Utopias Piratas

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 UTOPIAS PIRATAS Por Felipe Ronner P. I. Motta À Rafael Caxilé, p ela aventura. Meu amigo, você ainda está aí? Depois daquela última história acho que alguém deveria tomar um café. Parei um pouco. Fui comprar cigarros. Estou cômico. As unhas amareladas de fumo, a língua nos dentes ásperos de tártaro, cabelos desordenados. Calcei uns tênis, vesti uma camisa velha. O tom patético ficou por conta de um chamoi  mostarda que contrastava significativamente com o restante do conjunto, inclusive com o recheio abobalhado pelo sono e que caminhava em direção ao 24 horas. Um rapaz me atendeu e eu dei “boa tarde” a ele. “Boa tarde não, desculpa, bom dia.” Eu disse, encabulado. “Mas são 2:30 da madrugada, é boa tarde m esmo”. Nos rimos do divertimento. Ele pegou o que eu procurava e uma moça bonita cobrou a conta. Eu sabia que deveria ter tomando um banho, vestido uma roupa decente e escovado os dentes. “Obrigado, Cláudia.”, disse, olhando seu crachá. “Bom trabalho pra vocês.” Como se houvesse trabalho bom.  Na volta cruzei com um desconhecido que passeava com seu poodle. Doido. Parei à porta do prédio, queimei um cigarro e aspirei a fumaça. Porcaria, eu devia tirar essa asneira. Clicheria desnecessária. Para q ue se acende um cigarro se não é p ara tragar a fumaça? Só mesmo esses meio homens que fazem do tabagismo um esporte para coluna social têm o despudor de fumar sem tragar. Mas a fumaça saia por entre meus dentes e fazia frio. Gosto do frio. O mundo ao nosso redor fica mais claro no frio. De repente aconteceu alguma coisa. O estranho do poodle desapareceu dentro de algum  prédio e eu me vi só. Fantasmagoria. A rua de madrugada é fantasmagoria pura. Os semáforos estalavam mudando de cor, mas ninguém estava lá para ver o verde-amarelo- vermelho, vermelho-verde-amarelo, amarelo-vermelho-verde, sei lá qual a ordem desse acendimento desprovido de razão. Pensava... Foram pensamentos sim, porque falar, falar, eu não falei, só pensei. Tivesse feito isso, falar, eu mesmo me internaria. Não por achar que isso é maluquice, mas porque, internado, certamente eu iria me curar desse mal que é falar sozinho, indício de solidão. Sanatório de um louco só, eu nunca vi,  portanto, de solidão eles não morrem. Mas, como dizia, minha mente se entretinha com os faróis desarrazoados, quando dois carros passaram. O primeiro não me disse nada.

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UTOPIAS PIRATAS 

Por Felipe Ronner P. I. Motta

À Rafael Caxilé, pela aventura.

Meu amigo, você ainda está aí? Depois daquela última história acho que alguém

deveria tomar um café. Parei um pouco. Fui comprar cigarros. Estou cômico. As unhas

amareladas de fumo, a língua nos dentes ásperos de tártaro, cabelos desordenados.

Calcei uns tênis, vesti uma camisa velha. O tom patético ficou por conta de um chamoi 

mostarda que contrastava significativamente com o restante do conjunto, inclusive com

o recheio abobalhado pelo sono e que caminhava em direção ao 24 horas. Um rapaz me

atendeu e eu dei “boa tarde” a ele. “Boa tarde não, desculpa, bom dia.” Eu disse,

encabulado. “Mas são 2:30 da madrugada, é boa tarde mesmo”. Nos rimos dodivertimento. Ele pegou o que eu procurava e uma moça bonita cobrou a conta. Eu sabia

que deveria ter tomando um banho, vestido uma roupa decente e escovado os dentes.

“Obrigado, Cláudia.”, disse, olhando seu crachá. “Bom trabalho pra vocês.” Como se

houvesse trabalho bom.

