traditions and
fights. It is a place where wealth, wisdom, and symbolic universe of communities
comprise an intangible cultural heritage to be preserved, wide spread and socially
legitimated.
Key Words: oral literature, performance, identity, Ticumbi.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1: Comunidades remanescentes de quilombos no Esprito Santo. ..................... 16
Figura 2: Deus Kalunga. ................................................................................................ 24
Figura 3: Notao musical de manuscrito medieval. ..................................................... 44
Figura 4: Transcrio musical de cantigas medievais. .................................................. 45
Figura 5: Jogral com harpa, sentado. ............................................................................. 48
Figura 6: Mestre, mulher com castanholas e jogral com saltrio. ................................. 48
Figura 7: Mestre-trovador, acompanhado do jogral com guitarra e jovem com
castanholas escutando. ................................................................................................... 49
Figura 8: Mestre-trovador, acompanhado do jogral com guitarra e jovem com
castanholas escutando. ................................................................................................... 49
Figura 9: Mestre-trovador, acompanhado do jogral com guitarra e jovem escutando....50
Figura 10: Jogral com viola de arco e jovem com pandeiro. ......................................... 50
Figura 11: Mestre-trovador, acompanhado de jogral com guitarra e segundo jogral, com
harpa, sentado no cho. .................................................................................................. 51
Figura 12: Mestre, jogral com guitarra e mulher com pandeiro de guisos sentada num
escabelo. ........................................................................................................................ 51
Figura 13: Mestre, mulher danando, com castanhetas nas mos erguidas e jogral com
salterio, sentado no cho. ............................................................................................... 52
Figura 14: Mapa da antiga diviso administrativa de Lunda. ...................................... 105
Figura 15: Batismo do mani Congo. ............................................................................ 111
Figura 16: Reino do Congo e suas provncias. ............................................................ 112
Figura 17: Mapa do antigo Reino do Congo. .............................................................. 113
Figura 18: Brincante quilombola da dcada de 1970. ................................................. 114
Figura 19: Ticumbi de Conceio da Barra em 2012. ................................................. 114
Figura 20: Vista atual do mercado de So Mateus. ..................................................... 117
Figura 21: Cercada de cuidados, a imagem de So Bino resiste aos sculos. ............. 118
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Figura 22: Devotos acompanham a procisso em homenagem a So Benedito nas ruas
de Conceio da Barra, ES (dezembro de 2011). ........................................................ 119
Figura 23: Dona Cedlia, manifestando e celebrando sua f em So Benedito. ......... 119
Figura 24: O Ticumbi de So Benedito de Conceio da Barra: o estandarte e a
sobrevivncia da tradio. ........................................................................................... 132
Figura 25: Chegada de So Biniditinho das Piabas ao cais do Rio Cricar, no dia 31 de
dezembro de 2011. ....................................................................................................... 133
Figura 26: So Benedito em companhia de seus devotos. ........................................... 134
Figura 27: Marcha de rua, com o Mestre Tertolino Balbino diante do grupo, direita da
imagem. ....................................................................................................................... 135
Figura 28: Brincantes na Comunidade de So Benedito. ............................................ 136
Figura 29: A f e os preparativos para o Ticumbi. ...................................................... 137
Figura 30: Instrumentos do Jongo. .............................................................................. 137
Figura 31: Brincantes sob a bno de So Benedito. ................................................. 138
Figura 32: Ilustrao sobre a embaixada holandesa enviada a D. Garcia II. ............... 141
Figura 33: Igreja de Nossa Senhora da Conceio, em Conceio da Barra. .............. 144
Figura 34: Comunidade de So Benedito, palco da dramatizao do Ticumbi. .......... 145
Figura 35: Mapa das principais migraes das populaes de Angola. ...................... 229
Figura 36: Carta tnica de Angola. .............................................................................. 238
Figura 37: Mapa etnogrfico de Angola, com destaque para a distribuio dos povos
banto ao longo do territrio. ........................................................................................ 240
Figura 38: O trfico dos africanos para o mundo arbio-muulmano e a sia oriental.
...................................................................................................................................... 243
Figura 39: Fluxo interno de populaes negras no Esprito Santo. ............................. 247
Figura 40: Fluxo externo de nacionalidades africanas distribudas no territrio
brasileiro. ..................................................................................................................... 252
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LISTA DE TABELAS E QUADROS
Tabela 1: Formas fundamentais da tradio oral. .. 63
Quadro 1: Estrutura resumida do Ticumbi. ................................................................. 151
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SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................................... 14
PARTE I ORALIDADE E PERFORMANCE ............................................................. 24
Captulo 1 A Literatura Oral .................................................................................. 25
1.1 Oralidade e Escrita: suas marcas, sua histria ............................................. 26
1.2 A Vs e o Canto Atravs dos Tempos ......................................................... 42
1.3 A Oralidade Africana ................................................................................... 56
1.4 A Literatura Angolana ................................................................................. 65
Captulo 2 Cultura Popular e Performance ............................................... 69
2.1 O Teatro Popular .......................................................................................... 69
2.1.1 O Teatro e a Cultura Popular na Idade Mdia .............................. 76
2.1.2 O Teatro Vicentino ........................................................................ 83
2.2 A Performance Cultural ............................................................................... 88
2.2.1 A Performance, o Tempo e suas Escrituras .................................. 95
PARTE II TICUMBI ...................................................................................................... 103
Captulo 3 Ticumbi, uma Longa Histria ........................................................... 104
3.1 Origens Histricas ................................................................................................. 104
3.2 Origens Mticas: A lenda de Benedito Meia-Lgua: ............................................ 115
3.3 Reis e Representaes ........................................................................................... 121
3.4 O Rito e a F .......................................................................................................... 127
3.4.1 Ticumbi Uma Ao Ritual .................................................................. 130
3.4.1.1 Os Participantes ..................................................................... 131
3.4.1.2 O Ritual .................................................................................. 132
3.4.2 Elementos Constitutivos do Ticumbi ..................................................... 138
3.4.2.1 Vestimentas ............................................................................ 138
3.4.2.2 Instrumentos ........................................................................... 139
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3.4.2.3 Personagens ............................................................................ 139
3.4.2.4 Enredo .................................................................................... 142
3.4.2.5 Coreografia ............................................................................ 142
3.4.2.6 Ritmo ..................................................................................... 143
3.4.2.7 Partes da Dramatizao .......................................................... 143
Captulo 4. Ticumbi: a palavra ......................................................................... 152
4.1 Ticumbi: a Letra e a Voz ................................................................................ 189
Captulo 5. Hibridismo Cultural ...................................................................... 217
5.1 A Herana Hibrica ........................................................................................ 224
5.2 O Passado Africano ........................................................................................ 227
5.2.1 O Reino do Congo .................................................................................. 228
5.2.2 O Contato com os Portugueses ............................................................... 232
5.2.3 O Declnio de um Imprio ...................................................................... 234
5.2.4 O Imprio Lunda ..................................................................................... 236
5.2.5 A Querela da Escravido ........................................................................ 240
5.3 Quilombolas do Esprito Santo ....................................................................... 246
Captulo 6. Reconhecimento, Identidade e Memria....................................... 256
6.1 Do Navio Cidadania: histrias e lutas ......................................................... 256
6.2 Ticumbi: histria e identidade em performance ............................................. 264
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 268
APNDICES .............................................................................................................. 280
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INTRODUO
A sociedade contempornea marcada pela pluralidade e pela diversidade, que
se fundem em produes culturais hbridas. Esse, no entanto, no um fenmeno
recente. A histria das organizaes humanas se estabelece e contada a partir de
narrativas de dominao, de lutas e de migraes, para estabelecimento de hegemonias e
expanses territoriais, poltica e econmica. Do contato, muitas vezes, do choque entre
culturas, ressaltam-se as diferenas, em um constante jogo de centralidade e de poder,
engendradas por profundas contradies, como a desigualdade de condies e de
oportunidades, desde o mbito educacional e cultural at a base de organizao
financeira.
No campo da diversidade, coexistem o saber e as narrativas tradicionais, de
mbito popular, que disputam espao e reconhecimento com novas mdias e meios de
difuso da informao. Nessa disputa fundem-se saberes e experincias que se renovam
cotidianamente em prticas sociais de representao cultural.
Os municpios de Conceio da Barra e de So Mateus, locus deste estudo, em
termos quantitativos, apresentam populao de negros e pardos cerca de quatro vezes
maior do que nas demais regies do Estado, sendo que grande parte dessas pessoas no
tm acesso, em sua totalidade, a servios de gua e de esgoto, de iluminao pblica e
de pavimentao, por exemplo (IBGE, 2012).
Em um espao de desigualdade e de falta de acesso educao formal, a cultura
oral, historicamente, se constitui como fora e potncia na voz dos excludos. No caso
das comunidades quilombolas de Sap do Norte, as narrativas de lutas por
reconhecimento, por estima e por direitos constitucionais se concretizam como forma de
sobrevivncia e resistncia atravs dos tempos.
