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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DAISY DE ASSIS SILVA “CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO, MESTIÇAGENS E DINÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727- 61) Natal/RN 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

DAISY DE ASSIS SILVA

“CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO,

MESTIÇAGENS E DINÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE NOSSA

SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727- 61)

Natal/RN

2016

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DAISY DE ASSIS SILVA

“CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO,

MESTIÇAGENS E DENÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-61)

Monografia apresentada junto ao curso de História

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

como requisito para a obtenção do título de Bacharel

em História sob a orientação da Prof. Dr.ª Carmen

Alveal

Natal/RN

2016

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DAISY DE ASSIS SILVA

“CASARAM-SE SOLENEMENTE EM FACE DA IGREJA”: MATRIMÔNIO,

MESTIÇAGENS E DENÂMICAS DE APADRINHAMENTO NA FREGUESIA DE

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-61)

Monografia apresentada junto ao curso de História

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

como requisito para a obtenção do título de Bacharel

em História.

Orientadora: Carmen Alveal

APROVADA EM ____/____/_____

______________________________________________________

Prof. Dr.ª Carmen Alveal

______________________________________________________

Prof. Dr.ª Juliana Teixeira Souza

______________________________________________________

Prof. Dr. ª Maria da Conceição Guilherme Coelho

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AGRADECIMENTOS

A Deus que me concedeu forças para a realização deste trabalho, não me deixando

esmorecer e acreditar que chegaria até o final.

Aos meus pais Damião e Francisca, me apoiando, me incentivando nos momentos em

que precisei.

Ao meu esposo Eduardo, pela paciência, ajuda constante e carinho.

A minha orientadora professora Carmen Alveal, que soube guiar meus passos pela

jornada da graduação, ensinando-me e corrigindo para que eu melhorasse e aprimorasse meus

conhecimentos, que sem dúvida foi fundamental para a minha formação.

Aos colegas do LEHS, cada um a sua maneira, sempre com dicas e sugestões que

foram absorvidas por mim e resultaram na melhora do meu trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo entender a participação da população mestiça e escrava

na sociedade colonial do Rio Grande do Norte, tomando como base o sacramento

matrimonial. Analisando os registros paroquiais da freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação na primeira metade do século XVIII, pretende-se traçar um panorama social

obtido através de laços matrimoniais e entender de que forma a Igreja, sendo um órgão de

normatização e convergência dos aspectos espirituais e seculares, regia esta sociedade, pelo

menos no que diz respeito às uniões legitimadas pela Igreja. Outro aspecto que se faz

necessário para a realização da pesquisa é explicar estes casamentos a luz de códigos de

conduta eclesiástica que vigoravam naquele período como as Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia. É pela análise em conjunto dos códigos de conduta que regiam a esfera

secular que se pode entender e desnudar esta sociedade. Dentro dessa realidade, busca-se

compreender de que forma a população negra, parda e indígena se relacionava em um

contexto de exclusão social e o que almejavam quando sacramentavam sua união. Estes

registros mostram a dinâmica organizacional da sociedade, as estratégias dos indivíduos nessa

organização e a recorrência de uniões entre pessoas de mesma cor, condição jurídica, e os

laços de solidariedade que eram efetivados na escolha das testemunhas. Como exemplo de

possíveis estratégias e tentativa de ascensão social, percebe-se a escolha de muitas

testemunhas que gozavam de títulos e patentes bem como a recorrente designação de “pessoas

conhecidas” tão comumente utilizada pelos vigários. Desta forma, o trabalho pretende

contribuir para um maior entendimento das camadas menos favorecidas na sociedade

colonial, o negro, o mulato, o pardo, o escravo.

Palavras-chaves: matrimônio; mestiçagens; solidariedades.

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ABSTRACT

This study aims to understand the participation of the mestizo and slave population in the

colonial society of Rio Grande do Norte, based on the marriage sacrament. Analyzing the

parish registers of the parish of Nossa Senhora de Apresentação in early 18th century,

intended to map out a social panorama obtained through wedlock and understand how the

Church, being an organ of standardization and convergence of spiritual and secular aspects

regulate this society, at least in regard to unions legitimized by the Church. Another aspect

that is necessary for the research is to explain these marriages based on ecclesiastical codes of

conduct in force in that period as the Constituições da Bahia. It is the analysis of joint codes

of conduct governing the secular sphere that we can understand and denude this society. We

seek to understand how the black, mulato and Indian population was connected in a context of

social exclusion and which sought when they confirmed their union. These records show us

the organizational dynamics of society, the strategies of individuals in this organization and

the recurrence of unions between people of the same color, legal status, and the ties of

solidarity that were effected in the choice of witnesses. As an example of possible strategies

and attempt to upward social mobility, we see the choice of many witnesses who enjoyed

titles and patents and the applicant designation "known people" so commonly used by vicars.

Thus, the work aims to contribute to a greater understanding of the most disadvantaged

sections in colonial society, blacks, mulatos, me stizos and slaves.

Keywords: marriage; miscegenation; solidarities.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Ocupação das testemunhas dos nubentes brancos 1727-61 (%)p. ........... 36

Gráfico 2 - Ocupação das testemunhas dos nubentes mestiços 1727-61 (%)p. .......... 36

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Ocupação das testemunhas dos nubentes brancos 1727-61 ................ p. 35

Tabela 2 Ocupação das testemunhas dos nubentes mestiços 1727-61 .............. p. 35

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. ...... 10

CAPÍTULO I: A importância do matrimônio para a sociedade colonial:

brancos, negros, pardos e indígenas sob o desígnio de uma mesma mentalidade.................14

CAPÍTULO II: Os matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação:

presença de uniões mestiças na constituição das famílias do Rio Grande .............................. 25

CAPÍTULO III: Brancos, negros e pardos: Diferentes cores, interesses comuns.................34

CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 42

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 44

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Introdução

Durante o período colonial, a sociedade estava organizada e submetida a códigos de

conduta moral de cunho religioso1 os quais tinham como objetivo concentrar os fiéis sob os

cânones da Santa Madre Igreja, estabelecendo regras e diretrizes para a conduta da população,

fosse ela livre ou escrava, no espaço físico em que habitavam. Dentre essa normatização e

“ajustes” de condutas da população estava o matrimônio que assim como o batismo, inseria o

indivíduo dentro do contexto social privilegiado em relação aos que por alguma razão, não se

encontravam neste mesmo âmbito.

Entretanto, a população de fiéis não seguia a risca o que ordenava a Igreja. Percebe-se

um afrouxamento das normas e a preocupação dos religiosos em adequar a população o mais

próximo do ideal da mentalidade cristã da época. A população aproveitava-se da falta de rigor

no cumprimento das regras e fazia da colônia um campo aberto ao novo, mesclando

elementos da cultura europeia com a africana e a indígena, produzindo neste espaço novas

maneiras de se conceber a própria existência.

Desta forma, o sacramento matrimonial vem sendo analisado não apenas como uma

imposição da Igreja católica neste período, mas como um importante instrumento de ascensão

e diferenciação social para aqueles que se empenhavam em oficializar a sua união perante a

sociedade e a Igreja. Como exemplo dessa busca por oportunidades e anseio em alterar ainda

que minimamente sua condição social está a população mestiça. Assim como a parcela

branca, negros e pardos, e escravos e livres, articulavam-se dentro da colônia a fim de

transformar sua condição e consequentemente de seus descendentes.

Pensando o matrimônio como estratégia que viabilizava a mobilidade social dentro de

uma sociedade estratificada, Sheila de Castro Faria, fez um importante trabalho em que

demostra as particularidades das relações que existiam entre a população mestiça e branca

pobre na região fluminense, mostrando que em muitos casos o casamento era o elemento

fundamental e determinante dos aspectos sociais e familiares da colônia.

1Como exemplo mais expressivo de códigos de normalização social do período colonial, tem-se As Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia, datado de 1707, em que estabelecia a forma de proceder socialmente tanto

para a população leiga quanto para a sacerdotes.

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Do mesmo modo, mas se embrenhando nos aspectos das cores dessas populações,

Cacilda Machado mostra a maneira de articulação existente entre os mestiços e brancos, na

freguesia de São José dos Pinhais (Curitiba), quando da busca por melhorias sociais,

enfatizando as relações de busca por prestígio nesta sociedade. Analisando o Recife colonial

com base no matrimônio, Gian Carlo Melo Silva demonstra a função social do casamento

para as práticas cotidianas, bem como mostra como a mestiçagem da população contribuiu

para a formação da sociedade recifense.

A historiadora Larissa Viana, em sua obra O Idioma da Mestiçagem, estudou a

mestiçagem no período colonial entre as irmandades de pardos no período entre os séculos

XVII e final do XVIII. Para tanto, fez uma análise historiográfica sobre a problemática que a

mestiçagem assumiu no século XIX, mostrando que a mestiçagem era considerada um fator

de degenerescência da população e consequentemente, o motivo pelo qual uma nação seria

inferior à outra. Analisou, portanto, os estereótipos depreciativos emergidos de pensadores

europeus baseados nas teorias evolucionistas e de superioridade racial que embasavam os

discursos dos pensadores naquele momento. Com o século XX, principalmente com Gilberto

Freyre na década de 1930, com Casa-grande & senzala, o mestiço foi “reabilitado” e passou

de elemento de desregramento social para aquele que reúne em si as melhores partes entre o

europeu, o africano e o indígena2.

Entendendo a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação como o lugar onde

ocorrem as práticas culturais e religiosas normatizadoras, mas também como o espaço onde se

desenvolvem os interesses seculares que norteavam toda a população, pretende-se estudar a

mestiçagem dos relacionamentos e mostrar que as pessoas de cor almejavam estar inseridas de

fato na sociedade colonial, no sentido de serem aceitas por ela e terem sua união reconhecida

por todos e pela Igreja, pois desta maneira estariam mais perto de uma possível mobilidade

social.

Para a realização da pesquisa e embasamento teórico, utilizou-se da obra do

historiador francês Serge Gruzinski, O Pensamento Mestiço, o autor aborda o conceito de

mestiçagem, que para ele extrapola os limites da simples mistura. O mestiço, para Gruzinski,

é aquele que transforma o meio social em que vive pela apropriação da cultura do dominador

e confere-lhe um caráter novo. Esse novo é o resultado da mistura da cultura europeia com a

nativa, um resultado mestiço, mas que reflete a resistência dos povos oprimidos que mesmo

2 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: As irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas, SP:

UNICAMP, 2007.

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diante da imposição do colonizador sabia como buscar estratégias para manter sua cultura e

ideologia na sociedade em transformação.3

Outra questão que será considerada no presente trabalho e que faz parte do aporte

teórico são as redes de sociabilidades estabelecidas no ato matrimonial. As escolhas das

testemunhas nos matrimônios corridos no Rio Grande no período abarcado pelo trabalho

apontam para uma relação de reciprocidade entre as pessoas da elite e as classes

desfavorecidas. As redes de sociabilidades vêm sendo exploradas pela historiografia como

uma forma de poder e dominação senhorial sobre seus cativos, mas também como importante

ferramenta utilizada pelos escravos e mestiços livres quando da inserção na sociedade

colonial4.