Na volta cruzei com um desconhecido que passeava com seu poodle. Doido.

Parei à porta do prédio, queimei um cigarro e aspirei a fumaça. Porcaria, eu devia tirar

essa asneira. Clicheria desnecessária. Para que se acende um cigarro se não é para tragar

a fumaça? Só mesmo esses meio homens que fazem do tabagismo um esporte para

coluna social têm o despudor de fumar sem tragar. Mas a fumaça saia por entre meus

dentes e fazia frio. Gosto do frio. O mundo ao nosso redor fica mais claro no frio. De

repente aconteceu alguma coisa. O estranho do poodle desapareceu dentro de algum

prédio e eu me vi só. Fantasmagoria. A rua de madrugada é fantasmagoria pura. Os

semáforos estalavam mudando de cor, mas ninguém estava lá para ver o verde-amarelo-

vermelho, vermelho-verde-amarelo, amarelo-vermelho-verde, sei lá qual a ordem desse

acendimento desprovido de razão. Pensava... Foram pensamentos sim, porque falar,falar, eu não falei, só pensei. Tivesse feito isso, falar, eu mesmo me internaria. Não por

achar que isso é maluquice, mas porque, internado, certamente eu iria me curar desse

mal que é falar sozinho, indício de solidão. Sanatório de um louco só, eu nunca vi,

portanto, de solidão eles não morrem. Mas, como dizia, minha mente se entretinha com

os faróis desarrazoados, quando dois carros passaram. O primeiro não me disse nada.

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Mas no segundo havia um adesivo verde-limão grudado na porta inteira, parecia neon. E

nesse letreiro estava escrito: ALERTA. Assim mesmo, com letras garrafais. Não vi

direito as letras miúdas que emolduravam o tal alerta, mas creio que era algo do tipo:

“Companhia de seguros”, “Companhia te segura”, “Segurança na companhia”, não sei,

talvez estivesse escrito apenas “Segurança”. O fato é que o aviso calou fundo em mim.Fiquei tenso. Você sabe o quanto sou místico. Então terminei rápido o cigarro e entrei

porta adentro do prédio. Cá estou. Quis voltar a escrever e iria reiniciar neste momento

se o Rafael não tivesse chegado aqui na sala. Aconteceu algo impagável, terei que adiar

o que estava fazendo. Vou narrar o caso e procurar ser direto. Objetividade e

velocidade. Não sei se a literatura deseja isso para si, mas fazer o quê, a literatura não

escreve, quem escreve sou eu.

***

Escuto o trinco da porta do corredor, a abertura daquela e o seu ranger

incomodam o silêncio. O Rafael, notívago como eu, surge sorridente. Não sei qual é a

graça, realmente não tenho a menor idéia. Na mesa, papéis e sua carta que não consigo

escrever para mim. Ato falho, na verdade é a minha carta que não consigo escrever para

você. Um copo de café, o Crimes Exemplares de Max Aub, isqueiro, canetas, CDs e

duas carteiras de Marlboro.

– Quer um cigarro, Rafael?

– Seu diabo. Você é o diabo, Felipe. Fica me atentando. Quero, não.

Estica o braço e vai à primeira carteira.

– P.., ela ta vazia.

Pega a outra.

– Que porcaria é essa? Também ta vazia. Você ta tirando uma onda com a minha

cara?!

– Não, Rafael, eu comprei outra.

Mostro a carteira pra ele. Maço, daquelas de papel mole que se destroem no

bolso.

– Cara, pega essa carteira e passa pra essa outra, que é box, durinha. Pagar a

mais podendo fazer isso é burrice.

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– Eu já havia tido essa idéia, Rafael. Quer um cigarro?

– Valeu, quero, não.

Na sala há dois colchões de solteiro empilhados um sobre o outro. Eles

incomodam o Rafael. Coisa de insone. Incomodar-se com besteira para puder puxar

conversa.

– Legal, agora tem mais essa, colchonete velho na sala, isso ta parecendo um

cortiço.