Nessa perspectiva, a produo cultural de comunidades remanescentes de
quilombos na regio norte do Estado do Esprito Santo, conhecida como Sap do Norte,
desponta como fonte da tradio, da memria e da traduo cultural que funde saberes
locais, narrativas diaspricas e histrias de luta ao cotidiano contemporneo brasileiro.
Aqui o termo tradio diz respeito herana cultural que formar parte da
hbrida produo do Ticumbi, uma dramatizao de carter popular que ocorre
exclusivamente em algumas comunidades quilombolas do Norte do Esprito Santo, que
se renem em homenagem a So Benedito. No se trata, portanto, da perspectiva de
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Hall (2009), para o qual a tradio e a autenticidade se configuram em mito, moldando
imaginrios em torno de uma concepo exclusiva e anacrnica de ptria. A tradio
tomada no sentido de valorizao do passado como fonte de sabedoria, de cultura e de
identidade, que transmitida de gerao a gerao, mas se atualiza constantemente no
mercado da performance em uma reflexo sobre si, sobre o passado e sobre o cotidiano
das comunidades.
Essa produo cultural diversa, multicultural e hbrida vem do cerne de centenas
de comunidades que guardam em si o signo da produo de prticas culturais resistentes
brutalidade da histria da escradivido e do preconceito por que passaram os
antepassados e os integrantes das comunidades de Sap do Norte.
A regio indicada na Figura 1 evidencia algumas das comunidades
remanescentes de quilombos do Estado, destacando a regio a ser trabalhada, a qual
envolve diversas comunidades em diferentes estgios de organizao e reconhecimento
institucional, trata-se da chamada regio de Sap do Norte.
Figura 1 Comunidades remanescentes de quilombos no Esprito Santo.
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(Fonte: OSRIOet al., 1999, p. 18)
A regio de Sap do Norte delimitada no por elementos polticos, mas pela
memria dos prprios integrantes das mais de cem comunidades remanescentes de
quilombos localizados no Norte do Estado do Esprito Santo, mais precisamente, entre
os municpios de So Mateus e Conceio da Barra. Trata-se de uma localidade prxima
dos limites entre as regies brasileiras Sudeste e Nordeste.
O termo Sap do Norte empregado pelos quilombolas como lugar no s de
existncia da maioria das comunidades, mas tambm como territorialidade de suas
prticas, saberes e modos de vida, muitos deles ligados ao aspecto sagrado de seus
cultos e de suas prticas religiosas.
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A construo metafrica da comunidade vem da representao de uma gramnea
extremamente resistente e tpica da regio, o sap, que sobreviveu no s ao roado das
comunidades e ao gado, mas tambm aos tratores e monocultura do eucalipto que se
instalam na regio (OLIVEIRA, 2009). Dessa forma, o nome dado comunidade
simboliza a resistncia das populaes tradicionais, que h sculos lutam pelo
reconhecimento de seus direitos de sobrevivncia, de cultura e de posse da terra na
regio.
Dentre as diversas prticas culturais inerentes s comunidades de Sap do Norte,
destaca-se o Ticumbi, manifestao cultural tpica da regio Norte do Esprito Santo.
Essa representao consiste, em linhas gerais, em uma dramatizao em versos,
apresentada em honra de So Benedito. Existem quatro grupos de Ticumbi em Sap do
Norte. Este trabalho debrua-se sobre os versos dos brincantes do Ticumbi de
Conceio da Barra.
A celebrao realizada entre os dias 31 de dezembro e 1 de janeiro, data que
no corresponde ao festejo litrgico catlico em honra de So Benedito (celebrado em 5
de outubro), mas que veio sendo realizada pelos africanos escravizados em dias festivos
que permitiam a folga para realizao de suas festas (como o Dia de Ano Novo).
A correlao entre o calendrio catlico e seus dias festivos, com direito
liberdade e quebra de hierarquias sociais, foi destacada por Bakhtin (1993) como um
dos traos marcantes da cultura popular, do Medievo Renascena algo que ainda
hoje se faz sentir em festejos de rua e festas processionais.
Para o filsofo russo, na cultura popular eram suprimidas as hierarquias e
instauradas a festa e a liberdade. No entanto, essa liberdade era restrita no contexto
medieval analisado por ele, de modo que a possibilidade de a cultura de praa pblica se
manifestar ficava restrita a alguns dias delimitados pela cultura oficial.
Na encenao do Ticumbi, os quilombolas seguem em procisso pela cidade,
trazendo a imagem de So Benedito e pedindo permisso a Nossa Senhora da
Conceio, padroeira de Conceio da Barra, para que seja realizada a dramatizao.
Segundo o IBGE (2014), o municpio passou a receber esse nome em 1891, deixando de
ser Barra de So Mateus, aps a fundao da Parquia de Nossa Senhora da Conceio
da Barra de So Mateus, em 1831.
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Durante a performance, os congos acompanham com pandeiros a representao
das lutas entre os reis africanos de Congo e de Bamba, bem como de seus secretrios. A
luta travada entre eles deve-se ao direito de realizar a festa para So Benedito. O rei de
Congo catlico e por isso julga-se o responsvel pela festividade, uma vez que o rei de
Bamba considerado pago e infiel.
A luta traz dois traos representativos da cultural local, sendo um deles histrico
e o outro, contemporneo. Em termos histricos, a tradio catlica do rei de Congo diz
respeito ao fato de, por volta do sculo XVI, o imperador do antigo Reino do Congo
(mani Congo) ter se convertido ao catolicismo pelo contato com o colonizador
portugus.
Essa assimilao da religio com o poder foi explorada pelos portugueses, que
ofereciam mantos e presentes ao mani Congo, a fim de conquist-lo como aliado. A
partir dessa perspectiva, homens africanos de outros reinos eram capturados como
escravos e lhes era imposto como castigo o batismo catlico. Essa tradio segue sendo
revivida pelo Ticumbi, que ao final da dramatizao, converte o rei de Bamba e seus
soldados, os congos, ao catolicismo, em uma metfora dos processos de colonizao e
evangelizao realizados pelos portugueses na frica.
Na perspectiva da atualizao da prtica cultural contemporaneidade, percebe-
se o rei de Bamba sendo associado s empresas de monocultura do eucalipto que se
instalam na regio e expropriam os quilombolas de suas terras (MINISTRIO DA
CULTURA, 2008). Dessa forma, o elemento a ser combatido e ao qual so dirigidos os
vituprios e as crticas por parte do rei de Congo e de seu secretrio o rei de
Bamba,em uma metfora social. O confronto entre os reis, assim, uma espcie de
representao burlesca das lutas sociais travadas cotidianamente pelas comunidades
remanescentes de quilombos na regio de Sap do Norte.
A dramatizao popular do Ticumbi, dessa forma, em diversos momentos de
suas falas e embaixadas, permite observar a transposio de tenses histricas que se
desvelam sob o universo simblico da performance cultural. Trata-se do encontro de
culturas africanas, brasileira e ibrica, incorporando elementos de todas elas em uma
nova formao cultural, na qual os smbolos ganham constantemente novos sentidos.
O reconhecimento e a valorizao da diversidade cultural, especificamente no
contexto capixaba e no que se refere s comunidades remanescentes de quilombos, toma
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por fio condutor o plano literrio, entendendo a manifestao da coletividade por meio
da subjetividade que percorre versos, cantares e encenaes constitutivas da literatura
oral de tais comunidades.
A pesquisa, com relao performance cultural do Ticumbi, apoiou-se em
diferentes bases bibliogrficas e etnogrficas, sendo de grande relevncia a visita Casa
da Cultura de So Mateus e ao Museu da Histria de So Mateus, a qual orientou a
investigao quanto ao processo de organizao do mercado e ao da economia
escravocrata nas grandes fazendas da regio ao longo dos sculos XVI a XIX.
Tambm foi de extrema relevncia a visita ao Instituto do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional (IPHAN), detentor de material produzido no Estado, contendo um
mapeamento das comunidades remanescentes de quilombos no Esprito Santo da sua
localizao, seus costumes, lderes, ritos e festejos (MINISTRIO DA CULTURA,
2008). Tal material foi produzido sob coordenao do professor Osvaldo Martins DE
Oliveira, do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal do Esprito
Santo (UFES), e encontra-se disponvel para consulta, servindo de fonte para estudo de
elementos da memria de festas e cantares, bem como da realidade econmica e cultural
das comunidades em questo.
A pesquisa tambm conta com observao, gravao, transcrio e anlise dos
versos e cantares encenados durante os dois dias de apresentao do Ticumbi de
Conceio da Barra: 31 dezembro de 2011 e 1 janeiro de 2012. A materialidade
lingustica dos versos permite, ainda, uma observao contrastiva com os dados
disponibilizados pelo IPHAN, conferindo uma perspectiva diacrnica.