A definição de espaço utilizada para a pesquisa é a definida pelo filósofo e sociólogo

francês Pierre Bourdieu, na obra Razões Práticas sobre a teoria das ações, na qual discute o

conceito de espaço simbólico e espaço social sobre as relações de uma perspectiva teórica e

empírica, pois este espaço existe a partir da concepção ideológica. Para Bourdieu, o espaço

social é onde ocorrem as relações de entre os agentes, e pelo habitus, ou seja, aquilo que gera

as práticas distintas e distintivas na sociedade são as escolhas. Essas distinções ocorrem por

meio do que ele chama de capital econômico e capital cultural. Os agentes (indivíduos) que

ocupam posições diferentes no mesmo espaço social tendem a se opor uns aos outros movidos

pelas diferenças existentes entre os grupos (classes)5.

Assim, tomando o conceito de espaço social de Bourdieu, busca-se relacionar o espaço

religioso da capitania do Rio Grande como o espaço onde ocorrem as relações emblemáticas

entre as camadas “brancas” da elite com as mestiças, tanto pobre quanto escrava, observando

as práticas que essas camadas se valiam para legitimação de um status social.

O recorte espacial para a realização da pesquisa é a freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação, tendo como datas limites o período compreendido entre os anos de 1727 a

1761, fazendo o levantamento dos matrimônios ocorridos na matriz da cidade e extraindo

desses documentos o registro de pessoas mestiças, bem como procurando entender o padrão

destes registros, no que tange à escolha das testemunhas pelos nubentes. Apesar de os párocos

desta localidade serem bastante sucintos em relação aos registros, quando as informações

3 Gruzinski, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001

4 Cf. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Compadrio e Escravidão: uma análise do apadrinhamento de cativos em

São João del Rei, 1730-1850. 5 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria das ações. Trad.: Mariza Correia – Campinas, SP: Papirus,

1996, pp. 13-28.

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envolvem pardos, negros e índios estas se tornam ainda mais escassas, demonstrando o

quanto as pessoas ditas de cor eram discriminadas pelos demais segmentos da sociedade.

Para a pesquisa foram analisados três livros de matrimônios da matriz de Nossa

Senhora da Apresentação cujos documentos possibilitaram levantar 491 registros em que se

podia ler quem eram os nubentes, sua naturalidade, seus pais, condição jurídica, quem

testemunhou e onde residiam. Infelizmente, para o caso dos registros de matrimônios do Rio

Grande, não era mencionada a idade dos nubentes nem sua ocupação, salvo quando o noivo

pertencia ao corpo militar ou possuía cargos na capitania. Neste estudo, serão enfatizados os

aspectos jurídicos e a ocorrência de misturas entre étnicas e cores no matrimônio.

No primeiro capítulo serão abordados os códigos de conduta moral e religiosa que

norteava a sociedade colonial, como as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,

que era a base da doutrinação imposta pela Igreja para a colônia e como esta se fazia presente

no cotidiano da população que procurava se adequar às normas garantindo, desta maneira, o

seu lugar no espaço em que as relações sociais ocorrem. Também se pretende mostrar a

importância que o matrimônio tinha para os brancos, mestiços e escravos.

No segundo capítulo, evidenciar-se-á as uniões entre mestiços (livres ou cativos) e

escravos, percebendo-os como agentes históricos buscando dentro das possibilidades

oferecidas na colônia um status diferenciado. Procura-se demonstrar, pelos exemplos

escolhidos, que o comportamento da população, fosse branca, negra, mestiça, cativa ou livre,

era semelhante, pois o matrimônio era um instrumento importante na construção de uma

possível rede de sociabilidades.

Já no terceiro capítulo outro aspecto abordado será a movimentação dos mestiços neste

espaço afim de garantir para si e seus descendentes uma melhor condição de vida, entendendo

as escolhas das testemunhas como uma evidência de que as redes de solidariedades

aconteciam não apenas no ato do batismo, mas também nos matrimônios.

Assim, procura-se mostrar pelos registros matrimoniais que independentemente de sua

cor ou condição jurídica, a população colonial buscava meios pelos quais pudessem garantir

melhorias de vida e ganhos futuros. No caso dos mestiços, livres e escravos, o matrimônio era

ainda mais importante, pois sendo um ritual branco, aqueles que se submetiam a ele, estava

externando-se diante da sociedade que, apesar de sua condição subalterna, pelo menos no

papel, eles se igualavam à elite.

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Capítulo I

A importância do matrimônio para a sociedade colonial: brancos, negros, pardos e

indígenas sob o desígnio de uma mesma mentalidade.

Durante o período colonial, casar não significava apenas unir-se carnalmente a outra

pessoa ou constituir - por meio de laços de afeição - uma família. Dentro da dinâmica social e

católica do Brasil colonial, o matrimônio constituía-se um importante meio de controle e de

normatização social regida pelo clero da Igreja, mas também poderia ser observado como um

instrumento de ascensão social para a parte da população marginalizada, como escravos,

negros, pardos e indígenas. Na medida em que estes se articulavam dentro da colônia a fim de

estabelecer uniões, eles poderiam garantir estabilidade e alguma melhoria de vida.

A mudança da mentalidade sobre as uniões começaram ainda no século XVI. Neste

período, a Igreja passava por um intenso processo de moralização do clero e estabelecimento

de regras que visavam enquadrar tantos os féis como os religiosos. O Concílio de Trento

(1545) veio justamente para consolidar entre a cristandade princípios morais que deveriam

nortear o comportamento e a mentalidade da sociedade. Dentre as novas mudanças estava a

imposição do matrimônio e a atenção dada à melhor formação do clero6. A partir daí, as

práticas tidas como ilícitas (como o concubinato) passaram a ser alvo de repreensões dos

religiosos e mal vistas pela sociedade.

A Igreja neste momento assumiu uma posição de agente normatizador da sociedade

cristã, quando colooua o matrimônio como sendo um sacramento. O historiador Gian Carlo de

Melo Silva, discorrendo sobre as mudanças no discurso do catolicismo sobre o casamento,

colocando-o como um sacramento, afirma que a Igreja almejava ampliar suas influências

entre os diversos campos da sociedade e que se tratava de um conjunto de estratégias maiores

em que casar significava ganhar um status social alcançado por poucos, um grupo seleto que

tinha acesso à instituição eclesiástica7.

Quando se iniciou a colonização no Brasil, além dos conquistadores também

desembarcaram os padres jesuítas responsáveis por propagar a fé católica entre os grupos

6 PIMENTEL, Helen Ulhôa. O casamento no Brasil Colonial: um ensaio historiográfico, P.23-24.

7 SILVA,Gian Carlo de Melo. Da intimidade do lar para o domínio divino: o ritual do casamento e suas

transformações, p. 3.

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indígenas. Aliado ao projeto de povoação, havia a inserção dos códigos de condutas trazidos

pelos padres que tentavam moralizar o comportamento dos primeiros habitantes. Esta

moralização ocorreu pela imposição dos códigos contidos no Concílio de Trento. Entretanto,

com a estabilização colonial fez-se necessário estabelecer regras que fossem direcionadas à

colônia. Então em 1707, com o sínodo da Bahia foram criadas as Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia, que era um conjunto de regras e ensinamentos para os âmbitos

seculares e religiosos8.

O cuidado dos religiosos com a manutenção da moralidade da sociedade que se

formava era latente, pois procuravam fazer valer as regras e ordens contidas nas

Constituições. Mas diante de tantos casos considerados imorais para as autoridades

eclesiásticas, fazia-se necessário abrir mão do rigor e “letra da lei” para adequar o maior

número de casais dentro dos ritos religiosos. Dentre estes casos, os que mereciam maior

dispensa por parte dos clérigos era a união entre casais com grau de parentesco por

consanguinidade e também no espiritual adquiridos no ato do batismo, que eram os casos que

envolviam relações entre padrinhos e madrinhas com seus afilhados. Nestas duas situações,

geralmente se impunha penitência aos nubentes e logo após os mesmos eram liberados para

casar9.

Outro caso abordado nas Constituições, que envolvia relações de parentesco, eram as

chamadas adoções legais, que para o caso da colônia referiam-se às crianças expostas

(abandonadas) em casas de famílias, e da mesma maneira que nos dois casos citados acima,

era proibido o matrimônio entre os membros desse núcleo familiar. Para a freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação não foi encontrado nenhum caso envolvendo expostos nos

matrimônios analisados.

As Constituições procuravam abranger e detalhar ao máximo todos os assuntos

relacionados ao matrimônio. Eram também motivos para proibir o casamento os seguintes

casos: erro de pessoa10

, condição11

, voto12

, cognação13

, crime14

, disparidade15

, força ou

8 Ibid, pp. 5-6.

9 VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas e Ordenadas pelo

Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do

Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de

Junho do ano de 1707. São Paulo: Typografia de Antonio Louzada Antunes 1707, p. 117. 10

Diz-se da pessoa que afirma ser quem não é, como o crime atual de falsidade ideológica. 11

Trata-se de casos em que uma pessoa cativa afirma ser livre. Se for descoberto o casamento é anulado. 12

Pessoas que fizeram votos à ordem sacra ou professaram a alguma religião aprovada. 13

São as relações de parentesco no plano da consanguinidade, espiritualidade e casos de adoção de crianças

abandonadas. 14

Casos em que uma das partes ou ambos os nubentes planejaram a morte do cônjuge para contrair novo

matrimônio, tendo ou não cometido adultério entre si.

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medo16

, ordem17

, ligame18

, pública honestidade19

, afinidade20

, impotência21

, rapto22

e

ausência23

. Para todos estes casos havia uma explicação da proibição e porque tornava nulo o

matrimônio24

.

A idade mínima exigida para a realização da união era de 14 anos para os homens e 12

anos completos para as mulheres, mas que podiam ser liberados antes de alcançarem a idade

mínima desde que tivessem “discrição e disposição que supra a falta de idade” e mesmo assim

teriam de pedir autorização do Bispo ou clérigo superior para tal realização e o padre que os

casasse sem licença, seria punido25

. Desta forma, as pessoas consideradas doidas ou

“desacisadas,” (desatinadas, sem siso, desvairado)26

não poderiam casar, salvo quando este

estivesse em momentos de lucidez.

Para casar era necessário aos nubentes revelar o intento ao seu pároco e depois disto,

iniciavam-se os banhos, em que eram pedidos os registros de batismos dando conta de sua

origem, ou de óbito (para o caso dos viúvos). A partir daí, o pároco anunciava durante três

domingos consecutivos que aqueles paroquianos desejavam casar e se houvesse algum

impedimento que fosse revelado27

. O matrimônio não poderia ser realizado antes do sol

nascer e nem após o por do sol, como também fora da igreja, a não ser que fosse por ordem

superior. Os nubentes deveriam se receber em estado de graça, visto que o matrimônio era um

sacramento, por isso ambos deveriam ser confessados antes da realização da cerimonia28

.