Foi até a janela. Mais uma característica de quem perde o sono, eles sempre vão

à janela. De madrugada não há nada para ver, mas eles sempre põem a cabeça para fora,

olham de um lado e de o outro, escutam o silêncio, fazem ar de decepcionados e se

recolhem novamente.

– P..., ta frio demais. Olha, já viu ali do outro lado? Tem um mendigo dormindo

perto da banca de jornal.

Eu tinha estado lá fora há pouco tempo, mas não havia visto nada. Levantei. O

mendigo estava lá, mas eu não poderia tê-lo visto mesmo. Parecia um pacote

comprimido, esparramado no chão. Estava enrolado em duas lonas, uma azul, outra

preta, e deitava sobre uma terceira da mesma cor desta última.

Do alto do megatério a vida embaixo é monótona e a pobreza invisível. Mas não

moramos num megatério, são apenas seis andares e o mendigo está lá.

– A gente devia pegar esse colchonete velho da Vanessa e jogar lá embaixo

pra`quele cara.

Silêncio.

– Vamos jogar mesmo. Você tem coragem, Rafael?

– Ta louco. Era brincadeira, não falei sério.

– Loucura nada, o mendigo está dormindo no chão. E quem deu a idéia foi você.Vamos jogar.

– O colchonete é da Vanessa.

– Vamos jogar.

Notei a indecisão em seus olhos e arrematei.

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– Deita no chão lá fora por dez minutos e depois sobe aqui pra gente conversar.

Decidiu-se. Caminhou para os colchonetes, pegou o que estava em cima. Era

velho, rasgado, havia perdido parte de sua firmeza, desbotou e, além disso, era feio,

muito feio. Catou o colchão com a mão direita, ia atirá-lo prédio abaixo pela janela...

– Não! Agora quem está doido é você. Não joga assim. Vai ficar preso no para-

peito do prédio.

– Nós temos que dar um jeito de acordá-lo. Eu disse, empolgado com a idéia.

– Felipe...

– O que é?

– É da Vanessa.

– P... você não ia jogar?!

– Ia, mas agora não tenho certeza de nada.

– Seu tangafrôxa!!!

– Tangafrôxa é você seu filho da...

Ia dizer o tal do palavrão, mas eu o interrompi.

– Não xinga a minha mãe.

– Desculpe.

– Tudo bem. Espera um pouco que eu vou pegar uns sacos plásticos.

– Pra quê?

– Rasgo, amarro um na ponta do outro, dou umas duas voltas no colchão e

pronto, nós jogamos lá embaixo.

– Felipe, o certo é colchonete.

– O quê? Disse, enquanto rasgava os sacos.

– Colchonete.

– Certo, ok.

– Felipe, espera, esse colchonete é da Vanessa. Eu disse pra jogar por

brincadeira, não achei que tinha um louco me escutando. Você gostaria que jogassem

seu colchão lá embaixo para um mendigo? Gostaria?

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– Eu aprendi a dizer colchonete e você desaprendeu. Mas vamos falar sério.

Escuta, Rafael, eu sou ateu, quer dizer, agnóstico, dou de ombros pra qualquer religião

que não seja a minha. Mas que porcaria é essa!? A Vanessa é evangélica. Ela comprou,

ganhou, sei lá, o fato é que tem um colchão novinho no quarto dela, tanto que pôs esse

troço aqui, entulhando a sala e fazendo o apartamento parecer um cortiço. O cara tadormindo na rua, morrendo de frio e eu não sou evangélico nem nada.

– Então o que a gente diz a ela? Você vai falar.

– Não. Eu não vou dizer nada. Se ela perguntar, fico calado e você também.

– Não vou agüentar. Vou morrer de rir quando olhar na cara dela.

– É. Tem razão. Vou morrer de rir também.

O colchonete já estava todo dobrado e amarrado com os sacos plásticos.

– E como a gente o acorda? Rafael, falou.