Nesse percurso, foi possvel estabelecer o dilogo com pesquisadores que se
identificam com a tradio cultural quilombola, os quais possibilitaram o
aprofundamento desta pesquisa pelo vis antropolgico, como, por exemplo, o professor
Osvaldo Martins, referenciado anteriormente; a professora Bernadette Lyra, escritora e
professora do departamento de Comunicao da Faculdade Anhembi Morumbi; o
estudioso da cultura capixaba Guilherme Santos Neves; e o escritor e pesquisador
Maciel de Aguiar.
Os estudos de literatura comparada contaram com o apoio de diversos
investigadores da oralidade no continente africano, durante a realizao do Programa de
Doutorado Sanduche no Exterior, da Capes (processo 5929/0). possvel referenciar
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nessa etapa a co-orientadora desta pesquisa, Ana Lcia Lopes de S, bem como os
professores Jos Horta e Eduardo Costa Dias, do Centro de Estudos Africanos, do
Instituto Universitrio de Lisboa (CEA, ISCTE/IUL); e o professor Jos Manuel
Pedrosa, da Universidad de Alcal.
A organizao da pesquisa est disposta em duas partes, a primeira mais
terica, a fim de expor as bases referenciais da literatura oral e da performance. Na
segunda parte, mais pragmtica, exploradaa representao do Ticumbi e seus
desdobramentos na representao cultural e na construo identitria a partir da
memria coletiva propagada de gerao a gerao atravs de versos e cantares.
Na primeira parte deste trabalho, a temtica da literatura oral ser explorada
conforme referencial terico em que se destacam os estudos de Zumthor (1993, 2007),
Saraiva (1981, 1990), Bonvini (2006), Finnegan (2006), Ravetti (2006), Menndez
Pidal (1944, 1963), para referenciar apenas alguns dos que se dedicam a questes
referentes oralidade na literatura, desde a poca medieval.
Tambm auxiliam no desenvolvimento da temtica da oralidade autores como
Rosrio (1989), Miller (1999), Vansina (1982), Henige (2005), Cooper (2005), Queiroz
(2007), Ortega (2008, 2013), Fonseca (1996), dentre tantos outros que investigam a
oralidade a partir da perspectiva de comunidades africanas com suas narrativas
tradicionais.
A partir desses tericos ser possvel traar comparativos, inclusive, com relao
s diferentes vises de centro e periferia com base nos estudos sobre a cultura popular
vista em uma perspectiva de novos protagonistas, deslocando o olhar do antigo centro
das relaes marcadas pelo colonialismo.
Os estudos sobre a oralidade abordaro o teatro popular, somados s anlises de
Bakhtin (1987) e conduziro definio e discusso quanto ao conceito de
performance cultural, sustentadas por autores como Zumthor (2007), Schechner (2000),
Taylor (2002), Martins (1997, 2002), Ravetti (2002), dentre outros.
A literatura tradicional das referidas comunidades permite, assim, a expresso e
a traduo de narrativas provenientes de sujeitos histricos que, pela interao com seu
grupo, com a memria e a histrica corrente de seu Pas, reconhecem-se e inscrevem-se
como protagonistas de uma narrativa de Nao que muito revela sobre o passado
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colonial brasileiro e o africano, bem como a resistncia e a coragem de comunidades
diaspricas marcadas por histrias de silenciamento e de deslocamentos.
Compondo esse cenrio esto os sujeitos nacionais, autores de uma narrativa
histrica que os traduz nesse contexto fragmentado e desigual. A histria, vista como
narrao, transcende o tempo pedaggico da histria oficial e se transmuta em uma
performtica traduo cultural e identitria, plural e dinmica.
Nesse sentido, notrio observar que a cultura, a memria e a histria de um
povo no esto guardadas apenas no saber difundido nas escolas, uma vez que
comunidades tradicionais, alijadas da educao formal e s margens de interesses
estatais, guardam entre seus membros registros de saberes e cultura que, transmitidos
oralmente, de gerao a gerao, confirmam o processo de construo identitria local e
nacional. Segundo Bhabha (2010: 207):
Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devem ser
repetidamente transformados nos signos de uma cultura nacional
coerente, enquanto o prprio ato da performance narrativa interpela
um crculo crescente de sujeitos nacionais. Na produo da nao
como narrao ocorre uma ciso entre a temporalidade continustica,
cumulativa, do pedaggico e a estrutura repetitiva, recorrente, do
performtico. atravs deste processo de ciso que a ambivalncia
conceitual da sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nao.
na tessitura desses fragmentos cotidianos mantidos vivos pelo fio da memria
popular que a pesquisa aponta para a sobrevivncia de elementos no s das culturas de
matriz africana, mas tambm europeia. No espao hbrido da sociedade e da cultura
contemporneas revelada a sobrevivncia de formas tradicionais da cultura popular.
A partir da segunda parte deste trabalho, estaro dispostos os cantares dos Bailes
de Congo de So Benedito, constantes da representao do Ticumbi, pela transcrio da
performance cultural. Os Captulos 3 e 4 abordam a performance em sua dimemso
sociolgica, etnogrfica e literria.
A estrutura literria da dana dramtica do Ticumbi tem origem incerta, annima
e ancestral que demonstra sofrer influncia tambm da primitiva lrica ibrica de
tradio rabe: as jarchas. Essas canes simples e breves, de tradio oral, so
provenientes do perodo de dominao moura na Pennsula Ibrica, registradas ao longo
dos sculos IX e XII, e escritas em mozrabe e lngua romance (ROMERALO, 1969).
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As jarchas estabelecem influnciana lrica medieval e renascentista ibrica,
motivando pesquisas de ordem histrica e estrutural. Essa produo cultural se fundiu
tradio de colonos e comunidades africanas introduzidas na Europa e trazidas ao Brasil
desde o sculo XVI sob o signo da escravido. Menndez Pidal (1944), por sua vez,
aponta para a influncia, na lrica medieval, da estrofe monorrmica do zjel arbico-
andaluz, fator que ser percebido em algumas estrofes e versos de volta do Ticumbi.
Ao longo da anlise, possvel observar a composio hbrida de seus versos,
sendo reconhecveis no s elementos da cultura africana, sobrevivente aos tempos de
horror da escravido; e da constituio de comunidades remanescentes de quilombos;
mas tambm a (re)construo de estruturas tradicionais que remontam aos autos
populares, de herana medieval, trazidos por jesutas e colonos.
Essa discusso conduz ao Captulo 5, que se articula ao redor da fomao
hbrida do Ticumbi, a partir de conceitos definidos por Hall (2006, 2009), Bhabha
(2010) e Canclini (2008).
A estruturao estrfica, mtrica e rmica dos Ticumbis denotam no s o
hibridismo da referida manifestao artstica, mas tambm um retorno tradio de
matrizes africanas que permitem entrever elementos da cultura de Angola e do antigo
Reino do Congo, resistentes ao tempo e constitutivas do carter transnacional e
tradutrio da representao artstica do Ticumbi.
Os elementos culturais, histricos e literrios africanos foram investigados com
o suporte do Centro de Estudos Africanos, do Instituto Universitrio de Lisboa, que
tambm permitiu uma interface com a cultura medieval ibrica, propiciada por
pesquisas na Universidade de Lisboa, na Biblioteca Nacional de Lisboa e no Instituto
Cames, em Portugal; na Universidad de Alcal e no Arquivo de Cultura Popular em
Sevilla, na Espanha.
Por fim, no Captulo 6, segue-se uma anlise pautada em tericos do Ps-
Colonial, como Stuart Hall e Homi Bhabha, sem se furtar s importantes contribuies
de Canclini e Paul Gilroy, que descortinam um olhar crtico em direo a um
protagonismo e a um devir com respeito ao carter transcultural de comunidades
marcadas por processos diaspricos e por lutas libertrias, reconquistando a humanidade
que a escravido durante sculos lhes negou.
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A escrita da nao sob a perspectiva de comunidades historicamente guetoizadas
permite aos prprios brasileiros o reconhecimento de sua cultura e de sua histria, a
qual foi por sculos negligenciada. Acompanhar a representao cultural do Ticumbi
observar o desvelar de uma cultura hbrida, forjada em um passado que remonta ao
medievo, ao processo de colonizao e a histrias de luta por liberdade e
reconhecimento.
Dessa fuso de elementos ideolgicos e culturais inscritos e reescritos na
performance do corpo e da voz dos brincantes quilombolas que se edificam as
identidades culturais das comunidades de Sap do Norte.
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PARTE 1
ORALIDADE E PERFORMANCE
Deus Kalunga
(BASTIN, 2009, p. 36)
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CAPTULO 1: A LITERATURA ORAL
O termo literatura oral causa, muitas vezes, estranhamento ou, ainda,
preconceito e no aceitao.