15

Era proibido o casamento entre o fiel e o infiel. 16

Quando um dos nubentes ou ambos foram constrangidos a casar por medo. 17

Refere-se à Sagrada, ainda que seja apenas de subdiácono. 18

Quando alguém é casado por palavras de presente e não de fato. Se o cônjuge estiver vivo, não pode contrair

novo matrimônio. 19

Diz-se do compromisso assumido para um futuro casamento. E se caso a noiva ou noivo falecer, era proibido

contrair matrimonio com o pai, mãe, irmão ou irmã do falecido. 20

Relações de parentesco contraídas com membros da família até o quarto grau de consanguinidade para ambos

os casos. 21

Ocorria quando um dos cônjuges era incapaz de gerar filhos por condição física ou doença. 22

Quando a mulher era furtada contra a sua vontade, ou mesmo quando da fuga da noiva mas que contrariava a

vontade dos pais. 23

De acordo com o Sagrado Concílio Tridentino, eram considerados inválidos os matrimônios realizados na

ausência de um pároco ou sacerdote e também na falta de duas testemunhas. 24

VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas e Ordenadas pelo

Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do

Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de

Junho do ano de 1707. São Paulo: Typografia de Antonio Louzada Antunes 1707, pp. 116- 119. 25

Ibid: pp. 109-110. 26

Cf. MICHAELIS, Dionário. Disponível em :

ttp://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=desassisado.

Acesso em 06 de junho de 2016. 27

Ibid: p. 110. 28

Ibid: pp. 119-120.

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Desta forma, percebe-se que apesar de ser um instrumento de controle social e

normatização da população no Brasil colonial, para que o intento de se construir uma

sociedade regrada de acordo com o ideal traçado pela Igreja, a mesma tinha de relativizar

alguns de seus parâmetros, pois do contrário o número de casamentos “oficiais” seria quase

irrisório diante dos casos de mancebia.

Assim, quando a sociedade colonial estava consolidando-se, também crescia neste

mesmo território uma população mestiça que, para além do que impusera a Igreja, brancos,

negros e índios relacionavam-se tão intensamente que fugia do controle dos párocos a forma

que estas uniões aconteciam. A quantidade de batismos realizados por mães solteiras e o

número de filhos naturais na sociedade colonial não era um fenômeno raro. E ao que parece

também não era considerado um absurdo a ponto de fazer estas mulheres e suas proles

naturais sofrerem infortúnios ao ponto de lhes comprometer a sua inserção social. Claro que

estas mulheres não eram privilegiadas e pertenciam quase sempre às classes mais baixas. De

certa forma, este comportamento era mais comum entre as camadas de gente de cor e por isso

mesmo, toleradas entre a elite. Por isso o matrimônio constituía um elemento de diferenciação

social e era tão importante para os negros, pardos e indígenas, fossem eles cativos ou

escravos.

Uma sociedade mestiça. Este era o Brasil que se desenvolvia, ainda que o estigma da

cor fosse algo que se tentasse esconder. Este era a sua principal característica, a formação da

sociedade brasileira estava profundamente ligada à mistura entre três etnias e culturas: a

branca europeia, a negra africana e a indígena. Assim, entende-se o fenômeno da mestiçagem

como o concebe o historiador francês Serge Gruzinski em sua obra O pensamento mestiço:

uma interação cultural que inevitavelmente ocorria entre povos e que o dominado assimila

elementos da cultura do outro e produz algo novo, como forma de resistência e de fazer

perpetuar sua identidade.

Para explicar a mestiçagem, o autor analisa obras de indígenas que se apropriaram da

cultura europeia e criaram algo novo durante o período da conquista e mostra como os

elementos pagãos estavam presentes em obras indígenas no México, cuja temática remetia à

cultura europeia, ponto que ligava as duas culturas. A trazida pelos conquistadores e, portanto

a dominadora e a produzida pelos artistas indígenas durante este período que seria a parcela

dominada, mas não tão passiva como se supunha, pois introduziu elementos do imaginário de

suas tradições nas obras deixando sua marca na sociedade.

Para o autor:

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18

(...) as mestiçagens aparecem primeiro como reação de sobrevivência a uma situação

instável, imprevista e amplamente imprescindível (...) Assim a de imaginar as

mestiçagens americanas a um só tempo como um esforço de recomposição de um

universo desagregado e como arranjo local dos novos quadros impostos pelos

conquistadores. O dois movimentos são indissociáveis. Nem um nem outro escapam

ao ambiente profundamente perturbador que descrevemos29

.

Portanto, aplicando a ideia de mestiçagem cultural à realidade vivida pelos habitantes

do Brasil colonial, percebe-se tanto a luta dos padres para tentar manter a ordem e os

princípios cristãos em todas as camadas sociais, mas também se percebe que a interação

existente entre os conquistadores e os indígenas foi o fator determinante para a formação de

uma sociedade oscilante entre a cristã branca e o imaginário pagão indígena e mais tarde o

elemento escravo lançaria sua contribuição nas bases desta mesma sociedade.

Analisando o papel da mestiçagem e escravidão de forma comparativa no mundo

ibérico, Eduardo França Paiva, se propõem a analisar as conexões existentes entre o global e o

local pelo viés da atuação de diversos agentes históricos em localidades distintas, apontando

semelhanças entre obras produzidas no contexto da colonização espanhola e entre a brasileira.

Ele analisa de que forma os homens e mulheres mestiços, atuaram, viveram e fomentaram de

forma intensa o processo de mestiçagem biológica e cultural ocorrido durante o processo de

conquista e ocupação da América. Fazendo um paralelo entre obras e iconografias da América

espanhola e transpondo para a realidade brasileira, mostra que apesar de distantes

geograficamente, essas obras mantinham semelhanças30

.

A cultura mestiça pode ser observada, desta maneira, pelo viés de diversidade cultural

que estas regiões (tantos cidades espanholas como Vera Cruz, Acapulco, Puebla, Cuzco etc.

como as “brasileiras”, sobretudo as litorâneas como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e

posteriormente, as regiões auríferas como Minas Gerais) abarcavam. Nelas circulavam uma

quantidade expressiva de negros, pardos, mulatos e descendentes de indígenas, que com suas

comidas, linguagens, músicas, religiosidades, ritos e demais elementos de sua cultura,

misturavam-se ao elemento dominador – o cristianismo - e nessa fusão desenhavam uma nova

sociedade31

.

Sendo o Brasil colonial um território formado, sobretudo pelas uniões (nem sempre

consensuais) entre as brancos, negros e índios e de estas misturas culturais fazerem parte de 29

GRUZINSKI, 2001, Op. cit p. 110. 30

PAIVA, Eduardo França. Histórias comparadas, histórias conectadas: Escravidão e mestiçagem no Mundo

Ibérico. In.: PAIVA, Eduardo França, IVO, Isnara Pereira. (orgs.) Escravidão, mestiçagens e histórias

comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH- UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB,

2008. (coleção Olhares). p. 13-27. 31

Ibid: p. 19.

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sua base e cotidiano das pessoas, ainda era uma colônia e como tal estava submetido às bases

e diretrizes da monarquia maior, portuguesa. E sendo Portugal um território cristão, suas

colônias, incluindo o Brasil, deveriam ser organizadas sob a égide e preceitos morais que

norteavam o pensamento europeu daquele período histórico. Então, o matrimônio era mais um

elemento de controle social e imposição de um comportamento que aludia aos ideais de

pureza, castidade e moral baseados na doutrina de Cristo e de seus defensores.

Partindo do pressuposto de que o matrimônio era um instrumento de diferenciação

social e também de ascensão, já que para os que faziam parte da elite colonial o casamento

não era apenas o momento de celebrar a união entre duas pessoas, mas significava a

possibilidade de fazer alianças, estreitar laços de amizades e aumentar a fortuna das famílias

envolvidas, entende-se que oferecia oportunidades únicas para todos os que legitimassem sua

união perante a igreja32

. Da mesma forma, as populações escravas e mestiças percebiam o

casamento como uma forma de se diferenciar das demais camadas pobres e por isso o

casamento para estes indivíduos pode ser considerado uma estratégia para alcançar melhorias

em sua condição de vida ou status.

Sheila de Castro Faria, em seu trabalho no qual demostra as particularidades das

relações que existiam entre a população mestiça e branca pobre na região fluminense,

mostrando que em muitos casos o casamento era o elemento fundamental e determinante dos

aspectos sociais e familiares da colônia. Além de ser tomado como estratégia que viabilizava

a mobilidade social dentro de uma sociedade estratificada, a família formada pelo ato do

casamento constituía um elemento fundamental na formação da colônia. A autora, explicando

o que seria família para os moldes coloniais, afirma:

Para os séculos XVI, XVII e XVIII, o termo significava (....) a ideia de coabitação

enunciada a princípio, independentemente dos laços de consanguinidade que

poderiam existir entre pessoas que viviam na mesma casa. Incluíam-se criados,

agregados, por exemplo. Predominava o sentido de “gente da casa”, sob um mesmo

chefe. Um outro sentido é o de que família exprimia a ideia de consanguinidade sem

coabitação, abrangendo, portanto, os parentes33

.

No caso brasileiro, a historiadora afirma que era mais complexa a definição de família,

pois a existência dos escravos não tornava os mesmos como integrantes de uma família, ainda

32

Dentre as possibilidades de aumento da fortuna das famílias esta o dote, prática costumeira em Portugal e que

foi muito utilizada no Brasil por ocasião dos contratos de casamentos. Conforme SANTOS, Rosenilson da Silva.

Casamento e dote: costumes entrelaçados na sociedade da Vila Nova do Príncipe (1759 - 1795). 33

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de

janeiro: Nova fronteira, 1998. Coleção Histórias do Brasil. 1998, p. 41

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que estivessem vivendo sob as ordens de um senhor. Somente faria parte deste núcleo os

criados, parentes, e agregados. E a estes parentes também poderia se incluir os “aliados”, que

seria a extensão da unidade do lar, pois se poderiam considerar aliados todos os membros de

um lar ou de uma família que tivessem interesses em comum com laços de afinidade34

. E que

para tanto faziam parte de uma rede de reciprocidades que na época do Brasil colonial fora

uma das estratégias para a consolidação de poder em uma determinada região.

Considerando a família como um núcleo de relações que transborda os limites de um

sistema formado por pai, mãe e filhos, as populações escravas e mestiças podem ser inseridas,

dessa forma, no mesmo conceito, já que até mesmo os que não legitimavam suas uniões

perante a Igreja, traçavam seus caminhos por redes de apadrinhamento com pessoas ligadas

ao seu convívio, fossem elas livres ou cativas.

Sobre a formação da família escrava, o trabalho de Robert W. Slenes foi elucidador,

pois rompeu com a ideia de que os escravos, devido à sua penosa condição, não constituíam

famílias, pois a incerteza da vida aliada à instabilidade de moradia fazia destas pessoas apenas

semoventes, criaturas dispersas em um mundo de desgraça, servidão e esquecimento35

.

Slenes, juntamente com outros historiadores que faziam parte da leva de estudiosos que

colocaram os escravos como sujeitos históricos como Sidney Chalhoub36

e Sílvia Hunold

Lara37

, dentre outros, mostraram que os escravos atuavam na sociedade com estratégias de

sobrevivência e ganhos que ultrapassavam o entendimento da obediência cega como forma de

melhores condições de vida.