– Sei lá. Grita, assovia.

– Vai acordar todo mundo, não dá. Vou pegar umas pilhas usadas. A gente joga

na banca de revista ao lado do cara.

– Boa. Espera aí, você ta pegando maçã também, Rafael?

– Duas. Empresta um iogurte dos teus?

– Vai estourar todo quando bater no chão.

A solução do Rafael foi encher a sacola com as maçãs e o iogurte com papel

para aliviar o impacto.

– Putz, agora você vai roubar o Moisés também. O jornal dele, cara, ele não leu

ainda.

Cada notícia interessante. Descobri que eu também não havia lido o jornal e fui

passando a vista antes de amassar e pôr no saco plástico. Leitura dinâmica das

chamadas. Em Cannes, um filme sobre vinhos fazia sucesso. A folhinha infantil não

servia pra nada. Amassei. Tomás Eloy Martinez resume a história recente do país e sua

tradição na voz de um cantor de tango imaginário. No Iraque, americanos seviciam seus

inimigos. Classificados. Também amassei. E havia uma tremenda propagando de TV a

cabo. Puro surrealismo. Era mais ou menos assim:

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SANITÁRIOS EXPLOSIVOS?

Fumar no banheiro pode causar a explosão do sanitário? Este e muitos outros

mitos são postos à prova por Jamie e Adam. Em cada episódio de Caçadores de Mitos

(Mythbuster), estes dois modernos cientistas vão fazer tudo que é possível para achar a

verdade que se esconde atrás das lendas urbanas. Você não pode perder. Sábados 19 hs.

O mais interessante é que sob o texto que procurei reproduzir acima tinha uma

imagem imensa, tomando quase a página inteira. Um telefone tombado na vertical,

encostado à parede do banheiro. Jornal caído no chão. Privada quebrada. Pedaços de

sanitário espalhados por todo o ladrilho branco. À frente do vaso, indicando a ausência

de seu proprietário, havia um par de botinas pretas, meio rotas. Exceto esses calçados,

do usuário desse insólito banheiro não havia mais nenhum sinal.

– Felipe, para de olhar esse negócio aí. O que você está vendo?

– Nada, só bobagem. Vai, joga logo essa pilha.

Jogou a primeira. Passou longe. A segunda chegou perto, mas, perto ou longe,

erro é erro. Era difícil acertar a tal banca de revista. Mas aí o Rafael fez cara de águia,

braço de jogador de beisebol. Arremessou a pilha, certeiro. Téééééiiiiimmm. Nesse

momento achei que teria sido melhor gritar. As pessoas do prédio em frente começaram

a acender as luzes de seus apartamentos. Desligamos a nossa e ficamos abaixados, nem

respirávamos. Será que a Vanessa acordou? Ficamos um tempo nessa situação ridículaaté que os apartamentos em frente tornaram à escuridão. Olhamos a rua. Brincadeira... o

mendigo não havia sequer mudado de posição.

– Jogo outra?

– Acho melhor não. Sussurrei. Vamos descer e entregar na mão dele.

Não sei bem o porquê, mas eu não queria descer. Fiquei lembrando de todos os

bons ladrões e justiceiros de minha infância, que sempre faziam o bem, mas nunca se

apresentavam para colher os frutos de sua caridade. A idéia era acordar o mendigo e,com as luzes do apartamento desligadas, jogar comida e colchonete prédio abaixo.

Fecharíamos a janela e pronto. Mas o mendigo não acordava.

– Vamos lá, anda.

– É, vamos.

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Descemos, demos boa noite ao porteiro. Ele estranhou o colchonete e a nossa

cara de desentendidos. Não dissemos nada. Chegamos à rua. Realmente fazia muito frio.

Daqueles de bater os dentes. Vi num noticiário que a temperatura cairia a 7 graus

naquela madrugada. Com o vento zunindo a sensação térmica era menor ainda.