A literatura e a oralidade, no entanto, por mais que paream termos divergentes,
em geral, fazem parte de um processo de composio esttica e subjetiva que se origina
nas bases das fabulaes literrias que so alvo de estudos crticos acerca da histria da
literatura.
Grande parte desse debate deve-se relao contextual que marca as produes
orais, sendo necessria uma profunda reflexo sobre o contexto e o fato apresentado.
Para isso, a perspectiva interdisciplinar e descentralizada fundamental, sendo
importante olhar em diferentes direes, a partir do suporte de diferentes reas do
conhecimento, como a literatura, a lingustica, a histria, a antropologia, a sociologia e a
etnografia.
Na perspectiva dos estudos literrios, os pontos de discusso fundamentais a ser
abordados no que concerne literatura oral dizem respeito a suas caractersticas
estruturais, s bases das produes literrias, definio de gneros, bem como
importncia da oralidade nas composies culturais de sociedades que no tm por base
um sistema de escrita.
A importncia da cultura de tradio oral aponta para diversas comunidades e
produes performticas contemporneas, como alguns povos africanos e parcelas da
sociedade brasileira. A oralidade, que muitas vezes tem sua relevncia negligencia
diante dos crticos da cultura, no entanto, forma a base da produo literria a que hoje
se reconhece como cannica.
No passado de produes literrias marcadas pela oralidade e pela representao
popular, que remontam aos sculos X a XVI, despontam traos fundantes que
repercutem no teatro popular e nas representaes performticas que ainda hoje
influenciam produes culturais de diferentes sociedades.
A partir da comparao entre formas literrias inerentes oralidade e aquelas
documentadas por meio da escrita, possvel perceber que no h apenas divergncias
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conceituais em termos de produes escritas e orais, mas tambm diversas semelhanas,
que sedimentam e sustentam o discurso e a autenticidade da produo cultural oral.
A relevncia da oralidade, que encontrou espao nas cortes ocidentais
medievais, no foi por completo silenciada e tem fora inquestionvel nas mais
diferentes sociedades, como diversas comunidades oriundas de matrizes africanas.
Este captulo destina-se a abordar historicamente o papel da oralidade na
construo do que atualmente se reconhece como arte literria. Observadas as
influncias e as correlaes entre a oralidade e a escrita, ser analisado o relevo da
oralidade em comunidades que tm na poesia vocal sua principal forma de expresso e
representao do mundo.
1.1 Oralidade e Escrita: suas marcas, sua histria
A temtica da oralidade suscita discusses e debates acalorados com relao s
fontes e sua legitimidade. Os valores estticos inerentes produo cultural, muitas
vezes, so desconsiderados pela crtica especializada, a despeito da fugacidade das
palavras que recorrem memria como base e inspirao.
Nesse debate, a legitimidade da produo cultural de comunidades que no tm
por base a sistematizao da escrita alfabtica chega a ser questionada por conceitos
externos s referidas culturas. Julgar a produo cultural de uma comunidade sem
inserir-se em seu contexto e em suas tradies, em geral, promove tais segregaes, mas
no justifica a no aceitao da diversidade de produes artsticas, esteticamente
pensadas, imersas no imaginrio da literatura oral e popular.
A definio da literatura oral complexa e envolve variveis mltiplas que
podem ser reunidas em perspectivas culturais e estticas. Em uma perspectiva geral, a
literatura oral corresponde vocalizao de uma formulao simblica e subjetiva do
mundo. A construo dessa representao de si e do mundo, por sua vez, no est
dissociada de uma dimenso esttica, veiculada pela palavra e pelo ritmo da oralidade.
Fonseca (1996) um dos autores que se engaja no intuito de explorar o campo
da oralidade a partir da dimenso literria. Para tanto, define a literatura oral como
formas literrias transmitidas pelo sistema verbal oral, em que possvel reconhecer:
discurso peculiar, capaz de transmitir sensaes, emoes, sugestes
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ao mesmo tempo que encerra e veicula princpios ticos, premissas
para a actuao do indivduo em sociedade e em relao ao meio
fsico que o envolve, concepes sobre a justia, o trabalho e outras
normas de conduta chamadas virtudes, conhecimentos teis vida e
preservao da memria colectiva e das instituies nas sociedades ou
grupos populacionais em que se desenvolve e apresentando-se sob a
forma de contos, mitos, lendas, narrativas genealgicas, poemas,
provrbios, adivinhas, etc.
Na perspectiva do autor, o uso da expresso literatura oral depreende a
necessidade de anlises que extrapolem as convenes clssicas da teoria literria,
incluindo a mescla de gneros. A anlise deve partir da considerao de traos
relevantes na caracterizao dessa forma de representao cultural.
No intuito de sistematizar caracteres que se repetem na oralidade, Ortega (2013) afirma
que na produo oral atual h trs elementos: o texto, o poema (percebido como potico
por todos) e a obra, que se efetiva no momento da enunciao pela conjuno de texto,
sonoridade, ritmos e elementos visuais e gestuais.
O texto traz em si marcas do contexto enunciativo, como o uso recorrente de
vocativos, justificativas, digresses, enumeraes e o constante jogo que se estabelece
entre eu / voc durante o ato comunicativo. Sento assim, correto afirmar que a
literatura oral comporta sempre um aspecto performativo.
A linguagem articulada com base em fatores como a economia lexical, jogos
de palavras e repeties, predomnio da parataxe, elipse de verbos, densidade de
imagens, impessoalidade e atemporalidade, repeties e um uso mais arcaico da lngua,
que engloba palavras de diferentes lnguas (ORTEGA, 2012, 2013).
A diversidade e o dinamismo tambm so caractersticos da oralidade. Segundo
Ortega (2012: 74), el texto oral tiene una capacidad de reinventarse, reestructurndose,
gracias a que la interpretacin es siempre nueva nada ms lejos de ser reiterativa como
algunos quisieron ver.
Outro fator afetado pelo dinamismo da literatura oral o conceito de gnero. Em
funo da situao discursiva, do carter coletivo, da variabilidade e das sucessivas
atualizaes, mesclam-se e sucedem-se poesia, episdios narrativos, canto e ao
dramtica, todos comportados pelo fenmeno da performance.
Segundo Ortega (2008), para delimitar um gnero, necessrio observar
diversos elementos, como a organizao textual; os tipos, o volume e o contexto do
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discurso a partir dos quais se podem obter oposies (sagrado / profano, lrico /
narrativo / dramtico); a durao da interpretao (longa / curta); o nmero de locutores
(monlogo / dilogo / polifonia; solos e coros); e se falado ou cantado, nesse caso, se
o canto individual ou canto coletivo, em verso ou em prosa.
Devido complexidade, o autor considera o termo gnero inadequado
prtica da literatura oral, acreditando ser mais adequada a ideia de variedades de
discurso. Dentre essas diversas variedades, h um critrio que se estabelece como
essencial: o ritmo, que constitui em si mesmo um saber e traz diversas consequncias
para o plano lingustico, como o uso de aliteraes, efeitos sonoros, paralelismos e a
prpria gestualidade, que sero analisados mais adiante atravs dos versos do Ticumbi.
A poesia oral est muito associada ao canto liberdade de criao e difuso
que essa forma de expresso artstica alcana. A msica, a dana e o canto so
indispensveis aos estudos da literatura oral, tendo traos marcantes em diversas
produes, como a repetio da estrutura musical ao longo da performance; no caso das
melodias, apresentam distncia tonal entre as notas e predominam o ritmo vocal; os
intervalos apresentam um mesmo tipo de escalas; as notas apresentam-se mais alargadas
ao final das frases; os ritmos so binrios e tercirios; e, no que se refere tradio
africana, h quatro pulsos bsicos: lento, moderado, rpido e muito rpido.
Quanto ao ritmo, Ortega (2008) aponta traos, nas canes de embalar da Guin
que, pela influncia banto, tambm ecoam no canto Ticumbi, como: o ncleo derivado
de um esquema tonal que reaparece com regularidade; o ncleo rtmico aparece sempre
com uma construo gramatical determinada (repetio sinttica paralelstica,
geralmente anafrica); e presena de binarismo semntico, gramatical ou fnico, quando
ocorre a juno de dois elementos (por paralelismo ou simetria/oposio).
A tradio oral possui uma cadncia prpria das palavras e do ato performtico.
Nesse sentido, uma das formas de trazer ritmo ao texto respeitar as pausas dos
narradores orais transcrevendo-os sob a forma de versos. Essa necessidade rtmica
inerente relao obrigatria entre a lngua e o corpo em performance.
Alm disso, o ritmo auxilia na memorizao, uma vez que os repertrios so
continuamente recriados, ao longo de geraes, ainda que ocorram diversos improvisos
e preenchimentos nas lacunas da memria, h convergncias que conferem ao estilo oral
uma continuidade acerca do passado revivido. Esse movimento assegura uma
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constituio temporal complexa, que revisita o passado, atualiza-o no presente e projeta
o futuro, pois cada performance , ao mesmo tempo, recriao e retransmisso.