O escravo, ainda que sujeito a um sistema opressor, era consciente do que ocorria ao

seu redor e juntamente com as redes de relacionamento que estreitavam com outras pessoas

livres ou cativas, muitas vezes conseguiam mudar a sua condição servil. Com o acúmulo de

um pecúlio poderiam comprar sua alforria, ou ainda por meio de um casamento com uma

mestiça livre, garantiria para a sua descendência a liberdade, ou quando dos batismos a

escolha dos padrinhos era feita de um modo que a criança pudesse ser amparada no caso da

morte dos pais. Casos como estes demonstram que o escravo estava longe da passividade e

34

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de

janeiro: Nova fronteira, 1998. Coleção Histórias do Brasil. p. 4. 35

SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil

Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999 pp. 43-53 36

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: Uma história sobre as últimas décadas da escravidão na corte. São

Paulo: Companhia das Letras. 2011. 37

LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência- Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-

1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1988.

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incertezas da vida. Eles, assim como os livres pobres, tentavam mudar sua condição de vida

de acordo com o que o sistema lhes permitia.

Tratando da maneira como escravos tramavam e articulavam dentro do espaço em que

viviam a fim de obter ganhos, favores e consequentemente mudar sua sorte, Sidney Chalhoub

em Visões da Liberdade: Uma história sobre as últimas décadas da escravidão na corte38

,

aborda o exemplo de homens e mulheres cativos que se moviam freneticamente pelas ruas do

Rio de Janeiro do final do século XIX. Nestas histórias, o autor analisa as intenções dos

escravos quando estes se viam diante de situações que poderiam limitar sua liberdade. Dentro

de um contexto urbano, Chalhoub mostra que os escravos eram os protagonistas de suas vidas

ainda que sujeito à ordem de seu senhor, quando se valiam de direitos concedidos pela

política e nova conjuntura social. Não foram raros os escravos que entraram com petições de

liberdade na justiça contra seus senhores, nem tão poucos aqueles que com o seu trabalho

compraram sua alforria, ou os que enfrentaram o seu opressor sem temer castigos e os que

articulavam com uma população mestiça e livre aproveitando-se de um mundo em mudanças

e impulsionando a própria legitimidade sobre o direito de posse sobre outro.

Nestes casos, o negro não só é colocado como sujeito histórico, como suas ações

conduziram a uma mudança de mentalidade sobre a escravidão. Percebe-se que a conjuntura

política e cultural vivida por estas populações mestiças, escravas ou livres era o fator

determinante sobre a maneira como eles iriam se movimentar dentro dela. No período

colonial, os escravos valiam-se das redes de solidariedade por meio de apadrinhamentos como

forma de garantir melhores condições de vida ou incorriam à violência como exemplo de

resistência. À medida que no Brasil começara a circular novas ideias sobre liberdade e nação,

as camadas mestiças também se apoderaram delas em proveito pessoal e, desta maneira, fica

evidenciado sua participação na conjuntura político social em que estavam inseridos.

Outro autor que aborda os laços matrimoniais como manobras para melhoria de vida é

o historiador Gian Carlo de Melo Silva, abordando o Recife colonial. O autor analisa as

particularidades que envolviam os assentos de matrimônio em que se é possível traçar um

panorama social da localidade que se estuda. Os escritos dos vigários muitas vezes é revelador

da composição da sociedade, pois pela leitura dos assentos a população mestiça, livre ou

escrava é registrada e com isso é possível demonstrar quais os padrões de uniões em

determinada freguesia. Na obra, o autor aborda a presença dos casamentos mestiços nestas

uniões e mostra as estratégias usadas pela população mestiça em seu proveito.

38

CHALHOUB, Op.cit

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O matrimônio foi mais que uma prática do cotidiano colonial, ele foi o suporte social

que os homens e mulheres utilizaram em seu favor quando estes tinham como objetivos desde

a consolidação de poder, como o modo pelo qual os desfavorecidos podiam se colocar no

universo branco. Para o autor acima citado,

O assento de casamento não é um simples

registro da união de dois corpos, mas o local

onde um conjunto de práticas sociais se encontra,

fonte que permite aos historiadores escrever

acerca de um passado construindo uma imagem

(...)” 39

.

Assim, ao tratar das mestiçagens nos matrimônios do Recife colonial, o historiador

mostra que as camadas mestiças estavam inseridas no cotidiano da cidade não como o

resultado de misturas biológicas, mas são considerados seus aspectos culturais que,

juntamente com o elemento branco cristão, deu vida à cidade do Recife.

Outra obra que analisa a questão matrimonial no que diz respeito à sua importância

para o entendimento social de uma região, assim como as atitudes tomadas pela população

que desejava o sagrado matrimônio foi a de Solange Mousinho Alves, analisando livros de

matrimônio do sertão do São João do Cariri na Paraíba, em que a autora mostra as redes de

sociabilidade e solidariedades existentes entre as camadas escravizadas da população. Para

isso, a mesma utilizou fontes documentais produzidas pela Igreja (assentos de batismos,

casamentos e óbitos) a fim de montar o cenário social daquela localidade40

.

Entende-se, assim, que os registros paroquiais são fontes preciosas para revelar o

passado colonial brasileiro, seja ele em qualquer localidade, pois em uma sociedade pautada

em códigos religiosos a presença eclesiástica era a principal representante do poder da

monarquia portuguesa sobre suas colônias. Ademais, estes registros, ainda que lacunares e

escassos, são os principais meios pelos quais se pode perceber a presença dos escravos e

mestiços em suas práticas cotidianas e também o meio que eles ganhavam a vida, isso para

localidades afastadas e menos expressivas do ponto de vista econômico. Pois ainda que

pobres, cativos, carregando o fardo do estigma da cor, as pessoas batizavam seus filhos,

casavam e quando morriam tinham seus nomes assentados nos livros de óbitos.

39

SILVA, Gian Carlo Melo. Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife Colonial

(1790-1800). 2. ed. Maceió: Editora Universitária da Universidade Federal de Alagoas, 2014. V.1, p. 20. 40

Alves, Solange Mouzinho. Parentescos e sociabilidades: experiências familiares dos escravizados no sertão

paraibano (São João do Cariri), 1752- 1816 / Solange Mouzinho Alves.- João Pessoa, 2016.

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Nestes registros, um dos aspectos que mais fica evidenciado quando se trata de

mestiços livres ou escravos é a questão do apadrinhamento. A escolha dos padrinhos na hora

do batismo e as testemunhas, quando se legitimava uma união, é bastante semelhante à

escolha dos brancos. Nos assentos analisados para a freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação do Rio Grande, que é o recorte espacial do trabalho em questão, dava-se

preferência à escolha por pessoas tidas por “conhecidas” na sociedade. Essas pessoas

“conhecidas” não são pessoas escolhidas de qualquer maneira apenas para validar o

matrimônio, mas fazem parte da elite colonial moradora na freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação, que em muitos casos eram ligadas às ordens militares. Assim, percebe-se na

escolha das testemunhas a tentativa de estreitar laços com as pessoas com status mais elevado.

Outro aspecto que pode ser observado nestes registros da freguesia de Nossa Senhora

da Apresentação são as relações paternalistas41

observadas na escolha das testemunhas, pois

mesmo que alguns escravos não obtivessem ganhos imediatos com suas escolhas, pelo menos

preparavam o caminho para uma possível necessidade. E observando-se do ponto de vista do

senhor, ajudar uma escrava a casar com um homem livre, por exemplo, significava um

possível ganho de mão de obra para aquele senhor, pois após o casamento o homem não podia

se apartar da mulher e como esta era escrava, acabava por fazer parte do núcleo familiar do

senhor da sua esposa, como mais uma mão de obra para aquela casa.

Além das relações paternalistas do período colonial, havia também o patriarcalismo,

conceito elaborado por Gilberto Freyre em sua obra Casa Grande & Senzala, em que os

aspectos sociais do período colonial “brasileiro” perpassavam pelo latifúndio e a família era a

base da sociedade em que o senhor exercia o papel de chefe absoluto e a mulher era a figura

da fragilidade sempre enclausurada em casa cuidando dos filhos. É questionável o

enquadramento dos modelos de sociedade estudados por Freyre, pois as pesquisas posteriores

revelam as particularidades sociais de cada região do país, mostrando que o modelo de

sociedade descrito por Freyre em que a mulher aparece resguardada a todo custo pelo pai para

que chegasse virgem ao casamento, por exemplo, não correspondia à realidade colonial. Os

41

O historiador Douglas Cole Libby, aborda as relações paternalistas na obra do historiador norte americano

Eugene Genovese, em que mostra que estas relações se davam, sobretudo no âmbito restrito à casa senhorial e

que na maioria das vezes o Estado não intervinha nestas relações e, portanto ficava o escravo sob a dominação

física e psicológica dos senhores e às vezes do administrador daquela fazenda. LIBBY, Douglas Cole.

Repensando o conceito do paternalismo escravista nas américas. In.: PAIVA, Eduardo França, IVO, Isnara

Pereira. (orgs.) Escravidão, mestiçagens e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte:

PPGH- UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2008. (coleção Olhares). p.27- 40

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próprios registros clericais mostram isso. Pela quantidade de mulheres solteiras que batizavam

seus filhos, a ideia de uma sociedade muito fechada em padrões rígidos não se sustenta42

.

Dessa forma, é possível levantar dados sociais das camadas mais pobres e mestiças do

período colonial. Mesmo em menor número, estes registros revelam como estas pessoas se

articulavam no universo branco. Essas uniões nada tinham de insignificantes. Fazem parte da

nossa história, e cada vez mais se percebe o negro ou o pardo, escravo ou livre43

na luta

constante pelo estabelecimento de redes de solidariedade, enfim, lutavam com as armas que

dispunham naquela ocasião, mas o certo é que passivos não ficavam.

Portanto, nas relações estabelecidas no ato matrimonial entre as diversas camadas

sociais que compunham a sociedade do Rio Grande colonial, refletem as relações de cunho

paternalistas quando os mestiços optavam por escolher pessoas de status mais elevados que o

seu e também representantes da elite da época, observadas como uma maneira de se garantir

ou almejar melhorias de vida por meio de redes de reciprocidade. Assim, as famílias formadas

na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação em face da Igreja eram constituídas por

uniões mestiças que se entrelaçavam nessa sociedade com o objetivo de externar seu desejo

de mudança quanto ao estigma e preconceito social que permanecia entre essas famílias.

42

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de

janeiro: Nova fronteira, 1998. Coleção Histórias do Brasil. p. 47-48. 43

Para um estudo mais aprofundado sobre as cores das população e mestiça e os embates em que estavam

envolvidos na sociedade colonial, no que diz respeito ao seu lugar social ver 43

VIANA, Larissa. O idioma da

mestiçagem: As irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas, SP: UNICAMP, 2007, pp. 47-83

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Capítulo II

Os matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação: a presença de

uniões mestiças na constituição das famílias do Rio Grande

Segundo Luís da Câmara Cascudo, no período colonial, uma freguesia era o espaço

territorial assistido pelos religiosos e a mesma era composta basicamente pela tríade: Matriz,

capelas e padres. O mesmo autor afirma que não se sabe a data exata da criação da freguesia,

mas que ela iniciou suas atividades com a fundação da Capela de Nossa Senhora da

Apresentação em 25 de dezembro de 1599 quando da criação da cidade do Natal44

.