Atravessamos a rua e chamei baixinho para não assustar o mendigo. Nada, nem semexeu.

– Chama você, agora.

– Hei, moço, acorda, trouxemos comida e um colchonete.

Nem um movimento.

– Moço!

Estava frio demais. Rafael chamou de novo e deu um puxão na lona.

Lembrei de uma frase que li num livro cujo título e autor não me recordo: “O

gesto quando não é sincero vem tarde.”

– Felipe, acho que ele está morto.

Fiquei ali pensando na frase: “O gesto quando não é sincero vem tarde.”

– Deixa ele aí, Rafael.

– Nós temos que saber.

Não sei o que deu nele, mas, do nada, sua perna direita vôou na direção do

mendigo morto.

– Rafael, não! Consegui dizer, entre o momento em que pressenti o seu intento e

o choque de sua perna contra o morto.

Você não conseguiria imaginar o que aconteceu. O mendigo, aquele que vimos

do alto do prédio, o que gerou polêmica sobre o ataque à propriedade privada, e tudo o

mais. O mendigo morto. Esse mendigo não estava lá. Só havia lonas e um sucedâneo de

sua cabeça, feito de papel. De repente bateu um constrangimento. Depois veio o alivio.

Ri tanto que me doeu o estômago. Mas o Rafael, não. Ficava o tempo todo se

perguntando por que alguém faria uma palhaçada daquelas? Sinceramente, não sei. No

entanto, o meu alívio permanecia, e só parei de rir porque, se não o fizesse, teria

morrido eu mesmo de asfixia.

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Os críticos literários costumam dizer que, quando o personagem principal de um

enredo conquista seu objetivo – a mulher amada, a batalha final, o retorno ao lar, ou até

mesmo quando esse personagem perece ao término de seu périplo – neste momento

podemos dar o romance por encerrado. É como se houvesse uma moldura interna do

texto. Mas, embora as palavras se prolonguem meio desinteressantes e vazias desentido, e a obra venha a ser encerrada depois de seu fim, é exatamente isso que farei

aqui.

Após o acontecido, subimos. Desfizemos os sacos que envolviam o colchonete e

devolvemos tudo ao seu devido lugar. Sentei novamente diante da carta que estava

escrevendo para você. Acendi um cigarro. Rafael, olhando pela janela, fazia pequenos

ruídos, como se reprimisse o choro ou contivesse o riso. Resolveu falar.

– Bateu um sentimento de piedade. No começo era brincadeira. Queria, depoisnão queria levar esse colchonete. Mas depois veio esse sentimento de verdade. Essa

cidade é um negócio tão f... que a gente até tenta ajudar o próximo, mas o próximo não

está lá. A gente pode tratar isso com algo simbólico. A representação simbólica de um

mendigo que não estava lá. Só havia o casulo. O mendigo virou borboleta...

Acenei positivamente com a cabeça e ele se recolheu. Enquanto escrevia essa

história, ouvi passos na rua, alguém mexia na lona. Pus a cabeça para fora da janela. Era

ele, o mendigo. Estranhou que suas coisas estivessem desarrumadas. Foi até a banca e

urinou. Tirou uma garrafa d`água debaixo da lona. Bebeu e lavou o rosto. Lavou as

mãos também. Depois retornou à sua cama, recolheu tudo, pôs embaixo do sovaco e

partiu. Ele tinha o cabelo penteado. Vestia-se decentemente. Também estava asseado.

Perguntava-me se um mendigo tão limpo continuava sendo um mendigo? Mas era uma

pergunta retórica. Era ele e não eu quem morava na rua. Não fez quase nenhum barulho.

Os passos leves se distanciaram e sumiram, dobrando a esquina.

Rafael voltou à sala nesse instante.

– Você viu o mendigo? Eu vi lá da janela do meu quarto.

– Eu também vi daqui, Rafael.

– Vamos lá. A gente o alcança rapidinho.

– Não, Rafael, acho que aquele homem não precisa de nada.