Surge mais um momento de convergncia e dualidade. Os performers englobam
a memorizao e o improviso em igual medida, variando conforme o intrprete e a
relao contextual. Como arte da oralidade e representao dramtica, o improviso, a
construo da cena e o sentimento do personagem (traduzido em gestos e falas) acabam
por ocorrer apenas no momento da enunciao, abrindo espao a infinitas possibilidades
discursivas.
H, ainda, diversos traos que, para os estudiosos da oralidade, auxiliam na
anlise e no cuidado que o olhar do investigador deve ter ao lidar com a questo.
Fonseca (1996) aponta para os seguintes fatores: a) a associao da palavra dita com o
espao e o tempo da enunciao; b) aimediata relao com o pblico; c) a coletividade
da criao verbal, estabelecida pelo contato com o pblico; d) a tradicionalidade; e) a
adaptao do texto aos novos contextos; f) a persistncia ao tempo e tecnologia, tendo
em vista que exerce influncia ativa na vida de indivduos e populaes; g) a prtica
social reiterada de gerao a gerao; h) a mobilidade, pois cada narrao ouvida uma
nica vez, contando com omisses e ampliaes a cada apresentao, da a variabilidade
do texto; i) o anonimato, uma vez que no possvel identificar o autor primeiro e, em
funo do carter coletivo, os narradores (griots1 ou mpovis em kiCongo) so tambm
coautores da tradio; j) o valor dado ao griot, que caracterizado como a boca da
comunidade, e cujo mrito reconhecido pelos recursos lingusticos que utiliza pela
mensagem transmitida conforme a expectativa do grupo, pela capacidade de utilizao
de ditos e provrbios, e pela constante troca com a plateia; k) o carter coletivo,
funcional e participado; l) o carter migratrio, que propicia o surgimento de verses
dispersas em diversos lugares, adaptadas ao novo contexto; m) o uso de recursos outros
que no apenas a voz, como a mmica, os gestos coreografados, as canes, o compasso,
o ritmo, as onomatopeias, os coros, o bater de ps e o uso de instrumentos musicais; e n)
o aspecto funcional.
A concepo esttica, somada subjetividade, ao carter performtico e
coletividade compem um cenrio orgnico da literatura que se estrutura ou veicula a
1 A palavra griots, proveniente do francs, utilizada para designar poeta e msico ambulante, preservador da tradio oral, conforme atesta Amadou (2012: 129).
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partir da vocalizao. Tal produo cultural esttica no produto apenas do improviso,
que prejudicaria um trabalho de composio mais apurado. A dimenso do improviso
atrela-se ao potencial criativo do narrador que, aps geraes, recria e retransmite a
tradio atualizada pelo tempo circular da performance.
O uso de tcnicas e de estilos complexos corrente na literatura oral, no apenas
nos eptetos homricos desenvolvidos oralmente, mas tambm possvel referenciar os
complicados padres rtmicos que, junto com elaboradas tcnicas tonais, do forma
poesia ioruba no metrificada na frica ocidental, aos longos poemas de exaltao dos
zulu, com uso estruturado de paralelismos e aliteraes e rico estilo figurado
(FINNEGAN, 2006, pp. 83-84), dentre outros tantos exemplos que concernem ao
universo de produo da literatura oral.
No apenas na literatura escrita que se encontra a preocupao com a forma e o
estilo da produo literria. A questo da autoria tambm alvo de crticas acerca da
oralidade, na medida em que o texto remonta a uma tradio da comunidade. De fato, a
composio parte de um texto comum, mas o processo de atualizao tpico da
performance permite a impresso da marca individual do narrador oral ou do performer
em questo. Desse modo, no apenas a composio, mas a escrita pessoal levam a
marca individual, a habilidade e a inspirao do narrador oral.
A funcionalidade da literatura oral est vinculada a diferentes perspectivas
ancoradas na forte relao social de seu contedo e de seus narradores. Dentre suas
funes, possvel referenciar: a instrutiva, que se pauta no desenvolvimento da
memria, individual e coletiva; a pedaggica, que sistematiza e exemplifica regras de
comportamento e conduta social; a cultural, que difundeo conhecimento do sistema de
valores, as respectivas vises de mundo e os modelos culturais de um povo; alm da
recreativa, que promove o entretenimento da comunidade em questo.
Portanto, em uma perspectiva geral:
A literatura oral funcional na medida em que responde a uma
necessidade e a uma utilidade social. Por um lado constitui um meio
de preservar e transmitir de forma expressa ou no os elementos
essenciais da memria coletiva; por outro lado, as memrias so
susceptveis de serem adequadas s necessidades cruciais num dado
momento histrico. (FONSECA, 1996, p. 25)
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So, ainda, possveis de se reconhecer outras funes. No que tange funo
esttica, a estetizao da palavra no pensada numa dimenso isolada e fria, mas na
qual, sem prejuzo da forma, so acrescentados o carter popular, a tradicionalidade e a
identidade do grupo que, na voz do narrador oral se v representado e esteticamente
recriado.
No so poucas as obras literrias escritas e cantadas que assumem para si a
funo de denunciar a realidade ou engajar-se em favor de determinada causa ou
ideologia. A funo social da literatura, a partir de uma perspectiva mimtica de
recriao da realidade no exclui esse fator.
Na oralidade, em igual medida, o fator social, atrelado ao contexto e cultura da
comunidade, tambm se faz enunciar no discurso oral e literrio, de forma que no h
uma separao, mas um ponto comum, independente do veculo utilizado para a criao
artstica: se a palavra falada ou escrita.
Ainda possvel encontrar outras funes, como a catrtica, a emotiva, a
metalingustica e o simples entretenimento, que, conforme a subjetividade do artista e,
mesmo, a relao com sua plateia podem emergir do texto pensado esttica e
literariamente.
Ortega (2008) tambm prope a discusso das funes da literatura oral. Para
tanto, apresenta um modelo de classificao genrica com base em trs macro formas
denominadas eixos das funes de gnero, sendo trs no total. A primeira macro forma
diz respeito s circunstncias da interpretao (todas aquelas que tm restrio de
espao, de tempo, ou restrio de quem inerpreta). Existem variedades de restries,
estabelecidas a partir do simbolismo do lugar onde se realiza a performance; da poca
do ano e do horrio de realizao; dos griots, que funcionam como mercadores de
palavras e seguem a tradio linhageira; da restrio quanto idade e ao sexo do
intrprete.
Esse eixo est fortemente presente na performance do Ticumbi, tanto no que se
refere ao local e ao tempo, quanto na personificao do mestre como portador da
palavra. Aqui se verifica tambm a tradio linhageira no ofcio do mestre, dos reis e do
secretrio, conforme ser esclarecido posteriormente, no captulo sobre a performance
do Ticumbi de Conceio da Barra.
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O segundo eixo das funes de gnero toma por base a composio com a
finalidade explcita de dar coeso ao grupo, so os cantos rituais. Estes envolvem
espiritualidade, comunicao com o mundo oculto, relao com os mortos, com o
passado e a lembrana dos grandes homens do povo, que ningum pode esquecer. Os
gneros agrupados nesse eixo so solenes, impregnados de sacralidade, tratam da
exaltao dos heris, da narrativa de batalhas que suscitam o sentimento de estima e
pertena. Fruto do hibridismo, o Ticumbi traz em seus versos ecos de batalhas e mitos
tradicionais africanos que, direta ou indiretamente, remontam memria do antigo
Reino do Congo e do Imprio Lunda.
Em contextos africanos, os cantos guerreiros tm desaparecido com maior
intensidade frente aos outros cantos orais, em funo de j no se viverem estados
belicosos. Era por meio desses cantos que pediam ajuda ao oculto para o sucesso nas
guerras.
Ainda fazem parte desse eixo os poemas e os cantos rituais, como ritos fnebres,
de passagem, de nascimento, de colheita e dos antepassados. A sacralidade e o carter
ritual esto intimamente relacionados a diversas expresses em literatura oral, sendo
mais resistentes as que acompanham as diferentes etapas e circunstncias da vida de
cada indivduo em sociedade. Conforme assinala Ortega (2008: 205):
En general, como se ha dicho muchas veces a lo largo de este
trabajo,todos los cultos vinculan los dos mundos que interactan en la
cultura africana, el visible o aparente en el que moran los vivos, y el
oculto o invisible, sobrenatural, donde habitan los espritus ms
diversos, entre los que se encuentran principalmente los antepasados,
que intervienen en el mundo aparente, consultados, invocados, o por
su propia cuenta.