Com o crescimento da colônia na segunda metade do século XVIII, a freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação passou a dividir o espaço da capitania com mais três

freguesias: a do Assu, Nossa Senhora da Santana de Caicó e de Goianinha. Já as capelas que a

matriz de Nossa Senhora da Apresentação englobava, destacam-se a de Ceará Mirim e São

Gonçalo (na parte norte) e a capela da ribeira do Mipibu chamada Papari localizada ao sul da

capitania.

Entendendo a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação como o espaço onde

ocorrem as práticas culturais e religiosas normatizadoras, mas também como o espaço onde se

desenvolvem os interesses seculares que norteavam toda a população, pretende-se estudar a

mestiçagem dos relacionamentos e mostrar que as pessoas de cor almejavam estar inseridos

de fato, na sociedade colonial, no sentido de serem aceitos por ela e terem sua união

reconhecida por todos e pela Igreja, pois desta maneira estariam mais perto de uma possível

mobilidade social.

A população mestiça moradora na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação pode

ser percebida pelos escritos dos vigários das paróquias que registravam os assentos de

matrimônios tanto de brancos quanto de negros, pardos, livres, escravos, forros que

constituíam a população do Rio Grande. Os livros não separavam a população branca e

abastada das camadas mestiças, pobres e cativas. Assim, em um mesmo livro é possível

encontrar o casamento de um capitão e logo a seguir de um escravo.

Os assentos matrimoniais constituem importante documento para a investigação de

uma determinada população, entretanto, a pesquisa muitas vezes fica limitada devido à

própria escrita dos vigários, que muitas vezes não seguiam as recomendações eclesiásticas

44

CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 3.ed. Natal: Ed. IHG/RN, 1999. p. 99 (Coleção

Natal 400 anos; v. 1)

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que ordenavam que os registros devessem seguir as normas instituídas pela Igreja a fim de

manter um padrão. Alguns registros contêm apenas os nomes dos nubentes, o que dificulta o

entendimento sobre quem eram aquelas pessoas.

Apesar da quantidade de registros encontrados para a freguesia estudada mostrarem

que a maior quantidade de assentos diz respeito a uma parte branca e livre da população, pois

do total de 491 registros analisados para os anos de 1727-61, apenas 42 faziam menção à cor

ou à condição jurídica do indivíduo, ainda assim, pode-se considerar que mesmo em

quantidade pequena, esses indivíduos, ao oficializar perante a sociedade e poderes

constituídos sua união, tinham interesses concretos de se assemelhar aos brancos, pois como

afirma Sheila de Castro Faria: “(...) Casar-se significava buscar uma estabilidade familiar e

um respeito social, fundamental, no caso dos homens brancos de qualquer crença, e

estratégico, no caso de escravos, forros, e mestiços”45

.

Da mesma forma, quando se atenta para os aspectos mestiços da população,

principalmente em seus elementos negros, percebe-se o quanto o sacramento matrimonial,

dentro dos padrões legais impostos pelas autoridades, estava carregado de valores simbólicos

para as camadas pobres e cativas. Tomando como exemplo o assento abaixo:

Aos vinte e oito de outubro de mil setecento e quarenta e dous annos na Igreja do

Senhor Sam Miguel da Missao do Guajurû desta fregezia de Nossa Senhora da

Aprezentação do Rio Grande do Norte feytas as denunciaçoens na forma do Sagrado

Concilio Tridentino nesta Matris (...) e cedendo a contrahente ao impedimento de

escravidão ignorado com que se lhe saio, o qual lhe depos o Reverendo Assistente

primeira, segunda, e terceira ves diante de testemunhas em particular e

publicamente, ao que a dita contrahente sempre respondeo que queria cazar com o

contrahente, e ainda que fosse escravo cujo impedimento foy anulado,(...) se cazarão

em face da Igreja solenemente por palavras Mathias dos Santos natural da cidade de

Olinda freguezia da Sê filho com Brazia Gomes Martins natural desta

freguezia,(...)46

Neste exemplo, observa-se que os nubentes tiveram que se submeter por três vezes

diante das autoridades eclesiásticas e demais testemunhas para poderem casar, visto que o

noivo foi acusado de ser escravo, o que foi posteriormente esclarecido e desfazendo-se o

impedimento, os dois puderam se unir em matrimônio. O interessante neste caso é ver como a

noiva estava segura quanto à decisão de casar, pois afirmava com convicção que casaria com

o Mathias dos Santos ainda que ele fosse escravo.

45

FARIA, 1998, op. Cit, p. 304 46

Livro de matrimônios Catedral 1740-1752

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No registro, o vigário não colocou a cor dos contraentes, mas se pode inferir que o

noivo poderia ser pardo, mulato, negro ou possuir características indígenas, pois como foi

levantada a hipótese de ele ser escravo, fica subtendido que o seu fenótipo corresponde a

umas das muitas “cores da população”, já que se fosse branco não sofreria tal acusação. Outro

fato que chama a atenção no registro é a fragilidade da condição de livre dos escravos forros,

pois fornece a impressão que a qualquer momento uma pessoa poderia voltar ao cativeiro pela

denúncia falsa de outrem, ou seja, a liberdade adquirida neste período ainda não era algo

legitimamente reconhecido.

Em uma sociedade colonial, a escravidão estava tão imbricada nos fundamentos da sua

economia e do trabalho, que um mestiço alforriado poderia ver-se destituído de sua liberdade.

Já que o peso da discriminação pela cor era algo latente entre as pessoas, as pessoas de cor

tinham de conviver com a possibilidade de perderem sua liberdade e voltar ao cativeiro ou

serem vendidos para lugares distantes de onde viviam o que tornava a chance de provar que

eram livres quase impossível, pois não teriam a quem recorrer e nem pessoas que

testemunhassem a veracidade de sua liberdade.

A historiadora Keila Grinberg, analisa o caso de Liberata, escrava que ganhou a

liberdade depois de procurar a justiça contra o seu senhor alegando que este há muito tempo

prometia-lhe a liberdade e não cumprindo, e além disso por se encontrar constantemente

ameaçada pela sua senhora e também da filha do dito senhor, pedia que se fizesse justiça e

libertasse a mesma. A ação de Liberata é repleta de idas e vindas típicas dos tramites legais do

século XIX, época em que ocorre o caso estudado. As ações de liberdade tornam-se mais

comuns no século XIX. A autora não cita nenhum caso em que um escravo procurasse a

justiça para reaver a sua liberdade em períodos muito anteriores a este, dado que ela mostra

que o processo mais antigo encontrado na corte de Apelação do Rio de Janeiro remonta ao

final do século XVIII.

Outro caso em que se aborda casos de escravidão ilegal é a dissertação de mestrado de

Antônia Márcia Nogueira. Nela, a autora analisa o caso de Hypolita Maria das Dores, que

nasceu livre e foi escravizada e de sua luta por liberdade47

. Quando seu pedido de liberdade

foi negado, a mesma fugiu da casa de seu opressor e procurou abrigo e auxílio de um primo

de seu escravizador, sendo que este era inimigo declarado de João Pereira. Foi neste momento

que a luta de Hypolita ganhou destaque nos jornais e com o apoio de Gualter Martiniano de

47

PEDROZA, Antônia Márcia Nogueira. Desventuras de Hypolita: Luta contra a escravidão ilegal no sertão

(Cratu e Exú século XIX). 2013.

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Alencar ela pode entrar novamente com a “ação de liberdade” e tentar provar que nunca fora

escrava.

Situações como estas citadas acima demorariam anos para serem resolvidas, pois

aqueles que alegavam serem proprietários de alguém não se conformavam em perder a posse

de um escravo, que significava abrir mão de seu patrimônio. Mas também mostra a luta desses

mestiços como agentes de seus próprios destinos. Aproveitando-se da constante mudança

política e cultural na sociedade, recorriam aos meios legais de que dispunham para se

libertarem do julgo da escravidão. No caso de Mathias dos Santos, podem-se fomentar

hipóteses sobre sua denúncia. Ao que parece tratava-se de uma denúncia falsa sem

fundamentos, pois provavelmente foi resolvida ainda quando se processavam os banhos do

matrimônio, que foram feitos em todas as localidades onde residiu o nubente.

Além da fragilidade da própria liberdade, homens e mulheres, forros e livres tinham

que amargar por toda a vida o estigma de ex-escravos ou filhos de escravos, marcas que

carregavam consigo de modo que o fato de terem alcançado a liberdade não os colocava de

maneira nenhuma em condição de igualdade com brancos. O passado cativo e servil

continuava a servir como elemento de diferenciação social.

Esta permanência foi observada por Sheila de Castro Faria. Para a autora:

A caracterização de um indivíduo como preto/pardo livre/liberto significava uma

evidente proximidade com um recente passado ou antepassado escravo. Em

processos de banhos e dispensas matrimoniais, foi comum a qualificação dos

contraentes como forros e, nos registros de batismos (...) constar-se que muitos não

haviam nunca sido escravos, filhos que eram de mães forras. O estigma social da

escravidão estava presente para os próprios alforriados e para a geração seguinte.

Poucos, nestes casos, tiveram acesso a um prestígio social que ocultasse no sumiço

da identificação pela cor condição48

.

A cor que uma pessoa era classificada na sociedade também poderia revelar a sua

condição social, pois quase sempre a mestiçagem era indicativa de pobreza e desqualificação

na hierarquia social. Cacilda Machado percebeu as constantes mudanças de cor dos indivíduos

estudados nos documentos que levantou para a região de São José dos Pinhais e cita exemplos

de como as pessoas poderiam ser registradas como brancas ou pardas dependendo da posição

que tinham na sociedade49

.

48

FARIA, 1998, op. cit p.135 49

MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil

escravista. 1. ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. v. 1. pp. 131-139.

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29

Para os registros na Capitania do Rio Grande, também se observam casos semelhantes,

como o que segue abaixo:

Aos vinte e dous de Janeyro de mil e setecentos e sencoenta annos na Capela do

Santo Antonio do Potegy desta freguezia de Nossa Senhora da Prezentação do Rio

Grande do Norte (...) prezentes por testemunhas o Capitão Francisco Dinis da Penha,

e o Tenente Gonçalo Freyre, pessoas conhecidas, que vierão assignados com o dito

Reverendo em seo assento, se cazarão em face da Igreja solemnente por palavras

Andre Rebouça de [Nação?] Jaguarebara escravo, que foy do Capitão Diogo

Malheyros com Anna Gomes, filha Legitima de Antonio, e Thereza escravos do

Capitão Francisco Dinis da Rocha natural desta dita Freguezia; e logo lhes deo as

bençoens conforme aos Ritos, e Serimonias da Santa Madre Igreja; e pelo assento do

dito Reverendo mandey fazer este, em que por verdade me assigney.50

Pelo assento acima, observa-se como a permanência do passado de escravo ainda era

algo marcante na vida de forros. No caso, André que era índio, além de se registrar que foi

escravo, ainda colocava o nome de ex-proprietário. Este tipo de designação que remonta ao

passado do cativeiro dos nubentes não era fato isolado. Dos 42 registros analisados para o

período da pesquisa pelo menos 16 apareceram com a referência a familiares escravos/ forros

ou colocava-se o nome do ex-proprietário.

As fontes do Rio Grande contrariam o estudo feito por Sheila de Castro Faria (1998)

em que afirma: “As testemunhas dos casamentos, sempre homens, não tinham a mesma

importância dos padrinhos de batismos, (...) As ´testemunhas´ eram todos os que assistiam à

cerimônia, (...)”51

. Para o caso da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, a escolha das

testemunhas parecia seguir o mesmo rigor da escolha dos padrinhos nos batismos, pois se

estes fossem apenas aqueles que assistiam a cerimônia não haveria tantas personagens

“conhecidos” – como diziam os vigários – na ocasião da cerimônia, e ainda havia a presença

de mulheres nestas testemunhas que geralmente eram as esposas das referidas testemunhas ou

mulheres que detinham algum status na sociedade. Dificilmente eram pessoas vulgares.

Na documentação levantada na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, toma-se

conhecimento do destino de alguns expostos52

. Essas crianças geralmente eram abandonadas

na casa de alguma pessoa que morava na mesma localidade da mãe da criança, como o caso

que segue abaixo:

50

Livro de matrimônios Catedral 1740-1752 51

FARIA, 1998, op. cit p. 309. 52

Para um estudo sobre a condição das crianças expostas na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ver

PAULA, Thiago Nascimento Torres de. Teias de caridade e o lugar social dos expostos na freguesia de Na. Sr.

a

da Apresentação: Capitania do Rio Grande do Norte século XVIII. 2009. Dissertação, 196f.

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Aos vinte de Mayo de mil e sete centos e sincoenta annos na capela de Sam Gonçalo

do Potegy desta freguezia Nossa Senhora da Prezentação do Rio Grande do Norte

feitas as denunciaçoens na forma do Sagrado Concilio Tridentino nesta Matris e nas

mais partes necessárias desta freguezia sem sedes cobrir impedimento algum como

consta dos Banhos que ficão em meu puder em prezença do Reverendo Coadjutor o

Licenciado João Gomes Freyre de Licença minha e sendo prezentes por testemunhas

o Capitão Ruperto de Sá Bezerra Homem cazado e Faustino Barreto, filho de

Francisco Barreto, peçoas conhecidas que vinhão assignados no assento, se cazarão

em face da Igreja solenemente por palavras Boa Ventura de Mello, filho de

Francisco Monteyro e de Anna Rodrigues escrava de Brizida Rodrigues, natural

desta dita freguezia, com Maria do Rozario, Criola emjeitada na Aldeya da Utiga em

caza de Bernardo Soares, e de sua mulher Bernarda Martin, Indios da dita Aldeya, e

moradores desta dita freguezia. E logo lhe deo as Bençoens conforme aos Ritos e

Serimonias da Santa Madre Igreja; e pelo assento do dito mandey fazer este em que

por verdade me assigney.53

Neste caso, Maria do Rozário, crioula, foi abandonada na Aldeia da Utinga na casa de

Bernardo Soares e sua mulher Bernarda Martins que eram índios da mesma aldeia. No Rio

Grande não existiam locais apropriados para o amparo de crianças indesejadas como as Santas

Casas da Misericórdia, em Salvador criada em 1549 e no Rio de Janeiro em 1570. Então, para

o Rio Grande, o destino das muitas crianças era serem abandonadas na casa de alguém que se

supunha podia dar o mínimo de assistência ao rebento54

. O abandono de crianças no período

colonial era algo corriqueiro, fosse por motivos financeiros, morais ou por ser uma gravidez

não prevista55

. Uma mulher solteira poderia abandonar seu filho para que no futuro não

tivesse maiores problemas na hora de contrair matrimônio56

.

Brízida contraiu matrimônio com um escravo que era natural e morador na mesma

freguesia dela. Não era o melhor dos pretendentes, visto que era cativo, mas sua descendência

seria livre já que a noiva era livre. Não se pode tomar o exemplo de Brízida como base para

todos os casos. Como foi dito anteriormente, às vezes livrar-se de uma criança era

“necessário” para a manutenção da honra da família e, desta forma, alguns expostos tinham

uma melhor sorte quanto ao seu destino, como o exemplo que se passa a narrar.

No dia 7 de maio de 1748 na matriz de Nossa Senhora da Apresentação, casaram-se o

tenente Gonçalo Freire, filho legítimo do capitão Domingos da Silveira e Catarina de

Amorim, com Dona Izabel Francisca Rodrigues exposta na casa do padre Domingos

Rodrigues Telhoes. É possível perceber que o destino de Izabel poderia ser bem diferente de

53

Livro de Matrimônio Catedral 1740-1752 54

O historiador Thiago Torres, afirma em sua dissertação que o destino de muitos expostos na freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação era a residência de alguém com posses ou ao relento, largados à própria sorte.

PAULA, Op.cit, 2009, p, 125. 55

Cf. VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. In: DEL PRIORE, M. (org.) História das mulheres no.

Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p.189-222. 56

FARIA, 1998, Op. cit. pp. 70-71.

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Brízida que era crioula e fora criada por um casal de índios. Izabel ostentava o título de Dona,

designação que a colocava em um patamar diferenciado em relação aos demais moradores da

freguesia e seu noivo já exercia cargos militares na capitania, o que para a época já o

distinguia entre a população e, além disso, como era militar, a chance de alcançar outros

cargos na parte administrativa da colônia não era impossível. Chama também a atenção a

coincidência do sobrenome da exposta e seu receptor: ambos eram Rodrigues. Isso seria

evidencia de que Izabel poderia ser filha de algum familiar do padre e para evitar o escândalo

da sociedade, optou-se por deixá-la na casa de outro para que fosse criada57

.

Outro caso bastante interessante envolvendo uma exposta é o de Antônia da Trindade

que contraiu matrimônio com João de Abreu em 6 de fevereiro de 1752. O noivo era filho

legítimo do coronel Henrique Correia da Costa e de Paula Pereira, já Antônia era filha natural

de Manoel de Melo Albuquerque e de Teodósia de Oliveira e foi exposta na casa do tenente-

coronel Matias (ilegível). O registro mostra como os indivíduos na colônia se comportavam, e

o fato de o casal ter tido uma filha sem estarem casados nos diz o quanto as regras não eram

seguidas, e que isto não significava necessariamente a exclusão. Neste caso, a cor dos

nubentes e dos pais não é dita, mas se infere que seriam brancos, já que a noiva casou com um

tenente-coronel. A outra peculiaridade é que ao expor a filha, tanto Manoel quanto Teodósia,

talvez não tivessem se afastado da mesma e Antônia tinha conhecimento de quem eram seus

pais, pois estava registrado no assento de matrimônio.

Dessa maneira, o matrimônio mais uma vez foi usado como elemento de inserção

social de indivíduos que tinham todas as prerrogativas para serem marginalizados. Não

generalizando, claro, visto que muitos não tinham a mesma sorte e acabavam por morrer antes

mesmo de serem adotados e muitos outros que acabavam por torna-se agregados da família

que o acolheu e acabavam por aumentar a mão de obra desses lares. O matrimônio neste caso

é mais uma opção de se destacar na sociedade e formar sua própria família.

No mundo colonial, as relações das populações muitas vezes surpreende o leitor, pois

os dois casos que serão abordados a seguir foge dos padrões encontrados para os matrimônios

do período, mas também são bons indicadores do que se tem afirmado deste o começo: de que

casar perante a Santa Madre Igreja era motivo de distinção social e garantiria às camadas

mestiças e pobres ganhos reais no universo excludente da colônia.

O primeiro caso ocorreu em 1739:

Aos vinte e três de Janeiro de mil e setecentos e trinta e nove anos na Capela do

Senhor São Miguel da Missão do Guajirú desta freguesia de Nossa Senhora da

57

Dados extraídos do Livro de Matrimônio da Catedral 1740-1752

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Apresentação do Rio Grande do Norte donde os contraentes são fregueses feitas as

denunciações nesta Matriz, e na Capela da dita Missão onde é a contraente moradora

sem se descobrir impedimento [?] presença minha, sendo presentes por testemunhas

o Capitão Luís Teixeira homem casado, o Capitão Bonifácio da Rocha Vieira,

Ignacia Gomes Freire mulher do dito, e Brígida Rodrigues mulher solteira pessoas

conhecidas e fregueses desta freguesia se casaram em face da Igreja solenemente por

palavras Antônio Gomes da Assunção pardo escravo de Maria Gomes Freire

Dona viúva filho de [?] [?] escrava da dita viúva, e de Luciana Pereira das

Neves filha do Capitão Manuel Simões, e de sua mulher Maria da Neves já

defunta vinda do Pernambuco menina, e o contraente desta freguesia onde todos são

moradores, e logo lhes deu as benções tudo na forma do Sagrado Concílio

Tridentino. Do que mandei fazer este assento, em que por verdade assinei. Manuel

Correa Gomes Vigário58

.

O segundo caso em 1752:

Em des de Janeyro de mil settecentos e cincoenta e dous nesta Matriz de Nossa

Senhora da Apprezentaçam do Rio Grande, de licença do Reverendo Vigario o

Doutor Manuel Correa Gomes, e despensados os banhos pelo Muito Reverendo

Doutor Vizitador Senhor Frey Manuel de Jezus Maria, em presença do Reverendo

Padre Joam Freyre de Amorim Coadjutor desta dicta Matriz, e das testemunhas

Antonio Duarte de Oliveyra, solteyro, morador nesta cidade e Antonio Bernarde,

casado, e morador em Pernambuco, pessoas conhecidas, se cazaram solemnemente

em face da Igreja por palavras de presente, Manuel Cardozo Ramos, escravo do

Capitam Sebastião Cardozo Batalha, morador nesta cidade, e Dona Quitéria de

Jezus, filha legitima do Capitam Mathias de Arahujo, e de sua mulher Dona

Thereza, moradores nesta cidade deo Natal, desta cidade, e Logo lheos deo as

bençoens tudo [?] de que mandou o Muito Reverendo Senhor Doutor Vizitador fazer

este assento, em que assignou. Marcos Soares de Oliveira. Vigário59

.

Os dois exemplos acima escolhidos tipificam as relações de sociabilidade e também

mostram as estratégias de ascensão social que os escravos poderiam ter na colônia. Os dois

são escravos e ambos possuíam senhores que eram capitães, casaram-se com filhas de outros

capitães que eram mulheres livres e como o vigário não colocou a cor no assento, subtende-se

que eram brancas. Uma delas, a Quitéria de Jesus, tinha o título de dona, ou seja, era ainda

mais respeitada na sociedade. A tarefa de explicar essas uniões não é fácil, existem muitas

possibilidades, como os dois nubentes serem escravos fiéis e devotados aos seus donos ao

ponto de serem recompensados com um bom casamento, ou o casamento ser uma

oportunidade desses senhores estreitarem laços de amizade e fazer alianças entre suas

famílias.

De qualquer forma, fosse por recompensa, ou para fazer alianças entre as elites, neste

caso tanto Antônio Gomes da Assunção quanto Manoel Cardozo Ramos conseguiram fazer

parte do seleto grupo de pessoas que formalizavam sua união perante a igreja e o Estado, e

58

Livro de Matrimônio Catedral 1727- 1740 59

Livro de Matrimônio Catedral 1740-1752

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desta forma estariam mais perto de obter favores e ganhos por meio das redes de solidariedade

estabelecidas na ocasião da união.