Como elemento designativo do segundo eixo de gneros, indicado o uso da cor
branca como smbolo ritual da morte e, por conseguinte, do mundo dos mortos e dos
antepassados. Mais uma vez, possvel estabelecer o contato com o Ticumbi, pelo uso
das vestes brancas daqueles que participam do canto ritual. En ambas aparece el color
blanco, que es el de la muerte y, por lo tanto, el de los muertos, el de los antepasados,
que vienen atendiendo a la invocacin (ORTEGA, 2008, p. 208). No Congo, chamam
mpemba, que a argila branca com que cobrem o corpo para rituais, como cor da morte,
tem a funo de unir os antepassados.
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As composies relativas s circunstncias da vida pertencem terceira macro
forma. So exemplos desse eixo as pardias, a denncia, o protesto, dentre outros. Esse
eixo no est associado aos ritos de passagem nem s etapas de socializao dos
indivduos ou ao mundo dos antepassados. Mais espontneo, no possui motivao fixa
especfica. So gneros profanos, menos impregnados de sacralidade e de mistrio das
coisas importantes. Mas a qualquer momento podem ser usados com a finalidade de
veicular o sagrado e as crenas. Podem ser: canes de festa, de bebedeira; de coro e de
orquestra; de economia e de adulao; canes de amor e de sexo; canes fnebres;
pardias, injrias, canes de burla e de protesto; gnero paremiolgico adgios,
sentenas e mximas, refros e provrbios, adivinhas e enigmas.
A literatura oral, alm da diversidade de gneros e funes, traz, no plano
lingustico, o cuidado formal com a palavra, que fica evidente pelo uso de figuras de
linguagem (como metforas, metonmias, eufemismos, antteses, paradoxos, ironias,
sinestesias, apenas para referenciar algumas das que aparecem com frequncia nos
textos da literatura oral); e pelos recursos da linguagem potica, como mtrica, rima,
assonncias e aliteraes, que exploram a melodia prpria das palavras, escandindo
memrias, sonhos e filosofias.
A dimenso esttica uma funo importante da literatura, que no se omite na
vertente oral, pelo contrrio, assume cor e vivacidade impressionantes durante a
realizao da performance. Como no gnero dramtico, a vivncia literria pulsante e
plena.
Tendo em vista o plano da oralidade e a difuso das narrativas ou poesias orais,
elas sempre se estruturam e se apresentam plateia como performance. De modo que a
construo dos sentidos no recorre apenas s palavras, como nas culturas letradas, mas
abre espao para elementos visuais e auditivos que em geral ficam alheios produo
escrita.
A transcrio jamais captar a vivacidade do texto e parte importante da
caracterizao das obras deixar de existir, como aconteceu com as cantigas, os
romances de aventura e as canes de gesta2 medievais, feitas para audio, no para
2Segundo Dumas (2011: 70), a cano de gesta pode ser definida como:
Cano de gesta do francs Chanson de geste um tipo de narrativa em verso, frequentemente composta por um poeta annimo (trouvre) contando as proezas dos herois dos tempos passados, principalmente da poca carolngia (sculos VIII a X). A palavra geste, do antigo francs, vem do latim gesta e designa as aes de destaque, hauts faits dos herois. Esse longo poema composto em versos
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leitura, por exemplo. Ao perder o jogo da performance, a vivacidade est perdida: o
tom de voz, a cantoria e os gestos e mmicas que do nfase ao que est sendo dito, so
s vezes a melhor parte do seu significado (FINNEGAN, 2006, p. 94).
A questo da importncia da oralidade e da dimenso performtica que no pode
ser abarcada pela escrita vivenciada pelo pblico espectador da representao cultural
e tambm debatida por outros tericos. Alm de Ruth Finnegam, autores como Paul
Zumthor, Richard Schechner e ngel Ortega atestam a importncia do momento de
representao.
Ortega (2008) reafirma a viso de que a exegese da literatura oral no pode ser
apreendida pela escrita. Tal fato deve-se a sua realizao por meio da performance, de
modo que a plateia e as relaes construdas entre o narrador oral e o pblico se
substanciam no momento de realizao da performance, construindo os sentidos
imanentes ao texto em cada momento nico de enunciao.
A memria a responsvel pela sobrevivncia da performance e, no entanto,
aquela que, atravs de suas falhas, de suas lacunas, permite que surja a atualizao e
o tom nico de cada apresentao performtica.
Essa perspectiva indita soma s lacunas, percepo crtica do presente, ao
tempo em constante espiral, utopia do futuro e ao espao de trocas e de liberdade do
espao callejero. Segundo o autor, uno de los rasgos ms singulares del fenmeno de
la recepcin de la poesa oral es el papel activo del auditorio (esto es, todos los
asistentes), en muchos casos tan responsables del texto como el mismo intrprete
(ORTEGA, 2008, p. 10).
Mais uma vez assinalada a impossibilidade de se traduzir em palavras os atos
no verbais apresentados, que s podem ser revelados superficialmente pela escrita.
Essa impossibilidade decorre, por sua vez, no s dos elementos no verbais, mas
tambm do carter extremamente dinmico do ato performtico. Essa movena,
conforme nomeia Zumthor (1993), o que, ao mesmo tempo, singulariza e se perpetua
na performance, uma vez que a tradio vincula a performance presente ao passado,
mas tambm permite a realizao nica pela ao do improviso e pela participao do
pblico no momento enunciativo.
de dez slabas, construdos sobre uma nica vogal (assonncia) e reagrupados em longas estrofes, chamadas laisses. Usa diversos modos de expresso: a palavra, o canto, o ritmo, a mmica.
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A diferena entre o texto oral e a performance transcrita tambm assinalada
por Schipper (2006), uma vez que o processo de escrita faz perder diversos elementos
constituintes da significao performtica, como a escrita do corpo, a entonao e o
canto. Para tanto, o autor referencia que:
Em qualquer caso, parece-me no haver tanto problema em manter o
conceito de literatura oral referente a 'textos' apresentados oralmente,
assim como textos transcritos literalmente a partir da performance.
Como textos literrios, podemos distingui-los chamando os primeiros
dicts e os segundos, scripts. (SCHIPPER, 2006, p. 12)
Os traos que se perpetuam nas performances so aqueles que permitem,
justamente, traar parentescos interculturais, observar seu aspecto universal e analis-
los luz do tecido que envolve quem produz e quem recebe o ato performtico.
A autenticidade, a fluidez e a articulao verbal so foras incontestveis da
literatura oral, independente da tradio cultural daquele que a observa, principalmente
se esse observador no est inserido na comunidade ou tem por base de formao
cultural o universo escrito. O valor e a relevncia da oralidade continuaro existindo
independentemente dos preconceitos que lhe so imputados por parte dos membros da
chamada cultura letrada.
Diante das caractersticas marcantes da literatura oral e de suas funes,
possvel, ainda, antes de se retomar o percurso histrico da literatura, estabelecer
comparaes entre a literatura de expresso ou difuso oral e aquela que toma por
suporte a base escrita.
Salvato Trigo (apud QUEIRS, 2007) associa as literaturas orais de expresso
africana ao termo oratura. O vocbulo definido por Queirs como escorregadio,
em funo das diversas discusses e dos vrios contornos traados pelos diferentes
autores a respeito da oratura.
O gesto, a mmica, aliados a uma entoao rigorosa, so linguagens
fundamentais na circulao dos textos da oratura assim como uma
irresistvel tendncia do homem africano para o circunlquio, para o
prolongamento da fala, para, enfim, a criao de contextos precisos
para a eficcia da palavra. (...) A arte de contar histrias ou, mais
rigorosamente, o griotismo, exige (...) que a fala seja hieroglfica, isto
, total. No pode ser apenas voz, tem que ser tambm gesto, mmica,
movimento, ritmo (TRIGO, 1981, apud QUEIRS, 2007, p. 110)
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Na perspectiva comparatista, alguns autores, como Leda Maria Martins, Mineke
Schipper e ngel Ortega referenciam o termo oratura, em situao de oposio ou
complementaridade literatura. Tal conceito problematizado e, muitas vezes,
desconstrudo pelos crticos. Oratura e Literatura no se excluem, a oralidade, em sua
dimenso performtica, por envolver ficcionalidade, plurissignificao e preocupao
esttica, no nega o que, na literatura, tem-se por fundamental, que a dimenso
esttica e subjetiva da palavra.
Da a especificidade do termo oratura, que, para Fonseca (1996), seria
empregado na tentativa de resolver pontos da produo literria do sistema oral que so
de nvel extralingustico, como a dana, o canto e o drama, que extrapolam, em seu
conjunto e simultaneidade, o conceito jacobsoniano de literatura.
Independente da forma de expresso, tanto em Oratura quanto em Literatura, a
palavra o centro da questo, pois ela que edifica e constri, seno documentos,
repertrios capazes de transcender o real, a banalidade do cotidiano e os limites da
verdade, com potencial lrico e transformador.