Outro exemplo de casamento misto, relevante para este período:

Aos vinte de Abril de mil setecentos e cinquenta e sete na Capela de Nossa Senhora

do Ó da Ribeira do Papari desta freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Rio

Grande, feitas nela e nesta Matriz as denunciações na forma do Sagrado Concílio

Tridentino e dispensados os banhos da freguesia de Goianinha pelo Reverendíssimo

Senhor Doutor Visitador Frei Manuel de Jesus Maria, haver impedimento como dos

banhos que se acham correntes constar de licença do Reverendo Vigário o Doutor

Manuel Correa Gomes, em presença do Reverendo Padre Antônio de Araújo e

Souza capelão da dita Capela e das testemunhas que com ele assinaram o Capitão

Mor José de Oliveira e Freitas e Teodósio Ferreira do Rego, homens casados,

conhecidos e moradores nesta freguesia, se casaram solenemente em face da Igreja

por palavras de presente David da Rocha, forro do Gentio de Guine escravo que foi

do defunto Domingos dos Santos, criado e morador na Ribeira de Mipibu desta dita

freguesia com Ana Tereza de Jesus, índia, viúva que ficou do Capitão Mor Manuel

Fernandes de Campos moradora na dita Ribeira desta dita freguesia, e logo lhes deu

as benções conforme os ritos da Santa Madre Igreja de que mandou o Muito

Reverendo Senhor Doutor Vigário encomendado fazer este assento em que assinou.

João Freire de Amorim.Vice Vigário60

.

Neste assento, pode-se perceber o quanto a população da capitania era misturada e isto

pode ser percebido nos vários estratos sociais que a compunha, o noivo David da Rocha que

era natural do Gentio de Guine61

, forro e que pertenceu a Domingos dos Santos, casou com

Tereza de Jesus que havia ficado viúva do capitão-mor Manoel Fernandes de Campos. Tem-

se mais um exemplo da miscigenação da população e considerando a possibilidade de Tereza

ter gerado filhos do primeiro marido (que talvez fosse branco) e também de David, ela seria a

responsável por gerar uma prole de mamelucos e cafuzos, aumentando ainda mais as várias

nuances de cor de pele da população.

Entende-se, dessa forma, que os casamentos analisados para a freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação estavam mergulhados na mestiçagem. Negros, indígenas e brancos

misturavam-se e contribuíam para aumentar o contingente mestiço da população, fomentando

uma cultura misturada na qual teciam redes e sociabilidade no espaço normalizador da Igreja.

60

Livro de matrimônio Catedral 1752-1761 61

A designação gentio de Guine, diz respeito as escravos vindos das Costa Ocidental da África, Gâmbia até o

Congo, até o final do século XVI, mas com as generalizações, Guine passou a designar a própria condição

escrava do que explicar a região da africana que eram naturais. Cf. PORTELA, Bruna Marina. Gentio da terra,

gentio da guiné : a transição da mão de obra escrava e administrada indígena para escravidão africana (Capitania

de São Paulo, 1697-1780). Curitiba, 2014, p. 165

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Capitulo III

Brancos, negros e pardos: Diferentes cores, interesses comuns.

No jogo das hierarquias sociais vividas pela população colonial, brancos e mestiços

moviam-se em torno da roda da oportunidade que o contexto da sociedade à época oferecia e,

para jogar, era muitas vezes necessário fazer o que o “mestre” mandou. Aqueles que não se

submetiam ou de algum modo distanciavam-se do comportamento esperado para tornar-se

uma pessoa de bem, cuja vida pessoal servisse de exemplo para a sociedade, teria sua vida

bastante limitada no que tange à mobilidade social. Segundo Sheila de Castro Faria, “casar na

Igreja ou, em outras palavras, casar segundo os padrões dominadores na sociedade escravista

colonial, significava garantir o mínimo das condições de sobrevivência (...)”. 62

Assim, o casamento figura como um instrumento que possibilitaria a mobilidade

social, uma vez que as pessoas fossem reconhecidas publicamente como honradas e dignas de

fé pela maneira limpa e honrosa que viviam, ou seja, sua vida privada interferia diretamente

na pública, e em um mundo tão restrito, perder oportunidades implicava em continuar a

conviver com apertos e privações cotidianamente.

A celebração matrimonial também trazia uma série de benefícios para os nubentes,

principalmente os escravos e mestiços. A escolha das testemunhas era algo de grande

relevância para os nubentes, pois nesse momento poderiam ser estabelecidas redes de

apadrinhamento que lhes possibilitaria oportunidades de melhoria social. No levantamento

dos matrimônios realizados na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação para os três livros

estudados, nos compreendidos entre o período de 1727- 61, as testemunhas para ambos os

casos era em sua maioria pessoas ligadas ao corpo militar com exceção para o período de

1752- 61, em que a ocupação não foi declarada.

Toma-se como exemplo de possíveis redes de sociabilidades os seguintes dados:

62

FARIA, 2008. Op.cit p.63.

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Tabela 1

Fonte: elaboração própria baseado nos Livros de matrimônio catedral 1727- 61

Tabela 2

Fonte: elaboração própria baseado nos Livros de matrimônio catedral 1727- 61

Ocupação das testemunhas dos nubentes brancos 1727-61

Ocupação Quantidade Porcentagem

Alferes 36 5%

Capitão 195 25%

Coronel 44 6%

Sargento 98 12%

Tenente 46 6%

Padre/Religiosos 46 6%

Soldado 1 0%

Outros 44 6%

Não informados 280 35%

Total 790 100%

Ocupação das testemunhas dos nubentes mestiços, 1727-61

Ocupação Quantidade Porcentagem

Alferes 7 3%

Capitão 38 18%

Coronel 44 21%

Sargento 12 6%

Tenente 15 7%

Padre/Religiosos 9 4%

Soldado 10 5%

Outros 4 2%

Não informados 71 34%

Total 210 100%

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Gráfico 1

Fonte: elaboração própria baseado em dados coletados nos livros de matrimonio Catedral

Gráfico 2

Fonte: elaboração própria baseado em dados coletados nos livros de matrimonio Catedral

Como observado acima nos gráficos e tabelas acima para o período da pesquisa, os

nubentes, tanto brancos como mestiços, tinham preferência por escolher testemunhas que

fossem pessoas que ocupassem alguma posição de destaque na sociedade. Nesse período,

observa-se que estas ocupações eram quase todas ligadas a alguma cargo militar. No caso das

testemunhas em que não foi declarada a ocupação, deve-se em parte pela particularidade da

5% 25%

6%

12% 6% 6%

0%

6%

35%

Ocupação das testemunhas dos nubentes brancos 1727-61 (%)

Alferes

Capitão

Coronel

Sargento

Tenente

Padre/Religiosos

Soldado

Outros

3%

18%

21%

6% 7% 4%

5%

2%

34%

Ocupação das testemunhas dos nubentes mestiços, 1727-61 (%)

Alferes

Capitão

Coronel

Sargento

Tenente

Padre/Religiosos

Soldado

Outros

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escrita dos vigários em não declarar em que aquelas se ocupavam, o que faziam para garantir

sua sobrevivência. No campo outros, foi colocado para contabilizar os cargos que apareceram

em menor frequência e que às vezes não estava ligado ao militarismo como, provedor da

fazenda real, meirinho, cabo de esquadra, pessoas com o título de Doutor e também

ocupações cuja recorrência era muito baixa, como o ajudante.

Nos casamentos envolvendo nubentes brancos, a maior parte das testemunhas com

ocupações declaradas era de capitães, 25% equivalendo a 195 indivíduos, e em segundo lugar

estava o de sargentos, que correspondia a 12%, ou 98 indivíduos, seguidos de tenentes, padres

e outros, empatados com 6% cada, totalizando as três categorias 136 indivíduos. Já para as

testemunhas dos mestiços tem-se os coronéis em primeiro lugar, com 21% ou 44 indivíduos;

em segundo lugar ficaram os capitães, com 18% correspondendo a 38 indivíduos; em terceiro

tem-se os tenentes, 7%; em quarto os sargentos, 6%; e em quarto os soldados com 5%. O total

destes 3 últimos somados equivale a 37 indivíduos. Para ambos os casos, o total de pessoas

não declaradas foi o mais alto, 35% para os brancos e 34% para os mestiços. Apesar dos

registros permitirem o levantamento de 491 casais, o total de pessoas envolvidas nestes

matrimônios foi de 1000 homens que foram testemunhas, sendo, portanto, ligados a estes

casais.63

Tem-se aí uma quantidade significativa de pessoas com as quais era possível traçar

redes de sociabilidades na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

Atentando para os mestiços, que nestes gráficos englobam os cativos e livres, percebe-

se que a escolha das testemunhas não foi aleatória, mas uma estratégia de se aproximar de

pessoas com algum status social mais elevado, em uma tentativa de, assim, se inserirem em

uma rede de reciprocidade/solidariedade junto a essas pessoas. Também poderia ser o meio

pelo qual estes homens e mulheres, considerados inferiores, deixaram marcados em um

documento que a sua união tinha o aval das pessoas mais ilustres na sociedade, e que de fato

eles procuravam viver de acordo como mandavam os cânones católicos. Pois ao

testemunharem tal união estavam declarando publicamente que conheciam os nubentes e que

sabiam de sua conduta e que ambos tinham uma conduta correta perante a Igreja e a sociedade

e que nada os impediam de casar, ou seja, era a palavra da testemunha que se estava

considerando, tanto que os vigários reiteravam no assento após colocar os nomes das

testemunhas que eram “pessoas conhecidas”. Neste caso a conduta pessoal das testemunhas

também era considerada.

63

Foram contabilizados apenas os homens, pois o objetivo era saber a ocupação.

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Em uma sociedade marcada pelo preconceito contra pessoas mestiças na qual a

classificação pela cor muitas vezes era fator determinante para a obtenção de ganhos e

posições mais confortáveis, designar a cor dessas pessoas em um espaço tão miscigenado,

muitas vezes era uma tarefa difícil, pois qual seria a cor de um noivo que tem mãe cabra e pai

crioulo? Da mesma forma acontecia quando a noiva tinha ascendentes indígenas, africanos e

brancos. Sua cor muito provavelmente seria a mais próxima do seu fenótipo, ou seja, ela iria

ser registrada com uma cor que denotasse a tonalidade da pele, se mais escura poderia ser

mulata ou cabra e se clara, seria parda.

Nos assentos de matrimônio há casos em que a cor dos nubentes não foi mencionada,

mas não significa necessariamente que as pessoas ali envolvidas fossem brancas, sem

ascendência indígena ou escrava, apenas tomava-se uma atitude que atendesse às suas

conveniências e que mais se enquadrasse na condição social dos indivíduos envolvidos

naquela situação. Como se observa no matrimônio ocorrido na Capela de Nossa Senhora da

Missão do Mipibú:

(...) Casou-se o Alferes Manuel Gonçalves Branco com Rosa Maria da Encarnação,

ele filho legítimo de José Pinheiro Teixeira e Maria da Conceição e nubente filha

legítima de Antônio Cardoso Batalha e Maria da Apresentação. Foram dispensados

no segundo grau de consanguinidade e por ter a nubente para ambas as partes Casta

de Neóphito”64

(...)65

.