Rosrio (1989: 52) afirma que:
A relao saussuriana de lngua e fala pode aplicar-se perfeitamente
relao entre a obra e a sua objectivao social. Nestes termos, as suas
variantes funcionam como funcionava a referncia que a fala tem da
lngua enquanto depositria das normas colectivas, o que no acontece
na escrita. O artista verbal na oralidade est mais pressionado pelo
pblico que o rodeia do que o artista verbal na escrita. Este pode
produzir uma obra e guard-la at que estejam criadas as condies
para a sua apresentao com garantia de xito.
Na relao lngua / fala, a literatura escrita busca sua objetivao em nvel de
lngua, enquanto a literatura oral vai buscar em nvel de fala. A palavra, cantada, falada
ou escrita, reverbera no mundo e ecoa em seu interlocutor, de maneira mais direta e
imediata, no ato performtico. No entanto, a enunciao e a troca discursiva se efetivam
tambm no leitor da obra escrita, que se edifica como interlocutor ao lidar com a
epifania do texto literrio.
A performance no exclui o literrio, mas evolve-o numa realizao viva da
palavra, numa celebrao esttica e ritualstica de antepassados, narrativas e poesia oral.
De fato, em performance, ou seja, com um interlocutor pblico, o oral e o literrio no
se excluem.
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Diferentemente de Zumthor (2007), que prefere no recorrer ao termo literatura
oral, mas sim poesia oral, tericos como Schipper (2006) consideram til sua
utilizao, no acreditando ser necessrio estabelecer a oposio entre Oratura e
Literatura. Este assinala que um texto oral no existe em si mesmo sem a
performance, uma vez que a estrutura performtica traz em si concepes de espao,
cenrio, a construo de personagens, contadores ou narradores que assumem um
personagem ao proferir sua dimenso esttica, reunindo, portanto, elementos estruturais
constituintes dos gneros literrios.
No se trata de afirmar que tudo passvel de ser encarado como literrio, assim
como nem todos os textos escritos so literatura. No entanto, a qualidade, o contedo e
a estrutura transmitida por determinados narradores orais durante as performances tm
inegvel valor cultural e artstico. Artstico sendo empregado como a potencialidade de
se recriar subjetiva e esteticamente determinado universo. Universo esse que
simbolicamente seja capaz de extrapolar as fronteiras do real e conduza o espectador a
uma realidade outra, paralela, mltipla que se realize no momento de troca e de fruio
esttica. A recriao, nesse caso, tendo por recurso material a voz e o corpo dos
performers, griots, narradores ou reis ticumbis.
H uma srie de elementos que, aparentemente opostos, no so apresentados
como simples binarismos contraditrios no ato performtico. Em geral, engendram-se e
completam-se, como no jogo entre oratura e literatura, o natural e o sobrenatural, o
tradicional e o moderno, o passado e o presente. Essa conjuno no deve causar
espanto, pois traduz o cotidiano e as utopias das mais diversas comunidades.
A valorizao da tradio oral de grande relevncia em locais cuja produo
cultural e, inclusive, a histria no esto sistematizadas, integral ou parcialmente, em
arquivos impressos ou imagticos. Nessas culturas, o repertrio assume posio de
relevo e deve ser valorizado como fonte de saber e arte, independente do julgamento de
culturas ocidentalizadas pautadas unicamente em arquivos materiais.
Vincular a literatura apenas ao universo da escrita um equvoco. Da mesma
forma, a implicao de que todas as sociedades no letradas no tm literatura no se
sustenta. A literatura veculo para expresso cultural e esttica, tanto em sociedades
letradas quanto nas no letradas, possuindo relaes culturais engendradas em seu
tecido, de modo que no s reflete ao mundo uma cultura, mas tambm se constitui nos
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alicerces de valores, da dimenso esttica e da cosmogonia das civilizaes no bero da
qual nasce.
Segundo Francesc-Xavier Marn i Torn:
Todo hace pensar, pues, que gran parte de la negativa a aceptar hablar
de 'literatura oral' procede de la creencia de las sociedades
occidentales de que lo escrito y los libros son el vehculo privilegiado
de la cultura, y de creer que las sociedades sin escritura no tienen
consistencia. Pero no se puede asimilar 'civilizacin de la oralidad' con
'ausencia de escritura' ni, an menos, 'oralidad' y ausencia de 'inters
cultural'. (apud ORTEGA, 2013, p. 5)
Tomar como padro de anlise o modelo europeu ocidental para olhar todas as
outras literaturas falta de perspectiva histrica e comparativa. No h motivos para
afirmar que apenas por meio da pgina escrita o homem consiga o desenvolvimento
literrio e artstico. Independente da forma de expresso de sua subjetividade, a
sistematizao ou no da escrita alfabtica no serve de parmetro para julgar a
criatividade e a sensibilidade dos indivduos.
Tal segregao prejudicial no apenas em contexto de sociedades africanas, ela
tambm no se sustenta no contexto brasileiro, em que h grande porcentagem de
pessoas analfabetas e os ndices de analfabetismo funcional so elevados. Pautar-se em
um modelo universalizante europeu com base na escrita inadequado e excludente.
Na diviso entre oralidade e escrita subjazem elementos complexos da estrutura
social e do pensamento sobre a sociedade, uma vez que ao no letramento so
associados juzos de valor como primitivo e no civilizado. No entanto, em termos de
organizao do pensamento e da cultura, no se pode afirmar ou segregar
categoricamente os grupos sociais marcados ou no pelo advento da sistematizao da
escrita alfabtica. Segundo Cooper (2005), a diferena no reside na atitude mental do
homem oral em oposio ao civilizado, mas na forma de ver e entender o mundo e
a histria. Nas sociedades de tradio oral, o mundo e a histria so compreendidos
conforme a realidade ao redor.
H uma viso generalizada de que aquele que no possui cultura letrada
fracassou na tentativa de dominar as habilidades da cultura, como se no as possusse.
Esse pr-julgamento estabelece um abismo entre a cultura escrita mais familiar e a
cultura do outro, do diferente, do menos culto.
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Um fator que tende a reforar e sustentar essa postura uma aparente
consequncia do no letramento: a ausncia da literatura. Parece bvio que a sociedade
que no tem escrita tambm no tenha literatura, no entanto, a ausncia de literatura
apenas aparente. A oratura apresenta-se aqui como forma anloga literatura,
pertencente a um mesmo universo simblico.
Finnegan (2006) afirma no ser possvel encontrar diferenas significativas entre
o modo de pensar das sociedades letradas e das no letradas. De modo que no se
justifica a atribuio de uma suposta inferioridade da oralidade do ponto de vista da
literatura como expresso do pensamento. No porque dotadas de uma cultura
diferente, no letrada, que so considerados povos inconscientes e alienados, inclusive,
da criao literria.
A literatura oral traduz elementos culturais que, por sua vez, causam impacto e
influenciam a viso de mundo, a perspectiva futura, bem como a percepo do universo
social, natural e humano ao redor daqueles que interagem com a literatura oral.
De maneira parecida, habitantes de uma vila africana ou habitantes de
uma remota vila do pacfico ou membros de cortes medievais no
mesmo sentido no podem escapar da experincia de ouvir letras de
msica, ou histrias, ou sagas durante toda a vida. O impacto dessa
literatura, admita-se, influenciar sua perspectiva futura sobre a vida e
sua percepo do universo social, natural e humano ao seu redor.
(FINNEGAN, 2006, p. 80)
Fechar o conceito literrio em uma produo contempornea escrita e ocidental
exclui muitas culturas, como, por exemplo, aborgenes australianos, esquims,
habitantes das ilhas polinsias, bem como alguns povos amerndios e africanos,
detentores de vasta riqueza.
Entendida como discurso simblico e ato comunicativo, a literatura permeia as
diferentes formas de cultura, independente do nvel de sistematizao de sua escrita. Em
textos orais, a fora comunicativa ainda mais evidente. No texto em performance
possvel observar o funcionamento das trocas semnticas estabelecidas com o pblico
ao lidar com discursos que se apresentam sob a forma de simulacro, com significados
velados que esto espera de ser desvendados pelo espectador do reino das palavras.
A produo oral tem por materialidade a palavra pensada esteticamente sob o
signo da performance, com a articulao discursiva pautada no ritmo da memria. Sua
marcao dada pela entonao vocal, pela articulao mtrica e rmica, pelo uso de
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refros e paralelismos, assonncias e aliteraes, conforme ser analisado
posteriormente, por intermdio da performance do Ticumbi.
A utilizao do ritmo como fator de memorizao no recente na produo
literria, uma vez que remonta a formas tradicionais de sobrevivncia cultural desde a
Antiguidade Clssica. O recurso de articulao rmica e mtrica, bem como o emprego
de refros, cantos e versos paralelsticos tm sua origem vinculada a produes picas e
cantigas que, em perodos anteriores sistematizao da escrita como forma de arquivo,
recorriam apenas memria.
O ritmo, dessa forma, foi aliado da memria na perpetuao de diferentes
produes culturais e literrias ao longo da histria da humanidade, a trama do texto
que, de certa maneira, se pe a servio da memria e esta a servio do contedo. Por sua
vez, a memorizao do texto (...) contribui para construir a memria coletiva da
experincia do grupo (BONVINI, 2006, p. 8).
Em sociedades do passado, que conheceram a escrita mas no a difundiram para
toda a parcela da populao, como o caso da prpria Europa medieval, a literatura era
levada s massas por meio da oralidade (fosse ela falada ou encenada). Historicamente,
a segregao entre a oralidade e a escrita nem sempre foi determinante no uso da
literatura como forma de expresso e modeladora do pensamento, havendo, muitas
vezes, a interao entre elas.
Em termos de materialidade, de fato o substrato sobre o qual se estabelece a
literatura escrita e a oral muito diferente, no entanto, h diversos pontos de contato
possveis, como lrica, panegrico potico, canes de amor, narrativas em prosa ou
drama (FINNEGAN, 2006), poemas picos, cantigas satricas, dentre outras formas.
Assim, possvel abordar, de forma anloga literatura escrita, expresses
literrias de vertente oral, pertencentes a diversos povos ao redor do mundo e ao longo
de diferentes pocas, que, no entanto, no recorrem escrita como forma de expresso.
A fabulao do mundo e sua representao como formas de estabelecer verdades
interiores e complexas do autor so elementos que definem o trabalho intelectual a que
est associada literatura. Os picos de Homero representam esse trabalho criativo,
aceito pelas culturas letradas como grandiosa representao literria de uma civilizao.
No entanto, os poemas narrativos de Homero foram compostos na oralidade, no de
forma originalmente escrita.
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Seja na oralidade ou na escrita, os picos de Homero expressam profunda
reflexo quanto ao mundo e condio humana, sendo reconhecidos como obra
literria. O que se questiona aqui no o valor de Homero, mas por que motivo obras,
tambm da tradio oral e com profunda reflexo acerca do mundo, da existncia e do
homem no podem ser consideradas esteticamente sem o julgo de primitivas, no
literrias ou, ainda, proveniente de povos sem cultura.
O gnero pico difundiu-se atravs da Antiguidade greco-latina e atingiu a Idade
Mdia com importante funo: acompanhar o rei e seus guerreiros com vistas a
encoraj-los nas batalhas e fornecer exemplos e motivaes dos heris ancestrais,
conforme atesta Zumthor (1993: 67):
Segundo diversos documentos, como a estncia 97 da Chanson de
Guillaume, os comandantes gostavam de acompanhar-se de cantores
picos aptos ao combate. Numa sociedade que por natureza ainda era
guerreira, esses homens exerciam uma funo considervel; sua voz
propagava uma virtude, efetuava a transferncia de uma valentia
ancestral aos combatentes de ento: para acender, com o exemplo
marcial de um heri, como escreveu William of Malmesbury,
aqueles que se preparam para combater.
Outro ponto que se questiona diz respeito ficcionalizao e, portanto, ao
afastamento quanto aos atos comunicativos cotidianos, de funo referencial. A
literatura oral tambm possui mecanismos de distanciamento do real que, mesmo em
situao de performance ou narrativa comunitria, se fazem presentes.
Dentre os elementos que conferem esse processo de distanciamento do real, so
reconhecveis, por exemplo, o emprego da fantasia e do onrico, a fuso de passado e
presente por meio da referncia ancestralidade, a ornamentao do corpo, a
caracterizao de personagens em performances dramticas (que estabelece uma
diviso, mesmo que liminar, entre plateia e atores) e a utilizao de instrumentos
musicais, que elevam a composio acima de um nvel comum de comunicao.
Segundo Finnegan (2006: 76),
Tanto no mundo clssico quanto no medieval, a oralidade (at mesmo
de formas previamente escritas) era o meio aceito e isso no nos
leva a admitir que a arte verbal transmitida por esse meio era,
consequentemente, carente do distanciamento artstico da literatura.
Um dos elementos que potencializam o olhar desconfiado para com a literatura
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oral deve-se ao fato de a pesquisa com base em fontes escritas ser tardia, se comparada
aos processos culturais e s civilizaes anteriores ao processo de investigao com
bases documentais. O estabelecimento de uma diviso definitiva entre a oralidade e a
escrita, notadamente a partir do sculo XVI contribuiu para um preconceito de ordem
hegemnica, em que o domnio da palavra escrita tornava-se smbolo de distino
social.A observao do percurso histrico da literatura mostra que essa diviso acirrada
entre oralidade e escrita no se sustenta.
1.2 A Voz e o Canto Atravs dos Tempos
A sistematizao de fontes escritas a partir de documentos e registros literrios e
histricos em si s deficitria. H pouca referncia em termos de registro escrito da
lrica tradicional (MENNDEZ PIDAL, 1963). Em diversos aspectos, no s por se
tratarem de registros tardios que relegam importantes produes literrias, mas pelo fato
da irregularidade de sistematizao desses registros.
A Idade Mdia conta tardiamente com registros de produes literrias reunidas
em crnicas e cancioneiros, conforme ser explorado posteriormente. No entanto, h
referncias de livros de nobres e clrigos que mencionam dramatizaes no interior das
igrejas, as quais chegaram a ser proibidas, conforme registros em documentos
eclesisticos, nos sculos XII e XIII (MARTINS, 1956).
Estamos diante de um testemunho da fora da oralidade na constituio daquilo
que se tornaria cnone das origens da literatura: as cantigas trovadorescas. As fontes
escritas, desse modo, por sua prpria incompletude denunciam a importncia da
oralidade como base da tradio literria. Dentre os pesquisadores que se dedicam
temtica da oralidade, em uma dimenso diacrnica, possvel referenciar Paul
Zumthor e Ramn Menndez Pidal.
O canto, inerente produo das cantigas trovadorescas, s canes de gesta e
ao discurso potico em verso produzido at fins do sculo XIII, encontra na
Antiguidade a sua referncia como performance plena da linguagem. Sua ao e
modulao transcendiam o espao do teatro e era importante a todos os bons oradores.
A valorizao, portanto, da oralidade e da potencialidade do ritmo e do canto
remontam aos primrdios da produo literria. Desde o sculo XII, inclusive, cantar
fazia parte da educao dos jovens nobres europeus. Os tratados de cortesia do sculo
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XIII apontam no s sua existncia, como a importncia de saber impostar a voz,
conforme atesta Zumthor. Da a exigncia de um trabalho mais apurado diante dos
caracteres especficos da oralidade:
At hoje, nunca se tentou mesmo interpretar a oralidade da poesia
medieval. Contentou-se em observar sua existncia. Pois, exatamente
como um esqueleto fssil uma vez reconhecido, deve ser separado dos
sedimentos que o aprisionam, assim a poesia medieval deve ser
separada do meio tardio no qual a existncia dos manuscritos lhe
permitiu subsistir: foi nesse meio que se constituiu o preconceitoque
fez da escritura a forma dominante hegemnica da linguagem.
(ZUMTHOR, 1993, p. 17)
O autor define trs tipos de oralidade: a primria, que no comporta nenhum
contato com a escrita, referindo-se a sociedades no letradas; a mista, quando surgida no
seio de uma cultura que possui escritura; e a segunda, quando se recompe com base em
uma cultura na qual toda expresso marcada pela escrita, o que conduza um
esgotamento dos valores da voz no uso e no imaginrio (ZUMTHOR, 1993, p. 18).
Os procedimentos de oralidade e de escrita coexistiram no Ocidente dos sculos
X ou XI at os sculos XVI e XVII. A marca da oralidade comprovada em diversos
documentos que evidenciam o ndice de oralidade das obras literrias. Dentre esse
ndice h notaes musicais que acompanham os escritos literrios de poemas
litrgicos, dramas eclesisticos e canes de trovadores. Zumthor (1993) cita diversas
origens, notadamente a partir do sculo XIII, com milhares de exemplos trazidos da
poesia francesa e de manuscritos alemes.
Menndez Pidal (1968) referencia a existncia de notaes musicais em
cancioneiros para evidenciar a importncia da oralidade na difuso de coplas e cantares.
Segundo o autor, o manuscrito musical espanhol encontra-se no Cancioneiro da
Biblioteca Nacional de Madrid e data das ltimas dcadas do sculo XV, trata-se de um
romance en alabanza del Condestable como defensor de Enrique IV, conforme
evidencia a Figura 3 a seguir. H tambm romances e canes lricas do Cancioneiro de
Palcio, cujas notaes musicais so anteriores ainda ao da Biblioteca Nacional.
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Figura 3 Notao musical de manuscrito medieval.
(Fonte: MENNDEZ PIDAL, 1968, p.