Neste caso, a cor dos nubentes não foi colocada no assento, muito provavelmente por

se tratar de pessoas com relativo destaque na sociedade, pois a nubente era neta do sargento-

mor Sebastião Cardoso Batalha, que além de possuir um cargo que o colocava em condição

privilegiada na sociedade ele também era possuidor de sesmarias na capitania do Rio

Grande66

e o mesmo testemunhou o casamento da neta. A designação de Neóphito é a única

maneira que se tem de perceber a mistura entre cores/etnias mesmo entre grupos familiares

mais abastados, pois como o padre não colocou a cor dos nubentes, infere-se que eles seriam

brancos, mas ao referir-se aos nubentes como Neóphito, e atentando para as designações

contidas no Dicionário Latino Raphel Bluteau, encontra-se que a designação era para explicar

pessoas com ascendência provavelmente indígena. Outros três registros aparecem com a

64

Neóphito, segundo o dicionário Raphael Bluteau: designação usada pelos eclesiásticos para os gentios recém-

convertidos a fé Cristã. 65

Livro de matrimônio Catedral, 1752-1761 66

Sebastião Cardoso Batalha possuiu três sesmarias no Rio Grande: a primeira concedida em 1706, a segunda

em 1718, e a terceira em 1752.

Fundo documental do IHGRN, caixa 01 de cartas de provisões do senado da Câmara. Livro 4 (1702-1707), folha

94v.

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mesma designação para os nubentes, mas apenas o citado acima se refere a pessoas com

maior prestígio na sociedade.

Passa-se a se analisar como procede o vigário quando da escrita do registro de

matrimônio entre pessoas desfavorecidas:

Aos vinte e quatro de Fevereiro de mil setecentos e cinquenta e nove, (...)

dispensados no segundo grau de parentesco por afinidade atingente ao primeiro por

duas linhas os nubentes por razão de terem os três mais de um quarto de Neophitos,

ser em muito pobres e a nubente estar deflorada pelo nubente, causa esta de que não

achava a dita outro que com ela casasse e não ter havido rapto sem mais outro

impedimento como dos banhos que se acham correntes (...) em presença das

testemunhas que com ele assinaram o Reverendo Padre Mestre de Gramatica o

Doutor Teodósio da Rocha Vieira e o Capitão Mor Cosme do Rego Barros, se

casaram solenemente por palavras de presente Antônio Alvares Gandarela filho

natural de Manuel Alvares Bastos já defunto, e de Maria da Conceição com Antônia

Barboza Rodrigues filha legítima de Domiciano da Gama Luna, e de Maria do

Nascimento (...)67

Agora, por se tratar de pessoas pobres, o vigário que realizou o matrimônio descreve a

situação social dos noivos, que não era muito diferente do restante dos homens e mulheres

pobres na colônia: casava-se com algum parente de sangue, nem sempre a noiva chegava ao

matrimônio virgem, como mandava os ritos canônicos, filho natural, e com sangue mestiço.

Essas condições, que muitas vezes impossibilitava o casamento, era “resolvida” pelos vigários

como forma de adequar as pessoas às normas impostas. Percebe-se, desta forma, que em se

tratando de pessoas pobres determinadas informações não eram poupadas na hora do

matrimônio, como por exemplo, o fato de a noiva encontrar-se deflorada no ato do casamento

e que não lhe restava alternativa a não ser casar com o declarado nubente, pois outro não a

desposaria.

Discutindo a importância do sacramento matrimonial para a sociedade colonial,

Cacilda Machado discursa sobre a imposição de regras estabelecidas a partir do Concílio de

Trento (1563) e que determinava que no âmbito secular as relações humanas devessem

obedecer e se sujeitar aos ditames eclesiásticos. Segundo Cacilda Machado, o Concílio de

Trento:

(...) tratou de redigir seus cânones, condenando a poligamia e o casamento de

eclesiásticos. Também buscou restringir à Igreja o direito e o poder de dissolver

matrimônios e proibir um novo casamento, de estabelecer impedimentos por

parentescos de consanguinidade, de afinidade e espiritual. Finalmente, por exclusão,

definiu o que a partir de então seria considerado adultério ou concubinato, bem

como definiu o que a partir de então seria considerado adultério ou concubinato,

bem como definiu o caráter pecaminoso deles.68

67

Livro de matrimônios Catedral 1752- 1761 68

MACHADO, 2008, p. 142

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Portanto, o matrimônio entre Antônio Alvares Gandarela e Antônia Barbosa

Rodrigues ilustra bem o quanto a sociedade, apesar de estar inserida em um contexto de

convergência das regras religiosas, caminhava de maneira divergente do que se esperava para

uma sociedade ideal, nos moldes eclesiásticos. O clero não tinha como controlar

completamente práticas e costumes enraizados no seio da população que vivia e agia da

maneira que lhes fosse mais adequada, mesmo esta população tendo consciência de que suas

práticas eram erradas, tanto que procuravam corrigir seus maus costumes e se adequar às

normas da Igreja.

A autora também mostra que:

A alta incidência do concubinato no Brasil colonial, para alguns dos autores, foi o

resultado da desclassificação das mulheres indígenas e africanas, identificadas com

as “mancebas” portuguesas. Eram as relações possíveis, num meio misógino e

escravista. Porém, muitas vezes a ocorrência de amancebamento refletia interesses

pessoais importantes, especialmente entre homens e mulheres das camadas pobres: a

necessidade de garantir a sobrevivência sem ter de se submeter à prostituição, ajuda

econômica surgida do trabalho a dois, esperança na compra da alforria com o

concurso do outro, possibilidade de uma companheira sem os entraves do

casamento, segurança e proteção masculina69

.

Como exemplo de que a população procurava se consertar perante a Igreja e a

sociedade no que diz respeito ao casamento, há o caso a seguir:

Aos vinte e nove de maio de mil setecentos e oitenta e sete na Matriz desta cidade

do Rio Grande do Norte freguesia de Nossa da Apresentação dispensados os banhos

pelo Reverendíssimo Senhor Doutor Visitador Frey Manuel de Jesus Maria por

haverem sido compreendidos na visita Manuel da Costa Bandeira, Dona Tereza de

Jesus e se quererem tirava culpa do concubinato como da portaria do dito

Reverendíssimo Senhor, consta pela qual os mandou receber de licença do seu

Reverendo Pároco, a quem foi apresentado o Doutor Manuel Correa Gomes a uma

hora da noite, em presença do Reverendo Padre Miguel Pinheiro Teixeira e das

testemunhas que como ele assinaram Antônio Gomes da Silveira e José de Melo da

Cruz casados, conhecidos e moradores nesta freguesia se casaram solenemente em

face da Igreja por palavras de presentes os ditos Manuel da Costa Bandeira e Dona

Tereza de Jesus naturais desta freguesia e nela moradores e logo receberam as

benções. Conforme o Ritual Romano, de que mandou o Reverendo Doutor Vigário

encomendado fazer este assento em que o assinou. João Freire de Amorim.Vice

vigário70

Neste assento, os noivos Manoel da Costa Bandeira e Dona Tereza de Jesus, se

apresentaram perante o padre visitador frei Manoel de Jesus Maria, para reparar o erro em que

69

MACHADO, 2008, op. citp. 147 70

Livro de Matrimônio Catedral 1740-1752

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os dois viviam diante de todos, pois como consta no assento os dois viviam em concubinato,

prática combatida pela igreja católica. Ainda que o concubinato fosse uma prática tolerada,

isto não significa que o casal estava livre dos apontamentos e julgamentos por parte da Igreja

e da sociedade, por isso os dois trataram logo de regulamentar sua condição.

Assim, o que Cacilda Machado mostra é que a população colonial, tanto a branca livre

como a mestiça, livre ou escrava, almejavam era melhorar sua condição social. O matrimônio

pode ser visto, então, como uma maneira de se conseguir isso, quando se unia a uma pessoa

de maior prestígio social, quando um escravo procurava casar-se com um livre, ou quando se

“oficializava” a união com o intuito de evitar possíveis sanções sociais. Percebem-se as

uniões ilícitas não como um desregramento deliberado da população, mas como uma maneira

de suavizar as tensões e dificuldades encontradas no cotidiano colonial, pois muitas vezes era

mais fácil dividir o fardo do que carregá-lo sozinho.

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4. Conclusão

Os estudos acerca das mestiçagens em diversas partes do Brasil no período colonial

tem revelado cada vez mais a questão das mestiçagens, seja estudando a região fluminense,

Curitiba, Recife, Paraíba e a Corte. A presença do elemento mestiço no seio dessas sociedades

era inerente à própria formação destas como freguesias e depois cidades. Na conjuntura

social, o europeu, o africano e o indígena contribuíram com seus genes para formar a

sociedade colonial “brasileira”.

Não importa se passíveis de discriminações e legados aos lugares mais baixos desta

sociedade, a presença destes homens e mulheres foram de vital importância para a

constituição social e construção da cultura e da história do Brasil. O povo brasileiro foi

gestado na colônia e pela mistura de diferentes povos e culturas foi estabelecida o elemento

novo. Este brasileiro que, ainda passando pelos estereótipos da dominação ideológica das

teorias evolucionistas do século XIX, e depois consagrado pelos estudiosos e sociólogos que

viram nesta mistura algo positivo que os colocaria como centro da formação da cultura e

identidade do país, são o germe da nação, uma nação mestiça social e culturalmente.

Na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação não poderia der diferente. Com o

estabelecimento do projeto colonizador, a capitania do Rio Grande foi um dos espaços em que

se deram os processos de mestiçagens entre povos e culturas. O elemento mestiço, fruto da

mistura dos índios e negros, bem como os brancos, ganhava cada vez mais espaço neste

cenário de polarização das relações sociais ditadas pela Igreja.

O objetivo destas pessoas de cor era de fato conseguir se inserir nesta sociedade e

assim como os brancos, conseguirem melhores condições de vida e de status dentro dela,

juntamente com as escolhas das testemunhas para a realização do matrimônio. Alias, casar

neste período era mais que se unir carnalmente a uma pessoa, era uma dos meios pelos quais a

sociedade cristã se submetia como forma de fazer parte de um grupo distinto de pessoas. Os

indivíduos envolvidos das redes de casamento e que legitimavam sua união perante os

poderes constituídos tinham mais chances de conquistarem posições diferentes socialmente.

Na capitania do Rio Grande foram observadas estas dinâmicas, pois nos três livros

analisados para o período, os nubentes mestiços externavam suas escolhas e estratégias

quando preferiam testemunhas livres e detentoras de ocupações de considerável distinção

entre os indivíduos daquele espaço em que estavam inseridos.

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Assim, pelo matrimônio, os mestiços e escravos perceberem que os ganhos oriundos

da sacramentação de sua união poderia lhes render ganhos sociais e diferenciações em uma

sociedade excludente, fazendo-os como agentes de seus próprios destinos e diminuindo a

carga da condição servil. As redes de sociabilidade/reciprocidade foi uma estratégia da qual

muitos procuravam obter e com isso alterar seu status ou garantir minimamente melhores

meios de sobrevivência.

A capitania do Rio Grande era mestiça. Percebe-se nas linhas deixadas pelos vigários

que a ascendência de muitas pessoas de destaque social era de sangue mestiço. Sob a alcunha

de Neophitos, era revelado o passado misturado de algumas personagens, que seriam

responsáveis por transmitir para gerações posteriores o passado do gentio indígena e africano.

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